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USP - UNIVERSIDADË DE SÃO PAULO

Reitot: Proí. l)r. Jacques Marcovirch


Vice-Reiror: Prol Dr. Adolpho José Melfi

Pnuuo Sencto DE VAScoNcELLos


FFLCH . FACULDADE DE FILOSOFIA,
LETRAS E CÌÊNCIAS HUMANAS
Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert
Vice-Diretor: Prof, Dr. Renaro da Silva Queitoz

\w
CONSELHO EDITORIAL ASSESSOR DA HUMANITAS
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Pro[ Dr, Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosolìa)
Proí'. Dr'. Sueli Angelo Furlan (Ceografia)
ProÍ. Dr. Elias Thomé Saliba (Hisróriâ)
ProF. Dr". Beth Brait (Lerras)

VINU^i
EFEITOS INTERTEXTUAIS NA
Ltvunla Huvrllr ls-DI5( uR5O ENEIDA DE VIRGíUIO
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)f'tprsp
2001

FILOSOFIA' LETBAS E CIÊNCIAS HUI\'4ANAS


Humanitas FFLCH/USP UNIVERSIDADE DESÃO PAULO 'FACULDADE DE
- oürubro 200 I
II -FORMASEPROCESSOS
ALUSIVOS NA ENEIDA
lrl{'ilor, lnl{'rl{,\lutli nt l,ttt'ltht rlr' \'lrlitlio

Atr longo dc trossas iÌlìíìliscs sobrc lÌ :rlrrsivl dt l:nt'i</;t,


t11ìrìì1r
c()rììo talvcz clìì nossas cxcmplific:ìções anteriorcs, alguln lcitclr sc vcrÍ
lcvuclo iì perguntar: será possível que o poeta solicite do reccptor clc
sua mcnsagem conhecimento táo erudito para a compreensão de setr
lx)cma bem como habilidade de filólogo, quase de detetive, para sur-
preender e analisar referências sutis a táo grande conjunto de textos?
Em primeiro lugar, é preciso recordar sempre que o leitor de
poesia da Antigüidade era culto; aprendia na escola a traduzir e inter-
pretar textos gregos, a memorizar modelos literáriosr e manipular te-
rnas e formas em composições pedidas pelos mestres. Como se sabe, o
cnsino se fundava especialmente em textos paradigmáticos, e as cri-
anças aprendiam, por exemplo, uma língua como o grego lendo e tra-
duzindo autores como Homero.2 Por outro lado, a estética alexandrina,
que pouco a pouco ia se impondo ao gosto comum na época de
Augusto,l requeria do leitor implícito a agilidade em navegar no ver-
dadeiro mar de citações e alusões em que se podia transformar um
texto de maior fôlego.
Defendemos, porém, outra idéia, que não se contrapõe às con-
sideraçóes anteriores. A nosso ver, uma obra como a Eneidaprevê, no

Na escola do gramtnaticus, espécie de ensino secundário, depois de o mestre ter lido e


explicado determinado texto Qnetarum enarratíonem "explicaçáo dos poetas", nas
palavras de Quintiliano - Inst. Ont.l, 4,2), os alunos o liam em voz alta e se esforça-
vam por decorá-lo (ver MARROU, Henri-lrénée. História da Educação na Antígüida-
de. Sao Paulo, E.P.U., 1990, p. 430).
Santo Agostinho retrata situação que certamente vinha se repetindo há séculos: a
predominância do texto literário também no aprendizado do idioma. Obrigado a apren-
der grego através de Homero, mesmo sem conhecer previamente o vocabulário da
língua, de uma íorma não natural e sob ameaça constante de punição, a suavidade do
poeta lhe parecia, quando criança, amarga como íel: Nam et Homerus peritus texere
tales {abellas et dulcissime uanus est et mÌhí tamen amarus eftìt plLero ("Pois tambérn
Homero é hábil em compor tais histórias e frívolo de um modo incomparavelmentc
doce, e, no entanto, para mim, uma criança, era amargo", ConÊssões,I, XIV, 23).
Segundo Donato (Víta26), tal foi o sucesso das Bucólicas, que freqüentemente crârìl
cantadas nos teatros; Sêwto (Ad Buc.6, ll - apud Enciclopedia Wrgiliana, vol. V**,
p. 451) menciona a recitaçáo no palco da sexta bucólica pela famosa Licóride, a arììiìrì-
te de Marco Antônio e do poeta Cornélio Galo.

_79 _
I,lrilo Súr'gkr rtr V!,.,,u,.g1!1,
lili'ilrrs lrtlcllt,xlrr'.is l',r li t tt' i út tlt, \'ir'lgilirr

campo alusivo, nÍveis de comprexidade


na interpretação cre scu tcxto;
nenhuma leitura dessa epopèiu pode prescindir nnr lx)('rììrì clttirI it L'ncida; poróur, clLlzìntc) ttritis proÍundirnrcntc irrrcr'-
preensão de alusões, sobretudo aos
totalmenre cla c'r- girrros nrr brrscu clo intcrtcxto sub-reptício, tanto mais poclcn'Ìos tclì-
l
mitos e à trama narrativa cìc ,lrr rr nos scntir distantes da compreensão de Virgílicl: o sentido clc
Homero, mas o aprofundamento e enriquecimento
l
de uma leitura sulr obra talvcz pareça hermético ou irrecuperável em toda sua força.
linear compreende vários graus de aproximação
até o reitor imprícir. liis trma ilusáo que cumpre retificar, afinal, por sua própria concepção
ideal, isto ê, capaz de detectar e.rt".rde,
todas as artimanhas da in- ('olììo texto, a Eneida se sustenta como um todo e se faz usufruir este-
l terrextualidade na obra. Nesse" sentido, nenhuma
reitura da Eneida ticlìrnente mesmo aos que pouco, ou quase nada, se atêm à problemá-
será ideal, porque perdemos grande parte
ll do repertório de textos a tica da intertextualidade - atestam-no milhões de leitores não espe-
que ela alude e porque não somos
tl
sempre."p"r., de compreender as t'inlistas, ao longo dos séculos, que vêm encontrando na epopéia a
inrenções da alusão, já que não é poss?uer
,".up"r", o t oijo.,r" ..rt- sntisfaçáo estética que é essência mesma do fato literário. Tais leito-
tural do leicor da época de Augusto. Nao
exageremos, contudo, no lcs, porém, se "informados", compartilhando os resultados, tateantes
tom pessimista: não se ousará negar universalidade
I
à mensagem da tluc sejam, da crítica e da filologia virgiliana, veriam acrescer a seu
epopéia, cuja mensagem' por cer[o, tem
sido transmitida uo lo.rgo do,
li
séculos, em leituras com maior ou menor, l)razer mais urn: o do reconhecimento das alusões e conseqüente mul-
quando não quase nula,
recorrência ao parâmerro da arusividade. poì tiplicação de sentidos que uma leitura intertextual não apenas possi-
l
outro ladol nao e por lrilita mas provoca. Ler a Eneidasem referência ao jogo alusivo impli-
vivermos em outro momento curturar que
i
não compreenderemos uma
obra do passado, e seria vão exercício de pessimir-"]"-""tar ca perda certa,4 mas algum tipo de perda sofre também a leitura dos
o ób_ "iniciados", como já lembramos, diante do cemitério de versos em
l
vio: pelo próprio curso naturar das coisas,
o leitor "idear,, é uma abs-
tração cada vez mais esgarçada com o passâr qLre se transformou a poesia latina arcaica e grande parte da alexan-
do tempo - b"rtu pensar,
por exemplo' nos aspectos da língua latina clrina; não pretenderemos, então, que os leitores "comuns" lêem ou-
que não somos mais capa-
q. avaliar com precisão . qu. desafiam ntotogor.,uil;;", amiú_ tra obra que não a concebida pelo poeta - deixam, sim, de reconhecer
1.r outras "vozes" na polifônica epopéia que admiram.
de, de anremão perdido. Todavia, uma
espéci" d""arqueolágiu t.*tuul
que ocupa grande parte dos estudiosos Para nós, portanto, a Eneida permite níveis de leitura mais ou
dà mundo untigo Ëque vai à
procura dos sentidos perdidos, de quando menos alusiva, ainda que, já o veremos, sem um mínimo de memória
em quando, ïu itrru.r, a"
recepção de uma obra, lança l* nova textual a compreensão da obra pode ser afetada. Entre as páginas que
sob facetas oúr.u...idas em
tempos precedentes' resgatando do esquecimento seguem, encontraremos um tipo de intertextualidade que não exige
expectativas
interpretativas inscritas no texto literário;
assim, o ,.-po que não
pode ser revertido é.mitigado, e atingimos a
compreensão que h6t dez Um pequeno exemplo: no livro X, queixando-se aJúpiter, Vênus lamenta a repetiçáo
anos ou há um século arrás.não era possíver. da guerra deTróia e, depois de mencionar Diomedes, dizt EquÍden, credo, mea uolnera
ciemos, foi"*"-pto,
que virgílio, do final do século XIX restant("Certo me aguardamr perso, outras feridas",X,v.29, na tradução dc Odorico
a.st" d"ru, r.* rur.itãào anahs.s
que verdadeiramenre represenram ganhos Mendes); o leitor desinformado não saberá que a deusa fora ferida pelo Tidida, cnr
de inteligibirid;;; com re_ episódio da Ilíada, e não entenderá o que ela teme ou finge temer. Contentâr-se com o
lação a certas épocas anteriores.
esclarecimento de uma nota de rodapé, como faz o leitor comum, náo basta, pois,
o estudo dos efeitos intertextuais tem como conseqüência geralmente, em tais circunstâncias, o comentador apóe informação sumária cluc não
re-
levar a complexidade, a um primeiro olhar leva em conta os aspectos propriamente literários da alusáo: pára-se, pois, no nrcio tlo
desat.rrro ir-rr-u-r|.ìr"du,
d. caminho...

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I'aulo Sérgio de Vasconcellos Efeitos intertextu üs na Eneida de Virgílio

Nem importa muito se algumas irltrsi>cs


Isso náo é um mal'
conhecimento ativo senão do próprio texto que se vai lendo: trata-se limitado das
for.rri.o.pl"tamente ignoradas' Com o conhecimento
de recordar, muitas vezes em detalhe, passagens anteriores que serão é, de resto, inevitávcl cm
circurstâncias históricas que possuímos, isso
evocadas sutilmente para criar sentido, em processo a que chamare- das reaçóes, além do mais' reíÌetem antes ulììlì
ulgrrtr."ror.u Algumas
mais ou menos conscicn-
mos "intratextualidade". Se não tecer a rede de associações a que o Jiïforiçao p.t.o^-l do lti'o' que uma intenção
texto, pela retomada de material lingüístico, incita, o leitor por certo t" àu p"rt. do poeta (grifo nosso)"'i
se verá privado de riquezas recônditas da obra, segundo esperamos
Se a alusáo provoca "vaga impressáo
passageira"' é porque náo
demonstrar; empregando de novo a metáfora musical, sua "execu-
a conseguimos interpretar co; eficiência,
em razáo' talvez' de alguma
ção" da Eneida como leitor ativo, terá menos notas, mutilará aÍran- encontrar; por outro
jos, ignorará nuanças. chave que o tempo tornou difïcil ou impossível
se trata de texto lite-
lado, náo se exijam certezas científicas quando
Desejamos provar, com o conjunto de nossas análises, a {uncio- instaura do con-
nalidade da arte intertextual (ou alusiva, ou "integrativa", como que-
rário e intertexto, mensagem náo explícita que se
Virgílio, como reco-
fronto entre textos. Porém, se faz parte da arte de
riam, respectivamente, Pasquali e Knight, ou imitatio, como produtor de sentido'
nhece Camps, o jogo intertextual to-o elemento
etiquetavam os Antigos) de Virgílio em sua epopéia, exemplo radical "excedente" de leitura
mais que,,impressão,,, ter-se-á uma espécie de
desse processo artístico pouco compreendido; assim, forneceremos tornar multifa-
p"r" da linear, fascinante e intrigante recurso a
desmentido categórico a estas considerações de Anthony Camps: "1é-
cetadootextoeapermitirpolifoniaquesólevianamentepoderíamos
outro preconceito
"É claro, além disso, que, freqüentemente, quando uma reminiscência ignorar, como se se tratas,ã d" *"to adorno' esse
em certo
homérica é idendficada, não acrescenta nada para o leitor à qualidade ia noçao de ímitatio-aemulatío' Para nós' Camps' pensando
à renúncia a
poética da versão virgiliana...Por vezes, pelo contrário, uma evocação tipo de alusão mais "neutro", incita involuntariamente
recente nos estudos
demasiado explícita de um precedente homérico pode ser danosa".s
uma pesquisa importante e que é relativamente
intertextuais que
*rirgiü".rot, a de apontar e interpretar os efeitos
Aqui, Camps parece estar preso ao velho conceito da "imita- da- obra' Ora'
modificam nossa compreensão ao menos de passagens
ção" como aentulatío, sem se ater à geração de sentido pela via inter-
.i, u* campo ainda segundo pensamos' reanalisar sob tal
textual. Um pouco mais além, o mesmo estudioso afirma: " "*plo'"';
g"'ul, já o dissemos' há de trazer bons frutos
Àrrg,rlo u poesia latina
"* que normalmente
e enriquecer a nua leituralinear, não intertextual'
"Para uma leitura da poesia virgiliana, o efeito melhor se obtém quando
a recebemos através dc uma série de impressões. Obviamente o leitor dela se faz.
deve reconhecer e reagir a al,rsões explícitas e ecos acentuados, como, PoderíamospensaremleituradaEneidaquefizesseusomínimo
a uma nova guerra
de resto, deve ser sensível ao fato de que a característica mais singular
de intertexto. No livro VI, por exemplo, a menção
da poesia virgiliana é aquela qualidade de ressonância e alusividade que
aparece tanto na forma quanto no conteúdo do poema. Mas, ent 'ríüno'
normal, a leirura do poema não perntitirá que os ecos e ressonâncias Aqui,oautorparececonfundiralusãointertextualcomalusáoafatoshistóricosdo"cir-
que nele estão contidos produzan rnaís do que unla vaga intprcssio ponto, se, ao invés de
;;Ë; du uirulid"d" do po"r"; concordaríamos nesre
" ao poeta e a ele contemporâner"'
cunstâncias históricas", lêssemos "literatura anterior
5 CAMPS, A. "Lcttura del Primo Libro dell'Encide" In; Lcc nt rttc Vcrgi/it rt ; tt'. N:r1,, rli, isto é, a trirclição litcrhria cm que se insere Virgílio'
Ciannini, 1983, p. 25. klcnr, p. 25-2(r.

tit
Paulo Sérgio de Vasconcellos Ìlfeitos intcrtcxtuais na lhela de Virgílio

de Tróia no Lácio, só compreendida por quem de algum modo está focalizaremos nossa atenção sobre o conjunto da primeira e da segun-
informado da tradiçao mítico-lendária cujo cume é Homero, pode ser da parte da epopéia.
superficialmente esclarecida com uma consulta a dicionários de mito- Antes de prosseguir, porém, é necessária uma advertência. Em
logia e obras congêneres; quanto maior a informação, porém, maior o um capítulo de seu Further VoÌces in Vergilb Aeneid, intitulado
enriquecimenro da leitura pela possibilidade de entender os sentidos "Allusion", R.O.A.M. Lyne defende tese semelhante à nossa; para
gerados pela alusão; no lirnite, a perda da leitura intertextual levará
ele, os textos evocados por Virgílio, "são parte do novo texto, cons-
ao comprometimento da inteligibilidade da narrativa e ao falseamen- tantemente e em detalhe, continuamente convidando ao processo de
to de sua concepção. comparar e contratar... Ler a Eneida é estar consciente de outros tex-
Uma pergunta inicial assombra quem se preocupa com o resga- tos por detrás da nova criação".e
te dos sentidos criados pela alusão: como identificar a referência ao Mas esse livro, de 1992 e obtido por nós em 1994, no final de
hipotexto? Veremos que na prática a questão é complexa, pois os nossa estada como bolsista em Roma, quando toda a nossa pesquisa já
modos de citação transcendem a rnera reprodução de versos ou tre- se encaminhara na direção de uma análise intertextual radicalmente
chos de versos, traduzidos de originais gregos ou transcritos de auto- assumida como parte integrante da composição virgiliana (um princí-
res latinos, técnica mais facilmente detectável e muito freqüente. pio, de resto, prenunciado pelos estudos de Pasquali, Knight, Otis e
Quando intervém a contamínafzb, sutis se mostram as possibilidades outros), ressente-se de certos excessos, sobretudo pela insistência do
de entrecruzamento de vários hipotextos e infindas as variedades de
autor em identificar a todo custo fitrther voices na Eneida - vozes in-
alusão; mas o processo pode ter contornos ainda mais tênues. quietantes e perturbadoras sob a superfície heróica e patriótica da epo-
Apresentarernos, nas páginas deste capítulo, uma amostra, que péia. Além do mais, não trata particularmente da intra-, para- e
não se pode pretender exaustiva, dos processos alusivos na Eneida; autotextualidade, esses aspectos da intertex[ualidade que distinguire-
salientaremos os efeitos de sentido e elegeremos casos que sabemos mos a seguir, nem apresenta os mesmos resultados que reportaremos.l0
aparentemente discutíveis, mas a nosso ver certos, de jogo intertex-
tual, muitas vezes tramado com recursos tão delicados que parecem e LYNE, R. O. A. M. Furtlter Voices ín Vergílb Aeneid. Oxford, Clarendon Press, 1992,
incitar o leitor a uma constante jornada de desvendamento. Reitera- p. 103.
mos que esquema algum poderia dar conta da riqueza inesgotável das ì0 Divergimos em parte desse estudioso ao questionar sua afirmação de que o leitor tem
variedades de operações alusivas; apresentaremos, portanto, aspectos de estar conciente de textos e contextos evocados ("To read the ,Aenerd is to be
constantly aware ofotirer texts in and behind the new creation", p. 103). Para ajudar o
relevantes da ars intÌtandis virgiliana, acompanhados de considera- leitor, o poeta lhe lançaria "sinais" que apontam para o confronto intertextual; de fato,
ções quanto ao significado criado pela polifonia. o cenrro de nossas tais "sinais" existem, e nós rnesmos apontaremos alguns, dirigidos ao leitor atento,
páginas passará a ser a análise e interpretação de efeitos de leitura capaz de compreender a alusão e extrair dela sentidos, rnâs, para nós, esse é o grau
"ideal" de leitura intertextual, não necessariamente inscrito na estrutura da obra como
provocados pela arte interrextual da Eneida. Algumas das análises
indispensível à significaçáo; ou seja, com suas constantes alusões, cuja teia sutilíssima
seguintes se complementarão nos dois capítulos posteriores, em que perpassa todo o poema, várias camadas de sentido se somam ao sentido linear, possibi-
litando graus de aproximação intertextual. O próprio Lyne, de resto, mitigará a afirnra-
ção ircirna transcrita dizendo, mais de uma vez, que se pode ler a epopéia senì prcsrâr
I Scrír prcciso dizer quc atribuímos outro valor à noçáo de ímitatio tal como desde otrvidos a cssas vozcs sub-reptícias sob o tecido narrativo de superíícic, nicnsagcrrs c1trc,
a
Antigiiidaclc sc vcur conceitrrando o termo? p()r' vczes, cstlriam cn'r conflito colìì sua idcologia cxplícitn.

.- tÌ4
- ti5
Paulo Sérgio de Vasconcellos lili'ilos irrtcllcxltr ús n;t litu'ìút tlt' Vir'1iílio

Na verdade, em toda a parte do mundo que cultiva os clássicos, Aqui, a mecha da cabeleira cle Bcrenicc, trausfigr.rntcllt cttt ctttrs-
tal é a massa ingente de estudos sobre a epopéia que toda pretensão tclação, dirige-se a sua dona, em poema traduzido dc Calínaco, c rc-
de originalidade absoluta fica relativizada pela impossibilidade, reco- corda o momento em que a rainha a cortara e a consagrara aos dcr.rscs
nhecida pelos maiores especialistas,rr de estar a par de tudo o que se como voto pelo retorno do marido.
publica sobre a obra e o poeta. Nem sejamos, por isso, pessimistas: A semelhança quase total (as modificações feitas consistem tão
seja como for, cada análise individual, se conseguir ler profundamen- somente no acréscimo de interjeição e na substituição de uerticepor
te o texto, trará sempre novas descobertas, pois, apesar de tudo, há lítore, além da flexão de gênero do adjetivo inuitus, de acordo com o
muito a desvendar nessa que talvez seja a obra mais estudada em toda novo contexto) induz ao confronto; trata-se, porém, de exemplo de
a tradiçáo ocidental, à exceção da Bíblia, da Antiqüidade aos nossos alusão difícil de interpretar, caso não a tomemos como mero "ador-
tempos. no", explicaçáo demasiado fácil para um poeta como Virgílio. Norden
observa o tom helenístico do episódio das vítimas do amor, em que se
insere o do encontro de Dido com Enéias, e admira a arte com que
1. CrraçÃo E coNDENsAçÃo Virgílio reproduz quase literalmente um verso em conlexto comple-
tamente diferente;12 Jean Granarolo sugere duas interpretações dife-
rentes:
Entre as formas de alusão na Eneida, o processo mais simples,
por se tratar de verdadeira citação, é o da reprodução de verso lacino,
"De um lado, pode querer dizer que Enéias, exatamente como a mecha
com pequenas modificaçÕes, em novo contexto. Um exemplo muito de cabelos, é obrigado a obedecer à vontade do destino; por outro /"'/
discutido é o que segue; integra a justi{ìcativa de Enéias diante da pode-se pensar que Virgílio queira deixar entender que' como a mecha,
sombra de Dido, no último encontro nos Infernos: Enéias se encaminha para a deificaçáo.'."r1

inuitus, regina, tuo de litore cessi. (VI, v. 460) Para Cartault, os versos se adaptam ao novo contexto, perden-
do a cor especial que tinham no texto de origem;ra o crítico francês,
"Foi contra a vontade, rainha, que saí de teu litoral". portanto, simplesmente julga que não há nada a interpretar em ter-
mos de intertextualidade, nenhum sentido surgiria da alusão. Barchiesi
O leitor de Catulo lembrará este verso:
e Conte repelem algumas interpretações e preferem, mais prudente-
mente,louvar o modo como Virgílio "apropriou-se de Catulo, produ-
Inuita, o regina, tuo de uertice cessi. (LXVI, v, 39)
zindo um verso de belíssima fatura e...adequado ao patético do con-
"Foi contra a vontade, ó rainha, que saí de tua cabeça".

NORDEN, Eduard. Op. cit., p.154.


" "A bibliografia virgiliana é táo vasta que, se é muito diÍïcil, para não dizer impossível, Enciclopedia Virgiliana, vcrbere Carullo. Granarolo não diz que a segunda hipótese
poder-se vangloriar de ter dela conhecimento exaustivo, não é também fácil dela co- forajápropostaporThorton em1962 (cf.HIGHET,Gilbert. Thespeechesínvergil s
nhecer completamente setores específicos...", declara Giancotti (In: GIANCOTTI, Aeneid. Princeton, Princeton University Press' 1972, p. 202, nota l8)'
Franccsco. Wctor Trístís. Lettura dell'Ultímo Libro dell' "Eneide". Bologna, Pàtron, t4
CARTAULT, A. LArr de virgíle dans I'Enéide.Pais, Bibliothèque de la Faculté dc
1993, p. 2, nota 2). Lettres de I'Université de Paris, 1926,v.1' p. 510.

-rÌ6- -87 -

lt
Paulo Sérgio de Vasconcelios llfeitos intertextuds na I'acirla tlc Vir|ílio

texto".15 Por outro lado, Nicholas Horsfall julga que há, nessa trans- Alcandrumque Haliumque Noemonaque Prytanimque (lX, v. 7ó7)
posição virgiliana, "intenção literária pelo menos em parte humorísti-
"Alcandro, e Hálio, e Noémon, e Prítane..."r8
ca".r6 A diversidade de interpretações revela quanto de enigmático e
desafiador pode haver na trama intertextual da Eneida. Trata-se de guerreiros ffoianos que são mortos por Turno, quan-
Nossa interpretação só pode ser anunciada aqui; compreender- do, aproveitando-se da imprudência de Pândaro e Bícias e da ausên-
se-á melhor nossa leitura quando analisarmos o conteúdo elegíaco do cia de Enéias, o chefe rútulo se introduz no acampamento inimigo e
livro IV da Eneida, cujos ecos ressoam no encontro do livro VI. Em promove ali verdadeira carnificina.
resumo, rudo o que diz respeito à história de amor entre Dido e Enéias Desde Sérvio, os grandes comentadores da Eneida não deixam
é filtrado pelo código elegíaco (e trágico), desse modo incorporado ao de lembrar que o verso virgiliano é traduçáo literal de um verso da
épico; a reminiscência catuliana, em passagem que encerrará o episó- IIíada:
dio das relações entre os dois amantes, selando o fim definitivo de uma
paixáo que obstaculizava o cumprimento dos destinos, faz comparecer, A).rouõpóu 0 A).róy te Nofpouâ,re flpúrcxviu re. (V, v. 678)
num vislumbre, a atmosfera elcgíaca que tinha dominado o livro IV,
repleto de expressóes do código da poesia elegíaca. Sua inserçáo num No contexto homérico, Palas Atena incita Ulisses a abater os
contexto diverso, em que adquire novo sentido, é belo índice da mu- lícios, que combatem ao lado dos troianos contra os gregos; dentre os
dança de estatuto do herói Enóias: Dido permanece sempre a "ferida" que tombam são citados vários guerreiros, como os que preenchem
por amor, um ponto a que voltaremos com mais detalhes, mas Enéias com seus nomes sonoros o verso citado.
superou-se, e, ao invés de sucumbir ao mero papel de amante elegíaco, Sérvio, espantado com a mençáo desses guerreiros na Eneida,
ameaça que parece pairar sobre ele no livro IV e que o impediria de pois que tais homens tinham sucumbido no poema homérico e reapa-
alçar-se ao nível do herói épico, transcendeu sua subjetividade, assu- recem em Virgílio para serem abatidos mais uma vez...dâ^sua explica-
mindo objetivamente a tarefa de tornar-se veículo do divino, executor ção:
piedoso, ainda que sofrido, dos destinos. O código elegíaco é integrado
na estrutura da epopéia e ultrapassado pelo código épico; está presente unde apparet non ad historiam, sed ad ornatum poematis haec nomina
pertinerele
com toda a força poética que the conferiu Virgílio, mas submetido à
visáo de mundo da açáo heróica, unificadora ideológica da obra.ri "A partir disso, evidencia-se que tais nomes interessam não à história,
Por vezes, Virgílio traduz verso grego da forma mais fiel; um mas à estética do poema".
exemplo extremo é esta espécie de transcriçáo de nomes próprios gre-
gos em latim: Para o comentador, portanto, a alusão tem propósito meramente
exterior - é ornamento, provavelmente pela musicalidade o verso e
do tom épico conferido à narrativa com a incorporação da passagcm
"16 Op.cit., p. 107,
HORSFALL,N. Wrgilio: LEpopea ín Alambíco. Napoli, Liguori, 1991, p.63.
17 Sem íácil monologismo, porém: vozes dissonantes ganham seu espaço na estrutura da Para a transposição dos nomes latinos pâra o português, guiamo-nos pelos dicior.rírlios
cp<4róia. Sobrc este último ponto, vejam-se as análises, muitas vezes brilhantes, em que de Saraiva e Torrinha.
pcse rìos ocasionais cxaÍleros, de LYNE, R. O. A. M. Op.cit. (a ler de forma crítica). Ediçáo THILO, vol. II, p. 378.

_89_
Paulo Sérgio de VasconceÌlos Efeitos intertextuais na.ü'zeila de Virgílio

da llíada. Um crítico sutil e sempre válido, ainda digno de ser lido triga da Eneida, que de certa forma os retoma, não podcrilìu'Ì csrrìr crÌl
apesar do tempo, Cartault, aprovâ tal explicaçáo.20 contradição com ela, sobretudo em detalhes tão concretos; crìì surìÌiì,
Ora, parece-nos que o desvendamento das razões dessa citação desafiou provocativamente a capacidade de decifração intcrtcxrrurl
deve percorrer mais um passo; primeiramen[e, evoca a passagem nar- do leitor... Por outro lado, para quem faz leitura "linear", ncnhtrrn
rada em Homero; ali, Atena, como aqui Juno, insufla o herói que estranhamento; é ao leitor atento às alusões que o texto virgiliuno
protagoniza o episódio: apresenta algo engimático, que clama por explicação.
Propomos, pois, a hipótese: o poeta reproduz o verso grego nãcr
tô pcr roto nÀr10òv Àuricoy rp&ne 0upòu A0r1vr1 Q|.Y,v.676) apenas pela beleza evocativa dos sons dos nomes nem só para aludir
ao modelo imitado - além desses fatores, o efeito pretendido é de que
"Contra a rnultidão dc lícios fcz voltar seu coração Atena".
Turno apareça, em ironia trágica que se patenteará com o desenrolar
Iuno rriris animumque rninistrar. (En. lX, v. 7 64) da trama, nesse momento de sua breve e sangrenta aristeia, como o
suposto vencedor dos já antes vencidos troianos: por um momento,
'Juno lhe ministra forças e ânimo". Turno parece emergir como guerreiro grego vitorioso nessa suposta
repetição da história. Como se sabe, Turno fracassará; a alusão, tra-
A citação, pois, tem funçáo estrutural: evoca a situação "imita- zendo à tona o contraste entre os dois contextos, salienta o caráter
da" (Ulisses massacrando os inimigos) nesse ponto preciso da narrati- ilusório da ação épica do rútulo.
va. Confrontam-se, assim, duas unidades narrativas semelhantes. No campo da citação, que reproduz material alheio com pouca
Outra leitura, porém, vem-se acrescentar a essa: o poeta suge- ou nenhuma uarÍatio,z2 uma forma de intertextualidade sobre a qual
re, com a alusão, o repetir-se aparente, no Lácio, de um episódio da náo nos deteremos aqui é a retomada de fórmulas épicas, que, além
guerra de Tróia; assim, Turno parece se apresentar como o equiva- de obviamente realçar o tom épico do discurso, situam a obra numa
lente do guerreiro grego; a expectativa de que a história de fato se tradiçao literária, a da epopéia homérica. Eis seu sentido fundamen-
repita integralmente mutatis nutandis deixa aberta ao leitor a possi- tal: funcionar como marca de gênero, um dado dessa "arquitextuali-
bilidade de uma vitória de Turno, sua transformação real no "novo dade" que não é nosso objetivo analisar mais detalhadamente, segun-
Aquiles" misteriosamente anunciado pela Sibila. do advertimos no capítulo precedente. Um exemplo claro:
Virgílio estava por certo ciente de que seu leitor imbuído de
Aeole, namque tibi diuom pater atque hominum rex (1, v. 65)
Homero poderia tomar por deslize a incorporação de tal verso do po-
eta grego,zl mas correu o risco de ser tachado de incoerente pelos que "Éolo, pois que a ti o pai dos deuses e rei dos homens..."
velam por uma ingênua verossimilhança: fatos narrados antes da in-
Talvez o leitor recorde logo de início o estilo de Homero, que
cunha fórmulas como:
'o Op.cit.,p. 710.
zr Como era de se esperar, houve mesmo quem o considerasse espúrio (ver FORBIGER, 2r Forma alusiva freqüenre na Eneída,já o notaram Sêrvio (Ad Aen III, lO) e Macróbio
Albcrtus. VeryilíMaronísOpera.Edrtioquarta, Lipsiae, I. C. Hinrichs, MDCCCLXXV, (.9rr. VI, 2, 30); neste último, lê-se: Sunt alií loci plurintorunt uersuum quos Maro in
plrsIII,p.3ll). (\)t$ suunl cun pAuconÌrrl itntnutatíone uerborunt a ueteríbus transtulít ("Há outras

-9t -
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$t ! ri,l.-ll19eJ
9l liÍi'ilos irtlctlt'xttrús nt litu:iút tlt' Virgílirr
-,19

rucrtflp cruôpôv te Oeôy te (11,1,v.544) 1;bra clc Ênio, porém, faz que não possamos afirmar conì ccrtczlì ()
czrráter "neutro" de tal alusão; pelo que nos é dado julgar, parece scr
"O pai dos homens e dos deuses..."
simples marca genérica.
Uma das formas de citação em Virgílio é a "condensação", es-
Em Virgílio, há o acréscimo de rex, além da modificação na
pécie de contaminatío emminiatura; o primeiro nome é sugerido por
ordem das palavras; entretanto, Macróbio nos informa que o poeta
Farrell, que exemplifica com dois versos homéricos reduzidos a um
retoma expressão de Ênio:
por Virgílio:
tum cum corde suo diuum pater atque hominum rex23
éu0' ü,p ë1u fl"oórr1 te Oóô"etâ, te Kutrroôôrq te,
Nqootrl Iner"Co te @Óq 0' A)"iq ze Bo&nç(II. XVIII, v' 39-40)
"Entáo, em seu coração, o pai dos deuses e rei dos homens,.."

