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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 28: 117-129 JUN.

2007

EMPRESÁRIOS E AÇÃO COLETIVA:


NOTAS PARA UM ENFOQUE RELACIONAL DO
ASSOCIATIVISMO

Álvaro Bianchi

RESUMO

Este artigo esboça um enfoque teórico relacional para o estudo da ação coletiva empresarial. Para tal,
argumenta-se que tanto o individualismo metodológico de Mancur Olson como a análise sociológica das
classes sociais de Claus Offe e Helmut Wiesenthal, enfoques amplamente difundidos nos estudos sobre o
empresariado, apresentam uma forte tendência essencialista. Tal tendência tende a substituir o conflito
social por determinismos de vários tipos - econômicos, culturais, psicológico etc. Em contraposição a estes
enfoques, é esboçada uma abordagem relacional na qual a ação coletiva empresarial é o resultado das
relações de forças existentes, destacando a dimensão conflitiva e histórica do processo de construção da
ação e da organização coletiva. Para o estudo das associações empresariais, esta perspectiva permite
pensá-las como resultado dos conflitos sociais e de lugar.
PALAVRAS-CHAVE: ação coletiva; empresários; associativismo empresarial.

"Os associados se querem bem? Convém uns aos outros? – eis o que sempre e em
primeiro lugar se deve perguntar" (Jules Michelet, O povo).

I. INTRODUÇÃO Mancur Olson (1971) – e a análise sociológica


das classes sociais – representado pela obra de
Os estudos empíricos a respeito do
Claus Offe e Helmut Wiesenthal (1984). A seguir,
associativismo empresarial realizados na Améri-
discutir-se-á o caráter essencialista dessas teorias
ca Latina nos últimos anos têm produzido novos
e a tendência destas a substituir o conflito social
conhecimentos a respeito das práticas empresa-
por determinismos de vários tipos – econômicos,
riais, de suas organizações e de sua ideologia.
culturais, psicológicos etc. Por último, este artigo
Velhos mitos a respeito da passividade, do desin-
pretende esboçar, e apenas isso, um enfoque
teresse pela política ou da subalternidade do
relacional do associativismo empresarial, desta-
empresariado brasileiro têm dado lugar a visões
cando a dimensão conflitiva do processo de cons-
mais complexas e matizadas que enfatizam sua
trução da ação e da organização coletiva.
heterogeneidade social e o caráter contraditório
de sua ação (BIANCHI, 2004). Paradoxalmente, A abordagem teórica da ação coletiva empre-
a reflexão teórica sobre o associativismo empre- sarial deve conter uma análise das condições nas
sarial não tem apresentado o mesmo desenvolvi- quais os interesses particulares dos empresários
mento. podem estimular a emergência de uma ação e de
uma organização coletiva. Os termos-chave que
O objetivo aqui é, justamente, chamar a aten-
poderiam sintetizar esta abordagem são: empre-
ção para a relevância que o desenvolvimento desta
sários, interesses, associações e poder político.
reflexão teórica pode ter sobre os estudos a res-
Eles aparecem como auto-evidentes em seu en-
peito do empresariado. Para tal, em um primeiro
cadeamento lógico e poderiam ser reduzidos a uma
momento, serão apresentadas duas vertentes
série de afirmações tautológicas: os empresários
estruturantes da Sociologia Política que têm ori-
têm poder político porque são organizados; são
entado pesquisas sobre a ação e a organização
organizados porque assim têm poder político; são
coletiva do empresariado: o individualismo
organizados porque têm consciência de seus inte-
metodológico – representado pela obra de

Recebido em 1º de maio de 2006. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 28, p. 117-129, jun. 2007
Aprovado em 19 de setembro de 2006.
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resses; têm consciência porque... – além de ou- os que pertencem a uma organização têm interes-
tras tantas. ses comuns, mas, ao mesmo tempo, têm motiva-
ções individuais diferentes dos interesses dos de-
São afirmações tautológicas, mas não são ba-
mais indivíduos do grupo. Na medida em que nin-
nais. Elas remetem a um problema que surge na
guém poderia ser, em princípio, excluído do usu-
tentativa de explicar a relação existente entre o
fruto de um benefício coletivo, pode ser racional
primeiro termo, colocado no plural, e o último, no
para um indivíduo não contribuir para sua obten-
singular. Para tanto, o recurso utilizado consiste
ção. Fazendo uma analogia com um mercado com-
em recorrer à mediação dos interesses e associa-
petitivo, o autor conclui: “Assim como não pare-
ções que, gradativamente, ajustariam a concor-
ceria racional para um determinado produtor res-
dância nominal, resolvendo se não um problema
tringir sua produção a fim de talvez obter um pre-
teórico, pelo menos, um incômodo gramatical:
ço mais alto para o produto de seu setor industri-
muitos empresários, menos interesses, poucas
al, não lhe pareceria racional sacrificar seu tempo
associações, um poder. No entanto, o número dos
e dinheiro para apoiar um lobby que luta pela aju-
substantivos deveria mostrar que o que parece ser
da do governo a este setor industrial” (idem, p.
auto-evidente, de fato, está longe de sê-lo. Muitos
11).
empresários, vários interesses, múltiplas associa-
ções indicam uma pluralidade sobre a qual é im- Portanto, quando o grupo for tão grande que a
portante refletir. Quem diz vários, diz também di- ausência de qualquer contribuição individual não
ferentes. A pluralidade encerra a possibilidade da faça nenhuma diferença, o benefício coletivo sim-
heterogeneidade, dissolvendo no ar aquilo que plesmente “não será provido a menos que haja
pareceria ser um dado sobre o qual a reflexão coerção ou alguma indução externa que faça os
poderia erguer-se. A existência de uma membros do grande grupo agirem de acordo com
heterogeneidade empresarial não parece algo que seus interesses comuns” (idem, p. 44). Situação
possa ser questionado. Firmas diferem nos seus oposta apareceria quando o número de indivíduos
produtos e no modo de produzi-los, na sua locali- do grupo é tão pequeno que seus membros facil-
zação, no seu tamanho, nas relações que mantêm mente perceberiam que seu ganho pessoal com o
com fornecedores, no tipo e na intensidade da benefício coletivo excederia seu custo total ou que
força de trabalho utilizada. A semelhança destas a contribuição ou falta de tal por parte de um indi-
diferentes variáveis não as torna iguais; ainda as- víduo produziria um efeito perceptível sobre os
sim, permanecem firmas concorrentes. A concor- custos ou ganhos.
rência é o fosso aparentemente intransponível que
É a partir desta distinção entre os grupos gran-
separa duas empresas. Ela não só produz a dife-
des e pequenos que Olson afirma a existência de
rença como a justifica.
um alto grau de organização dos interesses em-
O que faz com que esse fosso seja transposto presariais. Fragmentada em uma série de “indús-
e produza-se a ação coletiva empresarial? Como trias” (setores), a comunidade empresarial estaria
capitais particulares podem agir coletivamente? A dividida em frações relativamente pequenas, mas
resposta mais influente a estas perguntas foi dada capazes de organizarem-se voluntariamente, a fim
por Mancur Olson (1971), em seu clássico The de terem seu próprio lobby, influenciando forte-
Logic of Collective Action. O ponto de partida mente os governos. Na medida em que formam
desse autor foi a afirmação corrente de que gru- grupos pequenos, constituídos por grandes uni-
pos de indivíduos com interesses comuns tende- dades (as empresas), facilmente associariam-se
riam, usualmente, a promover tais interesses, prin- de maneira voluntária e fariam fluir “natural e ne-
cipalmente, se fossem econômicos. Esta idéia está cessariamente” o poder político para as mãos da-
baseada na premissa de que os membros do gru- queles que controlam os negócios e as proprieda-
po agiriam por interesses individuais racionalmente des (idem).
definidos. Esta afirmação, porém, segundo Olson,
Apesar disso, a comunidade empresarial como
estaria equivocada: “a idéia de que os grupos agi-
um todo não possuiria a mesma capacidade
rão para atingir seus objetivos é uma seqüência
organizativa manifestada pelos setores industriais,
lógica da premissa do comportamento racional
justamente porque não seria um pequeno grupo e
centrado nos próprios interesses não é verdadei-
sim um grupo grande. A organização do conjunto
ra” (idem, p. 2). O autor assinala que os indivídu-

