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serviço social,
ão e educação e
Antropologia
ogia na CASAI-SP

I-SP
VA L É R I A M A C E D O
UNIFESP

JACIARA AUGUSTO M ARTINS


CASAI-SP

MARIA CRISTINA TRONCARELLI


Projeto Xingu
Macedo, Valéria | Martins, J. A. | Troncarelli, M. C.

TRÊS LINHAS E ALGUNS NÓS: SERVIÇO SOCIAL, EDUCAÇÃO


E ANTROPOLOGIA NA CASAI-SP
Resumo
Este artigo se volta para a atuação – em atividades conjuntas
e outras específicas – de uma assistente social guarani, uma
educadora e uma antropóloga na Casa de Apoio à Saúde Indígena
em São Paulo. Nosso propósito foi compartilhar experiências
e reflexões sobre a CASAI enquanto espaço constituído por
diferenças em múltiplas escalas relacionais, com suas potências
criativas e tensões. Nessa direção, pacientes e acompanhantes
indígenas oriundos de todas as regiões do país e profissionais de
diferentes formações encontram-se ali engajados no que Isabelle
Stengers designou como cosmopolítica, em que conflitos e alianças
prescindem de quaisquer pressupostos universalizantes como
denominador comum.
Palavras-chave: CASAI; saúde indígena; burocracia, biomedicina
e saúde indígena; arte, conhecimentos e saúde indígena

THREE THREADS AND SOME NODES: SOCIAL SERVICE, EDU-


CATION AND ANTHROPOLOGY IN CASAI-SP
Abstract
This manuscript focuses on the acting – joint and other
specific activities - of a Guarani social worker, a teacher and an
anthropologist in the Indigenous Health Support House in São
Paulo (CASAI-SP). Our purpose was to share experiences and
reflections on CASAI as a space consisting of differences in
multiple relational scales, with its creative powers and tensions.
In this direction, indigenous patients and their companions
from all regions of the country and professionals from different
backgrounds are engaged in what Isabelle Stengers designated
as cosmopolitics, in which conflicts and alliances disregard any
universalizing assumptions as the common denominator.
Keywords: CASAI, indigenous health; bureaucracy, biomedicine
and indigenous health; art, knowledge and indigenous health

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Três linhas e alguns nós

TRES LÍNEAS Y ALGUNOS NUDOS: SERVICIO SOCIAL, EDU-


CACIÓN Y ANTROPOLOGÍA EN CASAI-SP
Resumen
Este artículo indaga sobre la actuación –en actividades conjuntas
y otras específicas – de una asistente social guaraní, una educadora
y una antropóloga en la Casa de Apoyo a la Salud Indígena en São
Paulo. Nuestro propósito fue compartir experiencias y reflexiones
sobre la CASAI como espacio constituido por diferencias en
múltiples escalas relacionales, con sus potencialidades creativas
y tensiones. En este sentido, los pacientes y acompañantes
indígenas oriundos de todas las regiones del país y profesionales
de formaciones diferentes se encuentran allí conjugados en
lo que Isabelle Stengers designó como cosmopolítica, en la que
los conflictos y alianzas prescinden de cualquier presupuesto
universalizante como denominador común.
Palabras clave: CASAI; salud indígena; burocracia; biomedicina y
salud indígena; arte; conocimientos y salud indígena.

Valéria Macedo
vvaall72@gmail.com

Jaciara Augusto Martins


lua.jacifispi@yahoo.com.br

Maria Cristina Troncarelli


mcbimba@gmail.com

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Macedo, Valéria | Martins, J. A. | Troncarelli, M. C.

Serviço social, educação e antropologia O artigo estrutura-se em quatro


são aqui designados como linhas no seções, além desta introdução e de
sentido de atuações orientadas por uma nota conclusiva. A primeira
princípios e objetivos específicos, seção busca fazer um breve histórico
constituindo trajetórias que se da CASAI-SP, posicionando-a no
interseccionam. As coautoras deste subsistema de saúde indígena. Já as
texto não incorporam respectivamente três seções seguintes centram foco,
cada uma das três linhas, mas são respectivamente, no trabalho de
atravessadas por elas de modos serviço social protagonizado por
singulares em suas atividades na uma Guarani, nas atividades culturais,
CASAI (Casa de Apoio à Saúde formativas ou artísticas desenvolvidas
Indígena) sediada em São Paulo. É na CASAI-SP e, por fim, em questões
para tais linhas e como elas conectam- antropológicas ensejadas pelo convívio
se em suas diferenças que esse texto e aprendizado com os indígenas.
se volta, pensando-as como uma via Nesse percurso, o texto busca enfrentar
de reflexão sobre a CASAI enquanto o desafio de uma escrita que possa
espaço constituído por diferenças em reunir, sem indiferenciar, essas três
múltiplas escalas relacionais, com suas linhas e seus nós, que dizem respeito a
potências criativas e tensões. convergências e complementaridades,
A escolha dessas linhas, entre ou- mas também a diferenças, apostando
tras possíveis, deve-se às respec- em seu potencial reflexivo e criativo.
tivas formações profissionais das
coautoras – sendo Jaciara assistente
social, Maria Cristina educadora e UMA CASA DE MUITAS TRAVESSIAS
Valéria antropóloga – e seu traba- (BREVE HISTÓRICO DA CASAI-SP)
lho conjunto num projeto desen- Na década de 1980, a Funai imple-
volvido há cerca de três anos. Ja- mentou as então chamadas Casas do
ciara Augusto Martim, assistente Índio em diversos centros urbanos do
social da CASAI-SP, é membro do país, que deveriam servir de pouso e
povo guarani e moradora da Terra assistência para indígenas de passa-
Indígena Jaraguá, na capital paulis- gem em cidades para tratamentos de
ta. Maria Cristina Troncarelli atua saúde, compra ou venda de produtos,
na formação de educadores e pro- entre outras atividades. Mas a CASAI
fissionais de saúde indígenas e não- em São Paulo já existia desde a déca-
-indígenas desde a década de 1980. da anterior, como escritório do Parque
Valéria Macedo é antropóloga e Indígena do Xingu (PIX) vinculado
professora no Departamento de ao convênio estabelecido desde 1965
Ciências Sociais da UNIFESP. Ela entre a Funai e a Escola Paulista de
trabalha com populações Guarani Medicina (EPM-UNIFESP) para pres-
no estado de São Paulo e vem de- tar assistência de saúde aos povos no
senvolvendo na CASAI um projeto Parque. Sob a liderança do Dr. Roberto
de extensão e pesquisa. Baruzzi, médicos da EPM passaram a

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realizar viagens ao PIX para vacinação Indígena (SASI) articulado ao Sistema


e atendimento aos indígenas. Os casos Único de Saúde (SUS). Em 2010,
que exigiam atendimento clínico ou através da Lei 12.314, é criada a
cirúrgico mais complexo eram encami- Secretaria Especial de Saúde Indígena
nhados ao Hospital São Paulo (HSP), (SESAI), que assume as ações de
vinculado à UNIFESP1. Tal convênio atenção à saúde indígena. As CASAIs
constituía uma exceção no cenário ge- deixaram então de estar sob jurisdição
ral da saúde indígena no país, até então da FUNAI e passaram a integrar os
sob a responsabilidade da FUNAI. O estabelecimentos de cada um dos
órgão contava com parcos recursos, 34 Distritos Sanitários Especiais
ações pouco sistemáticas e poucos Indígenas (DSEIs), criados para dividir
profissionais nas Terras Indígenas. o atendimento primário à saúde a
Inicialmente, a CASAI-SP era partir de critérios étnicos e histórico-
sediada no bairro da Lapa, sendo conjunturais das populações2.
posteriormente transferida para o Cada DSEI passou a ter sob sua
Paraíso, para estar mais próxima ao gestão os polos-base, conselhos locais
Hospital São Paulo. Nessa época, e distritais, bem como as CASAIs.
Maria de Fátima Rezende de Souza, Situados dentro das Terras Indígenas ou
membro do povo Pataxó (BA) e ainda em municípios de referência, os polos-
hoje funcionária da CASAI-SP, passou base devem contar com uma equipe
a trabalhar no local. Ela conta que era de profissionais de saúde que inclua
uma das duas ou três funcionárias na médico, enfermeiro(s), odontólogo(s),
instituição, acumulando funções no auxiliares de enfermagem, agentes
setor administrativo e como atendente indígenas de saúde (AIS) e agentes
de enfermagem. Os indígenas que indígenas de saneamento (AISAN). Já
frequentavam a CASAI eram em sua os atendimentos em nível secundário
grande maioria moradores do PIX, e terciário (também classificados
mas, ao longo da década de 80, pessoas respectivamente como de média e alta
de outros povos também passaram complexidade) devem ser referenciados
a procurar a casa, a exemplo dos para a rede de serviços do SUS. Existem
Guarani de aldeias do litoral sudeste atualmente 66 CASAIs, que devem
ou da região Sul. hospedar e prestar assistência aos
Uma mudança importante ocorreu indígenas que precisem do SUS para
nas dinâmicas das CASAIs com a tratamentos em centros urbanos. Além
transferência de responsabilidade da de proporcionar estadia e alimentação,
saúde indígena da FUNAI, órgão do cabe às CASAIs o agendamento
Ministério da Justiça, para o Ministério e acompanhamento em consultas,
da Saúde, no âmbito da Fundação exames e outros procedimentos
Nacional da Saúde (FUNASA). Tal médicos, bem como a assistência de
mudança foi efetivada em 1999 pela enfermagem.
Lei Nº 9.836, com a instituição do A CASAI-SP está sob jurisdição do
Subsistema de Atenção à Saúde DSEI Litoral-Sul3, mas é também

