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DOI: 10.29327/229184.5.2-15
Resumo:
O objetivo desse artigo é apresentar duas ceramistas com suas poéticas antagônicas: a Kukuli Velarde e Máay
Koffler - com as narrativas que atravessam o ácido x delicado, o político x sublime, valem a reflexão por serem
(re) construções e (re) visitações da cerâmica e do imaginário pré-colombianos. Mais que reconstruções, são
traduções e narrativas significativas por serem construídas através das suas experiências de vida.
Palavras-chave: Kukuli Velarde; Máay Koffler; América Latina; cerâmica pré colombiana.
Abstract:
The aim of this article is to present two pottery makers with their antagonistic poetics: Kukuli Velarde and
Máay Koffler - with the narratives that cross the acid vs delicate, the political vs sublime, are worth the reflec-
tion for being (re) constructions and (re) visits of ceramics and pre-Columbian imagery. More than recons-
tructions, they are significant translations and narratives, because they were built through life experiences.
1
Doutoranda em Artes no Instituto de Artes da UNESP de São Paulo, mestra pela mesma instituição, especialista em
Linguagens das Artes pela ECA na USP. Coordenadora de polo UAB e UniCEU na Secretaria de Educação da Cidade de
São Paulo, também é arte educadora e designer gráfico.
Resumen
El objetivo de este artículo es presentar a dos alfareros con sus temas poéticos antagónicos: Kukuli Velarde
y Máay Koffler - con narrativas que cruzan mi delicado x ácido, o político x sublime, dignas de reflexión
porque son (re) construcciones y (re) visitas de cerámica e imaginería precolombina. Más que reconstruc-
ciones, son traducciones y narrativas significativas para construir a través de sus experiencias de vida.
Palabras clave: Kukuli Velarde; Máay Koffler; América Latina; cerámica precolombina.
Os artistas latino americanos a partir da metade do século XX, iniciaram a autonomia em busca de
uma identidade artística, chamada por Giunta (2020) em Modernidade Periférica. A dominação hegemô-
nica imposta nos campos das artes, pelos europeus, retardou o processo atual, mas não o impediu. Não há
uma identidade latino americana única no campo das artes, fazendo com que a diversidade múltipla dos
povos, seja um diferencial a ser referenciado como um retrato cultural ao mundo.
Seguindo na proposta de Andrea Giunta, que é uma análise da produção latina, uma defesa dessa
identidade aliada numa permanência e manutenção das relações internacionais por uma história da arte
global, o presente artigo situará duas artistas: uma paraguaia e uma peruana - importantes para esse cenário.
Ambas mulheres, trazem em suas poéticas uma tradução da ancestralidade pré colombiana dos povos ances-
trais da Amazônia. Cada um de um jeito particular, (re) vive, (re) constrói, através de uma produção cerâmica
bem peculiar. Pode-se situar as artistas Velarde e Koffler no expoente do pós - modernismo e que se inseriu
no caminho construído após as propostas dos artistas militantes do pós-guerra na América Latina.
Através dos seus caminhos de vida e particularidades, Velarde e Koffler apresentam através da
cerâmica uma poética antagônica entre si. Apesar de terem a cultura pré-colombiana como fonte e base
para suas criações, cada uma escolheu propostas opostas: enquanto uma é denúncia, a outra é a calma-
ria; uma é agressiva, a outra é delicada. Dessa forma serão apresentadas o histórico e algumas séries
dessas artistas, no decorrer desse artigo.
A artista peruana Kukuli Velarde (1962 - ) cria peças autobiográficas e toda a sua produção ar-
tística possui temas que estão presentes em sua vida, nas raízes familiares e na história do povo do Peru.
A artista paraguaia e radicada no Brasil Máay Koffler (1952 - ), já se apropria dos ícones, lendas e da
técnica da cerâmica pré-colombiana do Peru, mais especificamente de Chulucanas para discutir sobre as
representações do corpo da mulher e do feminino na materialidade da cerâmica. As duas artistas fazem
representações icônicas da cultura andina e ancestral, (re) significações, traduções e (re) construções do
imaginário andino pré-colombiano em narrativas imagéticas contemporâneas.
Velarde atribui às cerâmicas um poder de persuasão, nelas fica claro a mensagem que deseja pas-
sar. Consegue comunicar a qualquer pessoa sem restrição e isso as torna poderosas e interessantes. Cria
novos mitos, reconta a sua história através daquela escrita pelos dominadores espanhóis. Inspira-se em
lendas mitológicas e a ancestralidade ameríndia é o seu retorno às origens, um reconhecimento das suas
raízes numa busca de autoconhecimento.
