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(a) Doutor em Filosofia pela UNICAMP. Professor do Instituto de Filosofia (IFILO) da Universi-
dade Federal de Uberlândia (UFU) e pesquisador do CNPq.
E-mail: abonella@ufu.br
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2585330510002189
(c) Doutor em Filosofia pela Universidade de Bristol, Reino Unido. Professor Titular da Universi-
dade Federal de Santa Catarina e pesquisador do CNPq.
E-mail: ddarlei@yahoo.com
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1009956459333986
(d) Doutor em Filosofia pela UFRGS. Professor Adjunto da UNISINOS, Médico do HPS-POA.
E-mail: mazevedogtalk@gmail.com
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/5012646823374838
• Azevedo, Marco; Dall’Agnol, Darlei; Bonella, Alcino; Araujo, Marcelo de. 2020. “Precisamos
com urgência de um amplo debate sobre a criação de diretrizes éticas para a alocação de
tratamento em UTI (Unidade de Terapia Intensiva) durante a pandemia de COVID-
19”. Jornal Estadão (Estado da Arte). 17 de abril de 2020. (Publicação n. 1)
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Grupo de Trabalho em Bioética Dilemas COVID-19, 17 abril 2020 (Publicação n. 3)
RESUMO
ABSTRACT
RESUMEN
2
Grupo de Trabalho em Bioética Dilemas COVID-19, 17 abril 2020 (Publicação n. 3)
3
Grupo de Trabalho em Bioética Dilemas COVID-19, 17 abril 2020 (Publicação n. 3)
sociais, dos presidentes americano Donald HCLQ e azitromicina, mas ele também rece-
Trump e brasileiro Jair Bolsonaro. Muitas beu várias críticas. Além da pequena amos-
pessoas correram às farmácias e esgotaram tragem, uma das críticas levantou dúvidas
os estoques, deixando pessoas que sofrem quanto a metodologia empregada. Afinal,
de malária e lúpus em situação ainda mais tratava-se de um ensaio clínico aberto, não
vulnerável e com medo de que faltasse o randomizado, um tipo de estudo sujeito a
medicamento originalmente produzido vieses de confusão. Além disso, parte do
para tratá-las. Novamente, poucas evidên- grupo controle foi composto por pacientes
cias existiam e a promessa de cura era pre- que se recusaram a receber o tratamento.
cipitada. Esse é exatamente o comporta- Estudos desse tipo levantam muitas dúvi-
mento irresponsável que precisamos evitar das: como assegurar-se de que o resultado
em tempos de pandemia. Além disso, tais positivo alegadamente observado, de uma
substâncias não têm efeito preventivo e po- ação sinérgica entre a azitromicina e a HCLQ
dem, como já se sabe, até mesmo intoxicar na COVID-19 não foi fruto do acaso? A falta
algumas pessoas.4 Ao invés de curá-las, es- de randomização na seleção dos grupos de
sas drogas podem causar, entre outros, pro- tratamento e controle é certamente uma fa-
blemas cardiovasculares e levá-las a óbito lha metodológica que lança muitas dúvidas
como, já ocorreu vários países.5 sobre as conclusões apresentadas no es-
No mesmo dia em que o presidente brasi- tudo. Reconhecer esses limites metodológi-
leiro defendia o uso da CLQ em rede nacio- cos é fundamental para que não generalize-
nal de televisão (08/04/20), a revista cientí- mos apressadamente os resultados do es-
fica The British Medical Journal apontava tudo, por mais promissores que pareçam.
