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“Sobre a Liberdade” (1859), de John Stuart Mill - Comentários e análise da obra1


(Capítulos 1 e 2 - “Introdução” e “A liberdade de pensamento e discussão”)
Gabriel Antonio Roque

I. INTRODUÇÃO

John Stuart Mill, nascido em Londres no ano de 1806, foi um expoente da


filosofia e da economia do século XIX, qualificado como o filósofo de língua inglesa
mais influente de seu período2. Naturalista, utilitarista e liberal, utilizou-se largamente do
empirismo em suas análises3. Sua rica e abrangente obra é ainda hoje objeto de reflexão
e discussão em diversas áreas, como a psicologia, a filosofia política, a ética e o direito,
não só pela originalidade e pelo que representou em termos de inovação ao pensamento
da época, mas também pela atualidade de grande parte de seus conceitos, pensamentos e
construções teóricas.

Apenas a título informacional, remetemos às suas críticas ao papel reservado às


mulheres na sociedade do século XIX4. Stuart Mill, hoje referência clássica para muitas
abordagens feministas, foi um crítico assíduo da mentalidade e tratamento autoritário e
preconceituoso ao qual as mulheres eram submetidas. O autor defendeu de forma
intransigente o direito ao voto para o público feminino e postulou sua igualdade cívica e
social perante o sexo masculino, ideias estas revolucionárias para a época e o contexto
em que viveu Mill.

Stuart Mill, durante seu período de produção intelectual, refletiu sobre a religião,
a justiça, o liberalismo, lógica, aritmética, entre tantos outros temas. Inserindo-se e sendo
um dos precursores do utilitarismo (ao lado de seu padrinho e educador Jeremy Bentham),
Stuart Mill tinha como escopo de suas reflexões e como ponto de partida para suas
construções teóricas a maximização do bem-estar individual e coletivo, sendo o objetivo
maior da humanidade, de acordo com tal doutrina ética, a promoção da felicidade.

1
Trabalho de Avaliação Distribuída para cadeira de Filosofia do Direito e Metodologia Jurídica (Profª
Anabela Costa Leão) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto – 1º semestre do ano letivo
2017/2018.
2
MACLEOD, Christopher. John Stuart Mill. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Spring 2017
Edition [Em linha]. [Consult. 11 Out. 2017]. Disponível em WWW:
<https://plato.stanford.edu/archives/spr2017/entries/mill/>.
3
Ibid.
4
MILL, John Stuart. A sujeição das mulheres. Trad. Benedita Bettencourt. Coimbra: Almedina, 2006.
2

Este trabalho tem por escopo a breve análise e discussão dos capítulos 1
(Introdução) e 2 (Sobre a liberdade de pensamento e discussão) da obra “Sobre a
Liberdade” (On Liberty)5, publicada originalmente em 1859, pouco tempo depois da
morte de Harriet Taylor, sua esposa desde 1851 e uma das suas maiores influências,
inspiração de muitos dos trabalhos do filósofo6. “Sobre a Liberdade” é um marco histórico
do liberalismo político, prescrevendo regras e construindo conceitos perfeitamente
proficientes à pós-modernidade, tratando especialmente de questões atinentes a esfera
individual e dos limites impostos ao Estado e à sociedade acerca de suas atuações nessa
seara. Neste trabalho, deu-se especial atenção ao princípio do dano (autodefesa) e a
liberdade de expressão defendida por Mill, primando-se pela apreciação pessoal e crítica
da obra em comento.

O texto, após a introdução supra realizada, se subdivide em: (II) considerações


preliminares; (III e IV) “Introdução” e “Sobre a Liberdade de Pensamento e Discussão”,
consistindo no desenvolvimento do trabalho, comentando os pontos que julgamos mais
importantes para a compreensão de cada capítulo da obra e expondo breves apreciações
a respeito; e, por fim, (V) conclusão, que realiza um enquadramento final e reflete
criticamente as principais ideias expostas na análise efetuada.

II. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES


Antes de iniciar a análise dos capítulos da obra, pertinente realizar uma
importante consideração. Assim como todas as obras do passado, deve-se tomar o cuidado
de se ler Stuart Mill compreendendo o período e o contexto histórico no qual o filósofo
viveu, buscando evitar julgamentos precipitados tomando por ponto de partida as ideias
contemporâneas (em grande medida influenciadas por teóricos como Mill).

Dessa forma, muitos das construções teóricas de Stuart Mill podem ser lidas, à
primeira vista, com certo “senso de obviedade” se desvencilhadas de seu contexto e época
de desenvolvimento, o que se mostraria equivocado. Não está se querendo dizer, de forma
alguma, que o pensamento do autor é imune a questionamentos. Vale lembrar que “Stuart
Mill serve de modelo para reflexão sobre os problemas humanos em uma forma séria e

5
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Trad. Pedro Madeira. Lisboa: Edições 70, 2014.
6
Aliás, “Sobre a Liberdade” é dedicado à sua amada: “[...] a inspiradora, e em parte a autora, de tudo o que
há de melhor nos meus escritos – a amiga e esposa cujo elevado sentido de verdade e rectidão foi o meu
mais forte incentivo, e cuja aprovação foi a minha principal recompensa. [...]” (Ibid., p. 25).
3

civilizada, embora existam críticas igualmente sérias ao seu modo de refletir e às suas
formulações”7.

III. CAPÍTULO 1 – “INTRODUÇÃO”

No primeiro capítulo de “Sobre a Liberdade”, Mill assevera que o objeto a ser


analisado em sua obra não será, em momento algum, a chamada liberdade do querer, mas
sim as liberdades sociais e civis, bem como a natureza e as limitações do poder exercido
pela sociedade sobre o indivíduo. Contrapondo as ideias de liberdade e autoridade, e
identificando como característica desta última, nos tempos remotos, a oposição entre o
povo e o soberano, o autor relaciona a liberdade, desde já, com a imposição de limites ao
poder exercido pelo governo sobre a comunidade e seus membros considerados
individualmente.

Aqui já podemos perceber a emergência das chamadas prestações negativas do


Estado: um “não fazer” consubstanciado na não interferência desmedida do ente estatal
sobre o indivíduo e sua autonomia (a própria ideia de liberdade em Mill). Vale lembrar
que essa questão é típica e amplamente desenvolvida no século XIX, período pós
Revolução Francesa, e por isso torna-se de crucial importância para os autores liberais da
época. Tais autores, aos quais se inclui John Stuart Mill, conferem grande importância a
este papel negativo da prestação estatal em razão, especialmente, dos períodos
absolutistas dos séculos imediatamente anteriores, de forte interferência e controle do
Estado sobre a comunidade.

Para Mill, os limites da atividade estatal se verificariam, essencialmente, de duas


formas: (i) através de imunidades dos súditos reconhecidas pelo próprio Estado, às quais
a infringência por parte deste poderia vir a legitimar insurgências e resistências; essa
primeira forma seria a mais facilmente reconhecida pelo governo, compelido a admiti-la
em maior ou menor grau, ao contrário da segunda forma, que demandaria lutas mais
intensas, já que referente a liberdades (ou limites) logrados (ii) através de freios
constitucionais, pelos quais a própria comunidade, diretamente ou através de
representantes, deveria consentir com as práticas mais importantes do poder dominante
para que estas fossem válidas.

7
ALVES, Rodrigo Vitorino Souza. Sobre a Liberdade: indivíduo e sociedade em Stuart Mill. Revista
CEPPG - CESUC - Centro de Ensino Superior de Catalão, Ano XIV, Nº 25 - 2º Semestre/2011, ISSN
1517-8471 – p. 197-212, p. 210.
4

Contudo, Mill reconhece que a própria maneira de pensar a limitação do poder


do Estado foi influenciada pelos contextos modernos, especialmente quando da conquista
do direito de escolha dos governantes pelo povo. Tal conquista, inicialmente e em tese,
teria rompido a relação antagônica entre sociedade e governo, já que o soberano
representaria as vontades da própria comunidade, não havendo razão para a sociedade se
autolimitar em suas próprias aspirações. Em outras palavras, não haveria motivo algum
para estabelecer limites a si mesmo. Tal mentalidade, na prática verificada com o passar
do tempo, segundo Mill, mostrou-se equivocada, principalmente quando confrontada com
as tiranias das maiorias, tão ou mais maléficas do que o autoritarismo estatal de outrora.

