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ZARATUSTRA

Alexandra Levasseur - destino (detalhe)


  – por Rafael Trindade – Razão Inadequada*

“Os figos caem das árvores, são bons e doces; ao caírem rasga-se a sua
pele rubra. Um vento do norte sou eu para os figos maduros.
Assim, como figos maduros vos caem estes ensinamentos, meu amigos:
bebei do seu sumo e da sua doce polpa! É outono ao redor, e puro céu e
tarde”
– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra – das ilhas bem aventuradas.

Nietzsche diz: “torna-te quem tu és“, ele mesmo segue a fórmula em seu livro
Ecce Homo. Mas o que busca aquele que quer “tornar-se aquilo que é”? Será que
queremos então chegar em algum lugar? Já vimos que tal tarefa está para além
do bem e do mal, mas qual seria seu percurso (in)adequado? Temos a resposta:
ela é, antes de mais nada, uma vivência e, em segundo lugar, um cultivo. Certo,
mas aonde queremos chegar? E como sabemos que finalmente nos “tornamos
aquilo que somos”?

“Ah, mar e destino! Rumo a vós devo agora descer!


Acho-me diante de minha mais alta montanha e de minha mais longa
caminhada: por isso devo antes descer mais profundamente do que
jamais desci: – descer mais profundamente na dor do que jamais desci,
até sua mais negra maré! Assim quer meu destino: pois bem, estou
pronto.
De onde vêm as mais altas montanhas?, perguntei certa vez. Então
aprendi que vêm do mar.
Esse testemunho está inscrito em suas rochas e nas paredes de seus
cumes. É a partir do mais profundo que o mais elevado deve chegar à sua
altura”
– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, O Andarilho.

Nietzsche mergulhou fundo na cultura europeia para fazer o diagnóstico de seu


tempo: o homem está cansado, esgotado. Nós lhe demos uma finalidade e
antecipamos tudo que poderia/deveria fazer! O homem tornou-se um universal!
Um Deus! Um caminho! Quando Nietzsche diz “Torna-te quem tu és”, nem por um
segundo quer encaixar o ser humano neste modelo de homem, universalmente
reconhecido e validade pelo senso comum. Muito pelo contrário, o grande perigo,
para o filósofo alemão, sempre foi o nojo do homem, do homem comum, o
homem europeu, o homem médio. Por isso queremos superar o homem! A ele foi
dado um objetivo fora dele, como se ele fosse imperfeito e precisasse buscá-lo em
outro mundo.

Podemos ver então que a tarefa “torna-te quem tu és” é incomensurável, está
para além do que podemos compreender ainda dentro da moral! Não podemos
dizer o que o homem é nem o que deve experimentar, muito menos cultivar, para
tornar-se aquilo que ele é. Mas sabemos que ele deve abandonar este último
ídolo: a humanidade, o bem e o mal. Aquilo que se “é” só pode ser entendido no
sentido de um destino, uma necessidade, não uma possibilidade ou um dever.

“No reencontro – A: Eu ainda o compreendo bem? Você está buscando?


Onde se acham, no meio do mundo real de agora, seu canto e sua estrela?
Onde pode você deitar-se ao sol, de forma que também lhe chegue um
excedente de bem-estar e sua existência se justifique? […] B: Eu quero
mais, não sou um buscador. Quero criar para mim meu próprio sol”
– Nietzsche, Gaia Ciência, §320
Alexan
dra Levasseur
A experiência do niilismo dá conta de mostrar que os valores que aí estão suprem
apenas nossa necessidade de sobrevivência (às vezes nem isso). Desta maneira,
estamos sempre buscando algo fora de nós, como se um dia tudo fosse se
unificar, se completar, uma reedição do julgamento final cristão. Por isso a
experiência do Eterno Retorno é vivido com tanto horror pelo homem religioso,
medíocre, comum, neurótico: “Esta vida, de novo e de novo? Não, por favor, não…
é muito sofrimento, me deem um céu, um lugar para descansar“. Apenas a
transvaloração de todos os valores torna possível uma nova experiência com o
real, com a vida, com aquilo que somos, apenas ela pode superar o homem
cansado de si mesmo. Sim, porque apenas nela está contida a fórmula “torna-te
quem tu és”: depois do Camelo e do Leão está a Criança, aquela que aprendeu a
dizer Sim, aquela que, mesmo que em seu processo contínuo, simplesmente é
(Três Metamorfoses do Espírito).

Surpreendente? Não… apenas a suspensão da intencionalidade e desta razão


pequena que quer dar deveres a nós. O que o “ser” quer aqui é sua própria
afirmação! Existe uma confiança renovada no mundo ao seguir este caminho. Não
há opção! Até aquilo que não queríamos é necessário querer. Como mar de forças
que se afirma. Desejar a afirmação pura! Seja o que for, seja ela qual for, em nós,
nos outros, no universo. Apenas assim nos tornamos um pedaço de fatalidade.

