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ANÁLISE DOS DADOS

Essa pesquisa preocupa-se em aprofundar a compreensão sobre os


significados da religiosidade para jovens que se encaixam na categoria “sem
religião”, utilizando como eixos de análise marcadores de gênero com a
finalidade de perceber como homens e mulheres constroem significados
distintos ou coincidentes para a presença do religioso na vida pública e
cotidiana.

A escolha desse tema deve-se ao meu interesse no que diz respeito ao


tipo de relação estabelecida entre pessoas que se percebem como sem religião
e os outros segmentos sociais. Inicialmente, minha preocupação era com
aqueles que se denominavam ateus, mas durante o processo de orientação
para elaboração da monografia, minha atenção foi chamada para a categoria
mais abrangente dos “sem religião”, uma vez que essa categoria é a utilizada
pelas pesquisas e representa de forma mais ampla pessoas que compartilham
uma forma de pensamento semelhante. Além da abrangência, essa definição
do grupo não se caracteriza como uma categorização do pesquisador como é o
caso de ateu, que já impõe uma determinação à identificação do sujeito e não
permite que ele mesmo expresse como se percebe em relação a isso.

As informações obtidas nessa pesquisa são provenientes de cinco


depoimentos de jovens que moram na cidade de Fortaleza, pertencentes a
faixa etária de 18 aos 23 anos. A metodologia de aplicação das entrevistas foi
inspirada pela técnica da história de vida com a perspectiva de resgatar
momentos específicos da trajetória desses indivíduos relacionados à relação
familiar e à compreensão da dimensão do religioso na dinâmica social. Os
jovens entrevistados são estudantes universitários e, com apenas uma
exceção, passaram por fases em sua vida em que eram adeptos de alguma
religião, ainda que não de forma assídua.

O método qualitativo adotado preza pela obtenção de dados subjetivos


dos pesquisados, de modo a se estabelecer uma compreensão dos processos
sociais nos quais o indivíduo esteve envolvido durante sua trajetória de vida,
definindo sua conduta em determinadas situações e servindo para elaborar
explicações sobre a identidade de acordo com o interesse específico do
pesquisador. Esse método, torna explícito momentos da trajetória individual
que são importantes para o indivíduo com o mínimo de influência do
pesquisador em relação a sua fala. Sobre a importância do relato oral como
forma de obtenção de dados em pesquisas qualitativas, Queiroz (1991) afirma:

[...] o relato oral se apresentava como técnica útil para registrar o que
ainda não se cristalizara em documentação escrita, o não-
conservado, o que desapareceria se não fosse anotado; servia pois
para captar o não-explícito, quem sabe mesmo o indizível [...] A
história oral pode captar a experiência efetiva dos narradores, mas
destes também recolhe tradições e mitos, narrativas de ficção,
crenças existentes no grupo [...] (QUEIROZ, 1991, p. 1,2 e 5).

O recorte empírico dessa pesquisa é delimitado por uma rede de


sociabilidade que começou a partir do Centro de Humanidades III da
Universidade Federal do Ceará, espaço onde inicialmente identifiquei e me
interessei pela existência da juventude sem religião, seguindo a realização das
entrevistas com indivíduos que fazem parte do círculo de relações pessoais
desses jovens. Assim, realizei meu contato inicial com um sujeito com quem já
havia tido a oportunidade de ter uma conversa informal sobre a temática
religiosa e que tinha se posicionado como não possuindo religião. Depois
disso, ao fim de cada entrevista, solicitava ao meu interlocutor que indicasse
algum outro jovem que se encaixasse na definição “sem religião” para
prosseguir com a pesquisa.

É importante destacar a juventude como um período de construção da


identidade, onde é possível o acúmulo de diversas experiências que se
somam, ou seja, a "predominância de uma identidade sobre outra ou a
combinação de identidades e causas não acontece em abstrato, mas em
processos sociais e trajetórias individuais concretas" (NOVAES, 2012). O que
pode ser observado é uma fragmentação das identidades, que antes eram
percebidas como únicas e estáveis, passando um sujeito a ser composto não
por uma, mas várias que podem ser contraditórias ou até não-resolvidas
(HALL, 2006). Nesse contexto, aprofundar as reflexões sobre as dinâmicas de
construção da identidade religiosa desses jovens é fundamental para entender
como estes significam a realidade no âmbito do debate religioso.
Observando as informações que vão surgindo, o pesquisador deve
atentar para aquelas que satisfazem os interesses de sua pesquisa, mantendo
uma conduta aberta para o aparecimento de novos questionamentos, pois
dessa forma, a pesquisa pode ser dotada de uma maior amplitude ao
compreender aspectos que o pesquisador não poderia ter previsto.

