Resumo
Este artigo apresenta um estudo sobre a evolução do conceito de cidadania à luz de algumas
transformações políticas ocorridas na história das sociedades. Para isso, problematiza o
sentido e o significado de cidadania para a educação. Tem por objetivo apresentar um
panorama de como se deu a formação de seu significado e as implicações que tal conceito
trouxe para a educação e para a sociedade atual. A discussão resulta de pesquisa qualitativa
com caráter teórico, a partir do levantamento bibliográfico de estudo de grandes pensadores
que contribuíram sobre o tema, como Aristóteles, Marx, Habermas, Bobbio, Saviani, dentre
outros. Suas considerações nos oferecem condições para compreender que cidadania está
intrinsecamente ligada ao desenvolvimento humano e suas relações sociais estão dentro do
contexto do Estado, portanto, seu conceito não é determinado e sua compreensão varia no
tempo e no espaço, modificando-se a depender do jogo de interesses de quem busca ser
cidadão. No entanto, certos elementos sociais são intrínsecos ao seu conceito desde os
primórdios da civilização – desigualdade, exclusão, lutas e educação –, dificultando e
desafiando o cidadão em sua sobrevivência e na consolidação de seus direitos. A evolução de
seu conceito e conteúdo acompanhou as mudanças de nossa sociedade, juntamente com a
passagem da educação como um dos direitos oriundos da cidadania (direito social) e
promotora desta, que se dá justamente a partir da ressignificação do conceito, quando é
repassada à escola a tarefa de civilização do povo. De acordo com Brzezinski e Santos (2015,
p. 14), “a cidadania se aprende, mas, sobretudo, se conquista”, e a escola surge como o
principal meio para essa conquista. Entretanto, se questiona que cidadãos estão se formando e
se realmente as escolas possuem capacidade e autonomia para essa formação.
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Graduada em Pedagogia e Direito. Mestranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás
(PUCGO). Docente da Educação Básica – Secretária Municipal de Educação de Goiânia. E-mail:
limaleninha@hotmail.com
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Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade de São Paulo (USP) e em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica de Goiás (PUCGO). Professor Colaborador do PPGE da Pontifícia Universidade Católica
de Goiás (PUCG). E-mail: a.menezes.junior@uol.com.br
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Doutora em Educação: Administração Educacional pela Universidade de São Paulo (USP). Professora titular da
Universidade Católica de Goiás (PUCGO). Professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB). E-mail:
iriaucg@yahoo.com.br
ISSN 2176-1396
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Introdução
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De acordo com Brzezinski (2016, p. 2), “O termo política, deriva do grego – politikós – que significa tudo o
que se reporta à cidade, ao público, ao urbano, ao civil. Por seu turno, Bobbio; Metteucci; Pasquino (1986, p.
954), anunciam que o conceito de política está estreitamente ligado ao conceito de poder pelo fato de ser
entendida como forma de práxis humana”.
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“[...] um Estado não é senão uma modalidade muito recente na forma de a humanidade organizar-se
politicamente. Antes do Estado o homem passou por estruturas bastante diferentes de organização do poder
político. [...] não há de se falar em formação da sociedade, uma vez que esta já estava formada e já trazia dentro
de si o próprio fenômeno político.” (BASTOS, 1998, p. 4 apud BRZEZINSKI, 2016, p. 37).
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se deu a formação de seu significado e as implicações que tal conceito adquiriu para a
realidade social, problematizando os diversos sentidos a ele vinculados ao longo da história e
seu reflexo na educação como elemento necessário à conscientização do indivíduo enquanto
cidadão.
A pesquisa será qualitativa com caráter teórico, a partir do levantamento bibliográfico
e dos teóricos que nos oferecem condições para compreender seu emblemático significado e
sua importância para a sociedade. Para isso, utilizou-se do acesso remoto de bases de dados
bibliográficos com a realização de revisão de leitura, interpretação e análises específicas sobre
o tema.
[...] podemos comparar os cidadãos aos marinheiros: ambos são membros de uma
comunidade. Ora, embora os marinheiros tenham funções muito diferentes, um
empurrando o remo, outro segurando o leme, um terceiro vigiando a proa ou
desempenhando alguma outra função que também tem seu nome, é claro que as
tarefas de cada um têm sua virtude própria, mas sempre há uma que é comum a
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Na língua, a palavra pólis era designada para representar, ao mesmo tempo, uma expressão geográfica – o
território, a cidade – e uma expressão política – o Estado. A ideia da pólis não corresponde ao que entendemos
como Estado Moderno. A vivência grega da cidade estado englobava o que hoje compreendemos como Estado e
sociedade civil, ou seja, os domínios públicos e privados (ARISTÓTELES, 1999, p. 147 apud VILLELA, 2008).
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todos, dado que todos têm por objetivo a segurança da navegação, à qual aspiram e
concorrem, cada um à sua maneira. De igual modo, embora as funções dos cidadãos
sejam dessemelhantes, todos trabalham para a conservação de sua comunidade, ou
seja, para a salvação do Estado. Por conseguinte, é a este interesse comum que deve
relacionar-se a virtude do cidadão. (ARISTÓTELES, 2006, p. 32).
