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CONTOS DO AMOR E DA MORTE

Com a noite na alma

O sol derrama-se pelas montanhas, sobre os cumes brancos, imponentes. Reflete-se


no lago que devolve o céu limpo da primavera. Um sábado esplendoroso. Ao se instalar a
manhã, havia no ar algo de sublime, mas a cidadezinha mineira jamais vivera um momento
tão escuro, sem nenhum aroma de vida, sem qualquer vestígio de paz. A indignação
gangrenava as almas de todos os vizinhos da pequena Diana, aquele anjo de candura.
O casal chorava em desespero a filhinha brutalmente assassinada. A mulher não se
conformava, em pranto convulso. Seu marido consolava-a embora ele mesmo não
conseguisse se conformar. Ninguém conseguia. Quem poderia ter sido capaz de tamanha
crueldade? A mãe decide que a menina está melhor do que se sobrevivesse ao crime.

Os mineiros levavam uma vida mais difícil. As jazidas a céu aberto se esgotavam,
exigindo mais técnica e capital e após tantos sacrifícios estão sujeitos à exploração. Não
porém os habitantes daquela cidadezinha. Estão satisfeitos com seu intermediário entre as
pedras e o dinheiro, agora que os tempos das transações em pó de ouro haviam acabado.
Aquele casal tem ainda mais motivos de gratidão.
O marido voltava de um dia exaustivo sob o sol causticante no curso d água que,
vindo da montanha, ia desembocar no rio que atravessará a capital. Quando o mineiro entrou
em casa, o outro esperava, servido de um café. Olá, cumprimentou o velho efusivamente,
deixando a xícara sobre a mesa rústica. Olá, senhor. Você está cada vez mais vermelho.
Parece um tomate, riu o velho. O sol está quente demais. O mineiro preferia as galerias.
O velho fala em tom solene. Parece principiar um assunto grave. O homem vê a
esposa sorrindo. Ela responde o olhar com outro, de alegria. O comerciante continua. Sua
mulher estava me contando das dificuldades que a filha de vocês está encontrando na
escola. É natural que uma menina como ela, tão viva e inteligente, não se adapte a um
ensino assim rudimentar. Pela janela, o pai vê a menina brincando com o cãozinho. Se
enternece. Continuava a ouvir a voz do velho. Não estou dizendo que Tonya é má professora.
Pelo contrário. Vira Tonya crescer, é vizinho dos pais dela. Sempre admirou a dedicação da
adolescente ao estudo e depois, quando se tornou uma moça, seu desejo de ir para uma
cidade pequena, ensinar os filhos das pessoas carentes. Pára e pensa que, se fosse filha dele,
não permitiria. Uma moça assim encantadora em meio a homens tão rudes. Tinha qualquer
coisa de sua própria mulher, uma liberdade que, ele tem certeza, acabará lhe trazendo
problemas. Liberdade é uma arma perigosa de ser manejada, não é para qualquer um e as
mulheres são delicadas demais. Vê a face erguida de Tonya desdenhando desse discurso. Foi
conhecer as instalações da escola da cidadezinha.
Nesse ponto, o mineiro não pode evitar o comentário amargo. Os mineiros não
deveriam ser gente carente. Os que vivem às nossas custas sempre fazem fortuna. A mulher
ergueu na voz em reprovação. Ele quer apenas ajudar, amor. Deixe, Sarah, disse o velho. Ele
tem razão. – O senhor tem sido generoso, mas não podemos tratar sempre com um único
homem. Nem o senhor pode negociar com todos os mineiros da região.
O velho concorda e aproveita a oportunidade para expor seu desejo. É verdade. Por
isso tento fazer o que posso por amigos como você. E no caso creio que posso fazer isso por
vocês e pela menina. Mas do que exatamente está Simon falando? Gostaria de oferecer
estudos para ela na capital.
Senhor, vivemos aqui no flanco da montanha, entre o topo do mundo e o fundo do
vale, disse o pai. O comerciante fazia esse percurso uma vez por semana, sabe das
dificuldades que a mãe teria para levar Diana todos os dias, conhecia todos os perigos. Sim,
sabe. Ainda mais porque os índios estão em pé de guerra por termos dado fim às fontes de
subsistência deles. Se ficar para jantar conosco, verá que aqui temos apenas feijão e carne
de porco. Aceito, disse o velho subitamente. Porque já estava ficando mesmo com fome e
porque estava decidido a ajudar aquela menininha tão linda que lembrava tanto sua netinha,
morta num ataque dos índios.

Três homens cavalgam pelas ondulações da campina na direção das montanhas de


pedra, com expressões malévolas nos rostos sombreados pelas largas abas de cada chapéu.
Nada falam entre si. Dispostos a cada detalhe das coisas que lhes estavam planejadas para
as horas seguintes. Suas montarias, corcéis crioulos se agigantando velozes contra o
horizonte próximo as pedras, marretam às ondulações da ravina, pisoteando as plantas
agrestes em assustador tropel. Na cintura pendem revolveres de médio calibre com
incrustações de ouro nas coronhas; nas bandoleiras das selas encaixavam-se rifles de alta
precisão. Sofreiam os cavalos diante da garganta. Os animais rumam agora na direção
indicada no apertado caminho entre os montes pétreos e ermos. Muito ao longe se ouve o
rumorejar de correntes. Sobem um pouco pelo desfiladeiro transformado num forno pelo sol
que insistira sobre as pedras durante todo o dia. Diante deles desvenda-se então a superfície

Ricardo de Almeida Rocha


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em que a cidadezinha foi construída e em seguida a própria cidade, com sua rua central
fervilhante de pessoas entre carroças com utensílios, veículos maiores, com molas, puxados
por parelhas de mulas, e ainda alguns outros com mantimentos sob lonas e juntas de bois.
Entram lentamente na cidade. Observam e são observados. Passam pelo salão onde
a avenida central começa. Na porta estão postados comerciantes e garimpeiros conversando
sobre tudo, sobre nada de importante. Um deles puxa a corda que corre pela roldana. O
prédio é de estuque e o vidro na fachada quase inteira devolve o movimento da rua e os
próprios Bernes, Born e Bumbe, que se inclinam no sentido um do outro e cochicharam entre
si. Apertam levemente o trote.
Algumas das casas de madeira, assentadas diretamente no chão, de dois andares,
têm passadiças e umas poucas mantém a cobertura de pele de antílope à janela. É um dos
luxos na casa de Maggie: assim os quartos mantinham um adequado toque noturno mesmo
ao meio-dia. Em frente a esses aposentos, um lampião do lado de fora das portas ilumina
um número. Os tetos são baixos e a iluminação tênue. Durante todo o dia, está acesa a
chama de lamparinas e lustres de castiçais com velas vermelhas. As garotas de Maggie
tinham todas a tez muito pálida e olheiras, correspondendo aos motivos fantasmagóricos da
decoração de suas alcovas. Durante o dia inteiro também sobe de todas as frestas da casa a
fumaça e o cheiro de ópio. No centro dos quartos, razão de tudo, as camas de madeira
escura vinda do Norte. A moldura dos grandes espelhos é dourada, as colchas e cortinas de
cetim, os tapetes de veludo, as roupas íntimas de seda – tudo o que se podia oferecer de
melhor a homens que, tendo descoberto ouro, adentravam a região dos ricos, dos que
pagam pelo melhor que a vida tem a dar.
Embaixo, eis um salão de espera digno da capital. Ao canto, tocado por um negro,
um piano do qual sempre sai a música triste dos noturnos de Chopin. Cobertura de pano
verde nas mesas de mármore. Atrás do balcão o barman passará o dia entre servir os
fregueses e enxugar os copos recortado na estante espelhada onde sobressaem as bebidas
mais finas, mas a mais consumida é o velho uísque de milho. Assim que se passa pela porta
de entrada, a mesa de bilhar ao lado da qual aquele a quem Maggie chama “mon Chasseur”
permanece todo o tempo em estado de alerta.
É de tardinha quando os três passam por ele. Estão indo na direção da mulher, que
faz contas numa mesa mais ao canto. Uma de suas faces brilha fracamente pela luz do
lampião na parede.

