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Internet: suposto saber sem sujeito

Gilles Chatenay

Aproximar “saber” e “internet” nos convida evidentemente a pensar em nossas


demandas neuróticas quase diárias ao Google ou ao Wikipedia. Ou ainda, em uma
versão mais persecutória, à ASN (Agência de Segurança Nacional) e, menos
agressivamente, às sugestões que nos são feitas quando fazemos nossas compras em um
site comercial.

A internet sabe alguma coisa e sabe muito sobre nós, mais do que nós mesmos.
Ela sabe onde nós estamos e onde estivemos, em qualquer lugar do mundo conectado,
24 horas por dia. Ela sabe até reconhecer o nosso rosto.

Mas o que é internet? Memória, algoritmos e conexões.

Nós supomos um saber à internet a cada vez que nos conectamos ou que estamos
conectados sem nos dar conta, mas é um saber anônimo, aquele dos algoritmos que
manipulam as memórias cifradas. Certamente eles são moldados e implementados pelas
empresas e pelos Estados, mas empresas e Estados não são sujeitos; é delirante – a
viralidade das teorias da conspiração – supor que seja assim.

O saber sem sujeito da internet se assemelha ao da ciência, que Lacan pôde


qualificar como um empreendimento de forclusão do sujeito. Assim, esse saber se opõe
à transferência propriamente psicanalítica, que supõe um sujeito para o saber. Ele é
anônimo e, portanto, forclusivo do discurso da psicanálise, que supõe o desejo de
determinado analista que vem se encontrar em carne e osso, e não virtualmente, com
determinado analisando.

Eu disse que o saber suposto da internet se assemelha ao da ciência, pois se a


concepção dessas memórias e desses algoritmos aplica os conhecimentos
autenticamente científicos (como a estatística e a lógica) o que a motiva e a pressiona é
outra coisa: os mercados e a política.

Financeirização

É o que a alimenta e lhe dá o seu poder: um certo regime contemporâneo do


capitalismo mais do que as inovações tecnológicas, que certamente lhe dão os meios de
sua extensão, mas que tiram sua fortuna da mercantilização de tudo em todos os lugares
(globalização). A dinâmica da internet e da cifra é a da mais-valia, para seguir Lacan, a
do mais-de-gozar, do objeto a, causa da avidez estrutural do capitalismo.

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Esse regime contemporâneo é o de uma financeirização do capitalismo. Parece-
me que – como na clínica psicanalítica - é nas crises que devemos buscar a lógica da sua
dinâmica, lógica que se lê nos seus sintomas, antes de mais nada, as febres e as
depressões dos mercados.

Levar tudo para todos os lugares impõe sua linguagem na lógica dos mercados.
O que se troca nos mercados são valores e eles se escrevem em cifras. Quando se vende
e se compra qualquer objeto concreto (petróleo, farelo de soja, etc), o preço da transação
depende em parte de fatores materiais (escassez ou abundância, etc). Fatores materiais
externos ao mercado – daí o termo (impróprio) de economia “real”: reais são esses
fatores externos que restringem (em parte) os preços.

Mas há uma área onde essas cifras estão livres de todas as restrições externas, a
dos mercados financeiros. A partir daí, as operações sobre eles – que, aliás, são
massivamente desencadeadas e efetuadas por autômatos numéricos – são lançadas em
função apenas dessas cifras. Em outras palavras, as cifras são o real das finanças.

Dizer que as cifras, que são escritas em moedas, são o real das finanças é dar à
moeda um lugar central. Ora, a moeda, longe de ser um simples instrumento, longe de
ser neutra, expressa um diagnóstico do estado clínico do laço social [1] – um laço social
tem confiança, ou não, em sua moeda, ou seja, em última análise, em si mesmo. Além
disso, como alude o título da obra dirigida por Michel Aglietta e André Orléan, “A
Moeda soberana”[2], a moeda tem a sua própria dinâmica.