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referência nacional, recebendo pa- no itinerário terapêutico dos pacien-


cientes de outros DSEIs ou encami- tes que os demandam.
nhados diretamente pelos Estados, Atualmente localizada no bairro Vila
via Tratamento Fora de Domicílio Monumento, a sede da CASAI con-
(TFD), dada a ampla disponibilidade ta com 40 leitos distribuídos em seis
de equipamentos para atenção secun- dormitórios, sendo os dois maiores
dária e terciária em São Paulo. Sua no térreo e os demais no andar su-
equipe atualmente é composta por perior. A quantidade de pessoas em
seis enfermeiras, vinte técnicos de cada quarto costuma ser motivo de
enfermagem, uma nutricionista, uma incômodo entre pacientes e acompa-
psicóloga, uma assistente social, uma nhantes, bem como o número reduzi-
farmacêutica, uma coordenadora e do de banheiros (um masculino e um
três funcionárias do setor administra- feminino em cada andar). Há poucas
tivo. Entre os serviços terceirizados, áreas de convivência, restritas ao re-
conta com duas cozinheiras e duas feitório e à área externa, onde apenas
auxiliares de cozinha, seis motoristas, algumas plantas próximas às grades
cinco funcionárias da limpeza e qua- circundam a construção. A casa fica
tro seguranças. na movimentada Avenida Ricardo
A CASAI-SP atua em parceria com Jafet, sendo o barulho e a presença
as equipes do Projeto Xingu/UNI- de pernilongos, devido à proximida-
FESP e do Ambulatório do Índio/ de ao riacho do Ipiranga, incômodos
Hospital São Paulo. Criado em 1992, sempre mencionados entre os hós-
o Ambulatório acolhe e coordena pedes. Esses, no entanto, são apenas
itinerários diagnósticos e terapêuti- alguns entre os muitos desafios que
cos nas especialidades e setores do pacientes e seus acompanhantes en-
Hospital. As equipes da CASAI-SP frentam em sua estadia em São Paulo,
e do Ambulatório atuam acompa- para os quais o trabalho de Jaciara se
nhando os pacientes, agilizando volta.
procedimentos, organizando reuni-
ões quinzenais para discutir casos,
adequando dietas e mediando rela- ENTRE MUITOS, ENTRE MUNDOS.
ções entre as equipes do hospital, (EXPERIÊNCIAS DE UMA ASSISTENTE
indígenas e seus familiares. SOCIAL GUARANI)
A participação de especialistas tradi- Há mais de uma década, Jaciara era AI-
cionais no tratamento dos doentes, SAN e sua mãe era AIS na TI Jaraguá,
como pajés e rezadores, é possibilita- localizada na região noroeste da capital
da nos ambientes do Ambulatório e paulista e vizinha ao Parque Estadual
do HSP. Embora o espaço hospitalar do Pico do Jaraguá, onde nasceu e vive
e suas regras possam trazer limita- até hoje. Sua mãe seguiu atuando na
ções ao universo relacional e agenti- saúde, mas Jaciara tornou-se profes-
vo a ser mobilizado por esses conhe- sora na escola estadual da aldeia, onde
cedores, há o empenho de inclui-los trabalhou até o início de 2015, quando

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foi contratada como assistente social potências das moradas celestes para os
na CASAI-SP. que habitam o leito terrestre (yvyrupa).
Enquanto atuava na escola, Jaciara Não se trata, portanto, de um cargo, e
cursou a faculdade de Serviço Social sim de uma posição auxiliar numa ação
na PUC-SP, formando-se em 2009. conjunta, implicando mediações entre
Em 2015 surgiu a oportunidade de pessoas e entre mundos.
atuar nessa área, com a abertura A atuação de Jaciara como assistente
de uma vaga de assistente social na social guarani remete a essa posição
CASAI-SP. Jaciara não era apenas de mediadora entre muitos universos
uma nova funcionária, mas o cargo e itinerários que se atravessam na
de assistente social também era CASAI-SP. De modos específicos,
novo na instituição. Outras CASAIs muitos indígenas que vêm a São Paulo
contavam com assistentes sociais, mas para tratamento biomédico também
na CASAI-SP as funções que esse se reconhecem nessa posição “entre
profissional executa eram distribuídas mundos”. O próprio adoecimento
entre várias funcionárias. Assim, desde não raro é experimentado como um
o início do trabalho até hoje, Jaciara estar entre mundos, seja pela dispersão
vem buscando estabelecer sua área de dos componentes da pessoa, seja por
atuação. O manejo de papeis figura sentir o corpo habitado ou agenciado
como seu principal desafio, no duplo por outros. Estes podem ser inimigos,
sentido da papelada da burocracia espíritos, vírus, bactérias, entre muitos
(documentos pessoais dos indígenas, possíveis a depender dos modos
de seu tratamento, de sua estadia com que ganham existência. Por
e partida) e dos papeis que precisa sua vez, o processo de cura também
ocupar na mediação entre muitos, implica agenciamentos heterogêneos
e entre mundos, que interagem na entre aqueles que irão atuar na
CASAI. recomposição de seu corpo/pessoa,
Nesse sentido, é possível aproximar a sejam eles xamãs, médicos ou outros.
posição de assistente social indígena Nos tratamentos pelo SASI-SUS,
à uma posição fundamental na vida procedimentos burocráticos somam-se
guarani que é de yvyra’ija4. Um yvyra’ija a essa experiência de vulnerabilidade
costuma ser definido pelos Guarani aos agenciamentos de outros.
como um auxiliar, sendo assim Jaciara tem acompanhado as angústias
chamados aqueles que ajudam os de muitos indígenas hospedados na
tamõi (“avô”, como chamam os líderes CASAI concernentes a adoecimentos,
espirituais) em cantos-rezas e curas. tratamentos e burocracia. Para
Mas também são chamados yvyra’ija esta última volta-se a maioria das
os espíritos de diferentes patamares atribuições regimentais do cargo de
cósmicos que auxiliam os tamõi nessas assistente social. No caso da CASAI-
curas. E, ainda, os próprios tamõi SP, o trâmite para a convocação dos
podem ser chamados de yvyra’ija, por pacientes é feito por outra funcionária,
serem intermediários na transmissão de mas Jaciara auxilia-os na obtenção de

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documentos que estejam faltando – Não se sabe, portanto, de quanto


acompanhando-os no Poupatempo, tempo será a estadia em São Paulo. O
na FUNAI ou em outros locais – e tempo da vida nas aldeias fica assim
na obtenção ou continuidade de suspenso, não sabem se poderão
apoio financeiro por terem sido plantar suas roças no período certo,
encaminhados pelos estados via TFD. se os filhos e parentes estarão bem
Também é comum que acompanhe cuidados na sua ausência, se o
indígenas ao banco e lugares que não emprego estará garantido, se poderão
se sintam seguros de ir sozinhos. No participar da festa tradicional, se o
retorno dos pacientes e acompanhantes cônjuge continuará sozinho, entre
para as aldeias, seu trabalho inclui a muitas outras angústias que Jaciara
prestação de contas à SESAI, reunindo escuta dos pacientes. Tal escuta, não
a documentação necessária para a raro, inclui acusações às pessoas que
solicitação das passagens. Nos casos de são responsáveis pela circulação dos
óbito, ela providencia os documentos papeis, inclusive ela mesma.
para o encaminhamento do corpo. Tais Seu trabalho, muitas vezes, é o de tentar
atividades por vezes também são feitas otimizar tempos e procedimentos,
por outros funcionários, a depender do intervindo junto aos profissionais de
horário em que ocorrem e do acúmulo saúde e de setores administrativos.
de demandas. Mas, assim como muitas doenças, a
Assim, circulando nos computadores burocracia costuma remeter a algo
e mesas, documentos levam, trazem e ou alguém cujos contornos são
agenciam corpos. Por vezes o tempo invisíveis ou indefinidos. Sofremos
é estritamente controlado – como nos seus efeitos, mas é difícil combatê-
horários prescritos para os remédios los pela dificuldade de identificação
nas receitas médicas e no agendamento dos agentes, difusos e múltiplos. O
de consultas e exames –, em outras ele tratamento pode suscitar esse mesmo
é incerto – como nas longas esperas sentimento. Jaciara muitas vezes tem
para atendimento e no tratamento de sido demandada a explicar aos pacientes
modo geral. Tanto os diagnósticos diagnósticos e prognósticos médicos
como efeitos dos remédios e que não foram compreendidos durante
intervenções podem permanecer as consultas, em razão de dificuldades
incertos por períodos variados. no domínio da língua portuguesa e
Nos casos de cirurgias, mesmo que principalmente do idioma biomédico,
estejam agendadas, podem ser adiadas o qual ela própria está aprendendo
diversas vezes quando surgem casos a dominar. Em muitas situações, a
de emergência. Há pacientes que mediação ainda é mais difícil por
ficam meses nessa condição de espera não se tratar de uma dificuldade de
na CASAI. Depois da alta médica, a compreensão, e sim de concordância
partida igualmente depende do trânsito com as premissas biomédicas.
dos papeis. A chegada das passagens É certo que a interlocução entre in-
implica uma espera média de 20 dias. dígenas, médicos e outros profissio-

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nais de saúde varia muito, podendo- de e, ao mesmo tempo, de contínuo