Dessa forma, o autor elenca como objetivo de sua obra a afirmação do “princípio
de que o único fim para o qual as pessoas têm justificação, individual ou colectivamente,
para interferir na liberdade de acção do outro, é a autoproteção”8. Tal princípio se
consubstanciaria, para o Estado, na prevenção do dano a outrem, que seria a única
hipótese em que poderia agir legitimamente, exercendo poder na esfera individual do
sujeito contra a sua vontade. Nessa lógica, o autor é enfático ao afirmar que o dano ou
perigo de dano, que pode ser ocasionado por ações ou até omissões, deve ser direcionado
a outro sujeito, não sendo o dano a si mesmo uma fundamentação suficiente para que o
Estado aja contra o indivíduo. Para Mill, apenas uma sociedade que admite tais postulados
de forma absoluta e sem restrições pode ser considerada completamente livre.

Aqui emerge uma das passagens mais emblemáticas de toda a obra: a ideia de
que “[s]obre si, sobre o seu próprio corpo e a sua própria mente, o indivíduo é soberano”9.
A força de tal afirmativa é imensurável, sendo apta a estimular os mais acalorados debates
até os dias de hoje. Basta imaginar, como exemplo, a criminalização, por parte de
inúmeras Nações, da posse de drogas ilícitas para consumo pessoal. Concorde-se ou não
com as ideias centrais de Mill, há de se reconhecer que a potência argumentativa de sua
assertiva é digna de nota.

Não estariam acobertados por esse verdadeiro “mandamento”, de acordo com


Stuart Mill, as crianças e as pessoas que necessitam de cuidados por parte de outrem,
assim como bárbaros e raças ainda em sua infância, às quais até mesmo o despotismo
seria justificável, assim como quaisquer meios, para que alcançassem o pleno

8
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade, op. cit., p. 39.
9
Ibid., p. 40.
5

desenvolvimento. Nesse aspecto reside uma das concepções mais polêmicas do autor,
sujeita a diversas críticas por seu imperialismo, colonialismo e possível
“maquiavelismo”10. Contudo, essa ideia deve ser refletida também a partir de sua teoria
geral utilitarista, pela qual só se poderia justificar algo quando presente seu potencial para
a maximização do bem-estar e do prazer, ou minimização da dor e do sofrimento àquele
povo ou pessoa em específico.

Fazendo uma breve digressão, resta aí um dos vários exemplos da importância


da leitura de Mill sempre a luz de sua filosofia ética utilitarista, que permeia toda sua
obra. Assim, não se pode considerar nenhuma construção teórica do autor
independentemente ou alheia ao ideário utilitarista, até mesmo quando se leva em conta
alguns de seus postulados mais caros, como a própria liberdade. Assim, “[u]m pouco à
revelia do Iluminismo, que consagra a liberdade como um direito inato, «o único direito
inato» na opinião de Kant, a liberdade é aqui apresentada [em Mill] como um instrumento
que a utilidade poderá aconselhar ou desaconselhar”11.

Voltando ao princípio do dano, conclui Mill argumentando que “[a]s pessoas


têm mais a ganhar em deixar que cada um viva como lhe parece bem a si, do que forçando
cada um a viver como parece bem aos outros”12. O utilitarista reconhece que não há
doutrina mais oposta a opinião e prática correntes do que a sua, essencialmente
fundamentada no princípio do dano, já que havia, cada vez mais, um maior alargamento
indevido dos poderes exercidos pelo Estado sobre o indivíduo.

