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RESUMO
Neste artigo analisamos, por meio da paráfrase, da metáfora e da polissemia, a constituição
interdiscursiva do discurso do combate à seca nos enunciados dos agricultores familiares do
Assentamento Bela Conquista. Para tanto, adotamos os procedimentos de análise postulados por
Orlandi (2010), observando-se as etapas procedimentais da passagem da Superfície Linguística
(texto) para o discurso, a passagem do objeto discursivo (formação discursiva) para o processo
discursivo e a passagem do processo discursivo para a formação ideológica. O corpus é formado
por quinze enunciados sobre o discurso em questão, coletados de agricultores familiares do
Assentamento Bela Conquista, situado no município de Itiúba – BA, em situação de entrevista
semiestruturada. Como resultados de nossas análises concluímos: 1) que a interdiscursividade do
discurso do combate à seca se constitui na relação com as formações discursivas mítico-religiosa
fatalista, patrimonialista-escravocrata, extrativista-utilitarista da natureza e técnico-economicista e
2) o discurso do combate à seca e o da convivência com a semiaridez, a partir do surgimento
histórico deste último, se interconstituem, isto é, são marcados um pelo outro.
ABSTRACT
In this paper, we aim to analyze, through paraphrase, metaphor and polysemy, the interdiscursive
constitution of the discourse of combating droughts in the utterances by family farmers from Bela
Conquista Settlement. To achieve this aim, we adopted the analysis procedures postulated by
Orlandi (2010), observing the procedural steps of the passage from the Linguistic Surface (text) to
the discourse, the passage from the discursive object (discursive formation) to the discursive
process and the passage from the discursive process to the ideological formation. The corpus is
formed by a set of utterances about the discourse of combating the droughts, collected from family
farmers from Bela Conquista Settlement, located in the municipality of Itiúba – BA, in a situation of
semi-structured interview. As a result of our analysis, we can affirm: 1) that the interdiscursivity of
the discourse of combating drought is constituted in the relation with the fatalistic mythical-
religious, patrimonialist-slavery, extractive-utilitarian nature and technical-economicist discursive
formations and 2) the discourse of combating drought and that of coexistence with semiaridity,
from its historical, appearance, are interconstituted, that is, they are marked by each other.
Keywords: Discourse, Interdiscursivity, Family Farmers of combating drought
INTRODUÇÃO
Considerando que os discursos são uma conjugação necessária da língua com a história
pelos efeitos ideológicos, produzindo a impressão de realidade(ORLANDI, 2007), a crise
ambiental, econômica e política que afeta o mundo contemporâneo se configura como condição de
produção de discursos sobre a situação ambiental dos homens e mulheres que vivem nessa
conjuntura socioambiental. Há mais de 40 anos, esses discursos de preservação ambiental, da
situação ambiental do planeta e da condição da vida na Terra, propagam-se e ganham corpo. No
âmbito nacional, mais especificamente no Nordeste, além desses discursos de alcance planetário, há
aqueles que estão vinculados ao famigerado fenômeno da seca, dos quais podemos destacar dois
discursos que interpretam o fenômeno seca/desenvolvimento: o discurso do combate à seca e o da
convivência com a semiariadez. Discursos que, em formação, dialogam com vários outros.
Nesse contexto, o presente artigo apresenta análises feitas durante um trabalho 1 que teve
como objeto de estudo os discursos do combate à seca e da convivência com a semiaridez na
enunciação dos agricultores familiares do Assentamento Bela Conquista. No recorte que ora
fazemos, daremos ênfase ao discurso do Combate à seca2, sem, contudo, desconsiderar que, através
de movimentos interdiscursivos, o discurso da convivência constitui o do combate pelo viés da
contraposição.
Tendo como objetivos: 1) analisar, por meio da paráfrase, da metáfora e da polissemia, a
constituição interdiscursiva do discurso do combate à seca nos enunciados dos agricultores
familiares do Assentamento Bela Conquista; 2) caracterizar os movimentos do interdiscurso que
atravessa o discurso do combate à seca e; 3) descrever o funcionamento desse discurso ao produzir
efeitos de sentido através da paráfrase, da metáfora e da polissemia.
