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CAFÉS, BONDES E CARNAVAIS

Elisa Amorim Vieira


UFMG

RESUMO
Este texto tem por objetivo refletir sobre a configuração das
múltiplas imagens do Rio de Janeiro do Segundo Império
presentes nas crônicas de Machado de Assis. Ressaltam-se o
conflito entre modernidade e tradição que perpassa esses textos
e a forma pela qual a visão fragmentada da cidade se traduz
numa escrita que privilegia a descontinuidade.

PALAVRAS-CHAVE
Machado de Assis. Crônica. Modernidade.

Vi, não me lembra onde…


É meu costume, quando não tenho que fazer em casa,
ir por esse mundo de Cristo, se assim se pode chamar
à cidade de São Sebastião, matar o tempo.1
Machado de Assis, 21-01-1889

As palavras de Machado de Assis, reveladoras de certo espírito blasé de quem,


por querer matar o tempo, decide perambular pela cidade, remetem-nos àquele que
para Walter Benjamin era o verdadeiro ícone da cidade moderna: o flâneur. Passeante
citadino por excelência, tal personagem interliga o público e o privado, experimentando
a rua como lugar de encontro e possibilidade de diluição do indivíduo na coletividade.
Em seu exercício de observação e descoberta, o flâneur faz do bulevar a sua sala de
visitas, e a cidade, uma extensão do seu universo particular. Como explica Susan Buck-
Morss, 2 Benjamin identifica esse personagem ao intelectual moderno, que, ao contrário
do acadêmico que reflete em seu gabinete, caminha pelas ruas e estuda as multidões.
Fascinados e muitas vezes perplexos diante do novo espaço urbano, que se configura
obedecendo aos padrões utilitaristas ditados pelo ideal de progresso, escritores como
Machado de Assis e o espanhol Pérez Galdós utilizaram os novos meios de comunicação
para veicular suas esperanças, renitências e desencantos com relação às cidades em
acelerado processo de mudança. A modernidade se torna o principal objeto de indagação
desses “passeantes”, que acabam por fazer da observação uma nova atividade profissional.
Por sua condição de gênero híbrido, entre a ficção e o texto jornalístico, que
permite o ingresso de temas dessacralizados, de fatos corriqueiros e, muitas vezes, do

1
ASSIS. Obra completa, p. 510.
2
BUCK-MORSS. Dialética do olhar, p. 360.

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tom humorístico ao lado de especulações filosóficas, a crônica aproxima-se da conversa
fiada de quem, como Machado, dispunha-se a matar o tempo. Garantindo a presença
constante da leitora ou leitor fictício, o volúvel narrador do espaço urbano interliga o
dia-a-dia do Rio de Janeiro do final do século XIX ao espaço mais amplo da tradição
literária ocidental, comenta as inovações tecnológicas, as mudanças de costumes e a
transformação da cidade. Figura central do grupo da Livraria Garnier, Machado manteve
suas diferenças tanto com relação aos simbolistas, liderados por Cruz e Souza, quanto
com relação aos irreverentes boêmios cariocas, reunidos em torno à figura de Paula Nei.
Mas, como mostra Mônica Pimenta Velloso,3 o impacto das mudanças é vivenciado de
formas distintas pelos intelectuais, que se mostram cindidos entre o sentimento de
esperança e o de desencanto. Ainda segundo a historiadora, Machado, apesar das
diferenças que tem com Lima Barreto, compartilha com este a visão desencantada e
cética da modernidade, afastando-se do positivismo e reforçando seus elos com a
subjetividade e o intimismo.
Em crônica datada de 15 de junho de 1877, Machado aproveita-se da notícia de
uma doação anônima feita às órfãs da Santa Casa para burlar-se de Diógenes. Ao
contrário do filósofo que vagava pelas ruas de Atenas em busca “do homem”, o autor
carioca – ao sabor de uma xícara de café e à janela de sua casa – anuncia seu grande
achado. O “homem do Evangelho”, placidamente encontrado nas páginas de um jornal
e possuidor de verdadeiro espírito caritativo e desdenhoso de toda fama e publicidade,
é mero pretexto para o comentário seguinte: a história de um amigo do cronista que, ao
libertar uma escrava de 65 anos “que já lhe havia dado a ganhar, sete ou oito vezes o
custo”,4 escreve uma nota aos jornais divulgando seu feito. Ao ver a notícia do benfeitor
anônimo da Santa Casa, o tal amigo recua, não publica a nota, mas faz questão de
anunciar “veladamente” seu feito a cada conhecido que encontra. 5 Dessa forma, o autor
focaliza o próprio jornal – índice por excelência dos novos tempos – que
contraditoriamente reforça o espírito contemplativo do narrador-personagem e,
casualmente, põe em evidência a hipocrisia da burguesia da capital.
Utilizando - se da desconversa, do devaneio sistemático e das constantes
interrupções, a crônica machadiana estrutura sua dialogia interna convocando e
provocando o leitor a participar de seus comentários sobre o dia-a-dia do Rio de Janeiro
do segundo reinado, intercalando continuamente os mais diversos assuntos. Leitores e
leitoras, passageiros em potencial dos bondes urbanos, passam de destinatários a
personagens centrais desses textos que nos remetem aos costumes, cenários e ritmos da

