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A Cia na América Latina - Um Manual Chamado KUBARK

Article · November 2019

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Fernando Miramontes Forattini


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
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GEO | Cia é América Latina

Um manual
chamado
KUBARK
Nos anos 1960 a contrainteligência
norte-americana influenciou estratégias
repressivas na América Latina que
legitimavam o uso da tortura, violando
tratados nacionais e internacionais de
proteção aos direitos humanos
© KERPETENLUI / ISTOCKPHOTO.COM

Por Fernando Miramontes Forattini e Moisés Carlos Ferreira

36 | LEITURAS DA HISTÓRIA
“El
dolor preciso, en el momento
preciso, en la cantidad pre-
cisa, para el efecto deseado”.
[…] [Dan Mitrione] el maes-
tro de la tortura de la CIA, a fines de los 60 y
principios de los 70 en América latina. (CLA-
RÍN, 02/09/2001). Essa fala de Daniel Mitrione1
traduz as reflexões que pretendemos abordar
no presente artigo: a influência de técnicas de
tortura e contrainteligência propagadas pela
CIA na América Latina via seu Manual KU-
BARK de 1963.
O aspecto que aqui investigaremos diz res-
peito às influências externas que os órgãos de
inteligência e treinamentos militares destes
países no Cone Sul que viviam sob o jugo de di-
taduras receberam entre os anos de 1960 e de
1980. Procuramos explicar como eles influen-
ciaram uma visão de mundo em que, dentro
do contexto da Guerra Fria, buscou-se legiti-
mar o uso da tortura em cidadãos de seus pró-
prios países com a ideia de que se vivia uma
guerra interna e que, portanto, não se deviam
respeitar as leis internas e internacionais, em
completo desrespeito aos direitos humanos.

1 Daniel Anthony Mitrione (Dan Mitrione) foi um ex-agente da CIA que atuou nos serviços de
inteligência brasileiro e uruguaio na década de 1960 e início da década de 1970. Sua função era
treinar os agentes destes países para ações que, em seu entender, “exigiam” uma forma específica
de contrainteligência, envolvendo especialmente a tortura, utilizando-se, para isto, do Manual
KUBARK e seus preceitos.