"Ali estavam Glauce e Tália e Cimódoce,


Tais alusões devem, a nosso ver, ser classificadas como "neu- Neséia e Espio, Toe e Alia de olhos bovinos".
tras" quanto à criação de sentido, isto é, de efeito intertextual que
modifique nossa leitura criando subtexto a ser decifrado; sua função, Em Virgílio, fundem-se os dois em um:
como dissemos, é filiar a epopéia a toda uma tradição literária, um
Nisaee Spioque Thaliaque Cymodoceque (V, v. 826)
conjunto de textos que deÍïnem o gênero ao qual se Íilia a Eneida.
Assim, não daremos maior importância a Íórmulas desse tipo, repeti-
"Niséia e Espio, Tália e Cimódoce".
da em II, 648 eX,7 e743: trata-se de "etiquetas" de um estilo que se
pretende homérico. Contudo, cautela se faz necessária por estarmos Para Farrell, "é difícil evitar a conclusáo de que ele (scilicet
lidando com fragmento de Ênio; não seria impróprio da aite virgiliana Virgílio) considerava a condensação alusiva um fim em si mesmo".25
se uma dessas alusões, "neutras" em princípio, se empregasse em de- De fato, o exemplo acima é revelador: o poeta funde duas metades de
terminada passagem com intenção a mais de criar sentido a partir do dois versos homéricos, reproduzidas literalmente, com a primeira par-
confronto com o contexto de que foi extraída; desse modo, a alusão te do segundo verso ocupando a primeira posição, e a segunda parte
se poderia denominar "marcada", semantizando um traço estrutural do primeiro verso original preenchendo a segunda posição, o que po-
- e algo semelhante ocorre com o emprego dos epítetos à Homero na demos esquematizar, à maneira de Knauer: 40a * 39b: verso
Eneida, segundo os estudiosos vêm observando.2a O estado atual da virgiliano. Em suma, contaminatioem pequena escala, sem modifica-
çáo outra do material de origem'
passagens de muitos versos rnais que Marão transpôs dos Antigos para sua obra com
mudança de poucas palavras"). Que Virgílio, porém, quer evocar o contexto homérico, demons-
2r Nossa edição, da UTET, traz diuutn;parece-nos evidente, porém, que a melhor liçáo é tram-no outros detalhes alusivos, não aduzidos por Farrell; veja-se:
mesmo druonr.
2a Em virgílio, os recursos épicos da tradição (epíteto, Íórmula, etc.) tendem a se motivan
uma repetição, por exemplo, mais que marca de estilo formular, pode gerar sentido; um ()s
opor Virgílio a Homero sob tal aspecto de suas respectivas obras, mas recentementc
epíteto, ao invés de ser empregado mecanicamente, chama a atençáo, pelo contexto estudiosos têm mostrado algo semelhante em passagens do poeta grego.
em que aparece, para um aspecto do personagem, etc. Há algum tempo, costumava-se Op.cit., p.94.
'

-92- -93-
I'lrrrlo Stirgio tlc Virst olrct,lkrs lili'iltrs irrtt't lcrttr tis n,t lirtt'itht tlt' Vir'1iílirr

laeua tcnet Thetis ct Melite Panopeaquc uirgo (V, v. 825) MirccíìllrtlscigtrallrtrrtririrlegriaedesseqLladroevolascnsaçittl


carregada
"À esquerda se posiciona Tétis, Mélita e a virgem Panopéia".
,lt' pllcirlcz c scrcr-ridade' em contraste com a atmosfera
pacificado pelo
rlil(. prcclominara no livro anterior; também o mar'
participa da atmosfera de
Retoma Virgílio dois outros versos do mesmo passo homérico; .lcslizar clo carro de Netuno sobre as ondas,
rcrÌ Mel,ttq (v. 42) e raï llcruórcq (v.45) - nova fusão, porranro, Itltz:
de dois versos em um só (et Melite Panopeaque), desta vez com acrés-
cimos virgilianos (Laeua tenet Thetis e uirgo). subsidunt undae tumidumque sub axe tonanti
(v' 820-821)
sternitur aequor aquis, fugiunt uasto aethere nimbi'
Pode-se insistir, entáo, na idéia de "condensação", de fato mui-
to presente aqui: o cortejo que acompanha o carro de Netuno ocupa
cinco versos em Virgílio (v. 822-826); em Homero, no episódio visa- Natraduçãobastantelivre_ebelíssima-deodoricoMen-
do por Virgílio, só o catálogo das Nereidas preenche onze (v.39-49). rles:

Se examinarmos, porém, os diferentes contextos num poeta e outro,


aproximados pela alusão, notaremos algo mais curioso; na Eneida, "Cahe sob o eixo tonante o inchado argento'
Amansa a vaga' espalham-se os negrumes'"2?
Vênus suplica a Netuno que as naus de Enéias possam chegar a salvo
à Itália, e sua prece é atendida; o poeta expressa o efeito que as pala-
após receber a
vras tranqüilizadoras do deus nela provocam - alegria: Ora, no contexto do original imitado' Aquiles'
chora e é acompa-
notícia, por ele pressentida, da morte de Pátroclo'
His ubi laeta deae permulsit pecrora dictis (V, v. 816) nhado em seu lamento por todos, sua máe inclusive:

"Depois de afagar com tais palavras o coração alegre da deusa..." &rouoe õè nóturcr PnÍnP
npêuïì èv Bêv0eootv b')"bç napü' notpì yêpoutt
Enéias, por sua vez, em face da serenidade das águas, é invadido rcôruoêv r'AP ênertcr(XVIII' v' 35-37)28
pelo mesmo sentimento (e se note o paralelismo realçado pelo de-
"Ouviu entáo a mãe soberana'
monstrativo em posiçáo inicial nos dois passos):26 do mar, ao lado do velho pai'
sentada nos abismos
e de imediato também lançou um gemido"'2e
Hic patris Aeneae suspensam blanda uicissim
gaudia pertempranr mentem (V, v. 827-828)
as ondas e, sob o eixo toante'/ aplaina-se a túmida super-
Literalmente: "Abrandam-se
"Neste momento alegrias acariciantes penetram, por sua vez, fície das águas, fogem do vasto éter os nimbos"'
em que também se mostra a dor de
na mente ansiosa do pai Enéias..." Os dois primeiros versos retomam I, v' 35?-358'
de Agamenáo' que lhe tomara Briseida' O
Aquiles, mas aqui r.rr.r-rridã f"t^
"ii'udt
revelam q.,e é o outra passagem da llíada qtte
."",..," e as ourras al,rsJes,'porém,
Virgílio tem em mente.
seu pae no aqueo pego' e r"rlula
No primeiro caso, pronome; no segundo, advérbio com valor temporal: mas se trata da "(O urrar medonl-ro) ouviu-lhe a augusta madre/ Corn
nrcsrna raiz demonstrativa. e geme" (Odorico Mendes)'

-94 - -95 -
lrl('ito:; irìt('11(lxlÌr ,11s 11,t tilulit!t tlc Vir gílitr
Paulo Sérgio de Vasconcellos

segnior ibat
tclt sotraut utncris: haud illo
É notável o efeito de contraste, um dos princípios da arte (IV' v' 143-150)
Aetrcrts, trìntum egregio decus enitet ore'
virgiliana em geral, como se sabe; aqui, vemos que também está pre-
sente em sua arte alusiva. Assim, em Homero, filho e mãe divina se Eis como odorico reproduz a refinada construção desses ver-
desfazem em dolorosos lamentos e tudo a sua volta parece comparti-
',( ìS:
thar dessa dor; em Virgílio, são tomados de alegria, em meio à placi-
dez geral. Num, a mais inlensa desolação, noutro a mais profunda "Quando abandona Phebo a Lycia hibema
aiegria; em ambos, a solidariedade da natureza que parece compactuar E o caudal Xantho, e ao visitar a Delos
desses afetos. Materna, instaura os coros, pelas aras
Mistos Cressos e DryoPes fremindo
A leitura intertextual, incitadapelas alusões textuais, leva-nos
E AgathYrsos Pintados; Por cabeços
a concluir: o texto sugere e provoca o paralelo contrastante. Virgílio Do Cyntho airoso pisa, e o crino undante
se apropria de versos homéricos reproduzidos literalmente, ainda que Atilando, enredado em molle folha,
de forma parcial, extraindo-os de um contexto determinado e inse- De ouro ennastra; o carcaz aos hombros tinne:
Não menos senhoril Enéias ia;
rindo em outro, de atmosfera oposta; sem dúvida, o efeito sobre o
Tanto garbo transluz no egregio rosto!"10
leitor "atento" ó notável. Vê-se que a leitura linear, não intertextual,
de um
priva o leitor de uma parcela de significado que pode parecer peque- Notemos de início o refinamento da expressáo, digno
na, mas cuja eficácia se deve recuperar, pois a tal nos incita a singular
l)oeta helenístico; há,
por exemplo, o alongamento do -e àe -que' no
(CretesqLle' Írà cesura
imitatio virgiliana. verso 146, antes do grupo muda com líquida
a cesura no sé-
É frequente em Virgílio um curioso processo de contaminatio lpós o terceiro ,.-pá forte, triemímera, que secunda
que aqui ilustraremos: o poela imita passos de Apolônio de Rodes, timo, heftemímera I métrico não incomum) ' Diante de ex-
"rq,r.*u diríamos,
mas integra em sua criaçáo elementos que encontra no original ho- pressões como .rru, No.rgaret fala em "caráter artificial";3r
de todo esse ver-
mérico; em outras palavras, transforma Apolônio através da fonte com maior precisão, caráier refinado, que é a marca
das palavras na seqüên-
primeira desse poeta helenístico, Homero, bem como, por ouúo lado, so singular. Apontaremos, sobretudo, a ordem
com mai-
retoma este último através das mudanças operadas pelo primeiro. .ia aúixo (grafam-se com letras minúsculas os adjetivos e
Analisaremos um exemplo que mostrará tal processo em açáo e possi- úsculas os substantivos) :

bilitará um comentário sobre observações da crítica mais recente a


r0 a corrente do Xanto/
respeito dessa passagem famosa, discutida já desde a Antigüidade. LiteraÌ prosaicamente: "QuaÌ Apolo, quando a Lícia hibemal e
e
instaura coros; âo redor dos altares' mesclados'/
abandona e visita a materna Delos/ e
Trata-se do símile de Apolo, a quem Enéias é comparado, no livro IV: e os agatirsos pintados; / ele caminha pelos jugos do
fiemem os cretenses e os dríopes
ata e os envolve etn ouro'/
cinto e com tenra fronde/ os cabelos o.tdulur1r"t ajeitando
valoroso que ele ia/ Enéias, beleza tiro
Qualis ubi hibernam Lyciam Xanthique fluenta dardos ressoam-lhe nos ombros: náo menos
deserit ac Delum maternarn inuisit Apollo grande brilha em suâ face egrégia!"
I 1948, p' 50' $ 125'
instauratque choros, mixtique altaria circum NOUGARET,L. Traité dZ úetriqu" Latine.Paris, Klincksieck'
de c9m de Lunelli: "Le
Cretesque Dryopesque fremunt pictique Agathyrsi, Sobre o ,"*u, pod"-," .o'-t"-'ltut Janssen' L1ot1
"'t" ""'oio LUNELLI' Aldo (Org')' Op' cit'' p'
ipse iugis Cynthi graditur mollique íluentem Caratteristich" d.llu Li,'g"" Poetica Romana"ln:
frondc premit crincm fingens atque impiicar auro, 88 e ss.

-e6, -97 -
Paulo Sérgio de Vzsconcellos
Efeitos intertextu us na, Eneida de Ytglto

mollique fluentem
ostroque insignis et auro (v. 134)
b
fronde premit crinem fr. Vl-iq\l
"...belo em sua púrpura e ouro",
AB
cui pharetra ex auro, crines nodantur in aurum,
É sintático elaborado e conhecido o que tentamos re- aurea purpuream subnectit fibula uestem. (v. 138-139)
"rqu"-n
presentar acima com a seqüência ab-AB: a dois adjetivos
seguem dois "Sua fáretra é de ouro, seus cabelos se atam em ouro,
substantivos por eles modificados, na ordem respectiva;
tàl ,,figura,, fíbula de ouro ligalhe a veste purpúrea".
simétrica, com a ressalva de que, no passo acima, não ocupa
apenas
um verso' é a que caracteriza o verso chamado aureus (adjetivor- Que tal repetição vem reforçar o aspecto helenístico dos versos,
adjedvo2 VERBO subsranrivo 1-substantivo 2);32 dois versos revela-o a alusáo: é calcada nos hinos a Diana e Apolo, de Calímaco,
desse
tipo aparecem no mesmo episódio da caça nesse livro IV, quando como Clausen apontou há algum tempo.33
se
descreve a indumenrária de Dido, que acompanha Enéias: Entretanto, o esquema sintático desses versos (observamos a tí-
tulo de curiosidade) é empregado aqui não apenas por seu valor estéti-
Sidoniam picto chlamydem circumdara limbo (v. l3Z) co,34 tão prezado pelos Antigos; a nosso ver, o uso da estrutura abAB
sugere e realça a idéia de entrelaçamento, contida nos três casos em
"Envolta na clâmide sidônia de fímbria bordada...,,
que esse esquema comparece: a veste que envolve Dido, a fivela que
aurea purpuream subnecit fibula uestem (v. 139)
prende a veste, a delicada folhagem que atâ a cabeleira de Apolo.,.
No símile que estamos comentando, Vir$lio retoma Apolônio
"Fíbula de ouro liga-lhe a veste purpúrea". de Rodes; já adiantamos que não encontraremos neste tal ordenação
rlos sintagmas adjetivo-substantivo que constitui a marca mais singular
Portanto, em passagem relarivamente curta, por três vezes rla sintaxe dos versos da Eneida que estamos focalizando. No poeta
Virgílio emprega essa ordem requintada; o terceiro verso é um grego, temos:
autên-
tico aureusou' como se diz em ingrês, uma "Gold Line". pode-se
pen-
sar que o poeta quer assim pôr em relevo a impressáo
de refinamento doç õ'br uqoìo Oud$eoç eïorv Anól.À<ou
e beleza que dão o tom de todo o trecho, de faturu vincadamente ÂfrÀov &rr t1ya0êqu tè KÀdpov tô ye tIúò
helenística; a secundar essa interpretação, está a insistente fi Àurtqu ebpeìau bni Enu0oro pofrot'
repetição toìoç bu&, nÀ10òv ôf1pou riev, ôpto ô'bnnì
do elemento "ouro": xerÀopéu<ou â,puõrç. (Argonáu ticas, I, v. 307-3 1 1)

r/ Nenhum dos fiagmentos de Ênio trazem esse esquema; encontrá-lo-emos,


il
CLAUSEN, \7endell. Wrgilb Aeneid and tlrc Tradition of the Hellenísric Poerry.
antes de Ilcrkeley and Los Angeles, Universiry of California Press, 1987, p. 22.
virgílio, em catulo e em Lucrécio; certos fragmentos poéticos
de cícero trazem esque_ Unr poeta como Virgílio reveste maximamente de sentido os recursos formais a sua
ma similar, mas não o autêntico verso aui'er1,r, ,.gr.rdo
coNRAD, carl. ,iTraditional tlisposição, por isso devemos sempre estar atentos: etiquetar como mero "adorno" po-
Patterns of \7ord-order in Latin Epic from Ennìus
to Vergil" ln: Harvartl Srudics Ì,
classical Philology, vol. ó9, 1965,p.236.sobre o rema, consulre-se í.tico certas construções refinadas pode ser enganoso. Carl Conrad, no artigo já citado,
NORDEN, E. op. :rrr:rlisir alguns efeitos de sentido que surgem do emprego da "Golden Line" ou de es-
cit., p. 392-398.
tlrretrrr semelhante (p. 235-741).

-99 -
lil0itos irÌtclt('xtu'tris rt,r li ttc i iltt tltr Vitgílltr
lilugggd. v,lg)nSUI

"Qual, do templo perfumado de incenso, caminha Apolo lrirrtinnos tla idéia de que o jogo alusivo cria sentidos intertextuttis,
para a sagrada Delos, ou Claro, ou Pito,
rlturl o valor funcional dessa "citação" erudita?
ou para a vasta Lícia, junto às águas do Xanto:
tal se movia, em meio à multidáo; ergueu-se, então, o grito Antes de enveredarmos por esse tema intrigante, cumpre real-
ilustra-
dos que o exortavâm em conjunto".
ç1r a importância deste exemplo para nossas considerações;
r1os, desse modo, como Virgílio, imitando Apolônio, acrescenta-lhe
Patenteia-s e a imitatia no andamenro sintáric o (qualisl oïoç) e lcmentos que estão na "fonte" dos dois, isto é, Homero;
no exemplo
polissíndeto: em - quelem n); na ciração de lugares de culto do deus crn foco, o fato de que se tem em mente sempre a mesma divindade
(Delos e Lícia aparecem nos dois); numa expressão como Xanthique rlcve ter facilitado a integração dos dois precursores num só texto.
Íluenta, tradução fiel do original grego. Vê-se, porém, que o poera Ao remontarmos ao contexto do verso homérico reproduzido
latino acrescentou vários elementos ao símile, em especial o fremir por Virgílio, uma interpretação algo perturbadora pode ser aventada.
dos adoradores do deus, vindos de várias partes do mundo, em torno Na llÍada, Apolo se prepara para golpear animais e homens com suas
dos altares, elemento que ocupa o lugar da aclamação uníssona dos flechas, inÍiigindo-lhes a peste. O ruído das armas do deus é também
gregos a Jasão. Virgílio integra o rraço de Apolônio ao símile, moven- mencionado no verso 49 e se tornará \m topos da poesia latina:36
do-o da esfera do comparado à do comparante, Apolo, num verso
cheio de musicalidade e força de sugestão (pois se trata de nomes ôetur1 õè rÀo1yq yêued d,pyopêoto Btoìo
gregos que evocam povos da mais diversa procedência):
"Terrível foi o ruído do arco argênteo".
Cretesque Dryopesque fremunt pictique Agathyrsi
No episódio de Dido também se fala de peste: a doença de amor
Além desse elemento novo, a já comentada descrição dos cabelos que consome a rainha e a levará à perda; no livro I, é anunciada, em
do deus, tópica na poesia latina, e, sobretudo, um hemistrquio a que nada, antecipação trágica cara a Virgílio:
na fonte helenística, corresponde: tela sonant umeris,cuja singularidade
é realçada pela cesura que o destaca da seqüência do verso. infelix, pesti deuota futurae (1, v. 7 17)

Comentadores (baste citar Conington e Forbiger, dois dos mai-


"lnfeliz, votada a uma peste vindoura".
ores estudiosos de Virgílio, como é consenso hoje) observaram que se
trata de tradução de Homero, que, na lLíada,diz, referindo-se a...Apolo: O procedimento é homérico, mas com técnica e arte virgiliana:
a do contraste trágico. Dido fora apresentada ao leitor com majestáti-
"erÀcry(cru ô' &,p bïoroÌ èrC cóprou (1,v.46)

"Retiniram-lhe as ílechas sobre os ombros". 16 Em Ovídio, por exemplo: Phoebus adest: sonuere \rae, sonuere pharetrae I signa deunt
nosco peÍ sua ("Febo me assiste: ressoaram as liras, ressoaram as fáretras/ reconheço o
Num estudo já por nós mencionado,35 Lyne propõe ousada in- deu, pà, ,"us , inais" , Remedía Amoris,v. ?05); note-se o mesmo verbo empregado por
terpretaçáo do sentido a ser dado a essa alusão ao Apolo da llíada; se Virgíiio sonare. Na própria Eneida, a aljava de Apolo em fuga rcssoa: Agnoucrc
-
deun.,.lpharetrantque fuga sensere sonantem ("Reconheceram o deus.../ e sentiram tr
35 LYNE. Furrher Voices, p. 123-125. ressoar da fáretra em sua fuga" IX, v' 659-660).

-100- -l0l-
(lc VirSílio
lifcitos inteltcxttrltis nir /ilcl:í/r,
l'lurlo Sír'glo rlc Vtscouu'lkrs

de Dido: o poe-
ca alegria e serenidad e (talem se laeta ferebat, v. 503) ; agora, cpurnrk, Involuntariamente, Enéias tem cuipa na morte
tu .usadamente enfrenta o risco de traçar
situaçóes ambíguas, delica-
está prestes a ser ferida pelas artes de Cupido, o poeta a denominrr
tlirs, profundamente humanas, para o seu
herói; seu epos' em suma'
"infeliz" e condenada a uma "peste futura", um amor destrutivo e nc-
objetiva; seu
fasto. niro é maniqueísta nem sua ideologia compactamente
homem que luta pela
No livro IV, Juno resolve unir Dido a Enéias, quando a sentc 6erói não é protótipo de perfeição. Ènéias é um
r"o"t"çu" dì sr.rus^fraql.'"'u' " t"ftt"t" náo males absolutos
e bem
presa daquela "peste" (tali persensit peste teneri, v. 90), aquela doença que o põem em dile-
que a faz esquecer-se totalmente dos seus deveres de rainha (v. 86-89). deÍìnidos, mas o.orr1r.,,,to de forças antidestino
e náo pode evitar-lhe a mor-
mas insolúveis, precira abandonar Dido
A teoria de Lyne:3? Enéias é comparado a Apolo portador-da- início' perdoar-lhe'
te; precisará matar Turno, embora quisesse' de
peste Qilague-bringe); portanto, de algum modo o herói troiano é encontrava seu
Virgilio estava táo ciente da dificuldade em que se
apresentado ao leitor como o portador da desgraça da rainha Dido, IV, que o faz sentir-se
herói da maneira como o apresentou no canto
em papel perturbador para o herói da epopéia. À uo, épica de super- apenas obedecido à ordem
culpado pela morte de Didà, apesar de ter
fície se contrapÕe uma outra "voz", inquietante por lançar sobre a
dún^ e às injunções de sua missáo providencial:
personagem épica uma luz nada positiva, já que Dido, sua "ví[ima",
concentra a simpatia do leitor. Lyne tenta provar, ao longo de sua Funeris heu tibi causa fui? (Vl, v' 458)
obra, que esse aflorar de "vozes" contrastantes com a "voz" épica é
recorrente na EneÍda e muitas vezes, como aqui, dá-se sutilmente, "De tua morte, ai!, fui a causa?"
por alusão, em perspectiva intertextual. justificaram a partida de
A seqüência aponta os motivos que
Por discutíveis que sejam algumas análises do autor, deixamos Enéias sente dolo-
Cartago; no entanto, upa'u' de suas "atenuantes"'
aqui registrada nossa concordância prudente: parece-nos provável a insensível
interpretação de Lyne, em face da temática do livro IV, cuja coerên-
,*" .i,tp"' chora (demisit tacrimas,v' 455) diante da agora
gama de senti-
pela
cia se revela na constância das imagens de caça e de ferida e fogo com
rainha, num dos episódios magistrais da Eneida'
que exige sacrifício e
que se descreve o amor de Dido. Lembremos que a rainha se suicida Jo, qu. evoca (a marcha impiedosa do fatum'
e amor só tarde demais
semeia dores na teffa; o sentimento de culpa
com a espada mesma de Enéias, gesto de cunho simbólico, sem dúvi- já nada mais pode
manifestado - e quando a expressão dos afetos
da; Ovídio, fundado em sua leitura de Virgílio, realçará esse dado por pathos intenso' aliados à
vezes subestimado pelos comentadores da epopéia:
mudar, a incomunicabilidade, "tt'), pelo
Voltaremos a esse episó-
costumeira habilidade da dicção virgiliana.
Praebuit Aeneas et causam mortis et ensem (Heroides, VII, v. 195) dio no próximo caPítulo'
nossas às de
As consideraçóes acima, que reúnem observações
que a alusáo sudl de Virgílio
"Ofereceu Enéias, ao mesmo tempo, a causa do amor e a espada". Lyne, parecem-nos Ëo,'fi'-u' a hipótese de
.r"rr"purrodocantolVtencionariamaisdoquecompararEnéias
episódio dos amo-
Em grande parte precedido por Otis, que fala dos "omninous overtones of the Homeric ."çuaá, a Apolo armado de setas. No contexto do
provoca o le-itor e o iuciut
Apollo about to shoot his pestilential arrows"(p. 74); "Dido has indeed been 'shot' by a res entre o troiano e a cartaginesa, a alusão
cruel hunter but he is Aneas, not the light hearted Cupid"(p. 75). OTIS, Broola. as "atenuantes") da dcsgraç.
a ver em Enéias o causador lressalvadas
Wrgil. A Srudy in Avibed Poetry. Oxford, Clarendon Press, 1963.

_103-
-102-
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Efeitos intertextuais nafzel'dfl de Virgílio

de Dido. Assim como esta fora apresentada, no primeiro livro,


de forma No livro IV,38 a mesma personagem, num breve símile, é com-
contrastante, fe\íz entre seus súditos mas na iminência da desgraça,
no parada a uma cerva assustada pelo latir dos cães (v. 12-13); assim,
símile do livro IV em que a beleza majestática de Enéias é
compaiada à também Medéia, sugere-se, passa de caçadora a caça.
de Apolo, veicula-se uma nota dissonante, um prenúncio
de infelicida- Virgílio, portanto, além de assimilar o par de amantes Dido e
de' E se recordarmos que Dido, no primeiro Liu.o, fora comparada
a Enéias a Diana e Apolo, como Apolônio associara Medéia e Jasão a
Diana, em expressÕes que retornarão no símile de Apolo, teremos
em Ártemis e Apolo, reproduz em sua epopéia um magnífico e sutil efeito
mente que o poeta quis tomar explícita ao leitor essa relação
entre os de leitura intratextual das Argonáuticas, um contraste trágico veicu-
dois momentos do episódio dessa paixão funesta .-.o*raste
- trági- lado também no contraste de dois símiles semanticamente relaciona-
co, ínsinua-se, num caso e noutro, a futura desgraça.
dos. É óbvio que na Eneidaoutras conotações próprias vêm-se somar
Mas a tramâ intertextual de virgírio reserva outras surpresas
a às da "fonte"grega, mas é interessante norar que Virgílio apresenta,
quem a observa mais de perto. No símile de Dido comparada
a Diana, para o leitor intertextual, uma leituraprofunda da epopéia de Apolônio
a deusa aparece em seu aspecto de caçadora:
de Rodes.

illa pharetram Até aqui, partimos de citações - mais ou menos transformadas -


l
ferr umero (1, v. 500-501) de um original; entretanto, a alusáo pode assumir feiçáo muito mais
complexa que a dos casos assinalados e comentados; veremos um exem-
tt" a íáretra plo dessa sutileza da referência intertextual que pode escapar ao leitor
leva nos o.r-,0.or...,i
desprevenido.
Ironia trágica, por via intratextual: num símile do livro IV, que O início do livro IV da Eneida nos apresenta Dido fortemente
haveremos de comentar mais detalhadamente, Dido será impressionada com as virtudes e vicissitudes do herói troiano, que
comparada a
uma corça caçada por um pastor, ferida de morte por uma narrara suas penas e errores por terra e mar nos livros II e III; a um
I
seta, numa
inversão temática que salienta a quedasofrida pela personagem, dado momento, exclama a rainha:
sua de-
gradação de ser ativo a passivo, de caçadora
au funcio-
"."çr, "*"*pú
nalidade semântica do símile nessa epopéia requiniada, alexandrinizante.
quae bella exhausta canebat! (IV, v. 14)

Para o leitor de Apolônio, contudo, esse jogo intratextual


reproduz, com "Que guerras, suportadas até o frm, ele cantaval"
toques originais, um dado intertextual; de fato, nas Argonáuticas,Medêia,
um dos "modelos" da complexa Dido, é primeiramente comparada
a
Á,rt".i, caçadora, diante dË cujo carro as ã;;:;.ã;, E digno de nota que esses símiles aplicados a Medéia comparecem nos livros III e IV; na
Eneída, os "equivalentes" surgem nos livros I e IV; ora, se rivermos em mente que os
livros II e III trazem a narrativa de Enéias, quebrando a ordem cronológica dos aconte-
irpQt ôè 0frpeç cimentos, poderemos dizer que, abstraindo-se desse "interlúdio", o poeta segue o exemplo
ruu(q0pQ ocrívouory ònotpopêouteç ioOoou (A rg. ill,v. gB4) de Apolônio: um símile em cada livro, em sucessão que vai dos aspectos positivos da
situação do personagem (Dido em seu papel de rainha e fundadora de uma comunida-
tle) aos ncgativos (a mulher devastada por uma paixão que a arruína); a distância,
com ru gidos balançam . .r"ortli'.l"íï Ílïo,ro*.n,,. lxrr(.rn, clcsafia a atenção do leitor mais experimentado, que deve associar as duas ima-
gens scpirtirclus por ccrìtenâs de versos para saborear-lhes o confronto.

- t04
Paulo Sérgio de Vasconcellos Efeitos intertextuais na
^Erer'da de Virgílio

O uso de canerecausa espécie e leva a discussões entre filólogos tido religioso: trata-se de maldiçao que se deseja agourenta para os
e comentadores da obra, afinal por que Dido se refere à narração feita inimigos.a? Assim, além de empregar o verbo no sentido de "cantar",
por Enéias com um verbo que significa, propriamente, "cantar"? A o poeta utiliza-o amiúde com seu matiz religioso, que poderíamos glo-
resposta que em geral se dá é que o poeta alude ao caráter épico dos sar: "dizer em forma de oráculo, profecia ou invocaçáo de mau agou-
fatos contados pelo troiano,se mas há quem proponha outras explica- rol enunciar palavras sacras e expressas sob efeito da divindade". Eis
ções: referência à "suavidade da voz do herói", segundo Pascal,ao re- os passos em que o verbo comparece com tal significado:
jeitado por Buscaroli, 41 mas parcialmente aceito por Paratore;az o verbo
teria o sentido de falar non simplicÌter, non uulgaria, mas magna;43 II,I24 (canebanf ,176 (canij,239 (cantlrn canro religioso -sacr);
etc. Nada se encontra no comentário de Sérvio a respeito do emprego III, 155 (cani), lB3 (canebaò,366 (canit),373 (caniò,438 (cane),
de canerenesse passo da epopéia. Para o Thesaurus Linguae Latinae, 444 (caniò, 457 (canaò, 559 (canebar);V, 574 (cecínerunfl;Yl, 76
apoiado em Quintiliano,44 [em-se exemplo do verbo com o sentido de (canas), 99 (cani), 345 (canebad; VII, 79 (canebanfl , 271 (canunf, ,
"dicere memorare narrare ferrd';45 é óbvio, porém, que esse tipo de 398 (canit, o sujeito é Amara, que simula estar possuída por Baco);
descrição semântica, comum em dicionários, não leva em conta as VIII, 49 (cano) ,340 (ceciniò ,499 (canens) , 534 (cecinifi,656 (canebat
nuanças de que o termo se reveste e que o distinguem do prosaico e - no escudo de Enéias, representa-se o ganso que revelou aos Romanos
banal dícere. a chegada funesta dos gauleses)a8;IX, 62I (canentem);Xl,399 (cane);

Como observa Conington, o verbo é também empregado com XII, 28 (canebanfl,864 (canit o canro funesro da Dira).ae
freqüência quando se trata de "sacred utterance"46; de fato, com tal
conotação é muito empregado por Virgílio na Eneida. Por outro lado, Evidentemente, não é esse sentido religioso que transparece no
aparece em IX, 621 com o objeto direto dira, comentando discurso verbo canere no contexto do livro IV que estamos analisando, Tem-
direto que reporta a violenta e arrogante imprecação de Numano se de buscar outra explicação, se náo nos contentamos em ver nele
Rêmulo contra os [roianos - aqui, portanto, também se avista o sen- um sinônimo de dicere.
Nossa proposta é radicalmente diversa, fundada na sutileza da arte
É a leitura mais óbvia, aparentemente: Enéias celebra suas proezas bélicas como o virgiliana, que se compraz em disfarçar alusões intertextuais, explícitas
'n
próprio poeta canta anna uírumque. apenas ao leitor atento a essa característica de seu fazer poético. Sem
a0 Citado por Paratore, em seu comentário ao livro IV, no volume II de sua ediçao da
descartar a possibilidade de que o poeta tenha desejado, ambiguamente,
Eneida,p. 185, e por BUSCAROLI, Corco. Il Libro di Didone. Milano, Dante Alighieri,
a interpretação de tal verbo, em leitura de superfície, no sentido de "cele-
1932, p. 54.
ar Para quem o sentido é o de narrar com o tom da epopéia.
az Paratore aventa a hipótese de que convirjam os dois sentidos: a feiçao épica dos fatos a7 ldem, ibidem, vol. III, p. 216, nota ao verso lX,621.
narrados e a suavidade da voz: "Talvez seja exata uma interpretação que leve em conta a' Sérvio aponta a matiz do verbo no contexto: quasi praediuinabat: nam 'caneÍe' et
ambos os sentidos", diz. dicere et diuinare sÍgtiâcat (como que pressagiava, pois canere signiffca tanto 'dizer'
ar Forbiger (1873), tomo II, p.427-478, retomando Wagner. cìuanto'pressagiar"', op. cit., vol. II, p. 295).
aa htst. Or.YlIl,6,38. a'' Notável a freqiiência, como se vê: a Eneída é um poema religioso; quanto à presença
45 Thesaurus Linguae Latinae. Lipsiae, Teubner, MDCCCCVI-MDCCCCXII, v. ill, rnaior no canto III, basta lembrar a temática do livro para entender-lhe a motivação:
p.267,8. viìg1ìlÌì p()r lniìrcs e terrâs os troianos, buscando em profecias e oráculos o esclarecimen-
46 Op. cit., vol. II, p. 218, nota ao verso III, 438. to rlu volrtutlc tlivinl sobre o clestin<l de sua peregrinação.