Temos como principal referência teórico-metodológica os estudos de Orlandi (1978),
(1996), (1999), (2008), (2009) e (2010) embasados nas concepções de Michel Pêcheux ((1975),
1991), (1997c), fundador da Análise de Discurso de linha francesa. No âmbito metodológico, para
atingir os objetivos propostos, optamos pela pesquisa qualitativa na perspectiva da Análise do
Discurso de Linha Francesa de cujo aporte teórico-metodológico adotamos procedimentos de
análise postulados por Orlandi (2010), observando-se as etapas procedimentais da passagem da
Superfície Linguística (texto) para o discurso, a passagem do objeto discursivo (formação
discursiva) para o processo discursivo e a passagem do processo discursivo para a formação
ideológica. Isso será feito considerando-se o pressuposto de Orlandi (2010, p. 64), segundo o qual
1
Referimo-nos à monografia de Ferreira (2013), desenvolvida no âmbito da Especialização em Desenvolvimento
Sustentável no Semiárido com Ênfase em Recursos Hídricos promovida pelo IF Baiano em parceria com o CNPq.
2
Este artigo não enaltece o discurso do combate à seca, busca tão somente analisá-lo e descrevê-lo tal qual se explicita.
há uma “[...] necessidade de que a teoria intervenha a todo o momento para reger a relação do
analista com o seu objeto, com os sentidos, com ele mesmo, com a interpretação”.
Em consonância com Orlandi (2010), entendemos os processos parafrásticos, de metáfora
e da polissemia como essencialmente heterogêneos, o que levou nossa análise a considerar a
heterogeneidade do discurso do combate à seca e a caracterizá-lo de acordo com as respectivas
formações discursivas, cujas relações o constitui.
Considerando a afirmação de Pêcheux (1975 apud ORLANDI, 2010, p. 17) de que não há
discurso sem sujeito, não há sujeito sem ideologia, de que o indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia, pois, é assim que a língua faz sentido. Dessa forma, é pertinente esclarecer quem são
os agricultores familiares, sujeitos deste estudo, a partir do seu espaço de produção da vida, o
Assentamento Bela Conquista, lócus da coleta dos enunciados que compuseram o corpus desta
pesquisa.
Entre 2012 e 2013, quando da realização do estudo em questão, a Associação dos
Assentados da Bela Conquista informou que, no assentamento, havia 185 pessoas distribuídas em
52 famílias (das quais, 36 eram posseiras e 16 não posseiras). Os Agricultores Familiares do
Assentamento Bela Conquista são um grupo de famílias de agricultores e agricultoras Sem-terra3,
que, motivados pela problematização da própria situação social existente e pela leitura de mundo
que aprenderam nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), 4 ocuparam, no dia primeiro de agosto
de 1989, as dependências da ex-fazenda Experimental localizada no município de Itiúba – Bahia.
Essa área, há doze anos não cumpria a função social de terra produtiva, uma vez que a
experimentação agropecuária, realizada pelo governo estadual através da Empresa de Pesquisa
Agropecuária da Bahia – EPABA e da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia –
EMATERBA5, não tivera êxito, e a área estava se transformando em pasto para o gado bovino de
alguns fazendeiros da região.
Mesmo sendo área de terras devolutas, aquelas famílias sofreram ação de despejo logo nas
primeiras 48 horas. Apoiadas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais e pela Comissão Pastoral da
Terra, dirigiram-se à capital, ocuparam o órgão responsável pela regulamentação fundiária e de lá só
3
Essa autodesignação dos(as) agricultores(as) aponta para o sujeito discursivo, pois, embora empiricamente o indivíduo
esteja assentado na terra, discursivamente se filia a uma identidade ideológica que, de acordo com o Dossiê MST escola
documentos e estudos de 1990 a 2001 (2005, p. 206, supressão nossa), o sem-terra, “ao decidir fazer a luta pela terra e a
luta pela reforma agrária, decide sair de um mundo de isolamento e gerado pela exclusão social e passa a fazer parte de
uma coletividade [...]conquista uma identidade Sem-Terra.”
4
Informações obtidas pelo relato oral do assentado e ex-presidente da Associação dos Assentados da Fazenda Bela
Conquista – José Nelson Bispo.
5
A Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia – EMATERBA foi fundida com a Empresa de Pesquisa
Agropecuária da Bahia – EPABA no ano de 1991 para dar origem à Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola –
EBDA, que, em 2015, foi transformada em Superintendência Baiana de Assistência Técnica e de Extensão Rural -BAHIATER,
(ASSABER ,2015,oline).
