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Conversa de Bastidores
[…]
Em fim de 1944, Ildefonso Falcão, aqui de passagem, apresentou-me J. Guimarães Rosa, secretário de embaixada,
recém-chegado da Europa.
— O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938.
— Como era o seu pseudônimo?
— Viator.
— Ah! O senhor é o médico mineiro que andei procurando.
Ildefonso Falcão ignorava que Rosa fosse médico, mineiro e literato. Fiz camaradagem rápida com o secretário de
embaixada.
— Sabe que votei contra o seu livro?
— Sei, respondeu-me sem nenhum ressentimento.
Achando-me diante de uma inteligência livre de mesquinhez, estendi-me sobre os defeitos que guardara na memória.
Rosa concordou comigo. Havia suprimido os contos mais fracos. E emendara os restantes, vagaroso, alheio aos futuros
leitores e à crítica. […]
Vejo agora, relendo Sagarana (Editora Universal — Rio — 1946), que o volume de quinhentas páginas emagreceu bas-
tante e muita consistência ganhou em longa e paciente depuração. Eliminaram-se três histórias, capinaram-se diversas
coisas nocivas. As partes boas se aperfeiçoaram: O Burrinho Pedrês, A Volta do Marido Pródigo, Duelo, Corpo Fechado,
sobretudo Hora e Vez de Augusto Matraga, que me faz desejar ver Rosa dedicar-se ao romance. Achariam aí campo mais
vasto as suas admiráveis qualidades: a vigilância na observação, que o leva a não desprezar minúcias na aparência
insignificante, uma honestidade quase mórbida ao reproduzir os fatos. Já em 1938 eu havia atentado nesse rigor, indicara
a Prudente de Morais numerosos versos para efeito onomatopaico intercalados na prosa. […]
A arte de Rosa é terrivelmente difícil. Esse antimodernista repele o improviso. Com imenso esforço escolhe palavras
simples e nos dá impressão de vida numa nesga de caatinga, num gesto de caboclo, uma conversa cheia de provérbios matu-
tos. O seu diálogo é rebuscadamente natural: desdenha o recurso ingênuo de cortar ss, ll e rr finais, deturpar flexões, e
aproximar-se, tanto quanto possível, da língua do interior.
Devo acrescentar que Rosa é um animalista notável: fervilham bichos no livro, não convenções de apólogo, mas irra-
cionais, direitos exibidos com peladuras, esparavões e os necessários movimentos de orelha e de rabos. Talvez o hábito de
examinar essas criaturas haja aconselhado o meu amigo a trabalhar com lentidão bovina.
Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando
os meus ossos começarem a esfarelar-se.
(Graciliano Ramos, Conversa de bastidores. In: Linhas tortas)
O Burrinho Pedrês
[…]
Nenhum perigo, por ora, com os dois lados da estrada tapados pelas cercas. Mas o gado gordo, na marcha contraída,
se desordena em turbulências. Ainda não abaixaram as cabeças, e o trote é duro, sob vez de aguilhoadas e gritos.
— Mais depressa, é para esmoer?! — ralha o Major. — Boiada boa!...
Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churria-
dos, corombos, cornetos, bocalvos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros… E os tocos da testa do mocho ma-
cheado, e as armas antigas do boi cornalão…
— P’ra trás, boi-vaca!
— Repele Juca… Viu a brabeza dos olhos? Vai com sangue no cangote…
— Só ruindade e mais ruindade, de em-desde o redemunho da testa até na volta da pá! Este eu não vou perder de olho,
que ele é boi espirrador…
Apuram o passo, por entre campinas ricas, onde pastam ou ruminam outros mil e mais bois. Mas os vaqueiros não es-
morecem nos eias e cantigas, porque a boiada ainda tem passagens inquietantes: alarga-se e recomprime-se, sem motivo, e
mesmo dentro da multidão movediça há giros estranhos, que não os deslocamentos normais do gado em marcha — quando
sempre alguns disputam a colocação na vanguarda, outros procuram o centro, e muitos se deixam levar, empurrados, sobre-
nadando quase, com os mais fracos rolando para os lados e os mais pesados tardando para trás, no coice da procissão.
