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desenvolvimentos que ocorreram ao longo de, pelo menos, duas décadas. Esses
desenvolvimentos estavam associados a mudanças tecnológicas e econômicas e,
até mesmo, a transformações no quadro de valores sociais, que faziam emergir um
novo conjunto de referenciais para a política exterior dos países.
Apesar de tudo, a Guerra Fria foi, ao longo de quatro décadas, ao mesmo
tempo, produto de uma época e também justificativa para a ação política. Estratégias
de segurança, programas internacionais de cooperação técnica e econômica e até
mesmo disputas políticas dentro dos países geralmente eram consideradas a partir
do entendimento da Guerra Fria como um referencial importante, às vezes central,
nos processos de tomada de decisão. Em conseqüência, o seu desaparecimento
trouxe também, para os analistas, a tarefa de encontrar novas explicações para as
possíveis forças que moveriam a política internacional.
conflitos entre as grandes potências. A crise dos mísseis de Cuba, em fins de 1962,
pusera em evidência essa questão, dando início às primeiras conversações entre
as superpotências para tentar limitar o ímpeto da corrida armamentista.
Sob certos aspectos, as doutrinas estratégicas formuladas nesse contexto
também refletiam essa atitude. Mesmo a doutrina da retaliação maciça (massive
retaliation), cujo sentido era o de deter o rival por meio da posse de capacidade de
destruição maciça, implicitamente significava criar desestímulos ao uso da força.
Era uma espécie de versão extremada do antigo adágio si vis pacem, para bellum.
Posteriormente, com o poderio nuclear estratégico das superpotências relativamente
equilibrado, a doutrina que ficou conhecida como second strike deixava ainda
mais clara essa idéia de conter possíveis iniciativas do adversário por meio da
posse de superioridade estratégica: o receio dos efeitos destrutivos das armas
atômicas conduzira à crença de que a única forma de evitar que o adversário
tomasse a iniciativa do ataque e, assim, provocasse a sua aniquilação, seria dispor
de recursos tecnológicos para revidar esse ataque, ainda que a nação atingida por
armas atômicas já estivesse completamente destruída.
O fato é que as armas atômicas não foram empregadas, nem na guerra da
Coréia, onde dezenas de milhares de soldados americanos foram mortos em uma
época em que os Estados Unidos detinham enorme superioridade estratégica. A
crise dos mísseis de Cuba, por sua vez, pode ser considerada um marco importante
na mudança de percepções sobre as noções de segurança estratégica internacional.
Ao colocar pela primeira vez, desde a criação da OTAN, as duas superpotências
em uma situação de confrontação direta e ao se chegar a considerar publicamente
a possibilidade do emprego de armas atômicas, serviu para pôr em evidência a
insensatez da corrida armamentista na era nuclear.
Nesse quadro, a doutrina da coexistência pacífica do lado soviético vai
ter, em seguida, sua correspondência na détente do lado americano e, assim, a
busca de padrões de convivência entre os blocos rivais surge como solução natural.
Essa nova percepção tomou forma definitiva com o fracasso americano no Vietnã
onde, apesar da inequívoca superioridade estratégica, os Estados Unidos não
conseguiram submeter uma nação pobre, situada em um lugar longínquo. Por outro
lado, em geral, atribui-se importância central ao fracasso no Afeganistão para que
a União Soviética também adotasse uma política mais tolerante de convivência
com o Ocidente, mas os estudos mais recentes têm mostrado que, nos vinte anos
que precederam a queda do muro de Berlim, os problemas econômicos já eram
uma fonte de dificuldades crescentes para a sustentação de uma política de ações
externas mais amplas e ousadas por parte da União Soviética.
Esses fatos, obviamente, não significam que os conflitos armados tivessem
deixado a agenda da política internacional. Significam apenas que esses conflitos
deixaram de ser percebidos como inexoravelmente ligados à confrontação entre
as duas alianças estratégicas. A Guerra dos “Seis Dias”, o conflito Irã/Iraque e o
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a médio e longo prazos, não seria possível sustentar essa política a menos que as
economias dos países da CEE possuíssem dinamismo suficiente para arcar com
seus custos. Esses custos poderiam ser transferidos para a economia desses países
na forma de preços domésticos mais elevados ou de subsídios governamentais
que, naturalmente, teriam de ser alimentados por impostos e taxas cobrados de
outras atividades econômicas, onerando, de qualquer modo, a sociedade e seu
sistema econômico.
