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rural

dossiê
brasil

6 REVISTA USP, São Paulo, n.64, p. 6-13, dezembro/fevereiro 2004-2005


O
JOÃO BAPTISTA
BORGES PEREIRA
é professor emérito da
FFLCH-USP e docente do
Programa de Pós-
graduação da
Universidade Presbiteriana
Mackenzie.

RENATO DA SILVA
QUEIROZ é professor
titular do Departamento
de Antropologia da
FFLCH-USP.
JOÃO BAPTISTA BORGES PEREIRA

Por onde anda


RENATO DA SILVA QUEIROZ

o Jeca Tatu?
ARCAÍSMO E MODERNIDADE NO CONTEXTO
AGRÁRIO
O cenário rural brasileiro retratado pela
mídia revela-se hoje sob dupla face: a “moder-
na”, representada pelo agronegócio – ou agri-
business, no pedante jargão dos economistas; e
a “arcaica”, cujo perfil se esboça nas ações do
MST e na persistência do que se chama de “tra-
balho escravo” no campo.
O agronegócio congrega empreendimen-
tos fortemente capitalizados, pautados pela raci-

O onalidade inerente às exigências competitivas

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do mercado. Caracteriza-se, ainda, pela
monocultura e pelo uso intensivo de tecno-
logia e mecanização (poupadoras de mão-
de-obra), bem como por extensas áreas agri-
cultáveis ou destinadas à pastagem. Trata-
se, a rigor, de empreendimentos empresa-
riais de vocação exportadora, o cultivo da
soja despontando aí como caso exemplar.
São recorrentes as análises segundo as
quais, nos últimos anos, o agronegócio tem
sido responsável pelo dinamismo da eco-
nomia nacional, suplantando até mesmo
numerosos setores da indústria.
Ainda de acordo com a mídia, dois ti-
pos humanos simbolizam, respectivamen-
te, a modernidade e o arcaísmo agrários: de
um lado, o empresário rural abastado, aberto
às inovações tecnológicas e vinculado aos
mercados internacionais; de outro, o aguer-
rido militante sem-terra, que almeja obter
alguma gleba rural em que possa se assen-
tar e nela produzir os seus meios de vida de
acordo com os preceitos da agricultura fa- dos ao campo do que ao espaço urbano. Não
1 Não estão aqui arrolados os miliar. Dois estereótipos: o primeiro, po- é difícil reconhecer nesses traços a influên-
bóias-frias, assalariados rurais
que geralmente residem na sitivo, como convém à ideologia hege- cia da cultura country norte-americana.
periferia das cidades. A esses
mônica; o segundo, negativo, estigma- Os mencionados “tipos intermediários”
trabalhadores proletarizados a
mídia também não tem dado tizador dos que travam cotidianos emba- estão praticamente ausentes dos meios de
grande importância, mas me-
receram razoável atenção de tes pela sobrevivência. comunicação. De certo modo, raras vezes
estudiosos. Cf., por exemplo, Entre esses dois pólos situa-se uma obtiveram amplo destaque, a não ser quan-
o trabalho de Maria da Con-
ceição D’Incao, Bóia-Fria: Acu- expressiva variedade de produtores rurais: do retratados com as mais toscas feições
mulação e Miséria (1979).
posseiros, parceiros, arrendatários, meeiros, (3). É oportuno lembrar que a maioria des-
2 Dados reunidos no artigo “Ins-
trumento de Cidadania”, de
agregados, pequenos proprietários etc. (1). ses pequenos produtores rurais resulta da-
Marconi Perillo, publicado na A mídia não lhes concede maior destaque, quela categoria intersticial de homens li-
Folha de S. Paulo em 10 de
dezembro de 2004. Lê-se nes- seja porque não se aglutinam em movimen- vres e pobres, mestiços em geral, situados,
se mesmo trabalho que cabe à tos sociais de grande envergadura, seja no período escravista, na quase impossibi-
agricultura familiar a produção
de 84% da mandioca, 67% porque não são percebidos como agentes lidade e na quase desnecessidade de traba-
do feijão, 58% dos suínos,
54% da bovinocultura de lei- econômicos significativos. Todavia, esti- lhar (Franco, 1969). Configurados em pe-
te, 49% do milho, 46% do tri- ma-se que a agricultura familiar responde quenas unidades de povoamento – os “bair-
go, 40% das aves e ovos e
31% do arroz servidos à mesa por 38% do valor bruto da produção ros rurais” – estruturadas a partir de míni-
dos brasileiros.
agropecuária no país, concentrando cerca mos sociais e vitais (Candido, 1964), tor-
3 Provém dessas categorias boa de 84% dos estabelecimentos rurais e 77%
parte dos contingentes que se
naram-se conhecidos como caboclos ou
engajaram em mobilizações da mão-de-obra no campo (2). caipiras (4).
messiânico-milenaristas no
campo, movimentos costumei- É curioso observar que o mundo rural, Se na pretérita ordem estamental, aos
ramente taxados de fanatismos tradicionalmente apontado como entrave africanos escravizados não se concedia ne-
arcaicos ou pré-capitalistas e
que mereceram da imprensa, ao desenvolvimento brasileiro, ressurge, na nhuma visibilidade, coube ao índio, sobre-
com raras exceções, reporta-
gens sensacionalistas, precon-
mídia, como a vanguarda das iniciativas tudo no Romantismo, ocupar o posto de
ceituosas e condenatórias. econômicas. De par com essa percepção, mais autêntico representante da brasilidade.
4 Na literatura “regionalista” o louvam-se os rodeios, as feiras e exposi- É comum, a propósito, os brasileiros van-
caboclo (ou sertanejo) surge
como uma figura valorizada ções agropecuárias, a música e as indu- gloriarem-se de figurar, em sua genealogia,
(Waldomiro Silveira, por exem- mentárias “sertanejas” e até mesmo mode- uma avó ou bisavó “bugre”, “pega no laço”.
plo) ou caricatural (Cornélio
Pires, entre outros). los de ambicionados veículos, mais adequa- Vejam-se, por exemplo, os termos em que