Questão 01
No artigo Conversa de Bastidores, publicado em 1946, Graciliano Ramos revela haver votado em Maria Perigosa, de Luís
Jardim, e não em Contos, de Viator (pseudônimo de Guimarães Rosa), no desempate final de um concurso promovido em 1938
pela Editora José Olympio. Sem desanimar com a derrota, Guimarães Rosa veio a publicar seu livro, com modificações, em
1946, sob o título de Sagarana, que o revelou como um dos maiores escritores da modernidade no Brasil. Releia as duas pas-
sagens e, a seguir,
a) interprete o que quer dizer Graciliano, no contexto, com a expressão “achando-me diante de uma inteligência livre de
mesquinhez”;
b) localize, numa das cinco falas de personagens do fragmento de Guimarães Rosa, um exemplo que confirme a observação de
Graciliano, de que o autor de Sagarana, ao representar tais falas, “desdenha o recurso ingênuo de cortar ss, ll e rr finais”.
Resolução:
a) Graciliano Ramos quer dizer que Guimarães Rosa era uma pessoa generosa, sem pobreza de espírito, pois não ma-
nifestou ressentimento pelo voto contrário ao livro Sagarana num concurso literário.
b) Na tentativa de representar a fala popular, é muito comum “cortar ss, ll e rr” no final das palavras. Rosa desdenha
esse “recurso ingênuo”, como se percebe, por exemplo, em:
“— Mais depressa, é para esmoer?!”
Note-se que Rosa não escreve “esmoê”, como seria esperado.
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Questão 02
O estilo narrativo de Guimarães Rosa, como o próprio Graciliano lembra em seu artigo, é caracterizado, entre outros aspec-
tos, pelo alto índice de musicalidade, pelo recurso a procedimentos rítmicos e rímicos característicos da poesia, como por
exemplo no nono parágrafo, que pode ser lido como uma seqüência de 16 versos de cinco sílabas (As ancas balançam, / e as
vagas de dorsos, / das vacas e touros, / batendo com as caudas, / etc.) ou de 8 versos de onze sílabas (As ancas balançam, e
as vagas de dorsos, / das vacas e touros, batendo com as caudas, / etc.). Depois de observar atentamente este comentário e os
exemplos,
a) indique, no trecho de O Burrinho Pedrês, outro parágrafo que possa ser integralmente lido sob a forma de versos regulares;
b) estabeleça, com base em sua leitura, o número de sílabas de cada verso e o número de versos que tal parágrafo contém.
Resolução:
a) Além do parágrafo exemplificado na pergunta, outros dois podem ser lidos integralmente sob a forma de versos
regulares: o 3º parágrafo e aquele iniciado por “Boi bem bravo...”
b) O 3º parágrafo pode ser dividido em 7 versos de 11 sílabas, ou 14 versos de 5 sílabas:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Ga lhu dos gai o los es tre los es pá cios
com bu cos cu be tos lo bu nos lom par dos
cal dei ros cam brai as cha mu rros chu rria dos
1 2 3 4 5
Ga lhu dos gai o lo
es tre los es pá cios
com bu cos cu be tos
1 2 3 4 5 6 7
Boi bem bra vo ba te bai xo
bo ta ba ba boi be rran do
Dan ça doi do dá de du ro
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Questão 03
Muitas palavras podem atuar nas frases como representantes de diferentes classes e exercer, portanto, diferentes funções
sintáticas. Tendo em mente esta informação,
a) determine, com base em características formais da frase em que se encontra, a classe de palavras em que se enquadra a
palavra eias, empregada por Guimarães Rosa no sétimo parágrafo do trecho citado;
b) considerando que, no quarto período do antepenúltimo parágrafo de seu texto, Graciliano Ramos representou três palavras
visualmente por meio das letras dobradas rr, ll e ss, reescreva esse período, substituindo tais letras dobradas pelas palavras
correspondentes.
Resolução:
a) Normalmente usada na língua como interjeição expressiva de encorajamento, a palavra eia, no contexto em que é
empregada por Guimarães Rosa, se enquadra na classe dos substantivos.
Com efeito, além de estar determinada pelo artigo definido, é colocada no plural, o que não é próprio da interjeição.
Além disso, a palavra vem coordenada com o substantivo cantigas. Sabe-se que a coordenação só se dá entre elementos
de mesma natureza.
Logo, em “os vaqueiros não esmorecem nos eias e cantigas”, a palavra eias representa a classe dos substantivos.
É como se disséssemos: os vaqueiros não esmorecem nos brados e cantigas.
b) Feitas as substituições solicitadas, o período ganha a seguinte redação:
O seu diálogo é rebuscadamente natural: desdenha o recurso ingênuo de cortar esses, eles e erres finais, deturpar
flexões, e aproximar-se, tanto quanto possível, da língua do interior.