A habitação do jovem casal se destaca entre as casas não por qualquer razão além
do carinho com que a esposa se dedica aos serviços do lar. Não fosse isso, seria como várias
outras casas erguidas em mutirão pelos mineiros com família quando decidiram se
estabelecer ali. É casa simples, feita com pedaços de terra endurecida, à maneira dos índios.
Divide-se em três peças, separadas por cobertores. A cozinha faz também o papel de sala.
Algumas prateleiras suspensas guardam os alimentos. O feijão ocupa um espaço maior, os
vendedores garantiram ser chileno. A carne. Pães e broas. O melaço substitui o açúcar e traz
as moscas. Muitas delas haviam se apaixonado pelo nariz do velho. Bichinhos malditos! –
exclamou ele rindo. Seus dois guarda-costas riram também. Estavam quase no fim da
refeição e nada do velho voltar ao assunto. É claro que o pai queria o melhor para a filha.
Não hesitará em dar a própria vida pelo bem dela. Arrepende-se agora de não ter permitido
que o velho dissesse logo o que tinha a dizer. Sara mal mastigava a carne. Uma delícia! –
deleitava-se o velho, lambendo os beiços e passando o guardanapo na boca. O pai não
resistiu mais. E quanto a Diana, senhor Simon? Com seu prato já limpo, Simon disse estar
pensando se ele não ia mais perguntar. A jovem esposa também externou seu ansioso
coração materno. O que o senhor tem em mente para nossa filha?
A menina come num banquinho com o prato sobre o colo. Também ela está excitada,
desde que ouviu seu nome à mesa, sem saber o que aquele velho de rosto bondoso
representará em sua pequena vida.
Bem...
Enfim, o comerciante volta ao assunto que ali o levara. Como já tinha dito, não seria
louco de pensar que a mãe poderia levar a menina à capital diariamente. Embora pudesse
arranjar emprego para o pai lá, sabe que a terra aqui ainda traz muita riqueza oculta. As
jazidas a céu aberto estão se esgotando, diz o mineiro num pedido de socorro. Vocês
poderão com sucesso desviar o riacho e escavarem o leito. Também existem outras
possibilidades, como os flumes para fazer o ouro descer pelas colinas. Quero que você seja
meu homem de confiança nessas empreitadas. O velho faz uma pausa como a esperar nova
interrupção do pai, cuja paciência acabava quando acabava o dia de trabalho. A interrupção
não vem. O velho sorri e continua. Vocês poderão ainda abrir poços e galerias. Podem contar
comigo. Vocês ganhando, eu ganho também.
Então, se a menina não poderia ir e vir todos os dias e se não convém que a família
vá para a capital, como ela poderá estudar lá? Ela pode ficar na minha casa nos dias de aula,

Ricardo de Almeida Rocha


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disse Simon, e nas sextas eu a traria para passar o final de semana com vocês. Será por um
tempo pequeno, pois é transitório o negócio da mineração. Mas o benefício dela será para
toda a vida. Na casa dele? E por que o senhor faria isso por ela?, perguntou o pai
subitamente desconfiado. Mas a esposa o repreendeu novamente. Cale a boca, homem! Será
que você não consegue ficar quieto e esperar as pessoas falarem? O velho entende o pai e
diz que a preocupação dele é natural. Olhe, disse o velho, olhando nos olhos do mineiro, eu
perdi minha neta quando ela estava com a idade de Diana. Pode ser que seja egoísmo de
minha parte tentar transferir o amor que eu tinha por ela e para tanto afastando uma outra
menina um tempo, ainda que pequeno, de seus pais. Mas não me restam muitos anos de
vida, e para vocês sim, e ela tem a vida inteira. Além do mais, não ficará na verdade
afastada de vocês. Muita gente vai à capital só para se divertir, jogar, beber e... –
interrompeu-se e constrangido corrigiu o restante da frase – estar no bar mais famoso da
região... Vocês teriam uma razão muito justa para fazerem o mesmo percurso, durante a
semana também se quiserem, para ver a menina. O caminho não é mais perigoso do que a
cidade em que vivem.
Estupefato. Assim está o pai. Fora uma quinta-feira de trabalho árduo. Estava pronto
para chegar em casa, jantar, fazer amor e dormir – apenas uma noite como as outras. E
agora, nem bem anoitece, aquele furacão de pensamentos, projetos e possibilidades, para
ele, a exploração do ouro e principalmente para sua família. É demais para um sujeito tão
nervoso como ele. Minha mulher, continuou o velho, deixará um dos quartos de nossa casa
sempre pronto para vocês pernoitarem. Na capital, Diana saberá mais que ler e escrever, e
fazer contas. Os professores lá usam textos que transmitem, além do aprendizado do idioma,
uma visão humana do mundo, e da nossa própria região, diz Simon, pensando em McGuffey
e Mark Twain. Diana terá uma escola com Biblioteca, Grêmio, conferências, onde será
recebida sem discriminação. E depois a universidade. O que você diz?
O pai respirou fundo, completamente convencido.

Quando os passos dos três homens se fazem ouvir no interior da casa de Maggie,os
que jogavam pôquer voltam-se e vêem os vultos no miasma que paira no ar viciado, a dúbia
face de homens jovens bem apessoados carregando na fronte o signo do Mal. O vento sopra
e abre e fecha, batendo, uma janela no final do corredor lá em cima. Três moças que
olhavam do alto das escadas tentam se recolher, temendo que escolhessem uma delas. A
maioria das meninas de Maggie sente-se à vontade naquele antro. Sabem-se marginais,
abandonadas, residentes no inferno, mas têm também consciência de que são livres, livres
como por exemplo a mulher do banqueiro jamais poderia ser. São mães solteiras que ali
encontram um lar que a sociedade lhes negou, mulheres que ali atrairiam os mais gentis
homens da cidade, que de outra forma só poderiam ter caso se casassem com eles, o que
mudariam naturalmente a questão da liberdade, dentre outras.
– Você é a Maggie?, perguntou um dos homens. – Para bem servi-los, disse a mulher.
– Queremos três quartos e uma de suas garotas nos esperando em cada um com uma
garrafa de absinto à cabeceira. – E vocês tem alguma preferência? Tenho brancas, amarelas,
vermelhas, negras... – Eu tenho apenas uma preferência, disse o mais jovem dos três. Seu
hálito recendia a álcool digerido. – Que a minha seja bonita.
Tão assustadora é a aparência do Mal no rosto dele que mesmo a calejada Maggie se
furtou de fazer algum comentário espirituoso sobre a beleza de todas as suas meninas.
Agora os três estão subindo as escadas, guiados pela cafetã. Passam pelo quarto de Aglaé e
a porta é aberta. Diante do 7, Ben é deixado. Maggie pára com o ultimo diante da porta de
Priscila, de cuja aparência ele não poderá reclamar, pois é a mais pura encarnação da beleza.
Seus olhos, evoca Maggie, são lagos de luz; seus cabelos, muito lisos e loiros, são raios de sol
que lhe descem pela cabeça; seu sorriso mostra dentes de brancura incomum, e em nenhum
lugar há falha. Seus lábios fechados parecem o desenho de uma carinha de gato feita por
uma criança e o colorido de magnífica intensidade; suas faces, maças róseas a que se deseja
morder mesmo sem fome.Seu colo como as planícies vistas das montanhas, de onde subiam
as colinas gêmeas. Nenhum homem poderia deixar de regozijar com a visão delas e descer
ao vale, privilégio de poucos. Nunca Maggie iria entender por que acreditou que aquele rapaz
deveria ser um desses. Agora estava feito.
No interior do aposento, Priscila vira e depara com os olhos flamejantes que a
devoram. Faz meia hora que jantou, uma substanciosa sopa de feijão, ervilha e batata. Está
sonolenta e mole, sente-se gostosamente adormecer quando a porta abre. Pensara em
recolher-se um pouco antes de se preparar para o final do dia de trabalho dos mineiros,
quando o seu começaria. Sentindo um desejo insensato e doloroso de possuir aquele anjo, o
rapaz avança a passos lentos mas determinados. A moça, por repugnância ou medo, não
esboça reação. Está simplesmente paralisada. Jamais vira olhar tão horroroso nem em seus
constantes pesadelos.É bem verdade que os olhos do delegado possuíam brilho semelhante,
mas aqui esse tom de pavor está em forma mais – se é possível dizer isso – inocente. Não,