O fato é que a Europa industrial passava a apresentar consideráveis
superávits na agricultura e o que tornava o argumento de ROSECRANCE mais plausível
era o fato de que, comparativamente, os grandes países do Terceiro Mundo
conseguiam resultados muito modestos e, além disso, no âmbito dessa categoria de
países, as economias que mais se destacavam em termos de progresso econômico
eram justamente aqueles notavelmente pobres em recursos naturais: os chamados
Tigres Asiáticos. Outro argumento era o fato de que Japão e Alemanha, totalmente
dependentes das importações no que tange às suas enormes necessidades de
petróleo, não sofreram abalos significativos, ao longo da crise energética dos anos
70, enquanto os grandes países do Terceiro Mundo, mesmo os exportadores de
petróleo, se viram imersos em um longo período de estagnação econômica e de
endividamento que se estende até nossos dias. A conclusão geral é a de que os
fatores tradicionais de produção (terra e mão-de-obra) deixavam de ser considerados
estratégicos para a realidade emergente.
Uma linha de explicação para essa redução da importância relativa dos
tradicionais fatores de produção era oferecida por PETER DRUCKER que, também
em meados da década de 80, escrevia um artigo na revista Foreign Affairs sobre
as mudanças na economia mundial.7 DRUCKER argumentava que, entre os aspectos
que caracterizavam essa nova economia destacavam-se alguns “desacoplamentos”,
gerando conseqüências para o comércio, para as finanças e para a distribuição dos
empregos no mundo. Entre esses desacoplamentos, três seriam especialmente
relevantes para a explicação da perda de importância relativa dos fatores tipicamente
de base territorial: a) a mão-de-obra deixara de ser fator determinante dos custos
de produção; b) o aumento da produção industrial havia se “desacoplado” das
necessidades de matérias primas; c) os fluxos financeiros e o mercado de divisas
deixaram de estar atrelados ao comércio internacional. Essas mudanças seriam
uma decorrência de mudanças tecnológicas que alteraram, em um curto espaço
de tempo, os padrões de produção e de competitividade. Outra conseqüência
inevitável foi o alargamento da distância entre os países industrializados e as
economias do então chamado Terceiro Mundo, que se assentavam fortemente
sobre as exportações de uns poucos bens primários e produtos manufaturados de
baixo valor agregado.
Embora houvesse algum otimismo em relação à possibilidade de que os
avanços tecnológicos não significassem redução nos níveis de emprego, dados
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diferenças culturais entre os muitos povos do mundo teriam passado a ser centrais
para a política internacional.
Com efeito, muitas dessas diferenças vêm assumindo feições tragicamente
conflituosas, sendo o fundamentalismo islâmico apenas uma entre as muitas
manifestações possíveis. Na visão de HUNTINGTON, fatores que permaneceram
reprimidos ou camuflados por muito tempo, tais como heranças ancestrais, tradições,
língua e religião, tendem a desempenhar papel cada vez mais decisivo para a
redefinição das identidades nacionais e também para a formulação de objetivos e
metas de política externa. Em unidades políticas multi-étnicas essa redefinição
pode resultar em conflitos separatistas com grande potencial para se estenderem
regionalmente, envolvendo outros países onde as etnias em choque se façam
presente.