Não somos covardes, não precisamos instrumentalizar a vida por medo ou por
incapacidade. Suspendemos todas as mediações para enfrentar o mundo em sua
máxima possibilidade, num mergulho vertical. E se todas as instituições até agora
não estivessem mais do que nos enganando? E se todos os ídolos que nos fizeram
ajoelhar tivessem pés de barro? Estamos cansados deste mundo caduco! A vida
em nós, o sentimento de potência em nós, luta contra tudo isso.

“Nós, porém, queremos nos tornar aqueles que somos – os novos, únicos,
incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos!” 
– Nietzsche Gaia Ciência, §335.

A paixão pelo conhecimento se torna aqui muito maior que a ânsia por julgar a
vida. Afinal, a vida não pode mais receber uma nota de zero à dez, como se
pudesse ser reprovada ou não em uma avaliação. Toda vida, independe de qual
seja, se afirma sempre o máximo que pode. É para isso que Nietzsche diz Sim!
Mas é neste mesmo mar de forças que alguém torna-se quem é! Mergulhando de
cabeça e apropriando-se delas, afirmando a afirmação, que cria, que é dadivosa,
que é mutante! É este sim que abre o homem para o desconhecido, para a
transmutação! Não é possível especificar o que é preciso atravessar para nos
tornarmos o que somos, a tarefa de “tornar-se o que se é” é inteiramente aberta e
fluída! Ele deixa de ser uma linha reta e encontra as linhas de fuga que antes
sequer imaginava existir.

“Neste ponto já não há como eludir a resposta à questão de como alguém


se torna o que é. E com isso toco na obra máxima da arte da preservação
de si mesmo – do amor de si… Pois admitido que a tarefa, a destinação, o
destino da tarefa ultrapasse em muito a medida ordinária, nenhum perigo
haveria maior do que perceber-se com essa tarefa. Que alguém se torna o
que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é”
– Nietzsche, Ecce Homo, Por que sou tão inteligente, §9.

É preciso tornar-se aquilo que se é, precisamente aquilo que se é! Este é o destino


inevitável! Não há outra possibilidades porque assim será queiramos ou não! E o
que somos? Já sabemos: Vontade de Potência e nada além disso! Toda a questão
está aí, estas forças que se afirmam em nós, terão vazão? Para onde? Escavarão
um buraco infinito em nosso interior e nos corroerão por dentro? Ou serão forças
de criação de algo novo, inédito, expansivo?

O destino está em que estas forças são afirmação pura, seja para onde elas
desaguarem. Nietzsche joga o homem de volta ao mundo, a este mundo, nu e
cru, e diz: “agora é necessário que tu o afirmes, com todas as suas forças! Apenas
assim tu poderás tornar-te aquilo que tu és!“. Em troca ele nos dá seus escritos,
que não são um manual de como devemos ser e nos comportar, mas alarga o
horizonte de possibilidades. “Retribui-se mal um mestre quando se permanece
sempre e somente discípulo” (Zaratustra, Da Virtude Dadivosa)

Já sabemos, não há prescrição! Talvez apenas uma: viver! Mas viver levando em
conta que a vida procura afirmar-se. É no fluxo da vida que se dá o cultivo das
vivências, é no cultivo dos devires que o homem torna-se um destino. O paradoxo
é o mesmo do nômade, que leva a casa nas costas. “Torna-te quem tu és“: ou
seja, aproprie-se das forças que o constituem, fique atento para aquilo que entra
e sai, repare na superfície da pele, nos poros, carregue a diferença consigo. Quem
disse que os conceitos filosóficos são abstratos e inúteis? Com certeza foi alguém
que não leu Nietzsche e muito menos teve a chance de “tornar-se aquele que é”.
Um conceito é uma máquina à qual nos acoplamos, é uma ferramenta, é um
martelo, é um pincel, é um cinzel. E o pensamento é prática de si! Por isso, não
podemos e nem devemos saber de antemão no que iremos nos tornar.
Alexand
ra Levasseur
E quando sabemos que chegamos? A resposta pode ser esboçada no amor-fati.
Somente quando a mais pesada das tarefas se torna leve é que sabemos que
chegamos! Com um grande sorriso, a parte torna-se uma só com o todo! E, enfim
o “assim foi”, transmuta-se em “assim eu quis”. O ser parte torna-se tomar parte.
Somente deixando esta apertada casca chamada cultura, moral, bons costumes,
homem, podemos enfim caminhar com mais leveza, talvez até como dançarinos!
O amor-fati é a prova de que nos tornamos aquilo que somos: “eternamente
gratos por nossa existência“, com suas dores, seus prazeres, e tudo que a
compõem. A vida não é mais boa apesar da dor ou apesar dos pesares, ela é tudo
que pode ser, e isso é ótimo! Apenas quem diz “Sim” para si mesmo e esta
existência aprendeu a ser aquilo que é.
“‘Querer’ algo, ‘empenhar-se’ por algo, ter em vista um ‘fim’, um ‘desejo’
– nada disso conheço por experiência própria. Ainda neste momento olho
para o meu futuro – um vasto futuro – como para um mar liso: nenhum
anseio encrespa. Não quero em absoluto que algo se torne diferente do
que é; eu mesmo não quero tornar-me diferente…”
– Nietzsche, Ecce Homo, por que sou tão inteligente, §9

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