Ricardo de Almeida Rocha


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não será possível dizê-lo. E o delegado, apesar disso, é muito gentil. E gentilezas são algo
que definitivamente o rapaz à frente dela não está disposto a se dar. Mas Priscila com alívio
percebe que se enganou.
Está vestida com um chambre aberto até os joelhos. Tem nas mãos e presas junto
aos seios no corpete de abotoamento frontal flores do campo que um cliente da noite
anterior trouxera. Segura o buquê, afagando a corola das sépalas, ao ajeita-lo num vaso no
toucador. Ah, um pouco de beleza basta para suportar a tristeza. Ninguém deixa de passar o
que precisa passar nesta vida. E teria amigos tão verdadeiros se fosse uma mulher
respeitável? Olhe essa pétala... que sensível ele foi ao se lembrar dela. Quanto às crianças
correndo pela casa, bem, não se pode ter tudo, pensa, olhando o pente de estimação de
empunhadura finamente ornamentada. Destaca-se o entalhe. PW.
Não vá deixar cair uma flor tão linda como essa e pisa-la, diz o rapaz; e afunda um
pouco mais a haste na seda. Veja, a antera sujou sua pele de amarelo. Uma cor inadequada
para tamanha beleza... Deixe-me limpar... assim... Levou os dedos dos seios à boca. Que
delícia. Que garota. Mas não zombará dele. Esse tipo de sensação desde sempre o perseguiu,
como um murmúrio de janelas ao vento em noite de tempestade. Mas agora está livre.
Acalmarei esse incômodo. Olhando as flores, olha todas as aves perversas dos céus sombrios
sobre ele, revoando e descendo. Chupa as pontas dos dedos. Hun... Não sabia que pólen
pode ser assim tão gostoso...
Priscila sorriu um triste sorriso meigo que desencadeou a crise. Subitamente ele
cortou a mecha que lhe caía na testa. Seus cabelos são lindos... De uma cor inacreditável,
parece que têm brilho próprio. Ela conseguiu balbuciar. Você é louco... E olhava seus cabelos
no chão como se pudesse reavê-los só de olhar, como se traz alguém de novo para perto
através da saudade. Louco? Você ainda não viu nada, diz o rapaz. Entra na abertura do
vestido, erguendo-o com o antebraço até a altura do pequeno monte sagrado, enche as
mãos com a parte posterior da coxa esquerda, aperta-a até cravar as unhas.
As lagrimas começando a escorrer pelo seu rosto, a moça apenas consegue
balbuciar. Por quê? Ela até pensa em detê-lo de alguma forma mas a faca na mão direita do
rapaz, devolvendo todas as sombrias luzes do quarto, cala qualquer reação. As unhas se
cravam mais, nascem cinco filetes, ela cerra os olhos, grita, ele traz a mão para fora da
roupa da moça, rasgando a perna por onde sai, e, onde o grito se prolonga, o braço ganha
impulso para cima, descendo num tapa que estala e a joga na cama. Por quê? É tudo o que
consegue dizer. Por quê? – repete, o corpo inteiro chorando.
Por quê? Bernie leva à boca a garrafa de absinto. Sua voz ecoa a de Priscila. Por quê?
– disse, arrastando as palavras. Ora, porque você é muito feia!...
Lá fora, o sol se esconde. Um tom róseo magnífico na paisagem crepuscular. O rapaz
larga a garrafa. Mantendo sempre a faca na mão direita, busca um prazer além de toda
possibilidade. Puxa Priscila da cama pelos cabelos, traz o rosto até encostar em seu ombro. O
corpo dela em arco ajoelhado sobre a cama em arco, estremece aos soluços. Ele usa a faca
para cada um dos botões. Corta os laços nas ilhoses do corpete A espinha da moça está
perigosamente torcida. As alças cortadas, nada há entre os corpos exceto a roupa do próprio
Bernie. Ele larga os cabelos e a mantém contra o peito com o braço, troca a faca de mão, tira
o chapéu, desafivela o cinto, abre a calça e a possui com bestialidade, ainda que com alguma
dificuldade inicial, o que ela não pode deixar de notar. Meu Deus, e o que isso importa?
Antes de ser expulso do corpo dela, passa de novo a faca para a mão direita e faz
com que a lâmina rasgue diagonalmente aquele peito angelical, do ombro ao quadril, apenas
o suficiente para muito sangue e uma futura cicatriz, sem risco de vida. Subjugada,
desesperada duma dor dilacerante, as lágrimas dela misturam-se a seu sangue num mesmo
líquido, tão amargo quando sua cabeça pende. Bernie agora arranca a vela do castiçal e a
inclina para que a cera caia no rasgo já em fogo. O grito é ouvido em todo o prédio e
vizinhança. Tarde demais, a porta é arrombada pelo chasseur.

No seu primeiro dia na casa do tio na capital, Diana conversa com a governanta, que
lhe protege os ombros, jogando uma capa. Quando os dias são muito quentes e esfria à
noite, como hoje, é grande o perigo de se resfriar. Estou bem, senhora Dalia, diz a menina,
inquieta, louca para sair e brincar com suas novas amiguinhas. Na frente da casa as crianças
inventavam jogos, nem percebem o vulto melancólico que passa do outro lado da rua. Riem
e soltam gritinhos. Diana destaca-se de suas companheiras como se de seus cabelos
encaracolados emanasse luz própria ao refletirem a iluminação da rua. Não podia imaginar
que um incidente dramático no bordel da cidade de seus pais estivesse naquele momento
decidindo sua sorte. Na verdade, nem imagina o que é um bordel. Mas bem que num dado
momento teve uma sensação esquisita a que não saberia tampouco chamar telepática,
quando Priscila foi cortada. As duas eram amigas, e todas as manhãs brincavam muito, com
a condescendência misericordiosa de seus pais, quando a jovem da casa de Maggie acordava