6
Extraído do documento do Intercâmbio no Semiárido baiano Territorialidade e Desenvolvimento.Carítas Brasileira.
(DOCPLAYER, 2005,online).
saíram com a autorização de permanecer na terra outorgada pelo então governador da Bahia, Nilo
Coelho. Na área, foi instituído o sistema de produção-ocupação 6. Em uma parte do terreno (cerca de
60 hectares (ha), foram desenvolvidas, de forma coletiva, a horticultura e a fruticultura; e, numa
outra área, de cerca de 18 ha, foram criados bovinos e ovinos de forma semiextensiva. Nascia,
assim, o Assentamento Bela Conquista.
Constituímos um corpus, formado por quinze enunciados sobre o discurso em questão
coletados de seis agricultoras e doze agricultores familiares do Assentamento Bela Conquista, em
situação de entrevista semiestruturada. As entrevistas foram gravadas na casa de cada um/a dos
agricultores/as com uma câmara fotografia pela própria pesquisadora e posteriormente transcritas.
Também compôs o corpus um arquivo composto por um conjunto de textos que tratam dos temas
convivência com a semiaridez e combate à seca, da invenção do nordeste, fragmentos de textos
bíblicos e de músicas com a temática da seca, da reforma agrária, do Sertão entre outros como
Instituto de Obras Contra as Secas (IOCS), Instituto Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS),
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), tendo em vista o recorte temporal e situacional do
sujeito antes de 1980 (antes de ser assentado) e depois de 1980 (depois de assentado).
Em seguida, observando-se a etapa procedimental da passagem da Superfície Linguística
(texto) para o discurso, selecionamos os enunciados mais representativos das filiações ideológicas
de cada uma das formações discursivas em questão e distribuímos em dois grupos: o grupo dos
enunciados que consideram que o adequado para lidar com a seca é combatê-la (grupo do combate,
1) e outro grupo, o dos enunciados que consideram que o adequado para lidar com a questão da seca
é conviver com a semiaridez (grupo da convivência, grupo 2).
Prosseguimos nossa análise pondo o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em
um lugar com o que é dito de outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro
Orlandi,(2010). Como propõe Orlandi (2010, p.59), procuramos ouvir nos enunciados dos
agricultores de Bela Conquista, o dito e o não dito que, mesmo estando no âmbito do não dito
significa mais quando posto na relação das formações discursivas que atravessam os discursos do
combate à seca e da convivência com a semiaridez e, assim, significando-se, participam também
como elementos constituintes da interdiscursividade própria desses dois discursos.
Após esse passo, colocamos em diálogo o nosso corpus de enunciados dos agricultores
familiares e o arquivo. Tomando deles as formulações de sentidos que se repetem e a metáfora,
identificamos o trabalho da memória discursiva Brandão,(1993, p. 76-77) e procuramos descrever
como os movimentos dos interdiscursos significam e nos auxiliam na descrição dos funcionamentos
6
discursivos dos discursos do combate à seca e da convivência com a semiaridez. Posteriormente,
como compreendemos que a exterioridade é elemento constitutivo do discurso (ORLANDI, 1996
[2007], p. 38 apud PEREIRA, 2010, p. 24; COSTA, 2005, p. 20), e que “as condições de produção
de um discurso estão inscritas em sua materialidade linguística”, nossos gestos de análise foram,
assim, constituindo-se: da leitura dos enunciados dos agricultores de Bela Conquista e do
referencial teórico da Análise do Discurso francesa e da relação, do diálogo desses enunciados e
desses discursos com outros enunciados filiados às formações discursivas do combate à seca e da
convivência com a semiaridez e que tem ressonância no conjunto dos textos que compõem o já
citado arquivo.
A partir do eixo intradiscursivo, descrevemos como as relações entre as formações
discursivas e os interdiscursos constitutivos do discurso do combate à seca se movem por meio de
processos discursivos como a paráfrase, a metáfora e a polissemia. Podemos afirmar que a
interdiscursividade do discurso do combate à seca se constitui na relação com as formações
discursivas: 1) discursos mítico-religioso e fatalista, 2) discurso patrimonialista-escravocrata, 3)
discurso extrativista-utilitarista da natureza, 4) discurso técnico-economicista. Vale ressaltar que
essa distribuição das formações discursivas é um recurso adotado com a finalidade de tornar a
exposição mais clara e didática; no entanto, como sabemos os discursos são atravessados por outros
e as formações discursivas se entrelaçam (FERNANDES, 2008, p. 39).