Em suas obras as imagens são construídas a partir da sua história de vida como uma descendente
dos ameríndios e das abordagens históricas da representação do corpo feminino na Arte, das invasões
espanholas e da sua colonização de exploração na América Latina. Em sua poética, há o autorretrato e a
relação do corpo no cânone imposto pela Igreja, Estado e Instituições. Seu trabalho obriga o espectador a
refletir sobre essas questões e muitas vezes “choca” o público pelas exposições diretas e assertivas da explo-
ração (diversas) do corpo feminino.
É esse caminho poético do seu processo criativo, nem sempre prazeroso, que Velarde cria suas áci-
das obras autobiográficas e identitárias dos povos pré-colombianos: assassinados, dominados, mutilados
- pela dominação e colonização espanhola. Para compreender o envolvimento da artista em seu próprio
processo de criação, a pesquisadora Almeida explica:
O ato de olhar para esse universo particular pode ser difícil, complexo, moroso, já que se
abrem feridas que não sangravam mais. É expor-se dentro para fora, é virar-se do aves-
so. É despir-se para se desconstruir. Este é, em certa medida, o caminho de numerosas
produções contemporâneas, já que muitas vezes os artistas e suas biografias tornam-se
temas das suas obras. (ALMEIDA, 2018, p.101).
As séries produzidas por Kukuli Velarde provocam conexões auto reflexivas sempre confrontando
os temas históricos e sociopolíticos contemporâneos, de gênero, do feminismo, de identidade. Usa o sim-
bolismo popular e figuras fantásticas, para atribuir à plasticidade, o erotismo, as mitologias religiosas, a
latino-americanidade e autoimagem. Utiliza seu rosto e seu corpo o retratando nas obras, para explorar o
nu feminino de uma forma bem particular, que chega ao ironismo e sarcasmo.
Com a apropriação da simbologia e ícones sagrados da Igreja Católica, da mitologia da Antigui-
dade Clássica e dos povos ameríndios Pré-Colombianos, provoca uma discussão central sobre a represen-
tação do corpo feminino e da mulher pela sociedade, pela mídia e pela História da Arte. Em como essas
imagens artísticas contribuíram para uma construção e permanência de símbolos e verdades criadas por
textos históricos e sagrados, que subjugam as mulheres. Velarde traz essas questões para os debates atuais,
para uma nova historiografia da arte: feminina e latina.
Las representaciones del arte y las del activismo feminista interrogaron las claves del discipli-
namiento del cuerpo femenino cuya contracara era el disciplinamiento del cuerpo masculino.
Ante una historia de representaciones del arte muy formalizadas –más allá de las excepciones
que el historiador puede siempre señalar–, irrumpen imágenes que interpelan la naturalización
social e institucional de lo femenino y de lo masculino. (GIUNTA, 2018, s/n. Edição do Kindle).
Na série Plunder me, Baby, de 2007, Velarde ironiza através do próprio título que se encontra em
inglês, o erotismo feminino que é manipulado e usado como representações sociais e ideológicas. Anali-
sando o título, uma tradução possível é “saque-me/roube-me, querido” - usada pela artista justamente para
retratar os saques, a violência e mortes recorrentes nas invasões em guerras.
As obras criticam a colonização espanhola que: explorou, roubou, sacou, dizimou e inferiorizou os
povos nativos das Américas. No que resultou em anos de atraso social, econômico e cultural em relação aos
países dominantes. Elas são releituras das cerâmicas dos povos originários da América Latina, feitas pela
apropriação da técnica usada por eles. Segue as considerações de Kukuli Velarde2 sobre esse trabalho, nada
melhor do que as palavras da própria artista para empreender nesse acervo imagético que ela (re)cria:
Um grupo de dançarinos coloridos passa por nós conversando e rindo. Tenho dez anos
e quero saber o que eles estão dizendo; Peço a Lorenza, uma jovem de dezesseis anos de
uma minúscula aldeia peruana que é minha babá. Sua mão direita acena nervosamente
diante do rosto, como se espantasse o fantasma de algum ancestral inoportuno. Ela está
olhando para mim com raiva enquanto repete cuidadosamente como um mantra uma
lição que eu acho que precisava ser aprendida: “Eu” ela diz “não falo quíchua”. Sua voz,
tingida pelo som de quinhentos anos de colonização, rachaduras presas em sua traqueia,
enquanto tentava desesperadamente suavizar seu sotaque.