3
VELLOSO. Modernismo no Rio de Janeiro, p. 37-38.
4
ASSIS. Obra completa, p. 368.
5
Esse tema voltará a ser tratado em crônica de 19 de maio de 1888, seis dias após a proclamação da Lei
Áurea. Nessa ocasião, o autor aponta para a manutenção da condição de opressão do negro liberto.
Conta como “ele”, cronista-personagem, havia libertado dias antes do 13 de maio um “molecote que
tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos.” (ASSIS. Obra completa, p. 489) Para celebrar a
façanha, oferece um banquete aos amigos, que louvam sua generosidade. No dia seguinte à
comemoração, oferece a Pancrácio, o ex-escravo, um pequeno salário e a manutenção da antiga relação:
“Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem
as botas; efeitos da liberdade.” (ASSIS. Obra completa, p. 490)

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cidade-capital. Nesse sentido, não surpreende que o cronista se dirija a seus interlocutores
fictícios e solicite não só sua atenção como sua intervenção explícita: “Tiro o chapéu,
como fiz agora ao leitor; e dei-lhe os bons dias do costume. Creio que não se pode exigir
mais. Agora, o leitor que diga alguma cousa, se está para isso, ou não diga nada, e boas
noites”. 6 O mesmo tom galhofeiro instaura-se também na mescla dos assuntos tratados,
aproximando de forma iconoclasta o sério e o trivial:

No meio dos graves problemas sociais cuja solução buscam os espíritos investigadores do
nosso século, a publicação de um manual de confeitaria, só pode parecer vulgar a espíritos
vulgares; na realidade, é um fenômeno eminentemente significativo. Digamos todo o
nosso pensamento: é uma restauração do nosso princípio social. O princípio social do Rio
de Janeiro, como se sabe, é o doce de coco e a compota de marmelos. Não foi outra
também a origem da nossa indústria doméstica. No século passado e no anterior, as damas,
uma vez por ano, dançavam o minuete, ou viam ver correr argolinhas; mas todos os dias
faziam renda e todas as semanas faziam doce; de modo que o bilro e o tacho, mais ainda
do que os falcões pedreiros de Estácio de Sá, lançaram os alicerces da sociedade carioca.7

Mais adiante, na mesma crônica, encontram-se comentários a respeito das celebrações


da quinta-feira santa e o hábito popular de “misturar balas de chocolate com as lágrimas
do Sião”, 8 além da analogia entre um Confeiteiro portátil e a última batalha de Pompeu.
Ainda que não integre o grupo dos intelectuais boêmios que ao longo de três décadas
construíram um retrato satírico do Rio de Janeiro e do Brasil, Machado compartilha do
humor que, segundo Mônica Pimenta Velloso, apresenta-se como traço essencial da
modernidade carioca.9 A mesma atitude satírica que, no caso dos boêmios, contraria a
idéia moderna do espaço segmentado entre café/escritório, tempo de lazer/tempo de
trabalho, arte/vida, 10 levaria a crônica machadiana a misturar os acontecimentos mais
corriqueiros aos temas de prestígio da modernidade. Enquanto os boêmios transformam
os cafés em sucursais da Academia Brasileira de Letras ou em ambiente de trabalho, 11 o
cronista utiliza as páginas dos jornais para nivelar a pretensa seriedade do espírito
positivista à futilidade da sociedade carioca do seu tempo.
As contradições entre a cidade velha e a moderna passam a ser o grande tema de
diversas crônicas, especialmente as que comentam as viagens nos bondes de tração
animal. O ritmo dessas viagens, entrecortado por inúmeras interrupções, propicia