LEITURAS DA HISTÓRIA | 37
GEO | Cia é América Latina

Este manual terá duas versões do mes- de Estado com o apoio dos EUA, tendo Fria com maior intervencionismo, ide-
mo texto, uma de 1963, a original, e uma como caso emblemático a Guatemala2 . ológico, político e econômico na região
lançada mais à frente com alterações im- Podemos, também, citar outro pro- latino-americana, especialmente com a
provisadas, em 1983, em que os Estados jeto da CIA dentro do escopo desta Es- Doutrina Truman e com a Aliança para
Unidos, sob forte pressão interna, bus- cola chamado de Projeto MKULTRA. o Progresso de Kennedy.
cam reavaliar seus métodos de interroga- Tratava-se de um programa que bus- Para melhor compreender este perío-
tório e sua imagem. O manual foi escrito cava treinar e adquirir informação do, é necessário pensar no contexto po-
como parte do “Programa de Assistência para melhorar o processo de quebra lítico-histórico da época, com a Guerra
de Inteligência Externa do Exército” da da resistência psicológica via o uso de Fria, Revolução Cubana de 1959, as crises
CIA (codinome “Projeto X”) e foi usado drogas psicotrópicas e outros proce- dos Mísseis em 1961 e o projeto de Kenne-
em diversos países da América Latina ao dimentos, normalmente testados em dy que visava ampliar e defender os inte-
longo das décadas de 1960 e 1980, a pon- indivíduos sem prévio conhecimento. resses estadunidenses em diversas áre-
to de se tornar tão conhecido as. A partir daí, o crescimento
por seus abusos que uma in- da hegemonia estadunidense
vestigação foi instaurada no na região, com a conivência dos
Comitê de Inteligência do Se- “Procuramos aqui explicar como segmentos autocráticos que as-
nado dos EUA em 1988 sobre eles influenciaram uma visão sumem os poderes políticos no
violações de direitos humanos de mundo em que, dentro do interior do Estado, vinculou as
cometidos por militares hon- questões de segurança nacio-
durenhos treinados pela CIA.
contexto da Guerra Fria, buscou- nal a preceitos definidos pelo
se legitimar o uso da tortura em país irmão.
Escolas das Américas cidadãos de seus próprios países Desta forma, o que ocorreu
Por trás desses manuais
com a ideia de que se vivia uma nos países da América Latina
há, vale notar, um projeto de ao longo do século XX foi uma
maior escopo para além do guerra interna e que, portanto, distorção das Leis de Seguran-
objetivo técnico: doutrinar não se deviam respeitar as ça Nacional, que passaram a
agentes e ganhar maior influ- leis internas e internacionais, assumir uma função represso-
ência e informações desses
funcionários de outros países,
em completo desrespeito aos ra, culminando com a subordi-
nação de tais leis à Doutrina de
não só no alto como no baixo direitos humanos” Segurança Nacional, protago-
escalão. Tudo isso dentro de nizadas em especial pelas esco-
um projeto maior elaborado las militares da região (Escola
com a “Escola das Américas”1. Superior de Guerra no Brasil,
Esta foi criada no Panamá, em 1946, pelos Guardião e porta-voz de 1949 – sob influência da National War
EUA, com a denominação inicial de Cen- Desde o século XIX são conhecidas as College) que articularam em seu interior
tro de Adestramento Latino-Americano influências externas que a América La- a formulação, organização e distribuição
– Divisão de Terra. tina sofreu dos EUA. Desde a Doutrina dos preceitos das DSNs para outras ins-
Foi uma escola para formação militar Monroe de 1823 e seu lema “América para tâncias da sociedade.
e também um instituto do Departamen- os americanos”, teremos uma visão de Tais escolas militares tiveram des-
to de Defesa dos Estados Unidos que política externa estadunidense de que taque na organização desses países, em
acumulou entre suas funções a dissemi- este país seria o guardião e porta-voz que assumem o papel de “guardiãs da
nação das Doutrinas de Segurança Na- da América como um todo. Com o cha- ordem social e política”, protetoras da
cional para os países da América Latina. mado Corolário Roosevelt e a política do riqueza desses Estados e defensoras de
Seus principais objetivos eram manter Big Stick, a ideia de guardião passa a um suas fronteiras. Para isso, utilizaram de
os interesses políticos e econômicos dos estágio de paternalismo e intervencio- diversos métodos e estratégias. Os con-
EUA na América Latina, de forma a con- nismo em que as relações entre os EUA ceitos básicos que compõem as DSNs
ter organizações populares, bem como e os outros países seriam cordiais desde são: “… ‘inimigo interno’, ‘guerra interna’,
os movimentos político-sociais de es- que agissem de acordo com os interesses ‘subversão’, ‘contrainsurgência’, ‘Estado
querda que emergissem dentro do então estadunidenses. Após a Segunda Guer- como ser vivo’, ‘objetivos nacionais’, etc.,
contexto da Guerra Fria, como ocorreu ra Mundial, temos o período de Guerra foram disseminados pelos países da re-
em quase todos os países da América do gião através de diversos mecanismos de
2 A reforma política e econômica iniciada na Guatemala
Sul que chegaram a passar por golpes chocou com os interesses dos EUA na região, principalmente transmissão (doutrinação militar, acor-
com sua reforma agrária que, mesmo dentro de molde dos na área do ensino, cultura, etc)”. (PA-
1 Esta “Escola” criou mais de sete Manuais ao longo do capitalista, causou a fúria da empresa United Fruit Company,
tempo, somando mais de 1.170 páginas implicando na queda do governo Arbenz em 1954. DROS, 2007, p. 44)

38 | LEITURAS DA HISTÓRIA
© LUOMAN / ISTOCKPHOTO.COM
“Para melhor
Os manuais KUBARKs
compreender este Assim, fica claro que esses conceitos
ideologicamente, mas não legalmente,
a tortura e outras práticas de guerra –
período, é necessário citados permearam e subsidiaram os grande parte delas, incluídas no Manual
pensar no contexto aparelhos repressivos militares insta- KUBARK de 1963.
lados na América Latina ao longo dos O manual elaborado pela CIA em ju-
político-histórico anos de 1960 e 1970 para que tais nações lho de 19633 é um documento extenso,
da época, com sintam-se impelidas a proteger um ide- com 128 páginas, dividido, grosso modo,

a Guerra Fria, ário, ao mesmo tempo que poderiam se


encontrar “protegidas” da disseminação
em seções sobre o que seriam essas téc-
nicas; considerações legais e políticas;
Revolução Cubana de ideologias externas. Tem-se, com isso, quem deve ser o interrogador e como

de 1959, as crises a construção de duas espécies de inimi-


gos: os externos, que correspondem à
identificar o interrogado; planejamento
do interrogatório; e o método não coerci-
dos Mísseis em ameaça mais tradicional; e os internos, tivo e o método coercitivo de interroga-
1961 e o projeto de representados pelos “subversivos”, os tório para fontes resistentes.

