Você está na página 1de 3

Resenhas

Religião, Estado e educação feminina


Igreja e educação feminina Roberto Romano, em seu clássico Brasil: Igreja
(1859-1919): uma face do contra Estado, e Augustin Wernet, em seu também
clássico A Igreja paulista no século XIX. E foi sob
conservadorismo. a orientação de Wernet que Ivan Aparecido
Manoel conduziu a pesquisa que resultou no livro
MANOEL, Ivan Aparecido. ora resenhado, originalmente apresentado como
tese de doutoramento no fim da década de
Maringá: UEM, 2008. 102 p. 1980, na Universidade de São Paulo. O texto foi
publicado em 1996 pela editora da Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (EDUNESP),
porém, como é comum em trabalhos que
contribuem sobremaneira com as reflexões
O chamado catolicismo ultramontano tem historiográficas, não tardou a se esgotar.
sido nas últimas décadas objeto de inúmeros Desse modo, a reedição de Igreja e
estudos na área de história. É compreensível o educação feminina (1859-1919) pela editora da
interesse dos pesquisadores nesse projeto Universidade Estadual de Maringá (EDUEM) coloca
católico ao se considerarem os reflexos dessa novamente ao alcance do público um estudo
autocompreensão em diferentes esferas da essencial aos interessados, especificamente, nos
sociedade, em seu longo período de vigência desdobramentos do catolicismo ultramontano
(1800-1960). Em poucas palavras poderíamos em terras brasileiras, na história da educação, ou
afirmar que o ultramontanismo foi uma resposta mais especificamente, na história da educação
da Igreja às ameaças que vinham se feminina no Brasil e, de modo geral, a todos os
avolumando desde a ruptura das relações que se interessam pela história do Brasil, em
feudais e da ética católica, com a introdução especial, num dos temas mais recorrentes de
do assalariamento, da ética mercantilista, da nossa historiografia: a implexa recepção dos
constituição dos Estados nacionais e da ideais modernistas por parte da oligarquia
preponderância do poder civil sobre o religioso conservadora do Brasil.
e, em especial, das transformações abruptas Este último aspecto é muito importante na
na esfera intelectual que abririam caminho, a escrita do livro, pois, de acordo com o autor, a
partir do humanismo, à Reforma Protestante, ao busca pelo entendimento das muitas faces do
Iluminismo, ao Liberalismo, ao materialismo conservadorismo oligárquico brasileiro se fez
dialético e ao socialismo. presente em cada página de seu estudo: “uma
Em face de todas essas perdas, no século grande interrogação orientou a escrita desse livro:
XIX, a Igreja resolveu agir de maneira radical, como entender e explicar de modo razoavel-
provocando uma verdadeira agitação mente competente as atitudes contraditórias e
sociopolítica ao anunciar sua reação ao mundo ambíguas da oligarquia brasileira” (p. 18).
moderno, condenando o capitalismo e suas O livro, que foi dividido em quatro capítulos,
teorias, bem como a esquerda em todas as apresenta no primeiro um interessante panorama
suas vertentes. Em suma, o projeto político da educação feminina no século XIX. Se a
ultramontano estruturou-se em torno da rejeição educação das jovens não havia sido
à ciência, à filosofia e às artes modernas, preocupação central para a oligarquia até as
condenando o capitalismo, a ordem burguesa, últimas décadas do século XIX, num momento
os princípios liberais e democráticos e todos os em que as meninas eram educadas apenas
movimentos esquerdistas, como o socialismo e para atender às lides domésticos, esse quadro
o comunismo. alterar-se-ia radicalmente diante dos ideais
No Brasil, as sendas para as pesquisas nesse modernistas que se propagaram no Brasil nos
tema foram abertas, sobretudo, por dois autores: últimos decênios do século XIX. Esse novo