IV. CAPÍTULO 2 – “SOBRE A LIBERDADE DE PENSAMENTO E


DISCUSSÃO”

Adentra Mill ao capítulo 2 de sua obra afirmando que a liberdade de pensamento


é inteiramente ou ao menos parcialmente reconhecida pela opinião corrente. Contudo,
assevera ser tal liberdade indissociável à liberdade de discussão, consistente essa em
escrever, falar, divulgar, etc. os próprios pensamentos.

10
Atentemos para o fato de que, durante 35 anos de sua vida, Stuart Mill trabalhou na Companhia das Índias
Orientais, que, obviamente, tinha grandes interesses em subjugar os tais “povos bárbaros” ou as “raças
inferiores”.
11
AURÉLIO, Diogo Pires. John Stuart Mill: a árvore e a máquina. In: CAMPONEZ, Carlos; PEIXINHO,
Ana Teresa (Coord.). Reflexões sobre a liberdade – 150 anos da obra de John Stuart Mill. Coimbra: IU,
2010. (p. 9).
12
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade, op. cit., p. 44.
6

Neste capítulo, Mill realiza uma das mais apaixonadas e intransigentes defesas
da liberdade de expor ideias já realizadas na história. Mill, nesse ponto, pode ser
considerado um radical defensor da liberdade de expressão, afirmando que a livre
discussão deve ser levada ao extremo, sendo aceita de forma absoluta, sem qualquer tipo
de limitação legal ou moral.

Para Mill, não há sentido algum em limitar o postulado de que toda opinião deve
ter liberdade para ser externada, seja qual for a justificativa para tal limitação. Pressupor
que algumas crenças são inquestionáveis por sua utilidade ou valor para determinada
comunidade, e que apenas maléficas pessoas o fariam (e por isso devia-se haver uma
proibição/limitação da discussão), seria, para Mill, um erro. Caso assim se procedesse,
assumir-se-ia a própria percepção da utilidade de tal crença como um juízo infalível,
admitindo-se assim um “juiz infalível de opiniões”, desconsiderando que a própria
utilidade conferida a um postulado pode ser questão de opinião. Seja esse juiz infalível
um sujeito individualmente considerado, a comunidade, o governo... nenhum desses entes
poderia ser acobertado por uma certeza de infalibilidade. Trataremos da questão da
falibilidade humana, crucial na argumentação do autor, mais à frente.

Para ilustrar a ideia e compreender a radicalidade da liberdade de expressão


defendida por Mill, poderíamos imaginar as consequências da aplicação de tal ótica a
questões como a proibição da pena de morte, ao reconhecimento de que todos têm direito
a uma vida digna, ao tráfico de órgãos e pessoas, etc. Todos esses temas poderiam (e
deveriam) ser questionados e discutidos através da livre manifestação do pensamento.

Toda essa liberdade de discussão derivaria de dois postulados centrais. O


primeiro é o que considera que determinado pensamento pode ser falso, equivocado e
conter erros (o que quase sempre acontece), a despeito de ser amplamente aceito, e apenas
a liberdade de expressão ampla e irrestrita seria capaz de proporcionar a resolução de tais
desvios, permitindo o progresso não só do conhecimento, mas da própria humanidade.

Em segundo lugar, ainda que pudéssemos admitir que um pensamento é


absolutamente verdadeiro e livre de vícios, mesmo assim impedir a discussão livre seria
um mal, pois impediria o desenvolvimento e a reafirmação contínua do próprio
pensamento tido por verdadeiro. Apenas confrontando os pensamentos verdadeiros com
ideias opostas (e, portanto, equivocadas), é que seria possível comprovar sua veracidade
e invencibilidade. Ao fim, a liberdade de expressão não seria útil e necessária apenas às
7

minorias que pensam diferente e que querem pôr em discussão suas ideias e ideais, mas
a toda a sociedade, especialmente às maiorias que julgam estar imbuídas de absoluta razão
e infalibilidade. Infalibilidade essa que, conforme Mill, seria impossível13.

