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PEDAGOGIA DO MEDO

• Uma orientação feita pelos dirigentes da igreja católica aos seus sacerdotes para endurecerem o
discurso e o controle moral, destacando o incrível poder do Maligno e o lamentável destino das
almas que no Inferno chegassem.

• As estratégias educativas utilizadas por ela e a maneira como fez uso da figura do Diabo para me
apresentar a determinadas regras sociais aparecem nos estudos de Salma Ferraz (2007), que
explica que o Diabo está presente também no mundo das crianças e é ainda o maior fantasma
coletivo do Ocidente.

• Sem o Diabo a literatura, a teologia e a própria humanidade não seriam as mesmas.


REPRESENTAÇÕES DO DIABO

• A forma física do Diabo durante os séculos “passa por diversas


metamorfoses, de uma figura angelical para a de um monstro
grotesco” (Daniel Lula COSTA; Solange Ramos ANDRADE, 2012,
p. 153). À medida que se afastava de Deus para tornar-se seu
oponente, o Diabo adquiria formas assustadoras.

• Foi no século IX, antes do contato da Europa com a África, que o


Diabo passou a ser representado como um anjo preto e nu.
• A cor preta, entre os cristãos, passou a ser interpretada como uma
representação do mal e a pele preta do Diabo “contrastava com a beleza
branca dos anjos. O preto representa o mal e a poluição. Satã sentado
em seu trono no Inferno é sempre preto” (COSTA; ANDRADE, 2012, p.
153).

• Coincidência ou não, na mesma época em que o Diabo ganha cor e


forma – pele preta, chifres, patas de cabra e rabo pontiagudo – sua
associação com a homossexualidade se cristaliza “e a sodomia era
frequentemente vinculada a bruxaria e ao culto do Diabo” (RICHARDS,
1993, p. 147).
• Os traços básicos do preconceito contra a
homossexualidade tiveram sua origem na Baixa Idade
Média, entre os séculos XI e XIV. É nessa altura que
emerge a intolerância homofóbica, desconhecida na
Antiguidade. Inventa-se o pecado da sodomia, inexistente
nos mil primeiros anos do cristianismo, a englobar todo o
sexo não reprodutivo, mas tendo como principal expoente
as relações entre homens ou entre mulheres.
BABÁ ONIPRESENTE

• Era ele, o Diabo, que se encarregava de evitar que eu fizesse fofocas ou intrigas,
proferisse xingamentos, palavrões ou mentiras, sob a ameaça de me dar de presente um
belo gancho na língua. Ele me acompanhava pelas ruas, matas e escola para tentar
impedir que eu me metesse em brigas ou confusões. Caso contrário, me visitaria à noite
e puxaria meu pé durante o sono. Na época da quaresma, as punições seriam ainda
mais severas, incluindo o nascimento de chifres e de rabo, o que seria o passaporte
definitivo para o inferno.
• As múltiplas maneiras de se apresentar fazem com que o Diabo circule com certa
tranquilidade, ainda que esteja sob uma vigilância constante. Seus disfarces não
representam um ajustamento, mas uma estratégia de existência em uma sociedade
monocultural, do ponto de vista religioso e racial, modelada a partir de uma visão
cristã europeia.