Em The Clash of Civilizations, esse autor argumenta que há no mundo
sete ou oito grupos de culturas ou civilizações de maior expressão e que as grandes
potências da atualidade pertencem a diferentes grupos. “A questão chave na agenda
internacional, argumenta HUNTINGTON, envolve diferenças entre civilizações. O poder
está se transferindo, depois de muito tempo, do Ocidente para as civilizações não-
ocidentais. A política mundial tornou-se multipolar e multi-civilizacional”.11 Ao
longo da história, sempre que ocorreu o fenômeno da transferência de poder,
invariavelmente, o meio internacional se tornou mais instável, face ao inevitável
surgimento de políticas revisionistas a respeito de fronteiras, direitos sobre regiões
e fontes de recursos naturais, e outras demandas potencialmente geradoras de
conflitos. HUNTINGTON argumenta que o meio mais eficaz de trazer mais estabilidade
ao sistema internacional seria uma combinação de políticas não intervencionistas,
por parte das potências, com um arranjo “inter-civilizacional” que congregasse as
nações líderes daqueles sete ou oito grupos mais expressivos de culturas ou
civilizações. Na sua avaliação, as instâncias internacionais, hoje existentes, foram
concebidas dentro de uma outra época e não contemplam a multipolaridade e
muito menos a variedade multi-civilizacional identificadas em The Clash of
Civilizations.
Uma outra linha de interpretação a respeito dessas mudanças é aquela
que entende que o sistema internacional não está mudando, mas está chegando ao
seu fim. Segundo essa interpretação, o estado nacional, nascido a partir do colapso
da ordem medieval, está em franca decadência e fadado a ser substituído por uma
sociedade global. O sistema internacional que nos é familiar, em sua essência, é a
projeção política de categorias tradicionais como estado, classe social e nação e,
por essa razão, não é capaz de assimilar a dimensão planetária que os processos
sociais vêm assumindo em praticamente todos os campos. Dessa maneira, a
tradicional associação entre povo, território e governo soberano, no entendimento
desses novos globalistas, perde continuamente seu significado na medida em que
mercados se interligam de modo crescente, corporações industriais e financeiras
A AGENDA INTERNACIONAL DEPOIS DA GUERRA FRIA 151
têm seu raio de ação definido em termos de mercados globais, questões como
meio ambiente e narcotráfico não podem ser tratados nos limites territoriais de um
estado, e redes de comunicação interativa se estendem por todo o planeta. Nesse
quadro, as fronteiras definidas pela geografia política tornam-se cada vez mais
porosas, os governos nacionais perdem sua eficácia e novos atores têm se tornado
cada vez mais importantes na definição do relacionamento entre povos e regiões.
Essa nova realidade, de acordo com essa visão, precisa estar refletida nas instituições
políticas.
Nessa linha de entendimento, desenvolve-se a idéia de que o tradicional
sistema de Westphalia, constituído de estados nacionais soberanos, estaria sendo
minado, rapidamente, por um processo de construção de instituições de
governabilidade global. Em outras palavras, entidades nos vários campos
das relações entre indivíduos e grupos vão assumindo a administração dos fluxos
de comércio, das finanças, da disseminação de tecnologias, dos fluxos e
processamento da informação, etc. Essa governabilidade incluiria também outras
questões amplas e diversificadas como narcotráfico, proteção dos direitos humanos,
direitos do consumidor e mesmo segurança internacional.
O argumento do fim do sistema de Westphalia começou a ganhar forma
mais definida no princípio dos anos 90 e, entre os argumentos surgidos nessa época,
destaca-se a idéia de que, face às mudanças em curso decorrentes de uma inusitada
aceleração do avanço tecnológico, o estado estaria se tornando uma instituição
disfuncional. Kenichi OHMAE, em artigo intitulado The Rise of the Regional State,
publicado na revista Foreign Affairs (1993), argumentava que o estado havia se
tornado demasiadamente grande para administrar questões de alocação de recursos
produtivos e questões sociais, incluindo-se emprego, instrução, moradia, segurança
pública, etc. Nessas questões as empresas e as comunidades locais seriam capazes
de melhor entender e dimensionar as questões por estarem muito mais próximas
dos problemas, sendo também estruturas muito mais leves e menos dispendiosas
tanto nos processos decisórios quanto no manejo dos recursos necessários.