Pertinente aqui realizar uma ressalva, admitida por Mill já no terceiro capítulo
de sua obra: para o autor, quando a expressão de determinada opinião se consubstanciar
em uma incitação ilegítima à violência, pode-se restringi-la de maneira legítima. O
exemplo trazido por Mill é o da ideia de que os comerciantes de trigo fazem os pobres
passar fome: tal percepção pode ser expressada livremente; contudo, caso alguém o faça
perante uma multidão a protestar em frente à casa de um comerciante de trigo, se estaria
a incitar uma violência ilegítima. Desse ponto é possível traçar complexas e múltiplas
questões a partir, por exemplo, do que seria uma violência ilegítima. Se poderia imaginar,
como propõe o próprio Pedro Madeira em sua introdução à obra de Mill, questões como
as marchas de movimentos xenofóbicos, racistas ou homofóbicos14. Pelos próprios limites
do presente trabalho, tais reflexões não são possíveis, valendo-se ressaltar, entretanto, que
Mill não asseverou em momento algum de sua obra ser legítima a simples e pura proibição
de expressar uma ideia, mas apenas conferiu legitimidade a proibição quando esta fosse
feita em um contexto de incitação, e não em uma situação de livre discussão entre seres
dotados de razão. Portando, seria plausível imaginar que Mill não encontraria
legitimidade alguma na censura a discursos preconceituosos e de ódio, quando estes não
fossem realizados tendo por escopo imediato a violência ilegítima contra outros
indivíduos15. O princípio do dano, aqui, deveria também ser levado em conta para uma
análise condizente com o pensamento do autor.

Mill afirma que não há racional motivo por trás do silenciamento de opiniões
alheias, muito pelo contrário. Propõe-se o seguinte raciocínio: todos menos um tem a
mesma opinião, e esse um é a única exceção à “regra”. Para Mill, a comunidade tem tanta
justificativa para silenciar esse “um” quanto esse “um” tem justificativa para silenciar

13
Pertinente a seguinte passagem: “embora a opinião silenciada esteja errada, pode conter uma porção de
verdade, o que frequentemente acontece; e dado que a opinião geral ou prevalecente sobre qualquer assunto
raramente ou nunca constitui a verdade por inteiro, é apenas através do conflito de opiniões opostas que o
resto da verdade tem alguma hipótese de vir ao de cima” (Ibid., pp. 100-101).
14
Ibid., p. XVI.
15
Valendo frisar, novamente, que Mill defende expressamente a livre discussão de efetivamente qualquer
doutrina, seja quão imoral, ou, nos termos atuais, “politicamente incorreta” for. Por exemplo, tratando de
matar um criminoso ou um tirano, o autor defende que “a instigação desse acto, num caso específico, pode
ser objecto adequado de castigo, mas apenas se um acto explícito se seguiu, e se pode ser estabelecida pelo
menos uma correlação provável entre o acto e a instigação” (Ibid., p. 50).
8

todos os demais. Em última análise, tal censura, portanto, não possui justificação alguma,
seja qual for o grau de imoralidade, absurdo ou ridículo da percepção posta em causa.

Stuart Mill parte de um pressuposto simples e de certa forma óbvio, embora


dificilmente reconhecido na prática, que é o da falibilidade humana, conforme já
mencionado. Ora, se somos falíveis, admite-se que podemos estar equivocados em nossas
crenças, opiniões e pensamentos. Dessa forma, “[n]unca podemos ter a certeza de que a
opinião que procuramos amordaçar seja falsa; e, mesmo que tivéssemos, amordaça-la
seria, ainda assim, um mal”16. Do lado oposto, assevera o autor que “[t]odo o silenciar de
uma discussão constitui uma pressuposição de infalibilidade”17. A falibilidade humana é
tão clara para Mill que este a reconhece como uma evidência em si, a despeito de
poderem-se elencar infinitos argumentos em sua defesa, seja através da demonstração por
meio de exemplos históricos, seja através da lógica ou da simples observação.