No processo de pesquisa deve ser observada uma postura de abertura


para o aparecimento de novos questionamentos, pois, dessa forma, os dados
obtidos tornam-se dotados de maior qualidade a abrangência. Cabe ao
pesquisador colocar-se de maneira flexível no campo para garantir que isso
ocorra. Através da observação da realidade empírica, o pesquisador deve
utilizar suas experiências relacionadas com o que observa para constituir novos
caminhos para a pesquisa, estabelecendo questionamentos que sejam
pertinentes. Deve ser desenvolvida a imaginação sociológica, mantendo o foco
na variedade humana (MILLS, 1982). Wright Mills afirmou que o projeto de
pesquisa começa com uma questão motivadora elaborada a partir de alguma
observação relacionada ao campo selecionado, mas que essa reflexão pode
conter ideias provenientes do senso comum que absorvemos sem ter
percepção disso ou nossas próprias percepções incompletas, sendo
necessária a flexibilidade da pesquisa.

A busca de ciências humanas como a antropologia por inteligibilidade


parte do pressuposto de que a crença possui algum aspecto do contexto
interacional a que pertence, que constitui uma rede de significado que a
conecta ao todo, formando o universo de sentido da sociedade (SEGATO,
1992). Nesse universo de sentido, existe um termo mediador que estabelece
um nexo de significado da sociedade do nativo com a do pesquisador.

No texto de Rira Laura Segato Um Paradoxo do Relativismo: Discurso


racional da Antropologia frente ao Sagrado, a questão problemática é que esse
tipo de abordagem capta em sua rede de compreensão apenas os fatores
racionais, aquela parte das práticas que se localizam no nexo do significado da
sociedade ocidental, esquecendo o que não é adequado à esse padrão.
Segato atenda para o fato de que as perguntas propostas na pesquisa nem
sempre possuem resposta na compreensão dos indivíduos estudados,
fazendo-se necessária uma postura flexível no campo:

[...] minha abordagem se mostrava particularmente insensível às


características do próprio ato de crer [...] ao buscar a inteligibilidade
de um conjunto de crenças, é possível aceder a aspectos que lhe são
concomitantes e, apesar de que estes aspectos podem proporcionar
informações relevantes sobre uma determinada sociedade, é
necessário ter presente que não se acede à qualidade básica da
crença ou, pelo menos, à qualidade considerada fundamental por
aqueles que acreditam. (SEGATO, 1992, pg. 117)

Segundo Segato, a atitude com relação à crença de compreendê-la


estabelecendo seus significados através de comparação com outros modelos
religiosos ou mesmo de entender o credo de um grupo como uma parte
integrante da totalidade cultural e social representa o lema "contextualizar para
entender", devendo ser encarado com ressalvas. Isso porque quando
estabelecemos como importante significar um fenômeno, traduzi-lo para que se
torne inteligível para nós de acordo com nossa visão, perdemos a sensibilidade
para compreender verdadeiramente a crença, que comporta algo bem mais
complexo que a razão e a ação antropológica que é atuante através de
modelos comparativos podem aceitar. Essas posturas metodológicas acima
citadas foram importantes para o desenvolvimento da pesquisa.

Para iniciar o relato sobre as falas dos sujeitos, destaco as respostas ao


questionamento que dizia respeito à forma de percepção dos jovens sobre si
mesmos a respeito de sua definição religiosa. A questão da identidade
individual que se relaciona diretamente com a determinação da religião
recebeu destaque. Os jovens entrevistados deram importância a sua definição
como ateus, em alguns casos, como um fator predominante para afirmar suas
identidades e escolher com quem se relacionam nos anos que precederam sua
maioridade. Um dos jovens entrevistados se coloca da seguinte maneira em
relação a isso:

É uma forma de identidade, tipo uma roupa, jeito de falar, gosto


musical. A religião é da pessoa, tipo minha mãe, é como ela se
identifica com o mundo e como ela quer se expressar. [...] se no meio
da conversa a pessoa meio que percebe que é ateia, que eu percebo
que ela é ateia, eu meio que me interesso mais pela pessoa, ela
chega perto das pessoas que estão no meu meio intelectual, porque
só o fato dela ser ateia já me faz pensar "Ah, ela já pesquisou sobre
isso, ela tem o estímulo de pensar, ela lutou contra preconceitos da
sociedade", eu acho a pessoa mais interessante.
Em suas narrativas, o fato de terem crescido com estruturas familiares
que seguiam um tipo de religião, tornou o momento de ruptura algo motivador
de uma certa quantia de conflitos. Como causa desse rompimento com a
crença a razão apresentada foi o questionamento de afirmações da doutrina e
falta de empatia com as práticas existentes nela. “[...] antigamente eu era
cético, agnóstico, era a pessoa que não tem tanta certeza. Mas eu fui lendo, fui
pensando e tal e eu ‘Macho, isso não faz um pingo de sentido pra (sic) mim’
[...]”, afirma um dos jovens. A opção pelo desligamento da religiosidade serve
ao propósito de defesa da individualidade, definindo um comportamento
alternativo a norma vigente e afirmando uma forma de pensamento que se
opõe a crença em explicações sobrenaturais para a realidade, além de
representar uma defesa contra a coerção da lógica religiosa.

