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LE MONDE

BRASIL
2 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

NYT A SERVIÇO DO LOBBY DA GUERRA

Quem quer
prolongar a guerra
no Afeganistão?
POR SERGE HALIMI*

O
s soldados norte-americanos já havia desempenhado um papel de-
de 18 anos que partem hoje pa- cisivo na disseminação de mentiras
ra a guerra no Afeganistão ain- relativas às “armas de destruição em
da não eram nascidos quando massa” de Saddam Hussein.3 A psico-
o confronto foi desencadeado. Em se antirrussa desse grande jornal li-
2012, Donald Trump já havia concluí- beral, aliás, salta aos olhos de quem
do: “Está na hora de deixar o Afega- quer que pesquise os termos “Rússia”
nistão”.1 Não ficou provado que ele ou “Putin” em um site de buscas.
atingiu seus objetivos melhor que seu O furo afegão – do qual o New York
antecessor, Barack Obama. Times parecia já duvidar oito horas
Cada uma das tentativas de de- após tê-lo publicado... – levanta ou-
sengajar os Estados Unidos militar- tras questões. Quem se beneficia des-
mente de qualquer país – Síria, Líbia, sa “informação” no momento em que
Coreia, Alemanha – provoca uma ba- a retirada das últimas tropas parecia
talha em Washington. Logo em se- quase acertada? Os Estados Unidos
guida, o lobby das guerras se recria: têm motivos para se indignar de que
“Os russos estão lá! Os russos estão um de seus adversários declarados
chegando!”. O orçamento militar dos ajudou insurgentes afegãos, visto que
Estados Unidos (US$ 738 bilhões em seu aliado, o Paquistão, faz o mesmo © Cesar Habert Paciornik
2020) conseguiu representar mais de há muito tempo e que eles próprios,
dez vezes o da Rússia, atiçando os entre 1980 e 1988, entregaram aos
ânimos de Moscou o suficiente para mujahidin em guerra com Moscou nos informar que outra agência de in- *Serge Halimi é diretor do Le Monde
que republicanos e democratas ui- armas sofisticadas, graças às quais teligência norte-americana, a Agên- Diplomatique.
vassem juntos demonstrando seu pa- estes últimos mataram milhares de cia de Segurança Nacional (NSA), não
vor. E podem contar com o apoio edi- soldados soviéticos? Por fim, como dava nenhum crédito ao furo da CIA?4 1   T witter, 27 fev. 2012.
torial do New York Times. explicar que o jornal nova-iorquino, Em 1º de julho, uma grande coali- 2   
“ Russia offered afghans bounty to kill U.S.
troops, officials say” [Rússia ofereceu recom-
Em 26 de junho, o jornal nova-ior- que não deixou de nos oferecer gran- zão de parlamentares, democratas e pensas aos afegãos para matar soldados nor-
quino espalhou um vazamento da des retratos comoventes de três mari- republicanos, no entanto, se valeu te-americanos, dizem oficiais], The New York
CIA segundo o qual a Rússia teria pa- nes supostamente vítimas das “re- das “revelações” do New York Times Times, 27 jun. 2020.
3   C f. Fake News, une fausse épidémie? [Fake
go recompensas a insurgentes afe- compensas russas” – um tinha um para tornar mais difícil uma retirada news, uma falsa epidemia?], Manières de Voir,
gãos para que matassem soldados bigode grande e fazia musculação, do Afeganistão. Porém, o melhor ago.-set. 2020.
norte-americanos.2 Contudo, todos outro adoraria rever o filme Guerra meio de impedir que soldados es- 4   NSA differed from CIA on Russia bounty intel-
ligence [NSA diverge da CIA sobre inteligên-
se lembravam de que no mês anterior nas estrelas, e o último amava suas trangeiros continuem morrendo por cia das recompensas da Rússia], The Wall
à Guerra do Iraque o New York Times três filhas –, tenha “se esquecido” de lá seria que eles saíssem dali.  Street Journal, Nova York, 1o jul. 2020.
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

O colapso de um observado em casos tão diversos co-


mo os de Paris (França), Arenys de
Munt (Espanha) e Almaty (Kazakhs-
esses interesses. Elas precisam da voz
do usuário, do beneficiário. Impõe-se
a democratização da gestão dessas

modelo de gestão
tan). Em alguns casos os novos ope- políticas.
radores públicos também aumenta- Com a remunicipalização da ges-
ram dramaticamente o investimento tão da água, Paris criou um conselho
nos sistemas de água, como é o caso com a participação de usuários, tra-
de Grenoble (França), Buenos Aires balhadores em saneamento, cientis-
POR SILVIO CACCIA BAVA (Argentina) e Arenys de Munt tas e representantes públicos, uma
(Espanha)”.3 inovação democratizadora que abre
A revalorização do papel do Esta- uma nova relação do governo com a

N
a segunda metade dos anos Depois de 25 anos de gestão priva- do como provedor de serviços públi- cidadania.
1990, o Brasil se destacou no da da água por um duopólio, por de- cos está no centro desse processo de No Brasil, para nossa desgraça, te-
cenário internacional ao im- cisão legislativa, em 2010, a Prefeitu- construção de novos bens comuns. mos um governo federal que conti-
plementar um dos maiores ra de Paris retomou a administração Água, moradia, saúde, educação, nua a defender, mesmo em plena
programas de privatização dos servi- direta da água. As razões para a reto- transporte, segurança alimentar, pandemia, as políticas de austerida-
ços públicos do mundo. O governo de mada do serviço público: os preços serviço social são direitos humanos e de. Na contramão das principais cor-
Fernando Henrique Cardoso, com o subiram de forma continuada duran- precisam ser garantidos para todos. rentes do neoliberalismo, que aca-
Programa Nacional de Desestatiza- te o período e a qualidade do serviço Tornam-se, por essa razão, políticas bam de reconhecer a importância do
ção, passava para as mãos do setor deteriorou-se. A conclusão anuncia- públicas de cobertura universal, isto Estado e do investimento público pa-
privado, além de bancos e estatais da pelos legisladores é de que os inte- é, com garantia de acesso para todos. ra tirar o país do atoleiro, o Ministé-
nas áreas de mineração, siderurgia e resses das empresas privadas são in- Estamos na fronteira de criação/re- rio da Economia quer continuar as
petroquímica, a gestão das teleco- compatíveis com a prestação de um cuperação de bens comuns. reformas de privação de direitos e
municações, da eletricidade, de fer- serviço público. O colapso do modelo baseado na privatizações para destruir o Estado,
rovias, portos e rodovias, abrindo es- Desde o início do século XXI há cobrança da tarifa abre espaço para a ceder o patrimônio público aos inte-
paço também para privatizações na um forte movimento de remunicipa- reestatização desses serviços, para resses privados e reduzir os custos
área do saneamento básico e da dis- lização de serviços públicos na Ale- que sejam financiados pelos impos- das empresas com a mão de obra. In-
tribuição de gás. manha, na França, na Inglaterra, no tos e se tornem de uso universal e teresse público? Zero. 
Para tornar atrativa para o setor Canadá e em municípios dos Estados gratuito, ou seja, se tornem bens co-
privado a exploração desses serviços Unidos. Em 265 municípios, os go- muns. É a reforma tributária cobran- 1   A rmando Castelar Pinheiro e Kiichiro Fukasa-
públicos, o governo reajustou as tari- vernos locais remunicipalizaram a do mais impostos e evitando a sone- ku, “A privatização no Brasil: o caso dos servi-
fas antes das privatizações. As agên- gestão da água nos últimos vinte gação das empresas e dos mais ricos ços de utilidade pública”, OCDE/BNDES,
1999.
cias reguladoras desses serviços, a anos, algo que envolve cerca de 100 que garante esse novo modelo. 2   Júlia Dias Carneiro, “Enquanto Rio privatiza,
partir de então, viram-se controladas milhões de pessoas.2 Para que adquiram essa qualida- por que Paris, Berlim e outras 265 cidades
por representantes do setor privado.1 “Eliminando a lógica de maximi- de de bens comuns, as políticas pú- reestatizam saneamento?”, BBC Brasil, 23
jun. 2017.
Os monopólios e cartéis empresariais zação do lucro, imperativa no setor blicas que se orientam para atender a 3   Sandoval Alves Rocha, “A remunicipalização
passaram a ditar os preços. privado, a remunicipalização da água essas demandas não podem ser fruto dos serviços de água e esgoto é uma
A pressão empresarial, nacional e leva à melhoria do acesso e da quali- apenas do saber técnico. Elas preci- tendência global”, 7 fev. 2020. Disponível
em: https://amazonasatual.com.
internacional, fez o Estado se retirar dade dos serviços de água, bem como sam da participação dos coletivos br/a-remunicipalizacao-dos-servicos-de-a-
das atividades econômicas e deixar a preços mais baixos, o que pode ser que na sociedade civil representam gua-e-esgoto-e-uma-tendencia-global/.
esse espaço para as empresas priva-
das. O interesse público foi substituí-
do pelo interesse privado, que trans-
formou bens públicos comuns em
mercadorias. E, como o objetivo des-
sas empresas é a maximização de seus
lucros, os preços aumentaram conti-
nuamente e os serviços se deteriora-
ram. Afinal, os lucros são distribuídos
para os acionistas e não são reinvesti-
dos na melhoria dos serviços.
Passados 25 anos, agora na contra-
mão dos neoliberais de todo o mundo,
o atual governo brasileiro continua
com os mesmos propósitos de des-
truir o Estado e os mecanismos de re-
gulação pública. Segundo o ministro
da Economia, Paulo Guedes, a inten-
ção é privatizar todas as estatais.
Acontece que não só as privatiza-
ções não trouxeram os benefícios es-
perados de redução de custos e me-
lhoria da gestão e dos serviços, como
também agora as empresas conces-
sionárias estão buscando socorro
junto ao Estado, pois seu modelo de
negócios está em colapso com a pan-
demia. O sistema de pagamento por
© Claudius

tarifas, pelo usuário, está em xeque.


O sistema público de transporte, já
fortemente subsidiado pelo Estado, é
expressão desse colapso.
4 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

CAPA

Bolsonaro, a pandemia O SUBFINANCIAMENTO DAS


POLÍTICAS UNIVERSAIS DE
SAÚDE E EDUCAÇÃO

e a explosão das
Recente análise realizada pelo Inesc
e publicada no relatório “Brasil com
Baixa Imunidade – Balanço do Orça-
mento Geral da União em 2019” reve-

demandas sociais
la que grande parte das políticas so-
ciais e ambientais vem sofrendo
cortes sistemáticos de recursos des-
de o início da austeridade, ampliada
no último ano.
No caso da educação, o estudo
O que estava ruim piorou: o encontro de um governo inapto e irresponsável com mostrou que, em 2019, o que foi efeti-
um vírus altamente contagioso e devastador resultou numa explosão de demandas vamente pago é da ordem de R$ 20 bi-
lhões a menos que em 2014, em ter-
sociais que não encontram no aparato público estrutura e financiamento adequados mos reais. Isso acontece num país
para serem atendidas que apresenta indicadores educacio-
nais sofríveis, haja vista os dados da
última Pesquisa Nacional por Amos-
ESCRITO PELA EQUIPE DO INESC* tra de Domicílios (Pnad Educação)
demonstrando que nada menos que

O
primeiro ano do governo Bol- dos trabalhadores e das trabalhado- que não encontram no aparato públi- 51% da população acima de 25 anos
sonaro foi de múltiplas priva- ras se encontrava na informalidade co estrutura e financiamento ade- não completou a educação básica.
ções para a sociedade brasilei- (38 milhões de pessoas), desempre- quados para serem atendidas. A área da saúde, por seu turno,
ra. As reformas trabalhista e gada (12 milhões de pessoas) ou su- vem sendo afetada por crônico subfi-
previdenciária e as medidas de auste- butilizada (28 milhões de pessoas).1 O CENÁRIO PRÉ-PANDEMIA nanciamento. O orçamento de 2019,
ridade resultaram, entre outras ma- Mas o que estava ruim piorou: o en- Como era de esperar, o aumento da de R$ 127,8 bilhões em termos reais, é
zelas, na queda do PIB per capita em contro de um governo inapto e irres- pobreza – e de sua face mais perversa, semelhante ao de 2014, mas com 7
dólar em 2019 (–3,2%) e na continui- ponsável com um vírus altamente a fome – apareceu já no primeiro ano milhões a mais de pessoas para se-
dade da trajetória de precarização do contagioso e devastador resultou nu- do governo Bolsonaro. Dados divulga- rem atendidas.
trabalho, uma vez que a maior parte ma explosão de demandas sociais dos pela Organização das Nações Uni-
das para a Alimentação e a Agricultura O ACIRRAMENTO DO RACISMO
E MACHISMO ESTRUTURAIS
© Giorgia Massetani

(FAO)2 revelam que, no período 2014-


2016, a prevalência da insegurança Os povos indígenas têm sido um dos
alimentar severa ou grave era de 18,3% principais alvos do governo Bolsona-
da população; nos anos 2018-2019, es- ro. Ainda segundo o estudo do Inesc,
se percentual elevou-se para 20,6%, o a Fundação Nacional do Índio (Funai)
que representa um contingente de perdeu 27% dos recursos correntes
mais de 43 milhões de pessoas que entre 2012 e 2019. Também a Saúde
não se alimentam adequadamente. Indígena sofreu cortes: foram menos
A recessão prolongada foi agrava- 5% no valor autorizado e 16% nos va-
da por políticas governamentais de lores pagos entre 2018 e 2019, além da
cortes orçamentários expressivos e fragilização da participação social.
medidas que acirraram as já abissais Outra terrível expressão do racis-
desigualdades. Menciona-se, por mo institucional é o massacre da ju-
exemplo, a Emenda Constitucional n. ventude negra. Os dados mais recen-
95/2016, conhecida como “Teto de tes do Atlas da Violência (Ipea e
Gastos”, que congelou as despesas Fórum Brasileiro de Segurança Públi-
públicas da União por vinte anos. ca) evidenciam que, em 2017, 36 mil
Outra regra bastante restritiva é a jovens negros foram assassinados,
que fixa anualmente limites para o um recorde nos últimos dez anos.
déficit primário da União. Apesar dessas inaceitáveis desigual-
Um exemplo da atuação irrespon- dades, em 2019 o governo Bolsonaro
sável do governo Bolsonaro desde an- praticamente acabou com o Progra-
tes da pandemia é a diminuição de ma de Enfrentamento ao Racismo e
um dos maiores programas de trans- Promoção da Igualdade Racial – polí-
ferência de renda do mundo. Com tica que já contou com recursos da or-
efeito, apesar do empobrecimento dem de R$ 80 milhões em 2014 e, no
crescente, em 2019, segundo o IBGE,3 ano passado, gastou apenas R$ 15 mi-
13,5% dos domicílios recebiam di- lhões, cinco vezes menos.
nheiro do Programa Bolsa Família. Ignorando um aumento de 7,3%
Essa proporção era de 15,9% em 2012. no número de casos de feminicídio
Outro exemplo significativo foram os em comparação com 2018, o governo
ataques às políticas socioambientais, Bolsonaro não gastou nenhum recur-
que levaram até mesmo o setor em- so em 2019 para a construção das Ca-
presarial brasileiro a enviar carta ao sas da Mulher Brasileira, que atendem
vice-presidente da República, atual mulheres em situação de violência –
presidente do Conselho Nacional da considerando que havia R$ 20 mi-
Amazônia, pedindo que o governo lhões disponíveis para essa atividade.
adotasse ações para superar a crise Crianças e adolescentes também
ambiental. não são poupados da sanha destrui-
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 5

dora do governo Bolsonaro. Como população com casos confirmados cestas básicas e a dificuldade de pessoas que está em risco. Isso por-
mostrou o estudo do Inesc, em 2019 da nova doença. O Brasil se tornou, acesso ao auxílio emergencial. que a pandemia trouxe novas de-
os gastos do Programa de Promoção, em meados de junho, o segundo país Não satisfeito, o governo selou as mandas, que se somam às preexis-
Proteção e Defesa dos Direitos Hu- do mundo com maior número de óbi- políticas de morte para indígenas, tentes. Assim, faz-se necessário
manos da Criança e do Adolescente tos por Covid-19, somente atrás dos quilombolas e povos e comunidades injetar vultosos recursos nas políti-
caíram 27% em termos reais em com- Estados Unidos. A responsabilidade tradicionais vetando 22 itens do PL n. cas públicas para proteger a saúde, a
paração com o ano anterior. do governo federal nas mortes decor- 1.142, que previa a criação de um pla- educação e a renda, mas também pa-
rentes do novo coronavírus é eviden- no de enfrentamento da Covid-19 en- ra dinamizar a economia e pavimen-
O DESMONTE DA ÁREA AMBIENTAL te e pública. O presidente culpabiliza tre esses povos. tar o caminho para a retomada do
Na área ambiental, o desmonte da estados e municípios pela crise eco- crescimento. Deve-se aproveitar a
política foi ganhando contornos mais nômica, desdenha do isolamento so- oportunidade para fortalecer medi-
explícitos com o governo Bolsonaro. cial e propagandeia a utilização de das de preservação do meio ambiente
Foram dezenas de medidas, em sua medicamentos sem comprovação Os efeitos da pandemia e de enfrentamento da crise climáti-
maioria de cunho infralegal, por científica. Esse comportamento se contribuem ainda para ca para que a almejada saída da crise
meio de portarias, decretos e instru- reflete no Ministério da Saúde, que seja de fato sustentável. A sustentabi-
ções normativas, as quais resultaram deveria ser o grande coordenador do
reforçar desigualdades lidade, contudo, somente será garan-
na redução das ações de fiscalização enfrentamento à pandemia, mas que de raça e de etnia tida com políticas de promoção da
do desmatamento na Amazônia, en- até hoje não executou nem metade equidade de raça/etnia e de gênero e
tre outras. Esse desmonte das estru- dos recursos que recebeu exclusiva- com o pleno gozo dos direitos de
turas institucionais foi acompanha- mente para isso, da ordem de R$ 39,7 O AUMENTO DA VIOLÊNCIA crianças, adolescentes e jovens.
do de mudanças no quadro de bilhões. Ademais, dois ministros fo- CONTRA MULHERES E CRIANÇAS Assim, de imediato, urge estender
pessoal, com nomeações, em todos ram demitidos e substituídos por mi- Em decorrência das medidas de iso- o estado de calamidade para 2021 e
os escalões, de militares. A militari- litares sem especialização na área. A lamento social e do consequente revogar medidas de contenção de
zação da política ambiental, sobretu- situação só não é pior porque o país confinamento das famílias em casa, despesas como o teto de gastos e a
do da Amazônia, é um fenômeno que possui o Sistema Único de Saúde a violência contra as mulheres se in- meta para o resultado primário. Sem
caracteriza o atual governo. (SUS), gratuito e universal, que, a tensificou na pandemia. Dados le- essas revogações não haverá retoma-
despeito do descaso do governo fede- vantados pelo Fórum Brasileiro de da possível. É indispensável aprovar
OS IMPACTOS DA PANDEMIA ral, conta com a atuação dos estados Segurança Pública apontam que uma reforma tributária que vá muito
DE COVID-19 E O DESCASO DO e municípios. houve aumento de 22% nos registros além da simplificação de impostos e
GOVERNO BOLSONARO No caso da educação, pode-se di- de casos de feminicídio no Brasil du- que consolide um sistema efetiva-
É nesse cenário desolador que a Co- zer que as desigualdades ficaram rante a pandemia.8 mente progressivo, no qual os mais
vid-19 chega ao Brasil. Além das con- ainda mais escancaradas. Olhando Diante desse quadro, a ministra ricos, que hoje pouco contribuem,
sequências dramáticas da crise sani- apenas para a escola pública, há falta Damares Alves pouco fez. Seu minis- possam de fato participar do desen-
tária, temos um governo que trata de preparo de educadores para lidar tério foi agraciado com recursos da volvimento do país.
com descaso e despreparo a pande- com esse momento e de acesso à in- ordem de R$ 574 milhões, incluindo Por fim, a defesa de uma gover-
mia e os efeitos da recessão ternet ou a equipamentos adequados as verbas destinadas ao enfrenta- nança global democrática e participa-
econômica. para que os educandos acompanhem mento do novo coronavírus, mas exe- tiva é mais do que nunca necessária,
Ainda que, por um lado, as políti- aulas a distância. Também grave é a cutou apenas 11% até agora. Do re- não somente para assegurar o acesso
cas de manutenção de renda (Auxílio situação de mães e pais que precisam curso específico para enfrentamento universal a vacinas e remédios contra
Emergencial) e de emprego (finan- trabalhar em meio à pandemia, não da violência contra as mulheres – cer- a Covid-19, mas também para evitar
ciamento da folha salarial e Progra- tendo condições de acompanhar ca de R$ 25 milhões –, apenas R$ 1,5 novas pandemias e construir um pla-
ma de Manutenção de Emprego e seus filhos, seja por falta de tempo, milhão foram gastos.9 neta mais justo e sustentável. 
Renda) sejam anunciadas como prio- seja por falta de escolaridade. O confinamento também contri-
ritárias, seu baixo nível de gastos bui para aumentar a violência contra *A equipe do Instituto de Estudos Socioe-
após mais de quatro meses de pande- OS PRINCIPAIS ALVOS SÃO NEGROS, crianças, pois as coloca mais tempo conômicos (Inesc) é composta por Ales-
mia é assustador. A execução orça- QUILOMBOLAS E INDÍGENAS na presença do adulto que pode ser sandra Cardoso, Carmela Zigoni, Cleo
mentária da renda básica e o finan- Os efeitos da pandemia contribuem seu agressor. Desde 2019 não houve Manhas, Dyarley Viana, Leila Saraiva,
ciamento da folha salarial atingiram ainda para reforçar desigualdades de execução orçamentária alguma para Livi Gerbase, Luiza Pinheiro, Márcia
somente metade de seu potencial, e o raça e de etnia. A população negra é as ações de Enfrentamento às Violên- Acioli, Marcus Dantas, Nathalie Beghin,
Programa de Manutenção de Empre- proporcionalmente muito mais afe- cias contra Crianças e Adolescentes, Tatiana Oliveira e Thallita de Oliveira.
go e Renda, apenas 30%. tada que a branca: 55% de pessoas e, no orçamento atual, essa estratégia
Os impactos da crise se fazem sen- negras que se internaram em hospi- nem aparece nas rubricas, como mos- 1   IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Do-
micílios Contínua. Divulgação Especial. Medi-
tir no mundo do trabalho. Segundo tais do Brasil com Covid-19 morre- tramos em estudo recente do Inesc.10 das de Subutilização da Força de Trabalho no
dados recentes publicados pelo De- ram; entre os brancos, esse percen- Brasil, 4º trimestre de 2019.
partamento Intersindical de Estatísti- tual foi de 38%.5 O NECESSÁRIO PAPEL DO ESTADO 2   FAO, “The state of food security and nutrition in
the world 2020. Transforming food systems for
ca e Estudos Socioeconômicos (Diee- No tocante à população indígena, A contenção da pandemia e o enfren- affordable health diets” [A situação da segu-
se),4 em maio, 18,5 milhões de mesmo diante da disseminação do tamento da decorrente crise econômi- rança alimentar e da nutrição no mundo 2020.
brasileiros não trabalharam e não pro- novo coronavírus, que já matou mais ca requerem o fortalecimento do pa- Transformando sistemas alimentares para die-
tas saudáveis acessíveis], Roma, 2020.
curaram ocupação por causa da pan- de quinhentos e infectou outros 16 pel do Estado. Requerem ainda uma 3   IBGE, Pnad Contínua 2019.
demia; 19 milhões de pessoas foram mil indígenas,6 o governo federal in- atuação coordenada dos poderes pú- 4   Dieese, Boletim Emprego em Pauta n.15, 20
afastadas do trabalho e 30 milhões ti- vestiu menos recursos em Saúde In- blicos a ser liderada por um governo jul. 2015.
5   Carlos Madeiro, “Covid mata 55% dos negros
veram alguma redução em seus rendi- dígena no primeiro semestre deste federal defensor da agenda de direitos e 38% dos brancos internados no país”, UOL,
mentos. Note-se, contudo, ainda de ano do que no mesmo período do ano humanos e contando com a participa- 2 jun. 2020.
acordo com o órgão de pesquisa, que o passado. Além disso, os recursos ex- ção de sindicatos de trabalhadores e 6   Dados do Comitê Nacional de Vida e Memória
Indígena.
auxílio emergencial tem sido essencial traordinários para enfrentamento da de organizações e movimentos so- 7   Dados coletados pelo Inesc em 14 de julho de
para cobrir boa parte da perda de ren- Covid-19 alocados na Funai tiveram ciais, de modo a levar em conta as vo- 2020, no portal Siga Brasil.
dimento dos beneficiários. execução orçamentária de apenas zes e demandas dos mais afetados pe- 8   UOL, “Número de casos de feminicídio no
Brasil cresce 22% durante a pandemia”, 1º
33%.7 A população quilombola, que la combinação das múltiplas crises. jun. 2020.
O DESMANDO FEDERAL não conta nem mesmo com um siste- A recessão econômica que se ins- 9   Dados atualizados em 21 de julho com base
SAÚDE E NA EDUCAÇÃO ma de saúde que atenda a suas espe- talou é de proporções dramáticas e em informações do Siga Brasil, corrigidos
pelo IPCA.
O quadro na área da saúde é dramáti- cificidades culturais, ficou desassis- demanda respostas ousadas e res- 10  Inesc, “Brasil com Baixa Imunidade – Balanço
co, com quase 90 mil óbitos e 10% da tida com os cortes na política de ponsáveis, pois é a vida de milhões de do Orçamento Geral da União 2019”.
6 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

VIDAS (DOS OUTROS...) EM JOGO PELA “RETOMADA DA ECONOMIA”

A roleta-russa da
abertura das escolas
A escola pública atende os segmentos populares, os filhos dos trabalhadores que, com a flexibilização da quarentena,
precisam voltar ao trabalho. A “normalidade” econômica não pode ser produzida sem os trabalhadores e sem
a escola que recebe seus filhos. Por isso, a abertura não está separada da flexibilização da quarentena.
Ela é um de seus principais sustentáculos

POR FERNANDO CÁSSIO E ANA PAULA CORTI*

N
ove estados anunciaram em Para cada cidade do país – para nais para a realização de aulas e ati- que simplificam a complexidade dos
julho o retorno das atividades cada bairro, em muitos casos – há vidades pedagógicas presenciais e processos educativos para chanta-
presenciais nas escolas para uma estatística de infecções e de não presenciais no contexto da pan- gear governos de forma direta ou em
agosto e setembro: Acre, Distri- mortes por Covid-19 que se relaciona demia. Embora o parecer não deixe coligação com o CNE. Se os estudan-
to Federal, Maranhão, Paraná, Piauí, a dinâmicas territoriais e a condições de sublinhar que a retomada das ati- tes das escolas privadas, ainda que
Rio Grande do Norte, Rondônia, San- muito específicas. O Brasil tem cerca vidades presenciais depende da ga- estas lhes queiram garantir o brilho
ta Catarina, São Paulo e Tocantins – de 48 milhões de estudantes na edu- rantia de “condições de saúde e de se- do sol, podem permanecer em casa
governados por partidos tão diferen- cação básica, 75% deles em escolas gurança aos estudantes e neste ano de 2020, o mesmo não é ne-
tes quanto MDB, PCdoB, PSD, PT, públicas, a maioria das quais em con- profissionais da educação”, o argu- cessariamente verdade para os estu-
PSL, PSDB e PHS. Em cada um deles dições muito diferentes das que fi- mento principal das orientações fun- dantes das escolas públicas – espe-
há um cenário diverso de evolução e nanciam o SinepeRio e patrocinam damenta-se em uma série de estudos cialmente os mais jovens,
controle da pandemia de Covid-19. A seu marketing agressivo disfarçado – incluindo um da consultoria Mc- matriculados nas creches e pré-esco-
densidade do diálogo dos governos de mensagem de esperança. Se a ma- Kinsey – sobre o impacto do fecha- las. Para as famílias da escola públi-
com a sociedade civil e sobretudo nutenção do fechamento das escolas mento das escolas em aprendizagens ca, a necessidade de trabalhar convi-
com as organizações que represen- equivale a “subtrair a vida”, o que di- medidas por testes de proficiência. ve com o medo de uma abertura mal
tam os profissionais da educação é zer de uma abertura que arrisca vidas O CNE também apresenta algu- planejada e com a insegurança sobre
igualmente díspar nesses estados. em sentido literal? mas pesquisas sobre o alcance limi- a falta de capacidade do Estado de
São diversos os argumentos utili- Ainda que a maior parte das pro- tado das atividades remotas ofereci- proteger a saúde de crianças, adoles-
zados para defender a abertura das postas de abertura seja escalonada, das, que prejudicaram milhões de centes e profissionais da educação.
escolas e o retorno às atividades pre- em esquemas de rodízio, o resultado estudantes da escola pública. Como
senciais depois de meses de isolamen- líquido da operação é o mesmo: abrir temos formulado, ao selecionar so- DECISÕES UNILATERAIS
to. Nas redes de ensino, muitos ainda escolas implica mobilizar um quarto mente as frações da população esco- Em São Paulo, o eventual retorno às
apostam na possibilidade de “salvar” da população brasileira a sair de casa lar com condições de acessar as ativi- aulas presenciais em setembro movi-
o ano letivo de 2020, o que permitiria todos os dias, a utilizar o transporte dades, um grande número de mentará 1 milhão de professores e
economizar os esforços orçamentá- público, aumentar seu tempo na rua, políticas educacionais emergenciais outros profissionais da educação e
rios e burocráticos primordiais a um no comércio, em filas nos portões das implantadas durante a pandemia mais 13,3 milhões de estudantes em
processo seguro de retomada e repo- escolas. Além disso, escolas são lo- produziram uma maciça discrimina- todas as etapas escolares e redes pú-
sição das atividades letivas. cais inerentemente adensados, por- ção educacional nas redes públicas blicas e privadas (cerca de 30% da po-
Também é sabida a pressão das quanto espaços de contato e de pro- de ensino.2 pulação do estado). Os protocolos de
escolas privadas – cujo funciona- dução de sociabilidades. A argumentação do CNE, centra- segurança divulgados pelo governo
mento é regulamentado pelas secre- Algumas poucas escolas privadas da na noção mal definida de “direitos paulista para a reabertura das esco-
tarias estaduais de educação – pelo de elite nas grandes cidades vêm con- de aprendizagem”, que deveriam ser las trazem um conjunto de diretrizes
retorno. Muitas partem da premissa tratando empresas ou hospitais pri- garantidos a todo custo – remota ou classificadas como “obrigatórias” ou
de que suas melhores condições vados de renome para o desenvolvi- presencialmente –, também induz o “recomendáveis”.4
estruturais lhes permitirão conter a mento de protocolos que garantam a movimento de abertura das escolas. A insuficiência dessas diretrizes
escalada de contágios a partir da segurança epidemiológica de seus Como a exclusão causada pela oferta reflete a própria insuficiência de re-
abertura. O Sindicato dos Estabeleci- estudantes e profissionais, mas isso remota é um fato dado, a única forma cursos financeiros para a implemen-
mentos de Ensino do Rio de Janeiro está longe de ser a realidade da maio- de reverter esse quadro seria planejar tação de protocolos mais robustos
(SinepeRio), em vídeo promocional ria das escolas privadas e, sobretudo, uma abertura segura e escalonada para a proteção das comunidades es-
(ht t ps ://bit.ly/v ideo-Si nepeR io), das escolas municipais e estaduais. das escolas com vistas a recuperar o colares, o que gera apreensão de es-
afirmou que é hora de abrir as escolas Apesar de as entidades patronais as- tempo perdido e a “aprendizagem”, tudantes, famílias e profissionais da
privadas. A mensagem da entidade é segurarem que o sol já pode brilhar isto é, os resultados nas avaliações educação. O governo Doria não indi-
tocante: “Vimos que a ciência é a nas escolas particulares, a dúvida em larga escala. Tal raciocínio eco- cou que providências concretas serão
vacina. Estudos só confundiram. permanece. Um levantamento re- nomicista chega ao paroxismo no re- tomadas pela Seduc-SP para viabili-
Trancar todos em casa não é ciência. cente1 mostra que 40% dos estudan- cente estudo do Insper, que concluiu zar o cumprimento das diretrizes. De
Confinar é desconhecer, é ignorar, é tes matriculados em estabelecimen- que a interrupção das aulas durante a toda forma, só uma pequena parte
subtrair vida, é fragilizar, debilitar, tos privados não retornarão à escola pandemia poderia reduzir o PIB do delas é de fato “obrigatória”: incenti-
mexer com o emocional. As crianças em 2020 por decisão das famílias. país em até 23%, em razão da perda var a lavagem de mãos ou higieniza-
precisam voltar a se relacionar, brin- Levando água para o moinho da de renda sofrida pelos jovens por ção com álcool em gel após tossir ou
car, refazer laços, amizades, rever abertura das escolas, o Conselho Na- conta do déficit de aprendizagem.3 espirrar, por exemplo, é medida ape-
seus amigos. Hora de reflorir. Recriar cional de Educação (CNE) aprovou A pressão “econômica” pela aber- nas “recomendável”.
no novo tempo. O sol precisa voltar a em 7 de julho o Parecer CNE/CP n. tura das escolas, apesar disso tudo, A abstração das condições mate-
brilhar”. 11/2020, com orientações educacio- não é prerrogativa de empresários riais das escolas, que marca as políti-
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7