Ricardo de Almeida Rocha


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cedo o suficiente. O casal tinha muita pena de Priscila. Olhem, disse subitamente uma das
meninas, apontando o vulto com uma expressão de medo.
O homem perambula pelas ruas da capital, solitário. Está cansado. As cidades pela
madrugada são todas iguais, todas mortas, era como se percorresse as ruas das cidades-
fantasma, como ele próprio se sente um espectro. Passou pelas meninas do outro lado da
rua, brincando e alegrando-se, como, pensa, só às crianças é possível. Chegara na
primavera. Numa primavera conheceu no delta sua esposa num vapor. Numa primavera ela
tombou morta quando um trapaceiro apontara sua arma para ele por um motivo idiota
qualquer, como só os motivos de briga por causa de jogo, mulher e patriotismo podem ser,
disparou, entrando Camile no caminho da bala. Depois daquilo, ele andou vagueando pelas
estradas de ferro, gastando o lucro do pôquer como se ao dilapidar o dinheiro seu remorso
pela morte dela se esgotasse também. Se eu morrer antes de você, dissera ela um dia
depois do amor, quero que me prometa que será feliz de novo, que procurará outra mulher
para me fazer como hoje me faz feliz. Agora, isso não parece uma coisa possível.
Onde a ferrovia passava pelo vale de São Pedro, com seu dinheiro acabando, arriscou
sua vida numa terra de índios, pedindo que uma fecha cessasse seu suplicio. Misturou-se aos
estrangeiros de toda parte que perseguiam o ouro. Quando a prosperidade da prata deu
lugar à decadência e aquela se juntou às cidades-fantasma, ele partiu, voltou à terra natal,
subiu um árduo caminho, fez loucas baldeações tempestuosas e, sabe Deus como, chegou
vivo à capital.

Um galope furioso traz o delegado em poucos minutos à casa de Maggie. Alguma


coisa estranha na maneira como gesticulava ansioso. Abre caminho por entre o aglomerado.
Uma pedra luz à sua passagem. Há espírito de linchamento, Priscila era como um amuleto,
sagrada na comunidade, admirada pelos homens de bem. Onde encontrarão agora alguém
como ela? Mulher sublime, como chega àquele ponto?
– Calma pessoal! O delegado entrou a plenos pulmões. – Calma!
– Estaremos calmos quando esse canalha estiver morto e seu corpo entregue aos
abutres.
Blake aproximou-se e parou diante dos mineiros que jogavam cartas quando os três
subiram com as garotas. – O que temos aqui? uma execução do Comitê de Vigilância?
– Temos aqui grandessíssimo canalha que vai pagar pelo que fez.
– Então nada resta para o xerife fazer, certo?
– Desculpe, xerife, mas é exatamente isso; nesse caso, não há mesmo nada que o
senhor possa fazer.
– Hun... – murmurou Blake entredentes – Você está faltando com a verdade.
O homem não tem tempo de perceber o punho do xerife em sua direção. Ai! Ainda
ouvia a voz do xerife. Ai! Era ele quem segurava o agressor de Priscila do lado direito. Ai!
Pelos cabelos a cabeça levada à bota. O homem quer respirar. O outro. Segura Bernie do
outro lado. Terá a mesma sorte, está claro, exceto se erguer as duas mãos para o alto, numa
silenciosa súplica. É o que faz. O rapaz, solto, bambeia. O delegado o segura pelo colarinho e
evita a queda. Muito bem, alguém ainda faz questão de continuar o espancamento? O
sangue pinga no assoalho.
– Muito bem, rapazes; vou levá-lo então se vocês abrirem caminho. Que eles
ficassem felizes do xerife não levar em conta a travessura e continuar no cargo. Alguém
protesta baixinho no meio das pessoas. Foi muita covardia com a moça. – Ah, foi? E quando
os salteadores que rondam a região covardemente invadirem suas casas quando vocês
estiverem trabalhando e pensarem em fazer isso com as mulheres de vocês, não é bom
lembrar que a cidade tem um xerife que a protege de qualquer covardia contra pessoas de
bem? Maggie tem ímpetos de gritar o quanto Priscila era uma pessoa de bem, mas se cala.
Um silêncio respeitoso ou temeroso também descera sobre os homens. Blake diante deles.
Impõe sim a ordem e traz a segurança. Melhor, como ele está dizendo, fazerem as coisas do
jeito dele, dentro da lei. – Ótimo, rapazes. Abram caminho.

O delegado grita com um Bernie que mal o pode ouvir. Imbecil! Se o xerife pudesse
perdoá-lo, é que bebera demais. Uma voz dura, implacável, diz que desde quando precisa ele
de bebida para fazer idiotices? O rapaz sabe que é um covarde, na verdade é homem sem
qualquer estirpe. O delegado entra na cela onde o prendera e assegura que se houver uma
outra vez, permitirá o que acabem o linchamento. Não haverá uma outra vez. Blake espera
que não. Agora vá.
A cidade dorme.
Entre K* e W*, Bernie se encontra com os demais. Ali o bando assaltará o trem.

Ricardo de Almeida Rocha


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Quando chegou pela manhã, não vendo o prisioneiro, o auxiliar perguntou por ele ao
delegado.
Entregara-o, respondeu, a uns federais que por ali passaram de madrugada. Era um
homem procurado. O auxiliar responde que ainda bem, prefiro essas celas assim vazias e
não olha para Blake enquanto ele diz que precisa ir à capital tratar de uns negócios pessoais.
Tudo bem, xerife.

Ian Blake pensa na mulher, em Priscila, na estrada para a capital, para onde de fato
foi. Lembra-se do quanto foi feliz naquela noite. Imagina-a com o rosto cortado, mas é uma
lembrança que não dura. Num canto sombrio da cidade espera os homens e o produto do
assalto.
O homem gostava de se perder a pé pelas cidades por onde passava. A noite de
casas remotas entre as quais uma névoa de luz se esgueira, amarronzada, com a fumaça das
chaminés já sem força misturando-se às nuvens, respira dentro dele numa gélida saudade
que perde o rosto ao se defrontar com as janelas reais. O som dos cascos tira-o de si.
Instintivamente se esconde atrás da árvore. Não é uma visão nada bonita a que tem dali,
apesar do poente desdenhar da hora e ainda conceder tons róseos ao céu.
Alguma coisa estava sendo quebrada ali no meio daqueles homens, uma suposta
harmonia. Rilker apenas respirava. Então, tudo bem? – diz o delegado. Dizem-lhe que sim,
tudo bem, e aqui está o dinheiro de sua parte. São sombras, na verdade. Manchas na noite. E
seu irmão foi de alguma utilidade? – a pergunta do delegado é para o irmão dele, embora
esteja encarando o próprio Bernie. Ele é muito bom no serviço, garante o irmão e pede que
Blake não o leve a mal, são coisas da idade. Vêm à cabeça do delegado coisas de seu
passado, de seus vinte anos. Não era assim idiota mas reconhece que tampouco possuía a
fibra com que hoje leva a vida. Então realmente releva. Ok – diz ao irmão. Mas dê uns
conselhos a ele.
Mario, o terceiro, pergunta quando irão de novo se encontrar. Blake responde que
parece terão uma diligencia especial carregando pessoas importantes, bens e muito dinheiro.
Vou ver os detalhes com o pessoal da companhia. Mario discreta mas firmemente argumenta
que não gosta de tanta gente repartindo o dinheiro. O delegado, quase educadamente, diz-
lhe que não reclame, é graças a essas pessoas que podemos trabalhar em segurança, sem
surpresas. O bandido assente a contragosto.
O delegado coloca as partes do alforje pendentes na sela e calca as esporas,
afastando-se. Rilker está entrelaçado pelos pensamentos. Jurara a si mesmo não mais se
envolver nos negócios escusos dos homens, nem para lutar contra eles. É uma sina ingrata.
Bom é viver em paz, em silêncio, com a própria tristeza. Que imenso céu, que noite perfeita,
que relevo... Melhor ir embora. A raça humana já está sentenciada.