Deste modo, o presente artigo está organizado em três partes, a saber: parte I –
Introdutória: traz a contextualização do estudo; parte II – Analítica: descreve as análises do
funcionamento do discurso do combate à seca nos enunciados dos agricultores familiares de Bela
Conquista; e parte III – palavras finais, que traz algumas considerações sobre os resultados de
nossas análises.
Trabalhei carregando banguê mais as mulheres ali onde tem a matança onde o Zé Saldado
fez uma casa. A emergência era ali para cima, seu Valdo trabalhou lá também, carregando
aqueles banguês, era banguê, era lata... de tudo nós carregava. Eu não me lembro mais
quanto recebia, era uma cesta, esse negócio de farinha. Eta! Foi o pior trabalho que eu
achei, quando era de noite eu não aguentava de dor, mas eu ia... para não tirar meus filhos
da escola, fazia tudo.” (M. G./fevereiro de 2012/Bela Conquista).
O fragmento “Eu não me lembro mais quanto recebia, era uma cesta, esse negócio de
farinha” – remete aos sentidos disseminados na/pela letra-canção “Vozes da Seca” ( GONZAGA E
DANTAS,1953) citado por Morais ( 2010) na/da qual lemos/ouvimos: “Seu doutô/os nordestinos
têm muita gratidão/Pelo auxílio dos sulistas/Nessa seca do sertão”. Nessa relação, os termos entre
aspas significam o apelo dos empobrecidos cuja vulnerabilidade foi intensificada pela estiagem
prolongada, o que aumentou a clemência dos endinheirados aos governantes; além disso, ameniza o
sentido da exploração da mão de obra do sertanejo nos Estados do Sul. Esses efeitos de sentidos
estão alinhados com a FD do combate à seca na medida em que as cestas, a farinha significa o
assistencialismo e as medidas emergenciais dos governantes que atribuíam a responsabilidade pela
miserabilidade dos nordestinos ao flagelo da seca, de modo que a suas intervenções consistiam em
socorrer as vítimas de tal flagelo, enviando cestas, que se convertiam em assistencialismo, em
moeda de troca de favor/votos.
Naquele tempo o que existia para lidar com a seca era as famosas frentes de serviços. Era
para cavar os tanques, limpar as estradas e era isso que eles faziam com a gente, tinha cesta,
mas o valor da cesta era descontado no pagamento, era uma farinha e um feijão que não
cozinhava nunca. Então, quando acabava o mês, a gente recebia uma mixaria que já vinha
descontado a cesta por conta dos políticos” (J. N./ fevereiro de 2012/Bela Conquista).
Dialoga com os sentidos disseminados na música Vozes da Seca, nos enunciados: “Pois
doutô dos vinte estado/temo oito sem chovê.../Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cume/Dê
serviço o nosso povo”. O enunciado do agricultor A.N:
O que mudou? Os recursos do governo que não existiam e apareceu uma frente de serviços
e os homens trabalhavam, manualmente, para cavar um tanque. Era tudo manual, era um
trabalho humilhante, servia, como se diz, o tempero de feijão puro é a fome, mas a gente
passou muita humilhação. Naquele tempo o Brasil era pobre, a tecnologia que hoje existe
aqui não existia nem na aparência, vinha de outros países” (A. N./fevereiro de 2012/Bela
Conquista).
De acordo com Pompeu Sobrinho (1982, p.87) citado por Silva (2006, p.44), a solução
hidráulica, pela açudagem e a irrigação, era defendida como uma capacidade humana de modificar
as condições naturais inóspitas, ou seja, como solução direta dos problemas da seca pela
“[...]correção da natureza semi-árida do Nordeste”. Esse discurso foi historicamente, apropriado
pela indústria da seca, para causar uma impressão de responsabilidade social e impressionar pela
envergadura dos empreendimentos desafiadores, enquanto mantinham a maioria da população na
condição de dependência do carro-pipa, da cesta básica e dos favores. O que inviabilizou aquilo que
Ab’Saber (1999 apud CARVALHO, 2010, p. 104) chamou de “compacto feixe de atributos
climáticos, hidrológicos e ecológicos que conferem uma dinâmica particular à natureza no bioma,
Semiárido/Caatinga definido pelo ciclo do tempo seco e do tempo verde ou estação seca e estação
chuvosa”.