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Jorge Amado (1996) evoca algumas de suas agricultores-posseiros, sobretudo as devas-
ascendentes: “Minha mãe, dona Lalu, era tadoras queimadas que provocavam. O
uma pequena índia, a relembrar no físico e caboclo de Lobato não passava de uma
em circunstâncias de caráter aquela sua avó “quantidade negativa”, um “funesto para-
capturada na selva pelo avô caçador – ao sita da terra”, uma “espécie de homem bal-
que me contaram, um português um tanto dio, seminômade, inadaptável à civiliza-
quanto aventureiro”. Contar com uma as- ção, mas que vive à beira dela na penumbra
cendente índia (tida como elemento da das zonas fronteiriças”. Levando uma exis-
natureza domesticada pelo colonizador) tência errante, maligna, preguiçosa, impro-
confere legitimidade e distinção a qualquer dutiva e semi-selvagem, o caboclo deveria
família brasileira. Contudo, jamais se afir- ser afugentado como um “cachorro impor-
ma o contrário – a existência de um avô ou tuno” ou uma “galinha que vareja pela sala”.
bisavô “bugre”, e muito menos negro –, E Lobato os nomeia: Manoel Peroba, Chi-
pois essa inversão macularia os brasões co Marimbondo, Jeca Tatu, relegando-os,
familiares, tendo-se que admitir, nesse caso, assim, ao domínio da natureza.
um constrangedor rebaixamento moral das Poucos meses depois Lobato escreve
mulheres brancas (representando, pois, um Urupês, e nessa crônica retoma o tema de
decaimento da cultura para a natureza). Velha Praga, caracterizando o caboclo
como supersticioso, atrasado, indolente, fa-
talista, desprovido de senso estético e ci-