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da comunidade empresarial seria possível apenas Tal diferença está no fato de que o trabalho
se seus membros fossem levados a aderir por meio pode ser feito somente pelo trabalhador, apesar
de estímulos independentes e seletivos, sanções e de ele “pertencer”, legalmente, ao capitalista. Cada
recompensas sob a forma de benefícios individu- trabalhador controla somente uma unidade de força
ais, como serviços de estatísticas, pesquisa técni- de trabalho que a vende sob condições de con-
ca e consultoria. corrência com outros trabalhadores que fazem o
mesmo. A força de trabalho viva é simultaneamente
Se Olson redigiu a resposta Claus Offe e Helmut
viva e não divisível (possui uma individualidade
Wiesenthal (1984) formularam a crítica mais ci-
insuperável, na medida em que é “possuída” e
tada a ela. No ensaio “Duas lógicas da ação cole-
controlada por indivíduos discretos). O capital,
tiva: notas teóricas sobre a classe social e a forma
por sua vez, compreende muitas unidades de tra-
de organização”, esses autores rejeitam uma “teo-
balho “morto” sob um comando unificado. O con-
ria geral da ação coletiva”, destacando a necessi-
flito entre a forma atomizada do trabalho vivo e a
dade de diferenciar as lógicas próprias de cada
forma integrada do trabalho “morto” cria uma re-
grupo social. Já em 1881, escrevendo sobre os
lação de poder. O capital de cada firma está sem-
sindicatos de trabalhadores, Friedrich Engels ha-
pre unificado, concentrado e centralizado, enquan-
via achado por bem diferenciá-los das organiza-
to o trabalho vivo está atomizado e dividido pela
ções dos capitalistas. Segundo ele, ao contrário
competição. Não podendo fundir-se, os trabalha-
dos trabalhadores, os capitalistas estão sempre
dores, no máximo, conseguem associar-se para
organizados: “Seu número restrito, comparativa-
compensar parcialmente a vantagem de poder do
mente aos operários, o fato de constituírem uma
capital.
classe particular e manter relações sociais e co-
merciais permanentes, lhes serve de espaço de Assim, enquanto o trabalhador personifica a
organização. Somente quando um ramo de pro- força de trabalho de maneira individualizada, na
dução se torna dominante em uma dada região é medida em que ele só pode personificar a sua pró-
necessária uma organização formal” (ENGELS, pria, o capitalista personifica uma força social pre-
1976, p. 250). viamente concentrada e centralizada, o capital.
Partindo dos pressupostos até aqui expostos, os
Esta fugaz passagem, referente a um tema
autores afirmam que o capital poderia recorrer a
sobre o qual Marx e Engels não retornarão, servi-
três formas de ação coletiva – a firma, a coopera-
rá como alavanca para Offe e Wiesenthal (1984)
ção informal e a associação dos empregadores ou
desenvolverem sua conhecida distinção sobre as
de empresas –, enquanto o trabalho teria somente
lógicas de ação coletiva do capital e do trabalho.
uma. A existência destas formas múltiplas de or-
Para além das semelhanças formais entre associ-
ganização coletiva reduziria o escopo dos interes-
ações de empresas e sindicatos operários, esses
ses que as associações formais deveriam tratar, o
autores procurarão apontar a diferenciação de clas-
que permitiria uma melhor definição dos interes-
se específicas dos respectivos tipos de fatores
ses verdadeiros, um índice reduzido de conflitos
input (o que precisa ser organizado) e a natureza
internos e, conseqüentemente, uma elevada capa-
dos outputs (condições de sucesso estratégico que
cidade de organização.
precisam ser alcançadas no meio ambiente das
organizações). A rigor, esta elevada capacidade de organiza-
ção não chega a ser condição necessária para in-
A diferenciação remete à essência dos atores.
fluenciar o governo. Estabelecida uma dependên-
O capital tem como necessidade combinar o tra-
cia estatal do processo de acumulação privada,
balho e os bens de capital, a fim de produzir mais-
fica evidente que as formas não associativas de
valia. Ambos os elementos consistem em trabalho
ação bastariam para os empresários avançarem
social, mas, enquanto um é o resultado de traba-
seus interesses. A capacidade de decidir sobre os
lho passado (“trabalho morto”), o outro é força
investimentos é mais poderosa do que qualquer
de trabalho como potência presente. Combinar este
outra decisão que possam tomar. Amparada na
último, que não é separável dos portadores da for-
obra de Charles E. Lindblom (1979), esta análise
ça de trabalho, com os demais “fatores de produ-
dos outputs organizacionais, realizada por Offe e
ção” consiste no problema fundamental com o qual
Wiesenthal (1984), remete à posição de poder pri-
o capitalista tem de lidar.