© Tânia Rêgo/Agência Brasil


cas educacionais paulistas focaliza- suas necessidades. Se as famílias
das no avaliacionismo, na ideologia com filhos nas escolas privadas po-
da aprendizagem5 e na responsabili- dem tomar a decisão individual de
zação das escolas por resultados, não mandá-los para a escola, o mes-
chegou a um ponto de saturação na mo nem sempre ocorre com as famí-
pandemia: se a precariedade das uni- lias da escola pública. Para estas, é
dades escolares e a insuficiência de fundamental poder contar com uma
recursos financeiros continuarem rede de proteção comunitária no ní-
sendo abstraídas, a abertura das es- vel do bairro e da escola. Nos territó-
colas colocará em risco a vida de mi- rios periféricos, são as redes de soli-
lhões de pessoas. dariedade que vêm garantindo a
Chama atenção a rapidez e a “faci- sobrevivência de muita gente.
lidade” com que a Seduc-SP toma de- Não são a “perda” de aprendiza-
cisões a respeito da vida de milhares gens ou o mau desempenho no Pisa 9
de escolas e de milhões de estudantes que motivam estudantes e professo-
e profissionais da educação. A situa- res a querer voltar para a escola, e
ção contrasta com a de universidades sim uma enorme saudade desse es-
como USP, Unicamp, Unesp, UFABC, paço produtor de vida, de conheci-
Unifesp, UFSCar e com o Instituto Fe- mento e de laços sociais. Mas tudo
deral de São Paulo, que também sus- isso parece ter limite. Ao contrário
penderam suas aulas presenciais em dos mantenedores das escolas priva-
março e decidiram pela continuidade das e dos reformadores empresariais
de suas atividades de ensino de forma da educação, que veem a suspensão
remota. Nenhuma delas, por outro la- das aulas apenas como um dano eco-
do, tomou a decisão de abrir as portas nômico ao país, uma massa de brasi-
no segundo semestre de 2020. Abrir escolas implica mobilizar 1/4 da população a sair de casa todos os dias leiros simplesmente se recusa a en-
Tamanha disparidade entre os ce- xergar o “brilho do sol” da abertura
nários de “retomada” nas universida- isoladas e sozinhas. Foi uma perda, mesma razão, um entrave à gestão das escolas, sabendo que sua própria
des e nas escolas públicas de educa- sem dúvida, mas foi a escolha mais centralizada e tecnocrática. É preciso vida é objeto de aposta em um jogo
ção básica dentro de um mesmo acertada em defesa da vida. reconhecer, além disso, que mesmo de roleta-russa. 
estado revela que essas instituições Os modelos educacionais neotec- uma comunidade escolar atuante, es-
não apenas possuem funções sociais nicistas dos gestores e especialistas tudiosa e produtora de seu próprio *Fernando Cássio  é doutor em Ciências,
diferentes – o que é esperado –, mas do setor empresarial que defendem a cotidiano não consegue fazer muita professor da Universidade Federal do ABC
que estão separadas por um fosso abertura das escolas – e tão bem ilus- coisa sem recursos humanos, sem (UFABC) e organizador de Educação contra
profundo em termos de status social trados no Parecer n. 11/2020 do CNE condições institucionais e sem um fi- a barbárie: por escolas democráticas e pela
e autonomia decisória. – estão de costas para as comunida- nanciamento educacional adequado. liberdade de ensinar (Boitempo); Ana Pau-
A escola pública atende os seg- des escolares e os complexos proces- Mas, como nem a escola pública la Corti é socióloga, doutora em Educação
mentos populares, os filhos dos tra- sos de produção da escola. Talvez por nem as comunidades escolares são e professora do Instituto Federal de Educa-
balhadores que, com a flexibilização isso mesmo as expressões “comuni- entidades monolíticas, também há ção, Ciência e Tecnologia de São Paulo
da quarentena, precisam voltar ao dade” ou “comunidade escolar” apa- aquelas que estão mobilizadas em (IFSP). Os autores fazem parte da Rede Es-
trabalho presencial. A “normalidade” reçam no documento do CNE apenas defesa da vida. Um manifesto produ- cola Pública e Universidade (Repu).
econômica não pode ser produzida como objetos da ação das autoridades zido por escolas do extremo leste da
sem os trabalhadores e sem a escola educacionais, e não como agentes de- cidade de São Paulo (regiões de 1   E lida Oliveira, “Mais de 70% dos pais se recu-
sariam a enviar filhos para escola ainda em
pública que recebe seus filhos. Por is- cisórios dos sistemas de ensino. Isso Guaianases, Cidade Tiradentes e La- julho e 40% só acreditam no retorno em 2021,
so, a abertura das escolas não está se- fica bem claro em uma das recomen- jeado), por exemplo, expressa o dese- aponta levantamento”, G1, 16 jul. 2020.
parada da flexibilização da quarente- dações do CNE: “Comunicação: o jo de voltar, mas também a apreensão 2   Ver a Nota Técnica Recomendações para a
disponibilização e a coleta de dados sobre as
na. Ela é um de seus principais planejamento da reabertura deve ser com a falta de capacidade do estado ações das redes de ensino relacionadas às
sustentáculos. E, diferentemente do acompanhado por intensa comunica- de garantir a proteção da vida em um atividades educacionais durante a pandemia
que ocorre nas instituições de ensino ção com as famílias, os alunos, os eventual retorno: “Queremos, sim, da Covid-19, produzida em maio de 2020 por
Campanha Nacional pelo Direito à Educação,
superior, ela está sendo decidida não professores e profissionais de educa- voltar às escolas, pois há um entendi- Cedeca-Ceará, DiEPEE-UFABC e Rede Es-
no nível do território e das comunida- ção, explicando com clareza os crité- mento geral de que as aulas remotas, cola Pública e Universidade.
des escolares, mas no dos gabinetes. rios adotados no retorno gradual das mesmo com o grande esforço dos 3   Isabela Palhares, “Interrupção das aulas na
pandemia pode reduzir PIB brasileiro em até
escolas e os cuidados com as questões educadores, não atingem a maioria 23%”, Folha de S.Paulo, 13 jun. 2020.
CADÊ A COMUNIDADE de segurança sanitária” (p. 11-12). de nossos alunos. Porém, não pode- 4   Esses protocolos podem ser encontrados em:
ESCOLAR QUE ESTAVA AQUI? Quando as escolas são tratadas mos arriscar nossas vidas, de nossos www.educacao.sp.gov.br/coronavirus.
5   Fernando Cássio e Silvio Carneiro, “É hora de
A comunidade escolar é o espaço em como meras linhas de transmissão e estudantes e de seus familiares, na falar da educação como bem público”, Le
que o processo educacional ganha obediência a normas e ordens exóge- medida em que a comunidade médi- Monde Diplomatique Brasil, 20 maio 2020.
concretude, em que se dá o encontro nas aos seus propósitos,6 interdita-se ca, os cientistas e a OMS afirmam que 6   Ana Paula Corti e Fernando Cássio, “Por que
obedecemos?”, Le Monde Diplomatique Bra-
entre profissionais da educação, es- a dimensão humana e criativa da a escola [...] poderá se transformar sil, 30 set. 2019.
tudantes e suas famílias: a socializa- educação. É por isso que as políticas em grande propagadora do vírus”.7 7   “ Publicação na íntegra do Manifesto pelo di-
ção, o crescimento, o conflito, a timi- educacionais centralizadas fragili- Desde março, quando começa- reito à vida e à educação pública, assinado
por diversas unidades escolares de SP”, Es-
dez, a discriminação, o conhecimento, zam as comunidades escolares. Os mos a produzir textos e notas públi- querda Diário, 15 jul. 2020.
a descoberta, a rejeição do corpo, a dois instrumentos mais importantes cas sobre a indução de desigualdades 8   Ver as notas públicas conjuntas produzidas
paixão, a frustração, as amizades, a para a construção da identidade des- educacionais durante a pandemia, desde março de 2020 pela Rede Escola Pú-
blica e Universidade (Repu) e pelo Grupo Es-
rejeição, a matemática, a cidadania, o sas comunidades – o Projeto Político- temos salientado que todas as solu- cola Pública e Democrática (Gepud): www.
sonho, os projetos. Enfim, a produção -Pedagógico e os Conselhos de Escola ções precisam ser pensadas no nível repu.com.br/mocoes-manifestos-e-notas-pu-
da escola. A suspensão das atividades – perdem a razão de ser quando seu do território, por meio da articulação blicas. Ver também o Guia Covid-19 vol. 8:
reabertura das escolas, produzido pela Cam-
presenciais acarretou prejuízos para “devir” é definido do lado de fora, pela dos atores locais.8 Não há protocolo panha Nacional pelo Direito à Educação, dis-
crianças, adolescentes e profissionais administração central. Escolas com ou diretriz “geral” que seja capaz de ponível em: https://campanha.org.br/acervo/
da educação precisamente porque identidade própria, com autonomia e atender às especificidades de cada guia-8-covid-19-reabertura-das-escolas.
9   Programme for International Student Assess-
impediu toda essa convivência vital, com professores e estudantes ques- escola. São as comunidades escolares ment (Programa Internacional de Avaliação de
educativa, deixando as pessoas mais tionadores e propositivos são, pela que devem adaptar os protocolos às Estudantes).
8 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

SAÚDE

Como controlar a pandemia no Brasil


As principais autoridades políticas e sanitárias, às quais caberia a obrigação de formular políticas de controle, carrear
recursos, viabilizar meios, gerenciar processos e coordenar ações, incorreram em sérios equívocos e omissões, numa
sucessão de erros que resulta em sofrimentos, sequelas e mortes totalmente desnecessárias

POR NAOMAR DE ALMEIDA FILHO, GULNAR AZEVEDO E CLAUDIA TRAVASSOS*

E
© Giorgia Massetani
ntramos no temido mês de agos- mento da Covid-19. Para a elaboração
to com mais de 2 milhões de ca- desse plano, mais de cinquenta pes-
sos e perto de 100 mil mortos quisadores de treze entidades cientí-
confirmados por Covid-19 em ficas e 21 grupos de trabalho do cam-
todas as regiões do Brasil. Em função po da saúde coletiva conduziram
da grande diversidade geográfica, so- uma detalhada e sistemática análise
cial e cultural do país, o panorama da das interfaces relevantes da pande-
pandemia mostra-se bastante com- mia e elaboraram setenta recomen-
plexo. Aqui, ela tornou-se um sistema dações estratégicas e técnicas, dirigi-
de epidemias, afetando distintos seg- das às autoridades políticas e
mentos da sociedade e setores do sanitárias, aos gestores do SUS e à so-
imenso território nacional. ciedade em geral. De imediato, o
Os primeiros casos confirmados Conselho Nacional de Saúde acolheu
eram pessoas de alta renda, recém- a proposta e muito contribuiu para
-chegadas de viagens ao exterior; ra- sua versão final, que foi apresentada
pidamente, porém, a doença atingiu às comissões do Congresso Nacional,
as periferias das grandes cidades e o ao Ministério da Saúde e a outras ins-
interior do país, com maior letalidade tâncias do SUS. O que se segue é um
na população pobre e negra, entre de- extrato desse esforço coletivo, na ex-
sempregados, afetando tragicamente pectativa de ampliar sua difusão e
povos indígenas, quilombolas e po- acolhimento entre os setores interes-
pulações ribeirinhas. Recentemente, sados da sociedade.
em algumas capitais, a pandemia ten- Em todo o mundo, diante do qua-
de a se estabilizar em altos patamares dro de recessão causado pela pande-
de incidência e mortalidade, mas es- mia, medidas proativas de promoção
sas taxas crescem em cidades de me- e geração de emprego e de proteção
nor porte em todo o país. No momen- social aos trabalhadores têm sido co-
to, ocupamos o segundo lugar do locadas em prática, como embrião de
mundo em número de casos e de mor- uma renda universal básica. A pan-
tes; com 3% da população mundial, demia atingiu o Brasil num momento
temos 14% dos óbitos por Covid-19. de reformas antipopulares, centra-
A ausência de uma política nacio- das na austeridade fiscal e na redu-
nal para enfrentamento da terrível ção do papel do Estado na economia.
crise sanitária agrava esse cenário Aqui, o suposto conflito entre econo-
desolador. As principais autoridades mia e combate à Covid-19 tem sido o
políticas e sanitárias, às quais caberia argumento com o qual setores políti-
a obrigação de formular políticas de cos insistem numa agenda neoliberal
controle, carrear recursos, viabilizar socialmente perversa. Como resulta-
meios, gerenciar processos e coorde- do, programas de proteção social
nar ações, incorreram em sérios equí- ação nacional, composto por medi- ção da sociedade organizada. Mas in- aprovados pelo Congresso Nacional,
vocos e omissões, numa sucessão de das factíveis e embasadas em conhe- felizmente nada disso foi feito até o incluindo o auxílio emergencial para
erros que resulta em sofrimentos, se- cimento científico, articulado e coor- momento. O resultado dessa irres- pessoas e famílias necessitadas, en-
quelas e mortes totalmente desneces- denado pelas autoridades sanitárias, ponsabilidade trágica é o fato de o contram dificuldades de viabilização
sárias. O pior é que, por ignorância, em todos os níveis e setores, com a Brasil entrar no quinto mês da pan- pelos setores econômicos do governo
negacionismo e crueldade, lideran- participação ativa das instâncias de demia sem nenhum plano oficial de federal e se mostram insuficientes
ças políticas vêm deliberadamente controle social do SUS. enfrentamento em escala nacional. para sustentar as medidas de contro-
promovendo boicotes e obstáculos às No auge da pandemia, torna-se le da pandemia.
medidas de combate à pandemia. imperativo e urgente organizar co- PLANO DE ENFRENTAMENTO As políticas de austeridade fiscal
É responsabilidade intransferível nhecimentos, recursos, competên- DA COVID-19 que agora fragilizam a estrutura de
da Presidência da República coorde- cias e energias num conjunto amplo Preocupados com essa lamentável e proteção social também desfinancia-
nar ações e políticas emergenciais de estratégias, orientações, normas, grave omissão, entidades e movi- ram o SUS. Essa situação foi recente-
para controlar crises humanitárias procedimentos, programas e políti- mentos sociais que atuam na área da mente agravada pela inoperância do
nacionais e reduzir seus impactos cas, articulado de modo eficiente e saúde e participam da Frente pela Vi- Ministério da Saúde no repasse de re-
evitáveis. Diante da pandemia de Co- coordenado centralmente, contando da (https://frentepelav ida.org.br) cursos destinados ao enfrentamento
vid-19, caberia ao governo federal com a gestão integrada em todas as apresentaram recentemente à socie- da pandemia. Ampliação de recursos
apresentar à sociedade um plano de esferas de governo e com a participa- dade um Plano Nacional de Enfrenta- financeiros é fundamental para ajus-
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9

tar a capacidade de resposta do siste- duração, já deveriam estar em curso. No caso brasileiro, a gestão dessas lista de ações a serem realizadas nas
ma público de saúde à pandemia. Cabe às autoridades sanitárias medidas tem-se dado por iniciativa diferentes esferas de governo ou nos
Nesse sentido, é imprescindível que o garantir o acesso a medicamentos e de governadores e prefeitos, em mui- distintos níveis de operação do SUS,
piso orçamentário emergencial apro- promover seu uso racional. Diante da tos casos como reação a pressões de modo isolado ou cumulativo. Tra-
vado para o SUS seja incorporado ao profusão de promessas de tratamen- econômicas locais, das quais se tor- ta-se, na verdade, de um sistema arti-
orçamento de 2021. tos milagrosos, prescrevem-se medi- naram reféns. A flexibilização das culado e integrado de estratégias, tá-
Apesar de subfinanciado e amea- camentos sem eficácia comprovada, medidas de quarentena, distancia- ticas e ações, destinadas a viabilizar
çado pela agenda neoliberal, o SUS enquanto faltam anti-inflamatórios, mento físico e restrição de mobilida- métodos de controle dos processos
tem, sem dúvida, produzido respos- sedativos e antibióticos necessários de deverá ser cogitada apenas onde e epidêmicos, cuja funcionalidade e
tas efetivas no combate à Covid-19. para atendimento a pacientes graves quando a situação epidemiológica efetividade dependem de planeja-
Em todos os níveis de atenção, gesto- de Covid-19. Não obstante as deman- permitir, com pré-requisitos precisa- mento eficaz, gestão competente e
res e profissionais de saúde vêm lu- das e urgências da pandemia, gesto- mente definidos, conforme indicado- coordenação fina e sensível. A condi-
tando arduamente para garantir res do SUS devem evitar, por meio de res estabelecidos pela OMS e referen- ção de viabilidade (ou sucesso) de
acesso e qualidade dos cuidados de estoques estratégicos, que medica- dados por outras organizações sua aplicação, num contexto de gran-
saúde. Não obstante, até agora, a mentos essenciais faltem a pacientes internacionais de saúde. Nesse senti- de complexidade, reside justamente
maior parte das ações de combate à com outras enfermidades, o que tem do, para a tomada de decisões corre- na capacidade de mobilização da po-
pandemia tem se concentrado nos ocorrido em vários pontos da rede tas e prudentes, as autoridades de- pulação, incluindo usuários, profis-
níveis secundário e terciário de aten- assistencial. vem instalar comitês consultivos sionais e gestores num regime de
ção à saúde do SUS. A atenção primá- Além disso, as autoridades sanitá- com representação das comunidades coesão firme e solidária.
ria à saúde, que corresponde à porta rias são responsáveis por garantir a científicas, profissionais e da socie- Do ponto de vista científico, sabe-
de entrada no sistema, é fundamen- observância de protocolos de segu- dade civil. Além disso, tal flexibiliza- mos tudo o que se precisa para con-
tal para o controle da pandemia. Ex- rança, com a provisão de equipa- ção deve ser autorizada somente se trolar a pandemia de Covid-19. Não
periências bem-sucedidas em alguns mentos de proteção individual para for viabilizada uma efetiva capacida- podemos desperdiçar mais tempo do
municípios brasileiros confirmam a trabalhadores e trabalhadoras de de de vigilância epidemiológica. que já se perdeu, porque a demora
importância desse nível de atenção saúde e outros setores que atuam na em dar respostas implica perda irre-
para maior cobertura e cuidado efeti- linha de frente na rede de serviços de parável de vidas. Se as autoridades
vo dos pacientes com Covid-19. Essas saúde. Infelizmente, nesse aspecto, o Com ação política, continuarem negando a seriedade da
boas práticas precisam ser ampliadas Brasil atingiu mais um vergonhoso planejamento, organiza- crise atual, tomando decisões sem
para toda a rede do SUS, em todo o recorde mundial, com altíssimo per- fundamento técnico, o terrível preço
território nacional, com urgência! centual de óbitos entre profissionais
ção e participação, é da pandemia recairá sobre a maioria
Mesmo nos níveis secundário e de saúde, especialmente os da área possível e viável superar da população brasileira, principal-
terciário de atenção, há muito o que de enfermagem. a pandemia no Brasil mente os estratos sociais mais vul-
implantar, ajustar e melhorar na rede No plano técnico, apesar de a efe- neráveis. Uma pandemia como esta
assistencial do SUS. Problemas de tividade na assistência médica ser aumenta a vulnerabilidade social,
continuidade e integração do cuida- fundamental para reduzir sofrimen- A vigilância epidemiológica é aprofunda desigualdades econômi-
do, com pacientes deixando de rece- tos e salvar vidas, todas essas ações uma das estratégias mais efetivas cas, gera iniquidades em saúde e vio-
ber o atendimento indicado no mo- assistenciais são insuficientes para o para controlar epidemias virais co- lações de direitos humanos, o que
mento oportuno, ocasionam controle da pandemia. No estágio em mo a da Covid-19. Isso implica proce- atinge diretamente grupos popula-
aumento evitável no número de pa- que se encontra a pandemia no país, dimentos de busca ativa de casos, cionais oprimidos e discriminados e
cientes graves. Muitos casos acabam medidas firmes e mais efetivas, nas com equipes capacitadas para testa- afeta o conjunto da sociedade.
evoluindo para óbito por falta de esferas econômica, política e sanitá- gem, por biologia molecular, de to- Reafirmamos que, com ação polí-
atendimento hospitalar de qualida- ria, já deveriam ter sido tomadas. dos os casos suspeitos, visando iden- tica, planejamento, organização e
de. O acesso regulado à atenção espe- Ações comunitárias de enfrentamen- tificar infectantes e bloquear cadeias participação, é possível e viável su-
cializada precisa ser colocado em to à pandemia precisam ser fomenta- de transmissão, até o limite da ras- perar a pandemia no Brasil. Como
prática imediatamente, em todo o das, em paralelo a iniciativas de pre- treabilidade, incluindo monitora- primeiro passo, o governo federal
país, garantindo transporte adequa- venção e promoção da saúde, mento dos que tiverem indicação de precisa cumprir sua função primor-
do, oportuno e seguro aos usuários especialmente entre as populações isolamento. Tais procedimentos de- dial de condutor das políticas de
que dele necessitem. O manejo clíni- mais vulnerabilizadas. Como efeti- vem ser conduzidos na atenção pri- controle da Covid-19 e redução de
co de pacientes deve seguir protoco- vamente ainda não o foram, além de mária em saúde por equipes treina- danos. Os outros poderes da Repú-
los elaborados por especialistas, necessárias, são agora urgentes para das, conectadas e coordenadas pelos blica e todas as esferas de governo
adaptados às condições locais e inte- controlar a pandemia e seus impac- gestores do SUS, nos planos munici- precisam atuar de modo coordenado
grados às redes de atenção à saúde. tos negativos. pais, estatuais e federal. Casos leves e efetivo, cumprindo suas responsa-
Tanto para a Covid-19 como para ou- Na ausência de vacinas e trata- ou assintomáticos devem ser identi- bilidades. A sociedade brasileira de-
tros problemas de saúde, serviços de mentos específicos para a Covid-19, ficados, orientados e rigorosamente ve se mobilizar politicamente para
apoio diagnóstico e terapêutico pre- cabe o recurso a estratégias não far- monitorados, a fim de verificar o enfrentar as crises da pandemia.
cisam ser expandidos e agilizados. macológicas, como quarentenas e cumprimento estrito das instruções Trata-se de uma luta política urgente
Em todo o país, leitos de retaguar- medidas de distanciamento físico, na de isolamento, em instalações prote- e necessária pela democracia, com
da devem ser reservados para casos amplitude necessária para cada ce- gidas ou unidades de quarentena. base nos princípios de justiça social,
confirmados de Covid-19 que apre- nário epidemiológico e contexto de Em alguns casos, deve-se viabilizar equidade e transparência, mediante
sentem comorbidades, mesmo que cada região, estado, município ou lo- auxílio financeiro para isolamento cooperação e entendimento entre os
não sejam graves. Isso inclui pessoas calidade. Enquanto persistir a trans- individual em regime domiciliar. setores progressistas. 
que residem sozinhas ou que vivem missão com característica epidêmi- Ferramentas tecnológicas (como
em contextos nos quais isolamento e ca, autoridades sanitárias devem aplicativos de celulares) poderão ser
distanciamento físico são impossí- manter as diretrizes de distancia- utilizadas para localização, monito- *Naomar de Almeida Filho é professor
veis. Toda a capacidade hospitalar mento físico, uso de máscaras, dispo- ramento e controle dos casos duran- visitante (IEA-USP), professor de Epide-
instalada (englobando serviços pú- nibilidade de álcool em gel em locais te o período infeccioso, respeitando miologia (ISC-UFBA) e vice-presidente da
blicos e privados) deve obedecer a públicos e transportes coletivos, sigilo e confidencialidade. Associação Brasileira de Saúde Coletiva
uma fila única para cuidados intensi- proibição de aglomerações de qual- (Abrasco); Gulnar Azevedo é professora
vos de casos graves. Além disso, o quer natureza não relacionadas à UM SISTEMA ARTICULADO (Uerj) e presidente da Abrasco; Claudia
planejamento e a organização de cui- manutenção de atividades essenciais E INTEGRADO Travassos é pesquisadora da Fiocruz e
dados hospitalares e domiciliares de e restrição de viagens domésticas e Um plano estratégico para controle membro da diretoria do Centro Brasileiro
reabilitação, que podem ser de longa internacionais. da pandemia não significa uma mera de Estudos de Saúde (Cebes).
10 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

UMA COMUNIDADE DE CIENTISTAS À QUAL AS START-UPS DE HOJE NÃO CONSEGUEM SE IGUALAR

As cidades secretas da habitantes na época –, foi retirada da


administração territorial da Mordó-
via e apagada de todos os mapas e do-

pesquisa nuclear soviética


cumentos oficiais. Então teve início a
triagem dos habitantes da vila. Aque-
les que trabalhavam na fábrica nº
550, especializada na produção de
obuses, ficaram lá, e os demais foram
realocados pelas autoridades fora da
Da bomba H à conquista espacial, a maioria dos grandes programas tecnológicos zona proibida.
soviéticos surgiu entre os muros de cidades secretas. Cientistas, engenheiros e Com o afluxo de trabalhadores e
especialistas, a vila evoluiu para uma
operários viviam isolados, em um universo relativamente preservado. Mas, desde pequena cidade: começaram a ser
o fim da URSS, essas cidades sofrem para encontrar um novo fôlego. É o caso construídos imóveis residenciais, de-
de Sarov, um centro de pesquisa nuclear pois foi surgindo a necessidade de
um hospital, de um estádio, de um
centro cultural, uma biblioteca, um
POR CHRISTOPHE TRONTIN* teatro, um parque. A construção
avançava de maneira aleatória, a to-

T
odo ano, faça chuva ou faça sol, 12ª direção do Ministério da Defesa explosão nuclear da história sacudiu que de caixa, sem plano ou projeto.
50 mil peregrinos vêm a Diveie- Soviético, encarregada da energia o deserto do Novo México. Em agos- Para ganhar tempo, parte dos labora-
vo meditar sobre os passos de nuclear militar, na Igreja de Cristo to, veio a aniquilação de Hiroshima e tórios foi instalada nos prédios do
São Serafim (1754-1833). No Salvador, em Moscou, o presidente Nagasaki, que varreu qualquer possí- mosteiro. Entre os trabalhadores em-
meio do bosque, a rocha sobre a qual Vladimir Putin falou da reconcilia- vel dúvida a respeito da determina- pregados no local, havia represen-
o asceta russo passou dias em ora- ção ocorrida, em 1990, entre enge- ção dos Estados Unidos em utilizar tantes do “contingente especial” (co-
ção; um pouco mais adiante, a fonte nheiros militares e autoridades espi- esse novo tipo de arma. mo eram denominados os presos nos
gelada onde se pode encher cantis e rituais. Os cientistas nucleares de O governo soviético encarou o documentos oficiais).
garrafas, e o lago adjacente onde os Sarov devolveram à Igreja os edifícios evento como um aviso direto: em um Antes de qualquer recrutamento,
mais fervorosos se banham; por fim, preservados do mosteiro e, em troca, momento no qual o país estava enfra- os órgãos de segurança verificavam
a praça da catedral, diante da qual to- o patriarca fez de Serafim seu santo quecido pelo sacrifício de quase 26 os antecedentes do candidato “até a
dos fazem o sinal da cruz. No entan- padroeiro! milhões de soviéticos e pela destrui- terceira geração”, fosse ele um enge-
to, Sarov e seu Mosteiro da Assunção, A história de Sarov, no entanto, ção de sua indústria, a ameaça repre- nheiro do gabinete de projeto, o KB-
historicamente ligados ao santo e si- começa sob os auspícios de um regi- sentada pelos aliados de ontem não 11, ou um operário designado para
tuados a 12 quilômetros de distância, me que valorizava mais o conheci- lhes parecia menos importante do uma das diversas instalações espe-
estão interditados. A cidade, até re- mento científico do que os mistérios que aquela representada, quatro anos cializadas. Os funcionários do com-
centemente conhecida pelo código da criação. Na Conferência de Yalta, antes, pelos nazistas. Assim, o Con- plexo só podiam sair com permissão
Arzamas-16, está fechada ao público. em fevereiro de 1945, Stalin confes- selho de Ministros, reunido em 20 de do serviço de segurança. As saídas
Diveievo é uma cidade cercada sou ao primeiro-ministro britânico, agosto de 1945, tomou duas resolu- por motivos pessoais eram liberadas
por arame farpado e guardada por Winston Churchill, e ao presidente ções históricas: investir em pesquisa a conta-gotas. Férias fora da área
patrulhas militares. Ela foi apagada dos Estados Unidos, Franklin Roose- para restabelecer a paridade estraté- eram proibidas, o que era remediado
dos mapas do país durante o período velt, seu medo de que os governos de gica com o Ocidente e fazê-lo sob o com uma compensação salarial.
soviético, e seus habitantes, escolhi- seus respectivos países acabassem máximo sigilo, para o inimigo não Grande privilégio na época, as lojas
dos a dedo, sigilosamente incumbi- causando conflitos com a União So- tentar acabar logo com isso. de Sarov eram bem mais abastecidas
dos de “forjar o escudo atômico do viética. Ele não imaginava que seus No final de 1945 teve início a bus- do que as do resto do país.
país” após a Segunda Guerra Mun- temores se confirmariam tão cedo: ca pelo lugar ideal onde centralizar A cidade recebeu o codinome Ar-
dial. Hoje o sigilo não existe mais, e a mal conquistaram Berlim e os Alia- essas pesquisas ultrassecretas. Após zamas-16. A partir daí, chamá-la pelo
cidade retomou seu nome original, dos já discutiam a oportunidade de uma pesquisa bastante longa, o gru- nome tradicional passou a ser consi-
mas o acesso a ela continua sendo es- aproveitar sua superioridade estraté- po de trabalho encarregado de exe- derado divulgação de informações
tritamente regulamentado. Apenas gica para acabar com a União Sovié- cutar o projeto, sob a liderança de La- secretas. A correspondência privada
seus habitantes, cerca de 100 mil, e tica, consideravelmente enfraqueci- vrenti Beria, decidiu-se pela vila de era feita por meio de uma caixa pos-
visitantes previamente autorizados da pela guerra. Em 16 de julho, a Sarov, localizada 350 quilômetros a tal especial chamada “Moscou Cen-
podem passar pelo posto de controle ameaça ficou mais clara: o Projeto leste de Moscou. Sarov, assim como ter-300”. Além disso, os nomes das
na entrada da cidade. Antes de cuidar Manhattan teve sucesso e a primeira outras aldeias e vilas – cerca de 9.500 ruas da cidade eram os mesmos de
de seus afazeres, os habitantes preci- © Yves Alarie/Unsplash ruas de Moscou, para que os funcio-
sam passar seu crachá especial pelo nários da KB-11 eventualmente em
leitor, digitar um código de seis dígi- trânsito pudessem passar por contro-
tos e se submeter a uma verificação les de identidade sem que o agente
de identidade. Os visitantes admiti- policial desconfiasse de seu verda-
dos precisam deixar nos armários do deiro local de residência.
posto celulares, câmeras e outros dis- Essa necessidade de sigilo e confi-
positivos de comunicação; em segui- namento teve efeitos psicológicos
da, são escoltados até o chefe de pro- muito diferentes sobre as pessoas: o
tocolo da empresa anfitriã, que se físico Andrei Sakharov, em suas me-
responsabiliza por seus deslocamen- mórias,1 fala de uma “privação de li-
tos até que eles saiam da cidade, pelo berdade que pesava sobre ele”. Mas
mesmo posto de controle, onde seus há quem, ao contrário, elogie a flexi-
bens lhes são devolvidos. bilidade dos funcionários encarrega-
Curiosamente, a Igreja Ortodoxa dos da segurança em casos-limite...2
aceita de bom grado essas restrições A lei do confinamento era dura e, pa-
de acesso ao local de peregrinação. ra esses engenheiros, Sarov tornara-
Em 2007, durante a celebração do se- -se novamente um mosteiro fechado
xagésimo aniversário da criação da Com a lei do confinamento, Sarov tornara-se outra vez fechada ao resto do mundo ao resto do mundo. “A fé verdadeira
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 11

não pode permanecer ociosa”, teria Sibéria foram escolhidas para forne- ções de crise, em um reator de A década de 1990 foi perdida ten-
declarado Serafim; “aquele que real- cer matéria-prima para os experi- pesquisa localizado no antigo polígo- tando-se criar uma economia de mer-
mente crê tem sempre algo a fazer.” mentos. Em 1946, um protótipo de no de testes. Outro sobrevivente da cado sobre os escombros dos planos
Essa máxima servia como uma luva reator projetado pelo instituto técni- era soviética, o Instituto de Seguran- quinquenais, ao mesmo tempo que se
para os cientistas de Sarov, que pas- co-científico de Mayak produzia plu- ça Radiológica ainda está fechado ao desenrolava uma arriscada tentativa
savam suas raras horas de lazer con- tônio de qualidade militar na cidade público, mas é possível visitar o pe- democrática. Economistas russos e
versando sobre massa crítica e con- fechada de Ozersk, perto de Chelya- queno Museu do Polígono, onde ma- estrangeiros avaliavam os méritos
centrador de nêutrons. binsk (codinome Chelyabinsk-65). E, pas do Estado-Maior e fotos em preto desse ou daquele tipo de transição,
em 1949, outra cidade fechada, cha- e branco ajudam a contar a epopeia enquanto os oligarcas, mais prosai-
SUMIDADES DA PESQUISA DE BASE mada Tomsk-7, lançou-se à produção, da bomba soviética. Aparelhos de cos, compravam a preço de banana
Em 12 de março de 1947, para dar um também no mais alto sigilo, de urâ- medição sísmica, contadores Geiger, empresas e complexos de petróleo, si-
impulso adicional às equipes de pes- nio 235. Aqui, a pesquisa foi menos câmeras da época e até o posto de co- derurgias, fundições de alumínio,
quisadores que, exaustos, matavam- vanguardista e mais orientada à reso- mando de onde partiria a ordem de minas, usinas químicas. As falências
-se de trabalhar, o presidente dos Es- lução de tarefas práticas ditadas por fogo – tudo está lá, alinhado, empoei- se multiplicaram, o desemprego ex-
tados Unidos, Harry Truman, definiu Arzamas-16 (Sarov). Prisioneiros po- rado, solene. Desgastado. No andar plodiu e as empresas que resistiam à
sua famosa doutrina, inaugurando a líticos ou comuns do gulag foram de cima, o guia convida a meditar no tormenta pagavam salários em ru-
Guerra Fria. Em Washington, seu Es- mobilizados para os trabalhos mais “escritório de Kurchatov”, ou pelo blos fortemente desvalorizados. O
tado-Maior preparava o Plano Drop- perigosos, como a extração de miné- menos aquele onde o diretor traba- salve-se quem puder estendeu-se a
shot, formalizado no início de 1950, rio de urânio e o manuseio de mate- lhou durante suas breves estadias no todos os setores da sociedade, que,
que planejava um ataque-surpresa, rial físsil, seguindo o princípio cini- local, por ocasião dos testes. Uma in- um após o outro, pararam de ser fi-
“com o lançamento de duzentas a camente expresso por Stalin: “Até os cubadora chamada Parque Tecnoló- nanciados, da saúde à educação, pas-
trezentas bombas atômicas nos prin- inimigos do povo têm um papel a de- gico Nuclear tenta ressuscitar a voca- sando pela polícia e pela justiça.
cipais centros industriais, militares e sempenhar na construção do socia- ção científica da cidade... O ódio crescia, o separatismo vi-
científicos da União Soviética”. lismo”. Em 1945, relata o historiador A rede de cidades fechadas do pro- cejava. A Guerra da Chechênia des-
O resultado do trabalho coorde- Yuri Fyodorov, treze campos de tra- jeto atômico constituía uma vasta co- pertou, na população chocada e hu-
nado dos cientistas mais eminentes balho administrados pelo NKVD munidade de cientistas, pesquisado- milhada, não entusiasmo, mas uma
do país, engenheiros e construtores, (Ministério do Interior) com 103 mil res e engenheiros, inteiramente sede doentia de vingança. Quando
bem como dos serviços de inteligên- prisioneiros foram colocados à dis- voltada a um único objetivo: salvar a todos esperavam uma rápida chama-
cia e dos “espiões atômicos” foi a cria- posição do projeto atômico. Depois, pátria dos novos perigos que a amea- da ao dever da república indócil –
ção, em apenas quatro anos, da pri- uniram-se a eles outros 190 mil pri- çavam. “Por mais paradoxal que pos- “Tarefa de duas horas para uma divi-
meira bomba atômica soviética, cujo sioneiros designados à extração de sa parecer, essa cidade fechada às ou- são paraquedista”, prometeu Pavel
codinome era RDS 1. Algumas déca- diversos minérios.4 Quantos conse- tras ligava-se por milhares de Grachev, ministro da Defesa –, o
das depois, um dos líderes do progra- guiram um dia voltar para casa? filamentos a centenas de organiza- Exército se viu preso em um atoleiro
ma, Yuli Khariton, escreveu sobre o Com a pesquisa teórica em bom ções e empresas dentro da superpo- de sangue.
período: “Estou perplexo e respeito- andamento e o fornecimento de ma- tência, muito mais fortemente do que Questionados sobre o assustador
samente me curvo diante daquilo térias-primas garantido, era preciso muitos dos gigantes da indústria na- balanço demográfico dos expurgos,
que nosso povo foi capaz de alcançar providenciar uma área de testes em cional localizados em grandes cida- repressões e outros campos de inter-
entre 1946 e 1949. [...] [Esse] período uma zona desértica, com condições des”, escreve o historiador Vladimir nação do período soviético, os comu-
foi de tal intensidade, de tal heroís- geológicas adequadas. A estepe caza- Matyushkin, em sua história de Sa- nistas russos, transformados em uma
mo, de tal criatividade e abnegação que, perto da cidade de Semipala- rov. “E, sem dúvida, entre seus habi- opção eleitoral entre outras, destaca-
que é impossível descrever. Quatro tinsk, foi escolhida. Novamente, ins- tantes havia quem sentisse muito ram as cicatrizes, tão absurdas a seus
anos após o fim de uma luta mortal talações colossais: em torno de todo mais fortemente do que seus conci- olhos, que o liberalismo de choque
contra o fascismo, meu país conse- o epicentro planejado, prédios, bun- dadãos soviéticos o pulso do resto do deixou na pirâmide etária ao longo
guiu pôr fim ao monopólio dos Esta- kers e estações de metrô foram esca- mundo, do planeta. Seu lugar na his- dos quinze anos após a queda do re-
dos Unidos sobre a bomba atômica”.3 lonados para a avaliação do poder tória, sua conexão com os eventos do gime soviético: entre 1992 e 2008, as
Dando prosseguimento à faça- destrutivo do dispositivo. Os traba- mundo, cada habitante da cidade mortes superaram os nascimentos
nha, em mais quatro anos as equipes lhadores da área, além de biólogos, sentiu, talvez de maneira inconscien- em 11 milhões.6 Estava em questão a
de Sarov foram além dos Estados físicos e outros especialistas mobili- te, e se orgulhou disso.”5 degradação do serviço de saúde, a ex-
Unidos, desenvolvendo a primeira zados para estudar os efeitos destru- No entanto, essa época heroica plosão da criminalidade, o aumento
bomba H. Isso, cabe enfatizar, en- tivos da onda de choque e da radia- não podia durar para sempre, e a mo- de suicídios, acidentes e catástrofes
quanto o país, devastado e exaurido ção, foram instalados a 100 bilização total das forças acabou le- de todos os tipos, além da Guerra da
pela guerra, realizava paralelamente quilômetros do ponto de teste, dando vando ao esgotamento do sistema. De Chechênia. De 1990 a 1994, a expec-
sua reconstrução, ao passo que os Es- origem a mais uma cidade sujeita ao veterano imperturbável a secretário- tativa de vida dos russos caiu drasti-
tados Unidos, ao contrário, haviam mesmo regime de sigilo absoluto: -geral mimado, a direção soviética camente, passando de 65 para 58
enriquecido, dispondo de meios fi- Moscou-400. acabou dobrando-se a um rígido con- anos, no caso dos homens, e de 74 pa-
nanceiros colossais e de um aparato formismo, enquanto o aparato indus- ra 71 anos, no caso das mulheres, vol-
militar-industrial inigualável. Em SALVAR A PÁTRIA trial ficou estagnado e se deteriorou. tando em seguida a aumentar
1950, a economia norte-americana Não é necessário ter autorização para Cansada de ser constantemente em- vagarosamente.
representava 27% do PIB mundial, visitar essa vila, cuja população mal purrada à exploração por seus diri- Nesse contexto, as cidades fecha-
contra 9,6% da União Soviética. passa de mil pessoas. Chamada de gentes, a população começou a re- das pareceram as últimas joias do
Esse modelo de cidade fechada Kurchatov, em homenagem ao diretor cuar diante do obstáculo. Até que foi império. Espaços relativamente into-
construída em torno de uma “empre- científico do programa nuclear sovié- ela quem se recusou a apoiar por mais cados, onde estamos na companhia
sa-cidade” (gradoobrazuyushchee tico, o local perdeu o brilho de outro- tempo um regime incapaz de lhe for- de gente de bem, a salvo, se não da
predpriyatie) se repetiu em inúmeros ra, mas ele ainda existe aqui e ali, nas necer, em vez do ideal fantasma da corrupção, pelo menos de suas for-
elos da indústria nuclear soviética. ruas feitas de lajes de concreto borde- igualdade e da fraternidade, os bens mas mais perversas, da máfia, do cri-
Enquanto Sarov era o centro do pro- jadas por árvores, nos edifícios obso- de consumo com os quais sonhava e me. Acima de tudo, o aparato científi-
jeto atômico, onde se acotovelavam letos de estilo stalinista e nos poucos dos quais fora incessantemente pri- co soviético, em toda parte vendido e
as sumidades da pesquisa de base, hotéis de estilo antigo. A cidade ainda vada em nome de emergências e cri- dilapidado, aqui permanece protegi-
dezenas de outros locais análogos abriga o Instituto de Física Nuclear, ses. O povo afundava na desilusão e do da ganância dos novos converti-
deram sua contribuição para o esfor- que faz testes e modelagem, em coo- até no alcoolismo. Gorbachev, que dos ao liberalismo. As pessoas conti-
ço nacional. Assim, já em 1945, diver- peração com uma equipe de cientis- diagnosticou corretamente o proble- nuam a se ocupar de tarefas
sas pequenas cidades dos Urais e da tas japoneses, relacionados a situa- ma, não foi capaz de contê-lo. essenciais, como a produção de ma-
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terial físsil (para uso militar e civil), o ram sob o controle da Agência empresa estatal que reúne o conjunto dora de start-ups. Às vezes apoiados
reprocessamento de combustíveis, o Internacional de Energia Atômica das atividades civis atômicas – cerca por institutos de pesquisa, às vezes
desarmamento e o desenvolvimento (AIEA) e de acordo com padrões mui- de quarenta. Pouco a pouco, o arqui- baseados em financiamento público-
de novas armas. to diferentes daqueles adotados nos pélago da ciência se dissolve. -privado, de meados da década de
Essas cidades, originalmente pro- primórdios, quando o rio era consi- A Rosatom supervisiona uma dú- 1990 para cá esses “tecnoparques”
jetadas como simples dormitórios derado a melhor forma de se livrar de zia de cidades fechadas e seus insti- brotaram como cogumelos depois da
destinados aos funcionários da “em- materiais perigosos. tutos de pesquisa, centros de enri- chuva. No final de 2019, eles eram
presa-cidade”, que representava qua- quecimento e reprocessamento de 169, oferecendo a empreendedores
se todo o emprego local, se diversifi- MULTIPLICAÇÃO combustíveis. No Irã, na Índia, na criativos um ambiente considerado
caram. Surgiram lojas, restaurantes, DOS TECNOPARQUES China e em Bangladesh, sua carteira favorável ao desenvolvimento de seu
cinemas, shopping centers e até A outra metade encontrou trabalho de pedidos excede os US$ 100 bi- projeto. Porém, como observa ano
agências imobiliárias e de viagens. nas várias start-ups e empresas sub- lhões, e ela tem trinta projetos de usi- após ano a associação Technoparks,
Como as atividades de pesquisa per- contratadas pela companhia princi- nas em construção. No setor espacial, a taxa de sucesso das start-ups per-
deram sua intensidade com a catás- pal. Em Sarov, por exemplo, a incuba- as tecnologias russas, rústicas porém manece bastante baixa (27% das em-
trofe econômica pós-soviética, a for- dora Binar hospeda há quinze anos robustas, provaram seu valor e repre- presas sobrevivem ao fim de seu pe-
ça de trabalho migrou para empregos os mais diversos projetos de alta tec- sentam um elo fundamental da coo- ríodo de incubação, contra 87% nos
civis mais lucrativos. Os serviços pú- nologia: lentes intraoculares, instru- peração internacional concentrada Estados Unidos e 88% na Europa).
blicos (fornecimento de energia, ges- mentos de medição sem contato de na Estação Espacial Internacional. Talvez seja um efeito da lenda, às ve-
tão da água, transporte público), as- nivelamento de chapas na saída do Muitos sistemas, de módulos de se- zes idealizada na Rússia, da start-up
sim como as instalações de férias, laminador, sensores de segurança gurança a motores, são utilizados há iniciada em uma garagem por peque-
culturais e esportivas, agora são de para centrais nucleares. O nível de tempos em foguetes europeus e nos gênios desconhecidos prestes a
responsabilidade do município ou fo- estudos significativamente mais ele- norte-americanos. revolucionar o mundo. É claro que
ram transferidos para o setor priva- vado do que a média nacional, com- O balanço de outras tentativas de Bill Gates, Steve Jobs e outros Mark
do. Até as cidades científicas, que binado a uma atmosfera serena e es- avanço tecnológico mais recentes é Zuckerbergs não desenvolveram as
mantiveram o status de cidades fe- tudiosa da cidade confinada, bem menos brilhante, como na área de in- tecnologias cuja promoção assegura-
chadas, se normalizaram, mantendo, como a proximidade de empresas ul- teligência artificial, supercomputa- ram de maneira brilhante. Porque o
porém, seu particularismo cultural. traespecializadas, tudo isso favorece dores, nanotecnologia e pesquisa ingrediente chave do sucesso – é o
Proponha a abertura da cidade a a proliferação de projetos de alta tec- médica. Criado em 2011 com fundos que nos lembra a história das cidades
um morador de Sarov e ele logo res- nologia. Isso significa ainda uma ta- públicos por Anatoly Chubais (um fechadas, assim como a do Vale do Si-
ponderá: “Jamais!”. Embora hoje as xa de desemprego menor que a de ou- dos ideólogos da “terapia de choque” lício ou do MIT – não é a garagem,
vantagens dos tempos soviéticos se- tras cidades de porte semelhante ao estilo russo), a fim de incentivar o mas uma pesquisa básica de longo
jam coisa do passado, mesmo que o (4%, contra 6% em escala nacional).7 desenvolvimento de tecnologias ba- prazo financiada com fundos públi-
sigilo não exista mais e todos possam Essa subcultura “confinada” tam- seadas em nanopartículas, a empre- cos, o exato oposto desse enxame de
se comunicar com o resto do mundo, bém é mantida pelo Clube das Cida- sa estatal Rosnano, por exemplo, não tentativas desordenadas. 
os habitantes das cidades fechadas des Fechadas, que organiza inter- produziu a revolução tecnológica
gostam de se manter entre os seus. câmbios, estágios e acampamentos anunciada por seus promotores, mas *Christophe Trontin  é jornalista.
“Os veteranos da fase heroica parti- de verão para seus habitantes. foi apontada pelo Tribunal de Contas
ram para um mundo melhor, mas a Parte dessas antigas cidades se- por obter uma isenção fiscal 1   A ndrey Sakharov, Souvenirs [Memórias], Alfa-
maioria de seus filhos e netos ficou cretas, porém, mudou para o direito injustificada. -Kniga, Moscou, 2019 (edição original: 1978).
por aqui. Metade deles trabalha em comum, como Obninsk, onde foi de- A Rússia não seria mais capaz de 2   V. I. Juchkine e A. N. Tkatchenko, citados por
Vladimir Matyushkin, A vida cotidiana em Ar-
empresas-cidades, onde ‘dinastias” senvolvida a primeira usina nuclear realizar as façanhas do programa zamas-16 (em russo), edições Molodaya
de pesquisadores e engenheiros civil, e Dubna, que abriga um acele- científico soviético do pós-guerra, Gvardia, Moscou, 2008.
atuam em benefício do progresso rador de partículas e um centro de uma época muito mais difícil e dolo- 3   Yuri Khariton e Yuri Smirnov, Mythes et réalités
du projet atomique soviétique, Arzamas-16
técnico em vários setores, civis e mi- pesquisa de base, ou ainda Zagorsk-7, rosa que a atual? Teria a transição pa- [Mitos e realidades do projeto atômico sovié-
litares. Modernizados, os institutos cujo centro de pesquisa sobre armas ra o capitalismo cortado a tal ponto tico, Arzamas-16], VNIIEF (Instituto Pan-Rus-
de pesquisa atômica e as plantas de bacteriológicas foi desmontado; ou suas asas? Tentativas não faltam. so de Pesquisa Científica em Física Experi-
mental), 1994.
condicionamento e reprocessamento então as cidades que cercam as insta- Desde o início do século, cada cidade, 4   Yuri Fyodorov, “Le Goulag atomique” [O gulag
de combustível físsil continuam sua lações de pesquisa espacial, retorna- cada região, cada grande empresa atômico], Tradition Russe (jornal on-line), Pra-
busca pela “energia atômica civil lim- das em 1986 à “vida civil”. Só conti- pública que se preze orgulha-se de ga, 30 set. 2015.
5   Vladimir Matyushkin, op. cit.
pa”. Mesmo que esse ideal não seja al- nuam fechadas as cidades ligadas ao ter sua incubadora, seu tecnopolo, 6   Fonte: Goskomstat.
cançado, pelo menos eles agora ope- Ministério da Defesa ou à Rosatom, seu centro de pesquisa, sua incuba- 7   Fonte: Rosstat, Faikov.