Ela não mais parece sofrer. É sempre maior a dor das crianças. Mas acabou agora. Ao
contrário, está se sentindo maravilhosamente bem. Era só um pesadelo. Viverá, será de novo
feliz. Antes dormirá um pouco, para descansar e refazer a energia e a beleza roubadas.

Ao quarto que lhe fora concedido pela bondade do “tio”, a menina emprestara uma
atmosfera de sonho, as melhores coisas de sua curta vida aconteciam ali, em sua fantasia.
De sua janela, estendiam-se as cordilheiras e os picos rochosos, a mão de Deus pintou-os
duma tinta branca irremovível. O aposento estava ornado com brinquedos e bonecas e os
olhos da menina se alegravam com a visão dos motivos infantis à sua volta.
O velho perguntou se ela já estava dormindo. Já está deitada – respondeu a mulher.
Embora estivesse deitada havia algum tempo, Diana não dormia, excitada com as novidades,
desde a conversa do velho com seus pais. E a viagem, a paisagem montanhosa, a chegada, a
senhora Wood, a senhora Dalia, suas novas amiguinhas, sobretudo Jane, irmã da professora
Tonya.
A penumbra tranqüilizadora. Transmite uma paz jamais sentida. Exceto pela incisão
de dor e a imagem de Priscila chorando. Mas passou e agora, em sua sonolência excitada, na
divisa entre dois mundos, a respiração ficou forte e pausada. O amanhecer traria uma vida
inteiramente nova.
Na casa vizinha, destinada aos empregados da família, Daniel perguntou ao outro
segurança: Então acha que está realmente apaixonado, meu amigo? Quem diria. E logo por
quem... A vida é assim. É difícil imaginar tanta coisa que acontece. Aliás, perguntou Miguel,
você esteve hoje com Tonya?
– Menininha linda essa, não é? – Um anjo.

O homem chegou à cidadezinha mineira no início da tarde. Não queria mesmo se


intrometer em negócios alheios. Se aqueles homens assaltavam trens, não era problema
dele. A porta rangeu à sua entrada. Ele avistou a mulher num canto. Maggie ainda muito
abatida não teve vontade de sorrir. Lembrava de quando Priscila chegara à cidade, em

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extrema miséria. Tão meiga e inocente. Ninguém ali era bom o bastante para se deitar com
ela, mas pelo menos ali teria um teto, alimento, proteção. Uma fugitiva não tem muitas
opções. Não gostava nem de imaginar se alguém da cidade dela aparecesse e quisesse
tomar as dores do pai morto, o infame, ninguém ia querer saber o que ele tinha feito à filha,
iam querer apenas dar a ela o tratamento que uma assassina merece. Ali era região ideal
para se refugiar das leis mas o que tinha a oferecer a uma moça tão linda e sozinha. Então,
que ela ficasse, até o dia em que um cliente a tirasse dali para ser sua esposa. Maggie tinha
essa esperança para aquela a quem queria como filha. Senhora? Um freguês de aparência
respeitável como aquele homem à sua frente. Maggie diz que não sabe se entre suas
meninas existe alguma que seja capaz de atenuar tanta tristeza.
Qualquer uma, não é para atenuar a tristeza, é só uma questão física.
Essa.
Priscila descia.
A mulher olhou nos olhos macios do rapaz e depois olhou para a jovem. Venha aqui,
querida.
A moça acordou e agarrou a Rilker com fervor e ele inflamou-se ao delírio. Assim
entregaram-se um ao outro novamente.

Quando desceu as escadas, o forasteiro teve a surpresa. O homem que tratava com
os assaltantes na capital está agora à sua frente, sentado ao lado de Maggie. Ela o chamou
para a mesa. Acho que já o conheço – disse Rilker, sem emoção na voz. Os olhares se
cruzaram, aço contra aço. Conhece? – retrucou Blake. E de onde seria? Esse sorriso é falso.
– Vi você hoje na capital.
– Deve ter visto mesmo – disse Maggie. –Ele esteve lá de manhã tratando de uns
negócios.
– Claro... Todos temos nossos negócios – disse o rapaz. Despediu-se e saiu.
O delegado concluiu que havia uma testemunha na cidade. Rilker entretanto,
enlevado por Priscila, nada queria saber da vida dos outros. Ia pela rua assim, falando
sozinho, tão distraído que não viu a moça vindo na sua direção. O esbarrão foi inevitável. Os
cadernos e livros da professora caíram. Me desculpe – disse o rapaz, se apressando em
recolher o material caído. Ela também vinha distraída. Pensava que futuro poderia ter
naquela cidadezinha. Não que estivesse arrependida de sua opção. Mas sentia-se dividida.
Adorava ensinar mas adoraria também uma casa para voltar, onde não a esperasse tão
somente a boa vontade dos pais de Diana, que a acolhiam durante a semana. Mas numa
hora como aquela desejaria estar voltando para sua própria casa, onde logo chegaria
também um mineiro bondoso que a amasse. Um homem, másculo e generoso, quem sabe,
sem barba mas de pele áspera, olhos verdes, os cabelos subindo ligeiramente pelas orelhas,
o chapéu nem enfiado nem muito frouxo, um blusão com peles na gola, jeans não muito
largos, botas gastas que ela tiraria quando ele chegasse – ele com o pé trocado pressionando
suas nádegas, cansado da lida. Um homem como aquele... Aqui está – disse ele, entregando
os livros. Obrigado – disse Tonya.
– Eu estava longe daqui – justificou-se ele.
Ela também não.
– Você está de passagem?
– Pretendo ficar. Conforme seja minha conversa com o senhor Snyder.
– Snyder Green? Eu moro na casa dele.
Seguiram juntos.
O marido de Sarah devia estar chegando. Poderiam conversar enquanto jantavam.
Sente-se por favor, disse a mulher, fitando Tonya com um sorriso eloqüente quando o rapaz
não estava olhando.

Na mesma tarde na capital, a cobertura da taverna estava reservada para a


apresentação de um grupo teatral. O senhor Wood disse à senhora Dalia que aprontasse
Diana. Ele ia à casa da moeda e logo voltaria para apanhar a esposa, a governanta e a
menina, a fim de assistirem uma montagem de Romeu e Julieta.
A pequena estava radiante. Seu coração palpitava. Sua imaginação trabalhava
febrilmente. A governanta também estava excitada. Adorava ver as roupas das peças,
pareciam saídas de um sonho. Na noite anterior, a menina sonhara com uma fada muito
linda, que era muito alegre, mas as pessoas achavam ela triste, porque não a conheciam
direito. Ninguém conhece ninguém direito. A menina gostaria que seus pais estivessem ali
para irem ao teatro também, mas eles não deveriam chegar nem mesmo depois, com Tonya,
conforme o combinado. Sim, Rilker pode fazer esse favor, pode acompanhar a professora. É
uma reunião muito importante para os mineiros, justificou novamente Snyder. Meia hora
depois, Rilker e Tonya montavam. Alguém os espreitava.