Por outro lado, continua o argumento, o estado tornou-se pequeno demais
para administrar questões de natureza global ou regional. Meio ambiente, mercados
internacionais de bens e serviços, fluxos financeiros, regimes monetários,
desenvolvimento e transferência de tecnologia, sistemas de informação, etc., seriam
casos que, tipicamente, só poderiam ser tratados por meio de organizações e
instâncias que transcendessem os limites dos estados nacionais, que compõem a
atual geografia política, e sobre os quais se assenta a concepção corrente de sistema
internacional. OHMAE conclui que arranjos regionais poderiam ser uma resposta
mais eficaz às demandas de novas formas de organização política.
Nessa perspectiva, a União Européia pode ser considerada um exemplo,
em estágio mais avançado, de arranjo mais adequado ao tratamento de questões
que, caracteristicamente, afetam toda uma região. Sua estrutura permite formular
152 EIITI SATO
até aquele semelhante a uma nuvem ou enxame de insetos, torna mais fácil aceitar
as “imprecisões” das ciências sociais. Com efeito, o fato das nuvens serem
fenômenos irregulares, desordenados e, em larga medida, imprevisíveis, não
desqualifica o trabalho do meteorologista.
Do mesmo modo, as relações internacionais estão longe de serem
fenômenos do tipo relógio havendo, no entanto, uma série de referenciais que
ajudam na sua compreensão. Assim como a umidade do ar e a direção e a
intensidade dos ventos constituem indicadores importantes e de grande objetividade
para o meteorologista, para o analista das relações internacionais, fenômenos como
a modificação nos fluxos de comércio, o aumento dos investimentos em defesa ou
a emergência de movimentos nacionalistas também constituem referencias
importantes e bastante objetivos para a avaliação do meio internacional.
É considerando esses referenciais de análise que dois aspectos merecem
ser destacados para o entendimento do quadro das relações internacionais neste
fim de século: o paradoxo do bem comum e o descompasso crescente no
desenvolvimento das regiões. O paradoxo do bem comum, também conhecido
como paradoxo de OLSON,17 pode ser um pressuposto para se compreender as
dificuldades de se estabelecer arranjos internacionais mais eficazes e o descompasso
no desenvolvimento das regiões, como força impulsionadora de mudanças contínuas,
ajuda a compreender o caráter eminentemente instável da ordem internacional.
O paradoxo de Olson
luta salarial. Esse fato, de acordo com OLSON, explica a grande dificuldade das
lideranças sindicais em conseguir adesões para iniciativas que incluam riscos e
gastos como a organização de piquetes em porta de fábricas para assegurar a
eficácia de um movimento grevista. Deixar de comparecer ao trabalho pode implicar
custos como a perda do pagamento e, no caso dos ativistas, até a perda do emprego,
além de ter de enfrentar possíveis ações repressivas da polícia. Entretanto, ao
final, qualquer benefício auferido pelo movimento será estendido a todos os
trabalhadores, mesmo àqueles que não tiveram nenhuma participação no movimento
grevista.
Nessa linha de raciocínio, os bens públicos apresentam as características
mais perfeitas para estarem sujeitas a esse paradoxo e, na agenda internacional, a
estabilidade, os direitos humanos, a qualidade ambiental são, tipicamente, bens que
devem interessar “igualmente” às nações. Por que um país relativamente pobre
deve adquirir equipamentos e realizar investimentos por um “meio ambiente limpo”
quando a sociedade é carente de muitas outras prioridades básicas? Em que medida
cada país, individualmente, se beneficia da paz internacional? Por que um país,
ainda que seja poderoso, deve assumir responsabilidades sobre programas
internacionais de longo prazo sabendo que o futuro é incerto por natureza? Muitas
questões como essas provavelmente são levantadas pelos governos, que dependem
de votos de eleitores e do apoio de partidos políticos, normalmente muito mais
sensíveis às demandas por emprego e por crescimento econômico do que pelos
chamados temas globais.
Em grande medida, esses referenciais analíticos ajudam a explicar a atitude
das nações, especialmente das grandes potências, que vêm dando prioridade aos
seus interesses individuais mais imediatos e, sistematicamente, levantando a questão
da distribuição dos custos das iniciativas e da manutenção das atividades das
organizações multilaterais. Seja nas operações de paz, na formulação de medidas
com vistas à proteção de refugiados ou na busca de arranjos e programas de
proteção ambiental as nações tendem a não se sentir individualmente responsáveis.
