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“Os figos caem das árvores, são bons e doces; ao caírem rasga-se a sua
pele rubra. Um vento do norte sou eu para os figos maduros.
Assim, como figos maduros vos caem estes ensinamentos, meu amigos:
bebei do seu sumo e da sua doce polpa! É outono ao redor, e puro céu e
tarde”
– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra – das ilhas bem aventuradas.
Nietzsche diz: “torna-te quem tu és“, ele mesmo segue a fórmula em seu livro
Ecce Homo. Mas o que busca aquele que quer “tornar-se aquilo que é”? Será que
queremos então chegar em algum lugar? Já vimos que tal tarefa está para além
do bem e do mal, mas qual seria seu percurso (in)adequado? Temos a resposta:
ela é, antes de mais nada, uma vivência e, em segundo lugar, um cultivo. Certo,
mas aonde queremos chegar? E como sabemos que finalmente nos “tornamos
aquilo que somos”?
Podemos ver então que a tarefa “torna-te quem tu és” é incomensurável, está
para além do que podemos compreender ainda dentro da moral! Não podemos
dizer o que o homem é nem o que deve experimentar, muito menos cultivar, para
tornar-se aquilo que ele é. Mas sabemos que ele deve abandonar este último
ídolo: a humanidade, o bem e o mal. Aquilo que se “é” só pode ser entendido no
sentido de um destino, uma necessidade, não uma possibilidade ou um dever.
Não somos covardes, não precisamos instrumentalizar a vida por medo ou por
incapacidade. Suspendemos todas as mediações para enfrentar o mundo em sua
máxima possibilidade, num mergulho vertical. E se todas as instituições até agora
não estivessem mais do que nos enganando? E se todos os ídolos que nos fizeram
ajoelhar tivessem pés de barro? Estamos cansados deste mundo caduco! A vida
em nós, o sentimento de potência em nós, luta contra tudo isso.
“Nós, porém, queremos nos tornar aqueles que somos – os novos, únicos,
incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos!”
– Nietzsche Gaia Ciência, §335.
A paixão pelo conhecimento se torna aqui muito maior que a ânsia por julgar a
vida. Afinal, a vida não pode mais receber uma nota de zero à dez, como se
pudesse ser reprovada ou não em uma avaliação. Toda vida, independe de qual
seja, se afirma sempre o máximo que pode. É para isso que Nietzsche diz Sim!
Mas é neste mesmo mar de forças que alguém torna-se quem é! Mergulhando de
cabeça e apropriando-se delas, afirmando a afirmação, que cria, que é dadivosa,
que é mutante! É este sim que abre o homem para o desconhecido, para a
transmutação! Não é possível especificar o que é preciso atravessar para nos
tornarmos o que somos, a tarefa de “tornar-se o que se é” é inteiramente aberta e
fluída! Ele deixa de ser uma linha reta e encontra as linhas de fuga que antes
sequer imaginava existir.
O destino está em que estas forças são afirmação pura, seja para onde elas
desaguarem. Nietzsche joga o homem de volta ao mundo, a este mundo, nu e
cru, e diz: “agora é necessário que tu o afirmes, com todas as suas forças! Apenas
assim tu poderás tornar-te aquilo que tu és!“. Em troca ele nos dá seus escritos,
que não são um manual de como devemos ser e nos comportar, mas alarga o
horizonte de possibilidades. “Retribui-se mal um mestre quando se permanece
sempre e somente discípulo” (Zaratustra, Da Virtude Dadivosa)
Já sabemos, não há prescrição! Talvez apenas uma: viver! Mas viver levando em
conta que a vida procura afirmar-se. É no fluxo da vida que se dá o cultivo das
vivências, é no cultivo dos devires que o homem torna-se um destino. O paradoxo
é o mesmo do nômade, que leva a casa nas costas. “Torna-te quem tu és“: ou
seja, aproprie-se das forças que o constituem, fique atento para aquilo que entra
e sai, repare na superfície da pele, nos poros, carregue a diferença consigo. Quem
disse que os conceitos filosóficos são abstratos e inúteis? Com certeza foi alguém
que não leu Nietzsche e muito menos teve a chance de “tornar-se aquele que é”.
Um conceito é uma máquina à qual nos acoplamos, é uma ferramenta, é um
martelo, é um pincel, é um cinzel. E o pensamento é prática de si! Por isso, não
podemos e nem devemos saber de antemão no que iremos nos tornar.
Alexand
ra Levasseur
E quando sabemos que chegamos? A resposta pode ser esboçada no amor-fati.
Somente quando a mais pesada das tarefas se torna leve é que sabemos que
chegamos! Com um grande sorriso, a parte torna-se uma só com o todo! E, enfim
o “assim foi”, transmuta-se em “assim eu quis”. O ser parte torna-se tomar parte.
Somente deixando esta apertada casca chamada cultura, moral, bons costumes,
homem, podemos enfim caminhar com mais leveza, talvez até como dançarinos!
O amor-fati é a prova de que nos tornamos aquilo que somos: “eternamente
gratos por nossa existência“, com suas dores, seus prazeres, e tudo que a
compõem. A vida não é mais boa apesar da dor ou apesar dos pesares, ela é tudo
que pode ser, e isso é ótimo! Apenas quem diz “Sim” para si mesmo e esta
existência aprendeu a ser aquilo que é.
“‘Querer’ algo, ‘empenhar-se’ por algo, ter em vista um ‘fim’, um ‘desejo’
– nada disso conheço por experiência própria. Ainda neste momento olho
para o meu futuro – um vasto futuro – como para um mar liso: nenhum
anseio encrespa. Não quero em absoluto que algo se torne diferente do
que é; eu mesmo não quero tornar-me diferente…”
– Nietzsche, Ecce Homo, por que sou tão inteligente, §9