C OLEÇÃ O
CLÁSSICOS DA LITERATURA UNESP
Esta coleção constitui uma porta de entrada para o cânon da
literatura universal e marca a estreia da Editora Unesp nesta área.
Não se pretende disponibilizar edições críticas,
mas simplesmente volumes que permitam a leitura prazerosa de
clássicos. A seleção de títulos é conscientemente multifacetada
e não sistemática, permitindo, afinal, o livre passeio do leitor.

Triste fim
A relíquia Contos Quincas Borba
Histórias de Policarpo
www.editoraunesp.com.br
extraordinárias Quaresma
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 13

NOS ESTADOS UNIDOS, O GRANDE PAVOR DEMOCRÁTICO

Os populistas norte-americanos
contra o lobby dos médicos
A negligência de Donald Trump e Jair Bolsonaro diante da crise sanitária reforçou a ideia de que
os “populistas” seriam hostis à ciência, particularmente a médica. A história dos Estados Unidos e
a do Canadá lembram o contrário: os populistas lutaram para democratizar o saber e a saúde,
enquanto as corporações de médicos trabalham para reservá-los aos ricos

POR THOMAS FRANK*

N
este ano de pandemia, a crise Nossos formadores de opinião tá desempregado – e a pandemia está manesca, e inúmeras obras foram de-
política que lhe serve de fundo também têm uma teoria para expli- tirando o emprego de milhões de pes- dicadas a ele. Todos esses trabalhos
teria relação, segundo dizem, car os comportamentos irresponsá- soas. Por fim, é ele que, no dia em que destacam um fato curioso: os repre-
com a obstinação do povo veis observados entre alguns grupos, a cura para a Covid-19 estiver dispo- sentantes dessa corrente nada ti-
norte-americano em rejeitar a auto- que favorecem a propagação do ví- nível, a venderá a preço de ouro. nham contra a ciência ou contra a
ridade do discurso científico. Veja rus. Esses desgarrados não são ape- E esse sistema é o que é porque a educação. Pelo contrário, seus dis-
aquele pessoal brincando na piscina nas idiotas, garantem eles: agem sob “medicina organizada”, apoiada no cursos em defesa da tecnologia, do
do restaurante, perto do Lago de a influência de uma verdadeira dou- prestígio de que goza a especializa- conhecimento e da educação eram
Ozarks (Missouri), enquanto uma trina anticiência – o “populismo”. Os ção profissional, luta há quase um sé- tão sinceros e floreados que ficamos
epidemia terrível varre o país... E to- partidários dessa fé – os “populistas”, culo para garantir que ele não mude. quase constrangidos em lê-los hoje.
da aquela gente que espalha as mais portanto – são asnos incultos ressen- Ao contrário, durante todo esse pe- Por que esses panegíricos? Porque os
absurdas teorias da conspiração, tidos contra aqueles que são mais ríodo, foi das fileiras populistas que populistas se consideravam perfeita-
compartilha recomendações sanitá- instruídos, devotando-lhes o mais saíram os impulsos de reforma que mente alinhados ao progresso cientí-
rias fantasiosas nas redes sociais, faz profundo desprezo.2 Eles preferem tentaram – sem sucesso – transfor- fico do fim de século, defendendo
compras sem máscara, lança fogos confiar em palpites a acreditar no sa- má-lo, a fim de que ele esteja a servi- princípios como o Estado de bem-es-
de artifício no meio da rua... E o que ber livresco, desdenham das reco- ço da maioria. Em outras palavras, tar e a intervenção do poder público.
dizer do presidente imbecil, que ig- mendações dos profissionais de saú- nossos especialistas, acadêmicos e Paralelamente, estavam em cons-
nora as recomendações de seus pró- de, exaltam a sabedoria das multidões pensadores muito sérios e suprema- tante luta contra as elites econômicas
prios especialistas, passa o tempo – e, é claro, são racistas. O populismo mente inteligentes erraram em tudo. e intelectuais de seu tempo, com tan-
apontando os responsáveis sem é o inimigo da ciência: está em guerra É precisamente porque nos prostra- tos especialistas declarando ver a
nunca se incluir entre eles e chegou a contra o pensamento racional. Ele é mos demais aos pés das recomenda- mão de Deus na ordem estabelecida.
aconselhar as pessoas a tomar de- cúmplice na propagação do mal, se ções científicas que a saúde pública Para os populistas, todas as formas
sinfetante, já que funciona tão bem não for o próprio mal. se tornou um sonho inatingível. E a de privilégio eram suspeitas, incluin-
na limpeza da cozinha e do vaso cura para o mal que nos atinge não do o prestígio no qual as profissões
sanitário? PRIVILÉGIOS DO SABER está em outra parte senão nesse po- superiores baseavam sua autoridade.
Essa batalha implacável entre “ig- Eis um pequeno silogismo que a clas- pulismo tão odiado e temido pelos Um exemplo vívido dessa ideia está
norantes” e “iluminados” está há se intelectual norte-americana não especialistas. no célebre Jardim do Éden, localiza-
anos no centro da vida política dos se cansa de nos apresentar – e como Para entender o que está em jogo, do na cidade de Lucas, no Kansas: um
Estados Unidos.1 Para muita gente, os poderia ser diferente, se ele é tão se- precisamos começar definindo o ter- parque de esculturas, construído na
democratas, os “progressistas”, são dutor e acaricia as vaidades? A ciên- mo. O vocábulo “populista” foi adota- década de 1910, que é uma das pri-
de longe os mais alinhados com a cia médica é a verdade, o populismo do em 1891 nos Estados Unidos, no meiras tentativas de popularizar teo-
realidade objetiva: eles ouvem reli- está errado: essa evidência é tão fla- Kansas, por membros de um jovem rias populistas e socialistas. Entre
giosamente as opiniões dos ganha- grante que glorificar a primeira e partido agrário. Com reivindicações suas principais atrações, há uma ce-
dores do Prêmio Nobel e outros lau- condenar a segunda se tornou um te- que iam do abandono do padrão ouro na chamada “A força de trabalho cru-
reados por prêmios científicos de ma banal, alimentando artigos e edi- à luta contra os monopólios, passan- cificada”, na qual um trabalhador é
excelência. Já os republicanos vive- toriais até a exaustão. do pela nacionalização das ferrovias, torturado até a morte pelos mais
riam em outro mundo – um mundo Acontece que tudo isso é um enor- o movimento logo ganhou amplitu- eminentes membros da comunidade:
de fábulas e lendas, onde a verdade me equívoco. Se os Estados Unidos se de, a ponto de seu sucesso, por um um banqueiro, um advogado, um
não tem valor. mostram tragicamente incapazes de tempo, parecer garantido. Mas isso médico e um padre.
Em tempos normais, nosso clube lidar com a ameaça do novo corona- não se confirmou: em menos de dez Em suma, a visão de mundo dos
de comentaristas, autoproclamados vírus, isso não é decorrência funda- anos, o Partido Populista foi dizima- primeiros populistas era radicalmen-
formadores de opinião, aproveita-se mentalmente da extraordinária estu- do. Sua influência, porém, atravessou te democrática: o povo tinha o pri-
da disputa para classificar cada lado. pidez de Donald Trump – embora ela gerações, já que algumas de suas mado de tudo, e o justo papel dos es-
Nós somos os espertos! Eles são os es- tenha seu papel. Isso se dá em razão ideias podem ser encontradas no pecialistas em uma democracia
túpidos! Mas, com a pandemia, o de um sistema: o sistema de saúde dos Partido Socialista Americano, no deveria limitar-se a servir e informar
confronto de repente ganhou outra Estados Unidos. É ele que pisoteia a New Deal das décadas de 1930 e 1940 os cidadãos.
nitidez. Os norte-americanos respei- própria ideia de saúde pública e e nas campanhas presidenciais de Os populistas do final do século
táveis proclamam com voz trêmula transforma o acesso à saúde em um 2016 e 2020 de Bernie Sanders. XIX eram pouco loquazes a respeito
sua eterna e inabalável confiança na luxo reservado a poucos. É ele que jo- A ascensão e queda dos populistas da política de saúde. É preciso dizer
ciência, e as autoridades democratas ga as pessoas na miséria por causa de norte-americanos – e aqui falo da- que a medicina norte-americana ain-
exortam uma nação de joelhos a se- uma simples perna quebrada, que re- queles que cunharam o termo – têm da não era o labirinto burocrático
guir os conselhos dos especialistas cusa atendimento a quem não tem se- sido um assunto muito apreciado pe- terrivelmente caro que conhecemos
como se fossem a palavra divina. guro, que retira o seguro de quem es- los historiadores com uma veia ro- hoje. No entanto, assim que os preços
14 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

dos medicamentos passaram a subir, AMEAÇAS DE REPRESÁLIA Esse ataque rendeu à AMA um como todas as tentativas ulteriores de
nas décadas seguintes, começaram a Em outra obra, Shadid afirma agir em processo baseado na legislação anti- estabelecer um sistema de saúde real-
florescer diversos sistemas alternati- nome do “povo dos Estados Unidos”, truste, mas não bastou para fazê-la mente universal nos Estados Unidos.
vos mais democráticos, imaginados lutando “para escapar à dominação parar. Afinal, ela não reunia os me- Mas foi no Canadá que a guerra da
em conjunto por agricultores, orga- dos privilégios, que está levando o lhores especialistas de seu tempo, ciência contra o populismo teve seus
nizações sindicais e instituições de país para o caminho da ditadura e do que estavam apenas exigindo ser tra- eventos mais explosivos, como nos re-
caridade, com um único objetivo: caos”. Citando essas palavras em um tados com o respeito que lhes era de- corda o historiador Robert McMath.8
tornar a assistência médica acessível livro publicado em 1939, o jornalista vido? Seu presidente chegou a ponto Em várias províncias das prada-
às classes trabalhadoras. James Rorty comentou: “São propos- de protestar, em 1938, contra a aber- rias canadenses, os ecos da revolta
Entre as realizações cujo crédito tas simples, mais populistas do que tura de uma investigação federal so- populista norte-americana da déca-
deve ser dado aos “neopopulistas”, socialistas, que atingiram em cheio bre a reforma do sistema de saúde. da de 1890 permaneceram por déca-
há uma pela qual tenho um fraco. os agricultores de Oklahoma, porque Ele afirmava que toda a hierarquia das. Durante a Grande Depressão, a
Ela nasceu em 1929, em Elk City, falavam exatamente daquilo que eles social fica pervertida quando se acei- personificação política por excelên-
Oklahoma, estado onde as teses po- viviam”.5 ta que beócios peçam alto e bom som cia dessa tradição foi um partido
pulistas tiveram forte ressonância É bastante claro que, quando fala- remédios de curandeiros, exigindo agrário radical chamado Co-operati-
no final do século anterior. Trata-se va em “privilégios”, Shadid estava que profissionais os prescrevam. “É ve Commonwealth Federation (CCF,
do estabelecimento de um sistema pensando na American Medical As- uma prática da medicina que não é Federação Cooperativa da Common-
cooperativo de saúde no qual cam- sociation (AMA, Associação Médica científica nem economicamente ra- wealth). Em 1944, ele conseguiu uma
poneses e suas famílias, em troca de Americana), a organização profissio- cional”, afirmava com desprezo. vitória esmagadora nas eleições pro-
uma pequena taxa anual, tinham nal dos médicos. Seus membros sim- É realmente impressionante o que vinciais de Saskatchewan, formando
garantia de acesso a médicos, den- plesmente declararam guerra a ele a ética profissional é capaz de impe- então o que a história chamou de “o
tistas e um hospital local com equi- por ter ousado abrir um hospital coo- dir quando os profissionais sentem primeiro governo socialista da Amé-
pamentos modernos. Os membros perativo, lançando contra ele os es- que seu status social está ameaçado. rica do Norte”.
da cooperativa – ou seja, todo mun- tratagemas mais diabólicos. Para Reeleito presidente em 1948, após Reeleita várias vezes ao longo dos
do, mas sobretudo os trabalhadores eles, o plano do reformador neopo- uma campanha muito mais populis- anos, a CCF fez campanha em 1960
da terra – eram responsáveis por ele- pulista era “imoral”, pois planejava ta do que a de Donald Trump em em torno de um projeto de cobertura
ger seu comitê de gestão e gerenciar confiar decisões econômicas a não 2016, Harry Truman decidiu concen- universal de saúde para toda a pro-
o aspecto econômico. iniciados. Após tentar cassar sua li- trar seu segundo mandato na cober- víncia, saindo mais uma vez vitoriosa
Esse sistema foi inventado por um cença, a AMA expulsou Shadid de sua tura universal de saúde. Poucos me- de uma eleição amplamente domina-
certo Dr. Michael Shadid, que decidiu seção local, fazendo-o perder assim ses depois de assumir o cargo, ele da por esse tema. Dois anos depois,
montá-lo com a ajuda da seção local seu seguro de responsabilidade civil. apresentou um programa para isso, em julho de 1962, o governo local es-
da Farmers Union, uma organização Ela também conseguiu dissuadir a louvando as façanhas da medicina tava pronto para lançar o Medicare,
sindical camponesa. A presença des- maioria dos profissionais que ele ten- moderna, ao mesmo tempo que des- seu sistema de saúde de pagador úni-
sa entidade confirma a dimensão po- tou contratar de se juntar a ele. tacava que ela havia provocado a dis- co, ou seja, cujos custos são cobertos
pulista do projeto, pois ela era uma Os comentaristas de hoje certa- parada dos preços dos medicamen- por um único sistema público – o pri-
descendente mais ou menos direta mente descreveriam esse episódio, tos. “Dessa forma, os cuidados meiro da nação canadense.
do partido criado na década de 1890. com ar de alta gravidade e caretas de médicos estão inacessíveis não mais Foi então que a “ciência organiza-
Mas a história pessoal do Dr. Shadid é desaprovação, como uma guerra do apenas aos pobres, mas a todos os da” lançou sua arma de destruição em
ainda mais instrutiva. populista Shadid contra a ciência. grupos de renda, com exceção das massa. No mesmo dia em que o novo
Nascido no Líbano, Michael Sha- Mas seria muito mais preciso falar mais elevadas”,7 declarou em 1949 em sistema entrou em vigor, todos os mé-
did emigrou para os Estados Unidos em uma “guerra da ciência contra o discurso ao Congresso. dicos de Saskatchewan entraram em
em 1898. Desde o início de sua carrei- populismo”. O contra-ataque da AMA foi ime- greve. Seus efetivos não passavam de
ra, ele exerceu a medicina junto a Essa guerra durou muitos anos, e diato. Criticando o “sistema nocivo, mil pessoas, ainda assim esse foi, em
agricultores que não tinham um tos- a AMA conseguiu combater e enter- típico das nações decadentes”, ela ar- todo seu esplendor, um “momento
tão. Ele também teve uma breve ade- rar, uma após a outra, todas as pro- gumentou que o plano de Truman co- Ayn Rand”, para retomar o nome da fi-
são ao Partido Socialista. Apesar de postas para democratizar o acesso locaria os médicos, representantes lósofa e romancista do século XX,
suas convicções políticas incomuns, aos cuidados de saúde. Seus mem- superiormente qualificados de uma apóstola do individualismo, muito
ele não era nada charlatão – pelo con- bros organizaram, por exemplo, um profissão altamente respeitada, sob a popular nos Estados Unidos.9 Com es-
trário, suas exigências em matéria de boicote a uma fazenda de gado leitei- batuta de “uma enorme burocracia de sa ação, o 1% dos instruídos e abasta-
qualidade do atendimento eram par- ro a fim de induzir uma fundação de administradores públicos, funcioná- dos intimaram o povinho a ficar em
ticularmente altas. Shadid destaca- caridade vagamente ligada a ela a en- rios, contadores e comissões leigas”. seu lugar e demonstrar respeito.
va-se de seus pares pela denúncia de cerrar suas pesquisas no campo da Determinada a impedir esse presi- Essa versão canadense do con-
uma prática da medicina que consi- “economia da medicina”, como se dente ignaro, a AMA convocou seus fronto entre ciência e populismo –
derava predatória, especialmente chamava então. O historiador Paul membros (bastante abastados, em entre um grupo profissional peque-
nas pequenas cidades de Oklahoma. Starr também conta que, em Washin- sua maioria) a contribuir, cobrando no, porém prestigiado, e os
Buscando se distanciar desse mode- gton, onde uma cooperativa de saúde uma cotização excepcional e, assim, trabalhadores de Saskatchewan –
lo, ele se dizia um “médico do povo”3 semelhante à de Elk City acabara de reunindo um fabuloso tesouro de também recorreu a manobras que só
capaz de resolver o eterno quebra-ca- surgir, a AMA “ameaçava todos os guerra. Esses fundos lhe permitiram a AMA conhecia. Assim como ela, a
beça dos Estados Unidos, que até ho- médicos envolvidos na iniciativa com contratar os serviços de uma agência associação de médicos da província
je continua sem solução: cuidados represálias, agia para impedir que californiana chamada Campaigns canadense acumulou um enorme
médicos caros e saúde ruim para a conseguissem consultas ou que pa- Inc., pioneira em comunicação políti- montante por meio da cotização de
população. “Em tempos de guerra e cientes lhes fossem encaminhados ca, a quem confiou a missão de liderar seus membros, utilizando-o para fi-
de paz, de crise e de abundância, de pelos colegas e conseguiu convencer suas forças em campo. Logo o país se nanciar seus esforços de propaganda.
tempestade e de calmaria, há fatos todos os hospitais do Distrito de Co- viu afogado em uma avalanche de Não apenas o movimento recebeu
que não mudam: os pobres adoecem lumbia a lhes negar a prerrogativa de panfletos, correspondências e car- apoio da Câmara de Comércio de
mais cedo, ficam mais tempo doen- admissão [isto é, o direito concedido tuns abjetos, os quais sugeriam que o Saskatchewan e outras associações
tes e são os que menos recebem cui- a um médico, em virtude de sua con- advento de uma “medicina socializa- comerciais, como também a impren-
dados médicos, embora sejam os que dição de membro pertencente a um da” significaria o irremediável fim da sa local seguiu seus passos em unís-
mais precisam. Alguns são pobres estabelecimento de saúde, de admitir liberdade individual. sono, bradando contra a difusão do
porque estão doentes. Outros estão um paciente em um hospital ou cen- Por causa desses métodos, que in- comunismo e das doenças. Ativistas
doentes porque são pobres”, tro médico para fornecer-lhe diag- felizmente se tornaram clássicos, o de extrema direita também fizeram a
escreveu.4 nóstico ou tratamento]”.6 projeto de Truman fracassou, assim festa, por meio de um coletivo vindo
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do nada, o Keep Our Doctors (KOD, Às vezes, o pavor democrático Sokolsky era um macarthista fer- direita, os especialistas continuam
Manter nossos médicos), que preten- atinge seu objetivo. Não foi o caso da voroso que avançava para a direita da fulminando os insolentes que ousam
dia combater o sistema de pagador grande greve do 1% que incendiou direita. A CCF de Saskatchewan era desafiar seu poder. O verdadeiro tó-
único por meio das reuniões públi- Saskatchewan em 1962 – seu fracasso um partido agrário e operário à es- pico do debate são seus privilégios, e
cas, da caça às bruxas e de insinua- foi, inclusive, retumbante. Se em um querda. Hoje, o jogo virou, tudo se in- todos somos incentivados a nos pros-
ções racistas – pois o governo neopo- primeiro momento o medo teve seu verteu. O Partido Democrata que ele- trar a seus pés e à marcha cerrada em
pulista anunciara sua intenção de efeito, logo a simpatia pela causa dos geu Harry Truman agora atende aos defesa de sua causa.
trazer médicos do exterior para subs- médicos arrefeceu, auxiliada pelos interesses de executivos ricos e gra- No entanto, deixando de lado as
tituir os grevistas. discursos exagerados do campo dos duados. Ele resgata diligentemente fantasias egoístas desse politburo
A questão central, evidentemente, especialistas – um pastor evangélico os pequenos gênios de Wall Street. moderno, a velha equação política
era a do lugar que os especialistas de- que espalhava a opressão pelas on- Obedece escrupulosamente às injun- ainda se distingue por trás do véu da
veriam ocupar em uma democracia. das do rádio chegou a pedir que cor- ções de economistas que glorificam o suficiência de esquerda. Hoje, o sena-
Os médicos viviam então uma situa- resse sangue.11 A greve terminou em livre-comércio. E, quando seus repre- dor abertamente populista Bernie
ção de monopólio: somente eles deci- um mês. Cinco anos depois, todas as sentantes propõem a reforma da saú- Sanders é o mais ardente defensor de
diam sobre a escolha dos tratamen- províncias do país tinham um siste- de, não o fazem consultando a base, um sistema de saúde universal, en-
tos e seu preço, e só prestavam contas ma de saúde inspirado no modelo de mas reunindo especialistas de todos quanto os soldados da “ciência orga-
a seus pares. O projeto da CCF – as- Saskatchewan, e o Medicare é até ho- os setores envolvidos e pedindo que nizada” e do poder privado se empe-
sim como o do Dr. Shadid e o do pre- je uma das realizações sociais das reorganizem o sistema entre si. De- nham sistematicamente em atacar
sidente Truman – vinha enfraquecer quais o Canadá mais se orgulha. pois disso, ficam espantados quando essa ideia. O populismo não é a últi-
sua autoridade, confiando parte dela Nenhum dos movimentos de re- a opinião pública expressa sua ira. ma descoberta preciosa do mal que
aos cidadãos comuns. Na época, um forma que acabei de descrever con- nos afeta; ele é o remédio que pode
repórter do Washington Post obser- testou a importância da pesquisa nos livrar desse mal. 
vou: “Os médicos são os ‘sumos sa- científica ou de qualquer uma de suas “Os médicos são os ‘su-
cerdotes’ de nosso tempo e, como tal, conclusões. Todos esses pensadores mos sacerdotes’ de nosso *Thomas Frank,  jornalista e historiador, é
não têm o hábito de receber ordens neopopulistas admiravam a medici- autor de The People, No: A Brief History of
do governo”. na moderna – eles simplesmente que-
tempo e, como tal, não Anti-Populism [O povo, não: uma breve his-
Convocado a mediar a controvér- riam torná-la acessível aos mais mo- têm o hábito de receber tória do antipopulismo], Metropolitan
sia, o barão Taylor, médico e político destos. Em outras palavras, foram ordens do governo” Books, Nova York, 2020.
britânico, resumiu os fatos em ter- duas visões da sociedade que entra- 1   V er Chris Mooney, The Republican War on
mos quase clínicos. A AMA, escreveu ram em conflito: privilégio versus Science [A guerra republicana contra a ciên-
ele em 1974, estava “em uma oposição igualdade. “NÓS, O POVO” cia], Nova York, Basic Books, 2005.
2   C f. Scott Lehigh, “Time to end populism’s war
histérica a qualquer forma de seguro- “A questão fundamental do con- As forças presentes na cadeia de on expertise” [É hora de acabar com a guerra
-saúde público, empenhando-se, não flito entre o governo e os médicos de atendimento de saúde também mu- do populismo contra os especialistas], The
sem sucesso, para transmitir essa Saskatchewan não é o seguro-saúde daram. A AMA não é mais o forte ba- Boston Globe, 7 abr. 2020.
3   C f. Michael A. Shadid, A Doctor for the Peo-
histeria aos médicos e à opinião pú- público, mas a democracia”, escreveu luarte dos profissionais de saúde que ple: The Autobiography of the Founder of
blica de Saskatchewan”.10 o jornal canadense The Globe and era antes. Na luta para impedir o ad- America’s First Co-operative Hospital [Um
O diagnóstico foi preciso, para di- Mail algumas semanas após o início vento da cobertura universal, novos médico para o povo: a autobiografia do funda-
dor do primeiro hospital cooperativo da Amé-
zer o mínimo: uma associação pro- da greve. “Cedo ou tarde, não impor- atores – grupos hospitalares, empre- rica], Elk City, Oklahoma, Vanguard Press,
fissional havia deliberadamente es- ta qual seja sua especialidade, o pro- sas farmacêuticas e companhias de 1939.
palhado histeria pelas pradarias fissional precisa se submeter ao leigo, seguros – conseguiram superá-la em 4   Michael A. Shadid, Doctors of Today and To-
morrow [Médicos de hoje e de amanhã], The
canadenses. O resultado foi um ata- caso contrário a democracia não po- termos de poder e influência, porém Cooperative League of the USA, Nova York,
que de “pavor democrático”, como de funcionar.” com uma motivação inalterada: hon- 1947.
costumo chamar aquilo que se pro- Exatamente! – exclamaram al- rar o que agora é chamado de “inova- 5   James Rorty, American Medicine Mobilizes
[Quando a medicina norte-americana reúne
duz quando os estratos superiores de guns –, esse é o grande problema da ção” e os profissionais que estão por suas tropas], W.W. Norton, Nova York, 1939.
uma sociedade se convencem de que democracia: ela dá a esses leigos ig- trás dela. 6   Paul Starr, The Social Transformation of Ame-
o povo enfurecido coloca em risco norantes poder sobre aqueles que A transformação mais profunda, rican Medicine. The Rise of a Sovereign Pro-
fession and the Making of a Vast Industry [A
seus privilégios. Essas crises periódi- lhes são superiores. George Sokolsky, porém, diz respeito ao pensamento transformação social da medicina dos Esta-
cas de histeria têm várias constantes: um editorialista norte-americano de de esquerda. A maneira como os au- dos Unidos. A ascensão de uma profissão
a democracia é descrita como uma ti- audiência nacional, defendeu ruido- toproclamados progressistas usam e suprema e a criação de uma vasta indústria],
Basic Books, 2017 (reedição).
rania, as camadas inferiores são criti- samente os grevistas de Saskatche- abusam da palavra “populismo” 7   Harry Truman, “Special message to the Con-
cadas por ousarem se meter em as- wan, alegando que eles encarnavam mostra que eles se voltaram resoluta- gress on the nation’s health needs” [Mensa-
suntos que não compreendem (seja “a luta dos especialistas em uma épo- mente contra sua herança democrá- gem especial ao Congresso sobre as neces-
sidades de saúde da nação], 22 abr. 1949.
economia, política externa ou, no ca- ca na qual prevalece o governo da tica. Agora os ouvimos nos lembrar 8   Robert C. McMath Jr., “Populism in two coun-
so em questão, medicina) e, claro, a multidão”. Anticomunista até a me- das virtudes da censura12 e evocamos tries: Agrarian protest in the Great Plains and
mídia atua em bloco. dula, ele pintou um quadro em que com nostalgia os felizes dias em que Prairie provinces” [Populismo em dois países:
protesto agrário nas províncias das Grandes
Todos esses ingredientes estavam médicos lutavam para manter a cabe- os patrões escolhiam nossos líderes Planícies e das Pradarias], Agricultural His-
presentes no grande pavor democráti- ça fora da água enquanto o planeta para nós. A democracia coloca um tory, v.69, n. 4, outono 1995.
co de 1896. Naquele ano, a classe do- inteiro se afogava na onda do iguali- problema, explicam eles, pois permi- 9   Ler François Flahault, “Ni dieu, ni maître, ni
impôt” [Nem deus, nem patrão, nem imposto],
minante norte-americana, apoiada tarismo. “Houve um tempo em que as te que o povo ignore a autoridade dos Le Monde Diplomatique, ago. 2008.
por quase todos os órgãos da impren- pessoas se respeitavam mutuamente especialistas. É a essa democracia in- 10  Citado em Malcolm G. Taylor e Allan Maslove,
sa, acreditava-se ameaçada por um pelo que valiam”, escreveu. “Agora, o dócil que devemos a eleição de Trump Health Insurance and Canadian Public Policy:
The Seven Decisions That Created the Health
proletariado sanguinário que mar- lema parece ter se tornado: ‘Eu valho e nosso desamparo diante do aqueci- Insurance System and Their Outcomes [Se-
chava sob a bandeira de William Jen- tanto quanto você’.” Essa filosofia, mento global ou da pandemia de Co- guro-saúde e política pública canadense: as
nings Bryan, o candidato presidencial que ele considerava tão falsa quanto vid-19. Tudo isso é culpa nossa: o cul- sete decisões que criaram o sistema de segu-
ro-saúde e seus resultados], McGill-Queens
democrata, um homem considerado perniciosa, o enfurecia. Embora em pado somos “nós, o povo” (palavras University Press, Montreal, 2009.
radical e ao qual os populistas se uni- um país como os Estados Unidos to- que abrem o preâmbulo da Consti- 11  Gregory P. Marchildon (org.), Making Medica-
ram. Do alto de suas torres de marfim, dos fossem livres para expressar suas tuição dos Estados Unidos). re: New Perspectives on the History of Medica-
re in Canada [Criando o Medicare: novas pers-
os homens bem educados da virada opiniões, parecia-lhe natural que, à O cenário político está, portanto, pectivas sobre a história do seguro-saúde no
do século se espalharam pelos jornais medida que o mundo se tornasse de ponta-cabeça, mas a luta continua Canadá], University of Toronto Press, 2012.
da Costa Leste para bradar que o mo- mais complexo, “apenas especialistas a mesma. Agora mais ligados à pure- 12  Jack Goldsmith e Andrew Keane Woods, “In-
ternet speech will never go back to normal” [O
vimento populista não passava de pudessem opinar sobre uma gama za moral gelada da esquerda do que discurso na internet nunca voltará ao normal],
uma revolta de dementes e imbecis. cada vez mais ampla de assuntos”. ao anticomunismo dos caipiras da The Atlantic, Boston, 25 abr. 202
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CAMPANHA KANAMARI DO VALE DO JAVARI, AMAZÔNIA