para os seus efeitos adversos e alertava que A pesquisa pode, então, ser criticamente
seu uso generalizado como tratamento para questionada e precisa ser contrastada com
a COVID-19 era prematuro: “O uso ampli- outras investigações científicas e testes clí-
ado da Hidroxicloroquina expõe alguns pa- nicos similares. De fato, um trabalho publi-
cientes a danos, potencialmente fatais, in- cado no Journal of ZheJiang University, rela-
cluindo reações adversas cutâneas graves, tando pesquisa liderada por Jun Chen, já
insuficiência hepática fulminante e arrit- apresentava a conclusão de que não haveria
mias ventriculares (principalmente quando diferença significativa entre o grupo tratado
prescritas com Azitromicina).” (ênfase com HCLQ e Azitromicina e o não tratado.8
acrescentada).6 Se esse é o caso, então nada Os pesquisadores sugerem nas conclusões,
mais razoável, tanto científica quanto etica- de forma cautelosa, que novas pesquisas se-
mente, do que usar princípios bioéticos, da jam realizadas. O hospital francês Pitié-Sal-
ética médica e até mesmo o princípio de pêtrière também testou a HCLQ e concluiu
precaução para evitar danos maiores. Esse que ela não se mostrara eficaz no trata-
ponto será desenvolvido mais adiante. Seja mento da COVID-19.9 Um estudo similar,
como for, não nos parece moralmente ade- feito pela Fiocruz e pela Fundação de Medi-
quado tratar pessoas sem o embasamento cina Tropical, no Brasil, sugere que a letali-
de pesquisas científicas, desenvolvidas de dade de pacientes com COVID-19 tratados
modo eticamente aceitável, ou usar medi- com CLQ é praticamente a mesma dos não
camentos off label em caráter experimental tratados.10 Novamente, antes de recomen-
sem o devido acompanhamento médico. dar o uso da CLQ em políticas públicas para
Não é claro qual seria o embasamento para o combate à pandemia, líderes políticos de-
a escolha do tratamento com CLQ na pan- veriam ter aguardado a realização de mais
demia de COVID-19. De fato, algumas pes- testes clínicos. Naquele momento, as evi-
quisas estavam sendo feitas, mas elas não dências científicas de benefício eram fracas
eram conclusivas. Um estudo mencionado e, portanto, insuficientes para indicações
foi o liderado pelo pesquisador Philippe médicas inequívocas de uso da HCLQ para
Gautret.7 Esse estudo, ainda que limitado, tratamento da COVID-19.
parecia animador para a combinação de Não demorou muito, então, para que a
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Grupo de Trabalho em Bioética Dilemas COVID-19, 17 abril 2020 (Publicação n. 3)
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Grupo de Trabalho em Bioética Dilemas COVID-19, 17 abril 2020 (Publicação n. 3)
mas foram feitas para o surto da SARS-Cov que seria aceitável o uso desses medica-
igualmente causada por um tipo de corona- mentos para a nova doença.
vírus. A passagem de estudos laboratoriais De fato, os efeitos, inclusive colaterais, da
em animais não-humanos para testes clíni- HCLQ já são bastante conhecidos. Esses
cos é sempre um processo complexo. Por efeitos, para a maioria dos pacientes, são
isso, as evidências pré-clínicas podem ser in- controláveis e não são fatais. Por exemplo,
suficientes. Muitas vezes, os resultados das ela pode causar alterações cardiovascula-
pesquisas in vitro não se confirmam nos tes- res, mas, para pacientes hospitalizados,
tes clínicos. Além disso, já era sabida a limi- principalmente em UTIs, esses efeitos ad-
tação do efeito da CLQ em outras doenças versos podem ser monitorados e até
análogas, por exemplo, para a influenza.19 mesmo revertidos. Como veremos na pró-
Dito de outro modo, a extrapolação do seu xima seção, entretanto, alguns defendem
uso para a COVID-19 parece exigir novos até mesmo o uso da HCLQ fora dessas con-
testes clínicos rigorosos. Conhecendo já os dições e com acompanhamento via teleme-
efeitos colaterais do medicamento em pes- dicina.