Tendo em vista esses discursos, podemos nos remeter ao que disse


Geertz (2001), quando coloca a dimensão da religiosidade como essencial para
a definição da identidade e formação do caráter, especialmente nos fins do
século XX, mencionando o contexto do fim da Guerra Fria, onde as pessoas
buscavam por uma orientação de pensamento diferente da opção entre
capitalismo e socialismo e a religião ganhou novamente mais espaço como
forma de identidade

Uma característica que merece destaque nas famílias desses jovens é


um aspecto de transitoriedade na definição religiosa, sendo comum ocorrer a
alternância entre doutrinas em alguns momentos, seja entre religiões diferentes
ou a repentina predileção por algum credo quando cotidianamente não existia
uma prática disciplinada de nenhum costume religioso, ou seja, a família se
considerava católica, mas não era praticante regular. Segundo a percepção
desses jovens, isso acontece em razão de momentos da vida em que existe
alguma dificuldade específica como problemas de saúde entre familiares ou
mesmo um período em que há uma carência de recursos financeiros. Alguns
dos jovens relataram sobre essa característica familiar:

No começo minha mãe não era religiosa, até os meus dez anos
minha mãe não era religiosa, meu pai é católico, mas ele era um
pouco religioso, ele conheceu pela minha mãe. Ela nunca foi muito
católica, mas aí depois entrou na religião protestante e foi ser
evangélica, meu padrasto acompanha ela também. Estamos muito
evangélicos, mas temos fases durante nossa vida, tem fases que são
mais religiosas. Normalmente essas fases estavam ligadas como
momentos que não estava com estabilidade na vida, a vida está mais
difícil aí fica mais religioso, quando a vida está mais fácil fica menos
religioso. A religião é uma coisa pra (sic) sustentar melhor [...]

Lá em casa quando eu comecei a ser ateu assim, minha mãe não era
tão fervorosa, ela era católica ainda, ela virou evangélica de um
tempo pra (sic) cá, foi aumentando o ateísmo, porque antigamente eu
era cético, agnóstico, era a pessoa que não tem tanta certeza. [...]
Quando ela virou evangélica ela tentava me converter, "Vamos pra
igreja" e não sei o quê, ai viu que eu não tenho mais jeito e liberou
assim, desde sempre, nunca teve um confronto.

[...] teve uma tia minha que teve câncer de mama, aí ela começou a
se apegar muito na questão da religião e minha mãe estava
convivendo muito com ela nesse período aí acho que eu percebi
minha mãe um pouco mais católica nessa época, mas só isso
mesmo. Não faz parte da vida dela assim religião, acho que só em
momentos que ela está com alguém assim, como minha tia que
precisou e tal [...]

No que diz respeito ao modo como os entrevistados se relacionam de


forma geral, o maior ponto de conflitos pareceu se encontrar no âmbito familiar.
Isso pela existência de uma religião nesse ambiente e a quebra dos laços vir
acompanhada não apenas pela negação da existência de um Deus, mas
também pelo comportamento de enfretamento que passa a ser sustentado,
atitude essa representada inicialmente pela resistência em comparecer a
eventos religiosos e questionamento de afirmações dogmáticas de familiares.
Sobre isso, essas jovens relatam:

Meu contato com a Igreja física é muito raro. O distanciamento foi


meio natural, com 13 ou 14 anos eu comecei a me rebelar com
relação a minha família, apontar as coisas erradas que eu via na
conduta deles, o quão contraditórios eles eram, etc. Pregam o amor a
todo mundo, mas discriminam fulano e sicrano por causa disso e
daquilo. Meu tio tem uma filha bastarda e eles ignoram a existência
dela, porque não é filha da família.

Eu me defino como ateia. Eu era católica... católica assim, criança


meio nem pensei, é nato. Já inserida na religião católica, fui batizada,
fiz até minha primeira eucaristia, mas a partir da minha pré-
adolescência eu já estava querendo me afastar da igreja, tanto que
minha mãe queria me colocar na crisma e eu tinha 15 anos e não
quis, acabei que depois da minha eucaristia eu não fui pra igreja,
então aos poucos fui rompendo com a ideia de algo superior.