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As ruas da capital são muito iluminadas. Havia entre os prédios um espaço planejado
para que do centro se pudesse ter uma visão privilegiada das montanhas. Num bistrô,
Daniel, um dos seguranças do senhor Wood, bebia sozinho. Ele era um homem sozinho. Não
conseguia tirar Tonya da cabeça nem se declarar. Sua timidez o incomodava mas não
conseguia lutar contra ela. Começara a pensar na professora com intensidade tamanha que
o fazia suar. Não parecia fazer tanto calor, pelas roupas das pessoas que passavam. Sentia o
sangue fugir do rosto, pensando em Tonya, muitas vezes Miguel dizia que ele estava muito
pálido. Gostava tanto da professora que, por ela, perdia o apetite.
– Olá, garoto – disse o amigo, sentando-se a seu lado. – Nem precisa dizer no que
está pensando.
Diante do prédio, carroças esperavam as famílias que tinham ido ver o espetáculo.
“Que beleza”, pensava Diana. A alegria daqueles momentos estaria ligada para
sempre ao futuro da menina, se ela tivesse um futuro.

Na casa vizinha à do senhor Wood, a professora trazia na expressão a angústia do


desapontamento. – Não foi um rapazinho que lhe falou a respeito de Snyder? – Não, foi uma
moça da casa de Maggie. – Porque mentiu para mim? – Não sei bem – respondeu Rilker
constrangido – Fiquei um pouco sem jeito de falar – Compreendo –disse Tonya, expressando
a mágoa que não tinha origem no fato de que ele mentira. Tocando seu rosto, ela lhe
acariciou a testa larga –Você é tão bonito...
– A moça com quem estive... Não posso esquece-la.
– Você a ama? Esteve com ela apenas alguns momentos...
O que é o tempo? – Sim, Tonya, amo. De um modo que não pensei que fosse tornar a
amar.

Quando, diante da porta, o velho ia girar a maçaneta, uma voz feminina o chamou.
Esperou que Tonya se aproximasse. A professora cumprimentou-o e, com a mão no ombro
de Diana, ela disse que os pais da menina não viriam, Snyder teve uma reunião de última
hora no acampamento. E você veio sozinha? – estranhou Wood. Entristecida, por lembrar-se
do que não conseguia esquecer, ela disse que um amigo dele a havia trazido. O rapaz
acabara de sair de sua casa.
– Mamãe também não veio? –
– Eles vêm amanhã – respondeu Tonya, acarinhando os cabelos da garotinha.
Diana ficou triste por um momento, mas logo reanimou-se ao ver a amiguinha que a
chamava para brincar.
– Mas não demore, que a janta vai ser logo servida – disse o velho e, virando-se para
Tonya, convidou-a a fazer a refeição com eles.
– Aceito um café.
Entraram.
Ao perceber que Jane foi chamada por seus pais, o homem aproximou-se. Rilke
estava perto do corpinho ensangüentado. Recebeu do delegado a voz de prisão. Depois de
deter o agressor da menina, Blake gritou, chamando os pais de Tonya.

Os que acompanhavam o enterro do pequenino caixão foram surpreendidos pela voz


rouca e potente do delegado. Aqui está o monstro! Antes da última pá, a maioria já
acompanhava o prisioneiro levado para sua agonia. A corda foi colocada em pescoço, o nó
apertado. A sentença já estava cumprida dentro dele. Era merecido. Estava morto. As vozes
de seus carrascos emaranhavam-se em seu cérebro num momento, mas no outro nada mais
ouvia. Morte ao canalha! Morte lenta! Muitos cavaleiros rodeavam o condenado, com paus,
sem que o delegado nada fizesse para impedir. Aliás, onde está Blake?
– Ninguém será linchado nem enforcado aqui! Soltem-no ou terão de preparar outra
forca para mim e cavar uma cova para o delegado!
“Maldita”, pensou Blake, amaldiçoando-se também. No afã de estar com Priscila
longe de casa de Maggie e sem pagar, num lugar aberto e romântico, levara-a para os lados
do lago, com o pretexto de ensina-la a atirar. Lembra agora quão excelente aluna ela foi.
Deixe-os partir! – gritou. Por Deus, não irão longe!

Os mineiros se reuniram para organizar a caçada ao casal. O forasteiro tinha de ser


apanhado e morto o mais depressa. Cada segundo de sua vida era uma afronta à memória
de Diana. Longe do delegado, pois sabem como é, não deixará que façamos do nosso modo,
mas dentro da lei. Como se houvesse algum tipo de lei suficientemente justa para um caso
assim.
O delegado estava envolvido numa questão mais banal. Quando Rilker o viu na
capital, estava sem a estrela de xerife. Depois, na casa de Maggie, o mesmo homem que
falava de negócios criminosos agora ostentava a insígnia. E novamente agora não mais. Seu

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auxiliar notou. Delegado, o senhor não está mais usando a estrela? Blake explica que
lutaram e deve então ter caído. É, deve ter sido, concordou o auxiliar, pois a camisa tem um
rasgo no lugar. Mas qual é a relevância disso depois de tamanha tragédia, rapaz? E não é a
estrela que me dá autoridade, é fazer com que as leis sejam cumpridas. E, em nome da lei,
temos de encontrar e matar esses dois, já mostraram o tamanho de sua periculosidade.

Descendo em meio ao desfiladeiro, sentiam o cheiro da terra molhada. A trilha


pedregosa no sentido da planície lhes era a entrada em um mundo novo que em lampejos da
felicidade podiam apenas imaginar. Atravessariam depois o rio, subindo sempre, cruzariam a
ferrovia. Contornariam as colinas arenosas. Não sabiam onde deveriam chegar.

Jane passara mal ao saber da morte de Diana. Não devia tê-la deixado voltar sozinha.
Tonya foi ao quarto da irmã. Ele disse a ela que iria lhe dar um pônei de presente. Apenas
alguém que a conhecesse bem saberia que o maior desejo da menina era ganhar um pônei.
E Rilker não conhecia Diana. Você o conhecia, minha irmã? Porque Jane havia visto o
forasteiro. Não, ela não conhecia. E que aparência tinha?
– Eu estava de longe – disse a menina, chorosa – Não deu para ver direito.
Mas o lugar onde estavam ela poderia dizer.
No começo da tarde, a senhora Dalia, Tonya e Jane estavam na construção
abandonada. Ali estava o vestidinho ensangüentado. Alguma coisa reluzia abaixo das tábuas
do assoalho. Com a ajuda de um galho, trouxe o objeto até ao alcance de seu braço.
Apanhou-o em sua mão.

A jovem galopava e seu vestido floral esvoaçava. Ah, esse anjo louco. O cavalo de
Rilker, logo atrás, relinchava pela pradaria. Tudo o que buscara em sua peregrinação não
teria sido isso, a loucura de uma mulher sofrida, louca o bastante para ousar mexer no altar
de sua memória e ficar entre ele e a lembrança de Camila?
O cavalo dela sofreou. A algazarra envolveu o vale. Estavam cercados.

O grupo saíra na busca dos fugitivos liderado por Snyder, sem muita convicção de
estar fazendo a coisa certa. Com outro grupo, Blake parou a caçada ao retirar a lança
cravada no chão onde os índios encontraram o casal. De nada adiantou seu atrevimento,
vagabunda: teve seu fim em mãos muito piores que as minhas.

Ela foi levada em separado para uma tenda. Rilker foi aprisionado e poupado. O índio
na vigia chamava-se Chuva Púrpura. Era o quarto dia da cerimônia em reverência ao sol. A
dança louvava a castidade, a fertilidade, a fidelidade. A jovem branca assistia em um lugar
de honra.

O xerife mandou avisar que o esperassem no prédio abandonado ao sul da capital.


Para despistar eventuais ladrões, virá um coche comum trazendo os valores. O cocheiro
facilitaria as coisas.
Esperavam. Chegou.
–Saiam todos!
Além do carregamento, estavam no interior dos assentos dianteiros os pertencer das
três pessoas que viajavam. Uma delas era o senhor Wood.
Não molestaram os passageiros, segundo o costume.
– Já separou a parte de Blake e do condutor?
– Já.
– Ótimo. São ainda duas partes a mais para mim.
Os irmãos, alvejados, caíram.