soas sadias, ainda precisamos avaliar a se-
gurança do uso da HCLQ em pessoas com Na presença de estudos observacionais ape-
COVID-19. Afinal, o I.T. (Índice de Toxici- nas, não randomizados, sem grupo de con-
dade) de um medicamento pode variar de trole, não há, entretanto, como garantir que
uma doença para a outra. Portanto, novos a HCLQ seja o melhor o tratamento; muito
estudos clínicos (das fases II, III e IV) são ne- menos, que ela traga mais benefícios que
cessários para saber se o medicamento é re- malefícios para pacientes em estado não
almente eficaz, seguro e se não traz efeitos crítico. O próprio Ministério da Saúde e a
tóxicos indesejáveis em pessoas acometidas ANVISA, recentemente (07/04/20), reafir-
pela COVID-19. maram não ter mudado a diretriz, ou seja,
que somente seja usada HCLQ para pacien-
Conforme vimos, o governo brasileiro deci- tes graves.21 Pensamos que essa atitude é
diu, pulando algumas dessas etapas, reco- moralmente fundamentada. Ela também é
mendar a HCLQ, associada à Azitromicina, justificável sob o ponto de vista científico,
para pacientes acometidos da COVID-19. ou seja, se um remédio funciona, precisa-
Em outros termos, o Ministério da Saúde re- mos entender o mecanismo para, eventual-
comendou o seu uso off label para casos mente, aperfeiçoá-lo e passar a prescrevê-
graves. Ora, em situações de urgência, lo com menos incertezas. As indicações ine-
como a da pandemia atual, o uso para paci- quívocas da HCLQ (ou contraindicações)
entes graves parece razoável se não houver precisam estar apoiadas por evidências for-
alternativas terapêuticas. Em outros ter- tes de danos ou benefícios. Por conse-
mos, um uso limitado, para pacientes em guinte, estudos clínicos mais cuidadosos
estado crítico, com o devido acompanha- ainda precisam ser concluídos.
mento médico, pode ser feito e, segundo
jargão médico conhecido, trata-se apenas
de um uso compassivo. 3. Aguardando o resultado das pesquisas
Outras instituições e profissionais, todavia, A OMS lançou, em 20/03/2020, o projeto
logo ampliaram o seu uso. Como temos “Solidarity”, que tem como objetivo realizar
visto, a Prevent Senior iniciou vários testes testes com as drogas mais promissoras no
antes mesmo da autorização da CONEP.20 tratamento contra da COVID-19. Há quatro
Uma das razões alegadas para isso é que a drogas sendo analisadas: (1) Remdesivir,
HCLQ é um medicamento que já vem sendo utilizada no tratamento do ebola; (2) CLQ,
comercializado há décadas e que seus efei- utilizada, como vimos, para tratar a malária;
tos já seriam conhecidos. Por conseguinte, (3) Ritonavir ou Lopinavir, que faz parte do
em situações análogas, dadas a urgência de coquetel de tratamento do HIV; (iv) Interfe-
uma pandemia e a ausência de medicamen- ron-beta, uma molécula envolvida na regu-
tos específicos, algumas pessoas sugerem lação da inflamação corporal.22 No Brasil, a
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Grupo de Trabalho em Bioética Dilemas COVID-19, 17 abril 2020 (Publicação n. 3)
Fiocruz coordenará a pesquisa que será apli- erupções, quineloides na pele, embranque-
cada para pacientes graves em 18 hospitais cimento dos cabelos, alargamento do com-
de 12 estados, com o apoio do Departa- plexo QRS e anormalidade da onda T; em ca-
mento de Ciência e Tecnologia (DECIT) do sos raros podem ocorrer hemólise e discra-
Ministério da Saúde.23 A própria OMS, por- sias sanguíneas. A HCLQ é menos tóxica,
tanto, também está fazendo testes de vá- mas não deixa de ter efeitos colaterais. Se,
rios medicamentos durante a pandemia. Pa- agora, contrastarmos com os potenciais be-
rece justificado, então, numa situação de nefícios, quase inexistentes contra o novo
calamidade pública, na presença de um coronavírus, então poderemos decidir a
novo vírus, sem tratamento conhecido, sem partir de princípios bioéticos a permissibili-
vacinas e sem que nossos corpos estejam dade de seu uso ou não. Poucos benefícios
preparados com os devidos anticorpos etc. são apontados nos estudos que defendem o
que pesquisas científicas sejam feitas sem uso da CLQ e, conforme vimos na primeira
seguir todas as etapas experimentais nor- seção deste artigo, há sérias dúvidas quanto
mais. Essa atitude é, em tempos de pande- ao estatuto científico das conclusões. Por
mia, uma atitude eticamente justificável. conseguinte, quando os malefícios superam
Mesmo que seja, todavia, adequado pular os benefícios, profissionais da saúde estão
etapas de pesquisa ou fazer uso off label sob a obrigação de suspender tratamentos
restrito e acompanhado por profissio- ou nada fazer (primum non nocere).