-- l(Ír-" 107 ^
Paulo Sérgio de Vasconcellos Iilt'itrrs irrtcltextu',ris ntt li tttti iltt tlc Vir'1iílio

"'l'oclos os acontecimentos tristíssirnos a quc assisti


brava como numa epopéia",5o trazemos à baila interpretação mais digna
c nos cluais tomei parre ativa".
do complexo jogo alusivo de Virgílio. Ao leitor "atento", a alusão é clara:
a narativa dos últimos dias de Tróia5r, feita por Enéias no livro II, tem Enéias, pois, canta suas façanhas e penas como um aedo, como
por modelo estrutural o canto do aedo Demódoco sobre o episódio do l)crnódoco, à maneira de Odisseu,53 a quem Alcínoo cumprimentará
cavalo, na Odisséia,52 e o efeito de estranhamento certamente provocado tlcsta forma:
pelo verbo canere, de que são testemunho eloqüente as discussões dos
estudiosos..., funciona como advertência, um "sinal", lançado a quem, pô0ov ô cbç bt'âorõòç bnro'tcrpêua:ç rotél"e(oç (Oí.XI,
em leitura que vai além da supeúcie, participa ativamente do jogo inter- v.368)

textual da epopéia, um convite a remontar à "fonte", a ir além da leitura "Contaste tua história com arte, como um aedo",
linear, enriquecendo o texto com as observações que cada leitor pode
extrair do confronto. Por exemplo: a diferença essencial entre modelo e Ressaltemos a singularidade do uso de canere no contexto que
imitação, que está, a nosso ver, mais que na extensão e contexto, mais estamos discutindo, analisando todos os demais passos em que o ver-
que na "complementação" de Homero, no modo como se narra aquele bo aparece com outro matiz que não o religioso, já por nós pesquisado:
episódio da guerra de Tróia (em primeira pessoa, como depoimento pes-
soal cheio de emoção participante, náo em terceira, como em Homero). I,742 (canit- trata-se da canção do aedo Iopas);
Curiosamente, elogiando o aedo, Odisseu lhe diz que ele canta como se IV, 190 (canebat - a Fama reporta verdades e inverdade s, facta atque
estivesse estado presente aos acontecimentos: o (Od.YIil, v. 491) ou se infeuò;
tivesse ouvido a história de alguém. Enéias, por sua vez, grande novidade V, 113 (canit - a respeito do som da tuba);
na lliupersisvirgiliana, dará sua versão pessoal, com o ponlo de vista dos VI, 657 (canentis - os habitantes dos Campos Elísios entoam o peã) ;
vencidos e o foco narrativo centrado em sua pessoa, pois, ao contrário de
VII,513 (canit - Alecto dá o sinal para a guerra, tocando a tuba
Demódoco, o herói troiano estava presente... Antes da narração propria-
recurva) ,698 (canebanr- os aliados de Messapo cantam me-
mente dita, o poeta salienta esse aspeclo, colocando na boca de Enéias
lodiosamente, como cisnes, a seu rei);
estas palavras:
IX,575 (canenti - na invocação do poeta à musa Calíope),777
quaeque ipse miserrima uidi
(canebat - o aedo Creteu, "amado das musas", "sempre can-
et quorum pars magna fui. (II, v. 5-6)
5r Em Homero, encontramos outro paralelo na l4íada; os integrantes da embaixada dos
aqueus enviada a Aquiles, encontram-no cantando as glórias dos heróis: &'erôe
50
Expressão de LEJAY-PLESSIS. Oeuvres de Vírgile. Paris, Hachette, 1930, p. 393. ô' &pcr rì,êo d,uõpôu (Ilíada,lX, v. 189); o grego canta temas dos aedos, como os
5t
Pois Dido menciona guerras (bella); estâ em foco aqui a destruição de Tróia, que per- aedos. Observemos que o verbo não só é o mesmo empregado na proposição homérica
mitiu a Enéias, em sua inútil resistência, alguns feitos bélicos, e não a narrativa subse- para referir o canto que a Ìr4usa cantará por seu intermédio, mas, curiosamente, com-
qüente, no livro lll, dos laborespor terra e mar, em que não há propriamente guerras e parece com a mesnìa forma, apesar da diferença de sentido gramatical: imperfeito cl<r
que tem outro ponto de partida: a narrativa de Odisseu aos êácios, esta, sim, em indicativo no passo em que é aplicado a Aquiles, imperativo presente na invocaçÍo.
primeira pessoa. Coincidência, apenas, ou intenção de aproximar protagonista e aedo? Seja como ftrr,
VIII, v. 499-520. Ver KNAUER, Georg. Die Aeneis und Honter. Gottingen, semelhantemente, na Eneídao mesmo verbo é aplicado ao "cantar" de Virgílio (tr.zrr)
Varrdcr"rhoeck & Rr,rprecht, 1964,p. 172. e ao "narrar" de seu protagonista (canebafl.

_109_
- I0Íì -
Paulo Sérgio de Vasconcellos [feitos intertextuais /zeila
na de Vir.gílio

tava os cavalos e as armas e as batalhas dos heróis": semper imagem de Iftima, sua irmã, palavras de consolação destinadas u
equos atque arma uirumque pugnasque canebafi; assegurá-la do bem-estar de Telêmaco.56 A aparição lhe fora mancla-
X, 191 el97(canite canentem, respectivamente; em ambos os ca- da por Palas Atena:
sos, trata-se do canto de Cycnus),310 (canunr- do som
das tubas que dão o sinal para a luta). ôúvotcrr y&,p,
IIcrì,}"àç A0quoi1. oè ô' bôupo1t"Évrp bÀeaiper..
tl viv pe npoé1re teiu t&ôe puOfloao0at (Od.ty,v.BZ7-829)
Como se vê, com exceção da segunda recorrência (IV, v. 190),
imitada por Estácio ,s+ faz-se referência a canto real, acompanhado ou
não de instrumento, ao som da tuba ou ao canto particular do aedo: Palas Atena. Ela se compadece de ti, ,"tï:ruff*t
usos comuns na lireratura latina. Deixamos de lado, para o destacar, o foi ela quem agora me enviou a ti para dizer isto".
célebre arma uirumque cano, que abre o proêmio da epopéia; por outro
Ora, tal revelação da divindade que enviou a aparição é imita-
lado, o verso IX, 777, cítado integralmente mais acima, também mere-
da por Virgílio:
ce atenção - Creteu, como o próprio Virgílio, canta as façanhas bélicas
à maneira do aedo homérico.55 Acrescentemos: como Enéias, outro (se-
Haec adeo tibi me, placida cum nocte iaceres,
melhante e diverso) Demódoco. Aplicando ao protagonista o verbo ipsa palam fari omnipotens Sarurnia iussit. (VII, v. 427 -428)
com sentido que pode parecer "destoante" se não associarmos Enéias a
um aedo, Virgílio nos transporta para sua fonte e convida ao confronto: "Foi isro que a ri, quando estivesses deitado na plácida noite,
um aceno sutil, que é preciso compreender no conjunto de uma obra mandou-me dizer abertamente a própria Satúrnia onipotente em
pessoa".
constantemente alusiva, ao invés de tecer hipóteses sobre conotações
especiais do verbo nesse contexto especíÍìco.
Não nos parece casual que, neste exato momento da narrativa,
Outro exemplo de citação sub-reptícia vem analisado a seguir. compareça o advérbio palam, que, para quem tem em mente o origi-
Para cumprir o encargo que lhe dera Juno de semear a discórdia e
nal sobre o qual se baseia Virgílio, evoca sonoramente o nome pallas,
criar as condições para a guerra entre troianos e latinos, Alecto, empregado por Homero no texto de partida! como dissemos, trata-se
disfarçada em Cálibe, sacerdotisa do templo da deusa, aparece em
de mais um caso de alusáo slrtil, um piscar de olhos cúmplice ao leitor
sonho a Turno, tentando incitá-lo a combater os recém-chegados ao
ciente desse diálogo ininterrupto com o fexto homérico e outros tex-
Lácio. Turno resistirá à aparição; segundo já notara Heinze, Virgílio
tos da literatura greco-latina.5?
evoca, uma passagem homérica: o sonho de Penélope, que recebe da

HEINZE, Richard. Wrgíls Epische Technik. Srurrgart, Teubner, 1957, p.lBB. Como
Facra íníecra loqui (Tebaida III, v. 430), apudCONINGTON. Op. cit., volume I, se sabe, dentre os estudos de conjunto sobre a Eneída, este é um dos melhores, senão o
p. 270. Parece-nos que, aplicado a esse ser monstruoso, o verbo expressa sua divindadc melhor, apesar de ultrapassado em alguns pontos - segue sendo modelar, malgrado o
(de fato,Virgílio a representa como fflha da Terra, IV, v. 178); nesse caso, de novo passar do tempo. Sinal evidente de sua importância: recentemente, foi raduzido para
"sacred utterance". o inglês, demonstrando que suas análises continuam a despertar interesse.
Conington percebera a possibilidade dessa relação, num comentário demasiado brevc, 57
Curnpre observar, seln nos detennos na análise, que o episódio da aparição de Alecto a
que merecia desenvolvimento: "Virg. may have been identifying the narrativc of Acnels -I'umo
sc apóia em outras retolnadas de Homero, mais um exemplo da complexiclirrlc
with his own heroics" (Op. cit., volume II, p. 250, nora ao verso l4). tllt tí'ctticlt lÌtrsiva virgiliana. Evoca o poetáì, sobretudo, a cena iliádica clo s6nhr> clvirr-

-lll-
tL: Virgílio
lÌf('ik)s ilÌt('rtcxttl .tis rt"t littr'itht
l'irukr Silr'1',kr tlc Vlrsconccllos

de Odorico Mendcs:
2. Un cASo sTNGULAR DE coNTAMtNATtoi o pRoÊMto DA ENETDA Virlc ir pclìr transcrever a traduçáo

Troia'
"Artuas canto c o varáo que' exul
de
Após o título - eü€, como veremos no item seguinte, inaugrrt'l Itritneiro,;s fados profugo aportaram
e em teÍra
o jogo alusivo da Eneida, a proposição do poema prossegue e aprofuntlr Na Hcsperica Lavino' Em mar
violenta máo suprema'
o pacto de intertextualidade com o leitor;s8 convém examiná-la, por Muito o encontrou
E o lembrado rancor da seva Juno;
apresentar svtíI contaminatÌo, o que permitirá, de passagem, criticat quando
Muito em gueÚas soffreu' na Ausonia
afirmações recentes sobre esses versos.
-ó."a." .úud" t lhe introduz
os deuses:
f""a"
Latina e padres
Albanos
A proposição segue de perto a da Odísséia, como é amplamentc a nação
E o, *urorl"tn du sublimada Roma"'
reconhecido; mas não esquece a evocaçáo da llíada e incorpora um
traço do terceiro maior modelo da Eneida, as Argonáurl'cas. Em Virgílio: propriamente dita - a síntese
A esses sete versos da proposição
poetas poste-
arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris tla intriga, o aÍgumentum - sucede a invocaçáo à Musa; como o
enffe aÍgumento e invocação'
Italiam fato profugus Lauiniaque uenit riores imitarão essa separação interes-
o trecho' que também irá nos
litora, multum ille et terris iactatus et alto lìosso Camóes. Ttut"t"uulos
ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram,
sar aqui:
multa quoque et bello passus, dum conderet urbem
inferretque deos l,atio, genus unde Latinum quo numine laeso
Albanique patres atque altae moenia Romae. (1, v. l-7) Musa, mihi causas memora'
quidue dolens regina deum tot uoluere casus
tot adire Ìabores
insignem pietate uirum'
do por Zeus a Agamenão (ll, v. 16-34), incitando-o a armar o exército para combater irae? (v' B-11)
impulerit. Tu"t"*" animis caelestibus
os troianos: era chegada a hora de tomar a cidadela de Príamo. Ora, Agamenáo é
enganado por Zeus, que deseja trazer desgraça para os aqueus para honrar o ausente por que ofensa a sua vontade
divina
"Musa, lembra-me as causas:
Aquiles, e é chamado "tolo" (o, v. 38) pelo próprio narrador. A evocação sugere parâ-
com qu" ,t á t"iú" dos deuses' " o"""lX;:,'ÀT;::
ou
lelos intertextuais: se Zeus faz Agamenão acreditar em uma falsidade - aÍinal Tróia não "t*-"ii"ao'
cairia ainda - iludindo-o sobre os decretos divinos, Tumo, sob a iníluência concreta de obrigou uT,yu'áo insigne por sua piedade:
a enfrentar tantas penas'
Alecto - que lhe lança uma tocha sobre o peito - acreditará numa quimera ao pensar
Tamanhas iras nos espíriros celestesÍ
que pode impedir a união de Enéias e Lavínia. Sobre esse confronto, veja-se KNAUER
Die Aeneis und Homer, p.236-737, a quem seguimos de perto nas observações desta
nota. oieitordeVirgílioimediatamenterecordaliaosVersosfamosos
58 Damos por rejeitada em definitivo a hipótese de que as linhas (conservadas por Sérvio que inffoduzem a Odisséia:
e por uma das Wtae) que constituiriam inicialmente o incipítda epopéia, seriam, se
virgilianas de fato, mantidas pelo poeta em sua edição, caso tivesse ele vivido para p9ü fio)'}"à'
Auõpa pot bvvelts, Moôocr' fiol"('npofiov'-ôç
revisar e publicar o poema. De nossa parte, somos avessos até mesmo a admitir a auten- bnepoe'
nioii,xen, èneï Tpoiqç't:pbu" nrcl'ïeepov
ticidade desses versos, que, porém, Perret e Odorico Mendes incorporaram a suas edi- iaó' &oteg' KcÍ'ì vÓov blvco'
nol.Lôu õ'Òtóptí;;'
ór}'Yeo ôv Kcrr&'e!!rôv'
ftoxì.u, õ'b;'"ã;;;tp n"ot'
ções da EneÌda. Boa sÍntese das discussões travadas a respeito pode-se ler no comentá-
rio de Paratore, volume I, p. 123- 125. Recentemente, Horsfall expressou a recusa taxativa vôoÍou èrcripcov'
da autoria virgiliana desses versos: "Nunca foram escritos por VirgíIio..." (HORSFALL, A.órOrttroç t1' te ty'1t1v Kcx'ì'
nep'
Nicholas. A Companíon ro rhe SrudyoíWrgíl.Leiden, E. J. Brill, 1995,p.24). ;[x ãJb;ôi ete'pò'ã bppúocx'to"têçreuóç

_Ã3-
-ttz-
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Efeitos intertextu ais na Eneida de Yirgílto

crúrôy ycxp oQetêp1otu bccaoOoÀilorv ôl,outo,


vÍ1ntot, oï rcrtà, Bo0ç 'Ynepiouoç'HeÀtolo
uma cidade. Virgílio, pois, utiliza-se do paralelismo para realçar a di-
fio0tou'crutap b toÌoru ixQeiÀero uóotrpou flpop ferença que separa seu herói do grego: Enéias é um fundador, não um
tôu crpó0ev ye, Oecx, Oúyotep Âr.ôç, einè roï',[$ìu. (v. l-10) destruidor; sua viagem, comandada pelo destino, tem objetivo nobre
- mais que um simples retorno para casa (mas é preciso fazer uma
Na tradução de Odorico Mendes: ressalva, como veremos posteriormente: os troianos, no fundo,
retornarão às suas origens), trata-se de, por ordem providencial (fato),
"Canta, ó Musa, o varão quc astucioso,
Rasa Ílion sanra, errou de ilima em clima lançar as sementes da futura Roma. (Note-se a posição de relevo que
Viu de muitas nações costurnes vários. o nome da Wbs ocupa, enfechando a proposição e apresentando-se
Miltranses padeceu no equóreo ponto, como fim último do vagar penoso e dos labores bélicos do protagonis-
Por segurar a vida e aos seus a volta;
ta.) Efeito de contraste provocado pela referência ao hipotexto: acos-
Baldo aÍã! Pereceram, tendo, insanos,
Ao claro Hiperiônio os bois comido, tumar-nos-emos a essa característica estrutural da Eneida.
Que náo quis para a pátria alumiá-los. Quanto à composiçáo, é notável como Virgílio organiza mais
Tudo, ó prole Dial, me aponta e lembra".
sistematicamente a sua síntese do argumento, provavelmente levan-
Observemos de passagem que a tradução, enxuta e elegante, do em conta críticas que os Antigos já teciam a respeito do proêmio
com a costumeira riqueza vocabular de odorico, não mantém, contu- de Homero. O poeta latino tem em vista as duas grandes partes de sua
do, a expressiva anáfora que Virgílio imitará. epopéia, já desde as primeiras palavras:
São evidentes os pontos de contacto entre as duas proposições.
arma uirumque cano
Por vezes, virgílio parece traduzir o original ou, ao menos, criar um
análogo de seu andamento sintático:
Aqui, é preciso abrir parênteses (voltaremos ao tema no primeiro
item do capítulo seguinte) para discutir a sugestáo de Lausberg, endos-
buôpa - uírum(no mesmo caso)
óç - qut (idem) sada por Caims, de que, centrando-se na OdÍsséÍa como modelo privi-
noÀÀü, legiado de toda a Eneida,Virgílio emprega arma emposiçáo inicial para
noÀÀôu - nultunt...ttta^úa (imitação do polissíndeto) evocar sonoramente o que introduz o poema grego.5eA hipótese parece,
ftol"Àà
em princípio, sedutora, especialmente porque justificaria o emprego dessa
Óç pôô"cr lroì,Àc{, ln}uotyy?r1- multLtmille... iactatus
expressão singular, que tem dado azo a discussão desde Sérvio; este
"ev nôvrq - atto explica arma como metonímia para "combates" e vê no substantivo
txpuópevoç - dum (mais subjuntivo, com idéia de finalidade) uma referência à parte iliádica da Eneida, no que é geralmente seguido
ô'... raï - quoque et pelos estudiosos da epopéia. A divisao do assunto ficaria clara, pois,
El o$ - undc'.
desde o início; ter-se-ia, porém, uma frgura, a inversão, pois:
A
semelhança de expressão nos leva a ressaltar difere'ças dc
sentido; por exemplo: odisseu iniciou seus errores "depois dc rcr clcs- 5e CAIRNS, Francis. Wrgtlb Augustan Epic. Cambridge, Cambridgc Univcrsity lìrcss,
truído a fortaleza sagrada de Tróia"; Enéias sai de Tn'ri:r pulr íirptl:rr 1990, p.l9l.

- il.i ils
Paulo Sérgio de Vasconcellos Efeitos irÍertextuais na.ürelda de Virgílio

prius de erroribus Aeneae dicit, post de belloe Arma,portanto, refere-se aos combates de Enéias, à parte guer-
reira de suas façanhas, contada nos livros VII-XII,ó2 e náo pode servir
"Primeiro fala dos eÌrores de Enéias; depois, da guerra"'
de argumento para referendar a hipótese de que a EneÍda seria uma
Odisséia com momentos de llíada, o que desde o início se evidencia-
Não se pode esquecer que Virgílio por várias vezes aproxima do
ria com a evocação dos sons de na abertura do poema latino - tal
substantivo arma o substantivo urr, este último em casos diversos; eis
interpretação recente tende a minimizar a clara natureza bipartida da
as referências:
estrutura da Eneída, tema a que haveremos de voltar no próximo ca-
pítulo desta disserração.
I, 119; II, 668; lY, 495;VI, 814; IX, 620, 777 ;XI, 174, 125 (armis),
Virgílio organiza sua proposição tendo sempre em vista a divi-
696,747.
são da epopéia em duas grandes partes:

O emprego da expressáo em IX, 777 , verso que já comentamos arma (parte iliádica) uirumque (parte odissíaca: evocação, pelo
brevemente, é revelador; fala-se de Creteu, que sentido e caso gramatical, da primeira palavra da Odisséia) cano

semper equos atque arma uirum pugnasque canebat


- introdução geral, que engloba todo o poema (note-se a relativa au-
tonomia rítmica e sintática da expressão, com pausa após o verbo -
Wrumé, aqui, genitivo plural, o que faz pensar na possibilida- não é sem motivo que tal seqüência, táo eficaz e memorável, tornou-
de, por alguns aventada, como informa Sérvio, de que no arma se identificadora da epopéia, tan[o quanto o próprio título, nos escri-
uirumqueinicial se tenha hendíadis - "as armas do varão": as consi- tores antigos que a ela se referem);
derações sobre a estrutura da obra nos fazem rejeitar, porém, tal hi-
pótese;ól para nós, trata-se de expressão bimembre que sintetiza o ar- toiae qui primus ab oris
gumento da epopéia. O contexto, que também ffaz o verbo canere, Italiam fato profugus Lauiniaque uenit
revela que a expre ssáo arma, seguida de uir, complemento do verbo, é litora, multum ille et terris iactatus et alto
Virgílio a um contexto guerreiro, iliádico. ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram
associada por

& Sérvio, edição THILO, volume I, p. 6. Esse "quiasmo" estrutural já se reflete na própria
- síntese dos erroresde Enéias: viagem de Tróia à ltália, deter-
proposição: arma conúapóe-se a ntultutn ille et terris iactatus et alto (parte odissíaca), minada pelo destino, enfrentando a ira de Juno;
seguido de multa quoque et bello passus (parte iliádica: atma). Yer TRAINA. "Tre
Versioni del Proemio dell'En eidê'ln Poeti Latini (e neolatíni). Note e Saggi Filologici. rnr.rlta quoque et bello passus, dum conderet urbem
Bologna, Pàtron, 1989, Iil serie, p. 118. inícrrctquc deos Latio, genus unde Latinum
6r Também o princípio de Aç Lusíadasé com íreqüência interpretado corÌìo hcnclíaclis, Albaniquc patres atque altae moenia Romae.
aré mesmo por estudiosos do gabarito de José Maria Rodrigues (ver FRANCA, I(trbcrrr.
As Annas & Os Barõcs. Rccife, Unicap,1973, p. l2; o atrtor declica se tr clìsrìi() lì cssc
tenìa, Íìvclìtanclo, com notável clìuteliì, n hipótese cle cluc uixr Itljir tlrl íìgttllt ttesst'
t'l Vejrr-sc o irrrtincio th Encíth enr Pnpércio II,34, especialmente o verso 63, enì cìue
c('lebrc início tll cpopóirt porttrgtrcsl). :tnttt ( Virgílio.
tt rÌrt.slÌriì rÌÌcl()r'rírrril tltrc crììl)rcgiì
Paulo Sérgio de Vasconcellos Efeitos intertextuais na &rel'rla de Virgílio

- síntese das batalhas de Enéias no Lácio, com a indicação de sua maior, incitando-o a participar da leitura intertextual que será cons-
finalidade (edificação de uma cidade e introdução dos deuses troianos) tante ao longo da Eneida; sua epopéia conterá uma Odisséia e :uma
e conseqüências (surgimenlo futuro de Roma, Ieitmotiv ecoado em Ilíada a confrontar com as originais e depreender do confronto vasta
profecias e nas falas dos deuses). gama de significações. Logo à frente, veremos um elemento rítmico
da l/íada que o poeta latino reaproveita em seu proêmio, prova formal
Temos, pois, a separação nítida entre as duas partes: multum suplementar do que vimos afirmando.
Ílle...multa quoque. Observemos, contudo, que no poeta grego a invocação é fundi-
Mas se a retomada do proêmio da Odisséia é patente em nível da à proposição (dirigida à Moüoc{,, na Odisséia; à 0ed,, na l\íada);
formal, que temos da llíada, além da menção de guerras? Virgílio não Homero solicita que a divindade cante através de sua poesia o canto
terá incorporado nenhum traço formal do poema bélico de Homero? que será o poema; ora, Virgílio usa o verbo cârq assumindo-se como
A resposta só pode ser: o poeta alude textualmente à llíada, fonte primeira de seus versos * invocará a Musa apenas para que ele the
mas de forma mais sutil. Notemos, inicialmente, que a condensada recorde, filha da Memória que é...,óó as causas da hostilidade de Juno.
proposição da Eneida tem o mesmo número de versos, sete, do Nesse ponto, Virgílio se aproxima de Apolônio de Rodes, que,
proêmio da l/íada,63 não do da Odisséía, que se estende de maneira porém, não invoca a Musa, em suas Argonáuticas, mas Apolo; será sob
mais difusa; a ela se segue, como na llíada, a evocaçáo do motivo: a a inspiração desse deus que há de recordar a saga dos heróis da nau
cólera de Juno, como, no poema grego, a rixa entre Agamenão e Argo:
Aquiles:
CAIRNS, F . Wrgil's Augustan Epíc, p. 202. De fato, a Eneida também narra a história
Musa, mihi causas memora, quo numine laeso (1, v, B) da ira de Juno, cujo furor contaminará Dido (aqui, com a ajuda de Vênus, natural, pois
que o meio de que se servirá Juno é a paixão amorosa) e Turno (com o auxílio de
rtç r' ú"p oQcoe Oeôu bptôr [uueqre pô1eoOcru (I, v. B) Alecto, já que se trata de inocular no jovem rútulo o amor a uma guerra celerada,
verdadeiro conflito civil). Apoiando-se nas paixões humanas, que beiram a loucura,
"Que deus, posto entre ambos, provocou a rixa?"@ Juno age, portanto, semeando o sentimento rnaior quc a move em sua nerseguição aos
troianos; só no final da Eneida, veremos a esposa de Júpiter renunciar aos seus ódios,
Por outro lado, não cremos ser inverossímil que o memorem acatando o desejo de Júpiter e, Íìnalmente, pela primeira vez, demonstrando o sent!
mento que detestava ver nos seus himigos: alegria (laetata, v. 841;notemos que no
iram da proposição da Eneida esteja a evocar sonoramente a célebre
livro I e no VII, a ação nefasta da deusa se desencadeia ao ver os troianos laet). Como
ira de Aquiles, sobretudo pelo som inicial do adjetivo aplicado a iram.65 a Ilíada termina com o fim da terrível cólera de Aquiles (contra Agamenão e, depois,
Virgílio, pois, nos temas como na forma com que os enuncia, contra o cadáver de seu inimigo Heitor), a Eneida concluirá com a deusa reprimindo
stra fúria (pelo menos até às guerras púnicas); no livro XII, Júpiter a exorta: Verun age
recorda ao leitor as duas grandes obras que constituirão sua fonte
et inceptun írttstra summire rttrorern ("Mas, vamosl, submete um furor em vão desen-
cadeadol", v.832).
Mas é interessante relevar que nemoraresignifica, ao mesmo tempo, "lernbrar"e "refe-
6J
Dentre outros, observou-o QUINN, Kenneth. Wrgilb Aeneid. A Critical Descriprìrut. rir", como o grego; ressaltou-o Benveniste (apudDETIENNE, Marcel. Os Mestrcs da
London and Henley, Routledge & Kegan Paul, 1978, p. 41. Vcnladc na Crc<cia Anríga. Rio deJaneiro, Zahar, s.d., capítulo II, nota 3, p. 79). Nl
Na tradtrção enxuta de Haroldo de Campos: CAMPOS, Haroldo & VIEIRA, Trrjnn, '. prírpril c1-ropóia, o verl-n apirrcce ernpregado com outro sentido que o dc "lcrnbrar"(VIII,
MI'INII. A lt'u tlc At1uí4es. Sáo Paulo, Nova Alexandria, 1994, p. 3 I . v.79).
Paulo Sérgio de Vasconceüos Efcitos intcrtcxtuais na Eneida de\irgfuo

Ap1ópeuoç oêo OóìBe Tcd.Lolyevêov KÀêcx Qcotôu as línguasdo tronco (em sânscrito, por exemplo, temos óa); metrica-
pvfloopat (1, v. l-2) mente, as duas expressÕes têm a mesma quantidade (Apeiôqç te -
"Sob tua guia, Febo, as façanhas dos antigos heróis
Albanique) - coincidência não fortuita, [anto mais que os Antigos ti-
recordarei..." nham ouvidos sensíveis a rais seqüências fônicas.
'!7eber
aprofunda a análise, apontando mais semelhanças métricas:
Seguindo mais de perto a OdÍsséia em seu proêmio, Virgílio in-
corpora também não apenas traços da Ilíada como das Argonáuticas l\tpeiõ1ç te &ucr( - Albanique patres
hábil fusão de seus três principais modelos.
Um artigo de Clifford'!7eber67 traz mais revelações a respeito Também a palavra inicial do segundo verso da Eneida, Italiam
(seguida de palavra iniciada por consoante), tem as mesmas quanti-
da sutileza dessa arte alusiva. O estudioso ressalta pontos formais de
contacto entre a proposição virgiliana e a iliádica; alguns já haviam dades da palavra que ocupa tal posição no proêmio da llíada:
sido observados antes: obl,opêur1. Para o leitor antigo, sensibilíssimo aos ritmos e efeitos
sonoros, e nutrido de Homero, como já dissemos, não deveria passar
bE oô ôì - unde... despercebida a aproximação; observe-se, de passagem, que a existên-
Atpetôqç te............ A1tl,Àeóç - Albanique...........Romae. cia dessas regularidades traz novo argumento para rejeitar a autenti-
cidade dos versos que precedem arma uirumque, pois, se os aceitásse-
Como se vê, o último verso dos dois proêmios apresenta nome mos, não mais ocuparia a mesma posição no proêmio a correspondência
próprio no início e no fim; em ambos, palavra de fundamental impor- métrica apontada en[re o início do segundo e do sétimo verso da llfada
tância recebem destaque: Aquiles e Roma, que encerram o verso.ó8 e o segundo e o sétimo da Eneìda!
Quanto às palavras iniciais, tt, como se sabe, equivale totalmente ao - Mas'!7eber aponta uma coincidência especial e digna de aten-
quelatino; trata-se da mesma enclítica indo-européia tão difundida entre
ção, que reservamos para o final desta análise da proposição virgiliana.
As primeiras três palavras do poema contêm uma "anomalia" métrica
6i "Metrical 1mr'rarlo in the Pro em of the Aeneid' ln: Harvard Sndies in Classical Philology,
significativa. Os poetas evitavam usar no início do hexâmetro (e mes-
vol.9l, 1987, p. 26l-271.
n No caso da Eneida, Virgílio realça o último substantivo do verso fazendo-o vir num mo do pentâmetro) esta seqüência:
sintagma que é o mais longo dos três coordenados, ísto é: genus Larrnum (cinco síla-
bas), Albanique patres (seis), altae moenia Rornae (sete). "A primeira frase de Virgílio
termina com o enfático Romae - o clímax de uma tríade ascendente...tendo cada (primeira palavra) (segunda) (terceira)
membro uma sílaba a mais que o precedente", nas palavras de QUINN. Op. cit., p. 4l.
Que a "Aquiles"corresponda "Roma", no proêmio virgiliano, é significativo: mais que Ou seja, evitava-se, numa seqüência inicial de três palavras,
um herói em particular, mais que Enéias, cujo nome aparecerá pela primeira vez só no
verso 92, o poema tem em vista a perspectiva de uma cidade que representa um mode- rrrnir série constituída de troqueu, anfíbraco e iambo, empregada
lo de civilização; o troiano é, por certo, seu herói arquetípico, mas a obra não se centra ('()rÌlrunentc na segunda parte dos pentâmetros - segundo'Weber, esse
na mera narrativa das aventuras de um varão, Enéias, ao contrário de Aquiles tnr st'rilt uttt cxcmplo da "aversão geral dos poetas antigos em escrever
Ulisses, carrega sobre os ombros o peso de um futuro que faz de sua gesta um paradignìlì
cuja transcendência a trama nunca perde de vista. Assim, seus amores c()lrÌ Diclo tcriur nurìì rìlctro sugcrindo outro".óe Ora, é exatamente esse o esquema do
conro cfeito :ì Íluerra contra Cartago; suas lutas no Lácio serão o protóti1xr rlas gucrrls
civis: crn sÌlrììrì, sr.lrì "cstriria", na perspectiva clo lcitrlr, sc tornrì hist(rril. '" WI:lllrl{. ( )p. cit., p. 262.

