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RESUMO
Este texto tem por objetivo refletir sobre a configuração das
múltiplas imagens do Rio de Janeiro do Segundo Império
presentes nas crônicas de Machado de Assis. Ressaltam-se o
conflito entre modernidade e tradição que perpassa esses textos
e a forma pela qual a visão fragmentada da cidade se traduz
numa escrita que privilegia a descontinuidade.
PALAVRAS-CHAVE
Machado de Assis. Crônica. Modernidade.
1
ASSIS. Obra completa, p. 510.
2
BUCK-MORSS. Dialética do olhar, p. 360.
3
VELLOSO. Modernismo no Rio de Janeiro, p. 37-38.
4
ASSIS. Obra completa, p. 368.
5
Esse tema voltará a ser tratado em crônica de 19 de maio de 1888, seis dias após a proclamação da Lei
Áurea. Nessa ocasião, o autor aponta para a manutenção da condição de opressão do negro liberto.
Conta como “ele”, cronista-personagem, havia libertado dias antes do 13 de maio um “molecote que
tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos.” (ASSIS. Obra completa, p. 489) Para celebrar a
façanha, oferece um banquete aos amigos, que louvam sua generosidade. No dia seguinte à
comemoração, oferece a Pancrácio, o ex-escravo, um pequeno salário e a manutenção da antiga relação:
“Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem
as botas; efeitos da liberdade.” (ASSIS. Obra completa, p. 490)
No meio dos graves problemas sociais cuja solução buscam os espíritos investigadores do
nosso século, a publicação de um manual de confeitaria, só pode parecer vulgar a espíritos
vulgares; na realidade, é um fenômeno eminentemente significativo. Digamos todo o
nosso pensamento: é uma restauração do nosso princípio social. O princípio social do Rio
de Janeiro, como se sabe, é o doce de coco e a compota de marmelos. Não foi outra
também a origem da nossa indústria doméstica. No século passado e no anterior, as damas,
uma vez por ano, dançavam o minuete, ou viam ver correr argolinhas; mas todos os dias
faziam renda e todas as semanas faziam doce; de modo que o bilro e o tacho, mais ainda
do que os falcões pedreiros de Estácio de Sá, lançaram os alicerces da sociedade carioca.7
6
ASSIS. Obra completa, p. 493.
7
ASSIS. Obra completa, p. 376.
8
ASSIS. Obra completa, p. 377.
9
VELLOSO. Modernismo no Rio de Janeiro, p. 41.
10
VELLOSO. Modernismo no Rio de Janeiro, p. 53.
11
Em sua pesquisa, Mônica Pimenta Velloso observa que era comum os cafés funcionarem como paródia
da Academia, satirizando sua organização, funcionamento e personalidades. Segundo a autora, a boemia
teatralizava seu afastamento da vida comum como forma de atrair a burguesia como patrona e
consumidora da obra artística e literária. A recusa a integrar-se aos moldes do mercado de trabalho
levou, por exemplo, Emílio de Menezes a batizar sua mesa da Confeitaria Colombo de “gabinete de
trabalho”. Depois de traduzir O corvo, de Allan Poe, resolveu mudar o nome da mesa para “urubu”. Esta,
por fim, tornou-se ainda sede do “jornal falado” que funcionava como pseudo-órgão da Academia de
Letras. (VELLOSO. Modernismo no Rio de Janeiro, p. 52-23)
– Dizem: les dieux s’en vont. Que ironia! Não; não são os deuses, somos nós. Les ânes s’en
vont, meus colegas, les ânes s’en vont.
E esse interessante quadrúpede olhava para o bond com um olhar cheio de saudade e
humilhação. Talvez rememorava a queda lenta do burro, expelido de toda a parte pelo
vapor, como o vapor o há de ser pelo balão, e o balão pela eletricidade, a eletricidade por
uma força nova, que levará de vez este grande trem do mundo até à estação terminal.
12
Em crônica de 21 de janeiro de 1889, lê-se: “Se o bond é dos que têm de ir por vias estreitas e
atravancadas, torna-se um verdadeiro obséquio do céu. De quando em quando, pára diante de uma
carroça que despeja ou recolhe fardos. O cocheiro trava o carro, ata as rédeas, desce e acende um
cigarro; o condutor também e vai dar uma vista de olhos ao obstáculo. Eu, e todos os veneráveis camelos
da Arábia, vulgo passageiros, se estamos dizendo alguma coisa, calamo-nos para ruminar e esperar”.
(ASSIS. Obra completa, p. 510)
13
ASSIS. Obra completa, p. 364.
14
ASSIS. Obra completa, p. 510.
O cotidiano relatado pela crônica não se apega a imagens que congelam paisagens,
tipos humanos ou costumes pitorescos e emblemáticos do Rio de Janeiro, mas ao
“burburinho” de uma realidade em processo de mutação acelerada. Longe de ser uma
enumeração de novidades, os “assuntos modernos que chovem” na Rua do Ouvidor, do
novo banco ao anticoncepcional, são levados a dialogar com Camões e a remota herança
greco-romana. Produz-se, assim, um efeito que rompe qualquer idéia de repouso e que
impele o leitor a buscar a inter-relação entre essas imagens “dissonantes”. A cidade das
crônicas machadianas é construída a partir de um processo de colagem realizado através
da associação de imagens fragmentadas do dia-a-dia com as advindas das fontes mais
diversas. Nesse sentido, à idéia de continuidade sobrepõe-se a dos inúmeros cortes
formadores de “imagens-ato” 16 que, para concretizarem-se, necessitam da ativa
intervenção do leitor. Tanto a Rua do Ouvidor quanto o bonde, cenários de passantes
por excelência, configuram-se como espaços que condensam percepções temporais
heterogêneas. Os fragmentos captados pelo observador aí situado são testemunhas ora
da sobrevivência ora da perda ou mudança dos costumes da antiga cidade.