A troca foi boa para você, Lorenza? Os xingamentos, as humilhações, a falta de oportuni-
dades, o desespero, a pobreza são dignos para você? O que o fez escolher a segurança de
uma realidade “só em espanhol”? O que fez você se sentir inadequado e inferior? Ficaria
orgulhoso de seu sangue nativo saber que as obras de arte dos fabricantes pré-colombianos
são itens de coleção caros, lindamente exibidos nos melhores museus do mundo ocidental,
definitivamente muito respeitados e totalmente admirados ... espólios de guerra?
Lorenza, lamento que muitos acreditem que a barganha valeu a pena enquanto você está
invisível em uma sociedade neurótica que nega freneticamente o que o espelho diz. De-
dico a você este corpo de trabalho: uma instalação de peças de cerâmica reminiscentes
da arte pré-colombiana em prateleiras. Eles estão despertos e estão cientes de que estão
sendo observados. Eles podem ser muito bem cuidados, como animais exóticos em um
centro de entretenimento zoológico, mas estão presos, estranhos ao contexto e despoja-
dos de todo significado. Cada um é intitulado com nomes pejorativos, os mesmos que
você e muitos como você e eu sofremos por causa de nossa ancestralidade indígena. To-
dos eles têm a minha cara, pois tive de me tornar cada um deles para reivindicar a posse
e receber o xingamento com desafio. Eles mostram em suas atitudes e gestos o espírito
rebelde que nunca deve abandonar nossos corações.
Temos que abraçar nossa história para entender suas conseqüências para finalmente le-
vantar nossas cabeças com dignidade. Afinal Lorenza, somos todos de uma mesma raça,
sabe qual? O mais desumano, a raça humana. (VELARDE, 2007).
Houve a recuperação da técnica, dos modelos utilitários e da iconografia das civilizações andinas:
Cupinisque, Nazca, Mochica e Tihauanaco. Nas exposições, as peças foram cuidadosamente dispostas em
prateleiras, projetadas para uma instalação que imitou um museu antropológico, que exibe orgulhosamen-
te as peças andinas saqueadas pelos europeus. De acordo com Almeida (2018, p.108) “(...) Os títulos de
suas obras definem a percepção da peça escultural e convidam o espectador a refletir sobre o conceito de
2
Descrição da artista sobre a série que se encontra em seu site: www.kukulivelarde.com
arte não ocidental e os preconceitos que nela estão contidos”. E esses títulos vão além, por serem escritos
com escárnio assim como os próprios elementos plásticos presentes nas cerâmicas. Velarde fez questão de
reforçar a temática, dedicando comentários para cada peça. Como na figura 3 a artista escreveu: “A ofere-
cida. A quem cabe! (Mas não faça personagem). Já na figura 4, encontramos: “Vadia aborígene selvagem”.
Figura 1 - Plunder Me, Baby, 2007, Galeria Barry Friedman, Nova York, 2010. Autor: Kukuli Velarde
Figura 2 – A oferecida, a quem cabe! (Mas não faça Figura 3 - Para Cholitranca seu índio saiu! Vadia
personagem). Chuchumeca Autóctona Moche com aborígine selvagem. Moche Perú AD 200. Autor:
desenhos de Viru Perú, 1-800 DC. Autor: Kukuli Velarde Kukuli Velarde
Já a série Isichapuitu de 1997 a 2002, é uma instalação composta por trinta e seis esculturas. Criada
a partir de uma peça arqueológica mexicana datada a 2000 anos, da Coleção Rockefeller do Metropolitan
Museum de Nova Yorque, nos Estados Unidos. A peça era uma escultura huasteca de aproximadamente
2000 anos. É uma figura de um menino gordo, que assemelha um buda, desses comuns na sociedade oci-
dental. A partir dela, Velarde pesquisou alguns mitos, no qual destaca-se o seguinte conto oral de Cuzco:
Era uma vez um padre perdidamente apaixonado por uma mulher que morreu. Em seu desespero, ele
obteve um “vaso da morte” para convocar o espírito dela e a amou mais uma vez3.