6
ASSIS. Obra completa, p. 493.
7
ASSIS. Obra completa, p. 376.
8
ASSIS. Obra completa, p. 377.
9
VELLOSO. Modernismo no Rio de Janeiro, p. 41.
10
VELLOSO. Modernismo no Rio de Janeiro, p. 53.
11
Em sua pesquisa, Mônica Pimenta Velloso observa que era comum os cafés funcionarem como paródia
da Academia, satirizando sua organização, funcionamento e personalidades. Segundo a autora, a boemia
teatralizava seu afastamento da vida comum como forma de atrair a burguesia como patrona e
consumidora da obra artística e literária. A recusa a integrar-se aos moldes do mercado de trabalho
levou, por exemplo, Emílio de Menezes a batizar sua mesa da Confeitaria Colombo de “gabinete de
trabalho”. Depois de traduzir O corvo, de Allan Poe, resolveu mudar o nome da mesa para “urubu”. Esta,
por fim, tornou-se ainda sede do “jornal falado” que funcionava como pseudo-órgão da Academia de
Letras. (VELLOSO. Modernismo no Rio de Janeiro, p. 52-23)

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conversas, desconversas, divagações e devaneios que contaminam o texto do passeante
citadino e o levam a refletir sobre o advento das máquinas e dos novos costumes, assim
como sobre a perda de uma vivência do tempo que propiciava o encontro, a conversa
fiada e o exercício da observação.12 O contraste entre o arcaico meio de transporte e os
modernos bondes elétricos gera uma série de especulações a respeito dos novos tempos
e faz do burro um constante personagem das crônicas machadianas. Em texto de 15 de
março de 1877, é comentada a inauguração dos bondes elétricos do bairro de Santa
Teresa, onde os sábios animais falantes devem ter aparecido por primeira vez:
Escusado é dizer que as diligências viram essa inauguração com um olhar extremamente
melancólico. Alguns burros, afeitos à subida e descida do outeiro, estavam ontem lastimando
esse novo passo do progresso. Um deles, filósofo, humanitário e ambicioso, murmurava:

– Dizem: les dieux s’en vont. Que ironia! Não; não são os deuses, somos nós. Les ânes s’en
vont, meus colegas, les ânes s’en vont.

E esse interessante quadrúpede olhava para o bond com um olhar cheio de saudade e
humilhação. Talvez rememorava a queda lenta do burro, expelido de toda a parte pelo
vapor, como o vapor o há de ser pelo balão, e o balão pela eletricidade, a eletricidade por
uma força nova, que levará de vez este grande trem do mundo até à estação terminal.

O que assim não seja… por ora.13

A transitoriedade, apresentada pela crônica como aspecto inerente à tecnologia


e aos novos tempos por ela inaugurados, estende-se aos costumes e valores da sociedade
carioca oitocentista. Nesse sentido, a Rua do Ouvidor confirma-se como centro para
onde convergem os múltiplos habitantes da cidade e, além disso, torna-se espaço
emblemático das transformações por que passa a nascente metrópole: “Naturalmente,
cansadas as pernas, meto-me no primeiro bond, que pode trazer-me à casa ou à Rua do
Ouvidor, que é onde todos moramos.” 14 A rua, habitada por boatos, opiniões públicas,
movimentos libertários, flertes, vaidades, boêmia, senhoras, cavalheiros e operários, é o
espaço onde os pequenos e grandes gestos têm valores equivalentes, uns pela sutileza;
outros pela grandiloqüência muitas vezes hipócrita. Verdadeiro museu do imaginário
do Rio do segundo reinado, a Ouvidor das crônicas machadianas consegue realizar a
fusão de índices espaciais e temporais: freqüentadores ou passantes trazem consigo seus
mundos particulares para expô-los na brevidade dos encontros que acontecem na rua.
Nenhum outro espaço realizaria tão bem a função de praça pública concentradora da
variedade de vozes que, em sua relação essencialmente dialógica, constrói diferentes
versões a respeito de uma realidade que se define pelo ritmo da novidade:

12
Em crônica de 21 de janeiro de 1889, lê-se: “Se o bond é dos que têm de ir por vias estreitas e
atravancadas, torna-se um verdadeiro obséquio do céu. De quando em quando, pára diante de uma
carroça que despeja ou recolhe fardos. O cocheiro trava o carro, ata as rédeas, desce e acende um
cigarro; o condutor também e vai dar uma vista de olhos ao obstáculo. Eu, e todos os veneráveis camelos
da Arábia, vulgo passageiros, se estamos dizendo alguma coisa, calamo-nos para ruminar e esperar”.
(ASSIS. Obra completa, p. 510)
13
ASSIS. Obra completa, p. 364.
14
ASSIS. Obra completa, p. 510.