Os custos devem ser divididos e, além disso, considerando-se que as principais
razões gravitam em torno de considerações morais, uma política de envolvimento
com essas questões encontra dificuldades em competir com outras prioridades
dentro do processo decisório das nações.
Mesmo nos casos em que as ameaças podem estar geograficamente
próximas, como os Bálcãs, as grandes potências européias têm se mostrado mais
preocupadas em simplesmente evitar que os efeitos dos conflitos na região se
estendam para dentro de suas fronteiras, especialmente na forma de correntes
migratórias de refugiados. A busca de soluções capazes de trazer uma estabilidade
mais duradoura para a região é politicamente mais complicada e financeiramente
mais dispendiosa e assim, dificilmente, os governos se sentem em condições de
arcar com esses custos, preferindo apoiar a “comunidade internacional” nesse
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esforço.
Nesse quadro, as mudanças no cenário internacional para um padrão mais
multipolarizado também trazem, inevitavelmente, mais dificuldade para o
estabelecimento de responsabilidades no manejo da ordem internacional. A
bipolaridade da Guerra Fria, como já mencionado, sugeria estratégias de segurança
e desenvolvimento internacional facilmente inteligíveis às bases eleitorais e
partidárias das lideranças políticas e, geralmente, seus argumentos se sobrepunham
sem muita dificuldade às demais demandas sociais. A multipolarização tende a
diluir essas noções e traz mais dificuldade na distribuição de responsabilidades
entre as sociedades mais poderosas.
Na Guerra do Golfo, logo após o colapso da União Soviética, em
termos militares, os recursos proporcionados pelos Estados Unidos foram
incomparavelmente maiores do que os de seus aliados, no entanto, países como o
Japão e a Alemanha pagaram considerável parte desses custos.18 O descompasso
entre o enorme interesse do Japão na contenção da política expansionista de Saddan
Hussein e na estabilização da região e os seus limitados recursos de poder militar
seriam a justificativa para esse check book diplomacy. Esse fato, todavia, levanta
também a questão do futuro das políticas de segurança: em que medida e até que
ponto o Japão estará disposto a ter sua segurança externa dependente diretamente
da política de segurança dos Estados Unidos? A questão pode ser posta de outra
maneira: até que ponto os interesses de segurança externa do Japão e dos Estados
Unidos serão convergentes?
De uma forma mais geral, o novo quadro das relações internacionais, em
grande medida, se apresenta sujeito à lógica do paradoxo de OLSON. Por que os
fundos, que são arduamente disputados na distribuição dos recursos do orçamento
público, devem ser destinados à manutenção de organizações e forças internacionais
de paz? Por que as questões de segurança internacionais não são tratadas
simplesmente a partir das considerações de segurança doméstica? No plano da
ordem econômica internacional, por que empregos domésticos devem ser
sacrificados em favor de medidas com vistas à estabilidade e ao crescimento
econômico internacional? Como explicar aos deputados e aos eleitores que os
recursos destinados a programas de ajuda econômica internacional se transformam
em benefícios para a economia do país?
Os desequilíbrios internacionais
resistência a mudanças. Por essa razão, do mesmo modo que, ao longo do primeiro
século da revolução industrial, o mundo viu a emergência da Europa industrial,
enquanto regiões onde floresceram antigas e pujantes civilizações declinavam em
termos relativos, nas últimas décadas deste século, os centros industrializados
avançam rapidamente em termos de progresso econômico, enquanto boa parte do
antigo Terceiro Mundo se vê diante da estagnação e mesmo, em alguns casos, de
verdadeiro retrocesso. Vários países da África sub-saariana, principalmente em
razão de guerras civis, vivem o que alguns analistas chamam de déconnexion
par défault 19 , enquanto outros, como os países da América Latina, embora
relativamente mais estáveis e melhor estruturados em termos sociais e políticos,
participam apenas marginalmente do dinamismo tecnológico e econômico deste
fim de milênio.