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vilegiada ocupada pela empresa, na medida em que presentação. Offe e Wiesenthal, por sua vez, ar-
esta controla os investimentos, tornando o Esta- gumentam que ela é o produto de uma elevada
do dependente de suas decisões1. homogeneidade e da facilidade dela decorrente para
criar identidades e organizar o capital3.
Levando em conta esta posição privilegiada do
capital, afirmam Offe e Wiesenthal (1984), o rela- Para além dos resultados convergentes, as te-
cionamento entre este e o Estado estaria centrali- orias baseadas no individualismo metodológico de
zado não na atividade política de suas associações Olson e nas distinções classistas de Offe e
e sim na capacidade de o capital recusar-se a in- Wiesenthal partilham também um mesmo viés
vestir e no vigor do processo de acumulação. O metodológico. Tais teorias estão fortemente an-
desinvestimento privado poderia tanto abalar as coradas em premissas utilitaristas que explicari-
condições de estabilidade macroeconômicas ne- am a capacidade organizativa a partir da distribui-
cessárias para viabilizar as políticas governamen- ção de interesses (TRAXLER, 1993). O
tais como diminuir a arrecadação tributária neces- utilitarismo dessas teorias é uma conseqüência de
sária para implementar tais políticas. Os capitalis- seu essencialismo. São teorias da ação coletiva
tas possuiriam, assim, um poder de veto implícito que constroem seus argumentos, logicamente, a
sobre as decisões governamentais2. A dependên- partir de pressupostos que remetem à essência
cia que o aparelho estatal possuiria em relação ao dos atores, unidades básicas da pesquisa científi-
capital não pressuporia uma dependência da clas- ca. Para Olson (1971), tais unidades seriam os
se capitalista em relação ao Estado ou do Estado indivíduos capazes de agir racionalmente com o
com relação aos trabalhadores. Ela seria expres- objetivo de maximizar seus benefícios e minimizar
são de uma assimetria estrutural que não é criada os custos necessários para obtê-los. Para Offe e
pelas associações empresariais, muito embora seja Wiesenthal (1984), os atores são as classes soci-
por ela explorada. ais, entendidas como a soma de indivíduos que
personificam um conjunto indiferenciado de ele-
II. CAPITAIS PARTICULARES E INTERESSES
mentos, o capital em geral ou o conjunto do tra-
COLETIVOS
balho abstrato. Os interesses, a capacidade
Apesar de terem construído sua teoria da ação organizativa e o poder de influenciar desses ato-
coletiva baseada em distinções classistas – em res são considerados predeterminados por suas
grande medida, em oposição a Olson e à sua teo- próprias essências.
ria da ação coletiva, baseada no individualismo
Olson (1971) e Offe e Wiesenthal (1984) to-
metodológico –, Offe e Wiesenthal (1984) che-
mam como dado aquilo que deveria ser objeto da
gam à mesma conclusão que o primeiro: os em-
própria investigação. Se os interesses empresari-
presários têm uma grande capacidade de organi-
ais são heterogêneos ou homogêneos e em que
zação de seus interesses e de influenciar o gover-
medida o são é algo que só a pesquisa histórica
no. Franz Traxler (1993) mostra que esta con-
poderá responder. Homogeneidade e
vergência é paradoxal, na medida em que são apon-
heterogeneidade do capital são resultados do pro-
tadas razões contraditórias para tal capacidade.
cesso histórico tanto quanto a formação dos inte-
Olson indica que essa capacidade é o resultado de
resses empresariais.
um elevado grau de heterogeneidade de interes-
ses, que produziria um grande número de associ- Considerar o capital como uma força social
ações representando um amplo espectro de “in- concentrada pode ser o óbvio no início do século
dústrias” (setores), de tal maneira que não have- XXI, mas não o é do ponto de vista histórico. O
ria, praticamente, interesses empresariais sem re- mesmo poderia ser dito a respeito da fragmenta-
ção do trabalho (ROY & PARKER-GWIN, 1999).
Os processos de concentração e centralização do
1 Claus Offe desenvolverá este tema sem mencionar a obra
capital desenvolveram-se ao longo de séculos,
de Lindblom em um conhecido artigo publicado juntamen-
te com Volker Ronge (OFFE & RONGE, 1984). Uma críti-
ca consistente ao argumento da posição privilegiada desen-
3 Traxler (1993) indica que as noções de capacidade
volvido por Lindblom pode ser encontrada em David
organizativa e de heterogeneidade de interesses indicam
Marsh (1983).
diferentes realidades para essas teorias, o que não invalida
2 A expressão veto, embora sintetize a versão aqui apre- o argumento de que as justificativas desenvolvidas por elas
sentada, pertence, na verdade, a Fred Block (1987). são contraditórias.