nais/pesquisadores competentes, não pa- Por um lado, o uso compassivo da HCLQ
rece moralmente correto indicar o uso in- pode ser feito, pois, no ambiente hospitalar,
discriminado de um medicamento sem que é possível controlar os efeitos e tomar as
haja conhecimento necessário para tal. Pro- medidas necessárias para diminuir os da-
pomos, dessa maneira, prestar mais aten- nos. Por outro lado, deve-se evitar o uso in-
ção aos princípios bioéticos da pesquisa discriminado. Nesse sentido, a recomenda-
com seres humanos nos estudos clínicos em ção restritiva do Ministério da Saúde parece
curso e ao juramento Hipocrático no uso off adequada e segue orientações iniciais do
label nas práticas clínicas ou usar até CFM (Conselho Federal de Medicina), da
mesmo o princípio da precaução para se própria OMS e pode ser interpretada como
evitar danos maiores aos participantes das uma aplicação de princípios sólidos. É teme-
pesquisas e/ou aos pacientes.24 rário ampliar indevidamente o uso de medi-
Quais seriam os danos em questão? Pesqui- camentos experimentais, pois estaremos
sas científicas mostram que a CLQ é bas- prometendo um suposto tratamento a paci-
tante tóxica e tem vários efeitos negativos, entes sem ter evidências científicas suficien-
alguns dos quais já foram mencionados tes dos seus efeitos. Dado que não há ra-
acima. Uma lista mais completa, baseada na zões suficientes, não se deve ministrar
bula do Difosfato de Cloroquina inclui: efei- HCLQ como remédio capaz de curar ou
tos cardiovasculares (hipotensão, vasodila- mesmo tratar todos os sintomas da COVID-
tação, supressão da função miocárdica, ar- 19.
ritmias cardíacas, parada cardíaca) e do sis- Mais importante ainda sob o ponto de vista
tema nervoso (confusão, convulsões e bioético, é que precisamos testar outras
coma); no tratamento oral podem cau- drogas para saber se não temos alternativas
sar cefaleia, irritação do trato gastrointesti- melhores. Por exemplo, os testes clínicos
nal, distúrbios visuais e urticária; doses diá- com Remdesivir ou até mesmo Avigan já es-
rias altas (>250 mg), em doses cumulativas tão bastante adiantados. Um artigo recente
de mais de 1 g/Kg de CLQ base, podem re- publicado na prestigiosa revista Journal of
sultar em retinopatia e ototoxicidade irre- the American Medical Association (JAMA),
versíveis; tratamento prolongado com altas mostra que, até o momento, o Remdesivir
doses também pode causar miopatia tóxica, parece ter as melhores perspectivas tera-
cardiopatia e neuropatia periférica, visão pêuticas.25 Existem, hoje, mais de 200 en-
borrada, diplopia, confusão, convulsões, saios clínicos em andamento registrados no
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Grupo de Trabalho em Bioética Dilemas COVID-19, 17 abril 2020 (Publicação n. 3)
clinicaltrials.gov, incluindo alguns estudos dos Estados Unidos, o estudo foi descrito
brasileiros que usam a CLQ, por exemplo, no (corretamente) por seus autores como um
Hospital Pronto-Socorro Zephelina Aziz, em estudo “exploratório”. Ora, estudos explo-
Manaus, com o seguinte identificador ratórios não têm o objetivo de provar hipó-
NCT04323527.26 A insistência no uso da CLQ teses, mas aventá-las. Com um estudo
ou da HCLQ pode ser desastroso. Por exem- desse tido, nenhuma conclusão é capaz de
plo, experimento amazonense consiste em garantir que é o “tratamento” que está pro-
tratar diferentes grupos de pacientes com movendo a cura da doença nessas fases ini-
diferentes doses de CLQ: para alguns, 600 ciais (do terceiro ao quinto dia dos primei-
mg/dia durante 10 dias. No terceiro dia, es- ros sintomas) e não o próprio organismo do
ses pacientes começaram a apresentar ar- paciente, reagindo e vencendo o vírus com
ritmia e 11 deles foram a óbito, o que levou seus anticorpos. Como é sabido, de um
à suspensão deste ramo da pesquisa.27 Re- ponto de vista científico, correlação não im-
cordando os princípios bioéticos citados plica causalidade.