O conto se trata de Manchaypuitu (masculino) e Isichapuitu (feminino), que significam vasos ou cânta-
ros da morte na linguagem inca. Nessa mitologia, esses vasos tinham características visuais humanas, represen-
tavam o homem ou a mulher mortos e era usados como ferramenta ritualística para trazer de volta do passado,
o espírito de quem representava. Velarde em sua instalação, fabricou 36 esculturas para representar os corpos
de seus antepassados em seu próprio corpo. Assim, moldou o próprio rosto nessas esculturas e em seus corpos
imprimiu as memórias, crenças, medos e desejos: seus, dos familiares e do povo andino. Considera-os cântaros
de vida (vasos de vida), retratando a morte, o renascimento e a fertilidade. De acordo com a própria artista:
(...) Eles me seguem, me atormentando ou adoçando meu caminho. Nesta fase da minha
vida quis invocar a sua presença, agradecer-lhes por existirem e fazer as pazes com cada
um deles. Mas eu não sabia como, até que vi uma fotografia de uma estátua mexicana
da Coleção Rockefeller no Metropolitan Museum de Nova York. (...) Isichapuitu é uma
instalação de várias versões da mesma figura, mas cada uma respondendo a uma neces-
sidade muito diferente. Várias vozes com suas próprias histórias: minhas histórias. São
diferentes órgãos de um mesmo corpo apresentados no chão, lado a lado, como uma
metáfora da totalidade. Porque cada um de nós, somos todos soma de vísceras e carne,
expectativas e decepções, memórias e esquecimento, generosidades e mesquinharias.
Eles vão para o chão porque eu quero que eles invadam nosso reino. Eles vão um ao lado
do outro, porque não foram criados para serem observados e qualificados como objetos.
Seu valor não está em minhas habilidades, mas em sua mera existência. Eles existem,
primeiro para mim e depois para todos os outros. A instalação Isichapuitu é um exorcis-
mo, mas é também uma despedida e um novo começo. (VELARDE, 2002)4.
Todas elas mantêm a fisionomia de Kukuli e permanecem com os braços para cima, como se
suplicassem por ajuda. Mantêm a boca ligeiramente aberta, como se estivessem prestes a falar,
mesmo que ainda lhe faltassem o sopro divino. Há uma aura de tensão presente nas figuras me-
tamorfoseantes. Kukuli desconstrói aspectos relativos aos mitos populares ancestrais e atuais.
Relativiza o corpo da mulher e o coloca em uma zona indefinida, um limbo de gêneros.
As peças possuem um aspecto sombrio, o que torna a instalação um caráter singular por retratar
também as lutas dos povos andinos nativos das Américas. Levam o espectador a refletir sobre o estado de
vida e morte, sobre a sua relação com esse tema. As peças foram confeccionadas com argila branca e terra-
cota, queimadas em baixa temperatura, modeladas com a técnica da barbotina e reproduzidas moldes de
gesso. Para pintar, Velarde aplica engobes coloridos, esmaltes e pinturas a frio.
3
Descrição da artista sobre a série que se encontra em seu site: www.kukulivelarde.com
4
Relato da artista presente em seu site: www.kukulivelarde.com
Figura 4 – A série Isichapuitu, 1997-2002, Clay studio, New York. Figura 5 - Santa Chingada, a mulherzinha perfeita
Autor: Kukuli Velarde I, série Isichapuitu, 1997-2002, coleção de Michael
John Kohler Centro de Arte. Autor: Kukuli Velarde
A artista Máyy Koffler nasceu no Paraguai, passou uma boa parte da sua vida no Uruguai e já morou
em vários lugares do mundo. Parou no Brasil e criou suas raízes, se considerando uma uruguaia com alma
brasileira5. E foi no Peru, em que encontrou seu caminho na cerâmica e na arte. Diferentemente de Kukuli
Velarde, escolheu a cerâmica como sua principal linguagem de expressão, mas o que torna as duas semelhan-
tes é que ambas buscam nas lendas e cultura andina, na mulher, as inspirações para seus trabalhos.
Sua poética não é de denúncia nem crítica sobre a situação da mulher na sociedade, ela se define
em uma busca pela perfeição das formas a partir do corpo feminino. Koffler desde pequena interessou
pelas linhas dos corpos das mulheres, a forma curvilínea era (é) o resumo de uma beleza única e peculiar.
Desde a infância desenhava mulheres, estudava os diversos corpos e as diversas formas de retratá-los.
Quando teve seu primeiro contato com a cerâmica, no Peru, enxergou nela as possibilidades plásticas para
levar seus estudos em desenho para o tridimensional. Essas informações para Koffler estão claras hoje,
vistas após 30 anos de experiências, porque naquela época, ela mesma não tinha ideia em como em sua
poética estava presente as suas experiências de vida.