-se construir relações de cumplicidade aprendizado.
e afeto, a despeito da divergência de Não apenas os indígenas podem ter
pressupostos e significados. Mas são dificuldades de compreensão ou dis-
também recorrentes os casos em que a cordarem de procedimentos, haven-
equipe médica pouco sabe ou pergunta do diversas situações em que Jaciara
sobre outros aspectos do paciente que precisa explicar aos profissionais da
não sejam relacionados àquele órgão saúde diagnósticos e prognósticos in-
ou a exames e procedimentos do tra- dígenas. Por exemplo, no caso de um
tamento naquela especialidade. O cor- recém-nascido guarani internado cuja
po ali é matéria de um conhecimento mãe deixou o posto de acompanhan-
que busca objetividade, ou a diagnose te e voltou para a aldeia, alegando que
de uma realidade física, a qual se aces- não poderia ficar ali. A assistente social
sa também por meio das imagens de do hospital entrou em contato com a
radiografia, ultrassom, exames labora- CASAI, dizendo que havia um caso
toriais e outros dispositivos que fazem de abandono e cogitando a hipótese
visível a doença para o médico, mas na de oferecer a criança para adoção. Ja-
maioria das vezes não para o paciente. ciara conversou com a mãe da criança
Há consultas pautadas por trocas e e então explicou à assistente social do
conversas, e outras por silêncios e hospital que a mãe não abandonara o
expressões que não são mutuamen- filho, e sim voltara para a aldeia com o
te compreensíveis. Não apenas os objetivo de ajudar a que seu nhe’ẽ – ser
médicos dizem pouco, como muitos que habita os Guarani na condição de
pacientes e seus acompanhantes dão sua alma – se assentasse em seu corpo
respostas sucintas que buscam abre- para que seu filho sobrevivesse. Como
viar a interlocução, dada a dificuldade o nhe’ẽ estava longe, não adiantava ela
de empreendê-la. O técnico de en- estar ali próxima do corpo. Era na opy
fermagem que acompanha a consulta (a casa de reza), juntamente com o
pode desempenhar um papel impor- tamõi e seus parentes, que ela poderia
tante nessas ocasiões, sendo desafia- buscar trazer o nhe’ẽ ao corpo do filho.
do a perceber situações em que deve Em outra ocasião, Jaciara estava
falar pelo paciente e outras em que o participando de uma reunião multi-
paciente ou seu acompanhante pre- profissional para discussão do caso de
ferem expressar-se. Algumas dessas um recém-nascido do povo Xavante
consultas são também acompanha- e a enfermeira do hospital comentou
das por Jaciara, que é demandada a que a mãe devia estar precisando de
fazer a mediação entre pacientes e roupas, pois havia lhe pedido algumas.
equipe médica. As dificuldades de tal Uma enfermeira da CASAI mencionou
posição crescem bastante quando os que é costume desse povo pedir roupas
pacientes não são Guarani. Por essa e que a indígena já tinha várias malas
razão, Jaciara experimenta um sen- acumuladas. Então Jaciara ponderou
timento persistente de incompletu- que a mãe não estava pedindo porque

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Macedo, Valéria | Martins, J. A. | Troncarelli, M. C.

carecesse de roupas, mas porque queria A assistente social, a psicóloga e


que ela, a enfermeira do hospital, lhe outras pessoas da equipe buscam
presenteasse, estabelecendo assim manejar essas tensões com conversas
um vínculo com ela, algo importante interpessoais, mas por vezes questões
naquele contexto adverso. polêmicas – como o cardápio da
O maior desafio no trabalho de Jaciara, semana, o uso dos banheiros e espaços
coletivos, os namoros, o consumo de
porém, talvez não seja a mediação
álcool, entre outras – são tematizadas
entre profissionais ou procedimentos
nas reuniões quinzenais reunindo a
de saúde e indígenas, ou entre estes e
equipe e os pacientes, ou em outras
a burocracia, e sim os entre-mundos
configurações coletivas. Ali se chegam
na convivência na CASAI. Indígenas
a alguns acordos, mas para muitos a
de diferentes regiões do Brasil
reunião coletiva não é um contexto
compartilham dormitórios, banheiros,
enunciativo em que se sentem à vontade
refeitório e demais espaços da casa, sem
para se expressarem. Para a equipe é
que compartilhem as mesmas premissas
muito difícil lidar com essas situações,
sobre cuidados com o corpo, lugares e
em que representam a instituição
relações. Tais diferenças podem ensejar estatal e suas regras de higiene,
trocas e aprendizados, mas também comportamento e funcionamento. Por
conflitos, receios e incômodos, os vezes suas falas implicam repreensões
quais, muitas vezes, cabe à Jaciara e ou imposições que são interpretadas
funcionários da CASAI equacionarem, como desrespeitosas pelos indígenas.
de modo constantemente provisório e
incompleto. Nessas ocasiões, Jaciara e o restante
da equipe reiteram as regras que
As restrições alimentares talvez sejam estabelecem direitos e deveres dos
o mote de maiores controvérsias, hóspedes, apresentadas por Jaciara no
mas também existem conflitos chamado acolhimento quando chegam à
concernentes a hábitos de higiene e CASAI. Nesse momento, Jaciara faz
de comportamento. Tais diferenças perguntas e preenche um formulário
não se devem apenas a costumes com dados biográficos, sobre a
que singularizam os povos, como região de origem e a experiência do
também a características pessoais e do adoecimento dos pacientes e seus
momento de vida em que os pacientes acompanhantes. Aqui, novamente,
e seus acompanhantes encontram- o contexto enunciativo por meio
se. Os quartos são coletivos e de perguntas e respostas diante de
pessoas constrangem-se com práticas um formulário muitas vezes não é
sexuais ou atitudes que lhes parecem propício, e apenas com o tempo as
impróprias por parte de outros. Entre relações adensam-se, possibilitando
mulheres, os casos de assédio são um uma interlocução mais qualificada.
problema nesta e nas CASAI de modo Outras vezes, esse primeiro contato
geral, assim como problemas com já estabelece uma cumplicidade que
alcoolismo e furtos. acompanha toda a estadia do paciente.

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Três linhas e alguns nós

A posição de indígena singulariza seção fazem parte dessas buscas por


a atuação de Jaciara em inúmeras fazer das diferenças vividas por todos
ocasiões, suscitando maior proximidade na CASAI também uma fonte de
e cumplicidade com muitos pacientes aprendizados, trocas e reflexões.
e seus acompanhantes. Não foram
poucas as situações em que ela foi de
encontro a posicionamentos e atitudes CONHECIMENTOS DAS ALDEIAS
de profissionais de saúde em defesa da E CONEXÕES NA METRÓPOLE
perspectiva dos indígenas. Mas, como (ATIVIDADES CULTURAIS, FORMATI-
funcionária da CASAI, ela também VAS E ARTÍSTICAS NA CASAI-SP)
é porta-voz de regras de higiene, de
comportamento e de orientações Dificuldades de locomoção e interação
médicas, as quais nem sempre são que muitos indígenas experimentam ao
recebidas sem constrangimento ou virem para uma metrópole da dimen-
indignação pelos indígenas. A posição são de São Paulo podem incorrer numa
de Jaciara é assim por vezes de sensação de confinamento na CASAI,
mediação e em outras de esgarçamento, agravando a sensação de vulnerabili-
já que há conflitos inconciliáveis entre dade e indisposição que o adoecimen-
a instituição pública e os indígenas, ou to suscita. A busca de atividades que
entre um indígena e outro. possam preencher o tempo ocioso dos
pacientes e acompanhantes, bem como
Ainda no que concerne à sua posição possibilitar trocas e interlocução entre
de indígena, Jaciara experimenta a eles, motivou uma iniciativa que está
desqualificação de alguns colegas,
em curso desde o segundo semestre de
que a tratam de modo infantilizado,
2014.
ou mesmo hostil, dada sua pouca
experiência com o manejo da Com a chegada de uma nova
burocracia, e ainda por priorizar coordenadora à CASAI-SP, Débora
relações com os indígenas em vez Furloni, a parceria com o Projeto
da agenda de tarefas. Tal experiência Xingu ampliou-se para além da atuação
aproxima-se daquela relatada por no âmbito do Ambulatório do Índio.
muitos AIS e AISAN, que se percebem Maria Cristina passou a dedicar-se
como assistentes subalternos e semanalmente a atividades culturais
desqualificados pelos profissionais e educativas na CASAI-SP. Pouco
não-indígenas (Novo 2010; Silva 2010; depois, Valéria e Jaciara também
Teixeira 2012). passaram a acompanhar atividades, que
O dilaceramento dessa posição ainda contam com participações de
e mesmo a insegurança quanto outras pessoas das equipes da CASAI
a sua manutenção no cargo gera e do Projeto Xingu.
muitas angústias, mas também uma Tal iniciativa foi inspirada e precedida
sensibilidade crescente nessas relações pelo Projeto Tamoromu, desenvolvido
de diferença, ou nesses entre-mundos. entre 2005 e 2010 na CASAI-SP por
As atividades tematizadas na próxima uma equipe multidisciplinar contratada

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Macedo, Valéria | Martins, J. A. | Troncarelli, M. C.