Quando a noção de desenvolvimento econômico passou a ocupar destacada
posição na agenda internacional, os índices de analfabetismo eram um dos
indicadores mais importantes na definição dos padrões de desenvolvimento
econômico e social. Neste fim de século, informatização, integração a redes de
comunicação e uso intensivo de tecnologia nas atividades mais tradicionais como a
agro-pecuária tornam a alfabetização apenas um indicador social básico, que está
longe de significar a existência de condições capazes de permitir à sociedade
integrar-se efetivamente na vida econômica e social do mundo moderno. Pode-se
afirmar, em uma analogia talvez um pouco exagerada, que as sociedades mais
avançadas integram um mundo que já ultrapassou as revoluções da relatividade,
da física quântica e da microeletrônica, enquanto as sociedades periféricas ainda
tentam penetrar o universo “newtoniano”. Enfim, sob muitas formas, o salto
tecnológico do último quarto de século aumentou consideravelmente a distância
entre essas categorias de sociedade.
Essa realidade, além das conseqüências imediatas em termos humanitários,
dramáticas em alguns casos, apresenta outras facetas importantes para a ordem
internacional que devem ser consideradas. A mais óbvia delas se traduz no fato de
que, no longo prazo, a ampliação desse fosso traz consigo grande potencial de
problemas uma vez que, quanto mais aumenta essa diferença, mais difícil se torna
a integração dessas regiões na ordem política, econômica e social sob a liderança
dos centros mais industrializados da América, Ásia e Europa. Esse processo pode
produzir grandes focos de pressão sobre a ordem internacional, atingindo
primeiramente as regiões mais próximas das sociedades retardatárias e, depois, se
estendendo para o meio internacional como um todo. Essas pressões podem assumir
formas corrosivas da ordem social como imigração desordenada, tráfico de armas
e de drogas ilegais e crime organizado.
No longo prazo, esse processo pode contaminar instituições centrais para
as relações sociais e a própria democracia. São cada vez mais freqüentes as
denúncias de que a “lavagem de dinheiro” vai deixando de se restringir aos chamados
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como são os casos da proteção dos direitos humanos e do meio ambiente. Há,
no entanto, na atual agenda internacional, diferenças substanciais quanto à
forma como essas questões são percebidas e encaminhadas. Uma componente
importante dessas percepções em mudança refere-se aos papéis atribuídos
aos atores envolvidos. Há consenso a respeito do papel cada vez mais ativo
de atores não estatais (notadamente as organizações não-governamentais –
ONGs e as empresas transnacionais) e há também uma crescente sensibilização
acerca da necessidade de que novas instâncias transnacionais sejam criadas
ou antigas instituições sejam redirecionadas a fim de tratarem, de modo mais
eficaz, questões que afligem vários países ou mesmo a totalidade do planeta.
Há até mesmo alguns que entendem que o mundo está entrando em uma fase
em que a própria noção de “relações internacionais” deveria ser substituída
pela idéia de “governabilidade global”. Assim sendo, a título de conclusão,
parece oportuno tratar do papel dos principais atores no quadro das relações
internacionais deste fim de século.
Como já discutido anteriormente, sob a temática da globalização,
argumentos têm sido construídos sobre o fim do sistema de Westphalia e
sobre o Estado como instituição anacrônica. Neste momento, obviamente não
cabe retomar essa discussão, mas torna-se necessário apontar para algumas
considerações importantes sobre o papel dos atores no encaminhamento de
alternativas que se apresentam na agenda internacional.
Durante longo tempo, o Estado foi considerado como uma espécie de
cornucópia de onde deveria fluir, inesgotavelmente, soluções para os problemas
que afligiam as nações e as sociedades. No último quarto deste século, contudo,
essa noção foi sendo substituída por um sentimento de ceticismo crescente.
Esse sentimento vai se refletir na ideologia popularizada como “neoliberal”,
que não apenas retoma a fé na iniciativa privada e no mercado como instrumento
de alocação de recursos, mas passa a encarar o Estado como fonte de
ineficiência e desperdício.