As suas obras traduzem a força da mulher através da delicadeza das formas que também che-
gam ao minimalismo. Ela utiliza o paleteado, uma técnica pré-colombiana de modelagem manual, a qual
aprendeu com o mestre ceramista peruano Jose Luis Yamunaqué (1951 - ), um estudo iniciado em 1986.
Também se aprofundou nas cerâmicas pré-colombianas, principalmente das civilizações da cultura Tallán
ou Vicús de Chulucanas. Para a artista Yamunaqué é seu mestre, atribui a ele todo o seu aprendizado:
5
Declaração dada em entrevista à Silvia Noriko Tagusagawa em sua pesquisa de doutorado em 2015.
(...) Jose Luis Yamunaqué que foi meu mestre. Ele me iniciou na Arte Cerâmica. Foi a
ponte para esse encontro tão significativo na minha vida. Ele é de Chulucanas. Fiquei
encantada com a história que tinha por trás de sua obra: a cultura Vicus. Um povo de
riqueza ímpar com expressões artísticas de grande beleza e profundidade e intimidade
com que eles se relacionavam com a natureza, suas crenças e costumes. Naquele mo-
mento, tudo se clareou e passou a ter um sentido na minha vida6.
Também utiliza a queima primitiva, engobes, terra sigilata, porcela e o bruñido7, esse último Koffler
desenvolveu sua técnica, praticamente é a sua assinatura na obra que é acetinada, lisa e lustrada. À primeira vista
duvida-se que é uma cerâmica, devido a materialidade sólida e lisa ao extremo, como uma pedra: é isso que tor-
na suas cerâmicas tão peculiares. As séries de obras que serão apresentadas fazem parte desse universo feminino
de Koffler, a artista se baseou, em especial na história das mulheres talhanes, como ela própria relata:
(...) Essas mulheres carregam personalidade que eu admiro. Eram mulheres muito espe-
ciais com posturas de liderança quando seus homens iam realizar outras tarefas. Existem
várias crônicas tanto de cronistas indígenas como espanhóis que ressaltam essas carac-
terísticas de forma explícita. Frei Reginaldo Lizárraga, por exemplo diz: “à margem do
rio Motupe encontrei um povo governado por mulheres que eram as Capullanas, cha-
madas assim pelos espanhóis por causa de seu vestido que tinha uma espécie de capuz.
Mas para a historiadora Maria Rostworowski de Diez Canseco, a palavra Capullana é de
origem Tallán que significa filha. Quando se falam de Capullanas se faz referências ao
governo de certa mulheres talhanes, governo que existiu na costa norte de Peru dentro
de uma cultura pré-hispânica dos talhanes8.
Apesar da obra de Koffler não ser de denúncia, para a artista é claro a importância do questiona-
mento do movimento feminista sobre a condição do “ser mulher” na sociedade latina. Tem claro a concep-
ção de submissão e a posição social das mulheres foram frutos da colonização espanhola, a qual impôs suas
regras principalmente através da religião.
Na sua série Mama Huaco e Mama Ocllo há traduzido nas cerâmicas, uma lenda Tallán sobre mulheres
pedras: mulheres incas que quando morriam se transformavam em pedras, e que voltavam a vida para guerrear
ao lado do seu povo, em suas lutas9. A lenda trata também sobre a criação da região de Cuzco, capital Inca como
também há uma crônica de Sarmiento de Gamboa, que Mama Huaco foi a mulher que arremessou uma vara de
ouro inúmeras vezes até fincar-se em um assentamento definitivo o qual fundou a cidade de Cuzco.
Ainda sobre essas obras, Koffler declara que ao visitar algumas cidades do Peru, conseguiu sentir
a energia e a presença dessa espiritualidade inca, que as montanhas e as rochas eram as próprias mulheres
incas, olhando a paisagem exclamou: Olha, isso aqui é uma mulher10!
Na série Mulheres Tallanes, são peças silbadoras, ou seja, instrumentos de sopro. Kofler também
se inspirou na lenda já descrita e para ela as peças também são chamadas de mulheres que assobiam. Nes-
sas obras há apropriação dos elementos figurativos das cerâmicas dos Tallanes e Kofler os utiliza para
6
Entrevista concedida à Silvia Noriko Tagusagawa em sua pesquisa de doutorado em 2015, p.230.