pela FUNASA, sob coordenação e empobrecidas em explicações


da antropóloga Vanessa Caldeira descontextualizadas (Cohn 2014,
e participação da educadora Dora 2016; Franchetto 2006; Gallois
Pankararu (Caldeira 2010). 2016). Quando se trata de ocasiões
As atividades atualmente realizadas envolvendo diferentes povos, é
na CASAI-SP incluem sessões de ainda mais difícil não eclipsar modos
cinema indígena, oficinas de culinária singulares de conhecer em nome de
e artesanato, rodas de conversa sobre denominadores comuns que não raro
temas desafiantes (alcoolismo, assédio naturalizam premissas ocidentais.
sexual, alimentação e doenças crônicas, Por sua vez, a CASAI-SP converge
política indigenista e movimento pessoas de vários dos mais de 250
indígena etc.), e ainda passeios a povos indígenas do país5 e que
parques, exposições, cinemas e outros estão longe de suas comunidades,
equipamentos culturais da cidade. À convivendo numa instituição de saúde
frente em muitas dessas atividades, na metrópole paulistana. A ausência
Maria Cristina é professora no Parque desses espaços institucionalizados de
Indígena do Xingu desde 1984, onde educação e saúde, contudo, já não é
coordenou o primeiro curso de uma alternativa possível nem desejável
formação de professores indígenas. Na para a maioria dos povos indígenas.
década de 90, ela passou a integrar a Trata-se, portanto, de tomar esses
equipe do Projeto Xingu, atuando na desafios como pontos de partida, e
formação escolar de agentes de saúde não becos sem saída, contando com a
e auxiliares de enfermagem indígenas. criatividade dos indígenas em traduzir-
O desafio de Maria Cristina sempre transformar esses saberes-fazeres
foi fazer da escola e outros contextos à luz de seus respectivos universos
de formação não apenas ocasiões conceituais e interesses.
de aprendizado sobre o mundo dos No caso da CASAI-SP, a atividade
brancos, mas também de reflexão e semanal mais recorrente tem sido
crítica em relação a ele, assim como sessões de cinema seguidas de conversa.
de circulação e fortalecimento de Na maioria dos casos exibimos filmes
conhecimentos tradicionais. Alguns produzidos por indígenas ou voltados
desafios enfrentados nas aldeias para a para universos indígenas, de modo a
elaboração e execução dessas atividades trazer à cena uma multiplicidade de
são ainda maiores na CASAI. Como paisagens, situações, costumes, rituais,
modos de produção e circulação de histórias e saberes. O propósito é
conhecimentos são indissociáveis atentar para essas singularidades e ao
dos conteúdos desses saberes, mesmo tempo refletir sobre conexões
contextos enunciativos implicados entre esses mundos tematizados nos
nas escolas e oficinas incidem nas filmes, de modo que as pessoas na
práticas de conhecimento, correndo CASAI possam se ver como diferentes,
o risco de serem folclorizadas (como mas não indiferenciadas. Receios ou
“lendas”, “crenças” e “costumes”) constrangimentos podem assim perder

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Três linhas e alguns nós

espaço para trocas e outras ordens de ou familiares para outros. Na maio-


vínculo. ria dos casos, as pessoas gostam de
As exibições são feitas no refeitório, assistir e é comum que peçam cópias
onde há um aparelho de TV e um para levarem às suas comunidades,
DVD. Como a maioria dos filmes é inclusive pelo pouco acesso que se
falada em línguas nativas e muitos tem a esses filmes.
têm dificuldade em ler legendas, cos- As conversas após as sessões variam
tumamos lê-las em voz alta. Mas há muito a depender dos que estão
pessoas que não tem o hábito tam- assistindo. Há aqueles que gostam de
pouco interesse em ver filmes, ou en- fazer comentários, durante ou depois
da exibição, remetendo às suas aldeias,
tão filmes indígenas. Nesse sentido,
conhecimentos e histórias, ou fazendo
um menino do povo Jamamadi, de 13 reflexões sobre questões mobilizadas
anos, interpelou Valéria perguntando no filme. Outros têm dificuldade ou
por que ela era branca e só queria constrangimento de expressarem-se
mostrar filmes de índios. Talvez ele em português e/ou naquele contexto
estivesse apontando para uma certa coletivo de pessoas de diferentes
exotização da vida nas aldeias que povos, gêneros e idades. Mesmo entre
aqueles que não falam muito sobre os
esses filmes podem efetuar, quando
filmes, porém, é frequente que nos
exibidos por brancos em instituições perguntem quando haverá sessão ou
públicas na cidade. Ele preferia fil- lamentem quando não há. Quando
mes de ação norte-americanos, e al- possível, buscamos exibir um filme
guns hóspedes da CASAI têm maior que remeta ao povo de uma pessoa na
interesse por novelas, programas de CASAI, para que os demais conheçam
um pouco sobre onde e como ela vive,
auditório ou noticiário, assim como
e para que ela possa falar sobre sua
filmes não-indígenas que fazem parte
vida e de seu povo.
da programação da TV, que está qua-
Não há espaço aqui para discorrer sobre
se sempre ligada no refeitório. Essa
as sessões6, mas cabe destacar alguns
programação traz à cena paisagens, temas que despertam muito interesse
situações, costumes, rituais, histórias e apontam para idiomas privilegiados
e saberes dos brancos, os quais po- da diferença em universos conceituais
dem crescer em interesse quando se ameríndios, como festas e rituais
está em São Paulo, buscando encon- de iniciação, que podem tematizar
múltiplas dimensões da diferença, como
trar inteligibilidade e elaborar experi-
entre humanos e espíritos, animais
ências de alteridade. Assim, os filmes
ou plantas; convidados e anfitriões;
indígenas que passamos podem pa- homens e mulheres; diferentes clãs ou
recer desinteressantes ou exotizantes grupos; diferentes idades; entre outras.
para alguns, assim como fascinantes A exuberância estética das festas incita

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Macedo, Valéria | Martins, J. A. | Troncarelli, M. C.

comparações sobre indumentária e com capacidades similares de afetar e


pinturas corporais, danças, cantos, serem afetados (ver por ex. Viveiros
lutas, comidas etc. Geralmente aqueles de Castro & Taylor, 2006). Daí esse
que mais fazem comentários são de ser um tema que suscita comentários
povos que também fazem grandes e interesse nas sessões da CASAI. Tais
festas, como os habitantes do PIX, os práticas celebram vínculos de diferença
Mẽbêngôkre e os Xavante.7 por meio do oferecimento de comida
As pessoas também ficam mobilizadas entre grupos ou tipos de gente, que
pelos desafios enfrentados pelos podem incluir espíritos, convidados de
iniciandos – como exaustão, reclusão, outras aldeias e diferentes segmentos
privação de água e sono, lutas, numa mesma comunidade. As comidas
escarificações, incisões, picadas de também produzem corpos de parentes,
formiga, plantas que produzem por meio de cuidados no preparo e
vômitos ou visões, etc. – e por consumo compartilhado de alimentos.
inversões ou tensões performadas no Entre aqueles que estão na CASAI, é
ritual, como nas relações entre homens significativo que a alimentação seja um
e mulheres. Um dos filmes que provoca dos principais temas de insatisfação e
mais reações é As hiper-mulheres, sobre discussão. Não há consenso quanto aos
a festa Yamurikumã na aldeia Ipatse ingredientes adequados e o preparo é
do povo Kuikuro (PIX/MT). O feito por profissionais que as pessoas
ritual celebra a antiga supremacia das não conhecem (pelo menos no início).
mulheres sobre os homens, que fora A comensalidade também se dá entre
perdida quando estes lhes roubaram pessoas inicialmente desconhecidas,
as flautas jakui. As pessoas riem de modo que muitos preferem levar o
muito com os cantos femininos que prato para comer em suas camas, em
fazem alusão aos órgãos e relações vez de compartilharem o espaço do
sexuais, assim como aos ataques das refeitório, a despeito dessa prática ser
mulheres aos homens em suas redes proibida na CASAI, sob alegação de
e no pátio. A questão da circulação de higiene. Por sua vez, nas sessões de
conhecimentos também é tematizada cinema e conversas posteriores tem-
no filme e gerou discussões na CASAI se ocasião para familiarizar-se com
sobre a perda de conhecimentos sobre práticas de alimentação de outros
as festas pelo desinteresse crescente povos, tanto nos filmes como nos
dos jovens ou suas dificuldades em comentários das pessoas sobre as
aprender com os mais velhos. comidas em suas aldeias.
Tanto nas festas como na vida cotidiana, As caçadas despertam particular
práticas de alimentação também interesse. É comum que comentem
são fundamentais para expressar técnicas de caça, características dos
diferenças, assim como na construção animais caçados (jabutis num filme
do parentesco. Aqueles que comem dos Mẽbêngôkre, capivara num filme
juntos o mesmo tipo de comida, vão dos Maxakali, anta num filme dos
constituindo corpos aparentados, Wajãpi etc.). Também os plantios e