Defesa dos indígenas arrecadação de recursos para que


possam continuar nas aldeias duran-
te a pandemia da Covid-19.

contra a Covid-19
Até o momento, o governo brasi-
leiro e a Fundação Nacional do Índio
(Funai) não apresentaram ações
emergenciais e específicas para pro-
teger os habitantes do Vale do Javari.
Então, os próprios povos originários
O presidente Jair Bolsonaro demonstra não apenas resistência em adotar medidas iniciaram ações para se protegerem
de enfrentamento à pandemia, como também ineficiência e irresponsabilidade. da pandemia. A principal preocupa-
ção é com a disseminação da doença
Em uma cumplicidade perversa, o coronavírus se apresenta como um aliado nas aldeias.
poderoso para livrar seu governo da presença de povos indígenas, que, em As consequências da crise da Co-
sua desrazão, representam um obstáculo ao seu projeto vid-19 se manifestam de diferentes
maneiras nos contextos locais, e as
demandas também são, em muitos
POR BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS E LINO JOÃO DE OLIVEIRA NEVES* casos, diferentes daquelas dos outros
indígenas.
A Terra Indígena Vale do Javari é

A
pandemia de Covid-19 que as- A Covid-19 está disseminada por buscam o isolamento como forma de constantemente invadida por caça-
sola a humanidade atinge gra- todos os estados brasileiros. Depois sobrevivência. dores e pescadores ilegais, o que po-
vemente o Brasil, que ocupa a de tomar as capitais e os centros ur- Reconhecida pelo Estado brasilei- tencializa a transmissão do contágio
posição de segundo país em ca- banos mais populosos, o coronavírus ro como território de usufruto exclu- da Covid-19.
sos e mortes, números esses que au- avança rápido para o interior. Não sivo dos povos indígenas – contata- A preocupação também é com o
mentam a cada dia. Essa situação já por acaso, as vozes mais responsáveis dos e não – que nela habitam, a Terra suprimento de alimentos. Com a
grave por si mesma fica ainda mais alertam para o risco iminente de ge- Indígena Vale do Javari é formalmen- pandemia, muitas famílias para esta-
trágica com a demora e ineficácia das nocídio no Brasil. O genocídio é uma te uma área protegida. vam na cidade retornaram para suas
medidas tomadas pelos órgãos públi- realidade cada vez mais próxima na Contudo, assim como acontece aldeias. Com isso, a demanda por ali-
cos de saúde para o enfrentamento medida em que a Covid-19 se espar- com todas as terras indígenas do Bra- mento aumentou. Para os que estão
do coronavírus. rama pela Amazônia, região onde es- sil, ameaçadas pela política anti-in- nas aldeias, a urgência é de recurso
O Brasil, que chegou a ter um siste- tá a maioria dos povos indígenas. dígena do governo Bolsonaro, o Vale financeiro para comprar material
ma de saúde pública forte e estrutura- Um dos locais mais afetados é a do Javari está fragilizado tanto nas para caça e pesca e combustível para
do, foi nos últimos governos submeti- tríplice fronteira Brasil-Peru-Colôm- medidas de proteção territorial que as embarcações utilizadas em casos
do à aliança entre a irresponsabilidade bia, com grande concentração de po- deveriam resguardar sua integridade de deslocamentos de urgência. Para
social e os interesses privados para os pulações indígenas de diversas et- territorial contra as investidas de in- os que continuam na cidade, a neces-
quais a saúde é apenas mais uma área nias. É nessa região que se registra o vasores quanto de iniciativa de prote- sidade mais urgente são cestas bási-
de investimento altamente lucrativa. maior número de contaminados e o ção sanitária para conter o avanço do cas de alimentos, máscaras de prote-
Como consequência, o Sistema Único maior número de óbitos indígenas no coronavírus. ção e produtos de limpeza e higiene.
de Saúde, tomado como referência por Brasil. É uma área crítica, pois faz li- Os Kanamari foram os primeiros O Vale do Javari é uma área de di-
vários países, está hoje completamen- mite com o Departamento Amazo- indígenas do Vale do Javari a serem in- fícil acesso e a cada momento a Co-
te desestruturado, não atendendo às nas, na Colômbia, e o Departamento fectados pela Covid-19. Essa contami- vid-19 se alastra mais, podendo ocor-
necessidades médico-sanitárias nem de Loreto, no Peru, locais onde a inci- nação se deu por meio de servidores rer um genocídio, principalmente
sequer em tempos de normalidade, dência de Covid-19 está generalizada, do Distrito Sanitário Especial Indíge- dos povos isolados que vivem no
quanto mais em momentos de crise. e a propagação, fora de controle. na – órgão do Ministério da Saúde res- território.
Na questão dos indígenas, além No lado brasileiro é particular- ponsável pelo atendimento aos indí- Nós, Kanamari, precisamos de
da sabida morosidade da burocracia mente preocupante a situação no Va- genas –, que não observaram as apoio urgente, tanto para ajudar as
estatal, o Brasil vive sob a égide de le do Javari. A Terra Indígena Vale do exigências do protocolo de atendi- pessoas de nosso povo que estão in-
uma política que tem por objetivo eli- Javari é a área indígena com o maior mento à saúde e entraram na aldeia fectadas como para proteger os povos
minar os direitos inscritos na Consti- número dos chamados “povos isola- Kanamari sem cumprir o período de isolados.
tuição de 1988 e em acordos interna- dos”, indígenas em isolamento vo- quarentena. Os primeiros casos foram Fazemos um apelo aos amigos
cionais dos quais é signatário. luntário de todo o mundo. registrados no dia 6 de junho, e desde que desejam colaborar com os povos
O presidente Jair Bolsonaro de- Sete etnias distintas comparti- então o contágio só vem aumentando. indígenas a incluir em suas listas o
monstra não apenas resistência em lham o território do Vale do Javari: Assim como muitos povos em ou- Povo Kanamari do Vale do Javari.” 
adotar medidas de enfrentamento à cinco povos (Kanamari, Kulina, da fa- tras partes do país, cansados de espe-
pandemia, como também ineficiên- mília linguística Pano, Marubo, Mat- rar medidas efetivas tomadas pelos COMO AJUDAR
cia e irresponsabilidade. Em uma sés (Mayoruna), Matís), que há cerca poderes públicos para enfrentar a si- Contatos: +55 97 99166-7595 • WhatsApp:
cumplicidade perversa, o coronaví- de cinquenta anos mantêm relações tuação de contágio e barrar seu avan- +55 97 98416-7375 • PayPal: kanamari_
rus se apresenta como um aliado po- regulares, porém distanciadas, com ço, os Kanamari tomaram a iniciativa ufsc@outlook.com • Banco Bradesco
deroso para livrar seu governo da segmentos da população regional; e de buscar apoios para o tratamento • Agência: 0736-6 •Conta-corrente: 0700672-1
presença de povos indígenas, que, em dois povos de recente contato (Koru- médico daqueles já contaminados e • Higson Dias Castelo Branco (Presidente da
sua desrazão, representam um obstá- bo e Tsomhwâk Djapa), que mantêm para garantir a sobrevivência de suas Associação dos Kanamari do Vale do Javari
culo ao seu projeto de desenvolvi- relações esporádicas, principalmente populações no período de isolamen- – AKAVAJA, Amazônia/Brasil) • CPF:
mento de “terra arrasada”. com povos que lhes são aparentados to social, além de criarem barreiras 950.139.382-87 • E-mail: akavaja.kana-
Como aliado poderoso, e oportu- culturalmente. Além desses, pelo me- sanitárias para impedir que a doença mary@hotmail.com
no, o coronavírus, em sua fúria des- nos dezoito grupos vivem em áreas de chegue às suas aldeias. Confira a se-
trutiva de gentes e culturas, pode difícil acesso no interior da floresta. guir mensagem do povo Kanamari. *Boaventura de Sousa Santos  é diretor
promover a “limpeza das terras indí- Existem apenas evidências de sua emérito do Centro de Estudos Sociais da
genas”, permitindo que elas sejam fi- presença, mas praticamente nenhu- CAMPANHA KANAMARI Universidade de Coimbra; Lino João de
nalmente entregues à exploração ex- ma informação específica, a ser a de “Os Kanamari (autodenominados Oliveira Neves é professor do Departa-
trativista dos recursos naturais e à que em período histórico anterior fo- Tüküna), da Terra Indígena Vale do mento de Antropologia da Universidade
expansão do agronegócio. ram vítimas de violências e, por isso, Javari, lançaram uma campanha de Federal do Amazonas (Ufam).
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AQUECIMENTO GLOBAL AMEAÇA O ABASTECIMENTO DE ÁGUA

A Bolívia enfrenta a ve (altitude em que a neve se trans-


forma em chuva) subiu “em média 45
metros” nos Andes tropicais. No fim

agonia de suas geleiras


do século XXI, a temperatura pode
subir “de 2 a 5 graus”. Espera-se que o
último glacial da Venezuela desapa-
reça “já em 2021”, e é provável que em
2050 permaneçam na região apenas
as geleiras “mais importantes nos pi-
Testemunha por excelência da evolução do clima da Terra, a maioria das geleiras cos mais altos”. Segundo projeções,
está passando por uma fase de retrocesso. Nos Andes tropicais, esse derretimento “mesmo as menos alarmistas”, as úl-
timas testemunhas da revolução do
se acelera há trinta anos e coloca em risco a irrigação, a produção de eletricidade clima nos Andes tropicais perderiam
e o fornecimento de água. Grandes metrópoles como La Paz, na Bolívia, veem “entre 78% e 97%” de sua massa antes
uma parte significativa de seus recursos ameaçada do fim do século, enquanto represen-
tam 61% da oferta de água de La Paz
em tempos normais e 85% em anos
POR CÉDRIC GOUVERNEUR*, ENVIADO ESPECIAL de estresse hídrico. O “pico hídrico”,
ou seja, o momento em que o volume
de água resultante do derretimento

D
ezenas de milhares de peque- CORDILHEIRA PERDEU desconfiavam da presença de mora- flui a jusante, já começou sua inexo-
nos pontos vermelhos cinti- 37% DE SUA SUPERFÍCIE GLACIAL dores da cidade e, sem muita infor- rável diminuição na maioria dos ca-
lam no horizonte: são os tijo- Em poucas horas de carro pela Cordi- mação sobre suas intenções, vandali- sos, alguns inclusive desde a década
los de La Paz e de sua vizinha lheira Real, chegamos ao sopé da en- zavam instalações científicas. Em de 1980. A situação só deve piorar.
popular, El Alto. O Monte Chacalta- costa oeste de Huayna Potosí. Segun- 2014, hidrólogos dos quatro países da “Essa região montanhosa está pas-
ya (5.395 metros) está localizado na do os cálculos dos cientistas, esse Comunidade Andina (Bolívia, Peru, sando por um período de mudanças
Cordilheira Real, cerca de 30 quilô- gigante majestoso também está con- Equador e Colômbia) realizaram, sem precedentes”, sublinha a Unes-
metros ao norte da capital adminis- denado. As rochas negras que a cer- com o apoio do Banco Interamerica- co, desenhando um paralelo com o
trativa da Bolívia. Cem metros abai- cam, aquecidas pelo sol, aceleram no de Desenvolvimento (BID), um al- “colapso da civilização Tiwanaku”
xo do cume, a estrada sinuosa seu derretimento: “A cada ano, essa manaque educativo para explicar seu (no século XI, na atual Bolívia), que
termina com uma pequena área de geleira diminui 2 metros de espessu- trabalho e suas abordagens. Hoje, “os “coincidiu com mudanças climáticas
estacionamento com vista para o ra e recua cerca de 20 metros. Nossos camponeses não vandalizam mais significativas e rápidas”.
Altiplano, o planalto andino. O ven- cálculos mostram que, desde 1980, a nossos equipamentos. Pelo contrá- Desde os anos 1990 “alertamos as
to bate em persianas de edifícios Cordilheira perdeu 37% de sua super- rio, alguns até nos pedem para insta- autoridades, mas na época não havia
abandonados cujos telhados evo- fície glacial. No entanto, milhões de lar sensores: eles querem informa- senso de urgência”, lembra Edson Ra-
cam chalés alpinos. A incongruên- bolivianos dependem da sua água”, ções porque estão preocupados”, mírez. Especialmente porque, para as
cia dessa arquitetura no coração explica Ramírez. Na sequência, os ressalta Ramírez. populações que vivem a jusante, a
dos Andes lembra ao visitante que, engenheiros Edson Ramírez e Fran- A maioria das geleiras do planeta aceleração do derretimento foi tradu-
há apenas uma década, Chacaltaya cisco Rojas seguem para os arredores está se retraindo desde o fim da Pe- zida a curto prazo como um período
abrigava a estação de esqui mais al- de uma fazenda modesta em frente à quena Era Glacial, em meados do sé- de água abundante. Mesmo no início
ta do mundo. Enfrentando as cur- geleira, onde instalaram uma estação culo XIX. A perda de massa se acele- deste século “ainda era muito difícil
vas fechadas e o soroche (mal das hidrometeorológica que monitora a rou desde o fim dos anos 1970 e, nas convencer sobre a realidade do aque-
montanhas), um público abastado pluviometria, as temperaturas, a di- últimas décadas, a evolução desse cimento global”, suspira Magali Gar-
aproveitava para relaxar na estação reção e a velocidade do vento. O pró- processo nos Andes é considerada cía. Engenheira agrônoma e chefe do
durante o verão: na Bolívia, o inver- prio Rojas fabricou a instalação para sem precedentes desde o início do sé- laboratório do Instituto de Pesquisa e
no corresponde à estação seca; é, economizar dinheiro: “Com uma im- culo XVIII.1 O derretimento nessa re- Desenvolvimento sobre Processos
portanto, no verão, durante a esta- pressora 3D, funis e tubos de plástico, gião é um dos mais rápidos observa- Químicos (Ideproq), da UMSA, ela es-
ção das chuvas, que a neve cai. Ou construí 25 dispositivos por um total dos no mundo e faz uma das tuda as consequências do aqueci-
caía... de US$ 25 mil. Ou seja, pelo preço de contribuições mais importantes para mento global nas práticas agrícolas:
“Ali havia uma geleira de 15 me- apenas um, se comprado comercial- a elevação do nível do mar, afirma “Os camponeses andinos veem as ge-
tros de espessura na década de mente”, conta o engenheiro, sorrin- uma equipe de glaciologistas france- leiras recuando e observam também
1990”, conta desolado Edson Ramí- do. Aos 73 anos, Don Guillermo Aru- ses.2 “A perda drástica de geleiras nos que a cobertura de nuvens está redu-
rez, apontando para a encosta ro- quipa cria lhamas, ovelhas e vacas. últimos anos coincide com condi- zida. Como resultado, o sol é mais for-
chosa onde algumas hastes de metal Ele testemunhou as mudanças: ções extremamente secas desde 2010 te, as chuvas são mais concentradas,
– resquícios de um elevador de esqui “Quando me mudei para cá com mi- e, em parte, ajudou a mitigar os im- a evaporação é mais rápida, mesmo
– enferrujam. Engenheiro especia- nha família, em 1974, a geleira chega- pactos hidrológicos negativos dessa quando a quantidade de precipitação
lista em hidrologia e glaciologia do va até o canal que você vê ali. O gelo seca severa e prolongada”, precisam. permanece a mesma. Os camponeses
Instituto de Hidrologia e Hidráulica estava azul! Nada é o mesmo”, lembra “Na Bolívia, algumas geleiras perde- perceberam o que estava acontecen-
da Universidade Maior de San An- ele, apontando para uma linha que ram dois terços de sua massa, ou até do um quarto de século atrás, porque
drés (IHH-UMSA), em La Paz, o pro- divide o horizonte muito mais abaixo mais desde os anos 1980”, ressalta a são confrontados com o clima todos
fessor Ramírez monitora as geleiras que o limite atual que vemos. O au- Organização das Nações Unidas para os dias. Mas ninguém os ouviu, em
andinas tropicais há quase trinta mento da temperatura está mudando a Ciência, a Educação e a Cultura particular as elites urbanas”.
anos. “Em 2003, preveni que esse o ecossistema e tem consequências: (Unesco), em um atlas dedicado à O desaparecimento de Chacaltaya
monumento natural de 18 mil anos “Agora existem muitas lagartas de questão publicado em dezembro de contribuiu para a conscientização.
poderia desaparecer em 2015. E fui uma espécie que nunca vimos antes. 2018 por ocasião da conferência so- Diante do óbvio, os quatro países da
otimista demais: os últimos peda- Minhas lhamas adoecem quando co- bre aquecimento global (COP24) or- Comunidade Andina criaram em
ços derreteram entre 2009 e 2011. É mem esses bichos”, completa. ganizada em Katowice (Polônia).3 2012 o Projeto de Adaptação ao Im-
extremamente preocupante”, suspi- O fazendeiro recebe os visitantes pacto da Retração Acelerada de Ge-
ra o cientista. De seu passado, Cha- e oferece um queijo: “Somos bem re- “NINGUÉM ESCUTAVA leiras Tropicais Andinas (PRAA), cuja
caltaya conserva apenas o nome, cebidos. Você só precisa explicar o OS CAMPONESES” missão consiste em “fortalecer a rede
que significa “ponte de gelo”, na lín- que faz e por que faz”, diz Ramírez. Esse documento constata que, du- de vigilância” e “gerar informação
gua aimará. No passado, os povos das montanhas rante o século XX, o limite chuva/ne- útil para a tomada de decisões”.4 As
18 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

geleiras agora são monitoradas por se recurso como deles, eles exigiram ra combater a seca e o aquecimento mento de neve e gelo, escoamento das
câmeras, sondas, drones, até com como contrapartida a construção de global. Com a saída do presidente Mo- chuvas e afloramento de águas sub-
apoio do satélite boliviano de comu- infraestruturas. Sujos pelo transpor- rales do poder em novembro de 2019,8 terrâneas. Essas turfeiras são espon-
nicações Tupac Katari, em homena- te de combustíveis, muitos cami- o futuro da política de água é tão som- jas naturais reais, geralmente com
gem a um insurgente aimará do sé- nhões-pipa não eram adequados: brio quanto o do país: as eleições ge- cerca de 10 metros de profundidade,
culo XVIII. Ao mesmo tempo, não existiam veículos apropriados rais, programadas para maio de 2020, que armazenam água enquanto fil-
autoridades e ONGs sensibilizam a em todo o país, e a Bolívia aceitou foram reagendadas para setembro. tram sedimentos. Ecossistemas frá-
população sobre as consequências ajuda da vizinha Argentina. Quando Diretor-geral da Autoridade de geis, elas correm o risco de encolher a
do aquecimento global para os recur- os caminhões finalmente chegaram, Água Potável e Saneamento entre no- longo prazo por causa da redução da
sos hídricos. brigas começaram entre os morado- vembro de 2016 e novembro de 2019, contribuição da água de derretimen-
Apesar disso, as ações vêm com res da cidade, que já estavam com os Victor Hugo Rico Arancibia nos ga- to de gelo, resultando na dessecação
atraso. Entre novembro de 2016 e nervos à flor da pele. rantiu, enquanto ainda estava no do solo e em sua degradação, impac-
março de 2017, a Bolívia sofreu a pior cargo, que as autoridades haviam tando negativamente a biodiversida-
seca em um quarto de século: o fenô- “aprendido lições” com a crise, crian- de e, mais preocupante, a capacidade
meno, conhecido como El Niño (o Em 2018 e 2019, do mecanismos para antecipar riscos desse ecossistema de aprisionar o
aquecimento de águas superficiais chuvas torrenciais e, se necessário, “mobilizando a defe- dióxido de carbono: 9 a liberação des-
perto da costa do Pacífico da América sa civil em cada nível” (municipal, se CO2 pioraria ainda mais o aqueci-
do Sul), provocou uma queda de 40%
atingiram a região, departamental e estadual). Os planos mento. “Os bofedales vão desempe-
na precipitação e um aumento médio causando inundações e de gerenciamento de secas permiti- nhar o papel de geleiras durante a
na temperatura de 2 a 3 graus. De fa- deslizamentos de terra riam “identificar a infraestrutura a estação seca”, alerta Ramírez. Para
to, as secas são recorrentes na Bolí- ser melhorada ou construída para preservá-los, a UMSA estuda os ca-
via, após ciclos hidrológicos de seis A crise se trasladou para a arena atender à crescente demanda”. Desde nais pré-colombianos que em alguns
anos. Porém, em 2016, pela primeira política: já em 2000, a privatização do a crise, entre 2016 e 2019, três novos casos ainda existem nos bofedales:
vez, a escassez de água afetou não abastecimento de água havia causa- reservatórios foram construídos em “Esses canais de desvio permitem
apenas Cochabamba, Oruro, Potosí e do a duplicação de tarifas em Cocha- torno de La Paz. Novos poços foram modificar a direção da água, garantir
Sucre, mas também a conurbação La bamba, levando a um conflito social cavados em El Alto. Os oleodutos fo- a circulação interna do bofedal e for-
Paz-El Alto, cuja população, difícil de que foi violentamente reprimido, ra- ram reformados e os canais imper- talecer a autoalimentação. Estamos
registrar pelo censo, é estimada em zão pela qual o presidente Gonzalo meabilizados para reduzir vazamen- estudando essas práticas para repli-
mais de 2 milhões de habitantes. Sánchez de Lozada fugiu para os Es- tos. No distrito 4 de El Alto, as perdas cá-las em larga escala dentro de dois
A estação seca, que geralmente tados Unidos e um de seus ministros por infiltração foram reduzidas de ou três anos”, explica Ramírez.
ocorre de abril a setembro, estendeu- foi condenado em 2018 por um tribu- 39,6% para 26,5% do volume trans-
-se naquele ano. A partir de outubro, nal da Flórida.5 Após sua eleição em portado. “Precisamos estudar mais
os cortes de água foram aumentan- 2006, Morales (Movimento pelo So- os mecanismos de adaptação às mu- O paradoxo é que, a
do: “Ficamos à seca por dias. Não po- cialismo, MAS) reverteu as privatiza- danças climáticas e estabelecer es- curto prazo, o aumento
díamos tomar banho nem cozinhar”, ções e criou o Ministério de Meio Am- tratégias de reabilitação diante da
lembra, furioso, um lojista no centro biente e Água. A nova Constituição degradação ambiental”, reconhece
das temperaturas se
da cidade. “Em Cochabamba, as pes- do Estado Plurinacional da Bolívia, Rico Arancibia. Por exemplo, o des- traduz em uma melhoria
soas estão mais acostumadas às se- aprovada por referendo em 2009, vê o matamento das últimas décadas no na vida cotidiana desses
cas, estão mais preparadas e pos- acesso à água como um direito fun- departamento de La Paz levou à re- agricultores andinos
suem cisternas. Os camponeses damental e até como “um marcador dução dos córregos que alimentam
também enfrentaram secas severas da soberania do povo” (artigo 16, pa- os lençóis freáticos.
em 1983, 1987 e 2006. Mas os paceños rágrafo 373). E foi por iniciativa da As secas futuras poderão ser ain- Os engenheiros agrícolas Miguel
[os habitantes de La Paz] ficaram de- Bolívia que a Assembleia Geral das da mais drásticas se o país não puder Ángel López e Mauricio Cussi reali-
samparados”, conta a engenheira Nações Unidas aprovou uma resolu- mais contar com o derretimento do zam um estudo sobre as consequên-
agrícola Magali García. A água é ra- ção em 28 de julho de 2010 reconhe- gelo, alerta Ramírez, mostrando o cias do aquecimento global nas práti-
cionada em 94 bairros, ou um terço cendo como “fundamental” o “direi- entorno do reservatório de Tuni. cas agrícolas para a UMSA. Eles nos
da metrópole, em particular nos dis- to à água potável, limpa e segura”. Construído em 1975 a jusante da ge- levam à comunidade de Chojñapata,
tritos do sul, que são mais ricos. Os leira Huayna Potosí, esse reservatório não muito longe da cidade de Acha-
cortes foram, portanto, um verdadei- ESFORÇO PARA SALVAR de 26 milhões de metros cúbicos cachi. Aqui, a uma altitude de mais
ro choque para as classes média e al- AS ZONAS ÚMIDAS abastece La Paz e El Alto. “Em 2016, a de 4 mil metros, algumas dezenas de
ta, para as quais era natural obter Durante a seca de 2016, entre 3 mil e 5 água resultante do degelo manteve famílias aimará cultivam as encostas
água ao abrir a torneira. Moradores mil manifestantes de bairros abasta- um nível correto no reservatório: acima dos bofedales. O Lago Titicaca
percorriam as ruas com recipientes dos do sul da metrópole marcharam imagino o desastre em caso de desa- brilha no horizonte. “Os terraços que
vazios. Os mais abastados compra- contra o governo. A crise acentuou o parecimento da geleira”, cuja expec- podem ser vistos nas encostas têm
vam água engarrafada. No campo, divórcio entre o presidente e a classe tativa de vida ele estima em “cerca de mais de mil anos. Eles protegem o so-
manadas de lhamas morriam de se- média de La Paz, que então o acusava sessenta anos”. Os outros reservató- lo da erosão”, explica López. As par-
de, arruinando os camponeses. As fé- – críticas recorrentes nas conversas – rios de La Paz e El Alto “não depen- celas são usadas em sistema de rota-
rias escolares tiveram de ser anteci- “de se preocupar apenas com os po- dem de geleiras, apenas das chuvas ção para limitar o esgotamento do
padas por vários dias, pois a água foi bres e os indígenas”.6 Chefes caem: geradas pelas correntes de ar úmidas solo. Os agrônomos nos apresentam
cortada nas escolas. Houve manifes- em novembro de 2016, a ministra do das planícies subtropicais vizinhas”, Don Juan Mamani. Mamani, 70 anos,
tações de solidariedade entre os mo- Meio Ambiente e Água, Alexandra acrescenta Rico Arancibia, que está criador de lhamas, nasceu aqui, onde
radores, mas também brigas. Moreira, e outras três altas autorida- se preparando “para o comporta- mora com a esposa. Seus dez filhos
Em 21 de novembro de 2016, o pre- des não foram apenas demitidas, mas mento climático cada vez mais errá- partiram “para viver a vida em La
sidente Evo Morales, comparando o também processadas por “descum- tico e influenciado pelo aumento glo- Paz, Chile e Argentina”. Em outubro,
desastre com um terremoto, decre- primento de seu dever” e até “atenta- bal das temperaturas”. Em 2018 e para que as chuvas abundem, “pres-
tou estado de emergência e mobili- do contra a segurança pública” (os 2019, chuvas torrenciais atingiram a tamos homenagem a Pachamama
zou o Exército, enquanto exortava processos foram suspensos em maio região, causando inundações e desli- [deusa inca que encarna a Mãe Ter-
seus concidadãos a resolver seus pro- de 2019, pois o Ministério Público foi zamentos de terra. ra]. Contornamos o cume três vezes.
blemas pacientemente: “As soluções incapaz de provar que havia sido co- Atualmente, os cientistas andinos De joelhos!”, diz o camponês, apon-
estruturais para a crise exigirão tem- metido crime).7 estão trabalhando para salvar os bo- tando para a montanha vizinha com
po”. A água foi requisitada pelas co- Em fevereiro de 2017, as autorida- fedales: zonas úmidas das montanhas o queixo. Don Mamani está experi-
munidades rurais: considerando es- des mobilizaram US$ 200 milhões pa- (pântanos) alimentadas pelo derreti- mentando o aquecimento diaria-
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19

PARA ALÉM DO MEDO DE VER OS MUSEUS FRANCESES VAZIOS

mente e não necessariamente se


queixa: “Foi muito mais frio na mi-
nha juventude. As geadas matavam Polêmicas sobre a
restituição das obras
as batatas. Nos últimos vinte anos, os
tempos mudaram. Não está nevando
como antes. E realizamos muito mais
colheitas!”, diz.

de arte africanas
O paradoxo é que, a curto prazo, o
aumento das temperaturas se traduz
em uma melhoria na vida cotidiana
desses agricultores andinos, que ago-
ra cultivam diversas variedades de
tubérculos (batata e outros), mas
também feijão, ervilha, cevada e Já se passaram três anos desde que o presidente Emmanuel Macron se comprometeu
aveia. “Vendemos nossas produções a restituir os bens culturais africanos pilhados durante a colonização. Desde então,
na cidade”, diz Don Mamani. Essa co-
munidade possui recursos para alu- a promessa percorre uma corrida de obstáculos. Enquanto colecionadores e museus
gar um trator de tempos em tempos: europeus se opõem como podem, os países espoliados sofrem para reunir
“Agora usamos apenas o huizo [pá as condições necessárias para receber e conservar as obras
tradicional] para cantos inacessíveis
ao trator”. A melhoria é muito bem-
-vinda para esses agricultores, mas a POR PHILIPPE BAQUÉ*
criação de lhamas se torna difícil com

N
a invasão de lagartas. Os dois enge- aquele 23 de março de 2019, cional; a herança africana não pode lência, astúcia ou condições de não
nheiros agrícolas visitam um terreno trezentas armas e obras rituais estar apenas em coleções particula- equidade”. Consequentemente, os
recentemente arado, colhem amos- do continente africano eram res e museus europeus. [...] Quero autores defendem a devolução de pe-
tras e testam seu teor de carbono. “O leiloadas em uma sala em Nan- que sejam cumpridas as condições ças apreendidas durante conquistas
trator ara o solo mais fundo que o tes. “Vocês receberão um recibo pela para a restituição temporária ou defi- militares, mas também daquelas co-
huizo: isso esgota mais solo e libera compra, mas os fabricantes desses nitiva da herança africana dentro de letadas em missões científicas ou por
mais CO2”, suspiram. O benefício é itens receberam apenas a morte”, lan- cinco anos”, completou. E assim Ma- agentes da administração colonial.
imediato, mas piora a situação a mé- çou Thomas Bouli, porta-voz da asso- cron levantava um tabu. Em julho de Eles também pedem a devolução de
dio e longo prazo: “É difícil explicar ciação Afrique-Loire, interrompendo 2016, Jean-Marc Ayrault, então pri- bens adquiridos ilegalmente após
tudo isso aos camponeses pobres que a reunião. “A França acaba de emitir o meiro-ministro, opôs-se de forma 1960 por meio do tráfico ilícito de
estão apenas começando a sentir a vi- princípio da restituição de bens cul- contundente, em nome da inaliena- obras de arte. Para remover o obstá-
da um pouco mais fácil, ganhar mais. turais africanos saqueados e mal ad- bilidade do patrimônio, ao presiden- culo legal, os dois pesquisadores pro-
Não dá para pedir que eles trabalhem quiridos. E os objetos aqui apresenta- te do Benin, Patrice Talon, que pedia põem uma emenda ao Código do Pa-
menos”, admitem os cientistas.  dos fazem parte desses bens”, a repatriação da coleção de objetos trimônio francês, que estabelece os
completou. O leiloeiro anunciou, en- de arte reais “coletados” durante a princípios da inalienabilidade e im-
*Cédric Gouverneur  é jornalista. tão, que, a pedido do Ministério da expedição militar do general Alfred prescritibilidade dos bens culturais
Cultura, as cerca de trinta peças ori- Amédée Dodds ao Daomé entre 1892 pertencentes a coleções públicas.
1   A ntoine Rabatel (org.), “Current state of gla-
ciers in the tropical Andes: a multi-century ginárias do Benin seriam retiradas do e 1894, e mantidos em Paris no Mu- Desde a apresentação do relató-
perspective on glacier evolution and climate catálogo. O governo de Porto Novo, seu do Quai Branly-Jacques Chirac. rio, Macron comprometeu-se a devol-
change” [Estado atual das geleiras nos Andes capital do Benim, foi o único a pedir ver 26 peças ao Benin, corresponden-
tropicais: uma perspectiva de vários séculos
sobre a evolução das geleiras e as mudanças tal “restituição” depois de ter sido UM MOMENTO DE do em parte aos objetos reivindicados
climáticas], The Cryosphere, Goöttingen, n.7, alertado pelos ativistas de Nantes. EXTREMA DESINIBIÇÃO em 2016 por esse país: tronos, está-
22 jan. 2013. “Essas pessoas são a vergonha da Após seu discurso, Macron encomen- tuas, portas esculpidas, relicários e
2   Étienne Berthier (org.), “Two decades of gla-
cier mass loss along the Andes” [Duas déca- causa que defendem, se é que há uma dou um relatório a Bénédicte Savoy, regalia (atributos de simbólicos mo-
das de perda de massa glacial nos Andes], causa a defender”, defende-se Yves- professor de História da Arte da Uni- nárquicos) que pertenciam aos reis
Nature Geoscience, Londres, n.12, 16 set. -Bernard Debie, advogado do Coleti- versidade Técnica de Berlim, e Felwi- do Daomé. Essa orientação desper-
2019.
3   Koen Verbist e Tina Schoolmeester, Atlas de vo de Antiquários de Saint-Germain- ne Sarr, professor de Economia da tou a hostilidade de grande parte dos
glaciares y aguas andinos: el impacto del re- -des-Prés. Além do aborrecimento de Universidade Gaston-Berger, no Se- conservadores. “Os museus não de-
troceso de los glaciares sobre los recursos ter perdido uma compra, o negocian- negal. Em novembro de 2018, o resul- vem ser reféns da dolorosa história do
hídricos [Atlas de geleiras e águas andinos: o
impacto do recuo das geleiras nos recursos te de arte se opõe vigorosamente à tado do trabalho foi publicado sob o colonialismo”, denuncia Stéphane
hídricos], Unesco, Grid-Arendal, Paris, dez. própria noção de “restituição”, por- título “Restituir o patrimônio africa- Martin, ex-presidente do Museu do
2018. Também disponível em inglês. que isso equivale, segundo ele, à rea- no”.1 Os dois pesquisadores fazem Quai Branly, enquanto seu colega Ju-
4   “ Monitoreo de glaciares tropicales andinos en
un contexto de cambio climático” [Monitora- lização de “uma clivagem: de um la- uma comparação entre as centenas lien Volper, curador do Museu Real
mento de geleiras tropicais andinas em um do, proprietários ilegítimos; do outro, de milhares de objetos mantidos no da África Central, em Tervuren, Bél-
contexto de mudanças climáticas], relatório populações espoliadas” – dicotomia Ocidente – incluindo 88 mil em cole- gica, onde está uma das mais impor-
do IHH-UMSA, maio 2019.
5   C f. También la Lluvia [Também a chuva], filme fortemente contestada pelo nego- ções públicas francesas – com os tantes coleções europeias de arte
de Iciar Bollain (França, Espanha e México, ciante de arte. poucos milhares listados em museus africana, alarma-se com o prejuízo
2010). Um ano e meio antes, em 28 de no continente negro. Para Savoy e que isso significaria para as coleções
6   Ler Maëlle Mariette, “En Bolivie, sur la route
avec l’élite de Santa Cruz” [Na estrada da Bo- novembro de 2017, durante um dis- Sarr, o período colonial correspon- nacionais.2
lívia com a elite de Santa Cruz], Le Monde curso na Universidade de Ouagadou- dia, na França, “a um momento de Embora o relatório Savoy/Sarr
Diplomatique, jul. 2020. gou (Burkina Faso), Emmanuel Ma- extrema desinibição em questões de aborde apenas estabelecimentos pú-
7   L os Tiempos, Cochabamba, 2 jun. 2019.
8   Ler Renaud Lambert, “Un coup d’État trop fa- cron havia abordado, para surpresa ‘suprimento’ de patrimônio em suas blicos, comerciantes de arte e cole-
cile” [Um golpe fácil demais], Le Monde Di- de todos, esse assunto polêmico. próprias colônias, uma bulimia de cionadores particulares também es-
plomatique, dez. 2019. “Não posso aceitar que grande parte objetos”. As relações de dominação tão sendo cobrados. “Como a França
9   M athias Vuille (dir.) “Rapid decline of snow
and ice in the tropical Andes: impacts, uncer- do patrimônio cultural de vários paí- da época convidam, segundo eles, a perdeu toda sua influência na África,
tainties and challenges ahead” [Rápido declí- ses africanos esteja na França”, disse postular “a falta de consentimento o presidente ofereceu restituições aos
nio da neve e do gelo nos Andes tropicais: o presidente francês. “Há explicações das populações locais durante a ex- líderes africanos para manter os mer-
impactos, incertezas e desafios à frente], Uni-
versidade de Nova York em Albany, Earth-S- históricas para isso, mas não há justi- tração dos objetos” e a considerar que cados contra a China”, irrita-se Ber-
cience Reviews, n.76, 2018. ficativa válida, duradoura e incondi- as aquisições foram obtidas “por vio- nard Dulon, presidente do Coletivo
20 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

de Antiquários de Saint-Germain-

© Domínio Público
-des-Prés, que reúne a maioria dos
especialistas nesse mercado. “Essas
obras de arte, que pertencem à he-
rança da humanidade, serão devolvi-
das a quem? Os governos africanos
têm a mesma noção de conservação
do patrimônio que nós? Eles terão o
direito de revendê-las imediatamen-
te?”, indagou. O anúncio das restitui-
ções teve pouco efeito no volume de
vendas, mas Réginald Groux já está
preocupado com as consequências
mais ou menos a longo prazo desse
movimento. “Sem colecionadores,
99% dos objetos na Europa teriam
quase desaparecido, vítimas de igno-
rância, dos cupins e dos autos de fé de
pessoas religiosas”,3 argumenta o ne-
gociante de arte. Os amadores certa-
mente salvaram objetos, mas alguns
também se aproveitaram de crises,
guerras ou fomes para se apropriar,
por meio de intermediários, de obje-
tos sagrados ou bens arqueológicos.
Longe dessas controvérsias, Béné-
dicte Savoy lamenta que seu relatório
tenha sido mais bem recebido na Ale-
manha do que na França e que a
maioria dos conservadores franceses
não entenda o que está em jogo. “To-
dos os interlocutores que encontra-
mos na África nos disseram que não
se tratava de tirar tudo dos museus
franceses, porque certas peças são
excelentes embaixadoras da cultura
de seus países. Mas eles pedem que
uma parte significativa dessa heran-
ça seja acessível às jovens gerações A orientação de Macron para devolver as obras de arte aos países africanos despertou a hostilidade dos conservadores
africanas, que não podem vir à Euro-
pa, para que possam recarregar suas “Transferência ou empréstimo, a do.4 Para ele, o retorno dos 26 objetos devolvê-los imediatamente”, admite
baterias, se inspirar e ter como refe- médio ou longo prazo, só podemos reais ao Benin é “uma falsa boa ideia”: José Pliya, diretor de programa da
rência a criatividade das gerações an- esperar passivamente a decisão da “Não quero perder essas peças pela Agência Nacional para a Promoção
teriores”, explica. França”, lamenta, em Cotonou, Alain segunda vez”. O destino ideal para do Patrimônio e Desenvolvimento do
A historiadora da arte Marie-Céci- Godonou, vice-presidente do comitê eles deveria ter sido o Museu Histórico Turismo (ANPT). “O presidente Talon
le Zinsou – filha de Lionel Zinsou, encarregado da cooperação museo- de Abomei, que ocupa os únicos dois é extremamente claro: além do sím-
banqueiro de investimentos e ex-pri- lógica e patrimonial entre França e edifícios abertos ao público no vasto bolo de reparo e memória recupera-
meiro-ministro do Benin, próximo a Benin. “Para nós, o que permanece local dos palácios reais de Abomei, da, é a dimensão econômica desses
Macron – criou um museu de arte fundamental é que o Benin um dia construídos entre os séculos XVII e objetos que importa para nós. Eles
contemporânea em Ouidah, uma ci- recupere o direito à propriedade des- XIX por doze reis sucessivos. No início devem contribuir para a economia de
dade costeira no sul do país, impor- ses objetos. Quando oficialmente re- de 2020, após uma rápida restauração nosso país por meio do desenvolvi-
tante centro de comércio de escravos tornarem ao patrimônio nacional, do local, alguns dos objetos reais fo- mento de um turismo ambicioso”,
durante o período do comércio trian- estejam eles em Paris, Abomei ou Da- ram novamente exibidos lá, mas uma afirma. Para incentivar esse setor
gular. A decoração limpa do estabele- car, continuarão a viajar e serão apre- grande vitrine permanece desespera- ainda marginal, o chefe de Estado o
cimento, uma vila colonial de estilo sentados em exposições. Mas somos damente vazia: a que abrigava a gran- integrou a um vasto plano de investi-
afro-brasileiro, hospeda regularmen- nós que decidiremos o destino deles”, de espada sagrada, símbolo do poder mentos intitulado “O Benim Revela-
te as obras de artistas africanos con- acrescenta. Enquanto se aguarda a mágico dos reis durante as guerras, do”, que inclui, entre outras coisas, o
temporâneos, das quais muitas fa- devolução dos objetos, é preciso re- roubada em 2001 e nunca encontrada. aprimoramento do patrimônio natu-
zem parte de suas coleções familiares. solver a questão dos locais destina- Tendo sofrido numerosos roubos e vá- ral, o desenvolvimento de locais à
“O retorno dessas obras marca a reto- dos a recebê-los. Em muitos países rios incêndios, sem pessoal qualifica- beira-mar, como clubes mediterrâ-
mada da dignidade e do orgulho”, africanos, os museus herdados da co- do, essa instituição oferece poucas ga- neos, safáris em parques de animais5
alegra-se a jovem. Em 2006, a Funda- lonização, especialmente os criados rantias. É outro estabelecimento, que e a criação de ao menos quatro mu-
ção Zinsou, que ela preside, organi- pelo Instituto Francês da África Ne- deveria ter sido erguido no mesmo lo- seus. Mas os recursos financeiros li-
zou em Cotonou uma exposição dedi- gra (Ifan), não foram mantidos ou, cal, que herdará os 26 objetos: o Mu- mitados do Estado e o declínio no nú-
cada ao rei Béhanzin em colaboração em vários casos, foram saqueados. seu da Epopeia das Amazonas e dos mero de turistas após o sequestro de
com o Museu do Quai Branly. A mos- Em 2016, o artista beninense Ro- Reis do Daomé, financiado em parte dois franceses levaram o governo a
tra atraiu 275 mil pessoas em três me- muald Hazoumé elaborou uma ava- por um empréstimo de 12 milhões de rever suas ambições e a abandonar
ses. “Um verdadeiro sucesso, mas liação condenatória do estado dos es- euros da Agência Francesa de Desen- dois projetos de coleções públicas.
muitos beninenses não entenderam tabelecimentos em seu país e volvimento, mas cujo trabalho ainda Essa mistura de gêneros surpreende
por que os objetos de sua herança ti- denunciou os muitos roubos que so- não foi iniciado. Didier Houénoudé, diretor do Insti-
veram de retornar à França no final freram. “Nossa cultura foi abandona- “Ficamos surpresos com a decisão tuto Nacional de Artes, Arqueologia e
da exposição”, observa Zinsou. da por cinquenta anos”, dizia ofendi- de Emmanuel Macron, que propôs Cultura da Universidade de Abomei-
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21