7
Técnica pré-colombiana de cerâmica que consiste alisar, esfregar, a peça ainda úmida, com uma pedra lisa, para
dar uma uniformidade, brilho em seu acabamento.
8
Entrevista concedida à Silvia Noriko Tagusagawa em sua pesquisa de doutorado de 2015, p.232-233.
9
Informação em seu site http://www.mayykoffler.com .Acesso em 20/09/18.
10
Declaração presente em seu blog http://mayykoffler.blogspot.com/2013. Acesso em 04/10/ 2010.
representar o corpo feminino, o manto, os acessórios usados por essas mulheres. Há a simbologia do sexo
feminino através do triângulo, uma forma usada por outros povos ancestrais. Para Kofler, a representação
do sexo feminino e do útero, são importantes e estão presentes não só nessa série mas como nas porcelanas
coloridas: o útero é representado como acolhimento.
Figura 7 - Mulheres Tallanes, cerâmica paleteada com engobes, 2004/2013. Autor: Máyy Koffler
a própria forma do útero e nelas há o questionamento da origem da vida. Nesse período estudou os fósseis,
as conchas, nautilus, triobitas, outiços e quitons resultando em muitas conchas modeladas.
Após essa experiência Koffler retorna aos estudos de formas e superfícies limpas e lisas. Cria sua
técnica de coloração da porcelana juntamente com argilas e modelagem do paleteado. Essas obras refra-
tárias, com um discreto nuance e variações de cores que ao mesmo tempo são linhas e desenhos curvos
na superfície, também são retratos do corpo e da alma feminina pela ótica da artista. Numa plasticidade
delicada leve e sublime, em diferentes ângulos vê-se a essência feminina através de formas abstratas. Mas a
artista não enxerga nessas formas o utilitário, para ela são esculturas, embora sejam containers.
Figura 8 - Mulheres Tallanes, cerâmica paleteada com Figura 9 - Concha, 1998, cerâmica paleteada com engobe. Autor:
engobes, 2004/2013. Autor: Máyy Koffler Máyy Koffler
Figura 10 - A Bela Adormecida, porcelana paleteada com Figura 11 - A Bela Adormecida (detalhe), porcelana paleteada
corantes cerâmicos, 2013/2014. Autor: Máyy Kofler com corantes cerâmicos, 2013/2014. Autor: Máyy Kofler
As séries apresentadas são resultados de um trabalho intenso de duas artistas que possuem poéti-
cas antagônicas e poucas semelhanças. Kukuli Velarde busca em desvendar, desvelar, reafirmar o obscuro
e a verdade histórica, antropológica e social. Numa proposta particular e autobiográfica, percorre pela his-
tória latina americana para acionar as temáticas. Máyy Koffler também possui uma poética autobiográfica,
mas ela não fica clara ao espectador. Ela busca o domínio técnico como parte primordial do seu processo
11
Entrevista concedida a Silvia Noriko Tagusagawa no dia 19/08/2013, presente em sua tese de 2015, em na p. 254
criativo e para ultrapassar as possibilidades plásticas do material. As duas artistas possuem a influência da
cultura andina, em particular a cerâmica pré-colombiana, as lendas dos ameríndios das regiões do Peru.
Também, cada uma com a sua particularidade, encontraram no feminino, seja nas questões feministas,
sociais, históricas, do corpo material e sua representação - a fonte primeira de suas criações.
É importante escrever sobre as artistas pelas faltas de escritos desses assuntos, já que por muito tem-
po estivemos submergidos por imposições hegemônicas. Afirma-se que não é tarefa fácil, escrever sobre a
arte da América Latina, uma vez que resultam das complexidades, diversidades políticas, econômicas, sociais,
culturais, originárias da miscigenação de povos nativos, europeus, africanos e asiáticos. Há uma leve aparên-
cia de união e na verdade, é um elemento de grande força heterogênea que exclui a ideia de que os países que
formam a América Latina possam vir a ter um movimento artístico uniforme regional (AMARAL, 2006).
Há uma urgência em pesquisar as produções femininas, a cerâmica e as questões das repre-
sentações dos corpos nas artes. Nesse texto, parte da pesquisa em andamento de doutoramento, per-
mite o acesso para infinitos caminhos teóricos, dialógicos e para as possibilidades de desdobramentos
teóricos e práticos para as Artes.
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Recebido em 06/10/2020
Aceito em 23/11/2020