I
Paulo Sérgio de Vasconcellos
Efeitos intertextutis na, Eneida de Virgílio

início da EneÍda, anômalo também no senrido de que o próprio Virgílio lações intertextuais, que, de resto, acabam por trazer argumento
procura evitar ao máximo tal seqüência. Esse dado é tanto mais signi- críti-
co para' por exemplo, rejeitar a incorporação dos versos anteriores
a
ficativo pela importância que os Antigos davam às primeiras palavras arma uirumque canc não faziam parte da proposição da Eneida;
as-
das obras, que podiam funcionar como identificadoras de todo o con- sim, a intertextualidade secunda os esforços da filologia para resolver
junto, o que se deu com a Eneida, e marcadoras do gênero. \ü/eber velhos problemas da crítica virgiliana. por outro ladá, se aceitarmos
mostra que esse esquema é o mesmo...da I4íada: que arma encabeça o poema para evocar fonicamente
o da odisséia -
hipótese a levar em consideração, a nosso ver, desde que não deduza-
Arma uirurnque cano
mos a partir disso a prioridade absoluta desse modelo sobre a llíada
ou
pfruru oerõe Oeo neguemos na expressão bimembre a referência aos dois modelos
homéricos - então, de novo, tem-se argumento para rejeitar os versos
Novamente, reforça-se o que observamos: Virgílio recupera, de que antecedem o célebre início da epopéia, pois que a primeira
para-
forma sutil e habilíssima, ILíada e Odisséia (com toque de Apolônio vra de um poema evoca a primeira do outro.
de Rodes), manifestando ao leitor a filiaçao de sua obra ao eposho- como fez Traina com caro e outros,zr será interessante analisar
mérico (e pós-l-romérico, na tradição homérica).70 Atestam-no as re- brevemente como um tradutor sensível ao andamento sintático
do
original, Odorico Mendes, verteu os sete versos da proposição da
70 Não nos é possível desenvolver a contento, aqui, um tema fascinante: há, nas próprias Eneida; sua tradução foi reproduzida mais acima.
epopéias homéricas, um jogo intertextual comparável com o da Eneida. os proêmios
De início, destaque-se a concisão: nove versos, apenas dois a
da llíada e da Odísséía têm elementos lingüísticos (lexicais, sintáticos) semelhanres,
atribuíveis, sem dúvida, a uma tradição épica, mas é diÍïcil escapar à observação de que
mais que o original - um bom resultado em condensação, se tivermos
o confronto entre eles faz relevar contrastes de sentido bastante significativos. Aponte- em vista a diferença entre as duas línguas, uma sintética, outra analí-
mos os paralelos mais evidentes: tica; basta lembrar, de resto, que a tradução de caro, nada prolixa,tem
- Arnbos se iniciam por uma palavra que deÍine o tema central, no caso acusativcr doze versos.
(pfruru, d,uõncr; compare-se com o virgilian o anta Ltirumque);
- Um adjetivo de quatro sílabas modifica esse substanrivo inicial (oóÀo1tê.vqv, Bastante fiel, odorico recupera elementos importantes do tex-
nol,útporuov); to: a palavra inicial, arma, mantida tal qual, isto é, lorno metonímia,
- O sintagma substantivo/adjetivo é desenvolvido por oração adjetiva (t pupí coordenada a "varão", que, além de lembrar fonicament e uirum,
Alcrroìç... bç pá,Àct noLLu; em Virgílio: Troiae qui primus ab ork); tem
a vantagem de ecoar a célebre imÌtatio camoniana.
- Em ambos os proêmios, presença marcanre de quantificadores (pupí', noÀÀcrç; Entretanto, a ne-
no)t?lq xo),),eov, nol,Àcr) cessidade de acrescentar a relativa a esse substantivo obrigou-o
;
a in-
- Invocação à Musa. serir entre as duas palavras o verbo principal alteração leve, tanro
-
Deixamos para o fim, e destacamos, o paralelo mais interessante, a nosso ver. Nos dois r'ais justificável pela observação da verdadeira proeza que é conser-
proêmios homéricos há referência a sofrimentos. Entretanto, enquanto na I]íat/a sc
menciona um Aquiles que foi o causadorde dores sem conta em seus comçranheiros,
na Odisséia se fala das dores que o próprio protagonista soÉeu. Num caso, a cxprcssr-rr r com mnis atenção que muitos estudiosos ao longo dos séculos? Não
é Ü)uye ê0qre; no outro, no"ïev &l"yecx. comparando-se as duas, nora-sc () corì- teria ele perce6idcr
(ltlc Iìâs cpopéias hornóricas há uma espécie de jogo
traste evidente dos dois processos verbais, distinguindo enfaticamentc a sugrr ckrs alusivo passível de se transËormar
1r-r,- rìurììiì técnictr cornpositiva? Mera especulação, mas faz pensar...
taÍlolìistas. Serii qtre Virgílio, poeta irnpregnado dc Homcro, rìaìo tcríì lirlo o prcclcct'ssi,r /'. ( )1,. cit.,
p. 120-127.
Paulo Sérgio de Vasconccllos Efeitos intertcxnrris n',r iile#a de VirÍlílio

var uma forma métrica regular ao longo de toda a tradução. Manteve 3. PnnerexruALrDADE: o ríTULo DA EpopÉtA
Odorico a anáfora bimembre: "muito...muito" e a hipálage em "lem-
brado Íancor da seva Juno". Para se ter idéia da excelência dessa últi- título da epopéia de Virgílio estabelece com o leitor o pacro
Já o
ma construção, basta lembrar que Tassilo Orpheu Spalding simples- cle intertextualidade que deverá reger a leitura da obra; diríamos, uti-
mente não traduz o adjetivo em sua ediçao em prosa da Eneida.Tz lizando a nomenclatura dc Genette,Ta que a relação hipertextual da
Outros tradutores, como Perret, por exemplo, dão-lhe um equivalen- Eneida com o modelo homérico em especial é assinalada por Virgílio
te que desfaz o efeito poético, pois que atribuem a .ra epíteto banal, a rìesse componente do "paratexto" que é o título. De fato, Aeneisin-
evitar qualquer possível sensação de estranhamento: neutraliza-se, Ítorma o leitor de que se terá como tema um herói de nome Enéias,
assim, a hipálage ern banalização prosaica do enunciado. como a Odisséia centra o foco narrativo em Odisseu.
Odorico tambérn é fiel à estrutura relativa (uirumque...qui..."e Daqui, algumas conseqüências importantes; Virgílio retomará
o varão que...") , rnas não consegue manter a subordinação mais cer- l epopéia homérica, mas elegerá um protagonista de relevo bem supe-
rada do original, que desenvolve o período com particípios conjuntos, rior ao dos demais personagens, não um conjunto de protagonistas
aposirivos: iactatus, passus, transformados em verbos conjugados por clLre se alternam na centralizaçáo do foco (não apenas Aquiles ou
ele ("encon[rou", "sofreu") - leitura forçada do original que alguns Agamenáo, do lado grego, mas Heitor e Príamo, do lado troiano etc.),
editores do poema referendam, totalmente equivocados, a nosso veÍ. lal como se vê na llfada. Desnecessário mencionar as nuanças: tam-
Lamentamos, também, a perda das nuanças de intencionalidade e lrém na OdÍsséia, durante longa parte da narrativa, tem-se Telêmaco,
esforço do subjuntivo de dum conderet e in{erret, "quando/ Funda a rriro Ulisses, como protagonista; por outro lado, na Eneida, Turno
cidade e the introduz os deuses..." tarnbém assume esse papel, especialmente quando, como em todo o
Finalmente, os dois últimos versos conservam a concisão de livro IX, Enéias está ausente do campo de batalha; contudo, Odísséia
Virgílio e se inflam tão somente com um acréscimo: o verbo "vêm", c Eneida centram-se mais compactamente na figura unificadora de
em contraposição à eficaz elipse do original. trm herói principal.
Em resumo, Odorico, apesar de alguns desvios, consegue repro- Mas a relação de Virgílio corn seu hipotcxto é sempre comple-
duzir a concisão e vários efeitos poéticos do proêmio; basta comparar xn: envolve reelaboração, confronto e incitamento à identificação dos
com outros tradu[ores que a verteram também em versos regulares "tlcsvios", jamais imitação mecânica e passiva. Temos insistido em
para ser idéia da façanha e do êxito obtido.Tr ( prc a presença de outros textos sob seu texto se destina a gerar senti-

,l,rs, nurna dialética a que o leitor não deve ficar alheio sob pena de
,'rnpobrccer decisivamente sua leitura. Partícipe ativo de uma deci-
íirrçiro que compreende operaçÕes tais como a identificação do
t' Op. cit., p. 11. Tratar-se-á de erro de revisão? lrilr<rtcxto c a análise do sentido que a superposição de textos fazbro-
i3 Além do já citado Caro, Albini e Bacchiclli tentaram a difícil enpresa. No campo cll trrr', o lcitor implícito é constantemente provocado a comparar e dis-
concisão, ambos perdern para Odorico: olìzc versos cor-Ìtra nove. Sobrc o pritlcitt',
consultc-sc TRAINA (Op. cit., p. 124-126); quarìto ao segundo, sua tr:rcltrçito cstí tto
lingrrir. l)crnrancccr no hipertexto, em leitura que não engloba as "fon-
volunrc inclicado a scguir: ViIìGILIO. Enc'itlc. Vcrsionc 1-roctica, irrtrotlrrziorrc t'
c()lÌìlìÌcrìt() tli Atlrilrro IJncclriclli.'lorino, l):rnrvirr, 1991, p. 19. l t )1,. t ir., p. J- l zf.
Paulo Sérgio de Vasconcellos [feitos intertextuais na fzeiílí de Virgílio

tes", é condenar-se a náo desfrutar de muitas riquezas, mais ou menos marão os descendentes do herói, através de seus valores cívicos e es-
acessíveis, da significação, como também o é armadilha que a - pirituais. Assim, no livro VIII, cuja ação se passa predominantemente
Quellenforschungpor tanto tempo não evitou, segundo apontamos - no sítio da futura Wbs, os Romanos são por duas vezes denominados
a mera identificação dos passos "imitados" pelo poeta, se não atingi- Aeneadae. Na primeira ocorrência, temos o célebre passeio de Evandro
mos o cerne da arsvirgiliana: criação de sentido pelo confronto do(s) e Enéias pelos lugares onde surgirá Roma; os personagens admiram a
subtexto(s) inregrado(s) à estrutura da obra. paisagem tão evocativa para o leitor de Virgílio, iniciando a explora-
Assim, a consideração do título não nos deve enganar: a Eneida ção do local pela porta e altar de Carmenta:
náo será uma OdÍsséÍa;já nos referimos à tese de Lausberg-Cairns de
que a epopéia latina se basearia fundamentalmente na Odisséia com Vix ea dicta, dehinc progressus monstrat et aram
et Carmentalem Romani nomine portam
a introdução de material subsidiário da llíada,num processo de imitatio
quam memorant, nymphae priscum Carmentis honorem,
náo incomum na literatura latina: partindo-se de um modelo mais uatis fatidicae, cecinit quae prima futuros
recente, através des[e se retomam aspectos de um modelo anterior, Aeneadas magnos et nobilc Pallanteum. (VIII, v. 337-341)
da fonte mesma deste úkimo, como faznáo raramente Ovídio; trata-
se de englobar o continuum histórico de um texto, sua história como
"Mal assim falara e, avançando, aponta-lhe o altar
e a porta que os Romanos denominam Carmental,
matriz de outros textos, em processo que vai do texto original à fonte
antiga honraria à ninfa Carmenta,
e vive-versa simultaneamente. Retomaremos as considerações de vate profética, que foi a primeira a anunciar os futuros
Cairns no próximo capítulo, quando examinarmos a estrutura da magnos Enéadas e o nobre Palanteu".
Eneída; por ora, reafirmamos a diferença, do ponto de vista mesmo
do título, entre a epopéia de Virgílio e a saga de Ulisses. No escudo de Enéias, em que Vulcano cinzelara res ltalas Roma-
No decorrer da ação, por cerca de vinte vezesT5 os troianos são norumque triumphos ("a história itálica e os triunfos dos Romanos",
chamados Aeneadae, a partir do nome de seu chefe; a Eneida, pois,
VIII, v. 626), a luta de Roma contra o rei deposro Tarqüínio, que se
mais que poema de consagração de um herói singular, é a exaltação
irliara ao inimigo exrerno, é assim sintefizada:
de toda uma coletividade encarnada em Enéias, seu mais eminente
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant. (VIII, v. 648)
representante e figura arquetípica sob a qual se revelam traços da
romanidade ideal: pietas, grauitas, dísciplina. Na complexa teia tem- "Os Enéadas se lançavam às armas em defesa da liberdade".
poral da Eneida - que, através de profecias e oráculos, além da catábasis
do livro VI e da descrição do escudo, no livro VIII, compreende a O grande precedente dessa identificação entre os Enéadas e os
futura Roma e seus descendentes - essa coletividade de que Enéias é l(omanos é, na literatura, o verso inicial do célebre "hino" a Vênus que
porta-voz é a própria Roma e os troianos redivivos em que se transfor- rrlrrc o De Rerum Natura de Lucrécio, escritor que tanto influiu sobre a
,,hnr dc Virgílio; ali Vênus é denominada Aeneadum genetrix, "gera-
75 Dezoito, precisamente,
,lonr r{os Enóacìas", isto é, dos Romanos. Considerava-se, portanto,
segundo o cômputo de POMATHIOS, Jean-Luc. Le Pouvoìr
Políriquc er sa Représetttatíon dans t'Ìinéide de Wrgìle. Bruxelles, Lrtomus, 1987,
l:rróilrs c()lÌl() o hcrói que fundara a raça romana; de fato, como era
p.132. ;,r't.visívcl, irlcuis nrululrs são projetados sobre a personagem virgiliana.

-tÌ6- _ t27 ._
lrl( il{):, irl('l l('\lrttt:, tr;t l.rtr'ttl,I tk' \'ir 1lrlio
Paulo Sérgio de Vasconcellos

4. lrurnarexruALrDADE
Essas considerações procuram advertir para o engano que se
cometeria em aceitar sem mais a equaçáo: Odisseu - OdisséÍalEnéias
Prrr rrruito tempo o estudo das repetiçõ es na Eneída, uma carac-
- Eneída; em Virgílio, como já dissemos, a personalidade do protago-
nista é transcendida, suas ações e atitudes são "fundadoras" da futura tt.rística da obra que náo escapa ao leitor atento, recebeu tratamento
civilização romana, suas qualidades as virtudes arquetípicas de um p retlominantemente filológico ; discutia-se, quase invariavelmente, se
povo. A insistência de Virgílio no emprego da expressão Aeneadae ,llrla repetição de verso ou versos (sobretudo se longa e total) não era
(companheiros de Enéias/ futuros Romanos) realça esse estatuto "po- tlcvida ao estado incompleto da epopéia, vestígio de redação provisó-
lítico", no mais amplo sentido da palavra, de que se reveste o protago- ria, ou deslize que o poeta consertaria se tivesse tido tempo para rever
nista da Eneida. integralmente seu texto, ou fruto espúrio de interpoladores. Outro
íìlao da crítica textual se encaminhava no sentido de decidir, diante
Camões, que pratica com a epopéia virgiliana mutatis mutandis
tlc duas passagens idênticas, qual teria sido redigida antes.
o que basicamente Virgílio operou com a homérica, isto é, integração
Tais preocupações são, em parte, cabíveis; entretanto, a abor-
e superação explícita (nenhum sentido valorativo, porém, na pala-
rlagem estritamente filológica falseia os aspectos literários da repeti-
vra "superação": trata-se de transcendência para nova forma e visáo
de mundo, sentida como "desvio" em relaçáo aos modelos), tam- ção, que, como recLlrso poético, cria associações de analogia e con-
tras[e, sugere sentidos do confron[o de contextos diversos, etc. Além
bém terá em mente, ao intitular seu poema épico, a exaltaçáo do
disso, vinha recebendo tratamento esporáclico e assistemárico a ques-
coletivo - Os Lusíadas serâ o nome da epopéia portuguesa, que ce-
lebra não a saga de um homem particular, o Gama, mas essa mesma
táo da linguagem "formular", calcada na repetição, um dado óbvio
para quem lê a Eneida, sobretudo se se tem na memória a língua poé-
saga como exemplumímpar de um suposlo gênio lusitano secunda-
tica homérica, em qLre a repetição constitui pilar vistoso e irremovível
do pela providência divina. É significativo que em seu proêmio o
cla arquitetura do conjLrnto. Um livro de'!ilalter Moskalew, relativa-
poeta português use o plural do correspondente ao latino uÍrum:
mente recente, veio cobrir essa lacuna inexplicável, apresentando um
cantará os "varões assinalados", não um só herói (e se note o adjeti-
trabalho de conjunto (ainda que náo esgote a matéria; bem longe
vo, evocaçáo do ínsignis, aplicado a Enéias): a leitura intertextual,
disso...) sobre esse tema transcurado.
provocada pela epopéia, também suscita sentidos, pelos contrastes
que a semelhança formal sô {azsalientar. Camões retoma a tradição O autor mencionado disringue, corretamente, dois tipos de re-
épica ocidenral, greco-latina, para modificá-la, nela inserindo ou- petição: a que dá marca épica ao texto, isto é, sua "formulaic texture",
e a "referential", "intirnamente ligada à estrutura e ao sentido" e que
tros valores e ideais.
"reflete a lógica ilìterna e o desígnio artístico do poema".76 Nota que
Na Eneida, portan[o, é a ação fundadora do paterBnéias que
excluem, "pois todas as repetições...contribuem
esses dois tipos não se
se narra, e Virgílio não insiste nesse epíteto gratuitamente: seu he-
para a impressão de que o poema é épico em seu estilo..."7i
rói traz em si as virtudes mais prezadas do ideário romano persegui-
do por seus descendentes, que cultuarão sua imagem tão piedosa-
mente quanto os nobres cultuavam a memória dos ancestrais mais MOSKALEW, Waltcr. Forntulaic LangLtage ancl Poeric Desígn ín tlte Aeneíd.Lcidcn,
ilustres, que constituíam, por seu passado, modelo perene a ser imi- Brill, 1982, p. 73.
77
Idem, p. 79.
tado c invocado.

-t29-
Paulo Sérgio de Vasconcellos lifoitos intoÍtexttt',tis nlr Iitrcidu tle Vilgílitr

Moskalew, entretanto, denomina "decorativo" a esse papel da ,, fro ptlssíve l, que deve ser justificada pela adequação ao
contexto ge-
repetição - marca de uma linguagem que se pretende épica, isto é, rrrl c apoiada por indícios seguros' sob pena de se perder na excessiva
homérica; ora, a nosso ver o termo é infeliz e inadequado. De fato, se ,livlrgação, risco a que nem mesmo o próprio Moskalew escapa.78
sua função é filiar a epopéia a uma certa tradição épica, reproduzindo Enfim, coerência e apoio no texto: eis as diretrizes que náo po-
um tipo de dicçáo poética característico, é evidente que não se trata tlt.rìtos deixar de seguir, se quisermos evitar os excessos de interpreta-
de mero adorno de estilo; na verdade, reveste-se, no projeto geral de \ ri(), e specialmente freqüentes nos que operam a leitura dita "simbóli-
Virgílio, de papel capital. Para se ter idéia dessa peculiaridade da lrr" da Eneida. Deve-se, acima de tudo, resistir à tentação de ver, em
Eneida, pensemos em como a epopéia de Apolônio de Rodes' que Irrtla e qualquer repetição, um efeito de sentido, uma operação
também se insere na tradição homérica, é muito mais parca em reite- itrrcrpretativa que vem, por vezes, em certos autofes, acompanhada
rações de tais "fórmulas". Por outro lado, limitando seu campo de tlc consideraçÕes tão forçadas e artificiais que comprometem e
estudo às expressões com uma certa extensão, Moskalew acaba dei- ,listorcem o sentido da obra em seu conjunto.
xando de lado material lingüístico relevante, que merecia interpreta- Impossível negar, contudo, que Virgílio parece comprazer-se em
çáo, conforme veremos mais adiante. t'xtrair sutis sugestões da auto-alusão no corpo de sua Eneida; é o caso
Nesta parte de nossa pesquisa, preferimos adotar o termo mais rlo símile aplicado a Turno em XII, v.4-9, que evoca o célebre símile
abrangente de intratextualidade,concebida como a evocaçáo, no curso tlc IV, 68-73, em que Dido é comparada a uma corça?e ferida. Lyne
de uma obra, de passagens da mesma obra: alusão interna, portanto; r:omenta a relação, se bem que suas ilações nos pareçam, em mais de
mas restringiremos nossas considerações ao exame de exemplos que uln ponto, exageradas.s0 Analisemos a passageml Turno, exaltado pelo
mostrem de que maneira essa retomada interna cria sentidos que pre-
cisam ser decodifrcados depois que a memória do leitor a reconheceu. Ao que parece, o abuso interpretativo na consideração da recorrência verbal atinge um
dos estudos sobre a Eneidaque vem influenciando a muitos, The Poetry o{the Aeneíd,
Admirimos a divisáo de Moskalew em repetições que influem no sen-
de Michael Putnam, ao qual, infelizmente, não tivemos acesso. Críticos profundos e
tido ou não, mas notamos a tendência virgiliana a "marcar" de signi- ponderados, porém, têm criticado esse aspecto da obra; a título de exemplo, citamos
ficaçao os recursos poéticos e a linguagem herdada da tradição coNTE, G. B. Wrgílío. Il Genere e i suoi confrni. Modelli del senso, Modelli della
homérica; além de marcar gênero, a repetição na EneÌda tende a ser Forma in una Poesia Colta e'sentinterttale'' Milano, Garzanti, 1984' p. 156.
Notemos, de passagem, que a escolha do animal náo parece gratuita; é verdade que
semioticamente funcional, a criar sentidos; em suma, poderíamos di-
Virgílio retoma Apolônio, como logo veremos, mas é significativo que Dido seja associ
zeÍ que propende a ser sobredeterminada, desempenhando duplo pa- ada com Diana (no símile de I, v. 498-504), a lua (por exemplo, no símile de VL,v.453-
pel. Não sendo exclusiva da linguagem épica (pensemos nos refrães 454: a primeira visáo que de Dido rem Enéias nos Infernos comparada à de alguém que
vê ou crê ter visto a lua em meio às trevas) e â corça. Nas palavras de Junito Brandáo
de certas formas |íricas, nas repetiÇões catulianas que estruturam o
(Dícionário Mítico-Etímológico. Petrópolis, Vozes, 1991, vol. I) , Diana-Artemis "esta-
poema em Ringkotnpositíon, etc.), a repetição' fomentada por essa va estreitamente ligada a Hécate e a Selene, personificação antiga da Lua" (p. 122) ' e a
linguagem, fornece malerial abundante para a criação de sentidos su- corça era o seu animal predileto (p, 121).
tilmente sugeridos: de novo, cabe ao leitor relacionar textos e con- LYNE, R.O.A.M. Words and the Poet. CharacterístÍc Techníques of Style in Vergílb
Aeneid. Oxford, Clarendon Press, 1989, p. 163. Póschl, bem antes de L1'ne, apontava
textos interligados pela referência interna e extrair do confronto os
Tumo-Dido e tecia sobre ela comentários interessantes, aos quais voltaremos
essa ligaçáo
cfcitos de leitura. Operação subjetiva por excelência, esse modo no último capítulo deste trabalho (cf. PÔSCHL, Viktor. Dr'e Díchtkunsr Vergik. Bild
dinlótico dc ler deixa ao leitor a iniciativa e a compelência na decifra- und Synbol ín der Áneís.Innsbruck-Wien, Margarete F. Rohrer, 1950' p. 183-184)'

- _l3t_
- 130
Paulo Sérgio de Vasconcellos Efeitos iritertcxnrais na.dzel'da de Virgílio

rumo adverso aos latinos que os combates estão tomando, assemelha- Idêntica fórmula de introdução do comparante: qualis; uso tlo
se, em seu furor, a um raivoso leão ferido: l)resente para relatar as ações do elemento comparante (tnouet, {rangit,
í|emitlperagrar); emprego de verso e trecho de verso no final do símilc
Poenorum qualis in aruis tlestacados pela pausa (haud secus...f haerer- com presente e verbo
saucius ille graui uenantum uolnere pectus
rìntes do sujeito em ambos).
tum demum mouet arma leo gaudetque comantis
excutiens ceruice toros fixumque latronis A tais elementos, acrescem-se outros: de fato, saucius graui
impauidus frangit telum et fremit ore cruento: ttolnere evoca um trecho do início do mesmo livro IV, que retrata
haud secus accenso gliscit uiolentia Turno. (XII , v. 4-9) Dido:

Em Odorico Mendes: At regina grarziarndudum saucla cLlra


uolnus (lV, v. l-2)
"Qual de Afras brenhas
Ferido o leão no peito, encrespa as garras, "Mas a rainha, ferida há muito de profundo amor,
Do collo folga a sacudir a juba, a chaga..."
Do caçador estrala o fixo dardo,
Ruge-lhe impavido a cruenta boca; Diante dessas observações, é curioso que Virgílio faça referên-
Tal cresce a ftlria do abrazado moço..."8r
cia, no símile aplicado a Turno, a leáo púnico...; para Lyne, com a
intenção de recordar Cartago e os episódios do livro IV.83
De início, notemos as expressões que remetem aos versos do
No início do livro IV e do livro XII, Dido e Turno, respec-
livro IV, abaixo transcritos:
tivamente, são descritos feridos, uma de paixão, outro de excessiva
qualis coniecta cerua sagitta, íúria:
quam procul incautam nemora inter Cresia fixit
pastor agens telis liquitque uolatile ferrum irlérn disso, em ltaeret ltarundo e lateri letalís (como, no verso anterior, em siluas
nesciusl illa fuga siluas saltusque peragrat salnnque) temos a chamada "aliteração com vogal interposta variável", um esquema
Dictaeos; haeret lateri letalis harundo. (lV, v. 69-73) sonoro que talvez provenha da linguagem sacerdotal e se tornaria uma das marcas da
língua da épica, segundo CECCARELLI, Lucio. LAlliterazione a Vocale Interposta
"Qual a corça que, atirada a seta, Wtriabíle ín Wrgilio. Roma, Japadre, 1986, p. 3. Sua definição do fenômeno: "aquela
incauta entre os bosques cretenses, de longe atingir.r variedade particular de aliteração caracterizada pela mudança da vogal ou do ditongo
o pastor, em seu encalço com dardos, deixando o volátil ferro, irrtcrmédio entre consoantes iguais" (ibídetn). O autor, entretanto, não consídera haeret
sem saberl ela, na fuga perpassa selvas e bosques lnnutdo em sua análise das aliteraçíres desse tipo na passagem em foco (p. 89-90),
dicteus; pernunece cravada em seu Ílanco a flexa fata1".82 provavclmente por levar em consideração que o ú inicial é marca de aspiração, e não
lrropriamente consoante, como já pensavam os gramáticos latinos antigos Qtota
:t.sltirationis; ver NIEDERMANN, M. Phonétique Hístorique du Latin.Paris,
A nosso ver, a boa tradução se enfraquece no verso Íìnal: Odorico perde a seqüêr'rcia Klirrcksicck, 1953, p.99). Mas nenhum critério técnico eludirá o fato de que essa
ub/entía lurrrq associação significativa para a caracterização do personagern. rrssociirçiro de sons comparece pr(rxirna de duas outras aliterações "com vogal interpos-
Uma tradução autenticâmente poética deverá manter o delicado jogo fônico do últinro I lr vlrriírvcl".
vcrso: áacyct llrcri lcalis áartrndo, cm quc os sor-rs con-rparíveis sc agruplm cnì (luiiìsrÌr( r; "t ll7,,r,l.s ttrttl thc llrt, p. 163.

_ t33_
Paulo Sérgio de Vasconcellos Efeitos intertextuus n't Eneida deYirgílio

"Como ali a paixáo da amante, aparece aqui a paixão do guerreiro como que foge ao seu perseguidor, já fadada à morte (letalìs harupdo), qtrc a
uma ferida devoradora, uma doença que aniquila tragicamente sua ví- Turno, leão altivo, que, ferido, resta impávido e continua a ameaçar c
tima. O livro de Dido e o livro de Turno, através desse símbolo
clesafiar seus agressores.ss
introdr.rtório (scílícet a imagem da ferida), estão ligados um ao outro
também exteriormente".& Comentário à parte merece a comparação de Dido com uma
corça ferida; sabemos que todo o livro IV desenvolve a imagem do
Assim, Virgílio conduz o leitor à aproximação dos dois persona- ferimento de amor da rainha que se transformará em chaga letal,
gens que se antepõem à missão de Enéias e ganham relevo nas duas infligida pela espada de Enéias na auto-imolação final: imagens de
metades do poema; Dido, figura dominante na parte odissíaca, cujas ferida e fogo anunciam o trágico desfecho, a morte pelo ferro e o cor-
relações amorosas com Enéias constituem um obstáculo ao cumpri- po queimado na pira que a própria Dido mandara erguer'8e Mas, ao
mento dos fados que só é removido após a intercessão de Júpiter atra- qu" pur".., náo foi ainda notado por nenhum dos comentadores e
vés de Mercúrio; Turno, o rival da parte iliádica, empecilho à pacifi-
cação entre latinos e troianos.ss Os dois apresentados em símile como Cremos que essas nossas considerações servem de alerta contra a tendência a distinguir
animais feridos, vítimas de um conjunto de circunstâncias que coloca ,- purul"lo d"masiado cerrado entre Dido e Turno (no quarto capítulo deste trabalho,
Enéias como agente da "ferida" a ambos infligida. Enéias sob luz duvi- nós mesmos afloraremos o tema) e a julgar que o poeta traçou deste último um retrato
muito positivo; retornaremos à questão, ao analisar os efcitos intertextuais na carâcte-
dosa, como querem vários esludiosos, especialmente aqueles que pro-
rização de Turno.
curam as arestas da ideologia augustanana Eneida? Mas o herói é o Já em Apolônio de Rodes, seguido de perto
por Virgílio no livro IV, encontramos a
agente do Fatum, e o amor tresloucado da rainha de Cartago e a ex- associação entre a ferida de amor e o fogo. Atingida por Cupido, eis o es.tado de Medéia:

cessiva superbÍa do rútulo (uiolentiaé palavra que só a ele se aplica ao FêÀoçô' bveõdieto KoÚpn I vep1ev funb rpcrôi1, QÀo1ì eítcel,ov ("A seta ar-
dia/nofundo do coração da moça, semelhante a uma chama...": Argonáuticas III, v.286-
longo da epopéia!)86 configuram-se como obstácuÌos reais ao cumpri- imageru perpassam todo o episódio e se revestem
287). Na epopéia de Virgílio, porém, as
mento da missáo divina de que o troiano está encarregado. Certa- de significaçáo surpreendente: "Essas seqüências de imagens de fogo e ferida..' (...) intro-
mente fazparte da complexa ideologia da epopéia, rica em mensagens duzem, entre outras coisas, um sentimento de trágica inevitabilidade. A ferida de amor
subliminares nada simples ou fáceis, o fato de que - tantos o têm ob- de Dido se transfonna...na ferida do suicídio, e o fogo de seu amor se transfonna".nos
fogos de sua pira", diz LYNE (fitrrher Voices, p.120, nota 31), retomando belas observa-
servados? - vítimas sofredoras, as duas personagens apareçam como
ç*, d" Poschl e Otis. É interessante notar, por outro lado, que Ovídio relacionara de
"simpáticas", no sentido etimológico, ao leitor, mas, evidentemente, rì i)crto a imagem da ferida de amor com a ferida concreta
do suicídio de Dido, já propondo,
sugestão é mais adequada a Dido, figurada no símile como animal frágil a epístola de Dido a Enéias, uma de suas
i-,u.ro,-rro, eisa leitura do episodio, como o revela
IJcróidas
84
PÔSCHL. Op. cit., p. 184. Ncc mea nunc primum íeriuntur pectora telo;
85
Curiosamente, Júpiter intervirá de novo, desta vez para alquebrar as forças e o ânirrro Ille krcus saeui uulnus amoris habet. (VII, v. lB9-190)
de Tumo, enviando-lhe a Dira (Xll, v. 845-868) e, assim, precipitando a vitória tlt'
Enéias - Virgílio acentua o paralelismo dos destinos das duas personâgens. "Ncm ó rìgoriì a prirneira vez em que meu peit<l é ferido:
Os passos a citar: XI, 376 (uiolenria Turnl;Xll,9 (uiolentía Tunto),45 (uklcnti,r cssc lugar conscrva a chaga de um amor cruel".