• Não apenas sua forma física é flexível, mas todo um repertório discursivo é adaptado
de acordo com a situação. Tais características não o tornam uma criatura desprovida
de personalidade ou identidade. Aquilo que se torna visível aos olhos do corpo social
pode ser apenas uma encenação, uma performance, como parte de um jogo que tenta
preservar a própria existência, física e emocional, que está em risco constante.
• Essa cartilha foi uma ferramenta bastante eficaz no
processo de me ensinar a ler e a escrever. A
ilustração da capa mostrava um saudável e bem
vestido casalzinho formado por um menino branco,
de cabelos castanhos claros, e uma menina loira de
mãos dadas, caminhando em direção à escola em
meio a um cenário de cores vibrantes que lembrava
o filme de Walt Disney Alice no país das maravilhas
(1951).
• Essa imagem afirmava padrões de branquidade e
da norma cisgênera heterossexual e informava a
mim e a outras crianças pobres, negras e/ou
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
(LGBT), que nossa caminhada dentro da escola não
seria assim tão suave.
• Amaro, o Bom-Crioulo, é ao mesmo tempo o
primeiro protagonista negro da literatura
brasileira e o primeiro protagonista
homossexual, algo raro nas produções
literárias atuais, caracterizadas pela
invisibilidade tanto de personagens negras
quanto de homossexuais.
• O livro, apesar de todos os estereótipos que
apresenta a respeito da homossexualidade
negra, como apetite sexual incontrolável e
propensão ao crime, funcionou para mim
como um espelho e possibilitou que eu me
visse em várias das características de
Amaro e Aleixo.
• Amaro, embora seja a personagem principal da obra
de Caminha (1895), tem sua humanidade
questionada ao longo de todo o livro e descrições
como “rude como um selvagem” (p. 18), “pedaço de
bruto” (p. 20), “um animal inteiro” (p. 20), “animal
selvagem” (p. 21), “Hoje manso como um cordeiro,
amanhã tempestuoso como uma fera” (p. 38), “um
animal feroz” (p. 54), “orgulho selvagem de animal
ferido” (p. 56) são utilizadas para justificar a
vigilância constante a que estava sujeito, bem como
sua dificuldade em viver em sociedade.
• Os raros elogios que Caminha (1983) tece a Bom-
Crioulo dizem respeito ao seu corpo bem torneado e
à sua força física descomunal, que mais uma vez o
aproximam de um animal.
QUEM DARIA EMPREGO A UMA BICHA
PRETA?
• De volta para o espaço escolar, agora ministrando aulas de arte, motivada pela crença de
tornar, se não suave, menos áspero o caminho de muitos/as estudantes, principalmente
negros/as e LGBTs.

• Essa preocupação estava associada ao fato de ter constatado que opiniões baseadas no senso
comum eram usadas para justificar e perpetuar situações de racismo, dentro e fora da sala de
aula.

• Muitas opiniões refletiam nas escolhas das temáticas que eram discutidas em sala de aula,
contribuindo para a manutenção de “uma visão monocultural e eurocêntrica, deixando de fora
as muitas culturas existentes na sociedade brasileira, principalmente a cultura de tradição
oral” (Simone SANTOS, 2006, p. 4) bastante valorizada nas tradições afro-brasileiras.
• A escolha dos conteúdos a serem trabalhados em sala de aula não se constitui no campo da
neutralidade. Ela se conecta, entre outras coisas, com os pontos de vistas pessoais, com os
valores morais, com as escolhas políticas e religiosas dos/as profissionais envolvidos/as nesse

processo.
• A escolha de conteúdos com bases exclusivamente europeias pode ser
entendida como uma das faces do silêncio, uma das muitas formas de
operação do racismo. Esse silêncio, na interpretação do professor Paulo
Vinícius Baptista da Silva (2008), além de invisibilizar as contribuições das
populações negras para a construção do país, opera para ocultar o processo
social de desigualdade racial (SILVA, 2008).

• Já os discursos que destacavam os trejeitos afeminados de alguns meninos


procuravam confirmar que “o único lugar habitável para o feminino é em
corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens” (Berenice
Alves de Melo BENTO, 2008, p. 25). Assim, os normatizados são premiados
com respeito e oportunidades, e castigando as diferenças com desprezos e
obstáculos (William Siqueira PERES, 2009), expondo de forma objetiva que
nas sociedades patriarcais heterossexistas não há outra possibilidade se não
o ajustamento.
• Minha trajetória escolar, como estudante e como docente, marcada pelo
racismo e pela homofobia, mas também por enfrentamentos e por um
processo de empoderamento, me fez refletir a respeito de como seria a
experiência de professores negros que expressam identidades de gênero
e orientações sexuais que questionam as normas heterossexuais. A
partir dessas inquietações, passei, então, a problematizar a respeito dos
seus trajetos escolares, como estudantes e como docentes, a fim de
investigar quais os mecanismos de poder incidiam e/ou incidem sobre
eles e quais as estratégias de enfrentamento desenvolveram para se
manterem na escola.

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