A atividade política acontecia, portanto, na própria cidade, não sendo a educação uma
tarefa preparatória à participação, mas decorrência desta. A cidadania era vista como um ideal
coletivo, onde o cidadão não poderia dispor de seu tempo livre para assuntos individuais, mas
sim para as demandas da vida da cidade. Embora a ideia de “demo-cracia” brotasse do mesmo
contexto, não era todo o povo considerado cidadão. Só poderia ser cidadão o indivíduo livre
para expressar e exercer sua vontade no espaço público e assumir as responsabilidades
decorrentes dessa vontade. Ser livre pressupunha entraves para diversos indivíduos e grupos
sociais serem reconhecidos como cidadãos, como mulheres, escravos, pobres, etc., nos
mostrando os limites do próprio conceito de cidadania.
Se na Antiguidade prevalecia a ideia de que o homem é um ser político e que se
encontra inserido em uma relação social onde o todo se sobrepõe às partes, na Modernidade o
indivíduo se liberta do poder absoluto de uma lei divina ou natural, exterior a ele. Nesse
momento, o Estado passa a ser concebido como resultado da associação de indivíduos livres e
autônomos, por meio de um contrato social, de um pacto onde eles possam deixar o estado de
natureza e fugir da barbárie.
A cidadania moderna nos remete às conquistas sociais a partir do século XVI, em que
a Revolução Francesa e a Revolução Americana destacam-se na luta pela superação do
absolutismo do Estado. Segundo Althusser:
Nos séculos XVI, XVII e XVIII se constrói, na Europa, a noção moderna de Estado,
com suas bases alicerçadas na cidadania e no papel fundamental da educação para a
construção da identidade burguesa. Em linhas gerais, pode-se dizer que as revoluções
burguesas apresentaram a ideia de cidadania ligada aos ideais burgueses – liberdade,
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[...] Uma grande nação é necessariamente composta por dois povos [o grifo está no
original], por duas raças de algum modo diferentes e de valor essencialmente
diverso, dado que, por uma parte, temos verdadeiros produtores ou os chefes da
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Bobbio (1988 apud VILLELA, 2008, p. 24) “afirma que a ideia de igualdade na
liberdade toma como referência a compatibilidade entre a liberdade de todos os cidadãos, que
se refere aos direitos jurídicos – todos são iguais perante a lei – e aos direitos civis
fundamentais”. Dessa forma, cidadania e direito estão intimamente relacionados, uma vez que
a ideia de cidadania está diretamente imbricada aos preceitos contidos na Declaração
Universal dos Direitos Humanos ao se observar os direitos previstos a qualquer pessoa.
Assim, ao se integrar ao Estado por uma vinculação jurídica, adquire a condição de cidadão
universal, como bem observa Dallari (1989, p. 85):
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Florestan (apud TÓTORA, 1999, p. 115) conceitua a revolução burguesa como “um conjunto de
transformações econômicas, tecnológicas, sociais, psicossociais e políticas que só se realizam quando o
desenvolvimento capitalista atinge o clímax de sua evolução industrial, consolidando a dominação burguesa”.
No Brasil, revelou-se um fenômeno de natureza política, “Ao contrário de outras burguesias, diz Fernandes
(1976:204), que forjaram instituições próprias de poder social e só usaram o Estado para arranjos mais
complicados e específicos, a nossa burguesia converge para o Estado e faz sua unificação no plano político, antes
de converter a dominação socioeconômica [...]” (FLORESTAN apud TÓTORA, 1999, p. 112).
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173) afirma que o “Brasil se caracterizou até recentemente pela presença de um Estado
extremamente forte, autoritário, em contraposição a uma sociedade civil débil, primitiva,
amorfa”. Afirma, ainda:
[...] desde o início de nossa formação histórica, uma classe dominante que nada
tinha a ver com o povo, que não era expressão de movimentos populares, mas que
foi imposta ao povo de cima para baixo ou mesmo de fora para dentro e, portanto,
não possuía uma efetiva identificação com as questões populares, com as questões
nacionais. Para usar a terminologia de Gramsci, isso impediu que nossas ‘elites’
além de dominantes, fossem também dirigentes. O Estado moderno brasileiro foi
quase sempre uma ‘ditadura sem hegemonia’, ou para usarmos a terminologia de
Florestan Fernandes, uma ‘autocracia burguesa’. (FERNANDES, 1975, p. 289 e ss.
apud COUTINHO, 2006, p. 176).
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“A democracia restrita é uma forma de democracia de iguais. A dominação burguesa se associa a
procedimentos autocráticos, conferindo aos mecanismos representativos de existência formal, mas inoperantes
socialmente. Trata-se de uma democracia para as classes dominantes, excluindo a maioria do povo, as classes
despossuídas, da arena política e dos direitos de cidadania” (FLORESTAN apud TÓTORA, 1999, p. 113-114).