Tunti); acrescente-se X, l5l (uíolentaque pectora furn), em que não aparece o srrlrs I-t.rrrlrrcpros tltrc as ntctírfrtras para a paixão de Dido aparccem logo no início do livrtr
tantivo mas o adjetivo correspondente. A proximidade com o nolne dc Trrrno, tr:rç, ' IV:
de todas as ocorrências, revela as intenções do poeta: ligar ir imagcrn do rútulo ì rl,,
he rói cxcessivrìlìlcnte colérico, condenável Acpiles, sob cssc lìspcct(). At rr'11itr;r 11lllrti i:rtrt,ltt,ltrlìÌ ilr/(/:/('tlrlì
I-yrrc, lxrr cxcrrrlrlo, cnt Wt,rLls ttntl tltt' Rx't, p. 161. t tt tl r t t t.r ill rrt'ttis t'l t'ltr't'tt t':lrllil ttf 4glrl. (r'. I -l)

ll
Paulo Sérgio de Vasconcellos lifcitos intcrtextuais nrr i)reúla de Vilgílio

estudiosos do poeta que, no livro VI, quando Enéias revê Dido nos Note-se que /relr2rlsevoca neillora do símile do livro IV.
Infernos, ainda sangrando da ferida, Virgílio sLrgere, pcla intratextua- A confirmar a possibilidade de tal leitr.rra, outros indícios, des-
lidade, em discreta alusiro, a comparação inicial da rainha com tavezintertextuais ín nemus umbrifertLrnlembra ev vepu oKrepq),
um...animal ferido. Vimos qlre no símile do livro IV a corça é retrata- em que o substantivo grego tem a mesma raiz do latino, e a expres-
da em fuga por selvas e florestas (illa fuga siluas saltusque peragrat); são toda parece traduzida por Virgílio , da Ilíada, XI, v. 480, adjunto
no livro VI, além da referêr-lcia a uolnus, devemos observar atenta- adverbial também na prirneira posição no verso. No poema grego,
mente estas palavras: Odisseu é comparado a unì...cervo (bl,crQou, v. 47 5) {errdo por uma
seta (i.Q, v.476)l De maneira sutil, inter- e intratextualmente se
errabat silrii in magna (v. 45 1)
vem apoiar a sugestão do livro VI: aqui, Dido deve assemelhar-se à
Ao leitor atenlo não escapará um animal a vagar
a evocaçáo de patética corça ferida do livro IV.
por uma floresta, qlre, parte da região infernal onde Enóias enconlra Por fim, outros dados, intratextuais: o cervo de Sílvia, cuja morte
Dido, traz à memória a imagem do símile. Trata-se de poderosa carac- é o estopim dos conílitos no Lácio, "vagava nas florestas" (errabat
terização de Dido apaixonada: eternamente sujeita ao afeto que a srluis,Yll, v. 491), sintagma de notável sernelhança com o qLre temos
condenou. Como no sírnile se falava em rtrya, no canto Vi, Dido foge: aplicado a Dido nos Infernos (errabatsilua,YI,v.45l). Ferido (saucius,
VII, v. 500), como Dido é ferida de amor (saucía,lv, 1), refugia-se na
Qr"rem fugis ? (v. 466)
casa que lhe é familiar (nota intra tecta rertryit, VII, v.500), como
"De quem foges?" Dido se refugia QerttgÍt, VI, v. 472) junto ao marido Siqueu. No livro
I, Enéias, indo à caça, avista três cervos errantis (v. 184- 1 85) . Nesse
refugit
lnesmo contexto, o troiano ó descrito perseguindo o rebanho conì
in nernus r-rmbriferum (v. 472-473)
dardos, numa expressão que aparecerá no sírnile aplicado a Dido: Ítgens
"Refugiou-se te/Ís (I, v. 191; IV, v. 71). Essa associação enrre Enéias caçador, os
nurna floresta umbrosâ..."
cervos que "erram" e a caça com dardos vem reforçar não só a ima-
gem desse herói como causador involuntário da morte de Diclo mas
também a descrição da cartaginesa nos Infernos sob a figura patética
Por fim, obsen'emos que a concepção do amor como ferida e fogo é urn roposde larga
difusáo no Ocidente; no mito, Eros-Cupido é freqüenternente representado portando rla cerva atingida letalmente; aqui, o verbo errabat\)o e a presença da
a tocha além clas setas cÌue ferem. Quanto à recorrência da metáfora na tradição literii- íÌoresta (sÍlua, nentus) são, dentre oLrtros elernentos, índices bastante
ria (mas até em letras de música popular a vcmos, mais ou menos explícita), recorde-
mos um exemplo mais que célebre, o sollcto de Camões:
Conr o verbo errare,Virgílio pode estar, também, aludindo à ctimologia quc os Antigos
"Amor é íogoqve arde sem se ver; jír propr-rnham: Dido significaria "a errante", norne que lhe teria sido dado pelos líbios
E íerida que dói e não se sente..."
em rcferência ao exílio que a levor.r às terras africanas. Dc fato, na pÍecc do rciJarbas a

Quando, na ópera de Wagner, Parsifal recebe de Kundry o prirneiro beijo de iìrnor, o Júpitcr, íala-se na fentína...errans (lV, v. 211): essa recorrência firz pensar. Sabcnros
herói exclama, transtornado, quc iì ferida arde cm seu flanco ("Die'!íundel Dic Lplc o poe ta se con-ìpriìz elÌr evocar etimologias; por outro lado, aceitando-se tal motiv:r-
\íundel - / Sie brennt mir hier zur Seite"). çho pura o cmprego desse verbo, não se invalida a alusão intratcxtual propostrì - cstarìì()s
O tcma, a histírria desse rr-rpr-rs, está a rnerecer toda unra pesquisa cspccífica. Ircosturnurk>s com a l-rabilidadc de sua arte.

- ta7 -

li,
Paulo Sérgio de Vasconcellos

eloqüentes para o leitor que está atento à teia sutil de relações Lyne chama atcnção para o uso do verbo agere, que no símile
intratextuais e intertextuais urdida pelo poeta. da corça denotava o ato da caça.e4 Noremos argo rerevante para
nos-
Em seu estudo do estilo formular da Eneida, Moskalew não in- sas considerações: por via alusiva, apenas, o leitor atento
associará a
clui este exemplo (errabat silual errabat siluis) em sua análise;er no cena à de uma caçada, cr'el do ponto de vista de Didoe5 . Em leitura
entanto, eis uma amostra ímpar da capacidade do poeta em criar sen- "linear", pode-se perder, nessa descrição do pesadelo, o motivo da
tido através do jogo alusivo. A imagem da corça ecoando mesmo nes- "caçada", já que o verbo agereé vago o b"st"nie para que o leitor
lhe
se ponto da narrativa - úrltimo adeus de Enéias à rainha, que ainda confira sentido menos preciso que o de ,,caçar,, (,,plrs.guir',, por
exem_
sangrae2 e ainda foge - com as características de fragilidade e impru- plo, como em nossa tradução). ourro indicio ir-,ìrut"it.rui i-porrnrr-
dência que os Antigos atribuíam ao cervo em geral,es eis um brilhante te: o símile da corça ilusrra o furor de Dido (urbe furens, iV, v.
69);
tour de force poético a que o leitor "desprevenido", isto é, não inter- no pesadelo, Enéias persegue uma Dido enfurecida (furentem)
- em
textual em sentido amplo, não terá acessol casos diversos' trara-se do particípio presente do mesmo verbo.
Vemos que Virgílio explora de forma sutil uma imagem através Nas Argonãuticas, também Medéia, como a Dido do rivro IV,
é
de alusões intertextuais e intratextuais; no livro IV, como aponta Lyne, comparada a uma corça num símile que já mencionamos:
na descriçáo dos pesadelos de Dido reaparece a imagem de um Enéias
a caçar Dido, evocando, pois, o símile da corça. Em sonho, a rainha se tntooev õ' t1u,ce ttç roóQq Kepc{,ç fiu te Bcr0eirlç
topQeoru év (u),ó1oro ruyôy bgoBrloeu bporÀr1.
vê acossada pelo troiano: itv, v. l2_13)
"Tremia como uma corça veloz qlÌe, na espessura
Agit ipse furentem de um bosque profundo, o latido dos cães pO, ..n fuga".e6
in somnis ferus Aeneas (IY, v. 465-466)
Mas é fácil observar como virgílio elabora mais finamenre a
"Persegue a ela, enfurecida,
imagem, que nele se torna mais intensa e dramática (a ferida,
em sonho, ele próprio, o feroz Enéias..." sua
letalidade, o contraste entre a vã alegria da rainha e seu desdno
trági-
co) e é integrada sutilmente no conjunto de imagens não só de um
9l
episódio como de toda a obra.
Ver sua útil "lista de repetições" (p. lB4-245).
91
A retomada da imagem realça a idéia de que nos Campí Lugentesos mortos por amor outra observação intratextual a respeito da imagem da paixão
conservam as marcas da paixão que os arruinou: nem aqui deixam de soírer (por iss.,, como ferida: já no início do livro IV, o sentimenro de Dido é
chama-
lugentes, particípio presente, em sintagma quase intraduzível com campò. Como dit do uolnus, como recordamos; mas a essa metáfora, seguem os efeitos
Virgílio, curae non ipsa in norte relinquorlr ("Não os abandonam os sofrimentos antrt-
rosos - curâe - nem rnesmo na morte", Yl,v.444). De íato, a ferida de Dido é recats,
como se depreende dâ atitude mesma da rainha, ponto a que voltaremos no capítrrlt, 94
Furtlter Voíces, p. 196-197.
seguinte. I5
Ãerris nos parece um dos exemplos mais signiÍicativos,
em toda a epopéia, do estilo
Ceruus aninal est tirnídum, uelox, íracundum, incautum ("O cervo é um animul rrrt' subjctivo de Virgílio a contaminar a terceira pessoa cla narrativa.
droso, veloz, iracundo, incauto..."), reza um tratado de fisiognomonil (c notc-st. o vcrbo QoBêú), além de "assustar", pode ter esse sentido (ver BAILLy, A . DicríonnaÌre
incauntm. no verso 70 do livro IV, tem-se íncaurant!\: ANONYME LATIN. 'fntitt: ,h. Gn'c Ft';t,ç;tis. Paris, Hachette [s.d.] p. zogg) - ralvez essa tenha
Physiogtononr?:. Paris, "Les Belles Lettres", 1981, $ 121, p. t35. sido, pelo menos, a
"lcil rrnr" clc Virgílb, cÌue re triìta o animal em fuga.

-- l.j8 ,
lJ9
Paulo Sérgio de Vasconccllos Ilfeitos intcrtextuais na lilela dc Virgílio

que a pessoa de Enéias, seLl semblante e suas palavras, provocam na grávido de armas", rl, v.237-238); a comparação do bojo do c.vrlt,
rainha: repleto de soldados colÌÌ Lnìì animal grávido, expresso com extraorcli-
nária eficácia poética em Virgílio, rem longa história; Eurípides ralvcz
haerent ir-rfixi pectore uoltuseT tenha sido o pioneiro, coln se, "cavalo prenhe de armas" (éyrupor.r
uerbaque (lV, v. 4-5) \nnov ï,e1ÒXê.t'v), nas Troittnas, 11. Ê.io utiliza a imagem, nunÌa
tragédia, Alexandre, qrÌc menciona o "cavalo grávido d. l-ro*".r, ,.-
"PcrnAl'rcccm gravados em seu peito o serúlante
mados/ para destrr.rir, corn seLl parto, a elevada pérgamo', (...grauic/us
c as palavras".
armads equusf qui sLro partu ardua perdat pergarna).')e Finalmente,
Vimos quc no símile da corça, Virgílio menciona uma letalis Lucrécio fala do "parto de gregos" Q:artul Graiugenarrzr) que incen_
harundo que se crava eln seu flanco (haeret laterl: aqui como ali diou Tróia (De Rerunt Natura,I, v. 477 -47g).
Enéias é o agente cla clrilga mortal que consumirá Dido; note-se a A expressão virgilia.a, que pode surpreender à prüneir:r vista,
semelhançir formal: 4taerct pectorel /taeret Iateri. insere-se numa tradição literária precisa. cr.rriosamentc, conìo obscr-
Vê-se iÌ coulprovação de Lrlna característica da Eneidaespecial- va Knight,ro' locução que a evoca reaparece no livro IX, na meslÌ]lì
mente realçada no livro IV: a coesão, o rÌexo íntimo e constante entre posição, isto é, em início de verso. Trata-se do episódio da
abertura
suas imagens.es O ponto relevante para a pcrspectiva de nosso estu- das portas do acampamento troiano, ato de imp.,dência de pândaro
do: o leitor desatento, que não estabelece associações entre tantas e Bícias, que o fazem "confiados em suas armas", freti annis (lX, v.
"reminiscências", perde significações sutis, que Virgílio deixa 676), convidar-rdo voluntariamenre os ir-iirnigos a penetrarem além
depreender do confronto intratextual e intertextua[, como temos ten- dos muros: ultroque inLtitant ntoenihus hostri, (ibidern).
tado demonstrar. como se sabe' Tur.o entrará no acampamento e, se não fosse
Um exemplo de como a retomada de m:rterial lingüístico do pelos deslizes de um firror excessivo e cego, qlle o leva a ser
imprevi-
próprio poema pode criar significações ocultas a quem não estabelece dente, teria aniquilado os rroianos, pondo fim à guerra; virgílio ob-
a relaçãro, captando e interpretando essa espécie de auto-alusão, é nos serva, o que nao foi notado por Knight:
dado por Knight. Nós o exporemos, desenvolvendo-o, porém, e apre-
sentando prova suplementar dessa ligação bem como o ultimus ille dies bello gentique fuisset. (lX, v. 259)
aprofundamento de seu significado no contexto.
"Aquele dia teria sido o últirno da grrerra c da raça".
Quando o cavalo de rnadeira adentra os muros troianos, Virgílio
o caracteriza corìo fatalis machina...f íeta annis ("engenho fatal.../ Ora, tal afirmação evoca outra, do mesmo livro II:

Notcnros a cxprcssiva paranomásia uolnuslucltus, são expressões assim que fazem pa- Nos deh"rbra deum miseri, quibus ultimr.rs esset
rcccr intraduzível, em todo seu vigor poótic<,r, uma obra como iì Eneídr. ille dies, fesra uelamr"rs fronde per urbem. (v. Z4g-249)
Orcrrros qrre cssc é um dos trunfos tangívcis da charnada crítica sirnbóÌicr dt Enc'íd;t,
tiìrìtrìs vczes dernasiado inventiva enì sÌias ilações... Além da obra dc Ptischl já citaclrr,
poclc-sc urcncionar, c()nì rcsclvas, o cstimulante livro indicado ir scguir: THOMAS, Jtlcl. "" tlputlMACROBIO, Sarumaís,VI, Z, 25.
Srrttctrtt't's t/t' I' Int:lginahe tlans lÉnc<ítlc. Paris, "hs Bcllcs Lcttrcs", 198 L "t' Olr. cit., p. 300-301.

- t,'í0 -
Paulo Sórgio de Vasconcellos
Efeitos inteltextuais na fze#a de Virgí1io

"Aos templos dos deuses, nós, infclizcs, para quem seria o último
conington e Knight. A possibilidade de se compreender rrrrrrr.ç c.r'.
aquele dia, velamos com festiva fronde affavós da cidade".
ablativo de armus ("braço"), não de arma ("atmas"), aventada c.'rl prs-
A alusão é patente: ultinus ille dies (gentl I ultimus í|4e dies sível por conington, deve ser veementemente descartada, a
nìcr-ìos (rrrc
(quibus, isto é, nobis, TroíanÌs);mas se notem os tempos verbais - a se queira, de maneira íorçada, ver ambigüidade na
expressão.
entrada do cavalo em Tróia seria o fim da cidade de Tróia e parecia Este nos parece, em suma, um exempro craro de como a anárisc
ser a ruína total dos troianos; por outro lado, a entrada de Tr-rrno no literária que leva em conta as várias facetas da intertextualidade podc
acampamento dos lnesnÌos troianos terÍa sido, não foi, a destruiçáo fornecer subsídios para a discussão filorógica: aqui, trata-se
de rejeitar
dos últimos remancsccrìtcs de Tróia, graças a um descuido do rútulo. Llma correção textual desnecessária, insciente, além disso,
das
,,inten-
Knight observa: ções" mais sutis do texto.
Analisemos mais um caso de intratextualidade; desta vez, no
"Ele pensava ern Llna tcntativa cle penetraçáo nos muros da defesa. E cpisódio do escudo, que apresenra Augusto no comando da luta
isto lhe recordou o cavalo de Tróia e lhe voltou, então, à mente .éra con-
rra o Oriente capiraneado por Antônio e Cleóparra:
armis e fez sua escolha vocabr.rlar, operando, como de costume, umâ
mudança mínima".roÌ
hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar
Escapa ao autor dessas linhas o principal: Virgílio procura suge- cum patribus populoqr.re, penatibus er magnis dis,
stans celsa in puppi, geminas cui tempora flammas
rir que a incursão de Turno parece repetir em princípio o episódio do
laeta uomunr paftiumque aperirur uertice sidus. (VIII, v. 62g_6gl)
cavalo; a guerra de Tróia, portanto, parece renovar-se tal qual no
Lácio, ao menos em seus episódios mais importantes" Entretanto, a Versos assim traduzidos por Odorico Mendes:
repetição é aparente, por uma série de motivos; aqui, o caráter sober-
bo e auto-suficiente do inimigo livra os troianos de uma situação que "Cá, n'alta popa, Augusto arrasta aos prelios
lhes figurava táo fatal quanto a da úrltima noite da cidade de Tróia. O Senado e povo, os deuses e os penates;
jogo alusivo é usado para ressaltar semelhanças e diferenças entre as De ambas as fontes ledo exhala flammas,
Na cabeça a luzir a estrella patria".
situações que o poeta confronta; assim, Virgílio parece dizer que a
história de fato não se repete; por vezes, superficialmente se tem a A expressã o stans celsa rn puppi (,,em pé, na alta popa") compa_
impressão de repetição, falsa: ironia trágica para com os qlre se julgam rt'cc algo modificada em IV, 554: Aeneas celsa in puppi^(,,Enéias,
futuros vencedores dos outrora vencidos, para com Turno, falso alter na
:rlt, popa...") e tornará em X, 261, também apricada
Aquiles...Os outrora derrotados são agora amparados pelo destino quc i.otugo'ista da
li*ida: stans celsa in puppÍ, clipeum cum detnde siniitra "o
(,,ãm pé, na
os reserva para uma tarefa grandiosa, os primeiros passos na fundação :rltrr 1ropa, quando com a mão esquerda seu escudo...").
dessa Tróia rediviva, e renovada, que se pretenderá Roma.
A nosso ver,
rrr:ris cFre Íónnula de dpo homérico, tal associação
de Augusto a Enéiasro,
Nossa análise fomece fundamento suplementar para rejeitlr a cor- rr:r, ó scrn implicaçÕes. Não há de nos contradizer a observação
de que
reção do texto para fretí anímis, justamente repelida por F-orbigcr-,
'l
t'rrr:r t.rt:ril. ì cxiì.st,ìo na bibliografia crítica do poema. Mais rccentementc,
'o' Op.cit., p.301. :,(' l('l :ìs lrÍgirrrrs tlc Mosl<alcrv (Op. cit., p. l .36-l3t).
lrodcrn_

Irj
I
t,.
Ptulo Sérgio de Vmconcellos Efeibs intertcxtruris na fae#a de Virgílio

o mesmo sintagn-Ìa, dessa vez sem modificação alguma, é aplicado a ecce leuis summo de uertice uisr.rs Iuli
Anquises em III, 527, pois se conclui que, pelo reemprego do material fundere lumen apcx, tactuque innoxia rnollis
larnbere Íìamma comrs er circum rcmpora pasci. (ll, v. 682-6iÌ4)
lingüístico, Virgílio associa Augusto a seus ancestrais ih-rstres retrarados
no poema. Não estamos dizendo uma obviedade - afinal, há tantos "Eis quc, lcve, do alto da cabcça de Iulo pâreceu
indícios dessa associação - porque salientamos que a relação intratextual, irradiar luz uma crisra dc fogo e, inócua Ào tnto,
uma chama la'rber-llic os dclicados cabelos e se aiimentar ao reclor
a via alr,rsiva, vem apoiar a equiparação.
das têmporas".
Não se rrata de mera fórmula, mecanicamente repetida toda
vez qlre se menciona r-rn chefe, troiano ou não, num navio; assim, no Além das expressÕes de uertice e ílatnma, temos rttnderc'
livro V, os chefes (ductores) troianos são representados in puppíbus (rtrnditur, em X, 27L), apex (também em X, 270) e circum tetnpora
(v. I32), seu lugar de l-ronra numa embarcaçáo - ou seja, com um tipo (cui tempora, em VIII, 680), a estabelecer paralelo entre os três pas-
de expressão que não evoca em absoluto as mencionadas acima. Vir- sos; obviamen[e, narra-se sempre o mesrno fenômeno, um prodìgio
gílio, pois, incita à identificação de Augusto com os ancestrais da gens que une os destinos de Enéias, Augusto e lulo-Ascânio, e se poderia,
Iulia tambêm através da intratextualidade, em expressões que só a enrão, alegar a idenddade de situação para justificar a repetiçao lexical;
esses personagens se aplicam. entretanto, quando prodígio similar ocorre com Lavínia (vll, v.7r-
77), é relatado com marerial lingüístico quase inteiramente diverso
O trecho do livro X acima transcrito traz ainda mençáo ao es-
(poucas as semelhanças: ursa, v. 731 uísus,II, 682; iuxta genitorem, v.
cudo de Enéias (clÌpeun), forma sutil de interligar, na memória do
72/ inter...ora parentum, em II, 681 - neste último caso, semelhança
leitor, esse episódio com o do escudo. De fato, mais além, Enéias é
de sentido, não de expressão).
assim descrito:
Vemos, portanto, Enéias e seus familiares mascuiinos - o pai e o
Ardct apex capiti cristisque a uertice flamma
filho - associados a Augusto. Lavínia é retratada como centro de um
prodígio que também a liga a esses personagens mas, nesse caso, a
Íirnclitur ct Lrast()s rrrnbo uomit aureus ignis. (X,v,270-271) -
reireração fextual muito mais tênue torna a associação mais esgarçada.
"Arde o penacho do clmt'l cr'Ì1 sr.la cabeça e da cimeira uma chama Ainda no campo intratextual, a relação do imperador com o
irrirdia-sc c o cclìlro áurco clo escudo vomita vastos fogos". herói troiano vai além; compare-se:

Note-se: cum patribus popuk>que, pcnaribr.rs et magnis dis (VIII, v.679)

VIII X "...con-Ì os Pais e o povo, os penares e os grande.s deuses".


flarnlnas flamma
Lromunt rrornit cum sociis natoque pcnatibus er magnis dis (lll, v. 12) r03

uertice a uertice
"...cc)m os aliados e o filho e os penâtes c os grandes deuses',.

Por outro lado, essa chama a circundar Augusto e Enéias e vocrì


a que surgira sobre os cabelos de Ascânio, um dos sinais celestes rlrrc Nilo ctrtttllrccltclcntos por cÌuc a cdição clc Perret não coloca r,írgull rpírs lìrÌr.Ì/11(', se lì
ittst'ritt rt|írs 7rr T rttI xlrr-, ttrcsnlt disclcpâr-rcia nl cclição ilc Myrors. As crliçõt-s tlc Iìcnrigit r
convencern Anquises a partir de Tróia saqueada pelos gregos: Sirlrlrltlirri tr tlc I)rtt'lttorc c()crcrìtclììcrìtc iÌl)rcscrìrrìrìì r,írgrrl:r t'rn rrnrh,,s os r,,'rs,,s.

I r5

I
Paulo Sérgio dc Vasconcellos Efeitos intertextuais na I'nel'd,, de Virgílio

Este último verso ocorre quando Enéias relata sua partida de to". Assim, Augusto tem a seu lado políticos que são como familiares
Tróia para o exílio (Feror exul in altum,lll, 11)' Além de o segundo seus e, como aliado, todo um povo Qtopulolsoczrs), como chefe prote-
hemistíquio ser igual nos dois versos, no primeiro temos a mesma es- tor de uma comunidade em peso unida em torno a sir06 - eis as
trutura sintática (dois ablativos de companhia interligados pela inferências extremas do jogo alusivo.
copulativa - q ue) eléxico semanticamente relacionável: sociisl populo; Neste ponlo, faz-se necessária uma advertência. Não cremos
natolpatríbus. A comparação revela sutilezas: além dessa espécie de que se deva ler a Eneida como "alegoria" cerrada de fatos contempo-
inversão, patríbus, er-n VIII, não se refere ao sentido familiar de "pais" râneos à época do poeta, como se começou afazer desde cedo e ainda
(nem teria sentido ern latim falar nos patres de uma mesma pessoa: hoje se faz; a epopéia não é um "roman à clef', e interpretá-la nesse
parentes é a palavra adcquada), mas aos senadores que acompanha- sentido leva aos absurdos de um Drew, que chega a identificar Acates
vam Augusto em Acio. Não seria descabido supor que aqui Virgílio com Agripa, Mnesteu com Mecenas, Mezêncio com Sexto Pompeu...rOi
força ao reconhecimento da carga afetiva contida, seja como for, em Ildoardo coleiro, que nos fornece essas referências, já que não tive-
patríbus, isto é, revitaliza sua etimologia pelo confronto com o passo lnos acesso ao velho livro de Drew (criticado, aliás, em várias outras
retomado, onde a palavra equivalente é nato! Desse modo, também obras de estudiosos da Eneida),não aceita esses desvios interpretativos
por via intratextual, o poeta contrasta, na descrição do escudo, o con- mas propõe também sua leitura alegórica; em livro recente, chega a
rcxto {amíliar e nacional que cerca Augusto à caótica associação de
seu rival Antônio, que tem a seu lado uma rainha egípcia, o que o rth o leitor é levado a se esquecer de que se tratava de guerra civil e, como apregoava a
próprio texto qualifica de nefas (v.688)104, povos bárbaros e deuses ideologia augustana, associa o conflito a uma guerra externa, com as forças do ociden-
monstÍuosos.105 De nossa parte, a convivência com a obra virgiliana te' representantes da ordem, combatendo contra as forças desagregadoras do Oriente.
veja-se QUINN. Idem íbidem. É verdade que, no meiã da luta, Virgíliorerrarâ a Dis-
nos estimula a tal leitura, pois o poeta se revela mestre nessas alusões
córdia junto a Marte, as Dirae e Belona (v. 700-703), em alusão a guerras civis, mas,
sub-reptícias, espécie de puzzles refinados, dirigidos ao leitor "aten- após mencionar a presença dessas divindades, o poeta introduz Apolo, que intervém
para secundar a ação de Augusto. Para nós, habiiíssimo escamoteamento da verdade
Abenação para os Romanos náo só por se tratar de uma bárbara (e todo o episódio incômoda para a ideologia augustana, já que otávio aparece como que combatendo
elabora a oposição entre o mundo civilizado de Augusto e a barbárie capitaneada por contra a própria guerra civil, como se esta fosse, de fato, um flagelo das hostes de
seu adversário), mas por ser mulher; certamente Antônio deveria parecer, na visáo Antônio, um inimigo externo como os povos orientais que íogem diante da interven-
propagada pela ideologia augustana, tão uxoriusqtranto o negligente Enéias do livro ção do deus. corroborando essa leitura, temos, além da uniáo concorde de todo o
IV...Os estudiosos de Virgílio têm apontado o primeiro motivo (aliança com uma es- Estado - povo e Senado - ao lado de Augusro, a descriçáo do triunfo do vencedor: toda
trangeira) cono motivação da censura explícita do poeta; Sérvio, porém, aponta como a cidade fortemente unida na alegria geral, no aplauso e no agradecimento aos deuses

razão maior o fato de uma mulher acompanhar o exército (ntulíer castra sequebatu), (v. 7 I 7-718), ambiente rnuito diverso do que se esperaria de urn quadro de pós-guerra
apenas roçando, a nosso ver, o dado a levar em conta - a reprovação romana à subor- civil. Para interessante contraste, recordemos o final dramárico e lutuoso do De
dinação do homem à mulhcr, aqui levada a extrcmas conseqüências, pois que se trata
()niunttone catílinae, de Salúsdo (LXI), em que à alegria do exército vencedor se
de partilhar a condução da guerra, assunto masculino por excelência na ideologia ro- ttrcsclirnr dor e luto (1ra uarie per ontnen exercitun laetitía, naeror, Iuctus atque gaudía
rnana, Há que valorizar uma e outra explicaçáo, cm nada excludentes. Carnões parece- ;t.gital)iìnrur "Assirn, por todo o exército, propalavam-se, confundidos, a alegria, a tris-
nos explicitar a dependência, considerada vcrgonhosa, de Antônio' mostrando o crpi- lczu, o luto c o júbilo"), por encontrarem-se entre os que tombaram amigos e familiares.
tão"Romanoinjr.rsto...presodaEgípcialindaenãopudi:ca" (OsLusíaclar, II,53,v.4-8; l:rn Virgílio, qrÌc tantas vezes lhe dá voz, nenhuma concessão ao sofrimento dos venci-
( l( )s Ì Ìcssc cpis(rdio triunfalista.
modernizamos a ortograÍia da ediçao de Epifâr"iio Diars).
Boa análise da ideologia que ressuma da dcscrição da batalha de Ácio tur cscttdo cttt ' " ,'l/,,,,!ool-lrllìo, ìldoardo. Tentatìca e srruttura dell'Eneide dí wrgln.AmsrercftìrÌì,
( ìriìrrt'r., 19r31, p.
QUINT, Dwid. Epíc antl Enpíre. Princcton, Princeton Univcrsiry Prcss, 1993, p. Z l-4iÌ. 108.