A GESTAÇÃO DO JECA
vismo, incapaz de raciocinar e se expressar
com clareza – “De pé ou sentado as idéias
se lhe entramam, a língua emperra e não há
O caboclo ganha má fama nacional so- de dizer coisa com coisa” – enfim, uma
bretudo a partir da publicação, em 1914, da “raça” fadada a “vegetar de cócoras, inca-
carta Velha Praga, escrita por Monteiro paz de evolução, impenetrável ao progres-
Lobato, em que o criador do Sítio do so. Feia e sorna, nada a põe de pé” (5).
Picapau Amarelo, indignado, denuncia as A partir de então a figura do Jeca passa
práticas agrícolas empregadas por esses a representar, estereotipada e preconceituo-
samente, aqueles “tipos intermediários”, os
pequenos e rústicos agricultores interiora-
nos (6). Esse segmento dos homens livres
e pobres raras vezes constituiu objeto de
uma percepção compreensiva por parte das
camadas mais bem situadas na estrutura
social brasileira. À semelhança do olhar do
colonizador dirigido aos índios, os cabo-
clos foram sempre vistos como improduti-
vos, inconstantes, preguiçosos, arredios,
atrasados, ignorantes e predadores das
matas e de suas riquezas.
Em 1918, contudo, Lobato faz mea-
culpa, deixando de lado a indignação críti-
5 Em 1914 Lobato se ocupa da
ca para exaltar as qualidades do Jeca Tatu: fazenda herdada do avô, no
Vale do Paraíba. Registrou-se,
“[…] tu, Jeca, tens a suprema coragem de naquele ano, uma forte seca
não ser grotesco por figurinos franceses. A na região, com o que se multi-
plicaram as queimadas e os
verdade é esta: Jeca é a única afirmação de danos por elas causados.
individualidade não laivada de ridicularias 6 “Jeca” passa também a ser si-
que possuímos. […] Jeca só trabalha para nônimo de “brega”, “cafona”,
“atrasado”, “sem traquejo”.
si: nunca virá ao país um conde montado
7 Cf. O Sacy Pererê: Resultado
no trabalho dele” (7). Afirmações naciona- de um Inquérito, pp. 288-90.

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listas, em franca oposição à subserviência cional. Ele [o Saci] desafia e enfrenta os
aos estrangeirismos todos (especialmente estrangeirismos que corroem o idioma na-
os de procedência francesa) que, à época, tivo, em detrimento da nossa cultura e au-
provocavam profunda aversão em nosso tonomia” (11).
autor. Ademais, o caboclo (ou caipira, nas
áreas de influência paulista) passava a sim-

O JECA TATU GESTADO NAS ZONAS


bolizar um “tipo puro”, não contaminado
pelo modo de vida urbano que se expandia

SERTANEJAS DO VALE DO
naquele período histórico (8).
Também não se pode deixar de regis-

PARANAPANEMA (12)
trar que, em seu mea-culpa, Lobato atri-
buiu a indolência do caboclo à ancilos-
tomose (amarelão), engajando-se, a partir
de então, no movimento sanitarista, pro- O Jeca Tatu de Lobato tomou forma
movido por Oswaldo Cruz, convertendo a numa área rural de povoamento historica-
figura do Jeca Tatu em símbolo de um país mente antigo – o Vale do Paraíba –, onde a
doente e atrasado, cuja redenção far-se-ia lavoura cafeeira, que estabelecera um esti-
mediante o combate às endemias rurais (9). lo de vida senhorial e assim claramente
“Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, dicotomizara a estrutura social agrária,
por motivo de doenças tremendas. E tens começara a dar os primeiros sinais de de-
no sangue e nas tripas todo um jardim zoo- clínio. Já na transição do século XIX ao
lógico da pior espécie. É essa bicharada XX fazendeiros dessas terras cansadas eram
cruel que te faz papudo, feio, molenga, atraídos pelas promissoras e férteis terras
inerte”, desculpa-se Lobato. Ainda em 1918 roxas, afloramentos de basalto que pig-
publica “Jeca Tatu – a Ressurreição”, em mentavam extensas áreas do Vale do Para-
que o mesmo personagem, curado do napanema, estendendo-se até as proximi-
8 Especialmente sob o prisma da
aristocracia agrária da época. amarelão e, portanto, da indolência, põe-se dades de Salto Grande (SP).
9 Ver o artigo de Moacyr Scliar, a trabalhar com tal afinco que se converte
“Uma Soma de Contradições”, em próspero fazendeiro. Uma adaptação
publicado em 7 de novembro
de 2004 no Caderno Mais! da ilustrada desse conto circulou por muitas
Folha de S. Paulo.
décadas, através do país, no Almanaque do
10 Uma matéria divulgada pela In-
ternet, “Doença de Jeca Tatu
Biotônico Fontoura (10).
Ganha Primeira Vacina”, noti- A cruzada de Lobato em defesa da
cia o desenvolvimento de uma
vacina norte-americana contra brasilidade por meio da valorização do Jeca
a ancilostomose: “A ancilos- e de sua cultura inspira militantes da atua-
tomose, também conhecida
como amarelão, foi tornada cé- lidade. A “cultura rústica” – caipira, cabo-
lebre por Monteiro Lobato em
1918, como a causadora da cla – constitui uma das trincheiras dos que
indolência do personagem Jeca hoje combatem pelos nossos costumes mais
Tatu”. Cf. http://lobato.globo.
com/html/novidades27.html autênticos, sempre ameaçados, argumen-
11 Cf. Ata de Fundação da Socie- ta-se, por influências estrangeiras. Em opo-
dade dos Observadores de sição à difusão do “Halloween” e suas bru-
Saci em http://www.berro.
com.br/Html/Cultura/ xas, e aos “personagens dos filmes e dese-
Cultura8.html
nhos importados que infestam o imaginá-
12 Texto elaborado, em grande
medida, a partir do Correio do rio de nossas crianças e jovens”, criou-se,
Sertão – Semanário Dedicado por exemplo, a Sociedade dos Observado-
aos Enteresses da Zona Serta-
neja (anno I, Santa Cruz do Rio res de Saci (Sosaci). Tal organização, que
Pardo, 1902), incluindo tam-
reúne artistas, escritores, intelectuais e
bém informações colhidas por
meio de pesquisas realizadas outros “interessados em valorizar e difun-
ao longo de 25 anos por João
Baptista Borges Pereira, com dir a tradição oral, a cultura popular e in-
vistas à elaboração de ensaio fantil, os mitos e lendas brasileiros”, pre-
etno-histórico sobre a área
mencionada. tende combater a “perda da identidade na-