-Calavi: “As autoridades exigiram o mônio nunca deixa de sair do país, de realizou uma cerimônia incomum: demonstrou intenção em devolvê-los
retorno desses objetos para desenvol- vítima de tráfico ilícito.6 Entre os o embaixador da França, um repre- aos países de onde eles vêm.
ver o turismo de massa. No entanto, mais populares estão os objetos de sentante do ministro da Cultura do Três anos após o discurso de Ma-
corre-se o risco de serem colocados a vodu, uma religião animista genera- Benin, membros da família real de cron em Ouagadougou, nenhum in-
serviço de um projeto puramente lizada no Benin. Abomei, o Coletivo de Antiquários de ventário de propriedades a restituir,
mercantil”, explica. Para Dominique Zinkpè, uma fi- Saint-Germain-des-Prés e uma pe- nenhuma revisão do Código do Patri-
Professor de Arqueologia e Pré- gura da arte contemporânea do Be- quena multidão de artistas e estudan- mônio, nenhuma restituição efetiva.
-História, Didier N’Dah descobriu nin, a responsabilidade dos amado- tes testemunharam a chegada de cer- No dia 17 de novembro de 2019, antes
nos palácios reais oficinas muito an- res ocidentais, que permanecem ou ca de trinta objetos pertencentes aos de assinar um importante contrato
tigas de cunhagem de cauri (uma es- vivem no país, é uma questão. “As reis de Abomei, a maioria bastões de de venda de armas, o primeiro-mi-
pécie de búzio), a moeda da época. obras que eles cobiçam não são en- comando típicos do antigo Reino do nistro Édouard Philippe deu ao presi-
Vestígios únicos desse tipo. Ele espe- contradas nos centros de artesanato, Daomé. O estabelecimento foi criado dente senegalês, Macky Sall, o sabre
ra que “a restituição de objetos mo- mas nas aldeias, e eles sabem que al- em 2015 pelo negociante de arte fran- de El Hadj Oumar Tall, um resistente
nárquicos também beneficie a pes- guém precisa ser pago para roubá- cês Robert Vallois, um grande cole- à colonização, na forma de um em-
quisa e o ensino superior, que podem -las. As pessoas estão com fome; al- cionador de obras contemporâneas préstimo de cinco anos ao Museu das
colocá-los em seu contexto histórico”, guns estão dispostos a vender peças do Benin, com o apoio de antiquários Civilizações Negras de Dacar. Depois
e lamenta que os políticos não levem muito importantes que estão no de Saint-Germain-des-Prés. O museu de causar muito barulho, o “eu que-
em conta a opinião dos pesquisado- quintal de seus avós”, explica. “E, se já incluía cerca de quarenta peças, ro” presidencial, além da estratégia
res. Em seu escritório apertado e de- há roubo, é porque há um cliente. Os mas essa nova leva lhe valeu uma de comunicação, permanece um de-
sarrumado na Universidade de Abo- colecionadores estão procurando consagração. “Para nós, a restituição sejo piedoso. 
mei-Calavi, ele fala com paixão sobre apenas objetos sagrados, que faziam de obras é algo concreto! Criei este
as escavações que está realizando no parte de cultos. É criminoso da parte museu para entregá-lo ao Benim, de- *Philippe Baqué  é autor de Un nouvel or
país, apesar da falta de recursos. Co- deles, porque são parte integrante de corado com objetos do Benin”, excla- noir, pillage des œuvres d’art en Afrique
mo faltava arqueologia preventiva, nossa religião”, reforça o artista. Os ma Vallois. No entanto, para Debie, “é [Um novo ouro negro, pilhagem de obras de
vários locais foram destruídos duran- intermediários usam a influência do um museu franco-francês que rece- arte na África], reeditado em 2021 pela
te grandes obras financiadas pelo islã e das igrejas evangélicas para beu uma doação franco-francesa”. editora Agone.
Banco Mundial; outros estão amea- pressionar seus seguidores a se livra- Com essa operação altamente mi-
çados por um projeto de oleoduto rem dos acessórios de vodu conside- diática,7 os que se opõem à restitui-
1   F elwine Sarr e Bénédicte Savoy, Restituer le
realizado pela China, sem que os ar- rados demoníacos. “Sabemos aproxi- ção demonstram sua eficiência. Isso patrimoine africain [Restituir o patrimônio afri-
queólogos tenham se envolvido nos madamente quantos de nossos também lhes oferece a liberdade de cano], Philippe Rey/Seuil, Paris, 2018.
estudos preliminares. Suas viagens objetos estão em exibição nos mu- criticar o Ministério da Cultura fran- 2   Nicolas Truong, “Restitutions d’art africain: Au
nom de la repentance coloniale, des musées
lhe permitiram perceber a riqueza do seus franceses, mas não sabemos na- cês: os trinta objetos recebidos são pourraient se retrouver vidés” [Restituições
patrimônio das populações rurais. da de tudo o que saiu e continua a aqueles cuja venda foi suspensa em de arte africanas: em nome do arrependimen-
Eles preservam objetos religiosos, sa- sair com os antiquários e coleciona- março de 2019, em Nantes. Como o to colonial, museus poderiam ser esvaziados],
Le Monde Diplomatique, 28 nov. 2018.
grados ou seculares, às vezes com vá- dores particulares. As fronteiras são Benin finalmente não os comprou, o 3   Réginald Groux, “Restitutions: et si on faisait
rios séculos de idade, cuja história os porosas e o controle é difícil”, lamen- Coletivo de Antiquários de Saint- un peu d’histoire” [Restituições: e se fizésse-
mais velhos ainda conhecem. ta Franck Ogou, diretor da Escola do -Germain-des-Prés os adquiriu, con- mos um pouco de história], La Tribune de l’art,
Paris, 4 dez. 2018.
“Um programa deveria permitir Patrimônio Africano (EPA) de Porto- forme planejado, por 24 mil euros. “O 4   “ Romuald Hazoumé: ‘Cela fait cinquante ans
revelar toda a cultura que permanece -Novo. Em princípio, apenas cópias Estado beninense poderia ter adqui- que la culture béninoise est à l’abandon’” [Ro-
em torno desses objetos endógenos. podem deixar o Benin, com um certi- rido. O que esse valor representa para muald Hazoumé: “Há cinquenta anos a cultura
do Benin está abandonada”], Télérama , Paris,
Antes de desenvolver o turismo em ficado emitido pelos serviços patri- ele?”, indigna-se Bouli. “Estamos co- 17 set. 2016.
larga escala, é necessário sensibilizar moniais. “Infelizmente, os coleciona- meçando a duvidar da vontade dos 5   Ler Jean-Christophe Servant, “Protection de
as populações sobre o valor cultural e dores aproveitam esses documentos Estados africanos de salvaguardar la nature, safaris et bonnes affaires” [Proteção
da natureza, safáris e bons negócios], Le
patrimonial de seus bens, caso con- para substituir cópias pelos origi- sua herança. Existem tantos interes- Monde Diplomatique, fev. 2020.
trário elas os venderão”, avalia Didier nais. Os funcionários aduaneiros de- ses particulares concorrentes neles 6   Ler Philippe Baqué, “Enquête sur le pillage
N’Dah. Até hoje, muitas peças ar- vem ser treinados, e um desejo real que os nacionais vêm por último”, des objets d’art” [Pesquisa sobre a pilhagem
de objetos de arte], Le Monde Diplomatique,
queológicas e religiosas são compra- de combater o tráfico deve ser afir- questiona. O ativista lembra que o Se- jan. 2005.
das ou roubadas por intermédio de mado”, observa Didier N’Dah. negal, que herdou milhares de obje- 7   C f. “Retour au Bénin de vingt-huit objets
redes de “agências” a serviço de anti- Em 17 de janeiro de 2020, nos su- tos da antiga África Ocidental france- appartenant aux anciens rois d’Abomey” [Re-
torno ao Benin de 28 objetos pertencentes
quários locais que as revendem para búrbios de Cotonou, capital econômi- sa, ainda armazenados nas aos antigos reis de Abomei], Le Monde, 18
colecionadores estrangeiros. O patri- ca do Benin, o Petit Musée de la Réca- instalações do Ifan em Dacar, nunca jan. 2020.
22 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

PROPOSTAS DE REMUNERAÇÃO DECENTE AOS TRABALHADORES DA CULTURA

A sede por segurança


munerado por peça – é inexistente e
em que a validação do trabalho artís-
tico é uma prerrogativa de uma esfe-
ra institucional composta por escolas

social no mundo das artes


de arte, pelo mercado e pelo Estado.
Entretanto, há um interesse parti-
cular em reivindicar um salário para
os artistas/autores. Eles constituem
uma categoria exemplar da invisibili-
O mundo da arte e da cultura, violentamente afetado pela gestão da crise sanitária, dade do trabalho e serviram de ponto
se vê diante dos limites de um modelo em que a remuneração está muito conectada de apoio ao desmantelamento de ins-
tituições do salário consideradas
com a dinâmica dos mercados. Romper a condição de intermitência em direção alienantes e anacrônicas. É, entre ou-
a um salário vitalício permitiria aos trabalhadores das artes libertar suas atividades tras coisas, com base na figura do ar-
do capital e dos subsídios estatais tista que se efetuou a desqualificação
da crítica social em benefício de uma
crítica preocupada com o desenvolvi-
POR AURÉLIEN CATIN* mento dos indivíduos e do sentido de
seu trabalho concreto. Questionar o

O
s trabalhadores do setor das ar- agora identificado como fonte de so- balho no quadro atual, mas trata-se salário partindo de um campo a prio-
tes e da cultura estão em difi- frimentos e desigualdades. Desse de considerar, sem demora, desco- ri hostil tem um sentido: isso permite
culdades. No mundo do espe- modo, o episódio do coronavírus só nectar o salário do emprego ou do voltar para a raiz da crítica social e
táculo, salas de teatro e de reforça uma constatação: o estatuto benefício dos autônomos. Hoje, pro- atualizar as reflexões sobre as bases
cinema fecharam, o que significou dos trabalhadores e de todo o setor – vavelmente o meio mais seguro para emancipadoras da “Sécu” [Sécurité
uma interrupção brutal no processo seu financiamento, sua organização, conseguir isso é redescobrir as bases Sociale – Seguridade Social].
de difusão das obras e na entrada de suas estruturas e as representações do regime da intermitência, um pla- Resta saber como inserir novos
dinheiro. Nas artes visuais, galerias e que estas veiculam – deve ser nejamento do seguro-desemprego trabalhadores das artes e da cultura
museus deixaram de receber o públi- transformado. que permita aos artistas e técnicos no regime de intermitência. Concre-
co. No setor do livro, as vitrines das Nas artes e na cultura, alguns tra- do espetáculo conservar seus salá- tamente, isso poderia passar por um
livrarias permaneceram apagadas balhadores têm um emprego perma- rios entre dois compromissos. É todo “novo modelo” de seguro-desempre-
durante semanas. Trabalhadores em nente (assalariados da edição, músi- o poder do “salário continuado” que go tal como propõe a CIP, que preco-
situações heterogêneas (artistas/au- cos de orquestra etc.), mas a maioria se expressa por meio dessa ferra- niza a criação de um anexo único
tores, empregados, trabalhadores in- é formada por artistas/autores, tra- menta: fora do emprego, os trabalha- para todos os setores que praticam o
termitentes, microempreendedores, balhadores intermitentes (com ou dores não são pagos por um empre- emprego descontínuo, com um pata-
trabalhadores temporários etc.) vi- sem seguro-desemprego), microem- gador, mas por um caixa alimentado mar de entrada fixado a zero hora
ram-se em uma situação de desem- preendedores, estagiários e estudan- por cotizações sociais. trabalhada e uma renda garantida
prego parcial, sem demanda de tra- tes. Muitas vezes, a insuficiência de Desse modo, coloca-se a questão equivalente ao salário mínimo inter-
balho nem recursos. suas rendas e as carências de sua pro- do desenvolvimento de um regime profissional de crescimento (Smic, o
Dezenas de milhares deles estão teção social os levam a procurar um que, como lembra a Coordenação dos salário mínimo francês). 3 Se não le-
atualmente sem renda ou na depen- emprego provisório no setor alimen- Intermitentes e Precários (CIP), não va em conta a qualificação, esse mo-
dência de dispositivos inapropriados, tar, que os expõe ainda mais à foi criado em nome da exceção cultu- delo tem o mérito de proclamar um
como o “fundo de solidariedade para precariedade. ral, mas para responder a práticas de direito universal e incondicional ao
as TPE [très petites entreprises – pe- Reunidos em torno de apelos à emprego descontínuo. Ele não decor- salário socializado e de exigir a ges-
quenas empresas], autônomos e mi- mobilização, como o do Art en Grève re de uma singularidade das profis- tão do seguro-desemprego pelos
croempresários”, acessível aos artis- e do Bas les Masques – Arts et Cultu- sões do mundo do espetáculo, mas próprios interessados.
tas/autores desde abril. Ao mesmo re,2 muitos destacam a inépcia de um pode ser adaptado a qualquer situa-
tempo, sua proteção social está com- modelo em que a renda depende do ção de trabalho em que a desconti- DEIXAR DE LADO AS EMPRESAS
prometida, pois recebem apenas valor de cachês, do número de carac- nuidade dos compromissos seja Uma vez estabelecido esse quadro,
uma fração do que ganhavam em um teres ou de um benefício. A convicção usual. Consequentemente, uma das dispositivos mais leves poderão ser
emprego ou no mercado. Para os de que o salário deveria ser um atri- prioridades deveria ser obter a exten- introduzidos em categorias profissio-
mais precários é uma dupla punição. buto da pessoa se difunde. Em um são horizontal do regime de intermi- nais para gerar a qualificação dos
Portanto, a crise sanitária é uma contexto profissional em que o traba- tência pela integração dos artistas/ trabalhadores do setor das artes. De
catástrofe, mas também um impulso lho gratuito é habitual, os contratos autores, dos autônomos e dos tempo- fato, para que o salário continuado
na tomada de consciência. Artistas, são curtos, às vezes informais, e as re- rários, como também sua extensão não seja apenas uma rede de segu-
autônomos e assalariados experi- munerações beiram o insulto, a ideia vertical, ou seja, baixar o patamar de rança nem a manifestação de uma
mentam, de maneira inédita, os limi- de uma renda básica pode parecer se- entrada para 250 horas trabalhadas “solidariedade interprofissional” en-
tes de um modelo em que a renda está dutora. No entanto, é preciso superar (contra as atuais 507), para depois tre supostos trabalhadores “realmen-
ligada ao posto de trabalho ou ao ní- a questão da “renda mínima” para as- chegar a zero hora. te” produtivos e os outros, ainda seria
vel flutuante de um benefício indivi- sumir o real impacto disso. Mais do A atribuição do salário socializa- preciso que se baseasse em uma qua-
dual. Mais do que nunca, parece ar- que uma remuneração mensal de 500 do – isto é, a parte do salário que não lificação pessoal, suporte de direitos
caico ligar a remuneração das euros distribuída pelo Estado, anun- é entregue diretamente ao assalaria- políticos. Nas artes visuais, por exem-
pessoas à dinâmica instantânea dos cia-se a ideia de que um salário vitalí- do, mas obtida sob forma de cotiza- plo, um júri inspirado pela comissão
mercados: essa lógica provoca des- cio concebido como direito político ções sociais e depois distribuída a es- profissional da Sécurité Sociale dos
vios em nome do emprego ou do vo- transformaria os trabalhadores das te ou a outros de diferentes formas artistas/autores poderia ser encarre-
lume de negócios e expõe os traba- artes em produtores e permitiria que – de seguro-desemprego a novas pro- gada de refletir sobre a validação do
lhadores aos abusos do capitalismo. libertassem suas atividades do capi- fissões, e mais amplamente a qual- trabalho artístico e sobre a progres-
Graças à ação de coletivos de tra- tal e dos subsídios estatais. quer situação de emprego descontí- são do salário dos artistas em função
balhadores intermitentes engajados nuo, não ocorrerá sem levantar de critérios não capitalistas (antigui-
na defesa do seguro-desemprego, UM NOVO MODELO DE algumas questões. Por exemplo, na dade no cargo, compromisso na prá-
substituída por movimentos mais re- SEGURO-DESEMPREGO arte contemporânea, em que a noção tica, projetos passados etc.).
centes como Art en Grève,1 o cami- Certamente é fundamental lutar pa- de qualificação – sobre a qual pode se Em todos os casos, a consolidação
nho “normal” da economia cultural é ra obter melhores condições de tra- basear um salário para evitar ser re- do regime de intermitência deverá ser
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23

ano
© Renato Caet

feita mais em nome dos trabalhadores desenha uma mobilização para a sindicais dos trabalhadores do setor por meio de um cartão de seguro
do que em nome dos artistas. “Artista” autogestão. das artes, artistas, pesquisadores, (carte vitale) “de centenas de euros
é uma atividade, “trabalhador”, uma Matriz do seguro-desemprego, o políticos e cidadãos sorteados, cuja que só poderão ser gastos junto a pro-
condição, e é a este título que os tra- regime geral da Sécurité Sociale não missão seria atribuir financiamentos fissionais convencionados da ali-
balhadores das artes podem preten- é apenas uma poupança para o salá- em escala apropriada: nacional ou mentação, da moradia, dos transpor-
der um salário vitalício desconectado rio dos funcionários de hospitais e departamental para um estabeleci- tes locais, da energia e da água, da
do emprego ou do benefício. E tam- aposentados, mas também um caixa mento público, comunal ou de bairro cultura”.5 
bém é pelo fato de serem produtores de investimento que permitiu desen- para um organismo municipal ou
que podem trabalhar para a livre or- volver o hospital público sem recor- uma associação local. *Aurélien Catin,  escritor, é autor de Notre
ganização das artes e da cultura. rer a impostos nem a empréstimos. Duas categorias de estruturas po- condition. Essai sur le salaire au travail artis-
Em matéria de produção, o domí- Baseando-se nessa experiência, será deriam se beneficiar desses recursos: tique [Nossa condição. Ensaio sobre o salá-
nio do investimento é uma alavanca possível substituir os subsídios esta- de uma parte, os organismos públi- rio no trabalho artístico], Riot Éditions,
decisiva. No capitalismo, são os acio- tais e o mecenato por investimentos cos ou em missão de serviço público; 2020. Este artigo foi redigido com a colabo-
nistas e os financiadores que deci- socializados. de outra, as estruturas privadas sem ração da Association d’Éducation Populaire
dem o teor do trabalho e de sua orga- Sob o modelo do “projeto para fins lucrativos. Certamente, o contra- Réseau Salariat, que, neste momento, dis-
nização. No setor das artes e da uma imprensa livre”,4 o financia- to entre a Sécurité Sociale e o Estado cute perspectivas evocadas neste artigo.
cultura, os financiamentos provêm mento das artes e da cultura poderia afastará as empresas culturais capi-
seja do Estado (encomendas, subven- ser assegurado por uma cotização so- talistas (galerias comerciais, multi-
ções, reduções fiscais etc.), seja dire- cial aplicada à produção global. A tí- nacionais do setor do divertimento, 1   V er https://artengreve.com.
2   Ver www.blm-artsetculture.fr.
tamente de potências capitalistas tulo de exemplo, uma taxa de 0,1% plataformas de comércio on-line, 3   C f. “Un nouveau modèle d’indemnisation du
(bancos, colecionadores, fundações sobre o valor agregado da mercadoria grandes produtoras etc.) e os difuso- chômage, Coordination des intermittents et
de empresa...). São atribuídos por (que corresponde ao valor econômi- res ligados a grupos industriais e fi- précaires d’Île-de-France” [Um novo modelo
de indenização do desemprego, Coordena-
meio de uma concorrência desen- co criado pelas empresas todo ano, nanceiros (fundações de empresas). ção dos Intermitentes e Precários da Île-de-
freada entre os artistas e uma compe- ou seja, 1,439 trilhão de euros em Ao aumentar a taxa de cotização, -France], nov. 2014. Disponível em: www.cip-
tição não menos feroz entre as 2018) permitiria socializar 1,4 bilhão seria possível imaginar outros usos -idf.org.
4   Ler Pierre Rimbert, “Projet pour une presse
estruturas. de euros por ano para financiar es- desses recursos, como a gratuidade libre” [Projeto para uma imprensa livre], Le
Não haverá autonomia das práti- truturas de produção e de difusão de museus. Evoquemos, para con- Monde Diplomatique, dez. 2014.
cas artísticas e culturais enquanto não comercial ou sem fins lucrativos. cluir, a proposta do sociólogo Ber- 5   
Bernard Friot, “Penser un monde nouveau.
Une sécurité sociale des productions” [Pen-
permanecerem nessa configuração. Esse valor alimentaria uma rede nard Friot de utilizar uma parte da sar um mundo novo. Um seguro social das
Com a luta pelo salário vitalício se de caixas geridos por representantes cotização para aumentar os salários produções], L’Humanité, Paris, 20 maio 2020.
24 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

SER ÚTIL, TRABALHAR PARA O INTERESSE COLETIVO... OU NÃO

Afinal, para que


ao mesmo tempo mantermos o elo
com os outros e nos fortalecer, prote-
ger, enriquecer”, como sintetizou o
presidente do Centro Pompidou.1

servem os artistas? “O QUE FAZEM NÃO SE


CHAMA TRABALHO”
A arte está sendo celebrada como ne-
cessária. Aliás, foi recrutada para a
Desde o século XIX, os artistas interrogam-se se poderão viver de sua prática e operação presidencial do “verão de
(o que está relacionado com essa questão) qual é seu papel na sociedade. Sobre esta aprendizado e de cultura”, destinado
a “recolocar [re-colocar?] as artes e a
última, contudo, todos se questionam. Parasita inspirado? Fornecedor de alimento para cultura no cerne da vida dos jovens e
a alma? O artista possui uma especificidade que pode torná-lo útil ou utilizável? de suas famílias, a partir do verão”,
como se lê nos sites do Ministério da
Cultura e do Ministério da Educação
POR EVELYNE PIEILLER* Nacional e da Juventude. Um exem-
plo, para esclarecer: o Teatro do
Odéon-Teatro da Europa, que obede-

M
aravilhoso: a arte é hoje do a uma coluna chamada “A cultura sabe-se lá por quê...) e que “a criação ceu imediatamente, oferecendo in-
muito, muito bem-vista por esquecida” (Le Monde, 30 abr.), assi- artística é algo essencial que se tor- tervenções sobre as “mulheres na
nossos políticos, parece até nada por diversos artistas famosos, nou ainda importante para nossos ci- obra de Molière” ou as Mil e uma noi-
uma solução milagrosa para Emmanuel Macron lhes dirigiu um dadãos durante este período”. A lín- tes. Educativo, agente da ligação so-
os múltiplos problemas suscitados ou tuíte entusiasmado: “O futuro não gua é hesitante, a ideia é poderosa. cial e até do cuidado, o artista se vê
agravados pela “crise” sanitária e so- pode se inventar sem o poder de ima- Além disso, todo o confinamento alçado a uma posição entre os profis-
cial atual. Sem exageros, trata-se ginação de vocês”. Em 6 de maio, pa- foi ritmado por elogios comoventes sionais úteis, senão indispensáveis.
quase sempre da-arte-e-da-cultura, ra concluir seu encontro com alguns aos poderes da arte, consoladora im- Tal questionamento da utilidade
seja lá o que se entenda por isso. outros, afirmou vigorosamente que prevista dos cidadãos – on-line, é cla- social, que talvez receba respostas
Mesmo assim, é um momento im- será lançado um programa de patro- ro, mas estando cada um deles pres- muito diferentes, ainda não foi feito
pactante. Em 2 de maio, responden- cínios públicos (voltado aos jovens, tes a descobrir que esta “possibilita nem pelos artistas, nem por seus pa-
trocinadores, nem, de forma mais
ampla, pelo público. Durante sécu-
los, sua função não foi discutida: re-
cebiam encomendas e subsídios dos
poderosos, e contribuíam com suas
obras para cantar a glória destes últi-
mos, tornar sensível seu poder de in-
fluência, manifestar a grandiosidade
de uma comunidade nacional ou reli-
giosa, ou de uma classe em ascensão,
inclusive por meio do divertimento.
Pintores, dramaturgos, músicos, mal
possuíam sentimentos até então, o
que não os impedia de ter problemas
financeiros e de ego quando os mece-
nas lhes davam as costas. “Criadores”
ou “artistas”, eles encontraram seu
lugar na sociedade. Forneciam um
trabalho que raramente precisavam
justificar ou teorizar, senão perante
seus pares, como o fez Pierre Corneil-
le com O Cid, diante dos ataques da
Caetano

Academia Francesa, que achou a pe-


ça um pouco controversa por causa
da verossimilhança e levemente cho-
© Renato

cante para a moral.


A sociedade não questionava ain-
da a legitimidade de sua existência.
Foi preciso aguardar até o século XIX
para que a sociedade e os próprios
artistas se perguntassem para quem
e para que criam, e por quem e por
que podem ser remunerados. Os pa-
trocinadores do Antigo Regime desa-
pareceram, novos circuitos de difu-
são se instalaram, novos valores
também, tanto estéticos como mo-
rais. Para a opinião dominante, con-
forme definição maldosa, mas não
muito surpreendente, do Dicionário
das ideias feitas de Gustave Flaubert,
a arte desde então “leva ao hospital”
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 25

– em outras palavras, à miséria –; critores (7 mil), músicos (2,5 mil)..., quação da forma e do cenário à los. Nessa “arte da democracia”, “não
quanto aos artistas, “o que fazem não todos encarregados de uma missão empreitada revolucionária. Enquan- cabe mais ao ministério realizar uma
se chama trabalho”. de interesse geral: criar a educação to o New Deal conheceu o esqueci- política cultural, cabe a nós – cida-
Do lado dos artistas, o mal-estar popular, animar grupos de amado- mento antes de se tornar hoje um dãos e cidadãs, nós, artistas – condu-
foi dominante. Cada vez mais nume- res, oferecer o teatro onde não havia, exemplo, tal legitimação do artista zi-la juntos”, cabe a ela construir um
rosos, cada vez mais sujeitos à apro- gravar músicas negras do sul, reco- pela política, considerada uma sujei- “sistema de delegação às empresas
vação do máximo de pessoas caso lher relatos de descendentes de es- ção da liberdade do criador a normas privadas”. É preciso apostar que esse
desejassem “vencer”, indagaram-se: cravos, embelezar os bairros com e objetivos ideológicos, não foi es- modelo promovido por uma institui-
produzir para os “burgueses” que murais (2.500), no espírito dos mura- quecida, e seu descrédito é até hoje ção de direito também privado tenha
desprezamos? Para o povo que não listas mexicanos Diego Rivera ou Da- vibrante. Podemos, no entanto, nos belas perspectivas: convida o artista
está interessado? Em um mundo que vid Siqueiros, escrever a história das interrogar, quaisquer que sejam os a casar temas eleitos pela ideologia
privilegia o útil e o rentável, para que cidades, testemunhar com fotogra- méritos excepcionais do New Deal: dominante, santificados pela “cida-
serve a busca gratuita do ideal do Be- fias a Grande Depressão etc. Isso foi que lugar existe para a “liberdade do dania” e horizontalidade, o que auto-
lo? Desenvolveram-se então as pos- impressionante. criador” quando, para ser assalaria- riza a acabar com o princípio de uma
turas do “artista maldito”, do incom- De Orson Welles ao pintor Jack- do, deve-se estar a serviço da nação? política pública e convida o novo pa-
preendido e também daquele que se son Pollock, dos fotógrafos Dorothea trocinador a escolher em um catálogo
refugiava em sua “torre de marfim”, Lange e Walker Evans aos escritores de artistas devidamente validados
reivindicando sua “inutilidade”, en- Richard Wright, autor de Black Boy, pelo mercado. Do cliente ao prestador
tregue à solidão exaltada da arte pela Saul Bellow ou John Steinbeck, uma Que lugar existe para a de serviços, o artista é um embeleza-
arte, enquanto se abria um fosso en- boa parte desses que ainda nos são “liberdade do criador” dor que responde a uma demanda lo-
tre os inovadores e o público. A exem- necessários trabalhou nessa situa- cal de cuidado. Decididamente...
plo de Honoré Daumier ou Camille ção. Sua especificidade esteve a ser-
quando, para ser Em 1935, nos tempos do então fas-
Pissarro, que colaboraram com jor- viço do interesse coletivo. Estiveram assalariado, deve-se cismo, nazismo, início do Grande Ex-
nais; de Gustavo Courbet, que orga- longe do alimento da alma e da soli- estar a serviço da nação? purgo stalinista e da aurora da Frente
nizou ele próprio a exposição de suas dão do excêntrico inadaptado. 2 Essa Popular francesa, acontecia em Paris
obras, separadas da seleção oficial integração do artista tendo como pa- o Congresso Internacional de Escri-
que as recusou por ocasião da Expo- no de fundo greves maciças na in- Questão ainda mais na ordem do tores pela Defesa da Cultura.5 Os 230
sição Universal de 1885; e de Victor dústria, marchas da fome, reivindi- dia... Como evitar que o artista seja participantes, entre eles muitos exi-
Hugo, que viria a escolher escrever cações trazidas principalmente por reconhecido como necessário à so- lados (Bertolt Brecht, Ernst Toller,
para o povo, todos os artistas do faus- um Partido Comunista bem ativo, foi ciedade sem solicitar, de um ao acaso Heinrich e Klaus Mann etc.), interro-
toso século XIX não queriam ser inú- justificada por uma razão econômi- ou do todo coletivo, que contribua garam-se sobre o sentido de seu tra-
teis, fora do circuito, membros de ca – diminuir o número de desem- para a grandeza do país, eduque a po- balho, naquele preciso momento. Pa-
uma elite que só se preocupava con- pregados – e pela vontade de dar ao pulação, sirva para sua coesão, parti- ra quem, para quê... Experimentar,
sigo mesma. Mas tal posição de rom- país uma grande cultura nacional. cipe de uma vontade coletiva, o que esclarecer? Escolher o íntimo ou o
pimento com a aristocracia, de rejei- Os resultados seriam surpreenden- pode implicar limitar suas aspirações político? Foi talvez com o filósofo Er-
ção da – e pela – massa, induzida pelo tes, fazendo os atores-operários e a e atentar contra aquilo que há de nst Bloch que se desenhou uma res-
cenário político e social e em seguida comédia musical se reunirem, 3 au- mais íntimo? O Les Nouveaux posta: “Resta no mundo uma boa
teorizada, pelo contrário, como coin- mentando a pintura regionalista, Commanditaires [Os Novos Patroci- parte de sonho que ainda não foi uti-
ventada de forma espelhada pelo pú- multiplicando a confrontação de nadores] estima ter a solução. Inicia- lizado, de história que não foi elabo-
blico que os abandonou e pelos artis- profissionais e de amadores, flores- do em 1991 pelo fotógrafo François rada, de natureza que não foi vendi-
tas que este último marginalizou, iria cendo o agitprop e a estética inspira- Hers, apoiado pela Fondation de da”. Perceber aquilo que nos falta e
fixar uma representação do artista da por Bertolt Brecht... Trabalharam France e encorajado pelo sociólogo poder desejá-lo, eis o que é magnifi-
como parasita mais ou menos inspi- pela nação – alguns entenderam es- Bruno Latour, esse movimento quer camente útil – a todos.  
rado, diferente de outros cidadãos, tar trabalhando pelo povo –; sua uti- fazer nascer uma “arte da democra-
cuja prática e eventual talento se co- lidade foi reconhecida sem contesta- cia”, pois, como afirma, em resposta à *Evelyne Pieiller  é jornalista do Le Mon-
locam “à parte”. E uma representação ção (25 milhões de norte-americanos proposta presidencial dos patrocí- de Diplomatique.
da arte, de preferência uma que não descobriram o teatro), mas o conjun- nios futuros, o historiador da arte
fosse rentável, como “alimento da al- to rapidamente pareceria muito Thomas Schlesser, “a finalidade não
ma”, o que, para ser graciosamente “vermelho” para os membros da Co- pode mais somente ser sustentar a 1   E ncontro com Serge Lasvignes, L’art est ab-
solument crucial [A arte é absolutamente cru-
ambíguo, não quer dizer que estavam missão de Atividades Antiamerica- oferta criativa dos artistas plásticos, cial], RFI, 17 mar. 2020.
menos do lado do supérfluo. nas, na era do macarthismo. arquitetos, compositores ou escrito- 2   C f. Francis V. O’Connor, Art for the Millions:
Na mesma época, precisamente res; na democracia, a finalidade deve Essays from the 1930’s by Artists and Admi-
nistrators of the WPA Federal Art Project
“À DEMANDA DOS CIDADÃOS” na União Soviética, abriu-se outra via ser a de uma resposta à demanda dos [Arte para os milhões: ensaios dos anos 1930
Em momentos particulares da histó- para determinar os deveres que con- cidadãos”.4 A fim de, por exemplo, por artistas e administradores da WPA Fede-
ria coletiva, porém, governos, socie- feririam aos artistas seus direitos: “tornar visível um lugar ou uma ativi- ral Art Project], New York Graphic Society,
1975.
dades, pintores e escritores passaram deveriam seguir a doutrina do realis- dade depreciada, reviver uma memó- 3   C f. “Pins and needles”, une comédie musicale
a definir e empregar a utilidade dos mo socialista. Em 1934, no primeiro ria, materializar um pertencimento syndicale [“Alfinetes e agulhas”, uma comédia
artistas, em planos diversos. Desse Congresso de Escritores Soviéticos, identitário, melhorar uma situação musical sindical], 42e Rue, France Musique, 2
nov. 2014.
modo, redescobrimos isso pouco de- os estatutos de sua União cercaram de vida”, um protocolo de discussão e 4   Thomas Schlesser, Si on veut que la comman-
pois do New Deal, na boca de dirigen- esta estética: “O realismo socialista, negociação está em curso com o ar- de soit l’avenir de l’art, il faut la rendre vraiment
tes e seus intermediários. Apareceu na qualidade de método fundamen- tista proposto como um mediador (os démocratique [Se queremos que o patrocínio
seja o futuro da arte, é preciso torná-lo verda-
de repente como um modelo para tal [...], exige do artista uma repre- artistas plásticos Daniel Buren ou Xa- deiramente democrático], Le Monde, 8 jun.
nossos tempos de “crise”. É verdade sentação verídica, historicamente vier Veilhan, o arquiteto Patrick Bou- 2020. Cf. também Les Nouveaux commandi-
que esse New Deal lançado pelo pre- concreta, da realidade em seu desen- chain...), o que “supõe de sua parte taires. Faire art comme on fait société [Os
Novos Patrocinadores. Fazer arte como faze-
sidente Franklin Delano Roosevelt volvimento revolucionário. Pelo ca- uma bela escuta e aceitação de uma mos a sociedade], Les Presses du Réel, Di-
em 1933 e que duraria até a guerra ráter historicamente concreto e verí- horizontalidade verdadeira”. Foi as- jon, 2013, e o site www.nouveauxcommandi-
constituiu uma reviravolta. Os artis- dico de sua representação da sim que nasceu, da necessidade de taires.eu.
5   Pour la défense de la culture. Les textes du
tas foram considerados trabalhado- realidade, ele deve contribuir para a nove habitantes do bairro, o coração Congrès international des écrivains. Paris,
res, dispondo de capacidades parti- transformação ideológica e para a pulsante no alto de um mastro de 8 juin 1935 [Para a defesa da cultura. Os textos
culares, podendo ser remunerados educação dos trabalhadores no espí- metros que avermelha a Porta de do Congresso Internacional de Escritores.
Paris, jun. 1935], reunidos e apresentados
como tais. O New Deal permitiu que rito do socialismo”. Tratou-se tam- Clignancourt, em Paris – uma obra da por Sandra Teroni e Wolfgang Klein, Éditions
fossem recrutados atores (13 mil), es- bém, aqui, de ser útil, mas pela ade- artista portuguesa Joana Vasconce- Universitaires de Dijon, 2005.
26 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