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produzindo configurações nacionais bastante va- frontam entre si. Esta oposição de interesses de-
riadas. Estes arranjos não foram o resultado da corre das condições econômicas da sua vida bur-
realização de uma essência do próprio capital e guesa” (MARX, 1982, p. 117). A existência des-
sim o resultado de conflitos e lutas que opuseram tes capitais particulares não apenas condiciona os
o capital e o trabalho, por um lado, e as diferentes antagonismos internos ao capital em geral, como
frações do capital entre si, por outro. aqueles que estabelecem-se entre capital e traba-
lho.
O resultado final do conflito não pode ser pre-
viamente determinado a partir de pressupostos Qual seria, então, o interesse básico capaz de
essencialistas sem correr o risco de naturalizar o unificar estes diferentes capitais particulares, bem
processo social. As formas históricas que esse como suas frações, e conduzi-los a formas
processo assume, sua plasticidade e mutabilidade institucionalizadas de ação coletiva? Em um grau
indicam a necessidade de pensar as formas con- bastante elevado de abstração, pode-se dizer que
cretas do processo de definição de interesses, é interesse do capital a preservação do próprio
construção de projetos, associação e atuação po- capitalismo, de suas condições “normais” de funci-
lítica do empresariado como o resultado de rela- onamento, como a garantia da propriedade priva-
ções de forças sociais. da, dos contratos e do funcionamento regular dos
mercados. Mas para além deste consenso básico,
O problema fundamental das teorias
as coisas parecem complicar-se, e os interesses
essencialistas é não captar as diferentes configu-
dos capitais particulares tornam-se heterogêneos,
rações particulares das próprias essências. Em
quando não, contraditórios (BIRLE, 1997).
Olson (1971), este problema aparece sob a forma
de uma recusa em analisar as diferenças sociais Os interesses dos capitais particulares pare-
existentes e os variados potenciais políticos e cem conspirar até mesmo contra este consenso
organizativos que erguem-se sob estas, como bem básico, na medida em que, no ato da concorrên-
alertaram Offe e Wiesenthal (1984). Nestes últi- cia, diferentes interesses competem entre si sem
mos autores, o problema aparece sob uma disso- estabelecerem um curso definitivo ao processo
lução dos capitais particulares em sua forma ge- de reprodução do capital em geral. As próprias
ral. Mas os capitais particulares não são idênticos “condições normais de funcionamento” são obje-
entre si. Eles diferem das mais variadas formas – to de divergências, como demonstrou a análise de
função, ramo de atividade, tamanho, localização Jessop a respeito das estratégias de acumulação e
etc. –, ocupando lugares e momentos diferentes de sua relação com os interesses capitalistas na
no processo de produção e reprodução do capital Alemanha de Weimar (JESSOP, 1983b).
social. São estes diferentes lugares ocupados pe-
Até mesmo aquela que deveria ser pedra an-
los capitais particulares que permitem falar de fra-
gular desse “consenso básico”, a manutenção do
ções deste, conjuntos de capitais particulares que
direito de propriedade, pode ser objeto de diver-
partilham condições comuns de realização e que,
gência em certos contextos. Analisando uma situ-
portanto, compartilham interesses. Por um lado,
ação extrema, Charles Bettelheim apontou como
estas diferentes frações são parte constitutiva do
o processo de “arianização” da economia sob o
capital, em geral, realizando nele sua unidade. Por
regime nazista e a expropriação das empresas de
outro, elas são partes diferenciadas e independen-
propriedade de judeus na Alemanha e em territóri-
tes, dotadas de um movimento próprio. O estudo
os ocupados atendeu aos interesses dos grupos
da “ação coletiva do capital” deve levar em conta
econômicos privados, principalmente do setor de
esta unidade contraditória no movimento geral do
confecções e do comércio varejista
capital, dos diferentes capitais particulares e das
(BETTELHEIM, 1971).
frações por eles formadas (CRUZ, s/d).
A afirmação de Bettelheim precisa, por sua vez,
A existência de capitais particulares concor-
ser problematizada, uma vez que este processo
rentes é a base dos antagonismos intercapitalistas.
de expropriação dos ativos pertencentes a judeus
É Marx (1982) que lembra isso, já em Miséria da
não foi imediato e expressou o conflito existente
Filosofia: “se todos os membros da burguesia
entre as diferentes frações da burguesia alemã.
moderna têm o mesmo interesse, enquanto for-
Embora os primeiros passos da “arianização” pos-
mam uma classe frente a outra classe, eles têm
sam ser identificados no boicote ao comércio va-
interesses opostos, antagônicos, enquanto se de-
rejista judaico convocado pelo Nationalsozialis-

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EMPRESÁRIOS E AÇÃO COLETIVA

tische Deutsche Arbeiterpartei (Nsdap), em abril exatidão posições futuras – políticas e