Em casa, o senhor Wood foi amparado pela mulher. A senhora Dalia pediu licença e
entrou. Entregou-lhe a estrela. Não é do xerife daqui.

Daniel e Miguel perseguiam homem, cujo cavalo, sobrecarregado por sacolas a mais
de moedas, logo estava ao alcance dos tiros.

Terminado o dia de buscas, Snyder e seus homens lançaram o olhar para os lados do
monte. Não havia como manter a perseguição no sentido da terra indígena. Conversavam a

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respeito quando o homem avisou sobre a lança e o fim da caçada de Blake. Aliviado, Snyder
disse Bem, amigos, dormiremos hoje aqui e amanhã a vida continua. A vida tem sempre que
continuar. Os homens concordaram, admirando o espírito do amigo a quem a desgraça se
abatera de forma tão cruel sem todavia destruí-lo.

O senhor Wood levantou a gola de seu paletó depois que a senhora Dalia indicou o
local. A esposa ainda enrolou um cachecol em seu pescoço antes que saísse. Do jeito que
está abatido, poderia se resfriar. Como a mulher poderia pensar em resfriado num momento
desses?
– Temos de cuidar de nossos vivos. Pelos mortos, só podemos rezar.
No prédio abandonado, o velho sentiu um calafrio diante de Blake. Restava ao xerife
ganhar tempo para certificar-se que os guarda-costas não estavam com ele.
– Olá, Sr. Wood! O que faz aqui?
– O que você faz aqui? Então é verdade que os criminosos sempre voltam à cena do
crime...
– Do que o senhor está falando?
– Naturalmente do assassino de minha querida Diana.
Nesse instante, o condutor da diligência entrou. Viera receber a sua parte.
Foi tudo muito rápido.
–Há alguém aí fora? – gritou Blake para o capanga.
O outro respondeu que não e, sem ter tempo para reagir, o velho foi atingido no
peito. A camisa plasmou-se de sangue, a camisa branca que a esposa lhe dera para ocasiões
especiais. Era o caso. Ele morreu.
Ouvindo os disparos, Miguel e Daniel, desesperados, apertaram o galope e chegaram
segundos após Blake ter montado. Teriam atingido o xerife se ele não tivesse usado o
condutor como escudo.

Blake sumiu pela saída sul após perceber que os homens não o perseguiam mas
apeavam para socorrer o velho. Contornou o quarteirão e enfiou-se pelas ruas que levavam à
saída norte, à cidadezinha em que era delegado. Lá contarei uma boa história para
comprometer Wood. Os mineiros estão sempre dispostos a acreditar em qualquer coisa que
diga respeito à falta de caráter dos compradores. Se pensam que me pegarão, terão uma
surpresa.
O senhor Wood, agonizante, deu ordem a seus empregados para que fossem atrás de
Blake. Foi ele quem matou a menina, não o forasteiro.
– Nós já sabemos, senhor. Fique calmo e bem quieto.
O velho obedeceu, morrendo naquele mesmo instante.

Quando o desenho das montanhas começou a indicar a entrada da cidadezinha,


Blake se deu conta de que não teria tempo de inventar uma história para os habitantes. O
tiro de Daniel passou zunindo por sobre sua cabeça. Decidiu continuar, subir a montanha
pelo outro lado e se defender lá de cima. Calcou as esporas e atravessou a rua central, sob o
olhar espantando dos homens e mulheres que por ali passavam, levantando uma nuvem
árida de poeira.
Mentalmente escolhia o lugar mais propício para desmontar e subir a pé pela encosta
quando, em sentido contrário, por uma trilha mais acima, apareceu Snyder e seus homens.
Não teria mesmo tempo para histórias. Desviou então para os lados do rio. Entendo que a
rua coisa a ser feita era seguir os dois, o grupo fez a volta, descendo, e juntou a eles seu
tropel.
Melhor sorte não esperava Blake nesse novo caminho. Rilker apareceu numa
elevação. A seu lado, Priscila e um índio. Admitindo-se perdido se não tentasse um recurso
drástico de imediato, o delegado cavalgou direto para o rio, onde cavalo e cavaleiro
estrondearam.
Ao vê-lo, Rilker dera-se a um formidável galope em sua direção, ignorando a multidão
de homens atrás dele e atirou-se do cavalo às águas.
A correnteza os levava com diferença mínima, logo estavam lado a lado, os dois
contra as águas e um contra o outro. Blake impõe as mãos como um batismo e afunda o
forasteiro. Rilke se agarra num ramos à margem e enlaça as pernas do delegado, que
submerge. No mesmo impulso, ajudado pelos muitos e flexíveis galhos, ganha a superfície e
o ar, enquanto seu carrasco os perdia.

Passou-se assim um tempo pequeno que, na situação dos dois, eram eternidades.
Agarrado aos ramos e prendendo Blake com as pernas, Rilker conseguiu subir na margem

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lamacenta. Sobre a cabeça do delegado, a força da correnteza o levava a um êxtase


estranho e mortal. Assim que se sentiu perfeitamente firme, o rapaz puxou para a terra o
corpo pesado e sem forças. Ficaram assim estendidos por um segundo. estavam sentados
um diante
do outro, sob um toldo de árvores escuras entrelaçadas que costumavam abrigar as crianças
que vinham nadar no rio quando a torrente permitia. Por fim, Rilker levantou, levantou
Blake pelo colarinho e ia desferir o último soco quando sentiu no estomago a atroz botina e
ajoelhou-se, inclinando a face até a lama. Foi agarrado pelo cabelo e soqueado várias vezes.
Os golpes soavam como coices em sua cabeça.
Agora Daniel – Miguel parece estar chegando –, o grupo de Snyder, Priscila e Chuva
Púrpura, todos assistem a luta. Palavras trocadas entre eles esclareceram rapidamente o
caso. Algum quis intervir mas a maioria acreditava num assunto pessoal e que não deviam
roubar a oportunidade de um homem acertar suas contas. Naquele momento Rilke estava
antes a ponto de sucumbir e sucumbiria se a seu coração não subisse num ultimo momento
a imagem da filha de Snyder, como Priscila a descrevera. Ela, Diana, e não ele, havia sido a
inocente injustamente sentenciada. A mentalização da menina interpôs o antebraço quando
o punho de Blake desceu fechado, cuja força, se o não matar, irá decerto comprometer sua
sanidade mental. A reação consumou-se ao imaginar seu anjo, Priscila, nas mãos do demônio
que o surrava. Foram as mãos de Rilker, essas agora, que, fechadas, uma após a outra, da
direita para a esquerda e em sentido inverso, derrubaram o xerife no solo úmido e pegajoso.

– Poderá um dia nos perdoar? – disse Snyder à sombra pêndula de Blake sobre eles.
Rilker respondeu que eles estavam sensíveis e frágeis, que compreendia, não tinha
qualquer ressentimento.
– Então fique conosco. Será bom ter um xerife amigo dos índios. Fique no lugar de
Blake.
Sorrindo a seu modo, sem expressar alegria, Sinto muito, disse, é cargo que eu
saberia ocupar.
Não. Não saberia viver numa cidadezinha em que uma parte dos homens fez parte do
passado de Priscila. Jamais tocaria no assunto, mas o que ela poderia lhes negar? Queria
começar vida nova. Xerife... Os homens são terrivelmente inconstantes e facilmente
levados...
Na reunião sob o corpo, o assistente do delegado tomou para si a nomeação de seu
novo superior. Os olhos se voltaram para o homenzarrão que havia sido, durante a maior
parte de sua vida, segurança do Sr. Wood. A sugestão foi aprovada e o interrogaram a
respeito. – Só se o senhor Rilker me substituir na casa da família do patrão – disse ele, com a
autoridade de quem lá havia sido criado como um filho. O forasteiro consideraria a proposta
com carinho, mas naquele momento todos lembraram de que o velho havia morrido, alguns
sequer sabiam, e se fez grande tristeza. No dia seguinte ele foi enterrado na capital.