INSTRUÇÃO: As questões de números 04 a 07 tomam por base o poema Soneto, do poeta romântico brasileiro José Bonifácio,
o Moço (1827-1886), e o poema Visita à Casa Paterna, do poeta parnasiano brasileiro Luís Guimarães Júnior (1845-1898).
Soneto
Deserta a casa está… Entrei chorando,
De quarto em quarto, em busca de ilusões!
Por toda a parte as pálidas visões!
Por toda a parte as lágrimas falando!
05 Vejo meu pai na sala, caminhando,
Da luz da tarde aos tépidos clarões,
De minha mãe escuto as orações
Na alcova, aonde ajoelhei rezando.
Brincam minhas irmãs (doce lembrança!…),
10 Na sala de jantar… Ai! mocidade,
És tão veloz, e o tempo não descansa!
Oh! sonhos, sonhos meus de claridade!
Como é tardia a última esperança!…
Meu Deus, como é tamanha esta saudade!…
(José Bonifácio, o Moço. Poesias. São Paulo:
Conselho Estadual de Cultura, 1962)
Questão 04
Em nota de rodapé ao Soneto de José Bonifácio, o Moço, os organizadores da edição mencionada, Alfredo Bosi e Nilo Scalzo,
fazem o seguinte comentário: “Talvez tenha-se inspirado neste soneto o parnasiano Luís Guimarães Jr., ao compor o famoso
‘Visita à casa paterna’.” Releia os poemas atentamente e, em seguida,
a) enuncie o tema comum aos dois textos;
b) indique dois aspectos da forma poemática (versificação, rimas, estrofes) em que haja identidade entre os dois poemas.
Resolução:
a) O tema de ambos os textos é a saudade do convívio familiar, despertada por uma visita à casa onde o eu lírico
passara a juventude. Trata-se de uma tópica largamente praticada no Romantismo, em que a infância feliz do passado
é contraposta ao presente da vida madura, marcada pela melancolia e pelo sentimento de perda.
b) Os dois textos são organizados na forma fixa do soneto, cuja estrutura é determinada pela disposição de 14 versos,
agrupados em duas estrofes de quatro versos (quartetos), seguidas por outras duas de três versos (tercetos). Ambos são
compostos com versos decassílabos e com a mesma disposição de rimas, que pode ser representada pelo esquema
ABBA/ABBA/CDC/DCD.
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Questão 05
Uma das semelhanças mais notáveis entre os dois poemas está justamente nas personagens evocadas: pai, mãe, irmãs. Com
base nesta informação,
a) estabeleça a diferença entre Soneto e Visita à Casa Paterna quanto ao modo de aludirem ao pai de família;
b) aponte, no poema de Luís Guimarães Jr., uma personagem que não é referida no de José Bonifácio.
Resolução:
a) No “Soneto”, de José Bonifácio, o Moço, a figura do pai de família é evocada diretamente, por meio da expressão “meu
pai”. No soneto de Luís Guimarães Junior, a mesma figura é evocada indiretamente, por meio da expressão “lar paterno”.
Em outras palavras, no primeiro caso, de modo substantivo; no segundo, adjetivo.
b) A personagem que está presente no poema de Luís Guimarães Junior e ausente do “Soneto”, de José Bonifácio, o
Moço, é o “Gênio carinhoso e amigo”, que toma o eu lírico pela mão e o acompanha na visita à casa.
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Questão 06
Para atender a necessidades de ritmo e de rima, os poetas praticam com naturalidade e freqüência inversões e deslocamentos
no padrão de disposição dos termos na oração (sujeito, verbo, complementos). Partindo desta constatação, analise a estrutura
sintática das frases “Brincam minhas irmãs na sala de jantar” e “Chorava em cada canto uma saudade” e, logo após,
a) reescreva-as na ordem que seus termos apresentariam de acordo com o padrão mencionado;
b) demonstre as identidades que há entre as duas orações no que diz respeito às funções sintáticas dos termos que as cons-
tituem.
Questão 07
José Bonifácio, o Moço, era um poeta romântico, enquanto Luís Guimarães Jr. era um parnasiano com raízes românticas. Os
dois poemas apresentam características que servem de exemplo para tais observações. Levando em conta esse comentário,
a) identifique um traço típico da poética romântica presente nos dois poemas;
b) aponte, em Visita à Casa Paterna, um aspecto característico da concepção parnasiana de poesia.