Esses jovens que rompem com a religião o fazem entre a idade de 14 a


16 anos e não só utilizam a conduta de desligamento da religião para se
defenderem de pessoas religiosas e suas afirmações, como também para
atacá-las, em alguns casos. A crítica que tenta deslegitimar a religião dá
credibilidade a nova forma de pensar e fornece mais segurança para o
posicionamento desses jovens sem religião. Entretanto, essa atitude mais
agressiva com relação a religiosidade enfraquece com o passar do tempo,
dando lugar a um pensamento mais favorável à tolerância. Isso pode ser
percebido nos posicionamentos desses jovens:

[...] acho que foi uma fase, tipo uns 15, 16 anos que eu comecei a
mais questionar, pensar sobre isso, no começo mais pela raiva, a
revolta, porque você está revoltado, "Não, é tudo mentira, como
assim?", porque passaram pra (sic) você como se fosse a verdade. Aí
você começa a saber que não, não é assim, começa a ter outras
visões e foi aquela época dos 15, 16 que eu comecei a ficar mais
militante, agressivo, aquele que tem orgulho de dizer que é ateu, que
quer que todo mundo seja ateu e a religião é o mal do mundo.

Quando eu comecei a me distanciar da igreja eu era aquela


meninazinha chata que ficava achando todo mundo alienado, essas
coisas que era muito chato, eu tenho noção disso, que eu era uma
pessoa chata, mas hoje em dia não, hoje em dia todo mundo segue o
que quiser, se a pessoa se identifica com a religião católica, tudo
"massa", cara, desde que isso não chegue até mim, com preconceito,
disseminação de ódio.

Meu irmão não. No começo a gente era forçado a ir pra igreja quando
mais jovem, mas aí dava muita briga nisso e ele foi o primeiro a não
ir, eu até aceitava ir pra fazer amigo e conversar, mas comecei a não
querer, não gostar das coisas que falam, não gostar da posição que
edifica lá que é muito, sei lá, muito cordeiro [...] aí eu comecei a não
gostar e a parar de ir, mas minha mãe também nas fases que ela
diminui, tem hora que ela vai pouco, tem hora que ela vai mais, ela
não é muito ligada também.

A visão crítica em relação a religião permanece, mas pontuada por uma


compreensão da importância que ela representa para pessoas que possuem
crenças em determinadas doutrinas. Os conflitos com pessoas religiosas
ocorrem apenas em casos em que o respeito pela opção de uma vida sem
religião é esquecido e seu posicionamento é questionado, criticado ou quando
o discurso religioso adquire um caráter discriminatório em relação a
determinadas formas de comportamento. Com isso, é perceptível um indício de
que pessoas sem religião não necessariamente comportam-se de maneira
hostil e depreciativa em relação a religiosidade, desmistificando um pouco da
imagem que esses indivíduos possuem de agressividade e desafio. Essas 2
jovens comentam sobre o preconceito que por vezes pessoas sem religião
acabam sofrendo devido à um imaginário negativo construído em torno dessa
forma de pensamento:
[...] as pessoas tem a predisposição a achar q o "ismo" de ateísmo é
tipo um seita de pessoas que odeiam religião e que vão explodir tudo
e não é. Eu discordo da religião em vários aspectos, mas eu estou na
minha, é uma postura que eu adotei pra mim e eu não estou
querendo impor a ninguém, cada um faz com a própria vida, com o
próprio corpo e com as próprias escolhas o que quiser e não estou
me metendo na vida de ninguém, mas eu me considero ateia e eu
falo isso pras (sic) pessoas, geralmente com um pouco de cautela pra
elas não pensarem que eu quero explodir tudo e que eu sou
agressiva em relação a católico.

Cara, no começo é um choque pras (sic) pessoas assim, eu viva num


círculo muito conservador, então você chegar e dizer "Eu não tenho
religião, Deus não existe pra mim", a pessoa fica... [pausa] Até hoje
eu evito, sabe, até pra não entrar em conflito, por exemplo, a família
do meu namorado, acho que eles não sabem que eu sou ateia.
Porque eu não tenho problema realmente com pessoas religiosas,
tipo a gente marca de sair pra (sic) comer num domingo, ele quer ir à
missa, ele é católico, eu vou a missa com ele, fico no meu celular
sentada, enquanto ele fica assistindo a missa e depois a gente sai pra
comer e eu tô (sic) sempre acompanhando ele nessas coisas, acho
que a família dele não sabe. E se soubesse acho que ficariam meio
chateados, porque eles são muito conservadores.