Entardecia. A trote na direção da cidade, Chuva Púrpura levanta uma oração pela
sobrevivência de seu povo. Havia sido um dia ensolarado e muito quente nas montanhas. –
Xerife Miguel, o senhor e sua esposa estão convidados para jantar conosco. – Estaremos lá
em meia hora – disse o xerife, acrescentando que não se pode perder a oportunidade de
comer uma refeição preparada por Sara. Recortado contra o horizonte, Snyder enxugou as
mãos em seus jeans surrados e pegou a filha no colo. A luz refletia no cabelo dela tanto como
no ouro. Adeus. O homenzarrão apertou a bochecha da menina. Adeus. Dirigiu-se então para
casa. Maggie gostaria de saber que era falsa a sua sensação de que tinha de que as pessoas
jamais esqueceriam seu passado.
Na capital, Rilker voltava de uma reunião. Encontrou-se com Tonya antes de chegar
em casa. Reparou como a professora estava bonita com aquelas flores no cabelo. Priscila
havia pouco chegara de seu trabalho nos correios. Recebeu o marido na porta enquanto a
professora entrava na casa vizinha. –Como é que foi seu dia? – disse ela. – Foi um bom dia, e
o seu? – Vai ficar perfeito – disse ela, puxando-o para o quarto. –Vão nos chamar em seguida
para a janta. – A senhora Dalia não vai colocar a mesa antes de meia-hora. – Como é que
você sabe? – Eu disse a ela que demorasse pelo menos meia-hora quando vi você chegando.
Quando a porta do quarto se fechou, Rilker foi encostado à parede e as carícias de
Priscila se multiplicavam na proporção de suas lembranças de Tonya. Não deixaria que seu
homem esquecesse um só dia o que ele tinha em casa.
Quarenta minutos depois, o casal com expressão feliz, a senhora Dalia trouxe a
garotinha que pulou no pescoço do pai. Na janela da casa vizinha, Tonya olhava a cena com
o coração apertado. Com o passar do tempo em seu belo rosto, as marcas de expressão se
tornavam tênue sulcos permanentes, percebeu ela pelo vidro. Contudo, era uma mulher
atraente ainda. Uma mulher muito atraente. Chuva Púrpura não pôde deixar de perceber
quando passava para visitar seus amigos, não, não mais para isso. Parou ao lado da janela.

Ricardo de Almeida Rocha


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Quando Tonya finalmente virou o rosto para não continuar vendo aquela cena que desejava
tanto fosse de sua própria vida, o índio entrou pela janela.
Ninguém soube o que aconteceu com a professora. Depois de passar o resto de sua
vida procurando-a, Daniel morreu aos 35 anos, de tuberculose.

O amor como uma imensa onda

Valerie queria fazer amor com aquele homem, o professor –


era o queria, sem qualquer outra implicação. Saboreava a intensidade desse
desejo sem culpa quando suas amigas acenderam. Quando fez efeito,
inflamando-lhe a vontade, passou pela sua cabeça a reação de Hans se
soubesse, e certamente, do jeito que eram as coisas, haveria de saber. Em
nenhum momento sentiu menor o seu sentimento por ele, por Hans, desde
que viu o outro no campus e quis estar com ele ao menos uma noite.

Se não há sentimento ligado a isso, pensou, tampouco tenho


qualquer ligação com os ideais do movimento estudantil e não estou entre
os membros mais engajados? Quando ele chegou e disse Oi pessoal, ela já
tinha tudo planejado e pouco depois estavam no alojamento, procurando-se.
Do outro lado da parede vinha uma música dos Beatles que falava de
revolução.

Os outros deviam estar ainda tagarelando sobre sistema


educacional, política, Vietnã, mas no fundo tudo o que diziam era que
Valerie tinha o direito de fumar unzinho e depois fazer sexo com aquele
homem.

Ricardo de Almeida Rocha


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Durante a chuva

Uma interrupção, uma interrupção fria que paralisa inelutavelmente o ânimo. Mas a
mulher, com seu material de trabalho transbordando de seus braços, ainda assim caminha
sobre os tacos estalantes e segue. O que é isso, uma sapatilha de balé? Estranho. Seu olhar
é lento e sereno. Os óculos deslizam para a ponta do nariz a fim de que veja cima o que não
necessita grau. Aliás, o que o grau embaça. Aconchego. É a primeira coisa que lhe ocorre ao
ver o tapete do escritório. Um aconchego morno. Uma vida morna. Terá saudades talvez do
atrevimento de mãos entre suas pernas sob a saia, ah, que loucura, ali mesmo e com o
pessoal da limpeza a ponto de entrar... A tentação se afasta. Bom dia. Bom dia. Quando ela
passa, ainda provoca excitação e inveja. Não está tão acabada quando pensa.

Prefere chegar quando não há ainda ninguém, dispersa-se com facilidade quando o
expediente começou. Vozes, passos, basta. Como suportam? E sorriu novamente ao
responder outra saudação.
Prepara então seu melhor semblante. Assim. É preciso. Mas noutros momentos, quase diria
noutra dimensões, as deusas jubilosas esperam ainda uma liberdade real. Não estão
algumas ali na chuva, agora mesmo, espreitando a felicidade que constantemente lhes foge?
Quanta vida além dessa janela...

Por algum tempo, ao ouvir esse arfar molhado das folhas, ela desejava que houvesse
um correspondente real de tais sentimentos, como se, quem sabe aquela sapatilha na
entrada, representasse o apelo de uma outra vida, ainda misteriosa, assim como ao pensar
nas coisas do trabalho ela não veja o escritório, mas o homem a quem permitira que se
fizesse sonho e suas mãos. Um funcionário novo, imagine, mal chegar e logo ir invadindo os
segredos dela. É nessa memória paralela que o guarda.

A chuva pergunta como é possível que os mortos incomodarem a serenidade dos


vivos, como o que passou não passa, antes desenvolve-se para todas as direções: um toque
são todos os toques, todas as carícias que jamais foram feitas. Ela sim parece morta e seus
sonhos são fantasmas. Não há coisa alguma simples nessa dimensão. Não pode
compreender seus colegas decerto por isso, porque estão vivos.

Achegou-se à luz direta da luminária, receosa das sombras do dia escuro. Todavia,
eis o sol, com força tal que atravessa as nuvens e a chuva, estará sempre ali. Imagina que o
tempo irá firmar logo, talvez já à noite; mas prefere não pensar na noite. Não é fácil. Um dia
nublado, uma manhã assim se parece demais com a hora temida da volta para casa. Não
pode se dar ao luxo de uma crise noturna, há esse trabalho urgente. Sim, precisa ser
entregue no dia seguinte. Mas é inevitável que lance ao infinito a pergunta. Por que?

Se pudesse responder, a sapatilha de balé não guardaria o silêncio daquela paixão


furiosa, e o riso, o dever, a vida enfim, tudo estaria naqueles pingos que escorriam na janela.

Ricardo de Almeida Rocha


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Ricardo de Almeida Rocha

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