-t4t-
Paulo Sérgio de Vasconcellos f rlì'itrrs itrtct'tt'xlrt',tis u',t li tr c i lt t rlc Vi r1iílio

dizer, por exemplo, que a "guerra de Turno contra Enéias (...) repre- coirrc:iclôncia dc expressão, fruto da ur-ridade intríuscca dc uur lÌìcsrìì()
senta a guerra civil entre Otaviano e Antônio",r08 além de estabelecer cstilo, tla referôncia pretendida, provocada, e crÍadora de sentt&4llui-
a equação Enéias: Augusto, só aceitável se relativizarmos o sinal rkrs, porérn, são os limites entre uma classe e outra.
gráfico, isto é, rejeitarmos a equiparação absoluta, e Amata como "ale- Muitos estudiosos têm apontado a semelhança entre o episódi<r
goria de Cleópatra"!'oe tlrr lrcrda de Creúsa, que ocupa o final do livro II da Eneida (na verda-
É evidente que a Eneidacontém muitas alusões a fatos contem- tlc, não constitui o último narrado no livro, mas é o mais longamente
porâneos; aliás, várias referências devem a nós ser obscuras por causa tnrtado nessa parte final) e o mais que célebre episódio da perda de
da distância qLre nos separa da época de Virgílio; é mais evidente ain- lirrrídice por Orfeu, contado no livro IV das Geórgícas. Se Orfeu des-
da que Enéias lembra Ar.rgusto em uma série de traços, mas querer cc ao Hades para tentar resgatar a amada, Enéias volta a Tróia em
interpretar a sLra saga colno relato criptográfico das gestas do impera- chamas à procura da esposa perdida no caminho da fuga; e o mesmo
dor é, a nosso ver, absurdo e só pode mesmo suscitar os equívocos dos tlcstino sela uma e outra empresa: a impossibilidade de trazer de volta
estudiosos "alegorizantes" mais radicais. Preferimos a cautela de um rÌ csposa (coníunx, nos dois episódios). Virgílio nos estimula a compa-

Camps, que, apresentando alguns dos "ecos de história romana" (é o riìr - e confrontar - as situações por que passam Llm e outro através da
título de um capítulo de sua obra sobre a Eneida), reconhece que tais lulusão contínua. Note-se:

"reflexos, normalmente, não são o resultado de um processo sistemá-


Iamque propinquabam portis omnemque uidebar
tico".l l0 euasisse uiam, sr.rbito cum creber ad auris
Concluindo, também por via intratextual Virgílio associa uisus adesse pedrlm sonitus (En.ll, v. 730-732)
Augusto a Enéias como a Anquises e Ascânio, luminares da gens;
"E já me aproxirnava clas portas e parecia ter completado,
tenhamos em mente, todavia, que a epopéia do protagonista exalta o sáo e salvo, o percllrso, quando de repente aos meus ouvidos
fundador do império de forma muito mais sutil e profunda, literária, pareceu chegar, insistente, um som de passos".
do que o faria uma narrativa disfarçada e fiel de sua trajetória política.
Iamque pedem referens casus euaserat omnis
redditaqr"re Eurydice superas ueniebat ad auras
pone seqllens (namque hanc dederat Proserpina legem),
cum subito incautum dementia cepit amantem. (Geórg.lV, v. 485-
5. AurorexïUALTDADE 48B)

"E já, voltando sobre seus passos, escâpara a todos os riscos


Outro tipo de intertextualidade consiste na autocitação, isto é,
e, de volta, Eurídice caminhava em direção às súperas auras,
na evocação, em dada obra, de uma passagem de outra obra do tnesmo seguindo-o atrás (pois tal condição impusera Prosérpina),
autor; ainda que tal denominaçáo não seja ideal, poderíamos chamá-la quando, de rcpente, o desatino se apossou do incauto amante".
autotextualidade.De novo, cautela se faz necessária: distinguir-se-á a
Compare-se: iamquef iamque; omnemf omnis; euasissef euaseral;
subito cunf cum subito; ad aurÌslad auras. Este último paralelo é intc-
'*
rtn'
Op.cit., p. 19.
ressante: trata-se de palavras distintas, de auris (ouvido) e aura (aunr,
Idcnr, p.21.
rr0 (lAMPS, \X/.A. Inmtduzione all'Eneide. Milano, Mursia, 1990, p. 128. brisa), que Virgílio associa, pela semelhança Íônica e integraçuo :r,

- t48- -t49-
Paulo Sérgio de Vasconcellos Efcitos inteltextuais na nler'da de Virgíli<r

contexto. Note-se também o efeito de inversáo: euasisse uiamf casus vocos;de fato, temos evocação insistente, que atravessa todo o episó-
euaserac, subito cumf cum subito - figuras que poderíamos denominar dio e sotopõe o texto das Geórgícas sob o da Eneida, criando um
"quiasmos" numa gramática intertextual. intertexto, um texto bidimensional, multissêmico, elíptico.
Destaque merece a expressão pone sequens. é assim que Creúsa Quando Enéias retorna a Tróia em busca de Creúsa, faz ecoar
seguirá Enéias Q:one subitconíunx, "atrás segue minha esposa", v,775). por todas as ruas da cidade seus lamentos:
Sequenslsuórn o poeta insiste na reminiscência 6nica Qtone.r...)t".
impleui cÌamore uias, maestusque... (lI, v.769)
Que Virgílio confronta, e provoca o leitor a fazê-lo, evidencia-
se em brilhante alusão à diferença de motivos: Enéias perde a esposa "Enchi com meu clamor as ruas e aflito..."
por não ter olhado para trás quando da precipitaçáo da fuga; Orfeu,
como se sabe, por ter feito exatamente o oposto: No símile aplicado à dor de Orfeu, fala-se em Filomela, que
chora a perda de seus filhotes:
Nec prius amissam reqpexlanimumue reÍlexi (En.ll,v.74l)
et maestis late loca questibus implet. (Geórg.IV, v. 515)
"Não me dei conta de tê-la perdido nem prestei atenção..."
"...e enche de aflitos gemidos as paragens ao longe".
immemor heul uictusque animi respexit (Geórg.lV, v. {91)
Compare-s e: impleuíl implec, maestusf maestis.
"Esquecido, ail, e vencido em seu coraçáo, olhou para trás..." Enéias chama sua esposa pelo nome várias vezes:

A tradução do verso da Eneida escamoteia a presença do mes- maestusque Creusam


nequiquam ingeminans iterumque iterumque uocaui. (v. 7 69 -7 0)
mo verbo respicere, "olhar para trás", "voltar a atenção".ll2 Seja com() 7

for, Enéias não pára nem lança seu olhar à esposa - e assim a perde; "e aflito Creúsa
Orfeu pára e, infringindo a norma de Prosérpina, dirige o olhar ir em vão, sem cessar, de novo e de novo chamei".
Eurídice - e assim a perde. Notemos: nec respexÌf respexit, paralelt,
reforçado pela repetiçáo animunlanimi, casos diversos do mesmo subs- Orfeu, por sua vez, Eurydicem...uocabat (v.526).
tantivo. Insistimos: a coincidência verbal não é fortuita nem fruto dc O troiano é chamado pela sombra de Creúsa dulcis coniunx
redação paralela a ser modificada pelo autor em sua revisão frustrad,r (v. 777); no episódio de Orfeu, Proteu, em efusão lírica (é este perso-
da Eneida. A crítica filológica não deve ceder à tentação de tais eqtrí- rìaÍlem o narrador), menciona a dor daquele poeta pela perda da es-
lx)sa, que o leva a invocá-la constantemente em seu canto:
rrr Viryílio parece ter evitado usâr uma forma de seqrrrcomo o particípio s-eqrrc'nstl;rs
já ter empregado o mesmo verbo um verso acima (sequítunlut', crrr tc, t/ttlcís coniunx, te solo in litore secum,
Geórgícas, por
referência a Iulo - lI, v. 724). É um exemplo de sua notória prcdileção tr'tcla urtri;tt i, t. tc trcnicnte die, te decedcnte canebat. (v.465-466)
Ìr2 Numa tradução francesa literal, nec reqpexré assim vertido: "Et jc nc tournli-pls-l:r
tête-pourvoir"(stQ.ln:VIRGILE. LívresI, IIerIIIdclÉnc<rilc'. Ilxpliclrróslittórll,'nr,'nt "A ti, tkrcc csp()slÌ, :r ti, no litoral clescrto, cr'rnsigo mcsnì(),
par M. Somrner. Paris, Hachette [s.d.], p. 89. lt li, lto sol Itltsccltlc, it ti, trtl lì(ìclìtc, cltt'tttìvlì".
l

tl
Paulo Sérgio de Vasconcellos Efeitos intertextuais na fza'la de Virgílio

Com "nascente"e "poente", tentamos toscamente reproduzir um "Nem o barqueiro do Orco


efeito poético do original, a repetição Íônica da segunda pessoa que deixa que se atravesse mais o pântano a sua frente".
ecoa pelos versos: re (quatro vezes), uenienrq decedenre belíssimo
exemplo de um recurso que já mencionamos, presente no proêmio do Além da reiteraçáo de nec, temos sintagmas construídos seme-
De Rerun Natura, na traduçáo catuliana da ode de Safo (poema LI), lhantemente, em posição final nos versos, com sons que se ecoam:
no livro IV da Eneida(v. 305-330), emTibulo (1, 1, v. 59-60) - comum regnator Olympi/portitor Orci, semanticamente afins: perífrases que
nos hinos religiosos, o que explica sua presença na invocação a Vênus deÍïnem o papel das duas divindades, uma comandando as regiões
de Lucrécio, nas preces, e, como se pode ver pelos outros exemplos, na superiores, outra as inferiores; atente-se também à sinonímia sinitl
poesia amorosarr3 (e logo veremos que o episódio de Dido, no livro IV, pâssus.

está impregnado de linguagem típica da elegia amorosa latina). Ambas as mulheres se despedem com um lamque uale (En.II,
Outro paralelo temos na indagação reprovadora que a amada v. 789; Geórg.lV, v. 497) . Enéias e Orfeu renram inutilmenre abra-
dirigeaumeoutro: çar a sombra em que se transformaram suas respectivas esposas:

Qr"rid tandem insano iur.rat indr,úgere dolori...? (En.lI,v.776) Haec ubi dicta dedit, lacrimantem er muka uolentem
dicere deseruit, tenuisque recessit in auras.
"Que prazer tão grande em ceder a uma dor insana?" Ter conatus ibi collo dare bracchia circum;
ter frustra comprensa manus effugit imago. (.ãn. 1I,v.790-793)
quis tantus {uror! (Geórg.lV, v. 495)

Em Odorico Mendes:
"Que tamanho furor é esse?"

Compare-s e: q u idl q u is, tan tu ml tantus, insanol furor. "Nisto, o fallar me corta, e em auras tenues
Esvaecida, ao choro meu furtou-se.
Ambas as esposas não podem sair de sua condiçáo, impedidas
Tres vezes fui lançar ao collo os braços,
uma pelo próprio Júpiter, outra por Caronte, o guardião do Orco:
Tres presa embalde se desfez a imagem".

nec te comitem hinc portare Creusam


Nas Geórgicas,
fas, aut ille sinit superi regnator Olyrnpi. (En.II,v.778-779)

"Não é lícito levar Creúsa daqui como tua companheira Dixit et ex oculis subito, ceu fumus in auras
nem o permite o soberano do alto Olimpo". commixtus tenuis, fugit diuersa, neque illum
prensantem nequiquam umbras et multa uolentem
nec portitor Orci dicere praererea uidit... (N, v. 499-502)
amplius obiectam passus transire paludem. (Geórg.IV, v. 502-503)
Odorico assim traduz:
lll
Trata-se do que os alemães denominam "Du-Stil", que insistirin sobre o prcstígio do
destinatário, segundo EVRARD-GILLIS. La Récunence Lexicale dans I'Oauvrc'<lr' "Aqui, sumitr-se em fumo, esvaecida
Caculle. Paris, "Les Belles Lettres",19?6, p,75. Nunr ur subtil; ncm poudc ver o amado,

- l5') - _ 153_
Paulo Séryio de Vasconcellos
fl!'119,111r-llqrrrtis uu I tteì rlt t tlc Virgílio

Que abraçando plìantasmas almejava "Quc fazer? Para onde se rançar, arrebatada pcra
Muito falar..." scgr"r..a vcz s.rì

Com que pranto comover os Manes, que numes,


Note-se: dicta dediddíxit, et multa uolentem dicere (em am- com sua uorrÏ't""t"
bos, na mesma posição no verso); tenuis in aLrrasf in auras...tenuis; No caso de Enéias, nenhuma efusão patética, após
fru s tra c omp re n s afp.e ns a n tern n eq u iq u a m; effugi tl rtgi t. De passagem, o últimcr
crÌcontro com a esposa que nunca mais verá;
sua subjedvidade se
observemos que algumas reirerações, confrontadas, criam ìm efeito oculra na ação, objetivamente narrada pelo próprio
de "inversão", obviarnente só acessível à leitura alusiva. prárãgorrisra; é
como se o personagem tivesse de fato cedido
aos desdnos, conforme
É.o*.n", em virgílio a aproximação de episódios ou passagens creúsa o incitava afazer,e assumido, na concretude
da ação prática,
em que o poeta parcce vislumbrar semelhanças, unindo, por exem_ as funções de chefe de sua comunidade,
transcena."J" i"a" será a
plo' dererminado passo da l\íada e da odisiéia num só úip"rr"r,o; primeira v e2...) sua individualidade:
aqui' uma situação similar deve ter incitado à comparaçáo, facilitada
e induzida por Lrm dado curioso que os comentado res da Eneidaapon- Sic demum socios consumpta nocte reuiso. (En.
II, v.795)
tam: uma tradiçao zrão segrrida por virgílio denominava justamentc
"Assim, no fim da noite volto a ver os companheiros,,.
Eurídice a esposa de Er-réiasl Nas palavras de
Jacques Heurgon:
Final demasiado frio para o episódio, numa perspectiva
"É evidente que a homonímia C.(scílicr:rCrcúsa)/Eurídice inspirou senti-
Virgílio esta reprodução".r ra
a men[al, românrica; final digno de um herói que
se sacrifica individu-
almenre pelo cumprimento de uma missão
divina. Enéias é o chefe de
Mas é preciso ressaltar a criação de s'btexto que essa retomada um povo em exílio; no exercício dessa função,
deixa em segundo p[a-
propicia: Enéias como orfeu, tendo de suportar como este as injunções no- seus afetos para revelar-se na açao
salvadora; lembre-"o, d" ,u",
de um fatum exigente; no respectivo contexto, veremos que um está patavras aos companheiros após a iempestade
que quase destruiu a
destinado ao sucesso, por sua obediência aos ditames divinos; o outro todos, narrada no livro I; o herói tenta tranqüirizar
seu povo e, para
pateticamente perde a si mesmo além da amada, como dirá Eurídicc tal, reprime no peito a dor profunda que no momento
o invadia:
(et ne...et te perdídit,../,v.494), por náo ter respeitado a,,lei de
Prosérpina", náo possuindo, pois, aquela pietas irrestrita que distin- Talia uoce refert curisque ingentibus aeper
spem uohu sirnulat, premir altum cordeiolorem (I,
gue Enéias. A seqüência dos dois textos revela, ,-ro .onfrãrrto, umiì . v. ZOB_209)
significativa oposição: orfeu se debate na aflição, em discurso indirc- "Tais palavras pronuncia e, triste com as ingentes
preocupações,
to livre (reportado pelo narrador, proteu): simula a esperança no semblante, contém no
coração a dár irofunda,,.

Quid faceret/ quo se rapta bis coniuge ferret? Quanto a orfeu, entrega-se, após a perda definidva de Eurídice,
Quo fletu Manis, quae numina uoce mouerer ! (Geórg.lV, v. 504_505) ao lamento incessante, sozinho (em contraste
com os sociosda Eneid;),
rra "Relrrocl-rção"
em meio a Llma dura natureza:
é, no original italiano, dr44tírne. Heurgon sumariza iì complìração (1.(.
sc tcnr fciro enrrc os dois episódios.Yer Enciclopedia wrglliana,
torìro Ì, p. òJ2, u",ì',"r,. Solus Hyperboreas glacies Tanaimque niualem
(,'n't t.ç, t.
aruaque fuphaeis numquam uiduata pruinis

-r55_
Paulo Sérgio rle Vasconcellos lilì'itrrs irrtt'r1t'rlrr :ús n.t ti tu,ìtht rL, Vir.litlio

iustrabat, raptam Eurydicern atque inrita Ditis Quali.s apcs iìcstatc noua pc[ florca rurir
dona querens (Geórg.IY , v. 517 -520) cxcrcct sub solc labor, cum gentis adultos
cducunt fetus, aut cum liquentia mella
"Sozinho, os gelos hipcrbóreos e o nevoso Tânais stipant et dulci distendunt nectare cellas,
e os campos nunca dcsprovidos das geadas dos Rifeus aut onera accipiunt uenientum, aut agmine facto
percorria, a perda de Euríclice e de Dite os vãos ignauom fucos pecus a praesepibus arcent;
dons lamentando". feruet opus redolentque thymo fragrantia mella. (I,
v. 430_436)

Por via intertextual, ou, mais especiÍicamente, autotextual, acen- Em Odorico Mendes:
tua-se um aspecto da pcrsonagcm Enéias: sua submissão incondicio-
nada ao destino, que requer alrtocontenção em visra de fins maiores - "Taes lidam pelo prado ao Sol abelhas
Na florea primavera, emquanto ensaiam
eis um herói que, sofrendo e se lamentando no seu íntimo, no entanto
O adulto enxame, ou doce fluido espessam,
objetivamente age. do nectar flavo retesando as cellas;
Deixamos para o final da análise desse episódio o dado a nosso Emquanto a carga das que vem recebem,
ver mais "inquietante"do confronto intertextual; Virgílio explicita a Ou em baralha cxpulsam da colrnôa
Os zangãos, gente ignava; a obra ferve,
culpa de Orfeu:
A tomilho recende o mel fragrante".
cum sr.rbita incautum dementia cepit amantem (Geórg.lV, v. 488)
Além de uma reminiscência homérica (Ilíada II, v. 87_93),il5
temos, aqui, uma retomada signiÍìcativa do episódio
Ora, no episódio da perda de Creúsa, vemos que Enéias comete das abelhas de-
senvolvido no livro IV das Geórgícas. citam-se trechos
um erro fatal, por ele atribuído a um nume hostil (ll, v. 735): em sua de versos ou
versos inteiros sem modiÍïcação alguma:
precipitação, afasta-se dos caminhos conhecidos (II, v.736-737) -
avulta a possibilidade de que a esposa se tenha perdido nesse momen-
cum genris adultos / educr,rnt fer:is _ Ceórg.IV, v. ló2b_
l63a;
t9, por descuidcx, o troiano, então, mostra-se tão incauto quanto Orfeul aut onera accipiunt ueníentum, aut agmine facto _
Geórg.lV, v. I 67;r
-' ró
E verdade que a própria sombra de Creúsa explica o acontecimento ignauom fucos pecus a praesepibus ui."rrt _ Geórg.Iy,ï.
f O'S,
como estratégia do destino para ali retê-la, mas não deixa de surpre- Feruit opus redolentque thymo fragrantia mella _"G"Org.lV,l.
tOq.,,,
ender que o herói seja mostrado em situação tão delicada, nesse as-
A ediçao Perret
da EneÍda, que vimos seguindo, e a de saint-
pecto comparávelcom a de Orfeu. No capítulo seguinte, quando ana- -Denis para as Geórgtcas, ambas integrando ,,Les
lisarmos o livro IV, voltaremos à questão; veremos que Enéias parece a Joreçao da série
expor o ocorrido com um certo sentimento de culpa que a Dido das r15 veja-se
MACRoBio, sat.y,1r, r. Em Homero, num símile, os sordados grcgos
Heróídas de Ovídio explorará... comparados com abelhas; daqui o ponto cre partida para
saìo
â concepçãoìã y,.,.,it"; a"
Outro relevante caso de autotextualidade comparece num símilc resto' áerru?re noua perfÌorea r./raevoca En'dv1eow
e(rpruciìotv
gg), (11 II, v.
"sobre as flores primaveris". Macróbio cita o paralelo
do livro I; Enéias admira a construção de Cartago, então em anda- rioridade estética de Virgílio sobre Homero.
como
"*"-pto
J" o.ìïi u,,.,r ,up"_
rnclìto, e o poetâ descreve o fervilhar do trabalho, comparando opc- rró Na edição
das Geórgtcasque seguimos, não há vírgula antes
r17 de aar.
nirios a abclhas: Nas Ceórgícas,vírgula depois d,e opus.

156 - -t57_

dr
I
l':tttLr S|t 1iio rl(' V:ls( oll( ('llos lrlIit0s irrlt.r lt'rlrr',ris rr',t l:tttitLt rl' \'rIr,rlio

Ilcllcs Lcttrcs", alónr clns pcquclìrÌs clifcrcnç:ls (luc iìl)lescrì(lìrìÌ(ìs ('nì :,rrl lìtllììlÌ grltttttiliclt itrtcrtcxtrritl quc av:rlic O cclnlìrtrrtt) cl)tt.c ()s
IÌì()s
nota, discordam, neste úrltimo verso, mais scriauìelìte ; lt printcirrr ttrr.r tlois xtos. (lcrtltntcutc Virgílio contava qLle seLl lcitor frLririlr clcssc:
te
{eruet, a segunda {eruiü é óbvio que esse caso de intertcxtr.utliclrrlc lìriìzcr rcíìnaclcl dc apreciar a habilidade e fineza com que o poeta ciLu
induz a homogeneizar a forma verbal; o fato de que a discrcpâncirr ;r si urcsmo, adaptando, porém, suas próprias palavras ao novo cor-Ì-
ocorra na mesma série de textos criticamente editados, sem comentít t('xlo c cfetr-rando a inversão entre comparante e comparado: das abe-
rio especial sobre a passagem, é digno de reprovação. A descoberta cil llrrs "humanizadas" do poema didático aos homens semelhantes a
alusão deve trazer, mais uma vez, elementos para a crítica filológica. rrbclhas do poema épico.rr8
Há versos reproduzidos na Eneida com ligeira modificação: É possível e jusrificável que o leitor, a partir do paralelo estabe-
lccido, aprofunde sua leitura; nas Geórgrca.r, o poeta desenvolve a
edr.rcunt íetus, aut cr.rm liqr.rentia mella - Ceórg; educunt fetus; aliae rroção de uma realeza a dominar :r colmeia (cerea regna, Iy v . ZOZ)
purissima mella, v. 163; , ;
ntt EneÍda, inisitir-se-á no epíteto de regina, corìstantemente aplica-
stipant et dulci distendunt nectare celias * Ceórg.: stipant et liquido
distendunt nectare cellas, v. 164. tlo a Dido.tre Por outro lado, nas Geótgtcas, virgílio apontará os efei-

Podemos dizer que o símile da Eneida, com exceção de seu iní- rr8 outro exen-rplo sen'rclhante,
envolvendo, tan-rbém, uma retomada, na epopóia, clo poe-
cio (Qualis apes aestate noua per ílorea ruraf exercet sub sole labol, maanterior:nolivroxlrdaEneit/a,Turno(v. 10i-I06) cTurnoeEnóias (v.7I5-7z4)
que introduz a comparação, é todo realizado com elementos da passa- são comparados a tourrìs; no prin'rciro caso, o rútulo é comparado ao animal que se
gem das Geórgicas. prepara para um combate; no segundo, rútulo e troiano a animais ern displta pclas
fêmcas do rebanho, em versos que ecoatrì, cor-Ì-Ìo os colnent:ìdores obsewam (Conilgton,
Dir-se-á, talvez, que Virgílio, ao descrever algo semelhante ou por exernplo), uma passagem das Geórgicas (lll, v. 219 e ss.) onde é irnplÍcira a
idêntico, tem tendência a se repetir; na verdade, essa explicação é humanização de tor-rros dcscritos na lnesrna situação. Na epopéia, símiles que conìpa-
demasiado ingênua, pois não se trata de repetição; o confronto cria ram homcns a animais, técnica homérica tradicionâl; rtas Gc-órgicas, humanização
inplícíra dos últirnos, para ilustrar o podcr universal do impulso amoroso. Interessa-
curiosa relação: nas Geórgicaô como todo leitor do poeta reconhece,
nos ressaltar quc o elo ir ser ícito entre as duas obras niro ó incitado apcnas pcla relação
as abelhas são descritas como se constituíssem uma comunidade aná- de iuvcrsão na técnica da similitudc, mas, sobretudo, pelos vários ecc'rs textr:ais que
loga à humana (daí a possível interpretação simbólica ou alegórica do unem, niì memírria do leitor intertcxtual, os textos e corìtcxtos. Como fizemos acima
episódio). Ali, o vocabulário da política e da sociedade humana e, com a descrição das abell-ras nas Geórgícas,poderíarnos tambórn aqui apontar os vários
índices da antropomolfização dos touros nessc pocrììa; citernos sonìente este, bastante
particularmente, romana, aparece com freqüência; veja-s e: consortía eloqticnte: o animal vcncido se retira "dos reinos dc seus ancestrais" (regnìs excessit
tecta f urbis habent nagnísqLte agitant sub legibus aeuom I et patriam auítis,rrr,v.228). A relação "autotextual" incita-rxrs iì comparar: como os tor-rros clas
solae et certos rToLrere Penatís (v. 153-1,55); {oedere pacto (v. I5B); Geótgicas, os l-rcróis da Enci/a também travarn luta pclo poclcr,
l-rcr um regrru2r, de
certa íorma consubstanciada na disputa pela rnão da filha de Latino, por nais tlue
domorum (v. 159); gentís (v. 167), etc.; sobretudo: Qtaruosque)
oblitere csse aspecto n transcenclcntalização do papel de Enéias, artífice de uma missar6
Quirites (v. 201), apelativo que designava os cidadáos romanos. divina, sccundada pclos clcstüros. Podc-se vcr urìiì análise da inter-Íclação entrc essL-s
Enquanto as abelhas são assim comparadas (mas sem uso do sí- textos dos dois poernas virgiliar-ros ern NE\íMAN, J. Zre Classícal Eptc TratJitiptt.
'Wisconsin,
mile épico, de forma menos explícita) a homens que trabalham para a The University oíWisconsin Press, 1986, p. 13l-133.

comunidade, na Eneída os homens é que sáo comparados com abe- "' Só no livro I, quc é o que nus ocrrpiì aqtri, remos: rtgína, rtosvcrsos 303, 496,5?,2,697
,
728; rcgrnan, em 594, 674; além disso, nore-sc; regit, r'ro verso 340; ín regiu, v. (t)r;
lhas, dessa vez através do símile: curioso processo de inversão, se pen- regali /uxu, v. 637; regalìs nlevlsa.s, v. 686.

-r58- _159_

tir
l':tttkr St;t'1iio rlt' V:tst ottt clkrs lìfcit<rs irrtcrtcxtuttis ttt Iitteilt rle Virgílio

"rci" (sirbc-sc clÌrc s() rì(,


tos devastzrdores sobrc lì cohììeia cla pcrda clo rr rrssociução virgiliana entre o comandanle real e seu povo, as abclhlrs
século XVII se descobrirá qtre não se trata dc "rci", t.turs rlc "r'rri t'scLtttreitt?
nha"...):l20 Tal leitura fica como sugestáo: não há mais elementos formais
sriliclos para confirmá-la; entretanto, o efeito de inversão por nós apon-
Rege incolumi mens omnibus una est;
tlr1o é resultado seguro da análise intertextual - mais que revelar a
amisso rupere fidem constructaque mella
diripuere et cratis soluere fauorum. (Geórg.IY, v. Zl7-214)
lurbilidade técnica do poeta, possibilita um efeito alusivo de contraste
rr que Virgílio sutilmente conduz o leitor.
"lncólume o rei, todas têm um só desígnio;
perdido, rompem o trato e os méis fabricados
saqueiam e dissolvem as celas dos favos".
6. "CoRneçÃo" estÉrca
Da mesma forma, a notícia da morte da rainha Dido provocrr
efeito comparável ao da destruição de Cartago ou Tiro pelos inimi- Retomando modelos, o poeta pode resgará-los desviando-se,
gos: porém, em certos aspectos estilísticos e fazendo sobressair a diferença
rlo confronto entre seu hipertexto e o hipotexto evocado. Trata-se do
non aliter quam si immissis ruat hostibus omnis tlue poderíamos denominar "correção estética" do precursor, um dos
Karthago aut antiqua Tyros, flarnmaeque furentes
l)ontos mais difíceis de detectar e interpretar no domínio intertextu-
culmina perque hominum uoiuantur perque deorum. (En, IY,
rul,r22 não só porque se devem distinguir as intenções do poeta, avaliar
v. 669- 671)
que padrão estilístico pode estar rejeitando como inadequado a seus
"Como se, ao assalto dos inimigos, ruísse inteira ideais artísticos, mas também porque a obra dos poetas arcaicos recu-
Cartago ou a antiga Tiro, e as flamas furiosas perados por Virgílio nos chegou em estado fragrnentário. Antes de
pelos tetos dos homens e dos deuses se alastrassem". mais nada, esse desvio do original não invalida o valor de homena-
gem da citação; o poeta venera os modelos que incorpora, ainda quan-
Como deixam ver os versos das Geórgíca.r, o destino de toda a
clo opera sobre eles a "retificação" estilística que lhe parece adequada.
colmeia está ligado ao de seu "rei"; quando o governante está bem,
Podemos denominar o processo como um clinamell em nível formal,
ela trabalha unida pelo objetivo comum; ora, tendo lido o episódio dt:
para empregar a nomenclatura de Bloom:
Dido no livro IV, lembrando-se do símile, em leitura retrospectiva,
diante do estado de dissolução e negligência com que a paixão obses-
siva da rainha contamina seus próprios súditos,r2r como não recordar "Não mais se levantam as torres iniciadas, a juventude nas armas
náo se exercitâ nem os portos e os baluartes parâ a guerra
fortificam; pendem, interrompidos, os trabalhos e as ameaças
r20 Ver LYNE. Furráer in Vergilb Aeneíd, p. 7, nota 9.
Voíces
Ingentes dos muros e o engenho que atingia o céu".
l2l Non coeptae adsurgunt turres, non arma iuuentus 122
Será preciso observar que esse aspecto da arte alusiva escapa ao nosso interesse central
exercet portusue aut propugnacula bello que é o da geração de sentidos na leitura intertextual? Do confronto com um predeccs-
tuta parant; pendent opera intcrrupta minaeque sor, surge, sim, um certo efeito de sentido, mas, de certa forma, metalingüístic(), cxrL'-
murorurÌ ingentes aequataque machina caelo. (lV, v. 86-89) rior aos elementos internos da obra.