As relações fora do espaço familiar são caracterizadas por uma


convivência mais tranquila, uma vez que estes jovens tendem a se relacionar
com pessoas que tem um comportamento aberto a diferentes formas de
pensamento, facilitando o diálogo e o entendimento. Sobre isso, essa jovem
afirma:

"A religião não cabe questionamento" e é isso que me incomoda um


pouco, as pessoas religiosas costumam ser mais fechadas. [...]
pessoas que eu costumo ser mais próxima, ou são mais abertas a
conversar ou eu simplesmente não entro no assunto pra (sic) não me
estressar com elas e pessoas que eu não conheço eu não discuto
com elas justamente por não conhecer, não tenho intimidade, por
mais que na minha cabeça eu esteja surtando e sentindo pena da
pessoa por toda a ortodoxia.

Esse é um motivo pelo qual é perceptível a facilidade de inserção de


pessoas sem religião em espaços como universidades, que reúnem uma
grande diversidade de pessoas com inúmeras formas de pensar, além de
representar um lugar caracteristicamente voltado para discussões, constituindo
espaços de reprodução do pensamento racional e cientificista mais apreciado
por esses jovens.

Outro fator presente nas formas de relacionamento dos jovens


entrevistados até o momento pode ser percebido na formação de suas
orientações sexuais. Isso pode possuir uma relação com o fato da já
mencionada necessidade de definição de uma identidade, que é reforçada pela
opção por uma quebra com a crença normatizada.

É possível notar nas falas de alguns desses jovens a percepção da


religiosidade como uma limitadora da liberdade de sexualidade, não apenas no
sentido de não aprovar relações homossexuais, mas também no sentido de
condenar comportamentos considerados como promíscuos. Esses jovens
enxergam consequências prejudiciais do pensamento religioso, como por
exemplo, a intolerância com outras religiões e com formas de comportamento
que são considerados inadequados de acordo com seus dogmas. Natividade
(2003) exemplifica bem a questão da rejeição da religiosidade em relação às
práticas homossexuais, mais especificamente no contexto das comunidades
pentecostais do Rio de Janeiro utilizando os depoimentos de homens
evangélicos que mantinham relações sexuais com outros indivíduos do mesmo
sexo para perceber como a religiosidade participava na determinação de uma
valoração negativa da homossexualidade para esses homens. O discurso da
mídia e literatura religiosa sobre relações homossexuais é que esse
comportamento figura como um tipo de problema espiritual cuja solução
encontra-se na experiência religiosa (NATIVIDADE, 2003). A
homossexualidade é então percebida como um aspecto ruim, uma intervenção
do maligno na vida do indivíduo caracterizada como “atuação demoníaca”.

Interessante é destacar que para os sujeitos evangélicos que se


engajavam nessas relações homossexuais a religião aparece de fato como
uma fonte de libertação desse comportamento que é encarado como um
problema. Eles não negam que possuem o desejo por pessoas do mesmo
sexo, mas reconhecem que esse é um comportamento impróprio de caráter
ilícito e que é prejudicial à sua relação de comunicação com o transcendente
(NATIVIDADE, 2003). Para eles, essas práticas são responsáveis pela
interrupção não só da comunicação com o divino, mas também da perda de
determinados dons espirituais como “o dom da cura, dom das línguas, dom da
música, dom da palavra e o dom das profecias” (NATIVIDADE, 2003, p. 137).
Voltando à percepção dos jovens entrevistados para essa pesquisa, pode-se
notar que, em congruência com os homens evangélicos acima citados, a
concepção da religião como relevante para a determinação do comportamento
é reconhecida, porém para os jovens essa característica é enxergada como
negativa e irracional, um exemplo de intolerância religiosa, enquanto que para
os sujeitos evangélicos homossexuais ela é tida como positiva e essencial para
a formação de uma conduta considerada correta.

Como forma mais visível de intolerância religiosa foi citada a questão da


rejeição da relação de pessoas do mesmo sexo, atitude de preconceito
considerada pelos entrevistados como opressiva e irracional. Sobre isso, esses
jovens afirmam:

Já vi gente censurando a própria vida por causa da religião,


entendeu? "Ah, não vou fazer isso, porque Deus não permite", por
exemplo. O povo que é jovem, se liga? Sair, curtir e tal, mas não,
Deus proíbe e a pessoa fica mal com aquilo. Já vi muita menina
sendo presa pela mãe por ser evangélica, na verdade. Conheço uma
menina que ela é doida pra (sic) sair, doida pra (sic) curtir a vida,
uma menina com 18 anos e a mulher não deixa ela fazer nada disso,
porque o mundo é do demônio e não sei o quê, vai cair nas tentações
do "cão" e eu penso, vai perder a vida por causa disso? Eu fico
“puto”. E tem muita diferença sim. Por exemplo, o ateu é muito mais
liberal do que o cristão, porque por mais que o cristão ele diga "Não
eu sou de boa", se vier um casal homossexual e começar a se
agarrar ele vai olhar feio, ele vai julgar.