Alguns exemplos trazidos pelo autor, de momentos em que a sociedade, imbuída


de um sentimento de certeza, cometeu atos que aos olhos do mundo de hoje soam como
erros grotescos e desumanos, foi a condenação de Sócrates a morte frente as acusações
de imoralidade e impiedade, e a crucificação de Jesus Cristo por blasfema. Mill afirma,
de forma clara, que o fato de atos e ideias do passado soarem tão equivocadas hoje é tão
natural quanto o fato inescapável de que atos e ideias do presente soarão absurdos no
futuro. O autor é ainda mais ilustrativo, argumentando, por exemplo, que as pessoas que
cometeram ou apoiaram os fatos supracitados, hoje tidos por injustos, ao que tudo indica:

não eram más pessoas – não eram piores do que as pessoas comumente
são, mas antes o contrário; pessoas que tinham plenamente – ou talvez
mais ainda – os sentimentos religiosos, morais e patrióticos do seu
tempo e do seu povo: o verdadeiro tipo de pessoas que, em todas as
épocas, incluindo a nossa, têm toda a possibilidade de passar
irrepreensíveis e respeitadas pela vida. [...] e a maior parte daqueles que
agora estremecem perante esta conduta [rasgar as vestes de Cristo e
condená-lo] teriam agido exactamente como ele [o sacerdote algoz], se
tivessem vivido no tempo dele e nascido judeus.18
Por toda a religiosidade cristã presente em seu tempo, Mill ainda lembra que um
dos perseguidores dos cristãos foi o próprio São Paulo, hoje um dos símbolos da fé
católica apostólica romana. Extrai-se do pensamento do autor, dessa forma, que a
verdade, por mais clara, saudável ou essencial que seja, infelizmente não tem um poder

16
Ibid., p. 51.
17
Ibid., p. 52.
18
Ibid., p. 63.
9

inerente contra a repreensão e a injustiça19. Resta evidente, assim, a sujeição irremediável


ao erro a qual a humanidade está afeita.

Poderíamos nos perguntar então: se devemos reconhecer de antemão a


falibilidade de todas nossas crenças e opiniões, então não deveríamos sequer externá-las,
pois sujeitas ao erro? Mill nos responderia que de forma alguma tal raciocínio poderia se
mostrar correto, visto que, de acordo com seus próprios fundamentos, a discussão pública
e livre ser quem confere força às ideias, sendo o único mecanismo capaz de efetivamente
aprimorá-las, (re)afirmá-las e, consequentemente, proporcionar a construção eficaz do
conhecimento, conforme já explanado acima.

Dessa forma, para o fim de defender e afirmar suas ideias como corretas, deve-
se sim pressupor sua veracidade, pois um sujeito de bom senso que de antemão
visualizasse a falsidade de seus argumentos sequer os defenderia. O que se deve abdicar,
para Mill, é a pressuposição da verdade para impedir que tentativas de refutação sejam
realizadas por opositores, impedindo assim a liberdade de discussão, seja por meio da
força, repressão ou desvalorização das teses alheias, sem sequer confrontá-las no campo
discursivo. Assim, “[a]s nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia
sobre a qual se assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que
carecem de fundamento”20.

Nesse sentido, Mill valoriza a distinção entre dogma morto e verdade viva,
reconhecendo a inocuidade do primeiro e a imprescindibilidade da segunda. Apesar de
admitir que “o bem-estar da humanidade pode quase ser medido pelo número e pela
importância das verdades que chegaram a um ponto em que já não são contestadas”21, o
autor reconhece a existência de desvantagens na unanimidade, mesmo que frente a ideias
absolutamente corretas. Afirma ainda que “[a] tendência fatal da humanidade para deixar
de pensar sobre uma coisa quando já não é duvidosa é a causa de metade dos seus erros”
(idem).