- 160 - -16r-

t
l'ltttkr Stirliirr rlt' \':tst ottct'lIrs liÍcit()s intertcxtu ,tis nir litrcilu tltr Vilgílio

"Utn lxrctl sc clcsvia ao lcl () p()crììiì clc scu l)rccursor rlc tlrl lirrrrrlr:r Coq õè lépnç (ú évôou bnerlópeuoç nupì no).).4),
exccLrtar utÌr clinamen com rclação a elc. Isto iìparccc conr<l u[n rrrovi- rcuioqu peì"õÓpeuoç d,rcoÀotpeQêoç otcrÀoro,
mento corretivo em seu próprio poema, sugerindo quc o poclÌ'Ìiì llrccrrr- rc&vro1ev appoÀcõr"1u, funò ôè (ÓÀcr rcyrdvcr KÊìÍcrl,
sor fora acurado até certo ponto, mas deveria, então, ter sc dcsviado, óç to0 Kc{,}.à, pée0pa ruupi QÀêyeao,çte ô'Óô<op' (,í. XXI,
precisamente na direção em que se move o poema".l2l v.367-365)

Um exemplo em miniatura temos no livro VII da Eneidrt.l;t,, Na tradução não muito fiel de Carlos Alberto Nunes:
operação simples de "correção", o poeta omite um dado do precur.s,
" "Tal como a banha de um gordo cevado depressa se funde
que está imitando; para o leitor que tem em mente o trecho originrrl,
num caldeiráo colocado nas chamas de lenha bem seca,
ressalta-se a escolha feita pelo poeta. Eis os versos, que contêm urìr e, pela ação do calor, cresce e ameaça ao redor derramar-se:
símile a ilustrar a cólera terrível de Turno (amor íerrí et scelcntr,t ferve, desta arte, a corrente nas chamas vivazes de Hefesto."
insanía belli/ ira super), nele incitada por Alecto:
Virgílio suprime o detalhe da banha do porco a se derreter' esse
magno ueluti cum Ílamma sonore "wenig erhabene Detail", inadequado ao estilo do poera, como obser-
uirgea suggeritur costis undantis aeni va PÕschl;t25 e náo se pode esquecer a crítica que sobre o texto homé-
exsultantque aestu latices, furit intus aquai rico se vinha fazendo, sobretudo em época alexandrina: certamente
fumidus atque alte spumis exuberat amnis,
não deixaria de exercer influência sobre Virgílio.
nec iam se capit unda, uolat uapor ater ad auras. (VII, v. 462-466)
Referendando tal interpretação, é notável, neste trecho da
A tradução de Odorico é rica em sonoridade, ritmo e concisão: Eneída,o acúmulo de formas da linguagem mais elevada, afastada da
expressão prosaica; Conington fala em "dignified language":I26 sonore,
"Qual da undante caldeira, quando ao bojo "doublet poétique de sonui';127 Ílamma uirgea, com a ousadia do
Lignea flamma se applica estrepitosa, epíteto (literalmente, algo semelhante ao excelente "chama lígnea"
A agua enfurece e ferve, em bolhas salta; de Odorico; mesmo processo em VIII, v- 694: stuppea ílamma,"cha-
Fumea espumante a enchente, sem conter-se
ma de estopa", ou, na versão de Odorico: "fachos estupeos"); aeni;
Trasborda e vai-se em turbidos vapores".
Iatices, "termo exclusivamente poético e nobre";128 aquai, solene
Na llíada, Homero compara o rio Escamandro à água ferventc; genitivo arcaico, muito empregado por Enio e Lucrécio; amnis' evita-
por certo, com a menção de amnÍs,tza Virgílio acena, cúmplice, aO do na prosa. Também a ordem das palavras é refinada: o sujeito ílamma
leitor informado: está a imitar aquela passagem; entretanlo, retira do inserido enrre o sintagma magno sonore; a enfática posição inicial do
símile o detalhe mais realístico, como se verá; em Homerol verbo em exsultant...furit... e uolat...;bem como a posição em final de
oração dos sujeitos (latices,amnís, unda) em três versos seguidos.
rx BLOOM, Harold. Op. cit., p.43.
r2a Literalmente "rio"; mas a expressáo aquar antnisé geralmente traduzida, como em Odorico,
de uma forma que escamoteia esse aceno ao passo homérico: "masse liquide" (Bellessort,
"t
12ó
Op.cit., p. 154.
Op. cir., vol. III, p.48.
Perret); "fiotto dell'acqua" (Canali); "fiotto ondoso"(Bacchielli), Notemos rambém rhru.s r'z? ERNOUT &, MEILLET. Dicrionnaire Etynologique de la Langue Laritte' P'aris,
("dentro"), retomando o homérico ëyôou e a presença de oraçáo completa em final dc Klincksieck, 1951, p. 1122.
verso e de símile, destacada: uolat uapor ater ad aurasl (ée ô' Òôop. tze PPNQIJT-MEILLET, p. 61 l.

-t62- -163-
lÌlì'ilos inl('rlc\lutris rr'.r litrtirht rk' Vitlitlio
l':rtrlr Stilgio rlt' Vrtst:ottt:t'llos

çio clo cstilo ao objcto reprodr-rzido: LuÌìa cnuurcrnçito sistctturtir'rt-


Acrescentc-se a riqueza dos jogos fônicos e tercmos uma iclóilt tlo rc-
rììe rìtc ordcnacla. E curioso observar, por outro lado, qr,rc Virgílio, llrr-
finamento cerrado conferido à sua expressáo poética por Virgílio tri,
rlindo ao modelo, também faz uso, nos dois catálogos, de exprcssÕcs
texto que retoma uma passagem mais prosaica de Homero, cuja poe
rlrrc lcrnbram as homéricas:
sia não repele elementos mais realísticos; em suma, Virgílio parccc
"filtrar" o texto grego pela estética alexandrina...
qurNomentum urbcm, qur Rosea rura Velini,
Aos catálogos do livro II da llíada (dos navios v. 484-760; dos Tetricae horrentis rupes montemque Seuerr'rm
qrir
melhores guerreiros e cavalos aqueus: v.761'770, qr,re tradicional- Casperiumque coh-rnt Foruiosque et flumen Himcllae,
mente se considera agregado ao anteïior; dos troianos: v. 816-877), o qu^iTiberim Fabarimque bibunt, quos frigida misit
poeta latino contrapõe duas composições, inseridas em livros diferen- Nursia (VII, v. 7lZ-716)

tes: o arrolar dos povos comandados por Turno está no livro VII (v.
"Os que habitam a cidade de Nomento, os róseos campos do Velino,
641-817); o catálogo dos navios etruscos no livro X (v. 163-714) - a os rochedos da escarpada Tétrica e o monte Seveto,
relação estreita entre os dois vem salientada pela invocação às Musas e o Caspério e os Fórulos e o rio Himela,
que os abre a ambos, iniciando com o mesmo verso: os que bebem do Tibre e do Fábaris, os que enviou a fria
Núrrsia,.."
Pandite nunc Helicona, deae, cantusque mouete (VII, v. ,r1ïãt
A tradução nao dá conta da repetição do relativo, bastante
"Abri agora o Hélicon, deusas, e suscitai os canros!" deselegante em português. No catálogo do livro X:

Virgílio talvez procure, dessa forma, evitar "a mono[onia da graQueurbem liquere Cosas, qurs.'. (v. 168)
Ilíada, que junta urn ao outro os catálogos dos dois exércitos inimi-
gos"'r2e mas além de tal mudança estrutural da composição, a aernulatio "Os que deixaram a cidade de Cosa, aqueles a quem..."

com o modelo se evidencia na forma mesma da estrulura sintática.


grzCarcte domo, qrltsunt Minionis in aruis (v. 183)
Macróbio já o notara: aos infindáveis oi õe e oite que comparecem
no longo passo homérico, Virgílio contrapõe fórmulas de transição "Os que residem em Cere, os qr,re habitam os campos do Minião".
mais variaàas para evitar o fastÌdiunt rr0 É visível, de fato, a preocupa-
ção com a uariatío, um dos bem conhecidos princípios estéticos da Udlizando um topos da poesia épica, o catálogo, Virgílio reto-
arte alexandrina, ainda que o resultado seja discutível. Para a perso- ma o modelo homérico e lhe impõe sua marca pessoal, corrigindo-o
nagem de Macróbio, por exemplo, a "divina simplicidade" de Homero pela uarÍatio; já Apolônio de Rodes o fizera;12 assim, o poeta latingr
é insuperável, com seu efeito estilístico singular: a impressão de que passa o precursor grego pelo crivo da estética de que Apolônio dc
realmente se passa em revista, como numa enumeração de guerreiros
dispostos em fileiras.131 Em Macróbio, louva-se, portanlo, a adequa- rr2 Veja-seAPOLLONIORODIO. LeArgonauriche. InÍoduzioneecommentodi Gtritl,r
Paduano c Massimo Fusilo. 2. ed., BUR, 1988, p.83, nota iros vetsosT3-227,c HEINZI:
CARTAULT. Op. cit., volume II, p.723.
''ze
rro MACROBIO. Sar. V, 15, 14. Op. cit., p. 366-368, nota 2 (sobre a rendôncia geralà uariatioern Virgílio c () lìr( ( (
t]t tatnquant per aciem dìspositos enunleïans (V, 15, 16) dente de Apolônio).

-t65-
- 164-

ll -i.
Paulo Sérgio de Vasconcellos liÍt'itr rs irrtt'rIt,rtrr ús nt l:, rtt i t h t tlt, Vir'1iílio

Rodes foi um dos mestres. A leitura intertextual leva ao confronto e Virgílio dcixara patente esse tipo de rclaçáo couì rì obnr rlc rrrrr
ao julgamento estético. rrr.clckl como Ênio, pleno de altos e baixos, se é verdadeira a ancrlotrr
Mas o exemplo mais claro de "correção" do original está nestes r r'portada por Cassiodoro:

versos:
Vergilius, dum Ennium legeret, a quodam quid faceret inquisitus
At tuba terribilem sonitum procul aere canoro
respondit: "Aurum in stercore quaero".rl5
increpuit (lX, v. 503-504)
"Lendo Virgílio a Ênio, tendo alguém lhe perguntado o que estava fa-
"Mas a trornbeta tcrrível som em seu bronze canoro ao longe zendo, respondeu: 'Procuro ouro no esterco' ".

I
estrepitou..."
Examinemos, agora, um outro exemplo possível de "correção";
il Sérvio notara a dependência de Ênio: um verso apontado una- vcjam-se estes versos de Homero:
I
nimemente como exemplo de mau gostor33 e de exagero no uso dos
recursos Íbnicos, a que o poeta arcaico não se furtava: Aioç ô'oüréd êprpue'Bró(ero 1àp Bel.éeoou
õá,pva pw Zrlv6ç te uóoç raì. Tpôeç ccyauoï
tl

ii
ar ruba terribili soniru rararantara dixit (fr. 140)
BâÀl,outeç' ôerulu ôe nepï rporagoror QcrervÌ1
ìt núÀq€ BaÀl.opéuq rcrucrl{v ë1e, B&À}.eto ô'ai.eì.
ròoc Qòô,op ei:noi1O''b ô'oprotepòu côpou érapueu,
I "Mas a tuba, com terrível som, "taratantâra" disse..."
i ëpneôou cteu é1cou oóocoç aióÀov. ouõ'bõóucyto
I i+rQ <xÒtQ neÀepi(or bpetôouteç Bel"éeooru.
O emprego da onomatopêía taratantara e o uso excessivo da aieì. ô'&pycl,êç ë1ed üo0pcrtr, rà,õ ôê oi tôpòç
I aliteraçáo em lrl, sem contar a banalidade do verbo, maculam o ver- n&vr,o9ev dr peÀécou nol"òç éppeeu, ouôê nn eï1çv
I

l
so; Virgílio utiliza a primeira parte, bem mais feLiz, e modifica a segun- h,pnveôoor' navul õè rcrrby rcrrQ botrlprx,uo. (ILXVI,
da, desprezando a onomatopéia fácil e atenuando a aliteração. Como v.102-111)
bem sintetiza Sérvio:
"Ájax náo mais resistia: era dominado pela força dos dardos;
domava-o o desígnio de Zeus e os ilustres troianos
"Virgílio fez muitas transformações desse tipo, ao encontrar asperezas".rs4
a lançar projéteis; terrivelmente, ao redor de suas têmporas, o brilhante
casco, atingido, ressoava; era sem cessar aringido
O leitor é levado, assim, a comparar a nova roupagem do verscr nos adornos bem feitos; ele sentia cansaço no seu ombro esquerdo
com a do texto de partida e apreciar a mudança estética por que pas- por segurar sempre, firme, o escudo cintilante; e não conseguiam,
sou o modelo. ao seu redor, demovê-lo cobrindo-o de dardos.
Era-lhe sempre diÍïcil a respiração, e o suor
de todos os membros do corpo corria, abundante, nem lhe era possível
Dr lJma amostra de "métodos inescrupulosos no uso da língua artística", segundo COR- retomar alento: por toda parte um mal sucedia a outro mal".
TE, Francesco della. Disegno Storíco della Letteratura Latina. Torino, Loescher, 1984,
p. 50.
tra Er ntulta huius modi Vergílius cum aspera ínuenerít mutar (Ed. THILO, tomo Ì1, p.
351). tt5 Apud Enciclopedia Wrgiliana, v. V**, p.
453

-t66- -167 -

[r t
lil('ilos irl('r l('\tlt itis tt,r l, r t r' i th t tlt' \ ir'lirlro
Paulo Sérgio de Vasconcellos

versos em Quapto a Virgílio, rceiabora a passagclìl [,prú'riclt, lt(t:tvtis rlt'


Segu'do nos informa Macróbio,136 Ê1io retomou tais Ê,-,iu; uìrcrs.rt-,ng",tt,.-tgora, é Turno, sitiado pclos troirtutls (c,'t,t,' Á1"'
.popãiu, no episódio do tribuno Caio Elio;137 em sua transcriçáo: * rì grÌcrra c{e Tróia parece repetir-se...):

unclique conueniunt uch-rt in-rber tela tribuno' Ergo ucc clipco iuucnis sr.rbsistere tântuln
conÊgunt parlìlanì' tinnit h:rstiiibus umbo rrcc dcxtra tralct, iniectis sic undique tclis
obrr,ritur. Stretrrit adsiduo cartÍì tcl.Ìlpora circutn
aerato souitu galcac scd ncc pote quisquam tinnitu galea et saxis solida acra fatiscttut
undiquc nitcndo corpus discerpere ferro discussaeque ir.rbae capiti ucc sufficit utnbo
semper abr'ruclatltcs hiistas írangitque quatitque' ictibus: ingemiuant hastis et Trocs et ipse
totum sudor l-Ìabct corpus multumque laborat fulmiucus Mr-rcsther-rs; ttllÌr toto corporc sudor
nec respirandi fit copia, pracpete ferro liqtritrrr et piccm (nec rcspirare potestas)
Histri teÌa t.nantt iacientes sollicitabant' Íl.nncu agit, fessos quatit acgcr anhelitr-rs artus. (lX, v. 806-8l4)

"De toda parte provôrn' como chuva, dardos contra o tribuno; "POrtnntO, o jOVe ru nã<t é capaz, SCquCr, dc rcsistir nctÌ1 c()lÌì t'r cscttcl,r
.r^u"*-r. to .r..,do; ribomba, com as lanças, a saliência"' lÌcll1 colìì a clcstra, a tll potrto dc dardos larlçados clc ttlcla partc
ó cobcrto. Iìctrmbir conr nrírlo corìtílìuo ao rcdor das tôtrtp<tras cavitslle
com brônzeo ressono do casco, mas ninguém é capaz' o capacctc, c com pc.lrrts os sólidos bronzcs feut{cnr
com o ferro'
acometendo-o de todos os lados, de rasgar-lhe o corpo e os pcuachos são arraucardos dll cabcça; uctlr o cscttclt> bitsta
Sempre as lanças abundantes quebra e agita' piìrâ iìparâr taptos golpcs: 1s la1ças rcclobrirm os troilìnos e rt
Mnester,r fulnrinarrte; cntão, de ttltlo o corptl o sttor 'r(pritr
O suor toma-lhe todo o corpo e muito pena'
sequer é possível respirar: com o célere ferro cscorre (nem é possívcl rcspirar) crn rio dc pichc:
os histros, Ìançando dardos, o acossavam"' o trlcnto c{iíícil agita os ureutbros cansados".

meios ex- São vários os indícios Virgílio rct()lu:ì Hottrcro p.ìss2ìll-


c-le qr-re
É evidente que o poeta latino procura manter certos
ll

diferença notá- clo-o pelo viés de Ênio (elab<)rarìdo colÌì nìaior rcfirìalìlclìt(), p()rélìì,
il pressivos do original, como o esdlo paratático. uma
que con- os versos cìo poeta arcaico);qlle altlcle clirctltttlctrtc iìos vcIS()s grcg()s'
vei, porém, é o emprego preferencial do presente histórico'
I oulro clemonstrn-O a fornìa culta Tloc's, eqlrivaletrte a() gfello T, ttli lìlcsl'Ìllì
fere vivacidade à narrativa, ao invés do imperfeito ou
ïaior
de oito presen- pOSição l'ìo hexâlÌìetro (qr.riuto pó). Fornlaltttctrtc, l)oról-Ìì' ì.tlìì lì()tìt()
tempo histórico; na passagem de Ênio, a proporção
ì
é
que tudo indica, aliás, o us() l"Ìos illteressarti aqui: Virgílio adota o prcscl-Ìte hist(rrico clìilìll() (tlovc
tes para um único tempo histórico; ao r40
latina em con- casos)
abundante desse presente narrativo é próprio da épica
.
l

fronto com a grega.lr8 rì9


RcllrciorÌrnt c:ìuiì,,\ tcnìl()r1Ì, dcÌìtrc outros, COttit.tgtrtt.t, i)ctrcl, l-rrca Cirrlnli, I',,r'l'ige r';
trpt fçrrte iìrgllììellto pltra tll ó l prcscnça tlcssrt cxplcssl-tt) lì() Iììcslìì() livro IX, r'. trl ì.
I ltì
Ìr4lcrírbi<r a;1111, cem rirziur, o i',,',sr., r;i.gili,,,'t() c()rììo cxelttl.ltl tlc irttit;ttítt tlt l:lri"l
tr6 Sar.VI,3,3. criticantgs, p6is, C1lnington,.ltrc clcclarr, clìl lì()tlì iì() \'crso IX, E06, tìiio hltr'.r It,''
Veja-se Marco Scaffai, nir ediçiro tl,'
13? Ou Céli<1, pois o nome é objeto de controvérsia. vcrsgs clc Ênio "nu.la LÌ[rc piìrcçt tcr inÍ]ucnciu.l,r Virgílio pltt'ticltlartttcttte clìì 5tr:Ì It
obra de TOLKIEHN XXIII' p' 106)'
(Op. cit., nota ao capítulo prtxltrçiur clc Honrero"(Op. cit., vol. III, p. 229).
r]8 Vcja-sc "Virgil's A"r'"ìd'i In: BOYLE (Org')' Op' cit'' p' 105' nota 15'

- t69 -

f,' à
l'ltukr Súr'gio rlt, Vlrst onct'llos lìfeitos intortcxtu',tis llt litrcidt tlc Vilgílio

Além do presente, citemos as fortes aliterações em ltl, quc rc- lrio lrassado de verbo intransitivo com valor ativo e do dativo com o
produzem o som dos dardos e a inversão do sujeito, com ênfzrsc no vcrbo pugnare, "lutar", à grega, ao invés do prosaico complemento dc
processo verbal, que Virgílio, porém, duplica: r'rrrrr mais ablativo:

conueniunt... tela strepit...galea


placitone etiam pugnabis amori? (lV, v. 38)
tinnit...umbo nec sufficit...umbo
ingeminat...et Troes et ipse/fulmineus
"Lutarás até mesmo contra um amor que te agrada?"
Mnestheus
quatit aeger anhelitus
No contexto, Ana incita Dido a ceder à paixão nascente pelo
Virgílio nitidamente rivaliza com o modelo eniano, que possi- troiano Enéias (esse dado trágico - é a própria irmã da rainha que a
velmente tinha o mesmo número de versos que a passagem da Eneida, impele para a atitude de conseqüências funestas - será salientado no
se aceitamos a sugestão de Vahlen, defendida por G.B.Conte;rar típi- final do livro). Tal expressão é retomada integralmente na história da
ca aemulatio: superação do modelo com a mesma concisão e maior matrona de Éfeso, uma das mais conhecidas, senão a mais conhecida,
eficácia expressiva; de fato, retoma Homero, utilizando, contudo, o das fábulas milésias inseridas no Satiriconra2 Aqui, o salda citaçáo
presente histórico em todo o trecho, seguindo a sugestão de Ênio e advém da diferença brutal entre os contextos. Na Eneida, os cegos
indo além dela, pois o poeta arcaico mesclara aos presentes históricos conselhos de Ana, embasados num senso prático comezinho e num
um isolado e destoante imperfeito (sollicitaban). afeto pela irmã incapaz de ver mais além, impelem Dido à violaçáo do
pudor (soluitque pudorem, v. 55), quebrando-lhe as últimas resistên-
cias e encaminhando-a à perda final; no Satíricon, temos a escrava da
7. lnorura matrona ("aquele exemplo único e verdadeiro de decência e amor"-
CXI, 5), que, seduzida primeiramente pela comida e bebida deixadas
Outro efeito possível da alusão é o de ironia; levada ao extre- pelo soldado na gruta, decide-se a tomar de assalto (expugnare,Iin'
mo, temos a paródia, uma das formas de intertextualidade mais co- guagem militar!...CXI, 10) as resistências da patroa.
muns e fãceis de detectar. Por vezes, basta reproduzir tal e qual um
Que a referência à situação original da Eneída é requerida como
verso célebre fora de seu contexto' transportando-o para contexto elemento do novo texlo, prova-o a citação de outro verso da mesma
totalmente diverso, e se produz ironia, só percebida pelo leitor que cena "imitada", ou melhor dizendo, talvez, "dislorcida"), posto tam-
tenha na memória a expressão reproduzida e, pela transposição, bém na boca da escrava:
distorcida.
Para não abandonarmos completamente o campo da Eneida, Id cinerem aut manes credis sentire sepultos (CXI, 12)
um verso famoso do diálogo entre Dido e sua irmã Ana - nesse livro
IV que tem sido sempre um dos mais estimados de toda a epopéia - é "Crês que é isso que sente a cinza ou os manes sepultos?"

o que segue transcrito, assinalado sintaticamente pelo uso de particí-


raz A citação do verso virgiiiano aparece em CXII, 2; a história começa a ser narnrtlrr t't',
rar Veja-se a edição das Saturnaisque temos utilizado, p.
691, nota 3. CXI.

-170- -17r-

til
Paulo Sór'g,io <ie Visconcellos
lìÍcitos intertextulis na I'lcr'rla dc Vir.Ílílio

Na EneÍda: Em strma, a comparação com o episódio de Dido, isto


é, a reit.-
ra intertextual, realça o realis.ro qLrase cínico
da história de petrôr-rir,
icl cincrcm aut ur:rnis crcciis curare scpultos? (lV, v. 34)
o despr.rdor .ada trágico da n-ìatrona de Éf"ro, o lado
rnais cl-rão dos
"Crôs que disso crritlam a cinza ou os lì-Ìallcs scptrltos?" sentimentos humanos, pi'tado pelo autor com toques
que nos lem-
bram Machado de Assis. por outro lado, irresistiuelmer-rte,
somos ie-
Vê-se que Pctrônio operou leve mrrdança: sentìrcpoÍ crrrAre,a vados a refletir sobre a idcalização que o discr,rrso
épico impÕe à maté-
nìenos que nlfur sc triÌtc cie variante introduzida indcvidarnente no ria narrada; essa espécie de paródia do rnodero
ror"r-,L acaba por ironizar
texto do Satirict;n. traços do origi.al e por ameaçar turvar-lhe a ideorogia (na
memória
Na ,&lcrc*r, Diclo, personagelÌì épica, funclac'lora de uma cidade do leiror irnplícito, Dido e seu duplo negarivo ficarn associacros...),
que viria rì scr rì mrior rival de Roma, degracla-se, pclo efeito da pai- corn urn simples deslocamento de contexto.
xiro, até rì lìuto-irìl()laçiro, culpada para si r.ìleslÌla por ter violado o Em Homero' encontramos tambérn o efeito de ironia
intertex-
juramcnto cle ficlclitlircle à mcrn(rria clo m:rric{o Siqtreu. Perde serr csta- tual (ou autotextLlal, se o autor ou conjunro de aurores da
l1íada e da
tutcl de personagclìr ópicu, poclcríamos clizer, prra assumir r:m conde- Odisséía for o mesmo). A Eurneu, o fiel porqueiro,
Odisseu se apre_
ní,rvel papel cle ltnuntc elcgíaca. O pocta, clc fato, por várias vezes senta como estrangeiro, nìetanìorfoseado por palas
Atena em velho
conot:ì dc nuanças ncgirti'n'us a tlescrição da çraixho qtre a clcstruirá. a certa altura, diz ao criado, que não o reconheceu:
No conto do Satiricori, Pctrôr-iio parece se dcliciar com cl redi-
're'digo;
l-Ìlensiolìamento do texto virgiiiirno: i'r 1-ììatrorìa dc Éfcso, exemplo clc b10pòç lcp por reìvoç bpôç Aíôcro nuÀnor
uírtus, r'rão nos csqucçalììos, ccclc ao dcscjo, p()rquc tal é a fraqucza yiverut, óç neuín eírcoy unurÍ1)uw
Ba(eL'@a.,Xw,v. t56_157)
humana, assim são fcitcls os homens, sem virtlrrlcs idealizadas quc
"Pois para mim tão odioso quanto as portas do
possanì srÌstcntar até o fim, scnl selìtilÌler-rtos ópicos nrais dignos dc Hade.s
sctorna aquele que, ccdendo à necessidade, corìtA mentiras,,.
sc'mideuscs colìlo os he ríris das epopéias c1o que c'la hut-niiniclaclc conr lr
qtral diirriiuÌlcÌ1tc convirremos...Estc nos parccc scr Lltìì tcma rccor- ora, o leiror da l\íada recordará um rrecho da fala de Aquiles
rcrltc r1() Satíricon, cluc rctratiì a rcalidade courczinha sen'Ì rctocÌr.rcs, :ro próprio odisser-r, co.denando a rnenrira,
sem nobrcza, mAS sclÌì ccllsrlra cxplícita.
a d'plicidade de iu",o
l)cnsa uma coisa e diz outra:
Dido se rnatarír porquc r-rão suporta não apenas a partida cie rrnr
anÌante nìas o sentiurcnto dilacerirclor c-lc cltrc íaliroLr para colìr os iclt'- b10pòç ycrp pol reìuoç bpôç Aíôcro nú2,1oru
ais que faziirm a sua alìtiga firurri. No Sarlr'cr)11, a ulatrona (pullrvrrr 6çy Lrtpov pÈu reu0n buì Qpeoiy, &ÀÀo'ôe eïnp (II.IX,v,
repleta de significado para a moral romana) acaba por ficrr ulrrit,, 3t2-313)
satisfeita, "burgucsamcntc" fcliz, isto ó, nacil cpicarÌrcntc, tcnclo ccrli
"P.is para .r.ri'r tÍlo'dioso qtra'to
do sem rL'lnorsos ao soltla.lcl; tra vcrdacìe, couì tll rlcsprril<lr, conr l;rl as portas do Hades é aq'ele
clrrc ocrrlta algo na mente, fala coisa diversa',.
csquecirnento cla nremtiria cJo felccido, iì ponto ric str{crir, l)ol'c()lìlir
própria, a crr.rcific:rçito clo cadávcr dcstc, LÌue iìs.\irìr tr)lììiÌr'ilÌ t' ltrglrr ..l,, Nrr orú'.rsc-zr, ó patcntc a evocaçiio da passligcr rt dt I/i;ur;t-
rrri rr
corpo do conclcnackr pclo qtral vclava o solclaclo c.lrrc írrnr r',rrrllrrl,,... tt'l)ç(içi11 ctltttlllctlt ilc ttttr vcrso, scgrric[r rlc 9rrlr9
tlc cstrrrttrr.rr sirr-

t7t

*
lltllq {lg,ll tlc Vrtscottccl los liltitos irrtcltcxtu',tis n',t Ii trc idu tle Virgílio

tática (óç) e sentido relacionáveis com o correspondcntc ilíatlictt; rr onde, cntretanto, referia-se a ...elefanteslr44 O leitor informado capta
ironia é provocada pelo fato de que Odisseu, ao afirmar quc llrt' ,i o contraste de contextos e sorri da reutilização do material: detalhc
odioso quem conta mentiras, procurando, assim, afastar as suspciLrrs sutil revelado aos "iniciados", isto é, aos que são capazes de detectar e
de que não estivesse dizendo a verdade, no momento mesmo em (ltr(' analisar a alusáo.
de fato mente, evoca o juízo negativo que lhe expressara Aquiles str No episódio do livro VIII em que Vênus tenta obter de Vulcano
bre quem se comporta de forma dúplice, expressando algo diferent,.' armas para seu filho, um tom ligeiro se faz mais presente, a ponto de
do que pensa, em estratégia de que Odisseu faz amplo uso...t4l Cartault aÍìrmar (sem tirar, porém, todas as conseqüências da obser-
À primeira vista, parece impossível que se encontrem num poc- vação) que "a cena é da mais fina comédia; é cheia de humor".r45
ma sério como a Eneida efeitos intertextuais que provoquem o sorristr Virgílio introduz a resposta de Vulcano, após as palavras e a sedução
do leitor, como os que vimos no Satirlcon Mas cremos que eles exis- de Vênus, assim:
tem; sutis, são um aceno ao leitor culto e perspicaz, que se admirará
da habilidade do jogo alusivo. À maioria dos leitores comuns, porém, Tum pater aetemo fatur deuinctus amore (VIII, v. 394)
passarão despercebidos; na verdade, a referência intertextual jocosa ó
quase sempre mínima, e forma a não comprometer a gravidade do "Então profere o pai, enlaçado por eteÍno amor..,"

todo. Um exemplo: quando da partida de Enéias de Cartago, Virgílio


compara os troianos, em sua azâfama, a formigas: O leitor de Lucrécio identificará a alusão ao célebre proêmio do
De Rerum Natura, num passo em que se representa Marte seduzido
Ac uelut ingentem formicae farris acerr-rom pelos encantos de Vênus:
cum populant hiemis memores tectoque reponunt,
it nigrum campis agmen praedamque per herbas aeterno deuictus uolnere amoris (1, v.35)ta6
conuectam calle augusto; pars grandia trudunt
obnixae frumenta umeris, pars agmina cogunt ".,.vencido pela ferida de um eterno âmor",
castigantque moras, opere omnis semita feruet. (IV, v.402-407)
Como Lyne interpreta,r4T o efeito intertextual é de humor, aÍi-
"Como as formigas um ingente monte de trigo nal era conhecida a história das infidelidades de Vênus ao marido
saqueiam, lembradas do inverno, e o depositam em seu abrigo,
vai a negra fileira pelos plainos e pela relva â presa
'aa Edição THILO, vol. I, p. 537 hemistíchium Eníi de elephanrís dictum. Ver também
carregam, através de angusta via; parte delas se esforça por erguer
HORSFALL (Op. cit,p. 63), que aponta outros casos de ironia (a partir de um artigo
aos ombros grandes grãos, outra cerra as fileiras
de Harrison, ao qual não pudemos ter acesso, sobre a "arte alusiva... com intenção de
e castiga a demora; toda a vereda ferve de trabalho". divertimento").
t45
Op. cit., p. 613.
Sérvio informa que a expressão it nigrum campis agmen, que r46
Ed. Gamier.
Virgílio aplica a formigas, é tomada tal e qual dos Annalesde Ênio, t47
Further Voices ín Vergil's Aeneid, p. 40. Cartault, porém, já mostrara a alusáo, mas
sem levar adiante a análise intertextual; na verdade, o crítico hesita; em Lucrécio,
"tratava-se de Marte, ao passo que aqui se trata do esposo legítimo. É simplesmcntc
r43 BEYE, Charles R. Ancíenr Epic Poetry. Honer, Apollonius,Wrgil.khacaand London, uma imitaçáo deslocada ou Vírgílío usou de ntalícia (y a-t-íl mís nalíce)!" Vcr
Comell University Press, 1993, p. 33. CARTAULT. Op. cit., vol.lI, p.648.