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Educação e cidadania
Assim, a educação é entendida como instrumento, como um meio, como uma via
através da qual o homem se torna plenamente homem apropriando-se da cultura, isto
é, a produção humana historicamente acumulada. Nesses termos, a educação fará a
mediação entre o homem e a ética permitindo ao homem assumir consciência da
dimensão ética de sua existência com todas as implicações desse fato para a sua vida
em sociedade. Fará, também, a mediação entre o homem e a cidadania, permitindo-
lhe adquirir consciência de seus direitos e deveres diante dos outros e de toda a
sociedade... Em outros termos, pela mediação da educação, será possível construir
uma cidadania ética e, igualmente uma ética cidadã. (SAVIANI, 2013, p. 1).
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No entanto, para Bobbio (1986), a educação para a cidadania é uma promessa não
cumprida, já que uma das formas do súdito transformar-se em cidadão é garantir-lhe o direito
à cidadania ativa e a educação para democracia surgiria no exercício da prática democrática.
Já para Habermas, a educação coloniza-se e assume a condição de um instrumental
técnico de manipulação política e econômica no lugar de um recurso de oposição e de
transformação social, transformando-se em recurso de estabilização funcional. Pela busca de
uma sociedade mais humana e mais livre, o autor propõe a “Teoria crítica da evolução social”
e a “Teoria da ação comunicativa”, como proposta de uma ação política concreta que
contribua para a democratização da sociedade e da educação. Para Habermas, a sociedade
democrática é “aquela na qual todos os membros em interação numa determinada situação
devem ter as mesmas possibilidades de participar de modo autônomo e consciente das
discussões considerando as normas sociais de interação” (OLIVEIRA 1996, p. 12). Dessa
forma, Habermas propõe uma ação educativa que aspire, por um lado, reconhecer e recusar as
suas limitações e, por outro, transformar, a partir da sua posição, as estruturas e as condições
sociais de dominação por uma ação educativa na perspectiva do agir comunicativo,
construindo uma teoria vinculada com a práxis, capaz de orientar a escola no caminho da
construção de cidadãos livres de toda forma de dominação.
Considerações finais
como ideologia, outros, ainda, como forma de manipulação e perpetuação no poder. Enfim,
são inúmeras suas acepções, a depender do contexto e do interesse de quem se utiliza do
termo.
A evolução de seu conceito e conteúdo acompanhou as mudanças de nossa sociedade,
atingindo, hoje, uma concepção bem mais abrangente e complexa do que a concebida em
outras épocas. Por outro lado, alargou-se a sua aplicação para outros segmentos da
comunidade que, muitas vezes, eram esquecidos ou ignorados em seus direitos fundamentais,
como mulheres, negros e pobres, que passaram a ter direitos civis e políticos reconhecidos, ou
mesmo o direito de qualquer pessoa ser considerado cidadão pelo simples fato de ter nascido
em determinado Estado.
O conceito contemporâneo de cidadania continua intrinsecamente relacionado à
construção do regime democrático burguês, em que juridicamente todos são iguais perante a
lei, mas a realidade é que essa igualdade não passa de um artifício político para manter a
hegemonia da burguesia. Esse conceito é inerente ao regime democrático brasileiro, que tem
suas raízes fincadas em uma sociedade autocrática de poder, com histórico de expropriação
econômica, cultural e de pura dominação política, alienando as classes sociais menos
favorecidas, usurpando-as de desenvolver todas as suas potencialidades, incluindo a de
participar de forma ativa, organizada e consciente da construção da vida coletiva na
construção de um Estado democrático.
De acordo com Brzezinski e Santos (2015, p. 14), “a cidadania se aprende, mas,
sobretudo, se conquista”, e a melhor forma de conquistá-la é pela educação, pois, apesar de
toda a complexidade que a envolve, é indiscutível que o conhecimento transforma pessoas e
nações. Assim, a educação passa a ser instrumento de revolução cultural, meio e fim para a
construção de uma sociedade mais justa e livre. Contudo, se faz necessária a contextualização
de qual cidadania o sistema educacional pretende formar, um cidadão obediente ou autônomo,
capaz ou não de analisar crítica e reflexivamente as relações sociais em que vive, e de qual
modelo de sociedade se intenta (re) construir.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A política – Volume 61. [s.n.]: Martin Claret, 2006. (Coleção a Obra-prima
de cada autor).
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BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco
Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
COUTINHO, C. Nelson. O Estado brasileiro: gênese, crise, alternativas. In: LIMA, J. C. F.;
NEVES, L. M. W. Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 173-200.
DALLARI, D. de A. Elementos de Teoria Geral do Estado. 14. ed. São Paulo: Saraiva,
1989. Disponível em: <https://direitosempre.files.wordpress.com/2013/03/elementos-de-
teoria-gera-do-estado-dalmo-de-abreu-dallari.pdf>. Acesso em: 12 out. 2015.
MARX, K. A questão judaica. Tradução de Artur Morão. Lisboa, 1989. Disponível em:
<http:/www.lusosofia.net/textos/marx_questao_judaica.pdf.>. Acesso em: 1º maio. 2016.
TÓTORA, S. A questão democrática em Florestan Fernandes. Lua Nova, São Paulo, n. 48, p.
109-126, Dec. 1999. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
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