Os modismos que invadem a capital são, quase sempre, vistos com sarcasmo pelo
cronista que, inconformado com a futilidade da elite carioca, não deixa passar em branco
a adoção de novos entretenimentos, tais como as touradas. 17 O outro lado da moeda do
processo de modernização da cidade é a iminência da perda de velhos hábitos que a
singularizavam ou a repressão de antigos elementos culturais estreitamente ligados às
tradições populares. Em crônicas datadas de 4 de fevereiro de 1894 e 10 de março de
1895, o autor refere-se, respectivamente, à suspensão do carnaval e à prisão de duas
feiticeiras e uma cartomante. Na primeira, após lamentar a ausência do deus Momo, do
som dos chocalhos, guizos e das vozes tortas e finas,18 o cronista se refere às mudanças
15
ASSIS. Obra completa, p. 568.
16
Esse conceito é aplicado à fotografia por Philippe Dubois. A noção de “ato” refere-se tanto à produção
da imagem quanto à sua recepção e contemplação.
17
Em crônica de 16 de junho de 1878, o autor comenta: “A providência, em seus inescrutáveis desígnios,
tinha assentado dar a esta cidade um benefício grande; e nenhum lhe pareceu maior nem melhor do
que certo gozo superfino, espiritual e grave, que patenteasse a brandura dos nossos costumes e a graça
das nossas maneiras: deu-nos os touros”. (ASSIS. Obra completa, p. 381).
18
“Quando eu li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença
minha, que no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só
le propre de l’homme, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público,
universal, inextinguível, à maneira dos deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano.
Não veremos Vulcano estes dias, cambaio ou não, não ouviremos chocalhos, nem guizos, nem vozes
tortas e finas. Não sairão as sociedades, com seus carros cobertos de flores e mulheres, e as ricas roupas
de veludo e cetim.” (ASSIS. Obra completa, p. 598-599).
O código, que não crê na feitiçaria, faz dela um crime, mas quem diz ao código que a
feiticeira não é sincera, não crê realmente nas drogas que aplica e nos bens que espalha?
A psicologia do código é curiosa. Para ele, os homens só crêem aquilo que ele mesmo crê;
fora dele, não havendo verdade, não há quem creia outras verdades – como se a verdade
fosse uma só e tivesse trocos miúdos para a circulação moral dos homens.20
O tema das feiticeiras presas, assim como o dos falsos abolicionistas, conjuga-se
aos comentários sobre o advento do progresso, das modas que invadem a Rua do Ouvidor
e dos novos costumes adotados pelos cidadãos e cidadãs da capital. Mais do que jogo
retórico, a insistência com que a crônica machadiana mescla os “instantâneos” do
cotidiano com referências aos cânones da cultura ocidental revela o humor com que
modernidade e tradição são contrapostos. O texto, que muitas vezes segue o ritmo dos
bondes puxados pelos burros mitificados, pára, muda de assunto, perde o fio da meada,
fragmenta e problematiza a visão da cidade. Essa fragmentação, por sua vez, destaca o
conflito entre a vivência do espaço público como possibilidade de encontro21 e a sua
percepção como local de passagem. Porém, longe de resolver- se, a cisão entre
modernidade e tradição é potencializada pela crônica machadiana e utilizada como
principal matéria da construção da cidade textual: “Consolemo-nos; é isto mesmo a
vida de uma cidade, ora tétrica, ora frívola, hoje lúgubre, amanhã jovial, quando não é
todas as coisas juntas.” 22 O relato que Machado faz da cidade se constrói, portanto,
como montagem de imagens estilhaçadas que, por sua vez, engendram novas imagens e
novos relatos, num jogo ininterrupto de leituras que alcança a urbe caótica dos nossos
dias.
AA
19
ASSIS. Obra completa, p. 600.
20
ASSIS. Obra completa, p. 647.
21
De acordo com Lefebvre, a rua não é simples lugar de passagem e circulação, mas lugar de encontro
onde são efetuados o movimento e a mistura, sem os quais não há vida urbana. Por outro lado, os
encontros que se dão na rua são superficiais, uma vez que o mundo da mercadoria a invadiu. (LEFEBVRE.
A revolução urbana, p. 29-30).
22
ASSIS. Obra completa, p. 394.
PALABRAS-CLAVE
Machado de Assis. Crónica. Modernidad.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. v. 3.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Série Obras
escolhidas, v. 1)
BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o Projeto das Passagens.
Trad. Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad. Cleonice P. B.
Mourão, Consuelo F. Santiago, Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. Marina Appenzeller.
Campinas: Papirus, 2001.
FERRARA, Lucrecia D’Alessio. Os significados urbanos. São Paulo: Edusp, 2000.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Trad. Sérgio Martins. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.
NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro
na virada do século. Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SENNA, Marta de. O olhar oblíquo do bruxo: ensaios em torno de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
SUBIRATS, Eduardo. Metamorfosis de la cultura moderna. Barcelona: Anthropos, 1991.
VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.