MÚSICA

Os usos de Johann
decretos. Gottfried van Swieten, for-
midável diplomata melômano, ex-
-embaixador da Áustria em Bruxelas,
Paris, Varsóvia e Berlim, apoiava

Sebastian Bach
Haydn, Mozart e Beethoven, que aos
12 anos tocava O cravo bem tempera-
do. Sua Gesellschaft der Associerten,
reunião de nobres melômanos, reunia
toda a nata musical de Viena. Swieten
De 1750, ano da morte do compositor, multi-instrumentista, professor, cantor faria tanto por Bach que Johann For-
e maestro, até os dias de hoje, a herança musical de Johann Sebastian Bach, kel, em 1802, dedicou-lhe Johann Se-
bastian Bach, sua vida, arte e obra, a
que instalou as bases da tonalidade, jamais parou de frutificar – uma vitória primeira biografia do compositor. No
da “música absoluta”, frequentemente celebrada, interpretada, recuperada... subtítulo: “Para os patriotas admira-
dores da autêntica arte musical”.
Enfim, no começo do século XIX,
POR AGATHE MÉLINAND* não havia um organista, cantor ou di-
retor de música que não possuísse
pelo menos uma partitura de Johann

E
m 31 de julho de 1750 enterra- mecenas propagaram sua posteriori- dos Corais a quatro vozes e em segui- Sebastian Bach.
ram em Leipzig “um homem de dade até o “novo dia mais radiante”3 da também venderia os manuscritos. Voltemos a Berlim, em 11 de mar-
67 anos, o senhor Johann Sebas- de 1829, que fez Berlim entrar na his- Seriam precisos dois séculos para re- ço de 1829, para o que a imprensa
tian Bach, mestre de capela e di- tória da música. cuperar tudo o que se dispersara. chamaria de “a grande festa da reli-
retor de coro da Escola Saint-Thomas, Deve-se imaginar que, na época Felizmente, Johann Philipp Kirn- gião e da arte”. Cem anos após sua
falecido na terça-feira. Quatro filhos da morte de Bach, o reino da Prússia berger, seu aluno, lembrou-se do que criação, se reviveria a Paixão segun-
menores, carro fúnebre grátis”.1 balançava entre o humor galante, o Bach lhe dizia: “Eu não exijo de você do São Mateus. O rei da Prússia e a al-
A família do compositor se mu- pietismo e o Empfindsamkeit (senti- nada além da garantia de que irá ta roda de Berlim se sentaram na sala
dou. Wilhelm Friedmann, o filho mentalismo). Escala menor e audácia transmitir essas poucas coisas a pes- da Singakademie, famosíssima asso-
predileto, dirigia a música da cidade harmônica, dor e paixão! Nas cortes soas boas”. Os alunos, estudantes e ciação coral. Mendelssohn reescre-
de Halle; Carl Philipp Emanuel era o principescas ou salões da burguesia, visitantes iriam compartilhar seus veu e editou a obra. Seu professor já
cravista da corte do rei da Prússia, evocava-se o Iluminismo e os pro- ensinamentos, tocar suas obras e fa- se gabava de ter feito o mesmo em
Frederico, o Grande... Os mais velhos gressos da indústria. O rei tocava zer circular os manuscritos. Kirn- uma carta a Goethe, em 1827: “Foi
dividiram os bens, venderam os cra- flauta e escrevia a Voltaire. Após a berger, que se tornou mestre de ca- assim que fiz o arranjo, para meu
vos, os violinos e as cafeteiras. Anna morte de Bach, Carl Philipp Emanuel, pela na corte de Frederico, o Grande, uso pessoal, de muitas cantatas, e
Magdalena, a madrasta, viveu “o la- bem mais famoso que seu pai, deu ensinaria composição a Ana Amália, meu coração me disse que lá de cima
mentável estado de viúva”2 durante entrada no registro da primeira edi- irmã do rei. Aluna dos filhos de Ba- o velho Bach me aprovava com um
dez anos, em seguida morreu, discre- ção de A arte da fuga. Foram vendidos ch, ela se apaixonou pelo pai deles, movimento de cabeça: ‘Sim, está
tamente, na miséria. Ninguém escre- trinta exemplares. Embora estivesse organizou concertos, colecionou os certo!’”. Talvez. Embora o clima de
veu uma ode fúnebre. ocupado em consolidar o catálogo de manuscritos e constituiu uma incrí- Beethoven predominasse, com a
É interessante imaginar o velho suas próprias obras, publicou o Obi- vel Bachbibliothek, hoje conservada dramatização dos sons e as viradas
Bach esquecido e pensar que sua tuário, muito útil para as futuras bio- em Berlim. Ana Amália se lembrava cansativas do romantismo, a redes-
Paixão segundo São Mateus, dirigida grafias de seu pai. Mas a herança mu- sem dúvida da visita do velho Bach a coberta da “música absoluta” encan-
em 1829 pelo jovem Felix Mendels- sical se dispersou. Johann Christian Potsdam em 1747. O rei, que tocava tou: “A maior e mais sagrada obra de
sohn, em Berlim, foi uma ressurrei- deixou os manuscritos em Berlim flauta, executou a Oferenda musical arte musical de todos os povos!” e “o
ção. Na verdade, o evento foi um clí- quando partiu para Milão. Wilhelm que o cantor lhe enviou. próprio símbolo da fé protestante,
max. Embora a fama do “cantor de Friedmann, generoso, deprimido, Em 1782, Mozart escreveu de Vie- cuja pátria foi a Prússia”, exclama-
Leipzig” ultrapassasse pouco as pobre e que não tocava mais nenhu- na, capital repleta de arte: “Eu vou to- vam as resenhas.
fronteiras da Saxônia na época de ma nota da música de seu pai, doou- dos os domingos ao meio-dia à casa É claro que o terreno havia sido
sua morte, ainda que não fosse po- -os ou vendeu-os – principalmente ao do barão Van Swieten, onde só toca- preparado, e não somente pelos pro-
pular, ele era conhecido. Seus filhos, pai de Mendelssohn. Carl Philipp mos Haendel e Bach”.4 José II, o impe- jetos de edição ou pela publicidade.
alunos, músicos, colecionadores e Emanuel publicaria ainda um terço rador-músico, reinava. Novas leis e Uma nova Europa se construía sobre

12 de agosto a
20 de setembro
2020

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PATROCÍNIO APOIO PRODUÇÃO CO-PRODUÇÃO REALIZAÇÃO


AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 27

© Claudius
a humilhação de Napoleão. O Con-
gresso de Viena, em 1815, desenhou
por cinquenta anos a Confederação
Germânica – uma reunião de princi-
pados e cidades livres, uma grande
parte da Prússia e da Áustria, que se
desafiavam. Tanto na arte quanto na
política, os conservadores se opuse-
ram aos progressistas do movimento
Jovem Alemanha, do qual eram pró-
ximos os escritores Georg Büchner e
Heinrich Heine. Os conceitos de Pe-
quena Alemanha, ao redor da Prússia
e sem a Áustria, e de Grande Alema-
nha, um Estado-nação ao redor da
Áustria, alimentavam as paixões.
Exasperação do orgulho luterano
diante da Áustria católica, sonho de
unidade nacional... O que há de mais
alemão que A paixão segundo São
Mateus? E mais unificador que
Johann Sebastian Bach, dirigido por
um gênio bem-educado de 20 anos?
Concerto fundador, gesto romântico,
patriótico e sagrado...
Em 1834, um trovão: a Inglaterra
criou a Haendel Society. Quinze anos
depois – choque! –, a primeira Bach
Society. Alguns alemães, entre eles
Robert Schumann, indignaram-se. A
resposta seria monumental. Para o
centésimo aniversário da morte do
compositor, fundaram a Bach-Ge-
sellschaft, cujo objetivo era a edição,
completa e crítica, de toda sua obra.
Franz Hauser, grande colecionador, primeiro prelúdio de cravo do velho seu Bach íntimo que lhe pertence, Nikolaus Harnoncourt, seguido de
colaborou. Bach, que instalou as ba- mestre”. Viva! “Ave Maria!”, Bach não absolutamente. Gustav Leonhardt, preferindo tocar
ses da tonalidade – o “pai da música” é mais pedante nem chato! Foi graças “No fundo, Bach era um arquite- instrumentos antigos, até sua recu-
–, também iria modificá-la. Aborda- a Charles Gounod ou à Missa em si to.” Em Lambaréné, no Gabão, onde peração política quando, sentado em
gem global do assunto, início da mu- menor executada pela Sociedade de se instalou às vésperas da Primeira uma banqueta, o violonista Mstislav
sicologia. Editaram 47 volumes em 49 Concertos do Conservatório? Foi o Guerra Mundial, Albert Schweitzer, Rostropovitch tocou a Suite n. 3 du-
anos, depois a sociedade se desfez. desgosto pelo romantismo, o simbo- cidadão da Alsácia-Lorena anexada, rante a queda do Muro de Berlim.
Franz Liszt e Johannes Brahms eram lismo ou a obra de órgão integral que tocava um prelúdio de Bach no piano Menos conhecido é seu legado, tal co-
membros muito ativos. Marcel Dupré tocaria em Paris? Des- com pedais. O Prêmio Nobel da Paz, mo foi colocado em prática por Ar-
Paris, 1835. O húngaro Liszt – ain- cobrimos Bach, o respeitamos e so- pastor, organista, médico-missioná- nold Schönberg, Alban Berg ou John
da ele –, o polonês Frédéric Chopin e bretudo o tocamos! rio, pregava com sotaque alsaciano e Cage, por meio da invenção do dode-
o alemão Ferdinand Hiller tocam O Em 1889 o piano moderno acaba- saiu em turnê tocando Bach para fi- cafonismo, a fuga em doze sons. Mais
concerto para três cravos. Hector Ber- ra de ser inventado e Ferruccio Buso- nanciar seu hospital. Colonização adiante vieram os minimalistas, Ste-
lioz: “Era desagradável ver três talen- ni, um instrumentista de 20 anos, com fundo de música sacra... Pode- ve Reich, Philip Glass...
tos admiráveis reunidos para repro- louco por Bach, esteve em Leipzig mos discutir sua ação humanitária Johann Sebastian Bach compara-
duzir essa confusa e ridícula com Gustav Mahler e Edvard Grieg. É ou seus talentos de organista, mas va cada parte de uma composição a
salmodia”.5 O que fazer? O momento preciso imaginar Leipzig, a famosa gostamos de O músico poeta, seu es- uma pessoa falando. Neste momento,
estava para o romantismo e, duas dé- sala do Gewandhaus e sua orquestra tudo publicado em 1905. Schweitzer, no espaço interestelar, as sondas Vo-
cadas depois, o Segundo Império se- outrora dirigida por Mendelssohn, o precursor, escreve sobre a força ar- yager se afastam em direção ao infi-
ria muito pouco luterano, muito pou- recebendo a fina flor da Europa mu- quitetural e simbólica do “Michelan- nito. Elas carregam um disco de ouro
co “temperado”. Além disso, Bach sical. Prelúdios, tocatas... O jovem gelo da música”. contendo a Partita n. 3. 
tinha a reputação de ser impossível Busoni recriaria Bach, como Bach Bach se reergueria da Segunda
de tocar e, sobretudo, adorava-se havia transcrito Vivaldi. Ele abriu Guerra Mundial. Aquela Alemanha *Agathe Mélinand,  dramaturga e diretora,
Beethoven, o indomável, como dizia um novo caminho. Desprovido de que difundia sua música pelos alto- escreveu e dirigiu Le petit livre d’Anna
Goethe. Ou como o entendia Victor órgão e coro, era apenas o piano, in- -falantes nos campos e obrigava as Magdalena Bach [O pequeno livro de Anna
Hugo: “O grande inglês é Shakespea- teriorizado, que desenhava o contra- orquestras de deportados a tocá-la Magdalena Bach], em 2020.
re, e o grande alemão é Beethoven”6 ponto. Em seguida, meio século de- não era a sua. Vladimir Jankélévitch,
– astro incontestável e lucrativo das pois, veio Dinu Lipatti, suas o filósofo-musicólogo, escreveu: “Eu
poderosas sociedades de concertos... interpretações claras do Bach de Bu- ousaria dizer que Bach me deixa en-
1   A rquivos municipais, Leipzig. Bach tinha na
A França descobriria de verdade soni, e chegamos muito rápido a Glen tediado?”. Não importava. Houve verdade 65 anos.
Bach com cinquenta anos de atraso Gould, detestando Busoni, embora uma explosão de Bach após a Liberta- 2   Súplica de Anna Magdalena Bach, arquivos
em relação aos anglo-saxões. Em sua empreitada e aspirações fossem ção da França, ainda mais quando in- municipais, Leipzig, 1750.
3   Berliner Allgemeine Musikalische Zeitung,
1885, a Revue des Deux Mondes escre- muito próximas às dele. Gould, fe- ventaram o disco de vinil. mar. 1829.
veu: “Johann Sebastian Bach é quase chado em seu estúdio, tocando, ge- A continuação da história é mais 4   M ozart, Carta a seu pai, arquivos Mozart, Salz-
famoso na França desde que Gounod mendo. Gould, em seu tempo, fez o conhecida: da primeira gravação do burgo.
5   Hector Berlioz, Critique musicale, Buchet-
usou para o acompanhamento de mesmo por Bach que Bach fez por Cravo bem temperado em 1930 à ex- -Chastel, Paris, 1996.
uma melodia de sua composição o Deus, segundo Emil Cioran. Gould e plosão barroca nos anos 1950, com 6   V ictor Hugo, William Shakespeare, 1864.
28 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

UM ESCRITOR, UM PAÍS

Babel jovem
e inocente
Autor entre os mais oníricos de seu tempo, Yan Lianke
se apossa dos males da sociedade chinesa, correndo
o risco de ser censurado em seu próprio país, mas não
cede nem um pouco em seu comprometimento, humor e
escrita. Aqueles que revelam a verdade – ou simplesmente
a realidade – pagam por isso às vezes com a morte, como
neste conto especialmente escrito para o
Le Monde Diplomatique

POR YAN LIANKE*

“O
rapaz ia à cidade. – Ei! Sobretudo não pergunte a
Em direção ao leste, ao ninguém, essa frase com certeza não
nascer do dia seguinte. é boa de escutar!
As férias de verão jor- O moleque ficou com ainda mais
ravam como suor. Na véspera, a últi- vontade de se informar. Mais vontade
ma aula fora muito simples, tal como ainda de saber o que significava
um problema de matemática resolvi- “I fuck your mom”. No dia seguinte,
do desde a leitura do enunciado. decidiu ir à cidade para questionar o
Fim da aula. professor de inglês. Levantou-se ce-
As férias começavam. do, tomou o café da manhã que sua
O rapaz se lançou para fora da sa- mãe havia preparado, colocou no bol-
la de aula. Na entrada da escola, o so o dinheiro que seu pai lhe dera e, Conto inédito de Yan Lianke exclusivo para o Le Monde Diplomatique
mural de avisos estava coberto de pe- enquanto o sol erguia sua bandeira,
quenos papéis. Em um deles estava deixou a casa. Caminhou alguns lis,1 – É o senhor Zhao, o professor de pouco mais velho que nosso protago-
escrito: “Querida XXX, eu te amo tan- chegou à rota do cume da montanha inglês do colégio, que você procura? nista, ia e vinha diante do balcão,
to que a cada noite sou obrigado a me para esperar ao pé de uma velha So- O menino arregalou os olhos. sem ter o que fazer. O professor de in-
aliviar sozinho”. Em um outro: phora por um ônibus que atendia à – É meu primo. glês conversava com um casal de pes-
“Zhang, você ainda não me devolveu zona rural. Nesse momento, um gru- Acrescentou que era inútil procu- soas de idade diante de um grande
os três yuans que te emprestei este po de joaninhas passou diante dele, rá-lo em sua casa, pois, sendo dia de aparelho, cujo preço discutiam.
semestre!”. Entre todos esses papéis, tão rápido como um raio; em seguida, feira, o professor Zhao estaria certa- O rapaz entrou.
havia um, vermelho-vivo, no entanto algumas borboletas o rodearam. En- mente na loja de eletrodomésticos Permaneceu timidamente na solei-
escrito com uma caneta esferográfica tão pensou consigo que era melhor Mondial, na segunda avenida. Ele en- ra da porta. Não avançou, aguardando
de tinta preta e grossa, com uma fra- andar. A pé pode-se ver a paisagem. sinou o rapaz a chegar lá. O garoto com paciência até que o professor e as
se desconhecida, em inglês: Foi então assim, tranquilamente, até hesitou e se dirigiu por fim ao ende- pessoas idosas terminassem sua con-
“I fuck your mom”. a entrada da cidade. Enfim, parecia reço indicado. Ao final de uma aveni- versa. Por fim, o casal declinou da
Essa sequência de letras lhe cau- que o ideal o abraçava. Os prédios, as da comprida de dois lis, encontrou a compra, o professor os acompanhou
sou o efeito de um voo de gansos sel- casas novas e o pórtico sobre uma lar- loja. O professor de inglês estava ali até a saída, virou-se e, ao garoto que o
vagens em sua direção. Ele levou os ga avenida. Restaurantes à margem, de fato. Era o proprietário e, embora observava com vergonha, perguntou:
pássaros para casa. Deixou a mochila as bancas e os feirantes espalhados. seu irmão e sua cunhada ficassem lá – Você quer comprar algo?
e se dirigiu ao fundo do vilarejo, à ca- Era bem ali seu destino. Embora es- habitualmente, o senhor Zhao se ins- – Eu sou do colégio do burgo.
sa do professor, que estava alimen- gotado, a ideia de encontrar logo o talava atrás do balcão durante as fé- Estendeu-lhe o papel dobrado em
tando os porcos. O menino lhe entre- professor de inglês fazia que nem sen- rias escolares. Era um homem de 40 quatro e acrescentou:
gou o papel vermelho, o educador leu tisse mais o cansaço. Tirou do bolso o anos, estatura média, vestindo uma – Queria lhe perguntar o que sig-
e ruborizou-se antes de anunciar três papel vermelho, deu uma olhada nele camisa branca, cabelos curtos pen- nifica a frase escrita em inglês nesse
observações: e, verificando que o papel com a frase teados com escova, calçando sapatos papel.
– Eu não sei direito o que significa “I fuck your mom” ainda estava lá, de couro sujos e com marcas, um O professor pegou o papel, desdo-
essa frase. Também não vale a pena ir passou pelo pórtico. Uma dezena de jeans antigo, exatamente como se brou-o. Ficou levemente branco, com
perguntar a outras pessoas; de qual- metros à frente, avistou uma jovem apresentava no colégio. A loja era o rosto contraído. Perguntou ao me-
quer modo, no próximo semestre vo- mulher que vendia saias. Perguntou- constituída de três cômodos, as pra- nino quem havia escrito aquilo. O ra-
cê passará a uma série superior e -lhe se conhecia o endereço do pro- teleiras cheias de fornos elétricos, paz respondeu que havia visto o bi-
aprenderá inglês. fessor de inglês; ela respondeu-lhe chaleiras elétricas, lâmpadas, toma- lhete no dia anterior, antes de sair de
A terceira observação foi apenas que não. No mesmo instante, um jo- das etc. No chão, ao longo das pare- férias, no mural de recados na entra-
uma recomendação insistente, como vem homem surgiu de trás dela, com des, televisores de todos os tama- da da escola.
relembrou o rapaz enquanto voltava uma sacola de saias no braço, a qual nhos, produzidos na China ou O professor o olhou bem dentro
para casa: colocou no chão antes de perguntar: importados. Um adolescente, um dos olhos e fez outra pergunta:
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 29

© Pixabay
– Eu vim especialmente para lhe – Eu vou te dizer o que significa Assim que a lâmina perfurou o
perguntar isso, andei mais de vinte lis! esta frase, mas você precisa me pagar mais velho, o garoto se afastou, apres-
O professor parecia em dúvida. uma melancia. sando-se com dificuldade. Saiu da
Seus olhos se voltaram, gelados, para O menino o encarou. margem da avenida para se misturar
o rosto da criança: O rapaz olhou ao redor e fixou o na massa humana, rápido como uma
– Vinte lis? olhar na lateral da avenida. Havia lá gota que, caindo do toldo, tocou o solo.
– Vinte lis. uma barraca de melancias. O vende- Era o mês de junho, o calor se fazia
Essa última réplica satisfez o ra- dor estava exatamente descarregan- mais ardente. O mundo transpirava
paz. Viu na expressão do professor do-as para dispô-las no chão. Em um odor fétido. Na hora do almoço, o
que este estava surpreso e desconcer- uma mesa em frente a seu carro, uma menino tomou um ônibus para voltar
tado, então prosseguiu: fruta que tinha acabado de ser corta- para casa. Seus pais, que comiam no
– Também vim à cidade com a in- da se avermelhava como um sol se quintal, perguntaram-lhe por que
tenção de comprar alguns livros. elevando ao topo dos montes. O ado- voltara tão cedo, não havia ido à feira?
Aliviado, o professor lhe acariciou lescente escolheu com habilidade O menino respondeu que havia muita
um pouco a cabeça e disse: uma melancia na bancada, entregou- gente na cidade, que não estava inte-
– Já que você tem de ir à livraria, -a ao vendedor para que a pesasse, ressante, e entrou rápido na cozinha
compre também um dicionário in- deixou o menino pagar três yuans e para beber um copo de água gelada
glês-chinês, lá você encontrará o que vinte centavos e em seguida puxou-a em um só gole. Quando reapareceu
significa essa frase. para perto de si. Mais uma vez olhou no quintal diante de seus pais, um ba-
E acrescentou: para o papel e, com uma voz calma, rulho alto e estridente ressoou da en-
– Não tenho meu dicionário comi- declarou: trada do vilarejo: a sirene de policiais
go, não sei muito bem como traduzir – Essa frase quer dizer “Eu como de moto. Também se percebia o baru-
essa frase corretamente para você. sua mãe”. lho de passos dos habitantes locais
Ele parecia lamentar e falava com O menino o examinou com ar de correndo atrás deles. As motos pare-
um sorriso confuso e pálido nos lá- espanto, parecendo não compreen- ciam vir para ali. Seu pai e sua mãe
bios. Em seguida, dobrou de novo o dê-lo. aguçaram os ouvidos, curiosos, mas o
papel e deslizou-o na mão do O maior repetiu com seriedade: rapaz, com uma aparência pálida,
menino. – É verdade! É “Eu como sua mãe”! sentiu surgir em sua cabeça, como o
O moleque saiu da loja um pouco Achando que o garoto poderia bote de uma serpente, uma frase em
perdido e parou, desconcertado, na não estar acreditando nele, pela ter- inglês que havia aprendido alguns
soleira. Na rua, uma maré humana se ceira vez releu a frase em inglês e re- dias antes. Então, com um sorriso rí-
dirigia à feira, o calor do mês de ju- petiu a tradução “Eu como sua mãe”. gido, declarou em inglês:
nho se espalhava e os vapores de suor O menino continuava simplesmente – Dad, mom: I love you! 2
fervente preenchiam o mundo. Ele a encará-lo, com um leve tremor no Pequim, 20 de maio de 20203 
hesitou e lentamente percorreu a ave- canto dos lábios, e, quando o maior
nida em direção à livraria. De repen- lhe estendeu o papel, voltou-se para *Yan Lianke, escritor, é autor, especial-
te, alguém surgiu de trás dele e bateu a mesa, pegou a faca de cortar me- mente, de Servir le peuple [A serviço do po-
em suas costas. lancia e a enfiou, de uma vez, na vo], Un chant céleste [Um canto celeste] e
Ele parou. Virou-se. Era o adoles- barriga do adolescente. Tudo se pas- La Mort du soleil [A morte do Sol], todos
cente que havia visto mais cedo na lo- sou tão rápido que ninguém teve pela Philippe Picquier, Arles, respectiva-
– Você não sabe realmente o que ja. Dez centímetros maior que ele e tempo de perceber nada. O maior mente em 2018 (reedição), 2019 e 2020.
significa esta frase? parecendo dois ou quatro anos mais não sentiu nenhuma dor, demons- Este texto foi traduzido do chinês (manda-
– Somente no semestre que vem velho. trou certa surpresa diante do rumo rim) por Brigitte Guilbaud.
eu vou começar a aprender inglês. – Sei o que significa a frase que vo- que as coisas haviam tomado, emi-
O professor lhe entregou o papel. cê mostrou ao professor Zhao – disse tiu um leve “Oh!”, largou a fruta e 1   O li é uma medida de distância chinesa cor-
respondente a 500 metros. (N.T.)
– Bem, você terá sua resposta no ele estendendo a mão para que lhe fraquejou, de joelhos no chão. O solo 2   “ Papai, mamãe, eu amo vocês!” (N.R.)
semestre que vem. entregasse o papel vermelho-escuro. se avermelhou com uma poça, a res- 3   A pronúncia em chinês dessa data é muito pa-
O menino se recusou a pegar o pa- O garoto o entregou. O mais velho peito da qual não se podia discernir recida com o som de “Eu te amo”. Com o de-
senvolvimento da internet, os chineses adquiri-
pel de novo, elevou um pouco a voz e o desdobrou e em seu rosto se formou se era de sangue ou de suco de ram o costume, já há alguns anos, de expressar
insistiu: um estranho sorriso: melancia. seu amor ou seu afeto no dia 20 de maio. (N.T.)
30 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

NO JAPÃO, O PESO DA HIERARQUIA

“Língua servil” e
sociedade da submissão
Em japonês, não é possível dirigir-se em termos idênticos a um superior e a um colega
de trabalho, nem mesmo ao seu irmão mais velho e ao mais novo. A língua ajustou-se a
uma sociedade vertical em que a submissão foi erigida enquanto virtude

POR AKIRA MIZUBAYASHI*

A
crise política que o Japão atra- intenção profunda vai bem além dis- do de uma decisão comum. É por es-
vessa é a mais grave desde 1947, so. Trata-se de liquidar os princípios sa razão que ouso afirmar, por mais
data de entrada em vigor da fundamentais do constitucionalismo chocante que possa soar, que não é
atual Constituição. E, neste moderno no que se refere aos sistemas possível haver no Japão nem “povo”,
momento, cabe justamente aos cida- de defesa das liberdades públicas. E aí nem “cidadão”, nem mesmo “socie-
dãos aprovar ou não sua revisão se- está o verdadeiro perigo. dade”, no sentido que se atribui a es-
gundo o projeto publicado em 2012 Diante das forças políticas insta- ses termos pela filosofia política dos
pelo Partido Liberal Democrata ladas, que priorizam a visão tradicio- iluministas franceses e europeus.4
(PLD), que está no poder. O primeiro- nalista do país, centrada na preemi-
-ministro Abe Shinzo, que o dirige, nência do imperador, e insistem na PARTÍCULAS LINGUÍSTICAS
busca sufocar os princípios funda- urgência de uma revisão constitucio- DE DEFERÊNCIA
mentais da democracia. nal, é justo perguntar-se por que os Minha segunda resposta é de ordem
A Constituição do Estado Japonês japoneses chegaram a esse ponto linguística.
substituiu a do Império do Grande Ja- após setenta anos de experiência de- O “ser coletivo” próprio no Japão,
pão (1889), sob a qual o país acabou mocrática. Por que continuam a legi- a maneira como os membros da co-
se enfiando na loucura mortal de timar uma política autoritária e des- munidade coexistem, o que Régis De-
uma guerra de agressão colonial cha- respeitosa à vida da maioria bray chama de modo bonito de a arte
mada Guerra dos Quinze Anos (1931- esmagadora da população, como formar um “nós” coletivo com vários
1945). Os japoneses passaram então mostrou tragicamente o exemplo do “eus”, se caracteriza essencialmente
da era dos “servos” (ou da soberania desastre de Fukushima e a realidade pela verticalidade das relações hu-
imperial) à dos “cidadãos” (ou da so- alarmante do pós-Fukushima? 3 manas, designando a cada um deter-
berania popular). Tal mudança de re- Minha primeira resposta é de or- minada posição que só faz sentido em
gime, radical e profunda, operou-se à dem político-filosófica. uma estrutura hierárquica. A domi-
custa de uma hecatombe imensurá- A característica essencial da “polí- nação dos superiores e a submissão
vel causada pela expansão colonial tica” japonesa – modalidade segundo dos inferiores, eis o cerne desse modo
do Estado japonês militar-fascista1 e a qual os japoneses criam e organi- de organização das existências. Tra-
pelos imensuráveis bombardeios de zam sua existência coletiva, seu mo- ta-se, portanto, de um sistema de co-
10 de março de 1945 em Tóquio, além do de estarem juntos – consiste em se mandos em cadeia, que traduz perfei-
das duas bombas atômicas que ani- entender não como uma “nação cívi- tamente a expressão jôi-katatsu (de
quilaram em poucos segundos as ci- ca”, mas como uma “nação étnica”. jôi, “vontade dos superiores”, e katat-
dades de Hiroshima e Nagasaki. Contrariamente à Europa ociden- su, “transmissão de cima para bai-
Apesar da conservação do “tenoís- tal, que, para o bem ou para o mal, in- xo”), inscrita na consciência dos ser-
mo” (imperador e instituição imperial ventou o Estado-Nação com base na vos japoneses. Segundo historiadores,
como dispositivo central), a atual filosofia política de Hobbes a Rous- esse “ser coletivo” coercitivo, feito de Não é possível haver no Japão
Constituição é herdeira da Declaração seau, articulando-se em torno do dominações e submissões, teria se nem “povo”, nem “cidadão”
dos Direitos do Homem e do Cidadão conceito fundamental de pacto so- instalado desde o século VIII no Esta-
de 1789, em sua vontade de “defender cial, o Japão não chegou a tomar para do Imperial Antigo, para ser em se- guma medida “incrustada” na lín-
os direitos naturais e civis, sagrados e si essa ideia central de que a vida co- guida reforçado pelo Estado do Xogu- gua. Um superior pode se tornar um
imprescritíveis”. O Japão de hoje, letiva é oriunda de uma “associação nato Edo (1600-1868). inferior, e vice-versa, na vasta cadeia
egresso das ruínas e devastações da política” desejada e criada a fim de Essa ordem política calcada no de posições sociais rigorosamente
guerra, foi então edificado sobre a salvaguardar os direitos naturais e as princípio binário de dominação/sub- graduadas no interior de cada grupo
ideia de acabar de uma vez por todas liberdades fundamentais. missão, tal como se constituiu ao lon- social, seja de uma empresa, um go-
com o sistema de opressão estatal. Portanto, no imaginário político go da história, acabou produzindo verno, um partido político ou um clu-
Contudo, há alguns anos, sobretu- nipônico, o “ser coletivo” não é uma ordem linguística correspon- be escolar, e até uma família.
do a partir do início do segundo man- aprendido dessa maneira. Confunde- dente. Isso significa que a língua Imaginemos a situação seguinte.
dato de Abe, em dezembro de 2012, es- -se, pelo contrário, com a natureza e, também se estrutura vertical e hie- Dois homens que trabalham em
se Japão “democrático” do pós-guerra por meio dessa, existe desde o início rarquicamente, forçando o locutor a uma mesma empresa conversam: o
entrou em uma fase crítica, sendo ob- dos tempos, independentemente da escolher palavras exatas e os rodeios primeiro é um reles empregado (A);
jeto de uma política de desmantela- vontade humana. Creio perceber a apropriados à particularidade de ca- o outro é o presidente da empresa
mento deliberado.2 A primeira etapa origem da apatia política dos japone- da situação, em essencial caracteri- (B). Eles evocam juntos seus respec-
da revisão constitucional reside na re- ses nessa concepção naturalista da zada pelos traços de seu interlocutor, tivos pais. Em português, A poderia
militarização do país por uma modifi- sociedade ou, em outras palavras, na superior ou inferior. perguntar a B: “Seu pai nasceu em
cação no artigo 9º, que proíbe que o recusa a entender a sociedade como Em outras palavras, a estrutura qual ano? O que ele faz da vida?” etc.
país tenha Forças Armadas, mas sua uma criação humana, como resulta- hierárquica da sociedade está em al- E B, após ter respondido a A, poderia
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 31