Resolução:
a) A estética romântica apresenta-se, em ambos os poemas, de maneira bastante evidente. Poder-se-iam arrolar os
seguintes traços:
• A exacerbação do sentimentalismo: “Entrei chorando / De quarto em quarto, em busca de ilusões!”, exclama o
eu lírico de Soneto, enquanto em Visita à Casa Paterna se lê: “O pranto / Jorrou-me em ondas...”
• O apelo à infância como paraíso perdido de um eu lírico agora (na maturidade) entristecido, que ecoa os versos do
“poeta da infância”, Casimiro de Abreu: em José Bonifácio, “Ai! mocidade, / És tão veloz, e o tempo não descansa!”;
em Luís Guimarães Junior, “Depois de um longo e tenebroso inverno, / Eu quis também rever o lar paterno, / O meu
primeiro e virginal abrigo:”
• A projeção da subjetividade do eu lírico sobre todas as coisas que o rodeiam — nos dois poemas, especificamente
sobre a casa paterna: no Soneto, “Por toda a parte as pálidas visões! / Por toda parte as lágrimas falando!”; em Visita
à Casa Paterna: “Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade.”
• O culto do sonho e da ilusão: “Entrei chorando / De quarto em quarto, em busca de ilusões!” e “Oh! sonhos, sonhos
meus de claridade!”, lê-se no poema de José Bonifácio; no de Luís Guimarães Junior: “Uma ilusão gemia em cada
canto” e “Um Gênio carinhoso e amigo, / O fantasma, talvez do amor materno.”
• O culto da saudade: “Meu Deus, como é tamanha esta saudade!...” e “Chorava em cada canto uma saudade.”
• A referência à mãe e à irmã como símbolos de inocência: “Brincam minhas irmãs (doce lembrança!...)” está em
Soneto e “Minhas irmãs e minha mãe...” em Visita à Casa Paterna.
b) Em rigor, do ponto de vista do conteúdo, o poema Visita à Casa Paterna é absolutamente romântico. Há, no entanto,
sutis traços parnasianos na sua estruturação poética: a insistência na rima rica (entre palavras de classes gramaticais
diferentes): antigo/abrigo; inverno/paterno; amigo/comigo; quanto/pranto; e, até mesmo, na presença de uma rima pre-
ciosa (uma locução com uma palavra): há-de/saudade.
Para formar a rima preciosa, Luís Guimarães Junior lança mão de um torneio lingüístico típico do preciosismo
parnasiano: “Resistir quem há-de?”
Outro traço, que não é necessariamente parnasiano, mas de predileção dessa escola, é a escolha da forma fixa do
soneto, que os românticos não valorizavam tanto, embora não o desprezassem completamente, como se pode observar
no poema de José Bonifácio.
As questões de números 08 a 10 tomam por base o poema Lisbon Revisited, do heterônimo Álvaro de Campos do poeta moder-
nista português Fernando Pessoa (1888-1935), e a letra da canção Metamorfose Ambulante, do cantor e compositor brasileiro
Raul Seixas (1945-1989).
Lisbon Revisited
(1923)
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Metamorfose Ambulante
Prefiro ser essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
05 Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Sobre o que é o amor
10 Sobre que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
15 Lhe faço amor
eu sou um ator…
É chato chegar a um objetivo num instante
Eu quero viver nessa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
20 Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Sobre o que é o amor
Sobre que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor
Questão 08
O poema Lisbon Revisited (1923) e a canção Metamorfose Ambulante (1973) identificam-se por alguns aspectos formais e
por focalizarem como tema a atitude de rebeldia do indivíduo aos modelos e padrões culturais que lhe são impostos. Releia-os
com atenção e, a seguir,
a) servindo-se de uma escala em cujos extremos estejam atitude eufórica (sensação de bem-estar e de alegria) e atitude dis-
fórica (sensação de mal-estar, ansiedade, inquietação), demonstre qual dos dois textos está mais próximo do pólo da ati-
tude disfórica;
b) explique em que medida o verso de número 16 de Metamorfose Ambulante sintetiza o conteúdo da canção.
Resolução:
a) Ao rejeitar qualquer tipo de interferência do outro (do social) no pessoal (no individual), o enunciador do texto I
manifesta transparentemente sentimento de disforia diante dos valores impostos pela sociedade e de euforia diante dos
valores opostos, isto é, livres das coerções sociais.