Especularidade

Voltando à clínica dos mercados, eu dizia que às vezes eles ficam febris ou
deprimidos. A confiança em uma medida comum, geralmente a moeda, e mais além, a
confiança em uma convenção implícita que pode ser considerada muitas vezes
inconsciente [3], podem ser atacadas. Os agentes da economia entram então em
mecanismos que A. Orléan e M. Aglietta [4] qualificam de “miméticos”, onde tentam
antecipar o valor com base no que supõem que seus semelhantes estão antecipando. Isso
é se perder em um “concurso de beleza keynesiano [5]”, onde se trata não de votar no
candidato que você gosta, mas de dizer qual candidato receberá mais votos. Os agentes
são capturados numa lógica espelhada, uma lógica especular, binária, onde o imaginário
esmaga a dimensão simbólica, para se referir apenas ao real lábil, senão sem lei, das
cifras – lábil, visto que essas cifras são sensíveis às decisões dos agentes.

Lacan em “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache” formalizou em seus


esquemas ópticos [6] a lógica especular do estádio do espelho[7].

No primeiro tempo, a criança, ainda sem coordenação corporal, antecipa uma


unidade imaginária a partir da imagem de seu corpo no espelho, ou da imagem de um

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semelhante, ela jubila, goza e ao mesmo tempo se aliena a ela fundamentalmente. Essa
imagem da unidade do eu, o eu ideal para nomeá-lo como Freud, é puramente
imaginária, falaciosa, e instável uma vez que não tem ponto de referência externa. O
“mimetismo” das derivas especulativas, ao que me parece, emerge desse primeiro
tempo.

Mas há um segundo tempo. Cito Lacan no Seminário 8, A transferência, “É


preciso dar, então, toda a sua importância a este gesto da cabeça da criança que, mesmo
depois de ter sido cativada pelos primeiros esboços do jogo que faz diante de sua
própria imagem, volta-se para o adulto que a carrega, sem que se possa dizer sem
dúvida o que espera disso, se é da ordem de um acordo ou de um testemunho, mas a
referência ao Outro vem desempenhar aí uma função essencial” [8].

Para a criança não basta a sua própria imagem ou a do seu semelhante, ela deve
ser autenticada pelo Outro. O sujeito precisa de uma referência “exterior” para
estabilizá-la.
E o fato de que o Outro seja chamado como referência, isso o torna um ideal, o
ideal do eu freudiano.
O sujeito deve passar pelo Outro, e ele vê sua imagem no Outro, ou melhor, do
ponto de vista do Outro. O sujeito demanda ao Outro seu acordo [accord] ou seu
testemunho, e se ele obtém um ou outro, seu eu ideal estará (relativamente) estabilizado,
sobre a base do Outro como referência. É necessário ainda que o sujeito tenha
reconhecido neste sua legitimidade. Isso não está dado de antemão: alguns sujeitos, por
exemplo, os psicóticos, se recusam a fazê-lo.
Nos mercados, qual instância poderia fazer a função do Outro? Uma instituição,
precisamente: os Bancos Centrais, o Estado, o pagador de última instância, etc. Mas
essas instituições são anônimas, são Outros, mas Outros abstratos, desencarnados. Ora,
o acordo ou o testemunho, mesmo silenciosos, são atos de linguagem, e enquanto atos,
eles podem ser realizados apenas por um falasser, isto é, supõem um sujeito, um desejo
encarnado. Alan Greenspan, por exemplo, foi capaz de representar por meio de seus
oráculos um sujeito suposto saber qual era o verdadeiro valor das trocas quando foi
diretor do Sistema da Reserva Federal dos EUA, antes da crise de 2008 (que
paradoxalmente é em grande parte atribuível às políticas de desregulação que ele
mesmo havia implementado). E nos dias de hoje? A atual imprevisibilidade trumpiana
me parece correlativa de uma paixão pelo mimetismo especular no nosso mundo
“internetizado” – internetizado, pois isso não diz respeito apenas às finanças, aos
mercados e à política, mas à internet, aos usos que nós fazemos dela e os usos que ela
faz de nós.
Em suma, estamos lidando com uma regressão tópica ao estádio do espelho [9],
para retomar os termos de Lacan. Mas se trata de uma regressão tópica ao primeiro ou
ao segundo tempo?