Retornando os enunciados dos agricultores acimas transcritos A.N no trecho: “Era tudo
manual, era um trabalho humilhante servia, como se diz, o tempero de feijão puro é a fome, mas a
gente passou muita humilhação”, que associa a humilhação dos trabalhadores à pobreza tecnológica
do Nordeste pois, explicita o efeito de sentido da dependência dos agricultores sertanejos em
relação aos Estados mais desenvolvidos. Em sintonia com o enunciado polígono das secas,
significava, no discurso oficial, “o Nordeste é região problema do Brasil, o lugar das terras secas, da
fome e da pobreza econômica e intelectual”. Textualizado na estrofe de Gonzaga e Dantas (1981):
“Seu doutô os nordestinos/Têm muita gratidão/Pelo auxílio dos sulistas/Nessa seca do sertão”.
Estrofe que traz à tona a destituição do Nordeste da posição de polo econômico em razão da crise
dos engenhos de açúcar na zona da mata que enfraqueceu o poder econômico dos coronéis do sertão
a partir do evento seca de 1877, quando pereceram cerca de 500 mil pessoas e o sistema produtivo
do Nordeste brasileiro ficou desestruturado.
E nos fragmentos dos enunciados de J. N: “Era para cavar os tanques, limpar as estradas
e era isso que eles faziam com a gente, tinha cesta , mas o valor da cesta era descontado no
pagamento, era uma farinha e um feijão que não cozinhava nunca”; e de A.N: “Naquele tempo, o
Brasil era pobre, a tecnologia que hoje existe aqui não existia nem na aparência, vinha de outros
países”. remetem aos discursos técnico-economicista e técnico-cientificista.
[...] foram construídos no Nordeste 291 quilômetros de estradas de ferro e mais 304
quilômetros estavam com o leito preparado para a colocação dos trilhos e outros 104
quilômetros em construção. As estradas de rodagem ganharam cerca de 500 quilômetros
pavimentados, mil quilômetros estavam em construção e havia aproximadamente 1200
quilômetros de caminhos carroçáveis. Foi levantada uma ampla rede telegráfica, os portos
foram reformados, construíam-se 2030 açudes e foram perfurados mais de uma centena de
poços.
Por sua vez, na perspectiva discursiva, na música Vozes da Seca de Gonzaga e Dantas
(1953): o fragmento “ O deputado do povo, bradou do parlamento nacional. Seu presidente! Esse
baião de Gonzaga e Zé Dantas, vale mais do que cem discursos”, dialoga com o discurso político
paternalista, remetendo ao discurso institucional do combate à seca.
Assim sendo, as paráfrases apontam para o que Menezes e Morais (2002, p. 63-64 apud
MATOS, 2012, p. 5) classificam como três grandes períodos de ações de intervenção
governamental no combate à seca. De acordo com Matos (2012, p. 5):
I) Dos anos 1870 aos anos 1940, época do coronelismo, em que as políticas públicas se
resumiam à estratégia de abastecimento de água do semiárido por meio de construção de
grandiosas obras de açudagem e infraestruturas. II)Dos anos 1950 aos anos 1970. época do
desenvolvimento planejado pelo enfoque tecnicista e cientificista, em que buscou-se o
aproveitamento racional dos recursos hídricos por meio de atividades diversas
desenvolvidas por agência como Codevasf (Comissão do Vale do São Francisco, criada em
1948), BNB (Banco do Nordeste, fundado em 1951), SUDENE (Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste, instituída em 1959) e GTDN (Grupo de Trabalho para o
Desenvolvimento do Nordeste, constituído em 1958). III)A partir dos anos 1970, quando
foi implantada uma série de programas de combate à seca [...] como Proterra (1971),
Pronordeste (1974), Projeto Sertanejo (1976), Proidro (1979) e Projeto Nordeste (1984) –
este incorporou o Polonordeste e se constituiu de três programas da área produtiva
(Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural, Programa de Apoio a Pequenos Negócios
não Agrícolas e programas de Irrigação) e três da área social (Programa de Ações Básicas
de Saúde no Meio Rural, Programa de Educação no Meio Rural e Programa de Saneamento
Básico Rural).