Minha tia, ela é "rato" de igreja, ela está lá sábado e domingo, todo
dia que ela tem oportunidade, mas ela é uma pessoa muito má. Ela
fala mal de todo mundo, ela zomba de pessoas, sabe, ela é
homofóbica, ela é machista, ela é extremamente homofóbica. Quando
ela vai falar que meu primo é gay, ela cochicha como se estivesse
falando uma coisa extremamente suja [...] meu tio inclusive não fala
com meu primo, porque ele é gay, porque ele teve a decisão
horrorosa de ficar com gente que ele gosta. As pessoas que eu
conheço hipócritas em relação a religião são todas da minha família.

Essas falas exemplificam que a religiosidade constitui um poder de


coerção na vida das pessoas, na medida em que os coloca sobre a influência
de suas orientações de conduta, constituindo um fato social. Aquilo que assim
se estabelece tem por característica condicionar o comportamento e as formas
de pensar dos indivíduos, possui assim um poder coercitivo (DURKHEIM,
2002). Isso se reflete pelo modo que temas como aborto, homossexualidade,
AIDS, o uso do preservativo como modo contraceptivo, dentre outros tópicos
da vida social têm sido objeto de controvérsias na vida pública, dividindo a
formação da opinião dos indivíduos. Uma das jovens conta uma história sobre
esse aspecto coercitivo do religioso:
Eu estudava num colégio particular [...] Cara, é engraçado como as
pessoas negam a si mesmo, negam o que elas são. Tinha um grupo
no whatsapp, que as meninas ficavam mandando fotos delas peladas
e uma vez um amigo meu me mostrou uma foto de uma menina toda
"gozada", transando e tipo, na rede social, no mundo, ela é uma
pessoa totalmente diferente, fica colocando texto bíblico, fica se
fingindo de religiosa. É uma coisa que eu fico "Porra cara, porque a
pessoa não assume, sou puta mesmo, eu transo", ela vai negando o
que ela faz em busca de uma aprovação, social e religiosa, porque eu
tenho certeza que na igreja ela não faz esse tipo de coisa. E é como
eu falei, tira a liberdade da pessoa, ela não tem a liberdade de se
assumir como ela é, ela sempre quer estar ali tendo uma aprovação
social ou divina. Querendo ou não, ela se nega por uma coerção
religiosa, porque é parte daquele grupo "Eu resolvi esperar" e aquelas
coisas, é muito "escroto".

[...] na época que eu morava com meus avós eu me sentia muito


incomodada, porque é como se eles quisessem colocar a religião
deles goela a baixo. Por exemplo, nas férias eu acordava dez horas
da manhã com aquele padre Reginaldo Manzoti na maior altura
ouvindo, dia de domingo aquele Marcelo Rossi naquela missa e não
basta ela ouvir só pra(sic) ela, tem que mostrar pra casa toda, pros
vizinhos e isso é muito chato.

No mesmo período em que esses jovens começaram a questionar sua


concordância com as crenças que receberam da família, também esteve
presente uma abertura à experiência com pessoas do mesmo sexo,
contrariando o modelo heteronormativo predominante e iniciando
questionamentos em relação a si mesmos no sentido de definir qual seria sua
identidade no aspecto sexual. Uma das jovens entrevistadas falou sobre essa
questão:

Eu não gosto de orientação sexual, eu não gosto de me classificar,


porque, tipo, eu acho que isso limita, sabe. Eu já fui muito isso de me
classificar, “Não, eu sou bissexual", "Não, eu não sou hetero", eu
mudo toda hora, a minha vida inteira passei mudando, eu não me
importo com isso mais. Isso não existe, é tudo construção.

Essa característica mutável em relação a sexualidade apareceu na fala


de alguns desses jovens, assim como a aversão a categorização ou
institucionalização de algum estado de relacionamento. O questionamento e
ocasional ruptura com o pensamento religioso abre espaço para outras
relativizações em relação ao padrão mais aceito socialmente de
comportamento. Esses jovens se posicionaram a esse respeito:

Eu não gosto de instituições, de modo geral, então eu penso que


mesmo que um dia eu queira me unir com alguém a longo prazo, ter
uma união estável, eu não vá por isso no papel, eu não tenho
interesse em casamento, eu não tenho interesse em namorado. [...]
geralmente eu fico mais com homens, mas quando dá vontade eu fico
com mulher, geralmente com o incentivo do álcool, mas eu não acho
que eu tenha preferência, eu tenho oportunidades e geralmente eu
fico mais com homens. Eu diria que eu teria mais tendências mais
homoafetivas se um dia eu já tivesse me apaixonado por mulher e eu
nunca me apaixonei, mas eu não excluo a possibilidade.