19
Mill lembra que a repressão, a coação e a censura de opiniões não operam da mesma forma que operaram
em outros tempos, especificamente nos dois exemplos históricos que nos traz. O autor confere um papel de
relevância também a própria postura da sociedade quanto à livre discussão de ideias, asseverando que “[a]
nossa intolerância meramente social não mata pessoa alguma e não erradica quaisquer opiniões, mas leva
as pessoas a disfarça-las, ou a abster-se de qualquer esforço activo na sua difusão” (Ibid. p. 73), o que
também seria prejudicial.
20
Ibid., p. 57.
21
Ibid., p. 88.
10

Dessa forma, vê-se que a livre discussão e o debate com opositores são
absolutamente essenciais para cultivarmos e (re)descobrirmos cada vez mais os
fundamentos e o próprio entendimento de nossas próprias opiniões. Por tudo isso, Mill
irá asseverar que a censura à liberdade de expressão, mais do que injustificável, é também
absurda, pois estaríamos abrindo mão, voluntariamente, desse livre debate, tão
indispensável quanto difícil de gerar (ou impossível de descobrir substitutivos) quando
da formação das unanimidades, tão saldáveis quanto perigosas.

V. CONCLUSÕES
Vê-se pelo sucintamente exposto que o pensamento de Mill é essencial para a
compreensão de muitos dos aspectos da sociedade contemporânea, notadamente a
respeito dos limites impostos à atuação estatal. Observamos que suas construções são
absolutamente úteis não só aos defensores do liberalismo, mas também aos que lutam
pelo próprio Estado Democrático de Direito. A contribuição do autor para a construção,
por exemplo, de um direito penal mínimo, democrático e garantista é inestimável,
especialmente quando nos confrontamos com o princípio do dano.
Mill vai aos fundamentos últimos e básicos de postulados que muitas vezes
aceitamos sem maiores reflexões críticas. Postulados, aliás, que pressupomos,
equivocadamente, estarem sendo efetivamente cumpridos quando ainda muito nos falta
para a emergência de uma sociedade verdadeiramente livre de coações e amarras. Tal
modelo de sociedade, para Stuart Mill, só seria alcançado com o reconhecimento da
ilegitimidade na repreensão de toda e qualquer opinião, bem como com a intervenção na
vida dos cidadãos reduzida ao mínimo possível, pertencendo sempre ao Estado o ônus de
comprovação dos critérios que justificariam sua intromissão na vida de indivíduos e
agrupamentos sociais.
Em nossa visão, a questão mais delicada do pensamento do autor, dentre as
expostas neste trabalho, é o seu radicalismo na defesa de certos princípios, radicalismo
esse admitido pelo próprio Mill quando os adjetiva como princípios “absolutos”,
“radicais”, “que não admitem quaisquer restrições”, etc. O fato de levar certos postulados
às últimas consequências pode originar certas falhas ou problemas práticos em
determinadas questões. Isso tanto no próprio princípio do dano quanto na máxima de que
todas as opiniões devem ser expressadas e discutidas livremente.
Quanto ao primeiro, o autor assevera que uma sociedade verdadeiramente livre
deve admiti-lo de forma absoluta e sem quaisquer restrições. Ou seja, a comunidade e o
11

Estado só poderiam intervir na vida de um indivíduo se, e somente se, este estivesse
causando danos a outrem, caso em que se estaria agindo em, como expressa Mill,
“autoproteção”. Levando tal princípio ao máximo, como prescrito pelo autor, muitas
condutas consideradas como crimes ou contravenções nas sociedades modernas não
teriam justificativa alguma em serem tomadas como infrações (por exemplo: eutanásia,
jogos de azar, lenocídio e o próprio tráfico de drogas), além do que qualquer tipo de
paternalismo não seria de forma alguma admitido, a despeito de poder ser positivo em
certos aspectos.
Além disso, e apesar de todo o radicalismo conferido ao princípio do dano, de
forma alguma tal postulado pode ser tido como incontornável ou como dotado de uma
capacidade inerente de conferir legitimidade ou certeza às intervenções (ou não
intervenções), sendo capaz o princípio, inclusive, de servir igualmente a opiniões
absolutamente conflitantes. Apenas a título exemplificativo, citem-se o debate em torno
de proibir ou não que as pessoas fumem em locais públicos, nos quais tanto os que
queriam proibir quanto os que queriam liberar reivindicavam o princípio stuartiano para
defender seu ponto de vista22.
Imagine-se também a seguinte situação: um Estado quer proibir que as pessoas
fumem ou quer obrigar, sob possibilidade de multa, que as pessoas pratiquem atividades
físicas diárias sob a justificativa de isso ser saudável às mesmas. Não restam dúvidas de
que o princípio do dano rechaçaria tais hipóteses. Mas e se esse Estado justificasse tais
ordens àqueles que se utilizam do serviço público de saúde sob a justificativa de que as
condutas (comissiva e omissiva) supracitadas demandam milhões em recursos para tratar
de problemas pulmonares aos que fumam e cardiovasculares aos sedentários, e que tal
dispêndio estaria prejudicando sobremaneira muitas outras pessoas que se utilizam do
serviço público, por esse se encontrar carente de recursos ou sucateado? Evidentemente,
nessa situação o princípio do dano, por si só, pouco ajudaria a responder à questão com
certeza ou sem grandes polêmicas a respeito de seu próprio significado e extensão. Resta
aí demonstrada a flexibilidade do próprio conceito de dano, e do que poderia ou não
poderia, justificadamente, ser qualificado como tal.
Já quanto à liberdade extrema de expressar e discutir toda e qualquer opinião,
surgem ainda inúmeros problemas, até mesmo de ordem humanitária. Bastaria imaginar

