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Em Nome Do Pai Analise Do Mausoleu Famil
Em Nome Do Pai Analise Do Mausoleu Famil
DO MAUSOLÉU FAMILIAR
COMO FATO DE
DISTINÇÃO DENTRO
DA ARTE TUMULAR*
ARTIGO
CLARISSA GRASSI**
FABIO DOMINGOS BATISTA***
Resumo: partindo-se das similitudes encontradas entre a cidade dos mortos e a cidade dos
N o silêncio do campo santo mais antigo de Curitiba, entre múltiplas formas de construções
tumulares, elementos arquitetônicos reiteram na cidade dos mortos o papel que seus ocu-
pantes buscaram entre a sociedade dos vivos. Tal qual a cidade de Curitiba, o Cemitério
São Francisco de Paula apresenta uma paisagem visualmente segmentada em bairros com
características que definem períodos e materiais utilizados, assim como delimitam a área
ocupada pelas famílias mais abastadas e distintas da sociedade de outrora.
Essa divisão é tão acentuada, que até mesmo os terrenos que abrigam os mau-
soléus e esculturas importadas de países como Itália, França e Portugal, possuem um
*** Especialista em Estética e Filosofia das Artes pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em
Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Projeto e Tecnologia do
241 Ambiente Construído pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: fabiousul@gmail.com
traçado totalmente diverso do restante do cemitério e encontram-se aglutinados em um
espaço visualmente delimitado. É como se antigos bairros nobres, como o Batel, conhe-
cido por ter abrigado as maiores mansões de Curitiba, tivessem sido recriados bem no
centro do mapa do cemitério.
Goiânia, v. 10, n.2, p. 241-257, jul./dez. 2012.
O espaço interno da capela é dividido entre a nave e o altar. A nave, que possui
o espaço mais nobre do edifício, é coroada com o espaço interno da cúpula, adornada
com pigmentação azul e estrelas douradas, representando assim o céu. O altar, confec-
cionado em mármore, ladeado pelos retratos em preto e branco do Coronel Carlos José
de Oliveira e Souza e de sua esposa Ritta, foi implantado na abside da capela, delimi-
tado por um arco pleno apoiado sobre colunatas jônicas. Em suas laterais, seis placas
de mármore parafusadas de cada lado fazem a vez de epitáfios de lóculos para ossadas.
O teto do altar é arredondado e também é decorado com pinturas representando o
céu. As paredes laterais da nave possuem janelas com arco ogival e as paredes laterais
do altar possuem janelas quadrifólicas, lembrando uma espécie de óculo, comum em
alguns frontões de igrejas. Para se ter acesso à área de enterramentos é necessário sair
pela entrada principal e contornar o edifício em direção à entrada lateral, já que os dois
ambientes não possuem qualquer tipo de comunicação entre si.
A cripta, ou área de sepultamento, consiste em um espaço simples, ocupando
o embasamento do edifício. Seu acesso é secundário, localizado aos fundos, não po-
dendo ser visualizado no conjunto da edificação. Possui apenas uma porta de batente
baixo, com três degraus para o acesso à cripta, em cujo beiral externo encontra-se uma
placa em homenagem a Herculano, benemérito fundador da Sociedade de Socorro aos
Necessitados. Outra placa trabalhada como baixo-relevo em mármore, foi fixada perto
da entrada. Possui a imagem com uma coroa de flores em torno da cruz, mas a família
não sabe precisar sua origem. O acesso de luz ao ambiente é feito por essa porta de
entrada e por uma janela quadrifólica fixa, com a mesma configuração das do altar,
implantada aos fundos da cripta, coincidindo externamente com a base do patamar da
247 escadaria.
Goiânia, v. 10, n.2, p. 241-257, jul./dez. 2012.
Quando pensamos assim o campo doméstico dos grandes senhores e damas do Ancién Ré-
gime, vemos ao mesmo tempo, em sua construção, a partir de um ângulo determinado,
a natureza da rede de relações na qual ele está entrelaçado. [...] Por fim, o modo de sua
inserção na sociedade, ou ‘society’, acha-se representado na disposição das salas de recepção.
O fato de os salões ocuparem a parte principal e central do primeiro andar é, além disso,
um espaço maior do que o dos dois appartaments privés juntos, já é por si só um símbolo da
importância que a relação com a sociedade tem na vida dos indivíduos em questão. Aí se
localiza o centro de gravidade de suas existências (ELIAS, 2001, p. 73).
O que se vê nas versões mais elaboradas desses túmulos é o desejo de unidade e continui-
dade que se impõe face à segmentação e dispersão depois da morte, com isso, evitando que
os sepultamentos fossem realizados separadamente. Neles não importa o indivíduo isolado
do seu grupo de filiação, mas o sujeito social genérico, constituído a partir da referência a
um antepassado ou herança comum à qual se liga através de relações com seus ascendentes e
descendentes (MOTTA, 2008, p. 111). 250
É na fachada do mausoléu, sobre a porta de entrada, que consta a placa “Fa-
mília Carlos José Franco Oliveira de Souza”.
Isso explica que a morada do morto se tenha arquitectonicamente elevado, não só a sucessora
e sucedânea do “tecto eclesiástico” (o jazigo-capela), mas também a “casa”, e que a sepultura,
tal como a casa da família (dos pais, dos avós), tenha passado a ser outro centro privilegiado
de identificação e de filiação de gerações. E todas essas necessidades simbólicas fizeram da
necrópole um analogon da cidade dos vivos (CATROGA, 1999, p.16).
Sabendo que a maneira é uma manifestação simbólica, cujo sentido e valor dependem tan-
to daqueles que a percebem quanto daquele que a produz, compreende-se que a maneira
de usar bens simbólicos e, em particular, daqueles que são considerados como atributos de
excelência, constitui um dos marcadores privilegiados da “classe”, ao mesmo tempo que o
Goiânia, v. 10, n.2, p. 241-257, jul./dez. 2012.
Ainda segundo Bourdieu (2010, p. 7), o poder simbólico “só pode ser exer-
cido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhes estão sujeitos ou
mesmo que o exercem”. A produção escultórica e simbológica que é profusamente
aplicada aos cemitérios – durante o que Vovelle (1997) chama de “período áureo da
arte tumular”, que perdura na Europa entre os anos de 1860 a 1930, e que, no Brasil
segundo Borges (2002), ocorre de forma similar – poderia ser tomada como uma
forma de distinção dentro do conceito de habitus da sociedade, exercido dentro do
cemitério enquanto campo.
Assim, os cemitérios passam a ser um lugar de reprodução simbólica do
universo social, e, nessa condição, tornam-se campo privilegiado para a análise do
processo de implantação e consolidação dos valores burgueses na sociedade do século
passado. É nesse contexto que os cemitérios refletem sem acanhamento a alma da socie-
dade a que servem. Segundo Borges (2004), “a arte funerária, embora seja considerada
por muitos como documento “indireto”, possui, sem dúvida, um discurso simbólico,
metafórico de grande valia para compreensão da morte”.
CONCLUSÃO
Abstract: based on the similarities found between the city of dead and the city of living, this
article seeks to draw a parallel between the architecture practiced by the society of Ancién
Régime during the eighteenth century and the characteristics of Jose Carlos Oliveira de
Goiânia, v. 10, n.2, p. 241-257, jul./dez. 2012.
Franco Souza’s family mausoleum, placed in the Cemitério Municipal São Francisco de
Paula in Curitiba, using aesthetics as a distinction feature.
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