de 1933, foi apenas em 1937 que teve início a organizativas – que essas unidades assumiriam.
arianização das empresas e somente em 1941, E, no entanto, a história não deixa de guardar sur-
foram expropriados os ativos dos grupos presas. Há uma elevada dose de incerteza inerente
Rothschild e Petschek. A respeito desse proces- ao próprio conflito.
so, Peter Hayes (1987) revelou a aparentemente
As determinações estruturais que constituem
paradoxal oposição à “arianização” manifestada pe-
a essência dos sujeitos são atualizadas nos confli-
los executivos do poderoso grupo químico IG
tos sociais. Por isso mesmo, tais sujeitos, e isso é
Farben, o mesmo que instalou uma fábrica em
importante destacar, só fazem sentido como ex-
Auschwitz. Harold James (2001), por sua vez,
pressão nas relações e condições nas quais estão
discutiu os conflitos existentes no interior da bu-
reciprocamente situados (MARX, 1987, v. 1, p.
rocracia do Deutsche Bank a esse respeito4.
204-205). Eles apenas existem nas relações recí-
É na análise das situações concretas, como a procas que estabelecem entre si e nos conflitos
mencionada acima, que revela-se de modo inten- inerentes a estas. Só existem em movimento, o
so a dificuldade existente para compatibilizar os que parece escapar aos autores citados. É, por-
interesses gerais do processo de produção e re- tanto, a partir da ação coletiva que é construído o
produção do capital em geral e os interesses par- ator coletivo (EDER, 2002).
ticulares dos diversos capitais privados, bem como
Outro tanto poderia ser dito de seus interes-
que tais interesses não são dados atemporais e
ses, organizações e capacidades de influenciar. As
sim construções históricas determinadas. Ou seja,
formas organizativas que estas classes assumem
só é possível falar de interesses do capital con-
não reagem sobre a definição de interesses, crian-
cretos e determinados historicamente por uma
do e recriando novas necessidades para estas clas-
relação de forças sociais.
ses? E o exercício da influência não produz im-
É justamente o processo de conformação des- pactos perceptíveis sobre as organizações destas
tes interesses concretos e históricos o que escapa classes? Também aqui só pode-se falar de inte-
às teorias essencialistas. Teorias essencialistas são resses, organizações e influência em movimento,
a-históricas. Elas remetem a essências abstratas, nas relações complexas que mantêm.
estáticas e predefinidas. Nelas, as relações entre
III. RELAÇÕES DE FORÇAS, AÇÃO COLETI-
estas essências são relações de exterioridade, nas
VA E INTELECTUAIS DO CAPITAL
quais a interação não provoca a alteração dos con-
teúdos. Metaforicamente, tais relações podem ser O enfoque que será aqui esboçado aponta para
assemelhadas às bolas de bilhar sobre uma mesa. a necessidade de pensar a ação coletiva
Colisões podem mudar trajetórias e comportamen- relacionalmente, tomando como ponto de partida
tos sem que ocorram, entretanto, alterações no as relações existentes entre os empresários, os
ser-do-objeto. Produzem, no máximo, um trabalhadores e o Estado6.
reposicionamento dos sujeitos, definindo novas
As relações que os próprios empresários esta-
coordenadas para a próxima colisão5.
belecem entre si, no ato da concorrência, moti-
Os indivíduos de Olson (1971) e as classes de vam a coordenação de interesses empresariais in-
Offe e Wiesenthal (1984) guardam entre si rela- dividuais e setoriais, com o objetivo de restringir
ções semelhantes ao jogo de bilhar no tabuleiro da certas práticas que poderiam comprometer a via-
história. São unidades sociais completamente in- bilidade do sistema como um todo. Esta coorde-
dependentes, portadoras, cada uma, de interesses nação torna-se necessária na medida em que a
e capacidades organizativas e políticas previamente competição é uma característica do modo de pro-
definidas. Calculando, a partir de suas essências, dução capitalista. Os proprietários do capital, per-
seu comportamento seria possível prever com seguindo seus próprios interesses, não produziri-
am a integração espontânea do sistema e sim con-

4 Esses conflitos não deixaram de revelar-se na esfera


6 Schmitter e Streeck (1999) também destacam as relações
associativa, como apontou Braunthal (1965).
dos empresários entre si e aquelas que mantêm com os
5 Para uma crítica das concepções “substancialistas” nas trabalhadores e o Estado, definindo-as como imperativos
Ciências Sociais, ver Emirbayer (1997). políticos do associativismo empresarial.

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tradições sistêmicas e crises, daí a necessidade dores de defender seus interesses por meio da ação
de organizarem-se para evitar tais situações. His- coletiva. Aqui, os empresários não aparecem como
toricamente, essa coordenação dos empresários produtores, comerciantes ou financistas e sim
como produtores ecoa o surgimento da formação como empregadores.
social capitalista, assumindo a forma de associa-
ções de coordenação dos interesses empresarias Muito embora as associações de empregado-
no mercado de produtos, conhecidas em inglês res tenham, na maioria dos casos, surgido como
como trade associations (TRAXLER, 1999)7. resposta à criação de sindicatos de trabalhadores,
elas não guardam correspondência numérica como
Tais organizações podem ter suas origens en- estes. Ao contrário do deduzido por Offe e
contradas na tradição das corporações medievais Wiesenthal (1984), os estudos empíricos levados
de organização da produção e do comércio e, em a cabo por Streeck (1992) e Traxler (1993) indi-
vários países, figuram entre as associações mais cam que, para um mesmo nível de agregação de
antigas, ao contrário do esperado por Offe e interesses, o número de associações patronais ten-
Wiesenthal (1984). Coordenando interesses de a ser significativamente maior do que o de sin-
setoriais, muitas vezes, extremamente dicatos, indicando a persistência de divisões no
especializados, estas organizações tendem a exer- interior do empresariado.
cer representações autônomas e/ou concorrenciais
umas com as outras (DUFOUR, 2001). Caberia ainda destacar as relações que os em-
presários estabelecem com o Estado. A interven-
A organização, por meio destas associações, ção sistemática do Estado na economia reduziu o
não elimina a concorrência entre as firmas que papel dos mercados como locus da regulação eco-
delas participam. Também não garante um resul- nômica, de modo a exigir uma ação coordenada
tado que tenha um impacto igual em todos os seus dos empresários para intervir efetivamente no
membros. Pelo contrário, não sendo iguais, os modo da ação estatal. Quanto mais o Estado in-
membros destas associações, é de esperar -se, tervém na economia maior o estímulo para os
não são iguais os impactos da decisão de agir cole- empresários organizarem-se e influenciarem esta
tivamente e os resultados desta ação8. A forma- intervenção (HAGGARD, MAXFIELD &
ção destas associações, entretanto, pode produzir SCHNEIDER, 1997). A percepção da ingerência
um impacto significativo na formatação do con- estatal na economia como uma ameaça aos inte-
texto econômico, na regulamentação do conflito resses empresariais pode, assim, ser um impor-
social e na formulação e implementação de deter- tante fator de coesão e organização empresarial10.
minadas políticas (SCHNEIDER & MAXFIELD, Mas o Estado pode não ser uma ameaça e sim um
1997). indutor da ação coletiva empresarial. Arranjos po-
As associações de empregadores (employers líticos nos quais são enfatizados os papéis da re-
associations), por sua vez, organizam os interes- presentação dos empresários e dos trabalhadores
ses empresariais no mercado de força de trabalho na elaboração e implementação de políticas públi-
(TRAXLER, 1999, 2000)9. Elas são expressão das cas, principalmente daquelas que dizem respeito
relações existentes entre os empresários e a ação ao controle de salários, postos de trabalho, pre-
coletiva dos trabalhadores. Como já ressaltaram ços e inflação, podem criar um contexto
Offe e Wiesenthal (1984), a mobilização política institucional favorável a esses papéis. Definindo
dos trabalhadores e a criação de sindicatos leva as regras de acesso a esses arranjos ou às políti-
os empresários a organizarem e coordenarem suas cas deles decorrentes e privilegiando os canais
ações como resposta às tentativas dos trabalha- associativos, o Estado poderia incrementar a im-
portância e o prestígio das associações com rela-
ção a seus membros (STREECK, 1993 e OFFE,
1987).
7 Os pesquisadores franceses fazem referência às
organizations économico-politiques (DUFOUR, 2001).
10 A percepção da ação estatal como uma ameaça é apon-
8 Robert J. Bennett (1999) tem demonstrado, de maneira
tada para o caso latino-americano por Fernando Durand e
convincente, que o tamanho das empresas em um dado
Eduardo Silva (1998), Ernest Bartell e Leigh Payne (1995)
setor interfere na decisão de agir coletivamente.
e Schneider e Maxfield (1997). Analisando a politização
9 Na literatura francesa, tais organizações são denomina- empresariado norte-americano e inglês, na década de 1970,
das de organisations sociales (cf. DUFOUR, 2001). Michel Useem (1984) chega a conclusão similar.