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Três linhas e alguns nós

comidas tradicionais são bastante queixadas como mulheres; A história da


tematizados, quando as pessoas cutia e do macaco dos Kawaiwete; O cheiro
costumam reconhecer semelhanças do Pequi narrado pelos Kuikuro; entre
e especificidades entre o que e como se outros.
come, desde as relações com os donos- Por fim, há os filmes que versam so-
espírito daquilo/daquele que será bre histórias recentes e antigas de
convertido em alimento até modos de contato com os brancos. A luta pela
preparo. Por exemplo, alguns gostaram terra é abordada em vários deles, so-
de ver num filme sobre a culinária dos bretudo entre os povos que vivem
Kawaiwete (PIX/MT) como o mingau fora da Amazônia. Nas conversas
de amendoim com milho era adoçado posteriores, aqueles que vivem situ-
com batata doce ralada. Outros se ações similares também por vezes
interessaram pelo Nhanerembi’u Ete’i, contam como foram expulsos de suas
“Nosso alimento verdadeiro” dos Guarani terras e depois considerados invaso-
Mbya (região Sul/Sudeste), a exemplo res quanto tentam retomá-las, como
do preparo da massa de milho assada nos depoimentos de pessoas dos po-
dentro de taquaras, que recebe o nome vos Macuxi (RR), Tupinambá de Oli-
de Ka’i poxi (“bosta de macaco”). vença (BA), Kaiowa (MS) e Chiqui-
Nessas conversas, há aqueles que tano (MT). Há também aqueles cujas
apontam que comidas tradicionais já terras estão demarcadas, mas sofrem
não são preparadas por terem perdido com invasões de garimpeiros, ma-
suas terras, sendo necessário consumir deireiros, fazendeiros, hidrelétricas,
produtos industrializados. Mesmo mineradoras, entre outros empreen-
aqueles que contam com territórios dimentos8.
demarcados de maior extensão, como Nessas conversas, por vezes obser-
os Mẽtyktire, Xavante e povos do PIX, vamos uma tensão, nem sempre di-
apontam que cada vez mais a comida retamente enunciada, entre alguns
dos brancos está sendo consumida, cujas línguas e modos de viver se-
associando-a ao aumento de doenças. guem fortes em relação a outros que
Estas também são vinculadas ao foram privados dessas condições por
descumprimento crescente das regras histórias de contato mais antigas e
alimentares em diferentes momentos que incluíram de modo mais incisivo
do ciclo de vida, como na menstruação, expropriações, escravidão, missiona-
na gravidez e couvade, no luto, entre mento e outras formas de violência.
outras. Alguns indígenas não reconhecem
Narrativas primordiais, contadas em nesses povos de contato mais antigo
depoimentos ou encenadas, também diferenças em relação aos brancos.
costumam mobilizar as pessoas a Em algumas ocasiões, foi tematizado
contarem suas histórias de tempos/ como eles foram os primeiros a en-
espaços em que os animais eram/são frentarem os brancos, protegendo os
gente. Por exemplo, o filme Manoa, em outros povos do contato. Os filmes
que um caçador guarani passa a ver as e as falas após as sessões por vezes

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Macedo, Valéria | Martins, J. A. | Troncarelli, M. C.

ajudam a explicitar o contraste desses que todos podem adentrar o espaço


povos de contato antigo em relação cotidianamente pouco frequentado
aos brancos, expressando suas singu- da cozinha da CASAI e adensar
laridades e lutas. Mas essas tensões vínculos de comensalidade. Entre os
reaparecem em outras situações, so- pratos já preparados estão o mingau
bretudo em conversas interpessoais. de amendoim com arroz feito por
No que diz respeito a rodas de con- mulheres Kawaiwete, ou mingau de
versa, a equipe da CASAI muitas vezes milho por mulheres Xavante, Guarani
conta com a parceria do Projeto Xingu e Chiquitano, ou ainda pirão de
para promovê-las, principalmente de peixe com leite de castanha servido
Maria Cristina. Temas vinculados à saú- com beiju por mulheres Kokama.
de são frequentes, sobretudo alimenta- É certo que a posição de indígenas
ção e doenças crônicas, como diabetes, dessas cozinheiras não garante uma
hipertensão e problemas cardíacos, por comensalidade entre parentes, mas
sua incidência crescente entre povos pode promover uma aproximação de
indígenas no país. Um desafio sempre vínculos. Algo próximo se passa aos
presente nessas ocasiões é a naturaliza- sábados, quando a CASAI fornece
ção que fazemos da dimensão biológica peixe e polvilho para beiju para que
do corpo e de características bioquími- os hóspedes possam prepará-los na
cas intrínsecas aos alimentos, que estão churrasqueira da área externa. Por
longe de serem pressupostos compar- vezes há tensões e disputas, já que nem
tilhados por todos os indígenas pre- todos estão dispostos a comer o que
sentes. Para muitos deles, os alimentos alguns preparam, mas os pacientes
feitos nas indústrias dos brancos preo- costumam valorizar essa ocasião em
cupam por seus modos de fabricação e que não precisam consumir o prato
procedência, sendo o efeito nocivo de que vem pronto pela janelinha que
seus ingredientes indissociáveis desses separa a cozinha do refeitório.
processos. O desafio então é compar- Por fim, há que se mencionar a
tilhar conhecimentos pela circulação organização de passeios, como a praias
de experiências singulares das pesso- próximas à São Paulo, zoológico,
as em suas comunidades, sem que as parques, exposições e ao cinema. Essas
nutricionistas e outros profissionais se costumam ser as atividades preferidas
posicionem como fonte de uma verda- daqueles que se encontram na CASAI.
de científica pretensamente acima ou Muitos nunca tinham visto o mar,
além desses conhecimentos. ou piscinas como as do SESC, ou
Nas oficinas de artesanato, desenho e animais do Zoológico (como girafas,
culinária as relações tendem a ser mais leões, hipopótamos e elefantes), ou
simetrizadas, havendo um intercâmbio ainda certas plantas e pássaros que
de modos de fazer em que a troca de encontram nos parques (como os
conhecimentos e conversas ocorrem cisnes no lago do Ibirapuera). Também
de forma menos dirigida. O preparo de ali podem reconhecer árvores, outras
alimentos costuma ser uma ocasião em plantas, pássaros e macacos que

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Três linhas e alguns nós

lhes são familiares, em ambientes dizados na CASAI-SP elaborações que


menos adversos do que a CASAI ou possam contribuir em discussões na
o hospital. Os lugares mais urbanos, academia, nas políticas públicas de saú-
como a avenida Paulista, também de e outros contextos.
despertam interesse pelas construções, De modos singulares, o potencial
o comércio e os artistas de rua. Ainda, reflexivo da alteridade também é parte
alguns estiveram na Paulista para das experiências dos indígenas que
participar de manifestações pela causa vêm à São Paulo para tratamento de
indígena. Tais passeios são ocasiões saúde. A própria condição de indígena é
privilegiadas para trocarmos reflexões um viés identitário que o paciente e seu
sobre a cidade e também para falarmos acompanhante podem experimentar
da vida nas aldeias com a reflexividade de modo mais intenso em São Paulo,
advinda da distância e do contraste já que é nas relações com os brancos
com o ambiente urbano. ou em contextos interétnicos que essa
Nesse conjunto de atividades, categoria ganha maior relevância, não
sobre as quais só pudemos falar raro associada à discriminação. Já nas
breve e parcialmente, o que parece comunidades, outros marcadores de
suscitar maior interesse é mesmo o diferença costumam ser mais atuantes,
estabelecimento de vínculos – com a como o pertencimento a famílias, ou
gente e entre eles – que não passam casas, classes de idade, gênero, entre
direta ou necessariamente pelos outros.
adoecimentos, contribuindo para que Particularmente no que diz respeito ao
São Paulo possa ser também lugar de processo terapêutico, na cidade pode
bons encontros.
se experimentar o paradoxo de ter
acesso a uma multiplicidade de recur-
sos no combate à doença, ao mesmo
ADOECIMENTO E CONHECIMENTOS
tempo em que se fica mais suscetível
(EXPERIÊNCIAS INDÍGENAS E APREN-
devido à dificuldade de controle re-
DIZADOS PARA A ANTROPOLOGIA E
lacional que o adoecimento implica.
AS POLÍTICAS DE SAÚDE)
Como os antropólogos vêm aprenden-
No convívio com os indígenas hos- do com os ameríndios, em ontologias
pedados na CASAI-SP, Jaciara, Maria perspectivistas (Viveiros de Castro
Cristina e Valéria aproximam-se da an- 1996; Lima 2002), o corpo humano
tropologia em muitas situações em que não é concebido como um ente bioló-
aprendem e fazem elaborações a partir gico pertencente à espécie homo sapiens,
de suas experiências de alteridade. Mui- e sim como uma construção coletiva, a
tas de nossas certezas são desestabili- partir de cuidados que iniciam na ges-
zadas e outras ideias tomam lugar no tação e seguem ao longo da vida. Tal
curso dessas relações (Wagner 2010). construção implica incorporações de
Como professora e pesquisadora em potências de muitos seres, como plan-
antropologia, Valéria se vê particular- tas, animais e espíritos, de modo que
mente desafiada a fazer desses apren- o corpo resulta de uma composição

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Macedo, Valéria | Martins, J. A. | Troncarelli, M. C.

dessas incorporações. A humanidade, pos podem ficar mais vulneráveis.