© Ryoji Iwata/Unsplash
Podemos também usar o exemplo confuciana, que marcaram bastante ar cultural europeu, ficando, aliás,
de uma conversa que coloca dois ir- a consciência japonesa: o elo de afeto muito restrita ao local onde nasceu
mãos frente a frente. Como se desig- que une o pai e seus filhos; o senti- de si própria e de modo espontâneo?
nam reciprocamente? Em português, mento de dever que une os vassalos A questão da língua desempenha cer-
dispõem simplesmente do pronome ao príncipe; os papéis distintos que tamente um papel preponderante
pessoal de tratamento “você” (ou associam o homem e a mulher no ca- que ignoramos ou subestimamos há
“tu”). A diferença de idade não de- sal; a ordem hierárquica que, na ir- muito tempo. Pois, segundo a lição de
sempenha nenhum papel para deter- mandade, submete os irmãos mais Rousseau, a língua se molda em fun-
minar a fala nem de um nem de ou- novos aos mais velhos; e a relação de ção das necessidades da sociedade. O
tro. Em japonês, pelo contrário, ela confiança que deve reinar entre ami- autor do Ensaio concordaria em de-
diferencia de modo singular as pala- gos. As relações mencionadas são to- clarar também que a língua moldada
vras empregadas. Em relação ao mais das de natureza vertical – salvo talvez serve por sua vez para manter ou pa-
novo, o filho mais velho, que ocupa a da amizade, que pressupõe igual- ralisar a sociedade em uma estrutura
uma posição superior, pode se valer dade entre as partes interessadas, que demandou sua formação e que
do emprego da palavra omaé (“você”) mas não é seguro que, na moral con- tanto uma como a outra estão em
ou do nome de seu irmãozinho. Não fuciana, esta última escape da estru- uma relação de determinação ou de
ocorre o mesmo para este último, tura hierárquica das relações huma- dependência recíprocas.
que, para se dirigir a seu irmão mais nas. De qualquer modo, ela só Em um país como o Japão, a von-
velho, se vê na obrigação de usar a ex- aparece em quinto e último lugar na tade de transformar a sociedade po-
pressão “irmão mais velho”. Nem o lista de relações ideais, moralmente de eximir-se de uma reflexão apro-
nome, nem omaé, nem nenhum dos valorizadas. Desse modo, a presença fundada sobre a natureza da língua
outros pronomes pessoais de trata- de desconhecidos estaria fora da por meio da qual o real se constrói e
mento são possíveis. Aqui também a perspectiva nessa visão restrita e as trocas se realizam em todos os
falta de simetria é notável. normativa da sociabilidade. meios sociais, desde o corredor da es-
Um terceiro e último exemplo ser- cola até o Parlamento, passando pe-
ve para elucidar a língua japonesa co- los escritórios das empresas? É claro
mo instrumento de atualização das Creio perceber a origem que não. Se a “língua servil” mudas-
relações hierárquicas da sociedade, da apatia política dos se, a sociedade de submissão se aba-
por meio de sua “disfunção” por causa laria. Mas sacudir a língua como fez
de uma utilização errônea do prono-
japoneses nessa Takashi, querer agir sobre seus usos
me pessoal de tratamento da segunda concepção naturalista sociais, fazer as práticas linguísticas
(ou terceira) pessoa anata feita por da sociedade mudarem é um trabalho de Sísifo, in-
um jovem de 20 anos portador de uma dividual e/ou coletivo, cujos efeitos
deficiência mental. Trata-se do perso- Entretanto, não é justamente com apenas a história pode medir...
nagem Takashi, de meu livro Em os desconhecidos, esses seres simila- No contexto da crise sanitária
águas profundas, que trabalha em res que se ignoram com reciprocida- mundial da Covid-19 e da baixa quan-
uma empresa importante. Levando- de, que deveríamos formar um cole- tidade de casos contabilizados no Ja-
-se em conta sua condição (sua idade tivo político que chamamos de pão, pode-se perguntar – além do hábi-
mental é de 10 anos), sua tarefa con- sociedade civil? Nessas condições, a to bem sedimentado do uso de máscara
siste em carregar todas as correspon- combinação binária torna difícil, e da liturgia social e cultural específica
dências e distribuí-las. Por isso, ele co- quase impossível, a experiência da (sem aperto de mão, nem beijos, nem
nhece todo mundo, desde o presidente “comunidade”, em que os semelhan- abraços e distanciamento proxêmico)
aos simples estagiários. Seu erro de tes, longe de estarem presos em uma – se a produção de palavras vivas (por-
linguagem reside na utilização uni- cadeia de dominações e submissões, tanto, de gotículas), dependendo, en-
versal do pronome pessoal anata, ao unem-se de modo transversal, tendo tre outros, da cultura do debate, não
passo que a língua o obriga a bani-lo em vista a criação de um espaço de teria sua importância. Se, por acaso,
perante seres ocupantes de posições troca igualitária de palavras e esse fator inesperado se mostrasse per-
superiores. Por um ato de transgres- pensamentos. tinente, seríamos obrigados a consta-
são do qual ele não é consciente e pelo Ignoramos o pensamento da pra- tar, com tristeza, que a “língua servil” é
qual ninguém se ofende em razão de ça pública, onde o povo se une e deli- a melhor arma diante da epidemia... 
seu quadro intelectual, Takashi revela bera. Em Ensaio sobre a origem das
o enraizamento da hierarquia na lín- línguas, Jean-Jacques Rousseau afir- *Akira Mizubayashi,  romancista em fran-
gua. Sabemos que Roland Barthes ma que “toda língua por meio da cês e em japonês, é autor principalmente
qualifica a língua como “fascista”. “O qual não se pode ser entendido pelo de Dans les eaux profondes. Le bain japo-
lhe fazer as mesmas perguntas, exa- fascismo”, diz ele, “não é impedir de povo unido é uma língua servil”. Se nais [Em águas profundas. o banho japo-
tamente nos mesmos termos. Os dizer, é obrigar a dizer.”5 Foi preciso, esse filósofo, cidadão de Genebra, nês], Arlea, Paris, 2018, e Âmes brisées
dois locutores compartilham o mes- portanto, a despreocupação de um depois de ressuscitar, viajasse ao [Almas partidas], Gallimard, Paris, 2019.
mo vocabulário: “seu pai”, “nascer”, “adulto-criança” para enfrentar o País do Sol Nascente, diria certa-
1   C f. Cécile Marin, “Empires en accordéon” [Im-
“fazer” etc. A língua, conforme ob- “fascismo” da língua japonesa. mente que seus habitantes, moven- périos instáveis], Manière de Voir, n.139, fev.-
servamos, é um bem comum acessí- Estar diante de um “você”: nisso do-se em uma sequência acrobática -mar. 2015.
vel a qualquer locutor de maneira consiste a experiência de existência e ininterrupta de submissões e do-  f. Dans les eaux profondes. Le bain japonais
2   C
[Em águas profundas. O banho japonês], Ar-
simétrica e equilibrada. Porém, em fundamental dos locutores japone- minações, não são livres e falam lea, Paris, 2018.
japonês, as coisas não ocorrem do ses, identificar se o interlocutor é su- uma “língua servil”, tal qual sua ma- 3   Ler Philippe Pataud Célérier, À Fukushima,
mesmo modo. A (o sujeito falante perior ou inferior hierarquicamente neira específica de ser coletivo. une catastrophe banalisée [Em Fukushima,
uma catástrofe banalizada], Le Monde Diplo-
inferior) e B (o sujeito falante supe- falando. Por conseguinte, tudo acon- matique, abr. 2018.
rior) não têm acesso às mesmas pa- tece como se, em qualquer lógica, a UM TRABALHO DE SÍSIFO 4   Ver a conferência Vivre en exilé linguistique –
lavras e, caso utilizem os mesmos sociedade civil, esse espaço homogê- Por que a democracia, considerada Aller au-delà des limites de son monde [Viver
em exílio linguístico – Ir além dos limites de
vocábulos, A deve modificá-los, neo onde “se associam” os seres fa- não como forma de governo (ou de seu mundo], de 25 de setembro de 2018, no
acrescentando-lhes partículas lin- lantes (supostamente) livres e iguais, exercício do poder), mas sobretudo âmbito dos Encontros Internacionais de Ge-
guísticas de deferência (para o pai não pudesse existir. como forma de sociedade, não pega nebra, disponíveis para consulta em: www.
mizubayashi.net.
de B) ou de rebaixamento (para seu Podemos citar sobre esse ponto as com facilidade no arquipélago nipô- 5   Roland Barthes, Leçon [Lição], Seuil, Paris,
próprio pai). “Cinco vias éticas” (Gorin) da moral nico e, de maneira mais geral, fora do 1978.
32 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

AS INFLUÊNCIAS DE J. R. R. TOLKIEN

O mundo ideal dos hobbits


Com 150 milhões de exemplares vendidos, O Senhor dos Anéis é uma obra que, após
algumas décadas, em vez de sair de moda, ganha importância. Ela parece ter encontrado,
até nutrido, um imaginário coletivo cada vez mais comum. Seu sistema de valores
implanta uma moral política repleta de ambiguidades

POR EVELYNE PIEILLER*

P
rovavelmente ninguém é obri- Novarum (1891), retomada por Pio XI sobretudo, um romance fantástico, A No entanto, com seu poder inven-
gado a acreditar que John Ro- (1922-1939), definiu a posição da guerra do Graal, transbordante de tivo, jovial, que permite evitar alego-
nald Reuel Tolkien (1892-1973) Igreja Católica em relação ao traba- luz, pondo em cena iniciados bran- rias diretas, Tolkien revela ao mesmo
seja o autor da “obra mais rica e lho: apoio ao sindicalismo, mas opo- cos contra magos negros... Os tempo aquilo que parece seu mundo
complexa do século XX”,1 mas a ver- sição ao socialismo, e proposta da cé- Inklings eram, assim, um bando de racionalmente ideal, o do povo que
dade é que a trilogia Senhor dos Anéis lula familiar como modelo de crentes, sábios e apaixonados que se empreende a busca, os hobbits – “ho-
vendeu 150 milhões de exemplares, organização da sociedade. Essa con- apegavam ao registro do “maravilho- menzinhos” ou semi-homens –, uma
com a ajuda das adaptações de Peter cepção engendrou uma teoria econô- so”, propício a despertar a sensibili- variedade humana modesta, alegre,
Jackson para o cinema: US$ 3 bilhões mica, o “distributismo”, favorável à dade aos mistérios e à graça – além de que não tem por assim dizer nenhum
pela projeção em salas e 17 Oscars, is- propriedade privada atribuída a gru- transmitir uma mensagem cristã governo, respeita espontaneamente
so enquanto se espera a série da Ama- pos em vez de indivíduos e, relativa- num mundo descristianizado. as regras antigas, imutáveis, e, exceto
zon, que pagou tranquilamente US$ mente à terra e às ferramentas, de- Esses desafios, essas convicções e nas fronteiras, não precisa das forças
250 milhões pelos direitos. Ao que tu- fensor do retorno às corporações de esses debates é que animam O Se- da ordem. Personagens que serão
do indica, Tolkien é um dos astros de ofício. Propunha a extinção dos ban- nhor dos Anéis. Não conseguiríamos mais ou menos copiados depois pela
nossa época, e sabemos bem que na- cos (exceto os mutualistas) e uma so- reduzir a trilogia a uma ilustração “fantasia”. Esse mundo, acentuada-
da é mais brilhante no imaginário de ciedade de camponeses e artesãos qualquer de teses. Mas ela exibe uma mente medievalizante, aceita a ma-
uma época que o imaginário artísti- tendo a família como unidade social estética e um conjunto de valores que gia, mas ignora a ideia de progresso,
co que ele inaugura. básica – sem extremismos políticos. oferecem uma visão de mundo políti- tecnologia, senso histórico. Longe das
J. R. R. Tolkien parece, no entanto, Tolkien teria sido sensível às ideias ca e espiritual. Relembremos por alto “forjas sombrias” que caracterizam o
dependente de um clichê fora de mo- desse movimento, alimentando a a história: o Senhor das Trevas forjou império do Mal, artesãos e campone-
da. Conheceu as duas guerras mun- convicção de que o espírito é mais o Anel, instrumento de poder absolu- ses vivem felizes, amantes da boa me-
diais, mas quase toda a sua vida foi forte que a matéria e cultivando um to com o qual reduzirá todos à escra- sa e das belas histórias, indiferentes
dedicada ao estudo e à escrita. Pro- antiestatismo inabalável. Entretanto, vidão, mas não o possui mais. Um ao que precisa ser “sempre contado,
fessor em Oxford, especialista em fi- foi igualmente influenciado pelo uni- hobbit, depositário do Anel, tem por medido”. De resto, o verdadeiro herói
lologia e literatura inglesa arcaica, verso do grandioso William Morris missão destruí-lo, atirando-o no lu- do relato é um jardineiro...
sabia gótico (língua morta falada ou- (1834-1896),2 pintor e romancista ins- gar onde foi feito. Acompanhado por Esse modelo de sociedade auto-
trora pelos godos), nórdico antigo pirado por uma Idade Média ideali- vários aliados, a Sociedade do Anel, protegida, comedida, enraizada em
(língua escandinava medieval) e fin- zada, tradutor de sagas islandesas e ele procura alcançar seu objetivo em sua memória e sua pátria, feudal mas
landês. Além disso, era um apaixona- defensor ativo do retorno a um arte- meio a perigos inumeráveis, o menor sem feudos, zelosa apenas dos pe-
do pelas epopeias nórdicas, o Edda, o sanato que oferecesse beleza a todos. dos quais não é a atração do Anel. O quenos prazeres da vida, atenta a tu-
Kalevala... Em suma, um erudito que Morris, fundador da Liga Socialista objetivo acaba sendo alcançado e, do que é verde e dá frutos, foi bem-re-
estreou na literatura infantil com O juntamente com Eleanor Marx, pre- entrementes, um rei sedutor recupe- cebido pelos contestadores dos anos
hobbit (1937) e depois, durante cerca cursor da renovação das artes aplica- ra seu trono... 1960 e, no campo oposto, pelo Movi-
de duas décadas, elaborou sua trilo- das, foi também autor de um dos pri- mento Social Italiano (MSI) neofas-
gia (1954-1956). Nada de espantoso, meiros romances de “fantasia”, A cista, que organizou entre 1977 e 1981
portanto. Afinal, Charles Lutwidge fonte no fim do mundo. os “acampamentos hobbits”. A trilo-
Dodgson, mais conhecido pelo nome Reflexões teológicas e sensibilida- A trilogia exibe uma gia é hoje muito cara a numerosos lei-
de Lewis Carroll, também foi profes- de aos mitos, a uma Idade Média len- estética e um conjunto tores de sensibilidade ecológica. Essa
sor em Oxford (de matemática) e se dária, eis o que uniu um grupo de aspiração a um universo rural retró-
consagrou, da mesma forma, com amigos, os Inklings, que de 1930 a
de valores que oferecem grado, autárquico, desconfiado da
histórias infantis. Uma curiosidade a 1940 passaram a se encontrar num uma visão de mundo técnica e da perda de contato com as
propósito de Tolkien: ele era católico, bar de Oxford para ler seus escritos e política e espiritual verdades da natureza provavelmente
religião minoritária no Reino Unido, discuti-los. Entre eles, J. R. R. Tolkien, não vai se extinguir tão cedo, depois
e católico fervoroso. Clive Staples Lewis e Charles Wil- da crise sanitária atual. Seria bom
A universidade e os fiéis foram du- liams. Professor em Oxford, C. S. Le- Guerra contra o espírito do Mal e lembrar que a Sociedade do Anel, em
radouramente marcados pelo que se wis era anglicano e a parte de sua relato de uma busca espiritual, tor- sua luta contra as potências da morte,
chamou de o “Movimento de Oxford” obra que faz a apologia cristã conti- mentos da consciência e homenagem restabeleceu um rei. 
em torno de John Henry Newman nua em moda no Reino Unido. Mas à obstinação da força do amor, que
(1801-1890), um eclesiástico anglica- ele é famoso principalmente por suas pode superar o interesse egoísta dos *Evelyne Pieiller  é jornalista do Le Mon-
no que, de forma retumbante, se con- Crônicas de Nárnia (1949-1954), livros mortais (revivendo também a Natu- de Diplomatique.
verteu ao catolicismo. Suas reflexões infantis que mostram animais, ma- reza implacável), “O Senhor dos Anéis
sobre a entrega pessoal, o papel da gia etc., em uma grande luta do Bem é, bem entendido, uma obra funda- 1   L loyd Chery, “Ce que les fans du ‘Seigneur
des Anneaux’ doivent à Christopher Tolkien”
intuição direta na fé etc. alimenta- contra o Mal. Membro por pouco mentalmente religiosa e católica”, co- [O que os fãs do Senhor dos Anéis devem a
ram os questionamentos de muitos tempo dos rosa-cruzes e também an- mo escreveu Tolkien a um amigo je- Christopher Tolkien], Le Point, Paris, 17 jan.
cristãos, sobretudo britânicos. Ne- glicano, Charles Williams fundou suíta. “A princípio, de maneira 2020. Disponível em: www.lepoint.fr.
2   Ver Marion Leclair, “William Morris, esthète
wman foi ordenado cardeal pelo pa- uma espécie de seita cristã, Os Com- inconsciente; depois de uma revisão, révolutionnaire” [William Morris, esteta revolu-
pa Leão XIII, cuja encíclica Rerum panheiros da Coinerência. Escreveu, consciente.” cionário], Le Monde Diplomatique, jan. 2017.
AGOSTO 2020   Informe Institucional 33

OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO: ENSINO MÉDIO E GESTÃO


www.observatoriodeeducacao.institutounibanco.org.br

Enem 2020: Covid-19 evidencia desigualdades e reafirma falta de diálogo do MEC

O
Ministério da Educação (MEC) e o Inep divulgaram as novas datas do Enem clusão do ensino médio para a população branca de 76,8% em 2018, enquanto a da
2020: 17 e 24 de janeiro de 2021 (prova impressa) e 31 de janeiro e 7 de feve- população preta ou parda, embora venha aumentando, foi de 61,8%.
reiro (digital). Os resultados serão divulgados a partir de 29 de março. Quando a análise enfocou as pessoas de 18 a 24 anos de idade com menos de 11
Mais importante porta de entrada para as universidades públicas e priva- anos de estudo e que não frequentavam a escola, revelou uma situação emblemática: os
das no Brasil, o exame foi adiado em resposta à pressão de diversos setores da socie- jovens pretos ou pardos no quinto da população de menor renda domiciliar per capita
dade, entre eles o Congresso, a Defensoria Pública, o Conselho Nacional de Secretá- encontravam-se na pior condição, com 42,6% fora da escola, ante a 37,4% dos brancos.
rios Estaduais de Educação (Consed), a Associação Brasileira de Avaliação Educacional O MEC ainda não divulgou dados sobre o perfil dos participantes do Enem 2020
(Abave) e movimentos da sociedade civil, como o Todos pela Educação e a Campanha em relação à raça. Em 2019, 59,1% dos candidatos se autodeclararam pardos (46,6%) ou
Nacional pelo Direito à Educação. O principal argumento era tentar reduzir a desi- pretos (12,7%), seguidos por brancos (36%), amarelos (2,3%) e indígenas (0,6%). Dois
gualdade educacional, exacerbada no contexto de isolamento social. As diferentes rea- por cento não responderam à pergunta.
lidades socioeconômicas dos candidatos impõem desafios especialmente quanto às A falta de condições adequadas de estudo2 e as estratégias que os negros e pobres
possibilidades de acesso à internet e às condições de estudo em casa. estão adotando para contornar a situação têm sido alvo constante da cobertura da mí-
Segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo (28 maio 2020), realizado com dia. Em outras pautas, como mostra matéria3 da página especial sobre a Covid-19 no
base no perfil de participantes do Enem 2018, 34% dos estudantes da rede pública que site do Instituto Unibanco, o enfoque recai sobre como as escolas estão apoiando os
prestaram a prova naquele ano não tinham acesso à internet. Entre os alunos da rede alunos na preparação para o Enem e dicas de como estudar em tempos de pandemia.
privada, a parcela desprovida desse acesso era de apenas 3,7%. O estudo usou os da- Neste contexto, os estudantes continuam mobilizados. Depois de defenderem o
dos mais recentes disponíveis e constatou, ainda, que a desigualdade aumenta quan- adiamento, eles agora pressionam para que as aulas preparatórias para a prova sejam
do se observam recortes de renda e raça. transmitidas por grandes emissoras de televisão. O abaixo-assinado “Queremos au-
Além do adiamento que contrariou o desejo dos candidatos que participaram de las para o Enem nas maiores emissoras de TV Aberta do país!” (disponível no site da
enquete organizada pelo próprio governo federal e em sua maioria pediam que a Change Brasil) já conta com mais de 90 mil assinaturas. Sabrina Gonçalves, estudante
prova fosse em maio de 2021, o MEC e o Inep não têm fornecido orientações e apoio que criou a petição, expressa o sentimento de frustração que atinge parte dos estu-
aos estados sobre como endereçar as necessidades dos alunos que se preparam para dantes: “Minha maior motivação para criar esse abaixo-assinado é um amigo que
o exame. Os estados já colocaram em prática diferentes soluções de ensino remoto,1 não possui acesso à internet. Quantos jovens estão na mesma situação que ele? Isso
mas ainda enfrentam dificuldades, sobretudo para os estudantes do último ano do não é justo! Os alunos da rede privada ou com acesso à tecnologia estarão mais capa-
ensino médio. Do lado do ensino superior, a pasta da Educação tampouco se pronun- citados para essas provas”.
ciou sobre os ajustes necessários nos calendários dos vestibulares e no processo de Além de lançar incertezas sobre o futuro dos 6,1 milhões de inscritos, as indefini-
admissão de alunos para 2021. ções em torno do Enem 2020 por causa da Covid-19 ofuscam a trajetória incipiente de
Em posicionamento de 22 de maio, a organização Todos pela Educação defende a ampliação do acesso ao ensino superior pela população negra e mais pobre4, que de-
reabertura das inscrições que, por serem feitas on-line, podem ter segregado os estu- pende intrinsecamente da oferta de ensino público no Brasil.
dantes sem acesso à internet. Outro pleito é que a escuta que o governo federal fará Para o bem de todos os alunos, especialistas têm apontado a necessidade de o
para definir a nova data do Enem abranja gestores públicos, especialistas e os estu- MEC coordenar com as instituições públicas e privadas de ensino superior formas de
dantes que não puderam se inscrever e desejam fazê-lo, além daqueles já inscritos. garantir que o adiamento do exame não afete o fluxo de ingresso dos alunos no ensi-
no superior no próximo ano.
AVALIAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO “Só o MEC pode fazer essa coordenação porque, na distribuição de atribuições da
educação, ao Ministério compete coordenar a política de educação nacional, mas, em
Criado em 1998, o Enem nasceu com o objetivo de avaliar estudantes do ensino particular, a educação superior”, alertou João Marcelo Borges, do Todos pela Educa-
médio nas escolas públicas e particulares brasileiras. Em 2009, seu resultado come- ção. “Isso é muito importante, senão a gente vai ter alunos que são aprovados no
çou a valer como critério de ingresso no ensino superior. Articulado desde então com Enem, mas que não conseguem ingressar no ensino superior. Isso, para as redes pú-
o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e também conjugado à Lei de Cotas em 2012, o blicas, é ruim; para os alunos, é ruim; e para as universidades e faculdades particula-
exame passou a figurar como um dos principais elementos das políticas de democra- res também, porque elas perdem alunos, perdem renda.”
tização do acesso ao ensino superior gratuito.
O Enem é administrado sem custo para os estudantes de baixa renda. Para os pa-
gantes, sua taxa de inscrição é considerada relativamente baixa – R$ 85 para a prova
deste ano. Além disso, o exame é aplicado nacionalmente, minimizando o gasto do 1  Observatório de Educação, “O ensino remoto e as lições à vista”.
participante com deslocamento. São variáveis que importam muito em um país como 2  Felipe Betim, “Governo adia Enem após pressão que trouxe à tona o fosso entre ensino público e
o Brasil, marcado pela desigualdade em várias frentes. privado”, El País, 20 maio 2020.
3  Observatório da Educação, “Como escolas estão se preparando para o Enem e se adaptando ao
O último informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE, ensino remoto”, 28 maio 2020.
evidencia a íntima relação entre pobreza e raça e o direito à educação. Lançado no fim 4  Paula Ferreira e Constança Tatsch, “Negros são maioria na universidade pública, mas não nos cursos
de 2019, com base em dados do ano anterior, o documento apontou uma taxa de con- concorridos”, O Globo, 20 nov. 2019.

Pessoas de 18 e 24 anos de idade com menos de 11 anos de estudo e que não frequentavam a escola,
segundo os quintos da população em ordem crescente de rendimento mensal domiciliar per capita SAIBA MAIS

42,6% Branca Preta ou parda • “Igualdade de oportunidades: anali-


sando o papel das circunstâncias no de-
37,4% sempenho do Enem”, artigo de Erik Fi-
32,7% gueirêdo, professor do Programa de
28,6% 26,9% Pós-Graduação em Economia (UFPB) e
22,5% outros pesquisadores.
17,4% 18,2% 17,8% https://bit.ly/39aYXXj
11,9%
7,6% • “Enem: limites e possibilidades do
4,3% Exame Nacional do Ensino Médio en-
quanto indicador de qualidade escolar”,
tese de doutorado de Rodrigo Travitzki à
Total 1º quinto 2º quinto 3º quinto 4º quinto 5º quinto Faculdade de Educação (USP).
https://bit.ly/2WCjxur
Fonte  IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua 2018
34 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

MINERAÇÃO ESTRATÉGICA NO CORAÇÃO DO CONFLITO COMERCIAL SINO-AMERICANO

A guerra das terras-raras ra de novas minas. Elas se preocupam


pouco com as condições de trabalho
dos mineiros, extremamente precá-

vai acontecer?
rias, e menos ainda com questões am-
bientais. Em paralelo, o mercado in-
terno está protegido da concorrência
estrangeira, reservando as atividades
de extração apenas aos industriais
chineses. À medida que os Estados
Enquanto parecia ter o monopólio das terras-raras, recurso indispensável para a Unidos se afastavam das atividades
fabricação de produtos de alta tecnologia, a China importou mais do que exportou. de mineração – a mina da Mountain
Pass foi alvo de escândalos ambien-
Mas será que algo realmente mudou, considerando que seus clientes continuam tais5 –, a produção oficial chinesa
tão dependentes da produção chinesa quanto antes? Ademais, Pequim segue (que não inclui a exploração clandes-
ameaçando os Estados Unidos com a interrupção das entregas tina, estimada historicamente em um
nível entre 20% e 40% da extração to-
tal) progredia irremediavelmente: 60
POR CAMILLE BORTOLINI* mil toneladas em 1998, 80 mil tonela-
das em 2002, 100 mil toneladas em

A
cena aconteceu em 20 de maio ras-raras, a mensagem de Xi não dei- o fim dos anos 1990, a China garante 2004, 120 mil toneladas em 2006. A
de 2019, em Ganzhou, cidade xou dúvidas: a China possui um ins- em média 90% da produção mundial. produção norte-americana foi inter-
de uma dezena de milhões de trumento que pode reverter os golpes rompida em 2003, enquanto a dos ou-
habitantes situada na província norte-americanos. A imprensa e al- AUMENTO DOS RAMOS INDUSTRIAIS tros países produtores atinge no má-
de Jiangxi (sudeste da China). Xi guns pesquisadores chineses se en- No entanto, somente um terço das re- ximo mil toneladas por ano.
Jinping, o presidente chinês, cami- carregaram das legendas: a China servas mundiais comprovadas se si- Ao mesmo tempo que garantia
nha pelos corredores de uma usina poderia parar de um dia para o outro tua em seu território. O Instituto de seu domínio, a China se empenhava
de terras-raras. Para essa “visita de de fornecer metais de terras-raras Estudos Geológicos dos Estados Uni- em atrair as empresas estrangeiras
inspeção”, amplamente coberta pela para empresas norte-americanas. dos (USGS) indica que podemos en- que dispunham de um conhecimen-
imprensa oficial, ele está acompa- Em um comentário em inglês publi- contrá-las nos subsolos do Brasil, da to tecnológico em matéria de trans-
nhado por Liu He, seu principal con- cado pelo jornal chinês Global Times, Rússia, da Índia, da Austrália, mas formação, com o objetivo de aumen-
selheiro econômico, negociador-che- o professor Jin Canrong, que ensina também em diversos países do Sudes- tar a cadeia de valor. Essa captação se
fe com os Estados Unidos e Relações Internacionais na Universi- te Asiático.3 Desde o início dos anos deu de forma direta: em 1995, a em-
encarregado de desenrolar o conflito dade Renmin, de Pequim, julgou que 2010, projetos de exploração foram presa chinesa Zhong Ke San Huan
comercial entre as duas potências. a China “possui três grandes forças lançados no Canadá, na África aus- comprou a norte-americana Magne-
A data de estadia da dupla não foi para ganhar a guerra comercial con- tral, no Cazaquistão e na Groenlân- quench. Cinco anos depois, a usina
fruto do acaso: dez dias antes, a ad- tra os Estados Unidos”, entre elas a dia. Até mesmo a Coreia do Norte rei- de Indiana foi relocada na cidade de
ministração do presidente norte-a- proibição de exportação de terras-ra- vindica possuir reservas gigantescas. Tianjin, a leste de Pequim.
mericano, Donald Trump, havia ras.1 Pouco tempo depois, a organiza- Durante muito tempo, a China O governo chinês também recor-
inaugurado uma nova etapa na guer- ção que representa os industriais chi- ocupou não menos que uma posição reu a técnicas mais indiretas, ado-
ra comercial, aumentando o nível das neses do setor se declarou quase monopolística. Foi sob Deng tando progressivamente uma série
taxas alfandegárias em US$ 200 bi- oficialmente favorável à instauração Xiaoping, no final dos anos 1980, que de restrições à exportação (taxas, au-
lhões para bens chineses. No embalo, de tais medidas de retaliação.2 o Partido Comunista Chinês (PCC) torizações, cotas) tanto para respon-
Washington colocou o gigante das te- A ameaça parece ter potencial pa- adotou uma política voluntarista de der às necessidades crescentes de seu
lecomunicações Huawei na lista suja, ra preocupar, pois já foi posta em prá- desenvolvimento das terras-raras. mercado interno quanto para au-
impedindo-o de ser abastecido por tica no passado: depois da prisão de Essa indústria era então dominada mentar o valor do estoque de seus
componentes norte-americanos, dos um barco de pesca chinês pela Mari- pelos Estados Unidos, que controla- clientes. Em 2010, quando gozava de
quais alguns lhe são indispensáveis nha japonesa no arquipélago disputa- vam, além da mina de Mountain Pass um quase monopólio em matéria de
(semicondutores, sistema de explora- do das ilhas Senkaku/Diaoyu, em se- na Califórnia, a integralidade do ciclo extração, a China diminuiu drastica-
ção Android). Dois golpes duros para tembro de 2010, Pequim interrompeu da transformação em torno da em- mente suas cotas de exportação para
Pequim, pega de surpresa. bruscamente – mas sem reconhecer presa Magnequench, filial da General 30 mil toneladas anuais. A Organiza-
Ao colocar em cena alguns dias publicamente – suas exportações de Motors e carro-chefe da de Indiana, ção Mundial do Comércio (OMC) a
depois sua visita a uma usina de ter- terras-raras para o Japão, causando cujas atividades eram florescentes.4 condenou quatro anos depois,6 mas o
pânico nos mercados mundiais. No entanto, Deng tinha consciência mal já tinha sido feito. Para enfrentar
Mas o que são exatamente as ter- do interesse geopolítico da explora- o risco de penúria ou para evitar ter
ras-raras? Um misto de dezessete mi- ção das reservas chinesas. Em sua cé- de pagar um valor excessivo, empre-
nerais com propriedades químicas lebre viagem pelo sul da China em sas norte-americanas e japonesas do
próximas – entre eles o cério, o dis- 1992 para retomar as reformas, o ve- setor da transformação instalaram
prósio e o érbio – indispensáveis – lho líder revelou sua visão: “O Oriente suas atividades na China. Ao longo da
mesmo se utilizados em quantidades Médio tem o petróleo, a China tem as cadeia, incluindo atividades de alto
por vezes ínfimas – para a fabricação terras-raras”. valor agregado, como a produção de
das tecnologias de ponta da transição Desde então, todos os meios são ímãs, parcerias se fizeram, condu-
energética (algumas eólicas, veículos válidos para desenvolver essa indús- zindo a transferências de tecnologia
a energia nova) e aparelhos eletrôni- tria: as autoridades chinesas outor- em proveito das empresas chinesas.
cos. As terras-raras são também utili- gam terrenos, fornecem energia a Estas últimas se impõem hoje como
zadas na indústria de defesa. E, desde preço baixo, subvencionam a abertu- as campeãs mundiais do setor.
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AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 35

Essa política de desenvolvimento dos de terras-raras, dois itens cujas res. Mas isso incitaria também seus A epidemia de Covid-19, que colo-
constitui uma vitória industrial para importações agora ultrapassam as parceiros a diversificar seus circuitos cou as minas chinesas e, mais ampla-
a China, que se tornou capaz – em seu exportações. Essas terras-raras bru- comerciais, o que poderia compro- mente, a economia mundial em sus-
próprio solo e com suas próprias em- tas ou pouco transformadas provêm meter a centralidade da China na ca- penso, põe em xeque esse cálculo.
presas, como a Shenghe – de extrair, da Austrália – via Malásia, onde a em- deia de valor. Paradoxalmente, essas Mas, no momento em que o mundo
separar, refinar e transformar as ter- presa australiana Lynas Corporation, restrições à exportação favoreceriam inteiro se questiona sobre sua depen-
ras-raras. Seu objetivo de fabricar por exemplo, instalou uma parte de seus concorrentes. Com efeito, elas dência em relação à China, ninguém
produtos mais valorizados, da mina suas operações de refinamento –, da criariam provavelmente um “choque duvida de que as terras-raras volta-
até a produção de componentes so- Birmânia, do Vietnã e da África. de oferta” e consequentemente um rão para o centro do palco. 
fisticados, foi mais do que atingido: O desafio de Pequim, desse modo, aumento dos custos mundiais, o que
ela garante hoje 80% da produção é assegurar essas novas importações. tornaria a exploração de novas minas *Camille Bortolini é analista econômica
mundial de ímãs à base de neodímio, Em 2015, a gigante Shenghe fechou mais rentável. na Direção-Geral do Tesouro francês, com
um dos mais utilizados (para telefo- um contrato com uma empresa aus- Com razão, a vontade norte-ame- cargo em Pequim de 2017 a 2019. Os pon-
nes celulares, motores elétricos, apa- traliana que explora uma mina em ricana de não depender mais da Chi- tos de vista expressos pela autora nesse
relhos de ressonância magnética, al- Madagascar. No ano seguinte, ela se na está abertamente estampada. Nos texto são pessoais.
gumas turbinas eólicas etc.). tornou também a primeira acionista Estados Unidos, as operações de
No plano ecológico, o balanço é da Greenland Minerals Ltd., compa- transformação dos minerais de ter- 1   J in Canrong, “China has three trump cards to
win trade war with US” [China tem três trunfos
bem menos positivo... O desenvolvi- nhia de mineração australiana, com ras-raras oriundos de Mountain Pass para vencer guerra comercial com os EUA],
mento de todas essas atividades de ex- a qual fechou um acordo reservando devem voltar até o final deste ano, e o Global Times, Pequim, 15 maio 2019.
tração foi sinônimo de desastre nas a totalidade da produção de terras- Pentágono indicou sua intenção de fi- 2   “China rare earth groups support counter-
-measures against US ‘bullying’” [Grupos chi-
províncias em questão: a Mongólia In- -raras pesadas da mina de Kvanef- nanciar a construção de unidades de neses de terras-raras apoiam contramedidas
terior viu os lagos tóxicos se multipli- jeld, na Groenlândia, ou seja, 32 mil refino nacionais. A aproximação da contra o “bullying” norte-americano], Reuters,
carem, assim como os casos de enve- toneladas anuais desses preciosos administração Trump com diversos 7 ago. 2019.
3   “Minerals Commodity Summaries” [Balanço
nenamento por ácido sulfúrico e o que minerais garantidas, assim que a parceiros (Canadá e Austrália em pri- das commodities minerais], US Geological
chamamos de “vilarejos do câncer”. produção começar. meiro lugar ) é investigada pelas auto- Survey, Reston, jan. 2020.
Parte da população, preocupada com ridades chinesas. No verão de 2019, o 4   Ler Olivier Zajec, “Comment la Chine a gagné
la bataille des métaux stratégiques” [Como a
os riscos sanitários e ambientais, se REDUZIR A DEPENDÊNCIA Global Times conectava a vontade as- China ganhou a batalha dos metais estratégi-
mobiliza localmente, como em Guan- O mais espantoso é que uma parte sumida do inquilino da Casa Branca cos], Le Monde Diplomatique, nov. 2010.
gxi, para manifestar sua oposição à consequente das recentes importa- de “comprar” a Groenlândia – prova, 5   C f. Guillaume Pitron, La guerre des métaux
rares [A guerra dos metais raros], Les Liens
extração poluente. Em suma, o custo ções provém... dos Estados Unidos. A segundo ele, da “ansiedade” norte-a- qui Libèrent, Paris, 2018.
ambiental dessa exploração mineira Casa Branca, tendo tomado cons- mericana diante da dominação chi- 6   OMC, “Disputa DS432 China – Medidas rela-
se tornou cada vez mais difícil de jus- ciência de sua vulnerabilidade diante nesa no setor das terras-raras.8 tivas à exportação de terras-raras, de tungstê-
nio e de molibdênio”, Genebra, maio 2015.
tificar para um regime que conhece o de seu “competidor estratégico”7 chi- Um ano depois da visita de Xi à 7   C f. a nova estratégia de segurança nacional
que se espera dele em matéria de luta nês, apoiou a reabertura da mina his- usina de ímãs do Jiangxi, a China ain- norte-americana apresentada por Trump em
contra a poluição, erguida sob Xi co- tórica de Mountain Pass, de novo em da não executou sua ameaça de em- dezembro de 2017.
8   Wang Jiamei, “Greenland interest exposes US
mo “batalha fundamental” do PCC. funcionamento desde o início de bargo. Na barulhenta disputa que rare earth deficit” [Interesse na Groelândia
Além do mais, as reservas chine- 2018. Mas o local ainda não conta opõe as duas potências, uma evolu- expõe déficit norte-americano em terras-ra-
sas, estimadas em 44 milhões de to- com uma unidade de refino. Então, ção escapou à atenção da maioria dos ras], Global Times, Pequim, 21 ago. 2019.
neladas, não são ilimitadas. E a de- por enquanto, os Estados Unidos ex- observadores. Em 2020, a China não
manda mundial deve continuar portam terras-raras brutas para a diminuiu suas cotas de produção de
aumentando. O consumo de certas China. Esta as refina e transforma terras-raras, mas as aumentou em
terras-raras pode ser multiplicado antes de reexportar o produto acaba- 10% – para Pequim, uma maneira tal-
por vinte até 2035. Pequim se encon- do (como os ímãs) para o mercado vez de tornar a oferta mais abundan-
tra, portanto, em uma situação para- norte-americano, mas também para te, a fim de baixar os preços mundiais
doxal, na qual seu controle da cadeia o europeu, o japonês e o indiano. e matar no ninho os novos projetos
de valor, principalmente do ciclo de Nesse contexto, a ameaça de um de mineração nos quais os Estados
transformação, a obriga a considerar novo embargo chinês tem credibili- Unidos estão de olho.
limitar suas operações de extração. dade? A imposição de novas medidas
Assim, as autoridades se esfor- de restrição à exportação poderia,
çam, desde o início dos anos 2010, pa- evidentemente, a curto prazo, favore-
ra manter a produção oficial entre 100 cer as empresas chinesas, fornecen-
mil e 120 mil toneladas por ano. Elas do a elas um acesso privilegiado a
tentam paralelamente consolidar a produtos acabados para os quais as
indústria, historicamente muito dis- possibilidades de substituição são di-
persa, em torno de grandes empresas, fíceis de encontrar em diversos seto-
a fim de reduzir a extração clandesti-
na. Ao longo da década, elas se volta-
ram sobretudo para novos parceiros,
a fim de garantir o fornecimento de
minerais: para surpresa geral, a Chi-
na se tornou, em 2018, importadora
de terras-raras brutas. Em 2019 ela
importou, segundo a alfândega chi-
nesa, 47 mil toneladas de minerais de
terras-raras e 36 mil toneladas de óxi-
36 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