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EMPRESÁRIOS E AÇÃO COLETIVA

A separação desses três conjuntos de relações sociais. É sobre esta relação que erguem-se os
acima apresentados – dos empresários entre si, grupos sociais, cada qual representando uma fun-
com a ação coletiva dos trabalhadores e com o ção e ocupando uma posição dada na produção.
Estado – só é possível com fins meramente analí-
Nesse nível, o que está sob o olhar do pesqui-
ticos. Nos processos históricos reais, elas estão
sador é a materialidade das classes e de suas fra-
entrelaçadas de maneira complexa e indissolúvel.
ções. Nele, as classes existem objetivamente como
As relações acima apontadas existentes entre os
capital ou trabalho (GRAMSCI, 1977). Localiza-
empresários e destes com os trabalhadores e o
da na estrutura, a análise revelará o lento tempo
Estado não são de tipo unívoco. Empresários – e
da longa duração, a surda transformação históri-
mesmo frações da burguesia – podem reagir de
ca, processando-se vagarosa e quase impercepti-
maneiras diferentes nessas situações. A percep-
velmente. É a própria constituição da formação
ção das formas de competição intercapitalista, a
social capitalista o que aqui está em questão;
intensidade da utilização da força de trabalho e as
relações com o aparelho estatal podem variar 2) relação de forças político-ideológicas: vale
muito, produzindo impulsos de agregação de va- lembrar que, até aqui, foi feita referência a fra-
riada intensidade e de sentidos múltiplos. ções do capital e não a frações da burguesia. Offe
e Wiesenthal (1984) trabalham com um capitalis-
Focalizando o estudo das associações empre-
ta típico-ideal, mero suporte das relações sociais
sariais nos três conjuntos de relações acima apon-
que condensa em sua pessoa. Dessa forma, capi-
tados, as formas institucionais da ação coletiva
tal e burguesia seriam sinônimos. De fato, a aná-
do capital deixariam de ser um resultado espontâ-
lise da burguesia e de suas frações tem como base
neo do processo histórico, forma de manifesta-
a determinação das frações nas quais divide-se o
ção da essência de determinados atores. A análise
capital, mas não pode resumir-se a elas.
poderia ser, assim, deslocada para o próprio modo
Condensações históricas de relações de produção
de constituição desta ação. É sobre este movi-
determinadas, as classes e suas frações são cru-
mento, o movimento da história e dos conflitos
zadas pelas relações políticas e ideológicas exis-
sociais, que é necessário debruçar-se para confe-
tentes (POULANTZAS, 1978).
rir inteligibilidade à ação coletiva do empresariado.
Se estas relações não têm seu desenvolvimento As relações de forças político-ideológicas per-
previamente definido – e o conflito social tem ne- mitem estimar o grau de homogeneidade,
las seu lugar –, então, elas são relações de forças. autoconsciência e organização dos vários grupos
sociais. Da sua análise, podem ser apreendidos os
Como estudar essas relações de forças? O es-
diversos momentos da formação da consciência
quema que aqui será proposto, fortemente influ-
política de um grupo social e das formas
enciado pela obra de Antonio Gramsci, destacará
institucionais e projetivas que esta assume. Três
três momentos de análise que se deslocariam
são as dimensões que poderiam ser destacadas,
gradativamente de níveis mais abstratos para aque-
de acordo com Gramsci (1977):
les mais concretos11. O deslocamento é, também,
um deslocamento temporal, na medida em que os 2.a) uma dimensão econômico-corporativa, na
tempos dessas relações de forças são diferencia- qual um grupo percebe sua unidade ho-
dos. São elas: mogênea e o dever de organizá-la, “a uni-
dade do grupo profissional, mas ainda não
1) relação de forças objetivas: em uma aproxi-
a do grupo social mais amplo” (idem, p.
mação inicial, é possível estabelecer a relação de
1583);
forças objetivas existente entre as diferentes fra-
ções do capital e entre o conjunto destas e o tra- 2.b) uma dimensão na qual observa-se a soli-
balho. Tal relação de forças diz respeito ao grau dariedade de interesses econômicos de
de desenvolvimento das forças produtivas, ao lu- todos os membros da classe, mas ainda
gar das diferentes frações do capital no processo não há identidade política entre eles;
de reprodução geral e à materialidade dos grupos 2.c) uma dimensão estritamente política que
indica a passagem da estrutura à esfera
11 Seguem-se aqui as indicações de Antonio Gramsci das superestruturas complexas. É o mo-
(1977) em seu conhecido texto sobre a análise de situações mento da criação da “hegemonia de um
e as relações de forças. grupo social fundamental sobre uma sé-