portanto, não é algo substantivo, e A vinda a uma metrópole para tra-
sim uma posição em uma relação, ge- tamento implica um deslocamento
ralmente entre aqueles que comparti- muitas vezes enorme, não raro de
lham os mesmos corpos porque co- avião (no qual muitos entram pela
mem as mesmas coisas e do mesmo primeira vez); a chegada em uma ci-
modo, enfeitam-se da mesma manei- dade em que talvez não se conheça
ra, comportam-se de jeito parecido, ninguém tampouco se tenha qual-
entre outras práticas que garantem quer autonomia de deslocamento; a
a condição de humano. Alterações estadia em quartos coletivos – onde
nessas práticas podem ser causa ou se dorme com pessoas desconheci-
efeito da perda dessa condição, caso das e também suscetíveis em razão
a subjetividade do sujeito tenha sido de adoecimentos –; o uso de banhei-
agenciada (frequentemente pela cap- ros também coletivos – em que di-
tura de um princípio vital ou alma) ficilmente consegue-se evitar algum
por espíritos, animais e outros seres. contato com substâncias de outros
Pode-se assim passar a vê-los como corpos, como fezes, menstruação,
humanos, perdendo a humanidade fios de cabelo etc.; as refeições ocor-
compartilhada com os parentes. rem também em um local coletivo e
Por sua vinculação ao xamanismo, a são preparadas por desconhecidos.
doença é também um tema intensa- As condições de reclusão, ou contro-
mente abordado na etnologia, reme- le relacional, são, portanto, restritas.
tendo à desintegração dos componen- A internação em um hospital, quan-
tes da pessoa, ou das relações que a do faz parte desse itinerário terapêu-
constituem, causada por um ou vários tico, costuma intensificar ainda mais
agentes patogênicos (visíveis ou invisí- essas experiências, sendo recorrente
veis, próximos ou distantes, com o qual sonhos e agenciamentos de espíritos
se pode compartilhar ou não uma mes- agressores.
ma humanidade). Com frequência cabe Por outro lado, aqueles cuja estadia é
ao xamã (pajés, rezadores, benzedores, prolongada ou que precisam retornar
curadores) extrair esse(s) agente(s), e/ periodicamente podem estabelecer
ou resgatar partes da pessoa e reinte- vínculos de confiança, afeto e trocas
grá-la9. Para que isso se efetive, é co- com pessoas com quem convivem e
mum que o doente tenha que ficar interagem em São Paulo. Assim, expe-
recluso, por vezes apenas próximo a rimenta-se tanto relações de estranha-
parentes co-residentes, com restrições mento como de familiarização, com
alimentares e relacionais (Gallois 1988; seus respectivos efeitos sobre os cor-
Taylor e Viveiros de Castro 2006; Vila- pos e seu tratamento. De modo que a
ça 2005 etc.). doença pode ser experimentada como
De modo que o afastamento para uma experiência de alteridade dentro e
tratamento biomédico pode ser uma fora dos corpos, incluindo desafios e
experiência paradoxal, pois os cor- sofrimentos, como também aprendiza-

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Três linhas e alguns nós

dos, novas capacidades e vínculos. Não Assim como não há divisão entre corpo
por acaso, é comum que xamãs atribu- físico e subjetividade ou simbolismo, o
am a uma experiência de adoecimento xamanismo ameríndio costuma investir
sua iniciação nas artes de curar. na reintegração dos componentes
A depender do contexto e do povo em da pessoa (ou das relações que a
questão, há doenças em que a demanda compõem) no processo de cura. Já nas
experiências dos pacientes indígenas
pela medicina não-indígena é maior.
em centros biomédicos predominam
Há inclusive aquelas classificadas como
justamente a partição do corpo
“doenças de branco” por alguns povos
como foco de atenção de diferentes
(Buichillet 1991; Gallois 1991 etc.), as
especialistas. Nesse sentido, como
quais passaram a fazer parte da vida das
comentado, o Ambulatório do Índio
pessoas depois do contato com os não-
é uma importante referência na costura
indígenas. Mesmo no caso de doenças
dessas experiências para cada paciente.
não associadas aos brancos, atribuídas
Mas só o fato da comunicação
à agência de inimigos ou espíritos,
ocorrer em português, para aqueles
muitos reconhecem a eficácia da
em que essa não é a primeira língua,
medicina e farmacologia não-indígena as mesmas palavras podem remeter
no combate aos efeitos dessa agressão, a conceitos distintos na interlocução
amenizando dores, inchaços, pruridos, entre pacientes e médicos ou outros
tumores, entre outros sintomas. profissionais.
A seu turno, também os profissionais Como aponta Asad (2016), há uma
de saúde muitas vezes reconhecem a assimetria nas traduções que operam o
relevância das medicinas indígenas, seja fluxo de conhecimentos da diversidade
por propriedades medicinais de plantas, mundial, de modo que algumas línguas
seja pela eficácia simbólica (Lévi-Strauss acabam impondo sua coerência na
2008) dos tratamentos, que provocam veiculação desses fluxos. Nessa direção,
reações efetivas nos corpos. Na língua Buichillet destaca que é fundamental
inglesa, ambas dimensões da doença questionar a tradutibilidade de certos
são predominantemente associadas conceitos que espelham elaborações do
a termos distintos, desease e illness, pensamento euro-americano, ou mais
este remetendo às representações ou especificamente da medicina ocidental,
apreensões simbólicas ou subjetivas de a começar pelas próprias expressões
uma realidade dada biologicamente, que “saúde” e “doença”, pelas premissas
corresponde à desease (Kleinman 1978; biologizantes que trazem consigo
Laplantine 1991 etc.). E aqui instaura- (1991:24). O mesmo podemos dizer
se uma diferença fundamental, já que a em relação à “cultura”, palavra que
divisão entre uma suposta realidade e circula amplamente nesses espaços,
uma dimensão simbólica, mesmo que mas cujo significado está longe de ser
produzam efeitos uma sobre a outra, é unívoco, vinculando-se a diferentes
uma premissa não compartilhada pela imaginações conceituais e variando a
maioria dos povos indígenas. depender do contexto enunciativo.

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 9 (2): 632 - 659, 2017 651


Macedo, Valéria | Martins, J. A. | Troncarelli, M. C.

O que mais interessa a muitos indígenas, chegados de regiões amazônicas a


contudo, são menos os termos do que esses locais de compra.
os efeitos das práticas a eles associadas. Nessas incursões, são frequentes os
Estas podem articular diferentes casos de assalto nas ruas, ou compra
técnicas de identificação de agentes de celulares ou eletrônicos que não
etiológicos, desde exames de imagem funcionam, ou o receio de pegar
ou laboratoriais – que os médicos e o metrô por baixo da terra, ou o
enfermeiros sabem ver – até sonhos, constrangimento pela insistência de
ingestão de determinadas plantas ou alguns comerciantes, entre outras
fumaça de tabaco – pelas quais os dificuldades. Mas geralmente há uma
xamãs podem ver. Também articulam familiarização crescente com lugares
dispositivos xamânicos de reintegração e relações. Certa vez, por exemplo,
dos componentes das pessoas, como Valéria estava no Brás em meio a
sucções, cantos e esfumaçamentos, comerciantes coreanos, um Wajãpi
com dispositivos biomédicos de (vindo do Amapá e falante de uma
extração de corpos patogênicos ou a língua Tupi-Guarani) com seu filho,
restituição de partes esgarçadas, como um casal Tariano (vindo do Amazonas
ocorre nas intervenções cirúrgicas. e falante de uma língua Tukano) e
São inúmeras as práticas pelas quais um casal Kῖsedjê (vindo do Mato
as doenças ganham contornos, nomes, Grosso e falante de uma língua Jê),
causalidades e estratégias de cura, que em que a compra de calças e casacos
os indígenas logram articular em seu mobilizava tantas línguas (já que eles
itinerário terapêutico. conversavam com seus parentes para
Na relação com a cidade, seus decidir as peças e os coreanos entre si)
contornos vão se fazendo manejáveis que ela, na condição de única pessoa
na medida em que os indígenas vão a falar português fluentemente, era a
se familiarizando com itinerários no que estava mais alheia às relações em
bairro e ampliando suas rotas. É raro jogo. Também a presença crescente de
alguém que fique meses na CASAI e africanos no centro de São Paulo gerou
deixe de conhecer o bairro do Brás ou comentários de um Wauja que os
a Rua 25 de Março, onde compram aproximou aos xinguanos, por fazerem
roupas, calçados, eletrônicos, miçangas questão de vestir suas roupas coloridas
etc. Jaciara e Valéria os acompanham e falar seu idioma no meio dos brancos.
diversas vezes, mas geralmente são O cosmopolitismo da metrópole, de
os próprios hóspedes da CASAI que modo análogo ao adoecimento, é assim
se organizam para ir. Há um senhor fonte de adversidades, mas também
tupinambá cuja visão foi deteriorando- de aquisição de capacidades, coisas e
se em razão de diabetes, sendo hoje conhecimentos.
quase cego. Mas ao longo de muitos O mesmo se passa no convívio na
meses na CASAI aprendeu a circular CASAI, onde muitas vezes tomam
na região central de São Paulo e é ele conhecimento e divertem-se com
quem leva muitos indígenas recém- nossos peculiares rituais, como o