Kennedy que visava


partidários do comunismo e, por isso,
tidos como “agentes infiltrados”, apesar Ameaças e medos
ampliar e defender de nacionais. Trata-se de um manual que se pre-

os interesses Esse modo de compreender o inimi-


go interno faz com que se desvincule a
ocupará com todos os aspectos de um
interrogatório “bem-sucedido”, desde
estadunidenses em ideia de nacionalidade, permitindo que temas mais gerais aos mais específicos.
diversas áreas” se aplique a estes o mesmo tratamento Por exemplo, a recomendação de que ao
dado a um inimigo de guerra (sob essa se escolher um lugar para interrogatório,
nova compreensão tudo valeria, afinal
3 Disponível em: https://nsarchive2.gwu.edu//NSAEBB/
seria uma “guerra”). Ou seja, legitimam, NSAEBB122/3-13-14_MR9864_RES_PART-1.pdf

LEITURAS DA HISTÓRIA | 39
GEO | Cia é América Latina

deve-se preocupar com a corrente elétri- sem luz ou com som alto, ou ficando Mudança de paradigma
ca de antemão, para que transformado- por horas em posições de desconforto. Para melhor conferir esta mudan-
res e outros aparelhos elétricos possam Qualquer coisa que possa levar a quase ça de paradigma dos EUA, na página
ser usados. Ou mais gerais, com descri- um estado de loucura – para isso dizem 7 do documento de 1983, há um típico
ções de teorias psicológicas da época e que a privação de sentidos seria a melhor exemplo. Não mais se recomendam as
como as utilizar no interrogatório: como forma, como ficar preso em um tanque técnicas coercitivas e dizem que o que
na parte “Ameaças e medos” (pp. 82-104), de água. se segue, o que era antes recomendado,
em que se explica que a ameaça de co- Entretanto, após décadas de utiliza- agora só está disposto para que os alu-
erção é mais útil para quebrar a resis- ção destes preceitos, com o surgimento nos fiquem conscientes dessas técnicas,
tência do interrogado do que a coerção de provas de infrações aos direitos hu- mas que não a usem. A frase anterior “e o
em si: “a ameaça de coerção usualmen- manos por parte de agentes treinados modo correto de usá-las”, ao falar de mé-
te enfraquece ou destrói a resistência pela CIA, o manual foi reeditado, como todos coercitivos, para “para que você
mais efetivamente que a coerção em si. dissemos, de forma improvisada, nos evite usá-las”. Os mesmos procedimen-
A ameaça de infligir dor, por exemplo, anos 1980. Neste período, ocorre uma tos ocorrem em outras páginas.
pode acionar medos mais devastadores mudança de paradigma e novas estra- Na página 15, temos a substituição de
que a sensação de dor.” tégias militares são implementadas de “técnicas coercitivas sempre requerem
Sobre “Dor” temos a descrição de que forma que os EUA se mantivessem à aprovação anterior do HQS (Headquar-
a resistência à dor será mais bem destru- frente dos serviços auxiliares de inte- ters)” para “técnicas coercitivas cons-
ída se o sujeito impor a dor a si mesmo, ligência dos diferentes países em que tituem uma impropriedade e violam a
ou seja, sem a associação de dor com o in- intervieram, sem perder o controle política interna”. Já na página 17, temos
terrogador. Assim, sugere-se que façam desses países que, graças a esses méto- outra mudança. Neste caso, vemos um
com que o sujeito fique de pé por várias dos, tornaram-se, nas palavras desses tema muito caro aos Estados Unidos de
horas, ou submeta-o a longos períodos m­anuais, “incontroláveis”. então: que o uso de agências “amigas/
auxiliares” podia fazer com que fiquem
“refém” e muitas vezes coautores de cer-
xxxxxxxxxxxxxxx
tos atos praticados por agentes de outros
xxxxxxxxxxxxxxx
xxxxxxxxxxxxxxx países.
xxxxxxxxxxxxxx Os escritores do manual descreviam
xxxxxxxxxxxxxxx
estes agentes como incompetentes em
xxxxxxxxxxxxxxx
xxxxxxxxxxxxxxx sua função devido ao seu “treinamen-
xxxxxxxxxxxxxxx to incompleto”. Assim, em seu tópico
xxxxxxxxxxxxxx
“III. Disadvantages of working with liai-
xxxxxx
son” (“Desvantagens de trabalhar com
agências amigas”), eles falarão sobre o
perigo de ficarem corresponsáveis e/ou
conhecidos por atos de que não deve-
riam tomar parte ou por evitar certos
problemas provenientes desta coope-
ração, como: a falta de treinamento em
questionamentos (resultando em infor-
mações falhas); corrupção; tendência em
reter informações; certas limitações po-
líticas e práticas; falta de segurança para
o sujeito que está sendo interrogado e
para o próprio agente estadunidense; e,
principalmente, uma “dependência do
uso de torturas e técnicas coercitivas”.