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Fora com estes sapatos de Israel. Calcemo-nos à maneira da Rua do Ouvidor, que pisamos,
onde a vida passa em burburinho de todos os dias e de cada hora. Chovem assuntos
modernos. O banco, por exemplo, o novo banco, filho de dous pais, como aquela criança
divina que era, dizia Camões, nascida de duas mães. As duas mães, como sabeis, eram a
madre de sua madre, e a coxa de seu padre, porque no tempo em que Júpiter engendrou
esse pequerrucho, ainda não estava descoberto o remédio que previne a concepção para
sempre, e de que ouço falar na Rua do Ouvidor. Dizem até que se anuncia, mas eu não
leio anúncios.15

O cotidiano relatado pela crônica não se apega a imagens que congelam paisagens,
tipos humanos ou costumes pitorescos e emblemáticos do Rio de Janeiro, mas ao
“burburinho” de uma realidade em processo de mutação acelerada. Longe de ser uma
enumeração de novidades, os “assuntos modernos que chovem” na Rua do Ouvidor, do
novo banco ao anticoncepcional, são levados a dialogar com Camões e a remota herança
greco-romana. Produz-se, assim, um efeito que rompe qualquer idéia de repouso e que
impele o leitor a buscar a inter-relação entre essas imagens “dissonantes”. A cidade das
crônicas machadianas é construída a partir de um processo de colagem realizado através
da associação de imagens fragmentadas do dia-a-dia com as advindas das fontes mais
diversas. Nesse sentido, à idéia de continuidade sobrepõe-se a dos inúmeros cortes
formadores de “imagens-ato” 16 que, para concretizarem-se, necessitam da ativa
intervenção do leitor. Tanto a Rua do Ouvidor quanto o bonde, cenários de passantes
por excelência, configuram-se como espaços que condensam percepções temporais
heterogêneas. Os fragmentos captados pelo observador aí situado são testemunhas ora
da sobrevivência ora da perda ou mudança dos costumes da antiga cidade.
Os modismos que invadem a capital são, quase sempre, vistos com sarcasmo pelo
cronista que, inconformado com a futilidade da elite carioca, não deixa passar em branco
a adoção de novos entretenimentos, tais como as touradas. 17 O outro lado da moeda do
processo de modernização da cidade é a iminência da perda de velhos hábitos que a
singularizavam ou a repressão de antigos elementos culturais estreitamente ligados às
tradições populares. Em crônicas datadas de 4 de fevereiro de 1894 e 10 de março de
1895, o autor refere-se, respectivamente, à suspensão do carnaval e à prisão de duas
feiticeiras e uma cartomante. Na primeira, após lamentar a ausência do deus Momo, do
som dos chocalhos, guizos e das vozes tortas e finas,18 o cronista se refere às mudanças

15
ASSIS. Obra completa, p. 568.
16
Esse conceito é aplicado à fotografia por Philippe Dubois. A noção de “ato” refere-se tanto à produção
da imagem quanto à sua recepção e contemplação.
17
Em crônica de 16 de junho de 1878, o autor comenta: “A providência, em seus inescrutáveis desígnios,
tinha assentado dar a esta cidade um benefício grande; e nenhum lhe pareceu maior nem melhor do
que certo gozo superfino, espiritual e grave, que patenteasse a brandura dos nossos costumes e a graça
das nossas maneiras: deu-nos os touros”. (ASSIS. Obra completa, p. 381).
18
“Quando eu li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença
minha, que no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só
le propre de l’homme, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público,
universal, inextinguível, à maneira dos deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano.
Não veremos Vulcano estes dias, cambaio ou não, não ouviremos chocalhos, nem guizos, nem vozes
tortas e finas. Não sairão as sociedades, com seus carros cobertos de flores e mulheres, e as ricas roupas
de veludo e cetim.” (ASSIS. Obra completa, p. 598-599).