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Três linhas e alguns nós

“parabéns a você” com bolo confeitado e repreensões que podem ser ofensivas
para celebrar os aniversariantes do para alguns indígenas. Assim como
mês, a festa junina e suas brincadeiras, atitudes destes podem aparecer para
os enfeites de natal, entre outros. alguns funcionários como displicência,
No que diz respeito à convivência arrogância, ignorância, falta de higiene
entre os indígenas, relações de etc. Tais tensões tendem a amenizar-
estranhamento, constrangimento e se de ambos os lados conforme o
suspeitas são recorrentes, mas por tempo de convivência proporciona
vezes são revertidas em vínculos de elaborações e aprendizados (Pereira
amizade e cumplicidade. O cuidado 2012, 2014; Assumpção 2014;
com as crianças é emblemático, Gonçalves 2011).
sendo comum vê-las circulando sob Tais aprendizados, contudo, não
cuidados de diferentes adultos. Isso implicam que diferentes profissionais
ocorre principalmente entre mulheres, de saúde e indígenas passem a
mas também não é raro ver homens compartilhar os mesmos códigos e
brincando ou carregando filhos de premissas, ou que passem a ver do
outra/os. mesmo modo corpos e doenças,
Há também muitos namoros, por e sim que alianças e engajamentos
vezes durando apenas a estadia na conjuntos estabelecem-se, ou não,
CASAI, outras seguindo na vida. Tão sem que diferenças precisem ser
ou mais frequentes do que os namoros reduzidas a um denominador comum.
são os mencionados casos de assédio A busca convergente de um mesmo
ou violências, sobretudo contra efeito é o mote das alianças, que é o
mulheres que vêm acompanhar seus restabelecimento ou a melhora da
filhos pequenos em tratamento. Esse é saúde – mesmo que a concepção desta
um problema emblemático dos vetores não seja unívoca entre os envolvidos.
que atravessam as relações nesses Trata-se, portanto, de um universo
espaços em que a diferença pode tanto relacional em que as pessoas não
desdobrar-se em aparentamentos compartilham os mesmos mundos, a
como em agressões. despeito desses mundos produzirem
Com os funcionários da CASAI também efeitos uns sobre os outros, numa
as relações variam e transformam- rede de traduções e transformações.
se ao longo da estadia. Amizades e Ou, valendo-nos das formulações
cumplicidades são construídas, assim de Almeida (2013), trata-se de um
como desconfianças e ofensas, em espaço de conflitos ontológicos e acordos
muitos casos em razão de diferentes pragmáticos. O “acervo de pressupostos
premissas nos cuidados com o corpo sobre o que existe” (2013:9), como
e o espaço. O cuidado é uma expressão o autor define ontologia, é diverso e
sempre presente entre os profissionais sempre há campos de força, com suas
de saúde na CASAI quando se referem potências diferenciais em jogo. Assim,
à sua atuação, mas por vezes ele se não se trata de diferentes culturas,
efetiva por meio de ações, orientações como representações de um mesmo

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Macedo, Valéria | Martins, J. A. | Troncarelli, M. C.

fundo de realidade, e sim de uma luta daqueles que estão na CASAI podem
pela existência de povos, espíritos nos ensinar sobre a vulnerabilidade e
ou outros seres extra-humanos, a potência de ser habitado por outros
terapêuticas e conhecimentos em que e compor-se com outros, transforman-
o enquadramento como “crenças” – do-se nessas relações.
cuja eficácia é considerada simbólica, tal
como o efeito placebo nas pesquisas
biomédicas – pode fazer definhar. ÚLTIMA AMARRAÇÃO DE NÓS
Isso não quer dizer que médicos e en- Ao esboçar essas três linhas de atuação
fermeiros precisariam passar a reco- na CASAI que atravessam as autoras
nhecer os espíritos, ou os indígenas de modos singulares, buscou-se
vírus e bactérias – os quais, como a compartilhar alguns bons encontros
gravidade, produzem efeitos em cer- que temos experimentado, mesmo em
tos corpos sem que possam ser vistos meio às adversidades que levaram as
por qualquer um. Mas a convivência pessoas a estarem ali. A força desses
na CASAI aponta alianças possíveis encontros está na possibilidade de que
entre existências que interagem sem diferenças possam coexistir enquanto
que a ciência fique com o monopólio diferenças, com seu potencial criativo
do conhecimento sobre o que existe, e afetivo, assim como seus impasses e
ou que coloque a natureza como base tensões.
inata e universal para as “construções
sociais” ou “culturas”. O risco é con- Como entre a maioria daqueles que
ferir à ciência um estatuto superior a trabalham ou hospedam-se na CASAI,
outros modos de conhecer, enqua- em nossa atuação não há sempre
drando-os no domínio das “crenças” concordância ou consenso, mas
ou “representações” de uma realida- reconhecemos um potencial reflexivo
de supostamente acessada pela inves- nessas diferenças. Por exemplo, o uso
tigação científica. Como aponta Gol- de cultura como um termo privilegiado
dman (2008), o fundamental é evitar para falar sobre diferenças de costumes
assimetrias do tipo “nós sabemos, ou pensamento é evitado por Valéria,
eles creem”. por receio de que essa possa ser uma
forma de enquadrar e domesticar
Se a antropologia pode dar uma contri-
as diferenças como se houvesse um
buição nessa coexistência de mundos,
domínio anterior às culturas, que é
manejando a assimetria de suas afeta-
ções mútuas, ela aprendeu com os indí- a dimensão “natural” dos corpos, já
genas e outros povos tradicionais. Mas que esse é um pressuposto apenas do
a antropologia é também uma ciência, pensamento ocidental.
devendo, portanto, controlar a “von- A seu turno, a experiência de Maria
tade de saber” de que fala Foucault Cristina nas aldeias e em oficinas
(1999), que acaba construindo ou en- amplia muito as possibilidades criativas
quadrando o outro ao buscar conhecê- e reflexivas de nossos encontros e
-lo. E aqui a condição de adoecimento a mobilização dos indígenas nessas

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Três linhas e alguns nós

atividades, apostando na força Nhanerembi’u ete’i – Nosso Alimento Verdadei-


terapêutica da arte. Já Jaciara vive ro – Povo Guarani/SP (Centro de Trabalho
no corpo a condição minoritária de Indigenista)
indígena, não se deixando capturar Tava, a casa de pedra – Povo Guarani/vários
pelo efeito muitas vezes despolitizante estados e países (Dir. Ariel Ortega, Ernes-
da burocracia ou das obrigações to de Carvalho, Patrícia Ferreira Kerexu,
contratuais, de modo a posicionar- Vincent Carelli)
se sempre, seja junto a um médico
Manoa – A lenda das queixadas – Povo Gua-
que questiona a indianidade de um
rani/SP (Dir. José Alberto Mendes Brasil)
nordestino, seja de um enfermeiro
que acusa uma mãe indígena por seu Xondaro Mbaraete: a força dos xondaro – Povo
filho estar com desnutrição, seja de Guarani/vários estados (Pesquisadores
um indígena que ameaça conspirar e Guarani)
derrubá-la do cargo caso ela não se Bicicletas de Nhanderu – Povo Guarani/RS
posicione a seu favor, entre outras (Dir. Ariel Ortega e Patrícia Ferreira Ke-
inúmeras situações. rexu)
O desafio de todos nos parece assim Duas aldeias, uma caminhada: Mokoi Tekoa,
remeter a cosmopolíticas, expressão Peteῖ Jeguata – Povo Guarani/RS (Dir. Ariel
definida por Stengers (2007) como Ortega, Jorge Ramos Morinico e Germano
a arte de “traçar associações” Beñites)
sem ter quaisquer pressupostos Guairaka’i já: O dono da lontra – Povo Gua-
universalizantes como denominador rani/SC (Dir. Wera Alexandre Ferreira)
comum10. Na CASAI, e nas instituições
de saúde indígena de um modo geral, Teko Rexaῖ, saúde Guarani Mbya – Povo
tal multiplicidade está em toda parte Guarani/SP (Dir. Nadja Marin e Adriana
e em todos os corpos, tornando tudo Calabi)
mais desafiante e interessante. Martírio – Povo Guarani Kaiowa/MS (Dir.
Vicent Carelli)

Filmes exibidos nas sessões de Terra vermelha – Povo Guarani Kaiowa/MS


cinema na CASAI-SP entre 2014 e (Dir. Marco Bechis)
2017: À sombra do delírio verde - Povo Guarani-
Corumbiara – Povos Akuntsu e Kanoê/RO -Kaiowá/MS (Dir. An Baccaert, Cristiano
(Dir. Vincent Carelli) Navarro e Nicolas Muñoz)
Tukyt kiraj: O sabor do sal – Povo Aweti/MT Mbaraká - A palavra que age – Povo Gua-
(Dir. Associação Indígena do Povo Aweti) rani-Kaiowa/MS (Dir. Edgar Teodoro da
Serras da desordem – Povo Ava-Guajá/MA Cunha e Spensy Pimentel Barbosa)
(Dir. Andrea Tonacchi) Ximã bana: Novos tempos – Povo Huni Kuῖ/
Baré, povo do rio – Povo Baré/AM (Dir. AC (Dir. Zezinho Yuba)
Tatiana Toffoli) Shuku shukuwe: A vida é para sempre – Povo
O banquete dos espíritos – Povo Enawenê- Huni Kuῖ/AC (Dir. Agostinho Manduca
nawe/MT (Dir. Virgínia Valadão) Mateus Ika Muru)

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Macedo, Valéria | Martins, J. A. | Troncarelli, M. C.