22
REEVES, Richard. John Stuart Mill. Crítica [Em linha]. Trad. Rui Vieira da Cunha. [Consult. 04 Nov.
2017]. Disponível em WWW: <http://criticanarede.com/jsmill.html>.
12

que, de acordo com tal máxima, e desde que não houvesse incitação ou uma provocação
imediata de violência ilegítima, movimentos racistas e neonazistas, apologias ao estupro
ou à tortura, defesas da escravidão ou de violação aos direitos humanos, discursos
defendendo a morte de imigrantes ou criminosos, etc., tudo isso seria absolutamente
admitido. Pois conforme mencionado, de acordo com o pensamento do autor em análise,
não importa o quão imoral, cruel ou grotesco for o pensamento, sua divulgação deveria
ser permitida e, mais do que isso, também valorizada. Como exemplo concreto, poder-se-
ia imaginar que a prisão do negacionista do holocausto David Irving em Viena seria vista
como ilegítima por Mill, pois o britânico só estaria, ao negar que as câmaras de gás e o
holocausto tenham existido, expressando sua opinião e contribuindo para o livre debate.
Ainda que o autor restrinja a liberdade de livre discussão até o ponto no qual a liberdade
de expressão se consubstancie em incitação ilegítima à violência, tal limite ainda se
mostra, em nossa visão, demasiadamente restrito, especialmente quando se tem em conta
que não é legítima a limitação da livre discussão por imoderações ou linguagem
vituperativa, conforme o autor assevera já no final do segundo capítulo da obra.
A despeito das críticas que podem ser feitas ao trabalho de Mill, é para nós
inegável que, do começo ao fim dos capítulos ora analisados, há implicações práticas
subjacentes e inseparáveis na construção do autor, o que confere ainda maior riqueza a
sua obra. O autor não dissocia, em nenhum momento de sua vida, suas construções
teóricas de suas ações políticas e sociais, o que evidencia a crença convicta de Mill nas
ideias por ele expostas.
Sendo o autor um ícone de frases de efeito, utilizadas até hoje para embasar as
mais diversas opiniões, não há quem possa defender uma ampla liberdade de expressão,
tão cara e importante nos dias atuais, sem recorrer aos pensamentos basilares de Mill. Isso
porque Stuart Mill, de forma original e aprofundada, confere absoluta importância a tal
direito arduamente conquistado, o que se ilustra notadamente em sua assertiva de que “a
liberdade de opinião e a liberdade de expressar opiniões são necessárias para o bem-estar
mental da humanidade (do qual todo o seu restante bem-estar depende)”23.
Por todo o exposto, observa-se que Mill foi um defensor brilhante e atemporal
de ideias indispensáveis a uma sociedade verdadeiramente livre, sendo que, passados
quase 150 anos de sua morte, seu pensamento continua presente (e evidente) em diversos
autores, das mais distintas áreas do conhecimento e matizes teóricas atualmente.

23
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade, op. cit., p. 100.

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