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Até o penúltimo quartel do século XIX sujeitos sociais até aqui apontados. Na pas-
essas terras roxas eram recobertas de flo- sagem do século XIX ao XX entram em
restas densas, e ocupadas, de forma rare- cena novos atores: são os fazendeiros “mo-
feita, por índios e algumas famílias que, dernos”, cafeicultores senhoriais em busca
aventureiras, migraram das fronteiras de de terras férteis e descansadas para o plan-
São João da Boa Vista (SP) e Caldas (MG) tio do café. Vários deles eram originários
para lá – o então chamado Sertão. Essas das paisagens de onde Monteiro Lobato
famílias, verdadeiras parentelas, ocuparam tirou os ingredientes com os quais cons-
léguas e léguas de terras, de aguada a agua- truiu o seu Jeca Tatu. Tudo indica ser esse
da, junto com seus escravos, ex-escravos e período, há pouco mais de 100 anos, um
agregados, não se preocupando com medi- dos momentos históricos de produção e
ções de limites. Algumas delas, fundado- reprodução social e simbólica do Jeca –
ras de povoados, se auto-rotulavam de “do- período relativamente recente, pois, se com-
nas” de “póssias”, corruptela do substanti- parado com os quadros histórico-culturais
vo posse que iria, tempos depois, gerar, em do qual é herdeiro o autor de Urupês. Exa-
meio à disputa de terras, o pejorativo termo minado desse ângulo, talvez se possa dizer
“posseiro”. O rótulo “posseiro” passaria, que tal período reproduziu em outro espa-
nesse processo competitivo, a denotar, a ço e em tempos modernos, ou quase mo-
um só tempo, as suas condições sociais dernos, ainda que em linhas gerais, o que
subalternizadas e o seu destino social de deve ter ocorrido em fases pretéritas da vida
homens deserdados de suas “póssias”. Es- brasileira. Visto dessa perspectiva, essa
ses grupos familiares criaram uma econo- maior proximidade temporal de um pro-
mia de subsistência, fechada em seus pre- cesso histórico específico permite ao estu-
cários limites. dioso ter ao alcance de suas mãos dados
Esse o cenário – oficial e oficioso –, empíricos mais recentes que lhe favorecem
rotulado, quase sempre apologeticamente, a reconstituição dos mecanismos – sociais
como sertão, em que se movimentavam os e simbólicos – do surgimento do caipira.
Retomando o processo histórico: esses
desbravadores do sertão, que depois seri-
am depreciativamente rotulados de possei-
ros caipiras pela nova onda de fazendeiros
sofisticados (todos envolvidos pelo e com
o sistema de poder ligado ao PRP), até então
se auto-intitulavam donos de “póssias”.
Depois, foram adjetivados, de fora para
dentro, inclusive pela imprensa e pela pro-
paganda, de sertanejos, termo que contém
em si, simbolicamente, a idéia de gente
heróica e desbravadora. Pouco a pouco os
novos fazendeiros foram se apropriando do
termo para se autodesignarem, não sem
antes acrescentar ao heróico e desbravador
a idéia de nobreza, que se legitima com o
épico. O ex-sertanejo retorna então à sua
condição de posseiro caipira, o homem sem
eira nem beira, sem direito a qualquer
postulação de título de propriedade, cultiva-
dor de uma cultura rústica, grosseira, in-
compatível com a sofisticação de que era
portadora a nova elite agrária. O máximo
de concessão era chamá-los, compadeci-