[...] antigamente eu era hetero, eu tinha preconceito, eu não queria,


achava nojento e incomodava, mas com o tempo vendo as pessoas
eu vi que era uma coisa natural. [...] eu tenho atração por homem e
por mulher, a maioria é mulher, porque eu me sinto mais atraído por
mulher, mas tem homens que eu me sinto atraído também, mas aí no
geral eu não tenho essa coisa de querer rotular o negócio. Tem
aquela coisa de rotular, porque tem que ter alguma coisa, ter uma
classificação, mas a classificação tradicional namoro é muito estranho
pra (sic) mim, pode ser outra classificação. Pode até chamar de
namoro, mas tem namoro diferente [...] é uma construção dos dois
indivíduos.

Esse fato leva a indagação de uma possível relação da ruptura com o


pensamento religioso e da orientação sexual que também representa um
rompimento. Falando sobre esse momento específico de quebra com o padrão,
essa jovem conta:

[...] vivia num colégio onde todo mundo era hetero e as pessoas que
se consideravam homossexuais eram taxadas de "sapatão",
"caminhoneiras" e os meninos eram "bichas loucas", você era
coagido a se encaixar no padrão de heteronormatividade, mas a partir
dos meus 14 anos eu comecei a conhecer gente diferente, gente que
se abria pra outros caminhos e eu tive a experiência de ficar com
umas amigas minhas, achei muito legal, não achei nada diferente
assim, mas eu achei muito legal e comecei a ficar com menina.

Quanto a percepção que esses jovens sem religião possuem de pessoas


religiosas, merece de fato destaque a tolerância. A discordância com a fé
exigida pelas religiões de forma geral é indiscutível, mas a existência dela não
é algo abominado. Com relação aos casos de conflito com pessoas religiosas,
esses jovens se colocam:

[...] querendo ou não é mais do que um conflito religioso, se liga, de


existe Deus ou não existe Deus. Tem ideologias por trás dessas
religiões que me agridem muito, por exemplo, uma igreja que vai
disseminar preconceito, cara. Eu entro em conflito com isso, não com
a religião em si, não com o Deus da pessoa, mas com as coisas que
a religião vai propagar, de ódio a homossexual e essas coisas. Isso
me deixa muito chateada. Eu tenho tias que são evangélicas que eu
entro em conflito por causa disso, não por causa da religião delas. Se
a pessoa quiser adorar o que quer que ela queira, pode adorar, desde
que isso não comece a ferir outras pessoas.
Numa roda de conversa de cristãos sempre vai surgir aquela parada
seguinte: "Pois prova que Deus não existe". Daí eu digo "Não vou
provar, cara, não tenho como provar e nem vou provar, mesmo se
tivesse, porque eu não quero mudar tua opinião, tu que quer mudar a
minha". Então o cristão tem muito dessa de querer converter o ateu.
[...] É isso que eu falo sempre, eu não quero converter ninguém, eu
só quero ser aceito e também não quero ser convertido, quero ser
respeitado. Eu não prego o ateísmo, eu defendo e gosto de discutir
religião, gosto muito. Se eu tver (sic) numa discussão eu vou soltar
argumentos, vou respeitar a pessoa.

O conhecimento de acontecimentos históricos e contemporâneos


negativos relacionados com religião são elementos a serem considerados para
o questionamento e posterior quebra com a crença, entretanto esse
reconhecimento não os torna insensíveis para o fato de muitos valores que
constituem a ética das sociedades serem relacionados à religiosidade e que
isso é algo positivo. Sobre um fator positivo da existência do religioso, esse
jovem afirma:

Eu não sou a favor de acabar com a religião, ainda acho que a


religião tem a sua utilidade como um guia moral e ético, ela consegue
guiar as pessoas muito pra (sic) caminhos bons que num debate
filosófico, um debate mais acadêmico é muito difícil, porque a gente
sempre acaba caindo na ausência de sentido e acaba sempre com as
pessoas ficando confusas.

Além disso, algo mencionado é a percepção desses jovens de que seria


mais confortável e simples aceitar a existência de uma divindade e crer que ela
poderia ajudar na solução dos problemas do cotidiano, pois segundo a visão
que possuem, esse é um dos fatores que leva as pessoas a acreditar de forma
tão intensa nas doutrinas religiosas. A existência de uma divindade onisciente e
onipresente representa, para os que acreditam, um porto seguro, um fator de
constância com o qual sempre poderão contar para enfrentar dificuldades.
Geertz (2008) fala sobre essa questão:

Para aqueles capazes de adotá-los, e enquanto forem capazes de


adotá-los, os símbolos religiosos oferecerem uma garantia cósmica
não apenas para sua capacidade de compreender o mundo, mas
também para que, compreendendo-o, dêem precisão a seu
sentimento, uma definição às suas emoções que lhes permita
suportá-lo, soturna ou alegremente, implacável ou
cavalheirescamente.