Estudos Feministas, Florianópolis, 18(3): 336, setembro-dezembro/2010 941


contexto passou a exigir da mulher de escolas e atenuar a premente necessidade
conhecimentos que iam além do preparo para da oligarquia, qual seja, uma educação
dirigir uma casa ou governar seus escravos. conservadora para suas filhas. Mas qual era a
Cobrava-se domínio sobre a leitura e a escrita e proposta educacional desse colégio? Para
conhecimento mínimo da nova e complexa responder a essa indagação, Ivan Manoel
configuração mundial. Se a necessidade de reservou o quarto e último capítulo de seu livro.
uma educação “sociocultural” das mulheres se As escolas das Irmãs de São José de
mostrava urgente, mais urgente ainda era para Chamberry ofereciam três formas distintas de
a oligarquia encontrar escolas que educassem matrículas: o internato pago, o externato gratuito
as suas jovens, que, até então, eram instruídas, e o orfanato. O internato era o ponto forte das
em sua grande maioria, por professores escolas e o externato, consequentemente, era
particulares, longe das precárias escolas de importância secundária. Já o orfanato punha
públicas, de onde eram afastadas pelo receio às claras a política conservadora desse modelo
que nutriam seus pais de misturá-las às crianças de educação. O autor, a partir de
menos abastadas. documentação original, mostra que todas as
Todavia, a mesma modernidade que forças estavam concentradas nas alunas do
exigia uma educação diferenciada de suas filhas internato (que eram oriundas de famílias ricas),
trazia consigo inúmeros perigos que de modo que o modelo de externato (criado
preocupavam, deveras, a oligarquia brasileira, com o intuito de atender a famílias que não
pois o modernismo nesse momento significava tinham condição de subsidiar o ensino de suas
muito mais do que inovações tecnológicas; ele filhas e, sobretudo, fazer frente às escolas
pressupunha extensão dos direitos civis para gratuitas mantidas pelos protestantes) possuía
todos, até mesmo para as mulheres. Daí o motivo menor quantidade de alunas e contava com
do temor da oligarquia ao feminismo, um dos um número inferior de professores, matérias e
maiores fantasmas que subjaziam sob os ideais seriação. No orfanato as meninas recebiam
modernistas. doutrinação religiosa e prendas para exercerem
No segundo capítulo, Ivan Manoel a função de empregadas domésticas, ou em
apresenta uma Igreja que, estando no auge de casos extraordinários, a docência em escolas
sua política de romanização (denominada públicas. Além do baixíssimo nível de instrução,
catolicismo ultramontano), substanciava essas meninas do orfanato eram responsáveis
verdadeira ojeriza a todas as ideias modernistas por inúmeros serviços, como as lides de limpeza
que punham em xeque as doutrinas da Santa e de cozinha.
Sé. Das páginas desse capítulo transparece O olhar atento do autor sobre as fontes
também um clero conservador, capitaneado descortina o cotidiano nos colégios das Irmãs
por Dom Antônio Joaquim de Melo, que não de São José. O primeiro aspecto destacado foi
poupava esforços no ataque à modernidade e a centralidade do modelo de internato,
que enxergava na educação, em especial na entendido como o melhor e mais natural
educação feminina, uma forma de livrar a método de educação das crianças. O internato
família brasileira dos males modernistas. teria como função-chave a vigilância e, por
A confluência de temores e necessidades conseguinte, o controle sobre o corpo, os
fez com que Igreja, Estado e oligarquia se gestos, os comportamentos, as linguagens etc.,
unissem. O autor demonstra no terceiro capítulo elementos primordiais na formação de uma
que a Igreja tinha por objetivo frear a mulher dotada de “ornamentos culturais”, mas
modernidade que se infiltrava no Brasil e via na também de polidez. O ensino resultava de uma
educação o melhor antídoto; o Estado, ao mescla de disciplinas, orações diárias e leituras
incentivar as escolas católicas, vislumbrava uma das obras de autores filiados ao ultramontanismo
oportunidade de amenizar as precariedades do – em clara contraposição à “pedagogia
ensino público; já a oligarquia encontrava nas moderna”. Nesse clima de severa disciplina havia
escolas católicas espaço ideal para instruir suas ainda espaço para uma acirrada atmosfera de
filhas sem maculá-las com as distorções do disputa entre as alunas, tudo sob o estímulo do
modernismo. Essa junção de interesses modelo pedagógico que guiava os colégios
corroborou para que, em 1851, capuchinhos e das Irmãs de São José.
freiras francesas da cidade de Chamberry, na As conclusões do autor são reveladoras:
Saboia, trouxessem para São Paulo o conjunto num momento em que os referenciais
doutrinário ultramontano. Às irmãs de São José modernistas avançavam pelo mundo, a
de Chamberry coube a tarefa de suprir a falta oligarquia brasileira filtrou o que era interessante

942 Estudos Feministas, Florianópolis, 18(3): 941-964, setembro-dezembro/2010


para sua perpetuação (abandono da herança aniquilar incômodos postulados dessa mesma
colonial escravista e inserção no mercado modernidade.
mundial capitalista moderno) do que poderia A riqueza das minúcias conjugadas
ameaçar os seus tradicionais costumes magistralmente aos grandes temas da
(emancipação das mulheres) e pôr em risco historiografia brasileira por meio de uma fluente
seu status quo (extensão dos direitos civis). Uma escrita impossibilita uma apreciação satisfatória
elite, portanto, ambiguamente modernizante e do livro de Ivan Manoel em um texto dessa
conservadora. Por outro lado, o clero brasileiro natureza. Nossa intenção é lançar o convite à
marcado pelas tinturas do ultramontanismo se leitura a todos os que se interessam pelo tema
pôs ao lado do Estado e da oligarquia no intuito tratado em Igreja e educação feminina (1859-
de estender seu projeto de romanização. As 1919), mas também a todos aqueles que
ações dos clérigos ultramontanos na educação apreciam obras históricas que primam pelo rigor
foram impulsionadas pela ausência do Estado teórico, pelo amparo documental e por uma
no ensino público brasileiro e pelas benesses de escrita envolvente.
uma oligarquia que, paradoxalmente, investia
nas escolas católicas os lucros obtidos num André Dioney Fonseca
modelo econômico modernista com o fito de Universidade Federal da Grande Dourados

Estudos Feministas, Florianópolis, 18(3): 941-964, setembro-dezembro/2010 943

Você também pode gostar