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damente, de “esses pobres sertanejinhos”, norte de São Paulo (sempre margeando o
o diminutivo atuando aqui como rebai- Rio Paranapanema), pelo oeste e norte (ve-
xador. Aí estão os ingredientes sociais e lho e novo) do Paraná e norte de Mato
simbólicos com os quais foi sendo traçado Grosso, é um espaço privilegiado do agro-
e reproduzido o perfil do Jeca Tatu nas zonas negócio. Não há, naquelas paragens, lugar
sertanejas. para o caipira como categoria social. Tal-
Essa incompatibilidade é construída vez seja possível encontrá-lo na faixa lito-
mediante um processo de desqualificação, rânea de São Paulo, na versão caiçara, como
quase sempre ridicularizador, do ex-des- postula Kilza Setti (1985), ou, então, em
bravador, e que o conduzia ao envergonha- áreas rurais aonde não chegou, de forma
mento de sua fala (em geral recheada de tão absoluta, a grande propriedade, como
expressões do português arcaico), de suas ocorre em franjas rurais localizadas nas
roupas, de seus alimentos, de sua bebida proximidades da Serra da Mantiqueira, logo
predileta (talvez única, a pinga), de sua depois de Bragança Paulista. É paradoxal
medicina rústica, de suas manifestações que o caipira, que desapareceu de regiões
lúdicas, de suas crenças e práticas mágico- tão distanciadas da cidade de São Paulo,
religiosas, de suas músicas e danças, de seu sobreviva em locais tão próximos da capi-
comportamento social. A paremiologia, tal. Há pelo menos dez anos ainda era pos-
como dizia Florestan Fernandes, soa elo- sível encontrar, nessas franjas, o palavrea-
qüente por sintetizar, admiravelmente bem, do arcaico, as benzeduras, a dança de São
um longo discurso: nesse caso, um discur- Gonçalo, o cateretê, as cerimônias fúne-
so de exclusão social. Há um ditado usado bres com rituais de passagem e de distri-
para expressar o distanciamento social en- buição de bens, sem falar na riqueza das
tre duas camadas, ainda em circulação na- figuras lendárias e míticas (corpo-seco,
quelas paragens: “em festa de nhambu, jacu saci-pererê, mula-sem-cabeça e o oni-
não entra”. O significado dessa metáfora presente e temido lobisomem), peças cen-
ganha pleno sentido quando se conhecem trais de narrativas que assombram o corpo
as duas aves: o nhambu é bem-vestido, e a alma dos caipiras, ainda que estes sejam
coberto de vistosas penas, ao passo que o constantemente alcançados por mensagens
jacu, com seu andar desajeitado e mais televisivas.
parecido com um frango de pernas longas, Se nos dias atuais é difícil, ou quase
ostenta penas feias e ralas que mal lhe co- impossível, encontrar o caipira real, ele
brem o corpo, deixando quase nuas as suas sobrevive, contudo, e bem forte, no imagi-
partes pudendas. Daí, nessa região, mesmo nário nacional, popular ou não, urbano ou
nos dias de hoje, ainda se referirem aos rural. Tal sobrevivência se dá via mecanis-
caipiras, aos jecas, como “jacuzada”, as- mo em que se misturam o ridículo e o idea-
sim como “jacuzada” pode também rotular lizado, compondo o perfil de um caipira
pessoas mal ajambradas, trajadas com rou- caricatural. Esse imaginário é alimentado,
pas fora de moda e que revelam pouco ou desde sempre, por letras de músicas, qua-
nenhum domínio de uma etiqueta tida como dros humorísticos, “causos”, anedotas que
refinada. se perpetuam de geração a geração. Por sua
vez, elaborações estético-intelectuais se ali-
mentam desse mesmo imaginário para com-