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da moda, que, assim como as religiões, começam com poucos adeptos e logo contaminam
as multidões. Passa, então, a especular sobre a moda do futuro e conclui com a única
que não está sujeita ao tempo: “Essa há de ser a moda que não acaba. Ou caminhemos
para a perfeição deliciosa e terna, ou não façamos mais que ruminar, perpétuo camelo,
o mesmo jantar de todas as idades, a moda de morrer é a mesma…” 19 A presença
inexorável da morte é, portanto, apresentada como contraponto às promessas de mudança
e de progresso que são o deleite da burguesia carioca do final do século XIX.
O relato da prisão de duas feiticeiras e uma cartomante, em crônica de 10 de
março de 1895, explicita a crítica do autor às profundas contradições de uma sociedade
intolerante que vê as tradições populares como comportamento desviante e,
conseqüentemente, como caso de polícia. Numa veemente defesa das acusadas, o
cronista contrapõe-se ao autoritarismo da razão e da verdade única, ao mesmo tempo
em que constrói a imagem de um Rio paralelo ao da “civilizada” Rua do Ouvidor.

O código, que não crê na feitiçaria, faz dela um crime, mas quem diz ao código que a
feiticeira não é sincera, não crê realmente nas drogas que aplica e nos bens que espalha?
A psicologia do código é curiosa. Para ele, os homens só crêem aquilo que ele mesmo crê;
fora dele, não havendo verdade, não há quem creia outras verdades – como se a verdade
fosse uma só e tivesse trocos miúdos para a circulação moral dos homens.20

O tema das feiticeiras presas, assim como o dos falsos abolicionistas, conjuga-se
aos comentários sobre o advento do progresso, das modas que invadem a Rua do Ouvidor
e dos novos costumes adotados pelos cidadãos e cidadãs da capital. Mais do que jogo
retórico, a insistência com que a crônica machadiana mescla os “instantâneos” do
cotidiano com referências aos cânones da cultura ocidental revela o humor com que
modernidade e tradição são contrapostos. O texto, que muitas vezes segue o ritmo dos
bondes puxados pelos burros mitificados, pára, muda de assunto, perde o fio da meada,
fragmenta e problematiza a visão da cidade. Essa fragmentação, por sua vez, destaca o
conflito entre a vivência do espaço público como possibilidade de encontro21 e a sua
percepção como local de passagem. Porém, longe de resolver- se, a cisão entre
modernidade e tradição é potencializada pela crônica machadiana e utilizada como
principal matéria da construção da cidade textual: “Consolemo-nos; é isto mesmo a
vida de uma cidade, ora tétrica, ora frívola, hoje lúgubre, amanhã jovial, quando não é
todas as coisas juntas.” 22 O relato que Machado faz da cidade se constrói, portanto,
como montagem de imagens estilhaçadas que, por sua vez, engendram novas imagens e
novos relatos, num jogo ininterrupto de leituras que alcança a urbe caótica dos nossos
dias.
AA

19
ASSIS. Obra completa, p. 600.
20
ASSIS. Obra completa, p. 647.
21
De acordo com Lefebvre, a rua não é simples lugar de passagem e circulação, mas lugar de encontro
onde são efetuados o movimento e a mistura, sem os quais não há vida urbana. Por outro lado, os
encontros que se dão na rua são superficiais, uma vez que o mundo da mercadoria a invadiu. (LEFEBVRE.
A revolução urbana, p. 29-30).
22
ASSIS. Obra completa, p. 394.

80 A L E T R I A - v. 15 - jan.-jun. - 2007 Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit


RESUMEN
Este texto tiene como objetivo reflexionar sobre la configuración
de las múltiples imágenes del Rio de Janeiro del Segundo Imperio
presentes en las crónicas de Machado de Assis. Se resaltan el
conflicto entre modernidad y tradición que cruza esos textos y
la forma por la cual la visión fragmentada de la ciudad se traduce
en una escritura que privilegia la discontinuidad.

PALABRAS-CLAVE
Machado de Assis. Crónica. Modernidad.

REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. v. 3.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Série Obras
escolhidas, v. 1)
BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o Projeto das Passagens.
Trad. Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad. Cleonice P. B.
Mourão, Consuelo F. Santiago, Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. Marina Appenzeller.
Campinas: Papirus, 2001.
FERRARA, Lucrecia D’Alessio. Os significados urbanos. São Paulo: Edusp, 2000.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Trad. Sérgio Martins. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.
NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro
na virada do século. Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SENNA, Marta de. O olhar oblíquo do bruxo: ensaios em torno de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
SUBIRATS, Eduardo. Metamorfosis de la cultura moderna. Barcelona: Anthropos, 1991.
VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.

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