Como o texto se estrutura sobre reiteradas negações de todo e qualquer valor do universo social, fica evidente que, nele,
a disforia predomina sobre a euforia.
b) O texto II se estrutura de modo diferente, apesar de também operar com a oposição entre individualidade e cole-
tividade (a individualidade é vista como “dinâmica”, responsável pela mudança; a coletividade, como “estática”, respon-
sável pela conservação dos valores): o enunciador não estabelece explicitamente o desacordo entre os dois universos,
fazendo referência apenas a seus próprios valores, que afirma em todo o percurso da canção. Trata-se, portanto, de uma
atitude eufórica, já que marcada pela afirmação do que é considerado positivo.
A idéia de mudança é bem figurativizada pelo “ator”, que deve ser lido como aquele que age, trocando incessantemente
de papel nas encenações de que é parte. O “ator”, assim, é a própria encarnação da idéia de “metamorfose ambulante”.
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Questão 09
Tanto no poema de Fernando Pessoa como na canção de Raul Seixas se observa o recurso intenso às repetições. Ciente deste
fato,
a) localize o verso de Metamorfose Ambulante que apresenta repetição insistente de uma mesma palavra e defina o efeito
expressivo obtido pelo autor com essa repetição;
b) considerando que o advérbio não é uma das palavras mais repetidas ao longo de Lisbon Revisited, estabeleça a relação
semântica que a repetição dessa palavra tem com a atitude do eu-poemático ante os padrões sociais.
Resolução:
a) O verso 34 de “Metamorfose ambulante” repete quatro vezes o adjetivo “velha”. Essa repetição produz um efeito de
intensificação e reforça a posição ideológica do enunciador, que é refratário a todo tipo de opinião cristalizada. As quatro
ocorrências do adjetivo “velha” enfatizam — tanto no plano da expressão quanto no do conteúdo — a idéia de que ter
“opinião formada sobre tudo” é algo antiquado, ultrapassado, censurável, disfórico.
b) O eu-poemático de “Lisbon Revisited”, por um lado, recusa o que sociedade lhe impõe e, por outro, quer o que ela não
lhe pode oferecer. Assim, sua postura diante dos padrões sociais é de rebeldia, de afrontamento, de negação. A repetição
do advérbio “não”, portanto, reforça o traço semântico de rejeição aos valores institucionalizados que caracteriza a atitude
do eu-poemático.
Resolução:
a) Trata-se do uso reiterado do modo imperativo, que ocorre tanto na forma afirmativa (“Tirem-me daqui a metafísica!”)
quanto na forma negativa (“Não me falem em moral.”).
b) A incorreção gramatical se dá pela superposição de duas pessoas gramaticais (2ª e 3ª) para indicar uma única
referência: “eu te odeio” / “lhe tenho amor”. Assim, o poeta poderia optar por uma das formas:
“Se hoje eu a/o odeio amanhã lhe tenho amor.”
ou
“Se hoje eu te odeio amanhã tenho-te amor.”
Observação:
Ao permutar o lhe pelo te, ocorreria um choque entre duas sílabas iguais (te tenho), o que, no Português, é sempre
dissonante. Por isso preferimos a ênclise à próclise, na segunda opção.
Autoridade em Ética
Pode-se dizer, em tese, que a essência da ética provém da pressão da comunidade sobre o indivíduo. O homem pouco tem
de gregário, e nem sempre sente, instintivamente, os desejos comuns a sua grei. Esta, ansiosa para que o indivíduo aja no seu
interesse, tem inventado vários artifícios com o fim de harmonizar os interesses individuais com os seus próprios. Um destes é
o governo, outro é a lei e o costume, e o outro é a moral. A moral torna-se uma força eficiente de duas maneiras: primeiro, através
do louvor e da censura dos que o cercam e das autoridades; e segundo, através do autolouvor e da autocensura, os quais são
chamados de “consciência”. Por meio destas várias forças — governo, lei, moral — o interesse da comunidade se faz sentir sobre
o indivíduo. [...]