O ideário religioso contribui para a criação de uma realidade aceitável


para a população, materializa estruturas de plausibilidade. Essas estruturas
representam uma parte essencial da construção do mundo humano, que é a
cultura. O homem, ao contrário de outros animais, não aceita a existência do
mundo natural que o precede do jeito como lhe foi dado, necessitando
transformá-lo e acrescentar a ele relações que constituem a particularidade da
existência humana. (BERGER, 1985). Também Geertz (2008) fala sobre isso,
ao afirmar que o homem seria funcionalmente incompleto sem os padrões
culturais e, no caso da religiosidade, estabelece explicações para fenômenos
anômalos, constituindo uma formadora de padrões de verdade. Sobre isso,
esses jovens se colocam da seguinte maneira:

Eu sou ateu já desde os meus 15, 14 anos, então eu vejo a religião


muito como porto seguro das pessoas, quando a pessoa tiver com
problemas, não tem fé nela mesma, ela precisa de um conselho ou de
uma ajuda ela procura isso. [...] acho que a pessoa procura muito
esse negócio de ter alguém, porque não acredita em si, eu não gosto
disso não.
[...] quando eu tinha dezessete, comecei a conversar com um amigo
sempre sobre essas questões existenciais e eu percebi que eu não
precisava de um conforto espiritual pra (sic) viver no mundo, que eu
sempre associava a religião antes a pessoas são inseguras em
relação ao mundo e querem ter um conforto espiritual e eu acho que
não preciso disso, acho que sou mais uma coisa carpe diem, não vou
me preocupar com a morte.
[...] todo mundo meio que acredita, a gente nasce acreditando em
Papai Noel e coisas desse tipo, mas conforme a gente vai
encontrando a ideia crítica, o pensamento crítico aí não, a gente fica
na dúvida e começa a questionar coisas desse tipo e é uma coisa que
parece mais ter sido criada pela gente e não uma coisa que fazia
sentido na realidade. [...] a ideia de valor é importante da gente ter, o
que é muito complicado. A religião parte de uma forma mais fácil [...]
é um pouco de uma coisa infantilizada que é criar um Deus e um
inferno, criar o que você tem que pensar, criar coisas que uma
criança teria, uma coisa que faz uma lógica bem "intualista" de bom e
ruim. Acho que é uma coisa bem prática de ensinar pras (sic)
massas, uma coisa que dá pra (sic) ensinar simples e as pessoas
pegam a moral e vão acreditar por causa disso.

Entretanto, para aqueles que não possuem religião isso não é possível
por não conseguirem ver sentido e por perderem a fé nas explicações
religiosas oferecidas pelas religiões. Para Weber (2009), a Modernidade se
apresenta como um período em que a influência religiosa passou a ser
fortemente questionada, dando lugar à uma forma de pensamento que preza
cada vez mais por um saber racionalizado e a sociedade ocidental vivenciaram
um processo de “desencantamento do mundo”, que depois ficou mais
comumente conhecido como secularização.

Os jovens que se definem como sem religião optam pela alternativa


racional ao pensamento de colocar a religião como modo de perceber e
explicar a realidade, não necessitando do apego à dimensão do sagrado e
apoiando-se em explicações científicas para a realidade. Esses indivíduos
representam a tendência do secularismo que se tornou um marco da
modernidade. O secularismo representa um processo que pode ser
caracterizado por uma libertação do homem moderno da tutela da religião, isso
de acordo com os chamados círculos anticlericais (BERGER, 1985). Pelas
instituições católicas tradicionais é considerado como um processo de
descristianização ou paganização.

Tendo em visto tudo que foi discutido, considero que a análise das
histórias de vida desses jovens possibilitou iluminar certos pontos sobre o
processo de afastamento da religiosidade, assim como estabelecer uma
compreensão de como esses sujeitos significam a religião em suas vidas e na
dinâmica social. Além disso, acredito ter conseguido perceber aspectos
representativos da mudança do cenário religioso brasileiro que sinaliza para o
crescimento da juventude sem religião, como mostram os dados das pesquisas
do Censo de 2010 e da FGV (2009). No próximo capítulo realizarei uma breve
discussão sobre juventude e sexualidade objetivando compreender melhor
essa esfera da vida dos jovens através do que enunciam alguns autores, além
de apresentar minha conclusão desse trabalho.

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