AFINAL, ONDE ESTÁ O JECA TATU


posições temáticas que, em geral, acabam
realimentando o imaginário com tinturas

NA ATUALIDADE?
mais fortes.
Idealizado como um elemento “autênti-
co” e astuto, que não se deixa desfigurar,
Talvez se possa afirmar que o caipira depositário das tradições genuinamente bra-
desapareceu da então chamada zona serta- sileiras, o caipira acaba encontrando, a des-
neja. Essa área, que hoje se alonga pelo peito de seus traços rústicos, um lugar na

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galeria dos símbolos nacionais. Mais tarde em metrópoles como São Paulo o ciclo
esse tipo ganha vida como personagem ci- junino é anualmente festejado em colégios
nematográfico interpretado por Mazzaropi, e clubes, mesmo nos chamados “de elite”.
atraindo multidões aos cinemas (13). Esses festejos são sempre marcados pelo
Personagem ambíguo – a um só tempo consumo de bebidas e comidas que, estereo-
simplório e astuto, subalterno e altivo, tipadamente, evocam um mundo rural já
canhestro e ladino, o ingênuo que não se dissolvido. Nesse cenário pontuado de
deixa lograr –, Jeca sintetiza o “brasileiro música, bebida e comilanças típicas, a fi- 13 A Folha de S. Paulo de 23 de
autêntico”, o herói que não se submete ao gura central é a do casal caipira: o menino, outubro de 2004 estampa a
matéria “Filme Busca as Raí-
opressor e dele se livra por meio de artima- de barba e bigode ralos, chapéu de palha zes da Cultura Caipira”, dan-
do conta da realização de uma
nhas (14). Aproxima-se, assim, de notá- propositadamente esfiapado, camisa de obra cinematográfica dirigida
veis tipos folclóricos, míticos ou literários: tecido xadrez, calça remendada e desajei- por Luís Alberto Pereira e estre-
lada por Matheus Nachter-
Macunaíma, Pedro Malasartes, etc. tada (“pula-brejo”), ao lado da menina cai- gaele e Cássia Kiss, cujo tema
pira vestida de panos grossos, chapéu de gira em torno da cultura caipi-
De qualquer forma, mesmo ridiculari-
ra, seus tipos humanos e o fil-
zado ou poeticamente idealizado, o caipira palha, trancinhas e rosto ridiculamente pin- me Jeca Tatu de Mazzaropi.
filtrado pelo imaginário desfez-se de seus tado, a demonstrar que, como caipira, não 14 Uma anedota traduz bem a es-
perteza dissimulada do caipi-
“defeitos” (o amarelão do Jeca Tatu), mas sabe como se maquiar. ra: destratado pelo cobrador
retém as suas “virtudes”, associadas, em É como se o caipira – o Jeca –, ainda que do trem, pois danificara o bi-
lhete por mantê-lo parcialmen-
geral, à ladinagem, à esperteza, à ingenui- no plano do imaginário, usasse a sua pro- te na boca, Jeca mantém-se
cabisbaixo e calado. Interpe-
dade. verbial sagacidade para inverter os papéis: lado depois pelos demais pas-
Um momento em que se pode surpreen- finalmente triunfante, o jacu consegue fu- sageiros pela falta de reação
às ofensas que lhe foram diri-
der o imaginário materializando-se na vida rar as barreiras da exclusão e participar, gidas, observa: “escutei con-
social é aquele das festas juninas, pelo como protagonista maior, da festa do versa, mas vou viajar de graça
porque comi a data do bilhe-
menos nas áreas de expansão paulista. Até nhambu. te, que já estava vencido”.

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REVISTA USP, São Paulo, n.64, p. 6-13, dezembro/fevereiro 2004-2005 13

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