Nessa perspectiva, Silva (2006, p. 143) salienta a análise qualitativa feita por Celso
Furtado apontando a dependência econômica, cultural e política que se estabelece entre os países
centrais e periféricos advertindo que a dependência da base tecnológica não tardaria em se tornar
uma dominação econômica, subordinando o processo de formação de capital das economias
subdesenvolvidas.
Segundo Silva (2006, p. 215), a partir de então, Celso Furtado começa a enunciar um
discurso de mudança substancial no padrão civilizatório, que era hegemônico, concebendo o
desenvolvimento como um “Projeto Social”, como uma orientação política que possibilitasse a
transformação global da sociedade.
Assim, na linha desse discurso, cabe ao Estado providenciar as tecnologias de correção das
hostilidades ao crescimento econômico postas pela natureza ou as limitações ao crescimento desse
pela preservação ambiental. Esse discurso polarizador tende sempre a favorecer a produção e o
crescimento econômico em detrimento do equilíbrio ecológico a ponto de justificar, na atualidade, a
presença das commodities da cana-de-açúcar no bioma da Floresta Amazônica, em contraposição a
outros discursos, que atestam sua inapropriação. Segundo a Revista Defesa vegetal (2009, p. 17):
É, dessa forma, que a concepção de externalidade da natureza hostil regeu também o viés
cientificista do discurso do combate à seca a partir da leitura que, na equação
custos/benefícios/preservação/exploração da natureza, os benefícios da exploração justificariam os
prejuízos ao meio ambiente, por exemplo a degradação ambiental e a expulsão das populações das
áreas atingidas pelas barragens e pela açudagem. Desse modo, o parâmetro do equilíbrio ambiental
nas decisões da sociedade deve ser subordinado ao parâmetro das necessidades econômicas do
mercado capitalista e, assim, a concepção de externalidade vem impulsionando uma movência
discursiva no sentido da dessacralização da natureza à capitalização da mesma.
O capital com suas empresas transnacionais e seu governo imperial dos EUA, procurou dar
resposta ao problema: criou a chamada “REVOLUÇÃO VERDE”. Uma grande campanha
de propaganda para justificar a sociedade que bastava “MODERNIZAR” a agricultura, com
o uso intensivo de máquinas e fertilizantes químicos [...] aumentaria a produção de
alimentos no mundo e se acabaria a com a fome.
Nesse sentido, o trabalho da memória discursiva nos conduz ao que afirma Carvalho
(2010), isto é, à crença nas leis naturais e na capacidade da ciência de desvendá-las com vistas à
geração de valor de troca, o que estabelece os parâmetros de relação entre homem e natureza. A
ciência moderna se fundamenta nas regularidades objetivas, matematicamente descritíveis, capazes
de desvendar os segredos da natureza: “o objetivo da ciência passou a ser aquele conhecimento que
pode ser usado para dominar e controlar a natureza”. Como postulavam as concepções cartesianas,
“a natureza é uma máquina perfeita, governada por leis matemáticas exatas”. Essas concepções
forneceram as sanções para a manipulação e exploração científicas da natureza. Assim, o combate à
seca encontra ressonância no paradigma antropocêntrico da dominação da natureza, pois é com a
modernidade que se afirma a dominação humana. Nesse contexto, o ser humano é concebido “como
um ser especial, que dispõe da terra como herança”. Para Bartholo Júnior (1984, p. 75 apud Silva
2007, p. 474) a dessacralização da natureza atinge seu ápice nas sociedades modernas e torna
possível a “sua redução a um objeto de livre manipulação técnica, um reservatório de matéria e
energia disponível [...] a serviço da elevação progressiva do bem-estar material do homem”.
Para Capra (1999 citado por Silva, 2003), esse paradigma baseia-se nas seguintes crenças:
o método científico como única abordagem válida do conhecimento; a concepção do universo como
um sistema mecânico composto de unidades materiais elementares; a concepção da vida em
sociedade como uma luta competitiva pela existência, o que reafirma a crença na capacidade do
progresso como solução técnica aos problemas, consistindo, dessa forma, em um mecanismo de
domínio da natureza, da seca, bem como dos efeitos da seca.
A relação entre o que já foi dito com o que se está dizendo define a constituição do
sentido e a sua formulação. Orlandi (2010, p. 31) define o interdiscurso como “aquilo que fala
antes, em outro lugar, independentemente” e acrescenta que o “interdiscurso disponibiliza dizeres
que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada”. Dizeres esquecidos,
mas que fazem parte da memória discursiva do sujeito como enunciados latentes possíveis de
serem resgatados em qualquer situação de comunicação.