A PRISÃO PERPÉTUA DE GEORGES IBRAHIM ABDALLAH PARA AGRADAR AOS ESTADOS UNIDOS

Terrorista um dia,
sempre terrorista?
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos proibiu a manutenção de um condenado na prisão “sem nenhuma
esperança de sair”. Essa parece, contudo, ser a sorte do militante comunista libanês Georges Ibrahim Abdallah,
preso na França há mais de um terço de século. O prolongamento de sua detenção deve-se muito ao clima
criado por atentados que lhe são estranhos

POR PIERRE CARLES*

F
im de março de 2020. A fim de

© Robert Pratta/ Reuters


esvaziar as prisões francesas
num momento em que a pande-
mia do coronavírus ameaça
provocar uma catástrofe, a ministra
da Justiça, Nicole Belloubet, ordena a
liberação de 13,5 mil presos nos dois
meses seguintes. Trata-se principal-
mente de pessoas que já cumpriram
a maior parte da pena. No momento
em que a ministra toma essa decisão,
a prisão de Lannemezan (região
Hautes-Pyrénées) abriga Georges
Ibrahim Abdallah, um militante co-
munista libanês que combateu a
ocupação de seu país por Israel em
1978. Ele cumpriu sua incompreen-
sível pena em 27 de outubro de 1999.
O homem então poderia ter sido li-
bertado desde... o século passado.1
Em 2020, ele começou seu 36º ano
de encarceramento. Um “recorde
francês” nos últimos cinquenta anos
para um militante político. Exceção
feita à Itália, um encarceramento tão
longo é excepcional nos países da
União Europeia.
Georges Ibrahim Abdallah foi jul-
gado e condenado por cumplicidade
em um homicídio doloso. Aos olhos
da Justiça, ele não é um assassino.
Durante seu processo, ele negou ter
participado das ações pelas quais foi
preso e condenado, mas se declarou
solidário a certas lutas militantes ra- George Ibrahim Abdallah escoltado por um guarda francês quando ele chega ao tribunal de Lyon, em 10 de julho de 1986
dicais, expressando seu apoio às Fra-
ções Armadas Revolucionárias Liba- tos constituíam um ato de resistência anos de encarceramento? Seu com- rido pela ministra da Justiça na As-
nesas (FARL), um grupo de resistentes armada a uma agressão militar. E du- portamento na detenção inspira o sembleia Nacional em 8 de abril, em
comunistas que pegou em armas e as- rante seu processo, em fevereiro de respeito dos guardas, e o diretor da plena pandemia. Nesse dia, Belloubet
sassinou, em 1982, o adido militar da 1987, Abdallah afirmou: “Mesmo que prisão gosta de conversar com ele a precisou que ela excluía das libera-
embaixada dos Estados Unidos, Cha- o povo não tenha me confiado a honra respeito da situação no Oriente Mé- ções antecipadas “os criminosos,
les Ray, assim como um funcionário de participar dessas ações anti-impe- dio. Por mais estranho que possa pa- pessoas condenadas por violência
israelense membro do Mossad (servi- rialistas que vocês me atribuem, pelo recer, foram os guardas sindicaliza- doméstica e detentos terroristas”. E,
ço secreto israelense), Yacov Barsi- menos eu tenho a honra de ser acusa- dos do centro penitenciário que, não mesmo que o grupo armado ao qual
mentov, ambos com cargos em Paris. do delas por sua corte e defender sua entendendo por que seus camaradas Abdallah deve ter pertencido não te-
Naquele ano, Israel atacava o Líba- legitimidade diante da ilegitimidade não se mobilizavam para solicitar nha cometido ações terroristas no
no, com a bênção da administração criminosa dos algozes”. sua liberação, alertaram os militan- sentido que se entende atualmente
Reagan, para tentar destruir a Orga- tes da célula comunista da cidade de (atentados indiscriminados, bombas
nização para a Libertação da Palesti- “TODOS OS BARBUDOS SE PARECEM” Tarbes sobre a presença desse mar- nas ruas, assassinatos de civis desti-
na (OLP) e matar ou capturar Yasser Que outra razão poderia justificar a xista libanês em longa detenção. nados a aterrorizar a população), a
Arafat, o líder da resistência palestina. não liberação, em 2020, de um cúm- Sua não liberação, contudo, en- justiça francesa o qualifica como
Aos olhos das FARL, os dois assassina- plice de homicídio que cumpriu 36 contra explicação no discurso profe- “terrorista”. Por quê? Por causa de
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37

atos de fato criminosos, mas dos O diplomata dificilmente conse- o Tribunal de Aplicação das Penas sim como qualquer outro membro do
quais as FARL não são responsáveis... gue fingir ignorar o caso. Em todos os (TAP) se pronunciava a favor da libe- Executivo, dirigisse instruções aos
Alguns meses antes do compare- 14 de Julho, em Beirute, centenas de ração de Abdallah, o embaixador dos magistrados.
cimento de Abdallah ao tribunal, em manifestantes se colocam diante de Estados Unidos na França, Charles Ri-
Paris, no final de fevereiro de 1987, sua embaixada para reclamar a libe- vkin, deixava público em um comuni- MACRON É INTERPELADO EM TÚNIS
atentados atingiram a capital (RER, ração do compatriota. Desde 2004, cado que ele “lamentava a decisão do Com quem os Estados Unidos e Lau-
correios, lojas Tati). Resultado: cator- data do primeiro pedido de liberdade TAP de conceder a liberdade condicio- rent Fabius poderiam contar para
ze mortos e mais de duzentos feridos. condicional rejeitado, o militante li- nal ao terrorista reconhecido culpado derrubar, apesar disso, a liberação de
A maioria das grandes mídias (Le banês viu seu pedido de liberação ser Georges Ibrahim Abdallah”. Ele acres- Abdallah? A resposta veio três dias
Monde, Libération, Le Figaro, RTL, rejeitado sete vezes. Como podería- centava: “Espero que as autoridades depois. Em 14 de janeiro de 2013, o
France Inter, Europe 1, as principais mos esperar, Foucher respondeu que francesas apelem contra a decisão to- ministro do Interior, Manuel Valls, se
redes de televisão) veiculou o pensa- o caso está vinculado à justiça e não à mada hoje e que ela seja anulada”. recusou a assinar o termo de expul-
mento do ministro do Interior, Char- diplomacia ou ao poder político. No Apelaram contra a decisão. E, dessa são de Abdallah. Surpresa com essa
les Pasqua, e de seu adjunto, Robert entanto, como veremos, sob a presi- vez, em 10 de janeiro de 2013, a Corte intervenção de um membro do Exe-
Pandraud.2 Ambos atribuíam às dência de François Hollande, o mi- de Apelação confirmou que Abdallah cutivo em um caso do Judiciário – o
FARL e aos irmãos de Georges Ibrah- nistro do Interior, Manuel Valls, in- deveria ser libertado. Não tendo na- que contradizia sua circular de se-
im Abdallah a responsabilidade des- terveio diretamente para bloquear a cionalidade francesa nem visto de tembro de 2012 –, a ministra Chris-
sas ações terroristas. Porém, como liberação de Abdallah. permanência, só lhe restava deixar o tianne Taubira reclamou o arbítrio
Pandraud e Pasqua iriam admitir al- O secretário nacional do Partido território francês. Seu advogado, Jac- do presidente da República. Hollande
guns anos depois, eles caluniaram o Comunista Francês (PCF), Fabien ques Vergès, já exultava: “Acolho com não interveio. Ele deixou seu minis-
nome de Abdallah na imprensa a fim Roussel, endereçou em 14 de abril de satisfação essa decisão, pois tinha pe- tro do Interior agir, na época muito
de dissimular o fato de não saberem 2020 uma carta à ministra da Justiça. dido à justiça francesa que não se mais popular do que ele. E o militan-
no momento quem eram os respon- Ele pedia a liberação de Abdallah, es- comportasse mais como uma prosti- te comunista libanês continuou na
sáveis pelas bombas: “Lançamos a timando que “ninguém pode afirmar tuta diante de seu cafetão norte-ame- prisão. No Líbano, sua família já es-
pista das FARL com base nos primei- hoje que ele representaria um perigo ricano”. A liberação de seu cliente só tava a caminho do aeroporto de Bei-
ros testemunhos, mas sabíamos que, qualquer que fosse para nosso país”. aguardava a assinatura do documen- rute para recebê-lo.
para os franceses, que pensavam ter Roussel antecipa assim as asserções to de expulsão – uma formalidade. Emmanuel Macron foi interpela-
reconhecido os irmãos Abdallah nos do governo norte-americano, para do sobre o caso Abdallah em sua pri-
locais, todos os barbudos do Oriente quem “a prisão perpétua é apropria- meira visita oficial à Tunísia em 1º de
Médio se pareciam”, admitiu Pan- da aos graves crimes perpetrados por Seu comportamento na fevereiro de 2018. Enquanto passeava
draud. “Eu me disse que colocar em Abdallah e é legítimo se preocupar detenção inspira o res- pela medina da capital, militantes
destaque a pista Abdallah não faria com o perigo que ele representaria tunisianos começaram a gritar “Li-
mal, mesmo se não fizesse bem. Na para a comunidade internacional se
peito dos guardas, e o berte Abdallah!”. Nas imagens dos te-
verdade, não tínhamos nenhuma fosse libertado”.4 Deputado no norte, diretor da prisão gosta lefones celulares que imortalizaram
pista na época.”3 o dirigente do PCF sabe que em cer- de conversar com ele a a cena, vemos que o presidente da Re-
Jornalistas influentes (Edwy Ple- tos locais ele é o “Nelson Mandela do respeito da situação no pública se volta espantado para seus
nel e Georges Marion, na época in- Oriente Médio”. As comunas de Gre- conselheiros. Ele parece não enten-
vestigadores no Le Monde, Charles nay e Calonne-Ricouard (Pas-de-Ca-
Oriente Médio der o que está acontecendo, até que
Villeneuve na rede de televisão TF1 lais) fizeram dele cidadão de honra. um oficial tunisiano acompanhando
etc.) deram crédito à “pista Abdal- Belloubet respondeu a Roussel em No dia seguinte à decisão da Corte a delegação explica quem é esse Ab-
lah”. Eles sugeriam que os irmãos de 6 de maio: “Não cabe ao Ministério de Apelação, porém, a porta-voz do dallah. De volta à França, nada acon-
Abdallah teriam tentado pressionar o da Justiça dar qualquer tipo de ins- Departamento de Estado norte-ame- tece. Menos de três meses depois de
governo francês para obter a libera- trução aos procuradores em se tra- ricano, Victoria Nuland, afirmou: ter sido interpelado em Túnis, Ma-
ção de seu camarada encarcerado ex- tando de casos individuais, nem de “Estamos decepcionados com a deci- cron libertou uma prisioneira co-
plodindo bombas. Na verdade, po- interferir em processos judiciários. são da corte francesa [...]. Não pensa- mum condenada à prisão perpétua
rém, os atentados terroristas de 1986 [...] A autorização de um ajuste de pe- mos que ele deva ser libertado e con- por assassinato.
foram cometidos por membros do na cabe apenas à competência das ju- tinuamos nossas conversas com o A Convenção Europeia dos Direi-
Hezbollah libanês, instrumentaliza- risdições da aplicação de penas que governo francês a esse respeito”.5 En- tos Humanos proíbe que se condene
dos por Teerã. Na época, o Irã recri- apreciam soberanamente e em toda tão secretária de Estado do presiden- um detento “sem nenhuma esperan-
minava a França por apoiar militar- independência da oportunidade de te Barack Obama, Hillary Clinton ça de saída”. No entanto, isso parece
mente o Iraque de Saddam Hussein conceder tal medida”. Mas, seis se- contava com o fato de que alguns corresponder ao destino do militante
em sua longa guerra assassina contra manas antes, o governo francês sol- membros do governo francês, entre comunista libanês Georges Ibrahim
a República Islâmica (1980-1988; 1 tava Jalal Rohollahnejad, um enge- os quais o ministro das Relações Ex- Abdallah. 
milhão de mortos). nheiro iraniano preso no aeroporto teriores, Laurent Fabius, se mostra-
As FARL, por sua vez, não pratica- de Nice sob pedido norte-americano. riam receptivos aos pedidos da Casa *Pierre Carles é diretor do filme Who
vam atos terroristas contra civis, mas A justiça tinha dado um parecer favo- Branca. Depois da decisão da Corte wants Georges Ibrahim Abdallah in jail?
assassinatos cujos alvos eram milita- rável à sua extradição para os Estados de Apelação, enquanto se preparava [Quem quer Georges Ibrahim Abdallah na
res. No entanto, influenciada pelas Unidos; o homem estava quase sendo para deixar o Departamento de Esta- prisão?], atualmente em realização.
falsas informações veiculadas pela entregue às autoridades norte-ameri- do, Hillary transmitiu a seguinte
mídia, a justiça francesa não duvidou canas, mas o Irã então propôs à Fran- mensagem: “Mesmo que o governo 1   L er Alain Gresh e Marina da Silva, “Un prison-
do caráter “terrorista” dos atos dos ça uma troca, com a liberação do pes- francês não seja legalmente autoriza- nier politique expiatoire” [Um prisioneiro políti-
co expiatório], Le Monde Diplomatique, maio
quais Abdallah e as FARL eram acu- quisador francês Roland Marchal. E, do a anular a decisão da Corte de 2012.
sados. Desde então, é impossível reti- em 20 de março de 2020, Rohollahne- Apelação de 10 de janeiro, nós espe- 2   Ler Pierre Carles e Pierre Rimbert, “Des plu-
rar esse rótulo. jad embarcou em um avião para Tee- ramos que as autoridades francesas mes empoisonnées” [Penas envenenadas],
Manière de Voir, n.172, “Fake News, une faus-
Em 25 de fevereiro de 2020, em rã, enquanto Roland Marchal tomava possam encontrar outra base para se épidémie” [Fake news, uma falsa epide-
Beirute, Bruno Foucher, embaixador o caminho contrário. Quando se tra- contestar a legalidade da decisão”.6 mia], ago.-set. 2020.
da França no Líbano, recebeu uma ta de Abdallah, no entanto, o poder Responder positivamente a esse pe- 3   Citado por Pierre Favier e Michel Martin-Ro-
land, La décennie Mitterrand [A década Mit-
dezena de jornalistas para almoçar. político francês o mantém em deten- dido, contudo, impunha a concor- terrand], Seuil, 1996.
Entre a sobremesa e o café, ele foi in- ção para agradar a Washington. dância da ministra francesa da Justi- 4   Declaração de Charles Rivkin, embaixador
terpelado por um correspondente A ingerência norte-americana ça, Christianne Taubira, que tinha, dos Estados Unidos na França, 21 nov. 2012.
5   Reuters, 12 jan. 2013.
francês sobre o caso de Georges nunca deixou de existir nesse caso. alguns meses antes, emitido uma cir- 6   M ensagem de 11 jun. 2013, “Hillary Clinton
Ibrahim Abdallah. Em 21 de novembro de 2012, enquanto cular proibindo que ela própria, as- archive”. Disponível em: https://wikileaks.org.
38 Le Monde Diplomatique Brasil  AGOSTO 2020

MISCELÂNEA

livros internet
consenso no centro geraram o que a autora chama NOVAS NARRATIVAS DA WEB
de pós-política, condição marcada pela ausência de
propostas claramente alternativas/oposicionistas, o Sites e projetos que merecem seu tempo
que provoca, por sua vez, desinteresse pelo proces-
so democrático e apatia política. POST-NORMAL TIMES
Essa apatia, no entanto, teria sido sacudida pela Publicado em 2019, o projeto em formato
crise de 2008, que trouxe à tona as contradições do livro e site é o foco das pesquisas do Cen-
POR UM POPULISMO modelo neoliberal e deu origem a questionamentos tro de Políticas Pós-Normais e Estudos
DE ESQUERDA dessa hegemonia por diversos movimentos, à es- do Futuro, um grupo de pesquisa interna-
Chantal Mouffe, querda e à direita, mas com um traço em comum: cional que observa principalmente as so-
Autonomia Literária são antissistema. ciedades marginalizadas e muçulmanas.
Assim, a ascensão da direita populista na Europa, A teoria que os autores desenvolvem diz

A caba de chegar ao Brasil o novo livro de Chantal


Mouffe, Por um populismo de esquerda . O títu-
lo, provocador, é um chamado à ação política e soa
nos Estados Unidos e no Brasil parece ser menos
um fenômeno político que um fenômeno social. A in-
satisfação de parte da população com o “sistema” e
que os tempos atuais vivem sob três re-
gras: complexidade, caos e contradições.
Vivemos numa era em que velhas ortodo-
especialmente provocativo no atual contexto brasi- com o condomínio de poder que cuidava da gestão xias estariam morrendo, novas estariam
leiro. Já no início a autora apresenta seu diagnóstico do capitalismo ajuda a entender a emergência de fi- emergindo e poucas coisas fazem sentido.
central, cujo foco é, vale salientar, a Europa: a crise guras caricatas que se elegeram prometendo ruptu- Como o projeto é anterior ao coronavírus,
da formação hegemônica neoliberal produziu o mo- ras. De certa forma, a política foi redescoberta pela ganhou uma edição extra, com um blog
mento populista que marca a atual conjuntura. Ter- direita. Como precisamente construir uma alternativa que traz novos textos, atualizados.
-se-ia aberto, assim, nesse momento, a possibilida- contra-hegemônica, para além do processo eleito- <https://postnormaltim.es>
de de construção de uma ordem mais democrática. ral? A obra de Chantal Mouffe obviamente não ofere-
Não se entende o livro sem esse retorno: o aban- ce tal resposta, mas nos dá pistas e serve de reflexão
dono de canais agonísticos capazes de expressar sobre fracassos acumulados e disputas a enfrentar.
os conflitos e as divergências de visões e interes- ACERVO VLADIMIR HERZOG
ses – traço inerente ao político – e a adoção de um [Felipe Calabrez] Prof. de Relações Internacionais. Um site com quase 2 mil fotos, correspon-
dências e outros itens recupera a história
do jornalista morto no período da ditadura
militar no emblemático caso em que os
militares tentaram forjar um suicídio e que
deu início a diversas manifestações que
serviram para aumentar a pressão para o
VIDA E MORTE DE UMA fim do regime. Biografia, linha do tempo
BALEIA-MINKE NO e memórias, fruto de dois anos de pes-
INTERIOR DO PARÁ E quisas, compõem o acervo, entre outros
OUTRAS HISTÓRIAS formatos. Apenas em 2013 a certidão de
DA AMAZÔNIA óbito do jornalista foi retificada, desman-
Fábio Zuker, Atento, então, à pluralidade de pontos de vista que telando finalmente a farsa do suicídio. Lá
Publication cruzam modos muito heterogêneos de vivenciar e se pode ler o documento.
Studio São Paulo experienciar a floresta, Fábio Zuker movimenta-se <www.acervovladimirherzog.org.br>
por diferentes lugares da região Norte do país, co-

O livro reúne uma série de reportagens, feitas en-


tre 2017 e 2019, mas não se resume a isso:
apesar de o título ser extenso, há uma aposta qual-
letando histórias e escrevendo notícias que fazem
surgir pequenas clareiras na mata, assim como
a história da Baleia-Minke, que abre um pequeno MUSEU DA ARTE COVID
quer, ainda que mínima, em duplicar e serializar respiro no meio de tantas notícias de desastre, aju- Covid Art Museum é um projeto de publici-
esses textos, colididos e organizados como uma dando-nos a ter uma ideia do que, de fato, aconte- tários espanhóis, Irene Llorca, José Guer-
espécie de corpus em deslocamento pela Amazô- ce atualmente por lá. De venezuelanos, indígenas rero e Emma Calvo, que convida artistas
nia de hoje. Como se, mesmo numa nova versão do Warao e criollos, acampados no viaduto do terminal do mundo todo a compartilhar obras feitas
livro, agora expandida em formato de e-book, essas rodoviário de Manaus, “personagens de uma história durante a pandemia. Segundo eles, é o
duplicatas também fossem capazes de, tal como que não gostariam de estar escrevendo”, a habitan- primeiro museu de arte do mundo surgido
o pensamento Wari’, que projeta corpos em outro tes do município de Alenquer, no Pará, que com- durante a crise de Covid-19. Uma conta no
mundo, expandir o mundo e imaginar outros sobre partilham o uso do Lago Macupixi com a empresa Instagram publica as contribuições, que
este nosso mundo aqui, permanentemente em via Açaí Amazonas e declaram, irremediavelmente, que podem ser fotografias, ilustrações, vídeos,
de extinção. “o que eles querem mesmo é matar a gente”, o tom pinturas, animações e formatos dos mais
Fábio Zuker não resolve os impasses de que nos que prevalece no livro, atravessado por uma grande variados. Mais de quinhentas publicações
dá notícia, mas os expõe. Também, em nenhum mo- dor, é o de denúncia, como se suas reportagens es- já foram feitas.
mento ele se propôs à tarefa complicadíssima de tivessem nos revelando um processo de destruição < w w w.inst agr a m .c o m / c ovi d a r tmu-
salvar o mundo do desastre, e sim de pensar sobre contínua, cuja ferramenta seria uma certa violência seum/>
o desastre e suas consequências, porque, para ele, lenta – termo cunhado por Rob Nixon, professor de
os números por si sós não dão conta de traduzir Princeton – acometida contra a floresta e suas for- [Andre Deak] Diretor do Liquid Media
a experiência cotidiana das pessoas que experien- mas de vida. Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
ciam a floresta amazônica dos mais diversos pon- ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
tos de vista. [Érica Zíngano] Poeta e artista visual. pela ECA-USP e doutorando em Design
na FAU-USP.
AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Capa/edição
Ano 14 – Número 157 – Agosto 2020
“Que vontade de emoldurar essa capa!” www.diplomatique.org.br
Natane Garcia, via Instagram

“Edição belíssima. A arte também DIRETORIA


Diretor da edição brasileira e editor-chefe
perfeita. Parabéns”. Silvio Caccia Bava
Jeane Tavares, via Instagram NYT a serviço do lobby da guerra Diretores
02 Quem quer prolongar a Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
Rubens Naves
guerra no Afeganistão?
“É disso que estamos falando: não basta não
Por Serge Halimi Editor
ser racista, é preciso ser antirracista!” Luís Brasilino
Raphael Alves, via Instagram Editorial
03 O colapso de um nodelo de gestão Editora-web
Bianca Pyl
Por Silvio Caccia Bava
Você disse “sistêmico”?
Editor de Arte
“Todas as grandes empresas entraram na Capa Cesar Habert Paciornik
modinha de ganhar dinheiro usando pessoas 04 Bolsonaro, a pandemia e a
Estagiária
de minorias em suas propagandas. explosão das demandas sociais Gabriela Bonin
Trend do marketing para 2020.” Equipe do Inesc
Revisão
Fábio Cardoso, via Instagram A roleta russa da abertura das escolas Lara Milani e Maitê Ribeiro
Por Fernando Cássio e Ana Paula Corti
Gestão Administrativa e Financeira
A desconfiança dos cidadãos Como controlar a pandemia no Brasil Arlete Martins
em relação à polícia Por Naomar de Almeida Filho, Gulnar
Assinaturas
“O problema é que não se vê na experiência de Azevedo e Claudia Travassos assinaturas@diplomatique.org.br
mundo um papel de polícia militarizada como se Nos EUA, o pavor da democracia
vê no Brasil: uma polícia destinada a combater o 13 Os populistas norte-americanos
Tradutores desta edição
Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
inimigo interno. Isso se afigura numa perspectiva contra o lobby dos médicos Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant

tradicional à diferença entre a tragédia e o épico. Por Thomas Frank Conselho Editorial
Enquanto épico é o combate da fronteira, com Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Campanha Kanamari do
o inimigo externo, o outro, a tragédia interna é 16 Vale do Javari, Amazônia
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro,
irmão contra irmão.” Defesa dos indígenas contra a Covid-19 Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena,
Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano,
Liège Santos, via Instagram Por Boaventura de Sousa Santos José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor,
e Lino João de Oliveira Neves Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves,
O lado vergonhoso do “metal azul” Aquecimento global ameaça o Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo
“Isso para não falar do lítio e do que fizeram na 17 abastecimento de água e Vera da Silva Telles.

Bolívia, onde ficam as maiores reservas desse re- A Bolívia enfrenta a agonia de suas geleiras Assessoria Jurídica
curso. O próprio Elon Musk, paradigma de empre- Por Cédric Gouverneur, enviado especial Rubens Naves, Santos Jr. Advogados

sário moderninho, admitiu o interesse que tem em Para além do medo de ver Escritório Comercial Brasília
golpes que roubem a soberania dos países sobre as 19 os museus franceses vazios
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110
matérias-primas da indústria ‘do futuro’.” Polêmicas sobre a restituição jh@marketing10.com.br
Paulo Mello, via Instagram das obras de arte africanas
Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
Por Philippe Baqué da associação Palavra Livre, em parceria
Especial Feminismos transnacionais Propostas de remuneração decente
com o Instituto Pólis.

– site do Diplomatique 22 aos trabalhadores da cultura Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
“Ótimo texto sobre a vitalidade e A sede por segurança social Tel.: 55 11 2174-2005
potência dos feminismos negros.” no mundo das artes diplomatique@diplomatique.org.br
Tatiele Souza, via Facebook Por Aurélien Catin www.diplomatique.org.br

Ser útil, trabalhar para o Assinaturas: Leila Alves


“Ótimo texto! As autoras chamam as outras, as 24 interesse coletivo... Ou não
assinaturas@diplomatique.org.br
Tel.: 55 11 2174-2015
companheiras de perto, de longe, deste e de outros Afinal, para que servem os artistas?
tempos, para tecerem um comum nas diferenças. Por Evelyne Pieiller Impressão
D’ARTHY Editora e Gráfica Ltda.
A vitalidade pulsa na comunidade que elas tecem Música CNPJ: 01.692.620/0001-00, Parque Empresarial Anhan-
nas linhas desse texto.” 26 Os usos de Johann Sebastian Bach
guera - Rod. Anhanguera Km 33 - Rua Osasco, 1086,
Cep: 07753-040 - Cajamar - SP
Marcia Moraes, via Facebook Por Agathe Mélinand
Um escritor, um país
“Texto importantíssimo, que reflete a potência
do feminismo negro como forma de resistência e
28 Babel jovem e inocente
Por Yan Lianke
reflexão fundamentais. Precisa ser lido por todes!”
Ana Claudia Monteiro, via Facebook No Japão, o peso da hierarquia LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
30 “Língua servil” e sociedade da submissão
Fundador
Por Akira Mizubayashi Hubert BEUVE-MÉRY
As influências de J. R. R. Tolkien
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil : 32 O mundo ideal dos hobbits
Presidente, Diretor da Publicação
Serge HALIMI
envie suas críticas e sugestões para Por Evelyne Pieiller
Redator-Chefe
diplomatique@diplomatique.org.br Philippe DESCAMPS
As cartas são publicadas por ordem Mineração estratégica no coração
de recebimento e, se necessário, 34 do conflito comercial sino-americano Diretora de Relações e das Edições Internacionais
resumidas para a publicação. A guerra das terras-raras vai acontecer? Anne-Cécile ROBERT
Por Camille Bortolini Le Monde diplomatique
Os artigos assinados refletem o ponto de 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
A prisão perpétua de Georges Ibrahim Abdallah
vista de seus autores. E não, necessariamen- 36 Terrorista um dia, sempre terrorista?
secretariat@monde-diplomatique.fr
www.monde-diplomatique.fr
te, a opinião da coordenação do periódico. Por Pierre Carles
Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
com 37 edições internacionais em 20 línguas:

38 Miscelânea 32 edições impressas e 5 eletrônicas.


ISSN: 1981-7525
Capa: © Giorgia Massetani
Já está no ar o Observatório de
Educação - Ensino Médio e Gestão

Um centro de referências e análises com mais de 14 mil


documentos como teses, artigos e dados estatísticos de diversas
fontes, selecionados a partir de uma cuidadosa curadoria:

12.850 899 560


textos vídeos gráficos
Tudo organizado em oito seções, como:

Centro de Documentação de Gestão em Educação (CEDOC):


mais de 10 mil documentos sobre gestão e Ensino Médio
produzidos por fontes nacionais e internacionais.

Em debate: coleções e conteúdos multimídia sobre pautas


fundamentais para a agenda do Ensino Médio público.

Educação em números: indicadores educacionais, sociais e


demográficos apresentados de forma visual e interativa.

Acesse e confira:
observatoriodeeducacao. OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO
ENSINO MÉDIO E GESTÃO
institutounibanco.org.br/
AGOSTO 2020   Informe Institucional 33

OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO, ENSINO MÉDIO E GESTÃO


www.observatoriodeeducacao.institutounibanco.org.br

Enem 2020: Covid-19 evidencia participante com deslocamento. São variáveis que importam muito em um país como
o Brasil, marcado pela desigualdade em várias frentes.
O último informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE,
desigualdades e reafirma falta evidencia a íntima relação entre pobreza e raça e o direito à educação. Lançado no fim
de 2019, com base em dados do ano anterior, o documento apontou uma taxa de con-
de diálogo do MEC clusão do ensino médio para a população branca de 76,8% em 2018, enquanto a da
população preta ou parda, embora venha aumentando, foi de 61,8%.

O
Quando a análise enfocou as pessoas de 18 a 24 anos de idade com menos de 11
Ministério da Educação (MEC) e o Inep divulgaram as novas datas do Enem anos de estudo e que não frequentavam a escola, revelou uma situação emblemática: os
2020: 17 e 24 de janeiro de 2021 (prova impressa) e 31 de janeiro e 7 de feve- jovens pretos ou pardos no quinto da população de menor renda domiciliar per capita
reiro (digital). Os resultados serão divulgados a partir de 29 de março. encontravam-se na pior condição, com 42,6% fora da escola, ante a 37,4% dos brancos.
Mais importante porta de entrada para as universidades públicas e pri- O MEC ainda não divulgou dados sobre o perfil dos participantes do Enem 2020
vadas no Brasil, o exame foi adiado em resposta à pressão de diversos setores da so- em relação à raça. Em 2019, 59,1% dos candidatos se autodeclararam pardos (46,6%) ou
ciedade, entre eles o Congresso, a Defensoria Pública, o Conselho Nacional de Secre- pretos (12,7%), seguidos por brancos (36%), amarelos (2,3%) e indígenas (0,6%). Dois
tários Estaduais de Educação (Consed), a Associação Brasileira de Avaliação por cento não responderam à pergunta.
Educacional (Abave) e movimentos da sociedade civil, como o Todos pela Educação e A falta de condições adequadas de estudo2 e as estratégias que os negros e pobres
a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. O principal argumento era tentar re- estão adotando para contornar a situação têm sido alvo constante da cobertura da mí-
duzir a desigualdade educacional, exacerbada no contexto de isolamento social. As dia. Em outras pautas, como mostra matéria3 da página especial sobre a Covid-19 no
diferentes realidades socioeconômicas dos candidatos impõem desafios especial- site do Instituto Unibanco, o enfoque recai sobre como as escolas estão apoiando os
mente quanto às possibilidades de acesso à internet e às condições de estudo em alunos na preparação para o Enem e dicas de como estudar em tempos de pandemia.
casa. Neste contexto, os estudantes continuam mobilizados. Depois de defenderem o
Segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo (28 maio 2020), realizado com adiamento, eles agora pressionam para que as aulas preparatórias para a prova sejam
base no perfil de participantes do Enem 2018, 34% dos estudantes da rede pública que transmitidas por grandes emissoras de televisão. O abaixo-assinado “Queremos au-
prestaram a prova naquele ano não tinham acesso à internet. Entre os alunos da rede las para o Enem nas maiores emissoras de TV Aberta do país!” (disponível no site da
privada, a parcela desprovida desse acesso era de apenas 3,7%. O estudo usou os da- Change Brasil) já conta com mais de 90 mil assinaturas. Sabrina Gonçalves, estudante
dos mais recentes disponíveis e constatou, ainda, que a desigualdade aumenta quan- que criou a petição, expressa o sentimento de frustração que atinge parte dos estu-
do se observam recortes de renda e raça. dantes: “Minha maior motivação para criar esse abaixo-assinado é um amigo que
Além do adiamento que contrariou o desejo dos candidatos que participaram de não possui acesso à internet. Quantos jovens estão na mesma situação que ele? Isso
enquete organizada pelo próprio governo federal e em sua maioria pediam que a não é justo! Os alunos da rede privada ou com acesso à tecnologia estarão mais capa-
prova fosse em maio de 2021, o MEC e o Inep não têm fornecido orientações e apoio citados para essas provas”.
aos estados sobre como endereçar as necessidades dos alunos que se preparam para Além de lançar incertezas sobre o futuro dos 6,1 milhões de inscritos, as indefini-
o exame. Os estados já colocaram em prática diferentes soluções de ensino remoto,1 ções em torno do Enem 2020 por causa da Covid-19 ofuscam a trajetória incipiente de
mas ainda enfrentam dificuldades, sobretudo para os estudantes do último ano do ampliação do acesso ao ensino superior pela população negra e mais pobre4, que de-
ensino médio. Do lado do ensino superior, a pasta da Educação tampouco se pronun- pende intrinsecamente da oferta de ensino público no Brasil.
ciou sobre os ajustes necessários nos calendários dos vestibulares e no processo de Para o bem de todos os alunos, especialistas têm apontado a necessidade de o
admissão de alunos para 2021. MEC coordenar com as instituições públicas e privadas de ensino superior formas de
Em posicionamento de 22 de maio, a organização Todos pela Educação defende a garantir que o adiamento do exame não afete o fluxo de ingresso dos alunos no ensi-
reabertura das inscrições que, por serem feitas on-line, podem ter segregado os estu- no superior no próximo ano.
dantes sem acesso à internet. Outro pleito é que a escuta que o governo federal fará “Só o MEC pode fazer essa coordenação porque, na distribuição de atribuições da
para definir a nova data do Enem abranja gestores públicos, especialistas e os estu- educação, ao Ministério compete coordenar a política de educação nacional, mas, em
dantes que não puderam se inscrever e desejam fazê-lo, além daqueles já inscritos. particular, a educação superior”, alertou João Marcelo Borges, do Todos pela Educa-
ção. “Isso é muito importante, senão a gente vai ter alunos que são aprovados no
AVALIAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO Enem, mas que não conseguem ingressar no ensino superior. Isso, para as redes pú-
blicas, é ruim; para os alunos, é ruim; e para as universidades e faculdades particula-
Criado em 1998, o Enem nasceu com o objetivo de avaliar estudantes do ensino res também, porque elas perdem alunos, perdem renda.”
médio nas escolas públicas e particulares brasileiras. Em 2009, seu resultado come-
çou a valer como critério de ingresso no ensino superior. Articulado desde então com
o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e também conjugado à Lei de Cotas em 2012, o 1  Observatório de Educação, “O ensino remoto e as lições à vista”.
exame passou a figurar como um dos principais elementos das políticas de democra- 2  Felipe Betim, “Governo adia Enem após pressão que trouxe à tona o fosso entre ensino público e
tização do acesso ao ensino superior gratuito. privado”, El País, 20 maio 2020.
3  Observatório da Educação, “Como escolas estão se preparando para o Enem e se adaptando ao
O Enem é administrado sem custo para os estudantes de baixa renda. Para os pa-
ensino remoto”, 28 maio 2020.
gantes, sua taxa de inscrição é considerada relativamente baixa – R$ 85 para a prova 4  Paula Ferreira e Constança Tatsch, “Negros são maioria na universidade pública, mas não nos cursos
deste ano. Além disso, o exame é aplicado nacionalmente, minimizando o gasto do concorridos”, O Globo, 20 nov. 2019.

Pessoas de 18 e 24 anos de idade com menos de 11 anos de estudo e que não frequentavam a escola,
segundo os quintos da população em ordem crescente de rendimento mensal domiciliar per capita SAIBA MAIS

42,6% Branca Preta ou parda • “Igualdade de oportunidades: anali-


sando o papel das circunstâncias no de-
37,4% sempenho do Enem”, artigo de Erik Fi-
32,7% gueirêdo, professor do Programa de
28,6% 26,9% Pós-Graduação em Economia (UFPB) e
22,5% outros pesquisadores.
17,4% 18,2% 17,8% https://bit.ly/39aYXXj
11,9%
7,6% • “Enem: limites e possibilidades do
4,3% Exame Nacional do Ensino Médio en-
quanto indicador de qualidade escolar”,
tese de doutorado de Rodrigo Travitzki à
Total 1º quinto 2º quinto 3º quinto 4º quinto 5º quinto Faculdade de Educação (USP).
https://bit.ly/2WCjxur
Fonte  IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua 2018

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