Chego agora a meu último problema, que se relaciona com os direitos do indivíduo, em contraposição aos da sociedade. A
ética, nós o dissemos, é parte de uma tentativa para tornar o homem mais gregário do que a natureza o fez. As pressões que a
moral exerce sobre o indivíduo são, pode-se dizer, devidas ao gregarismo apenas parcial da espécie humana. Mas isto é uma
meia verdade. Muitas de suas melhores cousas vêm do fato de não ser ela completamente gregária. O homem tem seu valor
intrínseco, e os melhores indivíduos fazem contribuições para o bem geral que não são solicitadas e que, muitas vezes, chegam
a sofrer reação por parte do resto da comunidade. É, pois, uma parte essencial da busca do bem geral, o permitir aos indivíduos
liberdades que não sejam, evidentemente, maléficas aos outros. É isto que dá origem ao permanente conflito entre a liberdade
e a autoridade, e estabelece limites ao princípio de que a autoridade é a fonte da virtude.
(Bertrand Russell. A sociedade humana na ética e na política.
Título original: Human society in Ethics and Politics.
Tradução de Oswaldo de Araujo Souza. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1956)
PROPOSIÇÃO
A atuação do homem na sociedade, mediada por padrões e modelos de comportamento e sujeita a atritos e tensões entre os
interesses da comunidade e os dos indivíduos, pode assumir as mais variadas formas, que vão do puro e simples enquadramen-
to até à mais exacerbada rebeldia. Os dois trechos apresentados focalizam essa questão sob os pontos de vista pedagógico (Paulo
Freire) e ético (Bertrand Russell).
Tomando como base de reflexão, se achar necessário, os textos mencionados, a letra de Raul Seixas e o poema de Fer-
nando Pessoa (Álvaro de Campos), bem como sua própria experiência e opinião, escreva uma redação de gênero disserta-
tivo sobre o tema
OS PADRÕES SOCIAIS E A LIBERDADE DO INDIVÍDUO.
Enquadramento Rebeldia
×
puro e simples extremada
A defesa do enquadramento absoluto implica a negação total da liberdade individual e, com isso, inviabiliza qualquer
tipo de contribuição que o indivíduo possa trazer ao seu meio (“os silenciados não mudam o mundo”). A defesa da rebel-
dia desenfreada, por sua vez, acarreta aceitar que o indivíduo dasacate todas as convenções e, com isso, promova o desba-
ratamento da ordem social, imprescindível até mesmo para definir os contornos da subjetividade.
Entre esses dois extremos, o candidato poderia relativizar as posições e sustentar a tese de que a liberdade é uma
questão de grau, admitindo a conveniência de uma liberdade individual circunstanciada ou de uma adesão crítica e par-
cial aos padrões sociais.
Os textos apresentados pela Banca oferecem algumas considerações bastante pertinentes para a defesa desses posi-
cionamentos mais matizados.
Do trecho de Paulo Freire, destacamos as seguintes idéias:
• Sem nenhum traço de rebeldia não ocorre a individualização, isto é, a rebeldia é requisito ao processo de autonomia.
Quando ela assume uma intenção criativa, contribui para a revisão dos costumes sociais e a definição da personali-
dade.
• A liberdade individual só se percebe como verdadeira (só se “autentica”) por meio do contraste com a autoridade
socialmente constituída.
• Também essa autoridade deve, por sua vez, assumir certos limites, abstendo-se de impor pela força e pelo medo
seus modelos comportamentais. O ideal é que ela propicie o compromisso com os valores éticos universais, fazen-
do o indivíduo assumi-los.
• Somente o indivíduo comprometido com os valores da sociedade pode mudá-la; não contribui para a transformação
aquele que é reprimido.
Do texto de Bertrand Russell, podem ser recolhidas as seguintes idéias:
• As diversas manifestações da autoridade (governo, lei, costume, moral) constrangem o indivíduo a agir em confor-
midade com os interesses coletivos, abrindo mão de seus interesses e instintos mais egoístas.
• Esse constrangimento se faz pela pressão externa, mas também pela autocensura — ou seja, os valores da cole-
tividade são introjetados no indivíduo.
• Não se submeter aos padrões, apesar de não ser bem tolerado pela comunidade, freqüentemente origina importan-
tes transformações que beneficiam a coletividade. Por isso, convém ao bem geral tolerar todas as liberdades indivi-
duais que não sejam nocivas ao outro.
Além disso, apelando para a sua experiência, o candidato ainda poderia questionar a validade de se falar em valores so-
ciais num mundo tão fraturado e desigual como o presente. Muitas vezes valores tidos como coletivos são postos a serviço de
interesses de setores sociais que visam à manutenção do status quo. Na mesma linha de análise, caberia ainda denunciar o
cinismo de esperar dos marginalizados a adesão aos valores morais de uma sociedade que os exclui.