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Narcisismo

Primeiro tempo, segundo tempo: narcisismo primário freudiano, narcisismo


secundário lacaniano? Lacan se opõe a Freud, para ele não há narcisismo primário. O
primeiro tempo, onde prevalecem o imaginário e o real – a criança goza da unidade
imaginária da sua imagem- corresponde a uma regressão pela qual o Outro desaparece
sob a unidade fictícia, atemporal e instável do eu ideal: o segundo tempo precede
logicamente o primeiro. E o tempo que eu chamei de primeiro nega a transferência, pois
esta supõe uma demanda ao Outro.
Clotilde Leguil argumentou em um artigo do Le Monde que nós vivemos na era
do narcisismo de massa. O que isso tem a ver com a internet? A abolição tendencial do
espaço e do tempo, a horizontalidade (todos iguais, sem Outro) do dito primeiro tempo,
encontram-se na própria lógica da internet.
Mas será que podemos reduzir a utilização da internet a uma regressão
generalizada ao primeiro tempo do estádio do espelho? Para redigir esse artigo eu
consultei várias vezes o Google e o Wikipédia, depois o enviei à redação da Escola La
Cause Du Désir, por email, dentro do prazo.
Até mesmo as selfies – pelas quais tentamos valorizar e localizar nossa imagem
tirando fotos com personalidades bem conhecidas, ou em locais famosos – tem uma
estrutura próxima daquela do segundo esquema óptico de Lacan: um “segundo tempo”
selvagem, uma demanda a um Outro que daria seu acordo ou seu testemunho, ou que ao
menos faria referência. A paixão pelas selfies é sintomática da demanda repetitiva de
que um Outro venha enfim responder pelo que somos e desejamos.
Sim, vivemos na era de uma hipertrofia do eu [11]. Uma hipertrofia correlativa a
uma fragilidade do eu, que às vezes pode conduzir a uma demanda transferencial a um
analista.

Subversão

Existem mecanismos nos quais somos capturados e nos quais nós nos
prendemos. Mas qualquer que seja a tecnologia, quando é incorporada em uma
sociedade, ou antes, em um laço social, vê-se transformada pelos usos que nós fazemos
dela. As mensagens de texto são um bom exemplo (o Twitter, a meu ver, é uma
declinação e uma amplificação delas). Originalmente, elas serviam apenas para que os
técnicos de telefonia testassem as linhas. Nosso uso em massa tem sido, arrisquemos a
palavra, uma subversão – aliás, às vezes, no sentido próprio do termo, como há pouco
tempo no Irã, no Egito, etc. As tecnologias, inclusive das finanças, não são neutras, elas
são atravessadas pelos usos contraditórios, elas são campos de batalha, e não somente
políticos e econômicos.
Existe o Outro, e existe o que o sujeito faz dele. A subversão lacaniana do
sujeito pode ser entendida em dois sentidos: o sujeito é subvertido e o sujeito subverte.
Nossos usos da internet também podem sê-lo em alguns momentos e em alguns lugares.

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Notas

1- Cf. Aglietta M., Orléan A., « La monnaie, réalité sociale », La Monnaie entre
violence et confiance, Paris, Odile Jacob, 2002, p. 98 & sq.
2- Cf. Aglietta M., Orléan A. (s/dir.), La Monnaie souveraine, Paris, Odile Jacob,
1998.
3- Cf. Keynes J.-M., Théorie générale de l’emploi, de l’intérêt et de la monnaie,
Paris, Payot, 1969, p. 167 : “[A] convenção consiste essencialmente [...] na hipótese que
o estado atual das coisas continuará indefinidamente a menos que haja razões definidas
para esperar uma mudança”
4- Cf. Orléan A., L’Empire de la valeur. Refonder l’économie, Paris, Seuil, 2011 et
Aglietta M., Orléan A., La Monnaie : entre violence et confiance, op. cit.
5- Keynes J.-M., Théorie générale…, op. cit., p. 171.
6- Cf. Lacan em “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache”, Escritos. Os
esquemas ópticos aos quais me refiro são o da figura da página 680, que chamo de
“primeiro tempo” do estádio do espelho e o da figura da página 681 para o “segundo
tempo”
7- Cf. Lacan em “O estádio do espelho como formador da função do eu”, Escritos.
8- Cf. Lacan, Seminário 8, Zahar, p. 431
9- Cf. Lacan, “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”,
Escritos
10- Cf. Leguil C., « Nous vivons à l’ère d’une hypertrophie du moi” Le Monde, 27
de julho de 2017, disponível online
11- Cf. ibid.
12- Cf. Lacan, “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano”, Escritos.

Tradução: Arryson A. Zenith Jr.

Texto original em francês disponível em: https://www.cairn.info/revue-la-cause-du-


desir-2017-3-page-41.htm

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