acima, cabe perguntar: os pacientes sabiam Enfim, e infelizmente, como, aliás, destaca
que estavam correndo altíssimos riscos com o editorial do JAMA, em publicação recente
poucas perspectivas de benefícios? Eles as- (13 de abril de 2020): Nenhuma terapia
sinaram um Termo de Consentimento Livre mostrou-se efetiva até a presente data.
e Esclarecido ou apenas uma simples Dada essa situação atual de inexistência de
“anuência”? Afinal, trata-se de pesquisas estudos completos e também na ausência
com seres humanos que devem ser respei- de medicamentos específicos ou vacinas
tados em sua autonomia. Essas perguntas para a COVID-19, nada pode ser afirmado
também devem ser endereçadas às outras conclusivamente.
instituições que estão fazendo estudos simi-
lares. Aliás, também a Prevent Senior anun- Sem os resultados de estudos clínicos bem
ciou um experimento em larga escala. Pelo delineados, não há como saber qual é o me-
que foi divulgado à imprensa, o estudo já te- lhor remédio off label disponível para com-
ria demonstrado a cura de 300, de um total bater a COVID-19. Alegar, como fazem algu-
de 500 pacientes, em estágio inicial da CO- mas autoridades brasileiras, que a CLQ é
VID-19, com o uso da HCLQ com Azitromi- mais barata e menos prejudicial à economia
cina e será publicado em breve.28 Cabe per- do que priorizar o isolamento social como
guntar se o estudo é randomizado, se foi es- estratégia não é colocar a vida e o bem-es-
tabelecido algum grupo de controle, ou tar das pessoas como prioridade. Pode-se
seja, se segue uma metodologia científica ri- estar repetindo, hoje, o mesmo equívoco
gorosa. O estudo, entretanto, parece con- cometido há alguns anos quando, de forma
tradizer outras pesquisas e atitudes adota- apressada e sem evidências suficientes, foi
das internacionalmente de suspensão de aprovado o uso da fosfoetanolamina sinté-
tais tratamentos.29 A Prevent Senior vai tica (conhecida como “pílula azul”) para tra-
mais longe: valendo-se da recente aprova- tamento de câncer.32 Por conseguinte, sus-
ção da telemedicina, prescreve e entrega na tentamos que o uso off label da HCLQ deve-
casa do paciente não hospitalizado, os me- ria, excepcionalmente em tempos de pan-
dicamentos para uso off label.30 A hipótese demia, ser feito apenas nos termos descri-
é a de que a HCLQ, se administrada preco- tos na nota técnica do Ministério da Saúde,
cemente em pacientes ambulatoriais com evitando-se, assim, seu uso em larga escala.