-174- -175-

x â
t
l':rrrIr St:r'riio rlt' \':tseottr't'llrs lifcitos inler.tcxtLrrìs n:r /:)rcrrln tlc yÌrgílio

Vrrlcano, seus clìcorìtros ftrrtivos conì o arÌÌalìtc Martc (uarnt-sc Irlt Ern segundo lugar, há unr outro efeito rìc hunror,
se accitlrrnr.s
Otlissóirt, VIII, v. 266-366, o jocoso corìto dir punição c1a traiçito 1;e lo as s,gesrÕes até aqLri feitas; lììeslììo
verso clrÌc cc,a L.crc<cirl
'o c cltre
marido ultrajado). Virgílio alude, pois, ao adultério da der.rsa dc fornrr altrde à infidelidade cÌe vô.trs corìrp.recc
o alrclarivt; parczapÌicad. rr
sr.rb-rcptícia. Por outro lado, Lyne llota qLle, cllquaÌ1to Lucrécio usa rl vulcanol Ern sc'nrido suPcrficial, nada tle mcl-noráuel, aplic,rcl<,
n,r.'
verbo dcuíctLts, comprazendo-se corÌ1 o paradoxo do der"rs da gucrnt deuses, o slrbstantivo não i.rprlicava parcl-ìrcsco, ,,rÌras
era solììer,Ìtc
ve n c íd o pelo rÌrììor, Virgílio emprega d e u í nc t t s (" encadeado", " atadi)"),
L unì ternÌo dc dcvoçãr) e .rìl reco.he-cime'ro cla prcocupação
clo deus
alr.rdindo ao castigcl infligido aos rìmrìntes, cìuc são apanhzrdos ua rcclc para con-Ì os homens";lit'lìL) er'Ìt:ìnto, é clificil nlto
lrcrceber nova iro_
finíssima armada pclo marido, tomado-se, assinì, alvo do escárnio clos em estrLltllra prof..c1a, isto ó, diálogo colìl
dcnrzris detrscs; nesta passagenr da Encída, é Vôntrs qLle, com scLrs eÌÌ-
'ia 'o pr(rximo hipotcxto. Ao vir
llo verso qr-re alude iì iìrìrores adúltcros,
o
cle um genetix nato
ll cantos, ciìtiva, "ata", Vulcano...la8 Mas ó bom salicntar qr-re a liçho que rccorda quc vênLrs é mãe mas vulcan o ,;Íoé
o pai clo zlarrzs enr
deuincnrs, accita por Perrct, M)'nors c Sabbadini, é rcltlida por Paratorc, questão, Enéias... - o substrrntivo, comprecr-rclicic-r
il ,",, siìrcasr-ììo
qrre :rcollre cfeuictus,t4') lìcste caso, pcrdc-se a possibilidade da última subli'rinar, torrra ;ri.da nriris risível a situação do clcus,
",r-,
presa d.s cn-
interpretação - rnas a ironia intertextual do episódio permanece. cantos de uma dcusa nada fiel e pollco rec:rtacla.
Acrescentarerììos :ì análise de Lyne algurnas observaçÕes inter- Apo.te.ros
oLlrros traços humorístici)s r-ìa cenâ, fora do â'rbitc-l
textrrais. Em prirneiro lugar, o confronto er-Ìtre os contextos faz per-r- estritame ntc intertextual, uras qLle scrvelìì clc apoio
a unìa leitum alLr_
sar. Em Lr-rcrécio, dc fato, o poeta apela a Vôurrs pariì cìue ela, cour siva e'r q'e a iro.ia cstír prcse.te i.rcnsa.ìentc. pri'reirame.tc,
Ìrá
seu amor de efeito poderoso sobre Marte, influencie o deus, fazendcr algo dc irônico no dcus do fogo (í.gntpotens, v.414)
ri scnclo clominado
conì que "os feros traballios da guerra" por toda a p:Ìrte cesscm (De pela clranra de a.'or qre a esposa lhe passa ('otc'ros
accepít solíta,t
Rerunt Natura I, v. 3O-3 1); cm Virgílio, Vênr-rs us:rrá de selrs el-Ìcantos flantntant, v.389: o dc,s do fogo " rccebcu" da csposa
u.ún,-,-,r-,, b"ro
que fascinanì o esposo para pedir-lhe... armas. Se a invocação clc colìlo a insistêr-rcia sigr-iificativa na irnagci,n clcssa or-rtra
cspócic cle fogcr
Lr.rcrécio a Vênus, dc qr-re faz parte o verso em foccl, inicia-sc por Llnì que dorrrina vulczr.o: caktr, v.390; ígncu lz,lzr, "sulcc)
ígneo,,, isto ó,
solene Aeneadunt genetrix (1, v. 1), a deusa aprcsclìta assim ser.r pedi- "o raio", v. 392), Por outro lado, o dcus dcclara,
ap(rs o nÃ."ço erótico
do a Vtrlcanoi annn logo genctrix nato (VIII, v. 383): "anntìs peço, de Vêntrs, que sc ela tivessc tido um sc'rclira.tc zelo (sirnì.hs
sí cura
conìo mãe para o filho"; alóm clo substantivo em clcstaqr.re, charna a rttísset,v.396), ele podcrin ter armacio os rroianos dr.rrante
a g*erra
atenção nato, que clesigr-ra Enéias, cujo nomc ecoa no cpíteto com com os gregos, jír que r-rer-'Júpitcr Ì'ÌerÌì os destir-ros pr.ibianì qlle
que Lr-rcrécio clesigna os Rornanos. A aproximação intertextllal, pre- Tróia drrrasse por mais dcz a'os (v. 397 -399) ... sinilís 'ão
si cura rtisse t -
sente no texto de Virgílio e, portarìto, merececlora de atenção, incita- muitos tradtrtorcs c co'renradorcs nos parecelìì se equivocar
sobre a
rìos zì comparAr e distir-rguir; lìessa ope ração, criam-se efeitos cle leitu- interpretação da frase;r5r note-sc o rerevo dc sinírís;o
cleus cliz quc se
ra mais olr fiìenos tênues - nuncA desprezívcis pÍìra o leitor qlle se
dispõe a participar dessc jogo instigante . irl
I
obscrvaçãocJe'l7arcleForvler,rcp()rraclacmBAILEy, cyrìl.
IÌclgtonitvi4gi/.()x1rrrr,
Clarer.rdon Press, 1935, p. 135.
r5t
Canali, grarrde tradutor, pcrcle o tom irô1ics, <le vclacll
lìò
Op. cit., p.41. nrulíci.:,,Sc.r,L.r,i ,rì rirl,.
pcusicrtl,/auche allora mi era cotrscr-rtito armarc i
l4() tcrrcri"; trrnrbópr Arrrril,rrl ( rrrr,: ,.1,,.
Sórvio, trrorér.n,Iia rlcuínctus (Op. cit., vol. II, p. 259). t'cragrado",'''Pcrrcte Odoricotrlcluzc'mconr:racìctlrntllrÍìtlelitlrrtlt,,(,rÌÌ(,)rì,,(,rì,rìrrl

-176- -177_
i

ll|il
Paulo Sérgio de Vasconcellos
FÍeitos intertextuüs na Eneida rJeyirgfuo

a esposa tivesse demonstrado, durante a guerra de Tróia, ra/solicitu- alusões' Encontramo-lo várias vezes
nas falas das personagens; o Ici-
de (em sentido malicioso, a utilização de seus dons eróticos) na sua tor informado, por ,,saber,' mais que a personagem
missão de conseguir armas para um troiano, naquele tempo ele teria em foco, já quc,
compreende o subtexro originado pela
intertextualidade, apreende
armado os troianos todos! uma mensagem que às vezes apresenta
o desmenddo cabal as puln-
Diríamos qr.rc aqr-ri - mas de forma sutil, discreta - Virgílio per- vras pronunciadas por ela, daí resultando
efeito de iror-ria lre pode se
mite que penetre crÌì sua epopéia aquele humor brejeiro que perpassa colorir de nuança rágica. É .o-um"nte
o que vemos ocorrer com
o episódio dos amores de Ares e Afrodite, na Odisséia. Turno' cuja cegueira é denunciada pelo
código ,rn-udo p"la alusão.
Também na cpopéia de Camões o humor se insinua no coló- Apresentamos a seguir uma ilusffaiao
d.rr.".urioro p-i"rro irrt.r-
quio entre Vênus e uma divindade; desta vez, a deusa seduz o próprio textual.
Júpiter; este tão empolgado fica com sua beleza que: Quando Turno está para incendiar a frota de Enéias,
ocorre o
prodígio da rransformação dos
navios r,infur, ;"-.;;;" o rerror
"De modo que ali, sc só se achara, sobre os aliados do rúturo' cegamenre,"-
Ouffo novo Cupido se gerara. " (At Lusíadas, ll, 42, v. 7 -B) este interpreta o fenômeno a
seu favor, em palavras que recordam,
sim, Aquiles, de quem Turno
Neste episódio dOs Lusíadas, porém, como se vê, a pouca seri- pretende ser a reencarnação, mas
alguns passos apresentam arusões
edade que exibem os deuses pagãos dcve encontrar limite em certo que lançam sobre a personagem
uma outra luz. Observe_se:
senso de pudor na descrição de suas ações. Em Homero e Virgílio,
retrata-se o ato Íïsico (com notável discrição, porém); em Camões, a
si qua phryges prae se ,,.,u.,,T1#:,?ï::,:ïìïi, ,. ,rr_,ro)
presença de olhares indiscretos obriga o pai dos deuses à contenção...;
assim, uma célebre cena amorosa da tradiçáo greco-latina é incorpo-
rada ao poema lusitano, filtrada, contudo, por unÌ sentimenlo de de- ainda que os frígios deias se,".H,"i1i:,ïïïï:i, deuses,,.
coro mais rígido.
Há, contudo, outra espécie de ironia que merece destaque, pois A fala irônica e poLìco "pia" de Turno recorda
palavras de Hei-
I
que advém diretamente da arte intertextualda Eneidae será explora- tor - papel que ao final da epopéia se verá ter sido reservado no
o
do amiúde pelo poeta; trata-se de contrapor ao texto um subtexto gcralao rútulo -
Que, numa assembléia, assim responde polidamanre, a
l
contrastante que emerge das relações intertextuais, criando uma es ,1tte desaconselhara a luta com os gregos junto aos navios:r5z
pécie de distanciamento crítico do discr.rrso literal e linear através dus
túuq ô' oicoyõìo.r "cavunrepítyeoor reÀeóerç
com a discrição virgiliana; este último trirz: "Sc igr,ral ernpcnho houveras..." Entrc ,,', nei0eoOcxr, "cew oat rt perarpênop
oU;úeytçco,
--
comentadores, perdem a força maliciosa do dcstaquc dado a síntilts, Sabbadini: "sc t , , eür' enì.ôe(f ícoor npbç 11ô .rr,
mi avessi pregato anche allora" (Eneide, vol. VIII, p. 41) e Conington: "had yorr li'lr r Ir,' €tr rfi'cÍ,prorepcx,roí ye norï"'1ello,
(ôQou ilepoevtc'. (It.Xil,
same anxiery, meaning, had you made the samc requcst". Este últirno taurbór-n clrr,l,''r
v. 237 -240)
rnalícia de trctíanos, interpretando-o como um (estranho) plural para designnr sonrt'r rr,'
Enéias, "em exagero retórico" (Op. cit., p. lZ4) - eis urn cxcmplo dc conio o cxc( ssi\ r,
c dcscabiclo pudor clos estudiosos é caprz clc ccÍlar ()s urais finos intérprctcs tlc Vi4iíli,
'. ''r lrslt'rrrr'rlcl. c. scgrri'tc c.nstar'da Iíxade Hrnterzítaredc
Knatrcr (op. cit., p. 4oz)
Paulo Sór'gio de Vrmconcellos lifeitos intcr.tc.rtLtris na /:ircrrlr dc
Vir.gílio

"Tu ern pássaros de estendidas asas nìe incitas ficrpcr ïc[p oeoi eiot rccrì r1pìu.
a acreditar, colÌl os Llliìis Ììaìo lìlt: prcocr-rpo nerìì ulìì poucol5l.nem nìe
el.IIl,v.44O)
lnquleto, "Tan-rbóm l-rá dcLrscs clo nosso laclo,,.
se da dircit:Ì vôul, rlrì clircção tla aurora oLl do sol,
sc da esquerda, nuììo lìs trcvlrs sornbrias". Turno interpretanraro prodígio, e o lcitor sabc qlre
está engalìaclo,
pois qtle conhece as vcrtlttlcirrts
razÕcs da transfom',açeo da f.oto
Ern Odorico Mcndes: d. E.réias.
Alérn diss., o herói corrrapõre se r-rs fildos
pcs.soais ao crcsd.o ali'a.ifes_
tado: enqua.rto Páris sc rcfcria aos
"E por nvcs guilr-nrc uli-spaluradas deuses crc tocros os rroianos (r1pïu),
rútulo expressa confia.ça'os s'eirsclestinos o
QLrcrcs, clrts clrurcs ÌìcrÌì curo llcÌlì nlc irnporta, (r;lc;i, reforçado pela disju'_
Vocnr cll tlcxtm plla o Sol c arlror:ì, ção - faa, que complcra o sil-Ìtagn-Ì:r, s(r aparece
lìo \/crso seguinte); por
Ou dl sinistra l)ara o occiìso c trcvlìs." via i.rerrexrual, salic'ra-se a fciçã.
i.diviàuaris,i.. d.:.;;;ão. por o'_
tro lado, lnon'Ìclìto erÌ q.e
'o se coloc:r na sit.açRo ie víti'ra
Eis r-rm prinìeiro efcito da alusão: sob Turno paira a sombra de r-rm Enéias-Páris que [-rc 'ìesrÌro cre
reria ar.ebarado Lavínia à Ít .ç;:;i.;róprio
Heitor. Mas apontarerììos excn-ìplo rÌìais illrstrativo de ironia por meios ge colÌìo s.r_
Páris,.dc q.e'r ecoa as paiavras.
'rovo L"r,"n.lo à, úiltr,r.,n, .or,r_
intertextr.rais nessa rneslna fala do rútr-rlo. Note-se: seqliê.cias os scl]ridos origin:rcìos du
lugu ni.rsi'o, é 'furncl, slrgere-se,
quem deseja se apossar indevidamcr-rt.
d" filr,rn d" Lnrrnu, .urì dndu
suÌtt et lllca corÌtra ressaltado na .arrariva ao se relarar ",-,r.,
que os orírcr-rros cli'inos clcsaprova_
fatil mihi, fcrro scclcratarn exscinclcre gelìtcnì, varÌì essa prometida, Iro.ia rrzigica: o leitor
coniuge prâercpta. (lX, v. 136-138)
a dar às paiavras '.ião sabc o vcrdadeiro pcso
cireias ..ì" o..ognr'rã autoco.fia'ça
pron.rìciacìas por
Turno t'ìulll tÌ-Ìon,ìcnto crílicct para os
"Taurbóm cu, por minlu vcz, tenho meus seus.
próprios dcstir-ros: corn a cspada aniquilar r-una nação criminosa, Por fim, obscrvc'ros ortra iro.ia inrcrtexr'ar;
por me terem arlebataclo a esposa."
sérvi., erÌ-ì llotzì
n"l"' courenradores da cpopúi,r, ,,t r*n
ll:r.:::.i:ï:.:i:li
tte ('( )tì I I ts'c t.i c1-L'/ f; ì:
/) |
,, rcspciro
Turno se jr-rlga, portanto, um novo guerreiro grego, r-rm Menelatr
redivivor54 a vingar a injúria infligida pelo slrposto uovo Páris, Enéias, ir-rtricliosc s1)()rìslìrìì coniugcm trocnt.r55
que ll-Ìe teria roubado Lavínia; é esse o seu destino, julga. Porém, solr
"Em scu (rdio cl-ranra clc cspcrsa
tais paÌavras, o jogo alr-rsivo rnostra a ilusão de Turro, seu julgamento ii r.roiva,,.
errôneo dos arcanos dos destinos, já que suas palavras evocanì
ccgtteira, 'fttrtto força o paralclo,
lìs
. E'r sr-ta
de...Páris!: Êrlsiíica.do a realicla-
rlt', rlcttrrpa.cl. os Íat.s; l11vi11i" ii," fo.",
sir.r, pro'rcticra, nras jaurais
hrir c'.51)()ó:?. Ac1ui, corrijauros Gaffiot,
quc cita cstc passo para ilLrsrrar
() ('rììl)rego rlc conttrxccrnr
l5l
"Neur rtm pouco", cttt nossa tradução, tem tão sornente a fiurção de ressaltar clrrc Virgíli, ,
o scnticlo cie,,fiancéc,,,rir,,.,n_r.ì":n,,p1,r,1",
parece ter "traduzido" o por ní|ti|.
Na sccliiência, cxplicita o paralclo: trlec xlos tangit Atrídeslí.;n,&tLr ("Não s,i :,,,,, '' t )t', r'ir.. r.,,1, Ì1,1, 122.
AtriLlls trm tal rcsscntimento atinge..."). "'tir\lrlrl()l,I:./)it.titrr;tirL./,;ttírtli.;trç.;tí:..lrrrr.is,Ìlrrclrt,rrcflglì
lit,. l9ó.

- tsO,

I
14" rl
I'uukr Sór'gio rlc Vuscutccllos lilcitos irrte r'rcxtrrlris ntt Ii ttcitkr la \irgílio

insuficiências de uma análise não centrada nos aspectos litcrários tltr trì scrÌl rccontá-lo, mas deixando ao leitor a possibilidade de exrrair
lexto. Turno se equivoca: a situação de Helena não é a mestnrt dc scntidos do confronto com o texto evocado. Um bom exemplo está
Lavínia, como a sua própria difere da de Menelau. Como amiúde ulr uo início do livro VII, quando os troianos costeiam as terras onde
Eneida, temos ressaltada a noção de que a história de fato não sc mora Circe:
repete, apesar das aparências, apesar das pretensões de Turno. O lei-
tor informado, que aqui tem o papel ativíssimo de passar pelo crivo dc Proxima Circaeae raduntur litora terrae,
diues inaccessos ubi Solis filia iucos
seus conhecimentos intertextuais as palavras e a acão de um persona-
adsiduo resonat cantu tectisque superbis
gem, percebe que o rútulo se apresenta sob traços falsos ao invocar o urit odoratam nocturna in lumina cedrum,
grande paralelo épico, pintando-se numa atitude heróica que não é, arguto tenues percurrens pectine telas.
rigorosamente, a sua... Hinc exaudiri gemitus iraeque leonum
uincla recusantum et sera sub nocre rudentum,
Esse exemplo nos alerta para usar de cautela diante de supostas
saetigerique sues atque in praesepibus ursi
incoerências de Virgílio geradas por sua arle alusiva mesma' que' ao saeuire ac formae magnorum ululare luporum,
transpor de um contexto pala outro certos elementos textuais, criaria quos hominum ex facie dea saeua potentibus herbis
no texto de chegada sentidos obscuros ou quase ilógicos.r57 Náo se induerat Circe in uoltus ac terga ferarum.
pense em alguma inabilidade de adaptador: Turno, não Virgílio, é Quae ne monstra pii paterentur talia Troes
que se equivoca e força o paralelo impossível - eis o efeito intertextu- delati in portus neu litora dira subirent,
Neptunus uentis impleuit uela secundis
al criado por uma associaçáo indevida porque demasiado mecânica e
atque fugam dedit et praerer uada feruida uexit. (VII, v. lO-24)
cega quanto aos fundamentos divinos que jazem por trás das ações
humanas. Dizendo de forma mais paradoxal: Turno é incapaz de de-
cifrar com pertinência seu destino pessoal, lendo mal o intertexto ge- "Costeiam de perto os litorais da terra circéia,
rado por sua própria ação...Daí aquele efeito de ironia trágica a perse- onde a rica filha do Sol aos bosques inacessíveis
guir a figura patética do rútulo, incapaz, ao contrário de Enéias, de ler faz ressoar com perene canto e nos tetos soberbos
queima odorado cedro para os lumes noturnos,
os signos divinos que fazem vislumbrar aos homens o sentido de uma
com fino pente percorrendo as telas tênues.
açáo que parece errática e inconseqüente sem o esteio num plano Daqui se ouvem gemidos e iras de leões
sagrado que os transcende e os heroifica verdadeiramente. que recusam grilhões e, noite avançada, rugem,
e porcos eriçados de cerdas e, em estábulos, ursos
enfurecerem-se e vultos de grandes lobos a uivar:
homens a quem, tirando-lhes o antigo aspecto com ervas poderosas,
8. Elrpse
a deusa feroz, Circe, revestira de faces e dorsos de feras.
Para que não sofressern tais monstruosidades os pios troianos,
Um processo alusivo não raro na Eneida é o que se poderia de-
impelidos para os portos, nem funestos litorais suportassem,
nominar "elipse"; Virgílio alude a um episódio narrado em outro poe- Netuno encheu de ventos favoráveis as velas,
concedendo-lhes a fuga, e além das Íérvidas águas os transportou".
r5? Alguns exemplos curiosos sáo apontados em LEE, Guy. "lmitation and Poetry ofVirgil"
In MCAUSLAN, I, & \íALCOT, P. (Ore.). Wrgil, p' l-13.

-182- _183_
l'tulo Sórgio tlc Vltsconcclkrs
lÍcitos intcrtcxtulis nl fzel'ria dc Virgílio

AqLri, tenì-se a rcferôncia expiícira aos episótlios bem conheci- deixará de notar outro contraste: odisseu observa
que navegzìra rlariì
dos da Odissc<itt; r'Ìotclììos cìr.rc o p()ctlì díi a cxplicaçittt para a prcsetìça um porro seguro da ilha de Circc, guiado por
mão divina:
dos animas fcrozes naquclls pariìgcrìs - crallr hourcus trnnsfortnados
por un-Ìa feiticcirl; portarìto, uão é prcciso cotlhcccr a peripócia dc poeta' ao longo da cpopóia, nìostra um
Netuno que não só não guarda rancor alguur
Ulisses pr-ìra cor-Ììllr-ccnder no conjr.rntcl o trccho. O lcitclr itrtertextual contra os exilados como tiurbóm vcra pessoalmcnte
por Enéias; ate'dc*do ao pedidir
de vênus, que lhe pede rravcssia scgura
deve, entrctrìlrto, csttìr atcnto para as iutcnçÕcs r,lc ttur tr)oeta cotììo até a ftália (v, u. zqo-zss), ,, J.u. ."".o.dn qu.
já salvou Enéias, qua'do cstc luta.va
Virgílio. contra Aquircs ern duelo desigual (v, v.g04- gr0).
Atente-se para estas p'lavras c1e Netuno, qu"
aor-r,rorrun-, conÌ o tratamento recebido
A chavc l)lìr1ì r lcittrra iutertextr.uti cslá utts últimos vcrsos; ó por Odisseu:

Nctuno clì.rcrìì irnpctlc os troirrnos dc pltssar pcl:ts cxlteriônciits tcrrí-


saepc furores
vcis cluc ()s colììplìlìhciros dc Ulisscs cnírcutaranr. O cleus intcrvénr compressi et rabiem tantanì caelique marisque.
tl
pessoainrcntc nlrntllrntlo-lhcs verìto firrrorírvci, corìro cìue enì recorÌì- Nec minor in terris, Xanthurn Simoentaque testor,
Aeneae mihi cura tui. (V, v. 801_BO4)
pcnsa por sua l)ícttts (1ui ï-nts, ttttt l-,cltt cxctrtltltt cle cclmo o uso dc
cpítcto se clìrrcglÌ rlc scntido cm Virgíliol, cut cxprcssão dcusa nct ,,Muiras
vczes os furorcs
contcxtct); atluclc por.'o tirtl rcligkrso não t.ncrccc soírer as mollstrllosi- contive e a cólera tão grande do céu e do mar.
Nem menor em terra, invoco ern testemunho o
dnclcs c1c Circc...Onì, os grcg()s quc Uiisses cottraucla vagzìtÌì por lnar foi-me a preocupação col.ìl teu Enéias".
Xanto e o Sirnoente,

Iti pcrscguitlos pcla irir clc...l)ossôidou, o eqr-riv:rietìte exato de Netttuo,


p()r rcrcul conrctitio, jru'rto ccrn-t sett chcfc, ullì rìto dc impicdadc - ora'-Netuno declara quc, assim colno por tcrïa sc preocupo,
corn Enéias (e segue a
referência ao episódi. em que o sarvou àa rnorte
ccgar o filho cio clci.rs.l5s Qtrct'r'r terÌì clÌì lìtclltc o i)oetÌla grego, nãct
I
imir-rentc), tem agido para proteger o
troiano da fúria do céu e do mar portanro, ao
- conrrário de ódirr.u,ï ,.oì*ã ãor-rro .or-,.,
a proteção do deusl E se lernbrarnos do
sírnile aplicado a Netuno que acalma â tempesra_
de provocada porJuno - um velho piedoso
Íh;""J; aplacar o furor da populaça (í'or
Its Essc plrralclo sc rclor'çir corÌì rì pcrspectiva intcrtcxtrurl global clos scis primciros livros, amta.ninÍsrrar,l,v. 150; c{.:Íürores),édiÍÌcir.ãoconclirirquevirgitiiãid..ìair.r"ru
que lhe é característica, opcrando com
ftrrrcla.Ìos sobrca ()Jís.;óíit: logo no início rla narrnçiio, Jtrno avistir a frota troirttrl . suds_arro.ioçã", i,-rtrntcxtuais, sugere que Netuno
acalmaafúriadoselenìentospâra auxiriarE,éias.pàraquernnãorerêapassagemdolivro
rcsolYe ltr0voclìr ruììtì tcrìll)cstlìclc plìra dcst[uilit, corìì(), l]o p()clì'Ìiì grcgo, Possêidtlrl
"'ô I fazendo, em leirura rerrospecriva, a relação
Otlisscrr pcrto (ln tcrm dos lcírcios c provocì ulìriì tclììpL'stlÌrlc (O,l V, v. 286-295) cltrc .or',-' n f"rro do rt; üìj;;iuáo o.in'u,
perde-se esse dado curioso, pois parccerá
tt Enc'iLt ccoarít intcnsalììcrìtc; lìiì sccltìôncil, Virgílio alurlirÍ constirntcurct-ttc lto cpi a essc lcitor,,linear,,qr",, a"ì,r r"'i.riiJri-pi"r_
mente pela invasáo dos vcntos tempestuosos
sírtlio lronrú'rico, nìiìl'clìrìrl() o inícitl clc sua nlrntiviì c()llì () sirtcte dn OJissc<itt, ctrrtto i' em scus do'rírts. se nossas obr.-oçu",
procedem, estão equivocadas afirmrções
rurais rkr tlLrc sabido. O culioso ó quc o cícitil nrnior da rçiur r.'ittsiìtivrt tlc Jtrtro - r' como estas, corlulls na análise da intervenção
de Netuno: "se ele intervérn, não é absolrtan.,er-,te"io.
tcntpcstltle ó conrllatitlr pclo crluivaÌcrrtc lutitrtl tltr cletrs.l() 1)ìiìr, Ncttllì(t, rlttc serctti:., ir-,t"."rr" peros troianos, que ele
mas porque exercc,funçóe, qu. I
rs Ígturs revoltus (1, r'. 124-156). lln lcitura intcrtcxtual, () c()Ììl-r()Ììt() ('incvitár'cl: rr,, ht^":gl:r:l pemitido a subaltemos .-,rrrpu.,,
(CARTAUT - Op. cir., vol I, p. t02): critico "ão
I
ctlntrÍrrio dc Ulisscs, Enóils c rls scus nho tôur nctrhtrnra inrpictllrlc cotttt'a tttna tlivitr fi'o, Cartault náo pôd", p;;;;,,Lneficia._
se da atenção mais cuidadosa que só
I
rll.lc lt cxpinr, pckr cor-rtri'rrio: \/lìganl [)or lììiÌrcs c tcrriìs lì(ìr clìusì cb írclio clc ttttlt tlcttt,, rccentcmcnte vcm recebcnclo a a.álise intertextuaÌ,
LÌ.c rlos vai acostumando com a sutilcza dcsafiadora
ofcncli.lir ern suu vritlutlc c orgrrllro - rrcnhunra lìçar() c()lìtriì cll íoi Pclos ôxulc.s ct,trt,' da trama d. t"-rit- s"jr-1n,.,,.,,, f,.,.,
cssa espócie de auror paternal quc Netu.o
I ticla, c o prílprio lìlìl'rrì(l()l'sc csl-ì:ìlìtrì c()lìì iì lìcl'scguiçiio lt trur lrcríri táo itrsigtrc |ot stlr der-'onstra por Enóias contrasta vivanrcnrc
colìì a pcrscg.ição que Possêido'move a
clcvoçlio (1, v. 8- I l). Virgílio, cÌll'i()slìnÌcrìtc, ptrlcria tcr invcstitftr scu Nctutur tkr 1,rry,, l (x{issíacil da cpopóia, plena
t,tr IL'
ulisscs - eslrcial'rentc porquc ó rcvc,larlr ,..r
'
I de alusõrcs às percerir-raçócs do gr"g,r.
c;trc cotrbc :r Jurro: |ç15csrrir rls rroiuruls, jir quc, tto uritLr,Lr lutt.laçiro clit ci,llt,le, tt tl,'r' ,
I 'rrrir t rr"r Icit rrrn sirnbÍil ice
-l'ríriu -l-r'íril th ceua d. t ,i^ [,,i,id,,,u.,,,-r.: piir.r.,r ((
crrst iglr:r l.cll l,crlÌ,lin ,le Luonrc-.lt,r-rtc; r rt Ilrr Lu I ivu ,llt ,lttctll rlc |ol I ir rúi r',,
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4lcss.);ur'brevcconf*rr-rr.Eróias-odi.sscuótraçaclo1,rL1,.e- Ì,. , ir . , |
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vt'r19-[r rlcstrtrin,l,r os lìrntllrrncntr)s rììcsrÌì()ìì dlr ci.lrr,lc (ll, r'. 6 0 (r l 2). I]rtl t r'l:tttl rr, r, (fitrt/rt.lzúir.;yr. rtì.1
1
I 07).

_185_

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l':rrrlo Stirliio rlc Vltscortct'llos lilcitos irrtoltcxtu',ús trit Ì:neila de Vir gílio

êu0ct ô'bn bo<'cí1ç ur1ì rcx,tqycryopeo0a or,onfr /tt'('rir,\, rìa cmpresa em que ulisses (como os
Atridas) fracassa, castiga-
ucróÀoXov bç Àrpêvcr, rai ttç 0ebq rryepÓv e,oev. (Od. X, v. I 40- I 4 I) tlo lrclo próprio pai dos deuses (IX, v. 67-69).
Mencionando sucintamente, nessa parte odissíaca da epopéia,
"Para aquele litoral dirigimos o navio em silôncio
a um porto seguro, e um deus nos guiava".
rrrrr cpisódio (a navegação junto ao cabo Málea) que a Odisséianarra-
nr rnais detalhadamente,160 o poeta cria efeito que poderíamos cha-
Entrevemos, en[ão, fina ironia no paralelo: se Odisseu se sen- rrrrr de elipse intertextual: remete a uma cena do modelo que ele não
te conduzido providencialmente por um deus, quando, na verdade , rmitará, mas extraindo do confronto com o original sentido não
vai ao encontro da monstruosa feiticeira, na verdade disso só se po- rrcgligenciável. É norável que este passo seja o único em toda a Eneida
dem vangloriar os troianos, aquele povo pio que, por intervençáo ('rn que se menciona a navegação em torno a Málea: elipse também
pessoal do arquiinimigo de Ulisses, não precisam passar por tal des- i ì tratextualmente.
r
l6l
ventura. A elipse é hábil: longe de ser simples preterição, justifica-
se pelo sentido positivo que cria para seu herói a partir do confronto
com Odisseu: de novo, um efeito da leitura intertextual acessível ao
leitor atento.
Outro exemplo de elipse temos no livro V: Mnesteu menciona
sem mais a passagem pelo cabo Málea - perigosíssimo para a navega-
ção no Peloponeso:

nunc illas prornite uiris,


nunc animos, quibus in Gaetulis Syrtibus r,rsi
Ionioque mari Maleaeque sequacibus undis. (V, v. 191-193)

"Manifestai agora aqr,relas íorças,


âgora, a coragem que nâs gétulas Sirtcs demonstrastes
e no mar Jônio e em Málea de incansáveis ondas".
Para Geymonat, trata-se, simplesmente, de uma "implícita, mas não menos evidente,
homenagem a Homero" (Encíclopedia Wrgiliana,vol. III, p. 322, verbete Maleò.
Ora, como Knauer aponta, Odisseu diante de Málea tem de l6l
Mas é preciso observar que sérvio(-Dan.), em nota ao verso III, 204 (p. 328), apresenta
enfrentar tempestade por obra de Zeus e não consegue dobrar o cabo três versos em que se me.ciona o cabo Málea na narração que Enéias faz de seus
(OdÍsséia IX, v. B0-81; XIX, v. 186-187), assim como acontece com enores a Dido: postos à parte no manuscrito original do poema, teriam sido cancelados
Menelau (lll, v. 286-289) e Agarnenão (lV, v.514-516).r5e Os troianos na edição canônica. Se Forbiger e Mario Geymonat duvidam da autenticidade desses
versos (cético também se mostra Conington, segundo o qual eles não se adaptam bem
têm sucesso por sua força e coragern, além de, e sobretudo, por sua
ao contexto), julgando-os obra de um interpolador, Paratore e sabbadini, dentre ou-
tros, consideram-nos aurênricos (ver Enciclopedia wrgiliana,vol. III, p.327).Aceita'
KNAUER- "Vergil and Horner". In: TEMPORINI-HAASE (Ed.). Auísrieg und hipótese da interpolação corno a mais provável, é muito verossímil que a estranhczrr
'e 'lfalter
Nierdergand der Rctmischen Welt.Einunddreissigster Band. Berlin-New York, quanto à elipse virgiliana tenha levado algum interpolador a preencher a lacuna p:ìr(.n
de Gruyter,1981, p. 878. te na narrativa das peregrinações marítimas de Enéias.

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