O Estado continua, entretanto, sendo um ator central na ordem
internacional por muitas razões, entre elas o fato de que o Estado continua
sendo a garantia da ordem tanto no plano interno quanto no meio internacional.
MANCUR O LSON, no livro que terminou de escrever pouco antes de sua morte,
analisa o intrigante fenômeno da riqueza e pobreza das nações.20 Por que
algumas nações se tornam ricas enquanto outras fracassam e, nos casos mais
recentes, por que o fim do comunismo na União Soviética e em outros países
da cortina de ferro não trouxe prosperidade, mas, ao contrário, muitas dessas
nações estão em condições ainda piores? O argumento de OLSON é que o
Estado, enquanto elemento organizador da sociedade, tem um papel central
na geração de riqueza. De sua eficácia depende o funcionamento das empresas
e a ação dos demais agentes econômicos. Em países em que o Estado funciona
A AGENDA INTERNACIONAL DEPOIS DA GUERRA FRIA 165
podem ser abordados individualmente pelos países, têm se revelado cada vez
mais críticos para as sociedades e também têm incluído um número crescente
de países criando novas instâncias multilaterais. Meio ambiente, clima,
narcotráfico e telecomunicações são apenas alguns entre os vários temas cujo
tratamento não pode ser dissociado de sua dimensão internacional.
Desenvolvimentos como esses mostram a importância do Estado dispor de
instrumentos de negociação, de defesa de direitos e de meios para participar
ativamente na construção de regimes internacionais nos mais diferentes
domínios.
Na atualidade, diferentemente do que ocorria até duas ou três décadas
atrás, é muito difícil de se construir um paradigma claramente definido para se
caracterizar a realidade internacional. Até bem recentemente era possível
reconhecer a existência de padrões e forças predominantes no meio
internacional, notadamente a confrontação leste-oeste. Na atualidade, padrões
como “globalização” e “emergência de atores não-estatais” são difusos por
natureza, o que dificulta a formulação de políticas organicamente estruturadas.
Além disso, do ponto de vista do Brasil, a considerável complexidade alcançada
não apenas pela economia, mas pelo próprio perfil sócio-político do País como
um todo, torna inviável a busca de objetivos e metas que satisfaçam,
simultaneamente, os diferentes segmentos da sociedade. Os interesses
econômicos, políticos e culturais, tanto em relação aos parceiros tradicionais
quanto em relação a novos e potenciais parceiros, caracterizam-se pela
multiplicidade ao mesmo tempo em que, internamente, os interesses são muito
variados. As disputas recentes, genericamente designadas como “guerra
fiscal”, são apenas manifestações de uma parte dessa diversidade. Essa
realidade, muito mais variada e dinâmica, representa uma considerável
ampliação de oportunidades, mas significa também maior dificuldade na
construção de estratégias de inserção internacional.
Maio de 2000
Notas
1 A. HAMILTON, Report on the Subject of Manufactures, 1791. F. LIST, The National System of Political
Economy, 1841. Um dos argumentos contidos nessas obras era a idéia de que o livre comércio
pode ser benéfico para as economias situadas nas duas extremidades: as industrializados e as de
base primária.
2 Ver J. M. KEYNES , The Economic Consequences of Peace (1919) e também The Economic
Consequences of Mr. Churchill (1925)
3 HANS MORGENTHAU, “Politics among Nations”. Knopf, New York, 1948. “In Defense of the National
Interest”. Knopf, New York, 1951.
168 EIITI SATO
4 CARL VON CLAUSEWITZ, “Da Guerra” (1832). Editora Universidade de Brasília, 1979.
5 E. LUARD, Conflict and Peace in the Modern International System. A Study of the Principles of
International Order. Macmillan Press, London, (1968) 1988.
6 R. ROSECRANCE, The Rise of the Trading State: Commerce and Conquest in the Modern World. Basic
Books, New York, 1986.
7 PETER F. DRUCKER, Sérias Mudanças na Economia Mundial. Revista Diálogo (USIS), n.o 2, vol. 20,
1987. Traduzido de Foreign Affairs, Spring, 1986.
8 DENISON, E. United States Economic Growth. Journal of Business, vol. 35, April, 1962, pp.109-
121.