COVID-19 moderada, impediria a replicação Para finalizar, então, endossamos aqui a
do coronavírus, reduzindo com isso a mor- mensagem da International Society of Drug
bidade da doença (isto é, as complicações Bulletins sobre a busca de medicamentos
que resultam da forma grave da doença, a para a COVID-19: “os ensaios randomizados
qual exige hospitalização).31 Porém, o dese- são a única forma de compilar informação
nho metodológico do estudo é repleto de de qualidade sobre como tratar a COVID-19.
falhas. No site da Livraria Nacional de Medi- Os medicamentos experimentais como Clo-
cina do Instituto Nacional de Saúde (NIH) roquina e Hidroxicloroquina somente devem
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Grupo de Trabalho em Bioética Dilemas COVID-19, 17 abril 2020 (Publicação n. 3)
ser usados no marco de um bom ensaio clí- para uso em larga escala. Se quisermos pro-
nico, com um protocolo rigoroso e aderindo- porcionar um cuidado realmente respeitoso
se de forma estrita ao método de compila- aos pacientes, precisamos seguir os padrões
ção de dados”33 (ênfase acrescentada). Dito éticos das pesquisas científicas e ensaios clí-
de outro modo, enquanto não tivermos os nicos, principalmente, para usos off label de
resultados científicos dos ensaios clínicos, é medicamentos.
melhor seguir os princípios bioéticos. Nesse Diante de uma grave crise, devemos redo-
sentido, o recente Parecer 04/2020 do CFM, brar o rigor ético, e não o relaxar. Em tem-
que “autoriza”, mas não “recomenda”, o pos de pandemia, as pessoas, principal-
uso da HCLQ, também não foi oportuno e mente aquelas acometidas por uma doença
poderia ter esperado o resultado das pes- desconhecida, que naturalmente causa
quisas.34 medo e insegurança, estão vivenciando um
O que vem ocorrendo atualmente, por- estado de maior vulnerabilidade. Sempre
tanto, é um processo rápido de testagem coube à Bioética, preocupada com os aspec-
clínica. Não é admissível que haja uma libe- tos normativos da pesquisa científica, pro-
ração para que todos os pacientes recebam tegê-las. Portanto, em situações de emer-
esse medicamento sem o devido acompa- gência, capazes de produzir grandes calami-
nhamento hospitalar e médico. Nossa pro- dades, a Bioética é mais necessária do que
posta, então, é que sejam observados os es- nunca, pois as decisões que tomamos afe-
tudos e testes relevantes e que somente tam milhares de vidas. Todos nós queremos
após a confirmação clínica proporcionada a cura por medicamentos e, preferencial-
por estudos metodologicamente bem deli- mente, uma vacina para a COVID-10. Mas,
neados, tais como os que estão sendo con- neste momento, tudo o que nós temos a
duzidos pela Coalizão COVID Brasil e pela prescrever sem contraindicações é um bom
Solidarity, seja liberado e recomendado um procedimento preventivo, a saber, a qua-
uso mais amplo de medicamentos como a rentena e o distanciamento social. Esta ati-
HCLQ. tude não apenas ajuda a “achatar a curva” e
aliviar o SUS (Sistema Único de Saúde) como
também dá tempo aos profissionais de sa-
Conclusão úde e pesquisadores para testarem clinica-
Os estudos científicos apontam para a falta mente remédios mais eficazes (mesmo off
de evidências conclusivas do valor terapêu- label) e seguros, aos cientistas para desen-
tico do uso da HCLQ, associada ou não à azi- volverem medicamentos específicos para a
tromicina, para tratar a COVID-19. Vimos, COVID-19 e quiçá, em alguns poucos meses,
no presente trabalho, que estamos justifica- uma vacina.
dos, em casos excepcionais de pandemia e
na ausência de medicamentos conhecidos,
a pular etapas nos ensaios clínicos. Bioetica-
mente falando, todavia, isso somente pode
ser feito na medida que temos algumas in-
dicações claras de que estamos produzindo
algum benefício ao paciente. Concluímos,
então, que a restrição do Ministério da Sa-
úde no uso da HCLQ teve embasamento
ético e científico.
Se essa conclusão acima estiver correta, en-
tão é precipitada a liberação do uso da
HCLQ para todos os casos. É recomendável,
moral e cientificamente, esperar os resulta-
dos das pesquisas que estão sendo feitas
pela Coalizão COVID Brasil e pela Solidarity
11
Grupo de Trabalho em Bioética Dilemas COVID-19, 17 abril 2020 (Publicação n. 3)
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