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rie de grupos subordinados” (idem, p. ção, não apenas no campo econômico como tam-
1584), ou seja, o momento da afirmação bém nos terrenos da política e da ideologia12.
de projetos e estratégias capazes de orga- Gramsci considera intelectual todo aquele que re-
nizar toda a sociedade; aliza uma função organizativa lato sensu.
Organizadores do capital, os empresários são es-
3) relação de forças estratégicas: tais relações
ses intelectuais orgânicos da burguesia apontados
permitem identificar os conflitos com vistas ao
pelo marxista italiano: “É preciso observar o fato
poder político; aqueles estabelecem-se entre as
de que o empresário representa uma elaboração
diferentes classes sociais e, no interior destas, entre
social superior, já caracterizada por uma certa
suas frações. O movimento histórico, dirá
capacidade dirigente e técnica (ou seja, intelectu-
Gramsci, oscila, constantemente, entre o primei-
al): deve ter uma certa capacidade técnica, além
ro e o terceiro momento da correlação de forças
de na esfera circunscrita de sua atividade e de sua
com a mediação do segundo momento, o da cor-
iniciativa, também em outras esferas, ao menos
relação de forças político-ideológica. Mas o tem-
naquelas mais próximas à produção econômica
po deste terceiro momento é consideravelmente
(deve ser um organizador de massas de homens,
acelerado, catalisando as transformações nas es-
deve ser um organizador da ‘confiança’ dos in-
feras da economia, da política e da ideologia. Es-
vestidores em sua empresa, dos compradores de
tes três níveis, nunca é demais ressaltar, não são
sua mercadoria etc.)” (GRAMSCI, 1977, p. 1513).
indicativos de um percurso linear, um estágio su-
cedendo ao outro. Eles estão interpenetrados verti- Parafraseando a conhecida afirmação de
cal e horizontalmente, nacional e internacionalmente, Gramsci – “todos os homens são intelectuais [...];
de maneira a criar arranjos históricos concretos. mas nem todos os homens têm, na sociedade, a
função de intelectuais” (idem, p. 1516) –, pode-
À medida que a análise das relações de forças
se afirmar que todo empresário é um intelectual e
conduz para níveis cada vez mais concretos, fica
todos têm a função de intelectuais de seu próprio
evidente que o indivíduo que personifica o capital
capital. Mas é verdade, nem todos têm a capaci-
não é um mero suporte biológico de sua realiza-
dade de organizarem o capital em geral ou a soci-
ção. Além de músculos, ele fornece-lhe uma cons-
edade. É de esperar-se, entretanto, que existam
ciência e uma capacidade de agir refletidamente,
aqueles que sejam capazes de organizar a socie-
formulando seus interesses e lutando por eles,
dade em geral, dos pontos de vista econômico e
construindo alianças e combatendo os adversári-
político, ou de compreender a necessidade dessa
os. Neste aspecto da análise, é necessário intro-
organização. Há, portanto, uma hierarquia de em-
duzir a vontade humana e seus organizadores.
presários-intelectuais, com diferentes tarefas e
O que define o empresário, o agente da ação funções na sociedade.
coletiva do capital, é, desse modo, uma determi-
Os choques entre as diferentes frações do ca-
nada relação social – a de propriedade ou controle
pital, os conflitos existentes entre as diferentes
de uma fração autônoma do capital – e uma deter-
frações da burguesia, as classes subalternas e suas
minada função – a de organizadores e gestores do
formas institucionais moldam, dando-lhe forma,
processo de valorização desse capital (CRUZ,
o processo de reprodução do capital, redefinindo
1981). O empresário que aqui é definido não é,
constantemente suas necessidades. Não é possí-
portanto, o burguês, na medida em que nem todo
vel, portanto, falar de um interesse geral desse
membro da burguesia desempenha a função de
capital sem analisar as relações de forças sociais
intelectual do capital, havendo aqueles que, ape-
que cristalizam os conflitos citados e o papel de
sar de serem proprietários, apenas usufruem do
mediadores na formulação destes interesses ocu-
resultado desse processo de valorização ou aque-
pados pelos intelectuais orgânicos13. Os intelec-
les que, mesmo não sendo proprietários, contro-
lam os processos não econômicos de reprodução
da ordem do capital. Assim, se todo empresário é
12 Ver, por exemplo, Gramsci (1977, p. 1513). Todo o
um burguês, nem todo burguês é um empresário.
chamado Quaderno 12 é, na verdade, dedicado a esse tema
O desenvolvimento pleno de uma classe pres- (GRAMSCI, 1977).
supõe que esta seja capaz de dotar-se de uma ca- 13 Pierre Muller (1983) falará de mediadores globais e
mada de intelectuais capaz de dar-lhe setoriais. Tal perspectiva influenciou o estudo de Sebastião
homogeneidade e consciência de sua própria fun- Velasco e Cruz (1997) sobre a política industrial brasileira.