9 E. D. LARSON et. al. Beyond the Era of Materials. In Scientific American, June, 1986, vol. 254, no.
6
10 F. FUKUYAMA, The End of History and the Last Man. Hamish Hamilton. London, 1992.
11 S. P. HUNTINGTON, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. Simon & Schuster
, New York, 1996 (p. 29)
12 E. S. FUJITA. O Brasil e o Conselho de Segurança. Notas sobre uma Década de Transição: 1985-
1995. Revista Parcerias Estratégicas, Dez./1996, pp. 95-110.
13 W. W. ROSTOW, Etapas do Desenvolvimento Econômico, (1958) Zahar Edit., R. de Janeiro, 1978,
6ª edição, p. 110.
14 Robert TRIFFIN argumentava que a maneira pela qual o sistema monetário surgido dos acordos de
Bretton Woods poderia ser mantido seria a transferência para o Fundo Monetário Internacional
dos saldos obtidos pelos países em seu comércio com os Estados Unidos (R. TRIFFIN, The Gold
and the Dollar Crisis. The Future of Convertibility. Yale University Press, 1960).
15 AMADO, Rodrigo (Org.), Araújo Castro. Editora Universidade de Brasília, 1982.
16 BIANCHI, A . M. Of Clouds, Clocks, and the Hardest of the Soft Sciences. Trabalho apresentado no
Annual Meeting of the Allied Social Sciences Association, Anaheim, CA, 1993.
17 OLSON, Mancur, The Logic of Collective Action. Public Goods and the Theory of Groups. Harvard
University Press, 1965.
18 Nessa guerra os Estados Unidos teriam deslocado cerca de meio milhão de homens, isto é, cerca de
cinco vezes mais que todos os demais aliados somados. Além disso, provavelmente muito mais
decisivo, a disparidade dos recursos técnicos (aviões, mísseis, etc.) foram ainda maiores. (W. C.
MC WILLIAMS & H. PIOTROWSKI, The World Since 1945. A History of International Relations.
Lynne Rienner Pub. 1997)
19 Países como Somália, Burundi e Etiópia simplesmente se vêem abandonadas à própria sorte, não
despertando o interesse das agências de fomento ao desenvolvimento e nem mesmo de mercadores
gananciosos. Um dos casos mais dramáticos é o de Angola que, ao longo de um quarto de século
vem sofrendo as conseqüências nefastas de uma guerra civil longa e sangrenta. Ver D. C. BACH,
Avant-propos. Afrique: la Déconnexion par Défault. Edição especial de Études Internationales.
pp. 245-251.
20 M. OLSON, Power and Prosperity. Outgrowing Communist and Capitalist Dictatorships. Basic
Books, New York 2000.
21 Idem.
Resumo
expressas em várias obras e artigos, que o processo que levaria ao fim da Guerra
Fria já estava em andamento quase duas décadas antes de 1989. Na parte final,
propõe-se a lógica da ação coletiva de Olson e o descompasso no desenvolvimento
das regiões como instrumentais teóricos para compreender o caráter eminentemente
instável da ordem internacional. A conclusão é que a complexa agenda internacional
da realidade contemporânea não é muito diferente da que predominava na última
década da Guerra Fria, mas a forma como as questões são percebidas e
encaminhadas se modificou substancialmente.
Abstract
The core idea of the article is that the end of the Cold War in the last years
of the eighties should not be viewed as a single fact, but as a part of a broad
process of change. From this standpoint, it searches to prove, through the points of
view expressed in several books and articles, that the process which led to the end
of the Cold War was already in motion almost two decades before 1989. The
second part of the article argues in favor of Olson’s Logic of Collective Action and
the existence of a gap between the development of world regions as theoretical
frameworks to comprehend the naturally unstable feature of the international order.
It concludes by stating that the complex contemporary international agenda is not
quite different from the one which was predominant in the last decade of the Cold
War, but the manner through which issues are realized and forwarded has
substantially changed.