Beiradão, Hup boyoh - Povo Hupda/AM Nguné elü: O dia em que a lua menstruou - Povo
(Dir. Jessica Mota e Alice Riff) Kuikuro/MT (Dir. Takumã, Marika, Amu-
Pïrinop, meu primeiro contato - Povo IKpeng/ negi, Mahajugi e Ahukaká Kuikuro)
MT (Dir. Mari Corrêa e Karané Ikpeng) Encantadora de baleias – Povo Maori/
Yumpuno – Povo Ikpeng/MT (Dir. Karane Nova Zelândia (Dir. Keisha Castle-Hu-
Ikpeng, Kamatxi Ikpeng e Mari Corrêa) ghes)
Das crianças Ikpeng para o mundo - Povo Kuxakuk xak: Caçando Capivara – Povo Ma-
Ikpeng/MT (Dir. Kumare Ikpeng, Natuyu xakali/MG (Dir. Realizadores Indígenas
Ikpeng e Karane Ikpeng) Tikmũ’ũn/Maxakali)
O sonho de Maragareun – Povo Ikpeng/MT Quando os Yãmiy vêm dançar conosco - Povo
(Dir. Kumare IKpeng, Natuyu Ikpeng e Maxakali/MG (Dir. Renata Otto Diniz e
Karane Ikpeng)
Isael Maxakali)
Tainakan - Povo Karajá/GO, TO e MT
Yiax kaax: Fim do resguardo – Povo Maxaka-
(animação) (Dir. Adriana Figueiredo)
li/MG (Dir. Isael Maxakali)
A história da cutia e do macaco – Povo Ka-
waiwete/MT (Dir. Wisio Kayabi) Festa Bemp – aldeia Kapôt - Povo
Mẽbêngôkre/Mẽtyktire/MT (Instituto
Receitas Kawaiwete – aldeia Kwaruja - Povo
Raoni)
Kawaiwete/MT (Dir. Wisio Kayabi e Mari
Corrêa) Festa Mẽnibi’ôk – aldeia Kapôt - Povo
O corpo e os espíritos - Povos Kawaiwete e Mẽbêngôkre/Mẽtyktire/MT (Instituto
Panara/MT, PA (Dir. Mari Corrêa) Raoni)

Amtô: A festa do rato – Povo Kĩsêdjê/MT Priara Jõ: Depois do ovo, a guerra - Povo Pana-
(Dir. Winti Suyá, Kamikia Pentoxi Trumai ra/MT, PA (Dir. Komoi Panara)
Kĩsêdjê, Yaiku Suyá, Kambrinti Suyá e Do rio São Francisco ao rio Pinheiros – Povo
Kokoyamaratxi Suyá) Pankararu/PE, SP (Dir. Paula Morgado)
Khátpy ro sujareni: A história do monstro Khápty Crianças da Amazônia - Povos Suruí e
- Povo Kĩsêdjê/MT (Dir. Winti Suyá, Ka-
Nhambikwara/RO (Dir. Denise Smekhol)
mikia Pentoxi Trumai Kĩsêdjê, Yaiku Suyá,
Kambrinti Suyá e Kokoyamaratxi Suyá) Wotko e Kokotxi: uma história Tapayuna - Povo
Tapayuna/MT (Dir: Kamikia Kĩsêdjê)
Kĩsêdjê ro sujareni: Os Kĩsêdjê contam sua história
- Povo Kĩsêdjê/MT (Dir. Winti Suyá, Ka- Do bugre ao Terena – Povo Terena/MS, MT
mikia Pentoxi Trumai Kĩsêdjê, Yaiku Suyá, (Dir. Aline Espíndola e Cristiano Navarro)
Kambrinti Suyá e Kokoyamaratxi Suyá)
Iburi – Trompete dos Ticuna - Povo Ticuna/
O povo Kĩsêdjê e o IBAMA - Povo Kĩsêdjê/ AM (Dir. Edson Tosta Matarezio Filho)
MT (Dir. Kamikia Kĩsêdjê)
Iauarete, Cachoeira das Onças – Povos Tukano
As Hiper mulheres - Povo Kuikuro/MT (Dir: e Tariano/AM (Dir. Vicent Carelli)
Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã
Kuikuro) O retorno da terra – Povo Tupinambá/BA
(Dir. Daniela Alarcon e Fernanda Ligabue)
Imbé gikegü: Cheiro de pequi - Povo Kuiku-
ro/MT (Dir. Takumã, Marika, Amunegi, O espírito da TV – Povo Wajãpi/AP (Dir.
Mahajugi e Ahukaká Kuikuro) Vincent Carelli e Dominique T. Gallois)

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Três linhas e alguns nós

Kusiwarã - as marcas e criaturas de Xingu, a luta dos povos pelo rio (Instituto
Cobra-Grande - Povo Wajãpi/AP (Dir. Socioambiental)
Dominique T. Gallois e Gianni Puzzo) Série Índios no Brasil (Episódios: Quem são
A arca dos Zo’é – Povos Wajãpi/AP e Zo’e/ eles; Nossas Línguas; Boa viagem Banitü!;
PA (Dir. Vincent Carelli e Dominique T. Nossas terras; Filhos da Terra; Quando
Gallois) deus visita a aldeia; Uma outra história;
Apapaatai – Povo Wauja/MT (Dir. Primeiros 11contatos; Do outro lado do céu
Aristóteles Barcelos Neto) e Nossos direitos) (Dir. Vincent Carelli)
Wai’a, o poder do sonho - Povo Xavante/MT
(Dir: Divino Tserewahu)
Wapte mnhõnõ, iniciação do jovem Xavante NOTAS
- Povo Xavante/MT (Dir. Divino
Tserewahu) 1
Para mais informações: http://www.pro-
Darini - Iniciação Espiritual Xavante – Povo jetoxingu.unifesp.br/index.php/projeto-
Xavante/MT (Dir: Caime Kaissé e Jorge -xingu/sobre-o-projeto-xingu.
Protodi) 2
A Constituição de 1988 reconheceu
Piõ Höimana’té: a mulher xavante e sua arte o direito dos indígenas a uma atenção
– Povo Xavante/MT (Dir. Cristina Flória) diferenciada à saúde, que respeitasse suas
especificidades culturais e cidadania, o
Urihi haromatipë: Curadores da terra-floresta –
que só passou a ser cumprido uma década
Povo Yanomami/RR, AM (Dir. Morzaniel
depois (Teixeira 2012:571).
ƚramari Yanomami)
3
O DSEI Litoral-Sul conta ainda com
Xapiri – Povo Yanomami/RR, AM (Dir.
uma CASAI em Curitiba/PR e atende uma
Leandro Lima, Gisela Motta, Laymert
população estimada em 10.610 pessoas de
Garcia dos Santos, Stella Senra, Bruce
Albert) seis povos (Guarani, Kaingang, Xokleng,
Terena, Krenak e Tupi) e cinco estados (SP,
Napëpë - Povo Yanomami/RR, AM (Dir. PR, RS, SC e ES) [http://www.bvsde.paho.
Nadja Marin) org/bvsapi/p/fulltext/distritos/litoralsul.
Paralelo 10 – Povos do Acre (Dir. Silvio Da- pdf].
Rin) 4
Literalmente, yvyra’ija pode ser traduzido
Para onde foram as andorinhas - Povos do como “dono/mestre” (-ja) do bastão/vara
Território Indígena do Xingu/MT (Dir. (yvyra’i) ritual.
Mari Corrêa) 5
Para dados sobre os povos indígenas
Encontro de mulheres xinguanas - Povos do no Brasil, consultar a página do
Território Indígena do Xingu/MT (Dir. Instituto Socioambiental: https://pib.
Mari Corrêa) socioambiental.org/pt.
Abril Indígena 2013 - Mobilização dos 6
Ao final do texto, disponibilizamos uma
povos indígenas (Dir: Kamikia Kĩsêdjê) lista de filmes que já exibimos.
Índio Cidadão (Mobilização indígena) 7
Entre os filmes, figuram aqueles das festas
(Dir. Rodrigo Siqueira). Bẽmp e Mẽnibiôk do povo Mẽbêngôkre;
Belo Monte, o anúncio de uma guerra (Dir: Darini, que aborda um ritual de iniciação
André D’Elia. Cinedélia) xavante; e Yumpuno, entre os Ikpeng; etc.

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Macedo, Valéria | Martins, J. A. | Troncarelli, M. C.

8
Entre os filmes que tematizam a questão Buchillet, D. (org.). 1991. Medicinas
da terra, estão Corumbiara; À sombra do tradicionais e medicina ocidental na Amazônia.
delírio verde; Serras da desordem; O retorno Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi/
da terra; Pïrinop: Meu primeiro contato; Duas CEJUP.
aldeias, uma Caminhada etc. Caldeira, V. 2010. Programa Tamoromu:
9
Como formulado por Viveiros de Castro uma experiência em promoção de saúde
(1996), os xamãs são capazes de ver seres indígena e pratica interdisciplinar na Casai-
não-humanos como estes se veem (como SP, in Psicologia e povos indígenas, pp.101-
humanos), podendo exercendo uma 116. Editado por Conselho Regional de
espécie de diplomacia cósmica, de modo a Psicologia da 6a Região. São Paulo: CRPSP.
resgatar componentes da pessoa, expulsar Novo, M.P. 2010. Os agentes indígenas de saúde
agentes agressores, ou transitar entre do Alto Xingu. Brasília: Paralelo 15.
mundos e tempos. Nessa direção, Carneiro
da Cunha (1998) define o xamã como Carneiro da Cunha, M. 1998. Pontos
um tradutor de mundos, já que lhe cabe de vista sobre a floresta amazônica:
interagir com diferentes modalidades de xamanismo e tradução. Mana 4(1).
sujeitos (incluindo animais e espíritos) de Cohn, C. 2014. A cultura nas escolas
modo a evitar, combater ou produzir efeitos indígenas, in Políticas culturais e povos indígenas,
em corpos de pessoas e de coletividades. pp.313-338. Editado por M. Carneiro da
Tais empreendimentos demandam viagens Cunha e P.N. Cesarino. São Paulo: Cultura
a outros domínios do cosmos, bem como Acadêmica.
a outros corpos, enfrentando o desafio de
_____; Santana, V. 2016. A antropologia e
agenciar o outro sem ficar capturado por
as experiências escolares indígenas. Revista
sua perspectiva.
Pós Ciências Sociais 13(1):61-85.
10
Justamente pela multiplicidade de
Franchetto, B. 2006. Notas em torno de
mundos que reconhece, cosmopolítica tem
discursos e práticas na educação escolar
sido uma expressão cada vez mais adotada
indígena, in Formação de professores indígenas:
para remeter às ontologias ameríndias
repensando trajetórias, pp.191-198. Editado
(Sztutman 2012).
por L.D. Grupioni. Brasília: MEC/
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