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EMPRESÁRIOS E AÇÃO COLETIVA

tuais orgânicos dão coerência a estas necessida- pital particular estão com sua alma dilacerada pe-
des na forma de projetos políticos e econômicos. las pressões decorrentes da contraditoriedade exis-
tente entre as necessidades do processo de repro-
O nível de abrangência desses projetos pode
dução do capital em geral e as necessidades de
variar ao longo de um espectro bastante amplo.
seu próprio capital. Cruz (1997, p. 27) alerta para
Porém, vinculado às relações de forças político-
esta situação contraditória: “Por mais informado
ideológicas, é possível apontar a existência de pro-
que seja um empresário, por exemplo, por con-
jetos que aderem, em maior ou menor medida,
vencido que esteja da conveniência de uma deter-
aos diferentes níveis daquelas:
minada política do ponto de vista do capital em
1) projetos econômico-corporativos ou geral, ele não deixará de oferecer-lhe resistência
setoriais, nos quais se traduziriam, separadamen- se, com ela, seu setor ou sua empresa forem ne-
te, os interesses econômicos imediatos de ramos gativamente afetados. Isto porque o seu destino,
ou esferas da produção; como empresário, não vincula-se diretamente ao
comportamento da economia como um todo, mas
2) projetos hegemônicos restritos: expressão
confunde-se com a trajetória descrita pela unida-
da articulação dos interesses de diferentes ramos
de particular de capital que ele encarna”.
ou esferas da produção que construíam uma iden-
tidade econômica comum, mas que não são ainda Daí, a possibilidade de um mesmo intelectual
capazes de afirmar um projeto de direção do con- orgânico expressar, simultaneamente, projetos
junto da sociedade e aparentemente incompatíveis. Situação esta que
tem angustiado profundamente os estudiosos do
3) projetos hegemônicos globais: por meio de-
comportamento empresarial latino-americano du-
les, um grupo social afirma sua vocação de dire-
rante os processos de reformas econômicas
ção “política, intelectual e moral” sobre o conjun-
neoliberais15. Problemas de tradução dos proje-
to da sociedade, para utilizar os termos de Gramsci
tos hegemônicos? Sim, mas também, algumas
(1977), por intermédio da incorporação de deman-
vezes, impossibilidade de tradução. A viabilidade
das das classes subalternas (JESSOP, 1983a)14.
de tais projetos não depende da argúcia de seus
Tais projetos não são mutuamente excludentes. portadores e sim da existência de relações de for-
Para conquistar o necessário apoio dos capitais ças sociais apropriadas para tal. As formas de as-
particulares, projetos hegemônicos devem ser sociação do capital não são o resultado de uma
passíveis de tradução em projetos econômico- tendência espontânea à identificação de interesses
corporativos. Ou seja, para afirmar uma capaci- comuns e sim o produto destas relações de forças
dade dirigente, é necessário que o interesse do sociais que motivariam a agregação de interesses
capital em geral apareça como o interesse, no antes dispersos e, até mesmo, conflitantes, bem
mínimo, dos capitais particulares e unifique o cir- como da capacidade de liderança de certos inte-
cuito do capital sob a hegemonia de uma fração lectuais16.
(idem). Hegemonia é entendida, aqui, no sentido
IV. CONCLUSÃO
gramsciano, como exercício desta capacidade de
direção e liderança política e econômica. Opõe- Visões essencialistas da ação coletiva remetem
se, portanto, à mera dominação, na qual uma das a atributos inatos, específicos dos próprios sujei-
frações simplesmente impõe seus projetos eco-
nômico-corporativos às demais frações e classes
sociais sem levar em conta seus projetos ou inte-
resses. 15 Ver, por exemplo, a seguinte afirmação: “Enquanto

Torna-se claro, pois, o lugar dos intelectuais líderes empresariais naturalmente gravitaram ao redor do
imaginário do mercado em sua retórica anti-regime, empre-
na construção da hegemonia. Mas tal lugar não endedores empresários individuais mantiveram concepções
deixa de ser ambíguo. Personificações de um ca- e perspectivas largamente divergentes sobre como as polí-
ticas orientadas ao mercado deveriam ser formuladas e
implementadas” (CONAGHAN, MALLOY &
ABUGATTAS, 1990, p. 9-10).
14 Muller (1985) fala, de maneira análoga, em referenciais 16 Durand e Silva (1998) também destacam a importância
setoriais, referenciais globais e elementos de transição en- de sólidas lideranças empresariais para a consolidação de
tre estes dois níveis. associações empresariais abrangentes.

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tos. No âmbito dos estudos sobre o empresariado que não fazem senão ocultar o próprio fazer-se
latino-americano, tais visões têm insistido mais das classes sociais, um enfoque relacional permi-
naquilo que os empresários deveriam ser ou no tiria perceber a própria gênese histórica dos pro-
que não eram e menos naquilo que eles de fato jetos empresariais e de sua materialização
são. Quando o modelo de dever ser foi um bur- institucional em associações empresariais.
guês típico-ideal, quando não mitológico, com cer-
O estudo da capacidade associativa do
tidão de nascimento na Europa do século XIX, o
empresariado, da formulação de seus projetos e
resultado desses estudos oscilou entre o lamento
de sua ação política seria, deste modo, abordado
e a esperança, deixando escapar a particularidade
a partir de relações de forças que estabelecem-se
do desenvolvimento capitalista latino-americano e
em contextos históricos específicos e que permi-
de seus atores sociais.
tiriam apontar as raízes e a trajetória de desenvol-
A adoção de um enfoque relacional no estudo vimento destes processos políticos. As dimensões
sobre o empresariado e o abandono de enfoques destacadas remetem, de maneira explícita, à cons-
essencialistas podem contribuir para a constru- trução das formas de ação, consciência e organi-
ção de uma visão mais dinâmica e complexa. Nesta zação dos diferentes grupos sociais. O que um
perspectiva relacional, as associações empresari- enfoque relacional pode trazer de significativo para
ais seriam uma condensação institucional de rela- a análise da ação coletiva empresarial é uma per-
ções de forças verticais, aquelas que estabelecem- cepção destas formas como singularidades histo-
se entre diferentes classes sociais, e horizontais, ricamente determinadas pelos conflitos sociais
as que constituem-se entre as várias frações da existentes. Para o estudo das associações empre-
burguesia. Ao invés de procurar deduzir os proje- sariais, elas são relevantes na medida em que per-
tos empresariais a partir de essências de vários mitem pensar tais associações como o resultado
tipos – econômicas, culturais, psicológicas etc. – destes conflitos e o seu lugar.

Álvaro Bianchi (albianchi@terra.com.br) é Professor do Departamento de Ciência Política da Universi-


dade Estadual de Campinas (Unicamp).

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