Cooperação de inteligência
Este texto parcialmente substituído
por algo mais incisivo caso algumas des-
tas situações ocorressem: se elas ocor-
© REPRODUÇÃO

ressem, dever-se-ia rever a ligação entre


a CIA e o outro país imediatamente no

40 | LEITURAS DA HISTÓRIA
© SELIMAKSAN / ISTOCKPHOTO.COM
“As diferenças entre
fazer perguntas
(interrogatórios) e
aplicar torturas para
obter informações
aparecem definidas
claramente no Manual
da década de 1980”

que se refere à cooperação de inteligên-


cia (“possibility of having to terminate
assistance to liaison question in gif it is
learned that liaison uses torture and co-
ercitive techniques”).
As diferenças entre fazer perguntas
(interrogatórios) e aplicar torturas para
obter informações aparecem definidas
claramente no Manual da década de
1980. Proíbem-se o uso da força, tortura
mental, insulto, ameaça e tratamento
inumano. Afirma-se, também, que o seu de guerra acertados em tratados inter-
uso não é confiável quanto ao resultado nacionais, que proibiam a tortura. Esta BIBLIOGRAFIA
almejado; seria uma técnica pobre e ter- vira uma prática cientificada com este
ALVES, M. H. M. Estado e Oposição no Brasil
minantemente proibida, pois os relatos Manual, como pudemos ver com a frase (1964-1984). 5ª ed., Rio de Janeiro: Petrópolis,
conseguidos mediante a força seriam de um de seus instrutores, Dan Mitrione, 1989.
pouco confiáveis, atrapalhando a inves- e espalha-se como um vírus pela Améri- BORGES, N. A Doutrina de Segurança Nacional e
os governos militares. In:
tigação subsequente. ca Latina. DELGADO, L. A.; FERREIRA, J. O Brasil republicano:
Podemos ver como esses Manuais Com o desvendamento desses casos o tempo da ditadura. vol, 4, São Paulo:
tiveram forte influência na América La- e com a opinião pública estadunidense Civilização Brasileira, 2003.
GILL, L. Escuela de las Américas: entrenamiento
tina e em sua concepção de guerra inter- condenando tais práticas, teremos uma militar, violência política e impunidad em las
na. A tortura foi institucionalizada por inflexão no uso da contrainteligência Américas. Chile: LomEdiciones, 2005.
esses militares, com o apoio financeiro na década de 1980. Mesmo interrogató- MCCOY, A. W. Torture and impunity: the U.S.
doctrine of coercive interrogation. Wisconsin:
de empresários, como no caso brasileiro, rios que não usem a força, mas técnicas TheUniversity of Wisconsin Press, 2012.
treinados nestas escolas militares in- como hipnose e drogas não são mais PADRÓS, E. S. América Latina: Ditaduras,
fluenciadas pela Escola das Américas de recomendadas. Entretanto, um outro Segurança Nacional e Terror de Estado. In:
Revista História & Luta de Classes, nº 4, julho
onde surgiram esses Manuais. problema aparece de forma secundária, de 2007.
mas que é, para nós, o motivo funda-
Vírus disseminado mental desta mudança: a perda de lide-
Fernando Miramontes Forattini é graduado
A concepção de guerra interna in- rança moral e prática dos EUA com o uso
em Filosofia pela Universidade de São Paulo
fluenciou como o Estado ditatorial via dessas técnicas fez com que se buscasse (USP), mestre e doutorando em História pela
seu próprio nacional: um agente infil- a mudança. Infelizmente, após o atenta- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), com especialização na Transparency
trado, subversivo, um inimigo externo do de 11 de setembro de 2001, a ideia de
International School on Integrity.
e, logo, que não estava sujeito às leis e guerra interna, do inimigo disfarçado
regras internas, mas a um código abo- volta à tona, bem como a “legalização” Moisés Carlos Ferreira é mestre e doutorando
pela PUC-SP com foco em conexões repressivas
minável de guerra – que, por sinal, con- dessas práticas, como vimos em Abu
entre Brasil e Argentina em suas ditaduras e
trariava até mesmo os códigos morais Ghrabi e Guantánamo. guerras de baixa intensidade.

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