O conceito de memória discursiva que, às vezes, é empregado como sinônimo de
interdiscurso, mas que também se define como aquilo que, em face de um texto, vem estabelecer
“implícitos. A Memória Discursiva explica Camargo (2019) se estabelece pela relação entre
intradiscurso e interdiscurso, logo, essa dualidade relacional objetiva evocar um sentido de origem,
no qual a repetição dos discursos fortalece a sua presença, porém, outra possibilidade encontra-se na
memória fragmentada, que busca a construção do discurso pelo apagamento. Brandão
(1996)elucida que “o domínio discursivo da memória é uma formação discursiva de referência” e
seus efeitos podem ser de “lembranças, de redefinição, de transformação quanto ao esquecimento,
de ruptura, de negação do já-dito”. Já o domínio de atualidade é fruto do efeito de memória
retomado no presente, dessa maneira, discursos anteriores são retomados e reforçam discursos no
presente.
Sendo assim, o interdiscurso irrompe nos sentidos presentes nos enunciados dos
agricultores entrevistados em que o sujeito ocupa o lugar de locutor do posicionamento utilitarista
quando se reporta à natureza como estoque de recurso a ser explorado. Assim, observem-se os
seguintes enunciados:
Sobre os animais eu mesmo dei pindoba, sambambaia e mandacaru ao gado levantando
quando tava caída no chão morrendo de fome. Tinha vez que eu quando batia o machado
no mandacaru cheio de espinho eles não esperavam nem tirar os espinhos, se acabando de
fome. Então eu recortava mandacaru na Serra da Rebeca para o gado comer, era pindoba,
era sambambaia na seca de 76. Essa foi uma seca grande. Eu trabalhava ali com gado dando
pindoba e derrubando mandacaru. Quando eu derrubava não dava tempo nem de tirar os
espinhos, Vez de tá afastado um quilometro, quando eu batia o mandacaru eles chegavam
berrando. (Agricultor E. D - Entrevista, Bela Conquista fevereiro de 2012).
Os animais ainda é uma coisa que não mudou até hoje, no tempo da seca a gente usa muita
palha de licurizeiro, mancambira, queimava palmatória, queimava tudo para dá ração aos
bichos e continua hoje muita gente ainda usa. (Agricultor, J. N. - Entrevista, Bela
Conquista/Fevereiro/2012).
Eu trabalhava na fazenda Santa Helena, que era fazenda de Dr. Moura, e trabalhava
também na Pindoba, que era onde minha vó morava, a gente nunca deixou de trabalhar e
outra coisa que nós fazia quando meu pai ficava na roça trabalhando, e minha mãe
cuzinhando o feijão e nas outras coisas. A gente ia catar licori verde para cozinhar e fazer
os rosários, cozinhava, fazia rosário e vendia na rua, era um meio como a gente sobrevivia
[...] Então quando não chovia tinha que optar por outras atividades e outros meios de
sobrevivência ou ia fazer isso ou então morria de fome. [...] Além disso que nós fazia, meu
pai pescava aqui no açude do Coité que já pertencia a esta fazenda e era assim a gente
passava a noite, dormia no açude, meu pai também pegava peixe para a nossa
sobrevivência. (Agricultora C. G. - Entrevista, Bela Conquista, fevereiro de 2012).
Eu criava uns bichinhos e algumas cabeças de gado. Ave Maria! A gente era só sofrimento,
a gente tinha que derruba palha de licurizeiro, cortar aqueles mandacarus e tirar os
espinhos. E o gado para beber, os bichinhos tinham que andar uma légua ou duas. Tinha
vez que ainda tinha que fazer cacimbas, cavar aqueles buracos no chão, para ficar perto e os
bichos beber. (I. S. T. - Bela Conquista, fevereiro de 2012).
Água de lá de onde eu morava uma légua e meia. A gente saía três horas da manhã, para
pegar água nos carotes, aí a gente só pegava aquela água para beber, aí tinha umas
cacimbas salgadas onde as mulheres pegavam água para lavar as roupas. Porque não tinha
como ir lavar longe, outras vezes, iam lavar no Rio Grande. Lá de onde nós morava para o
Rio Grande, é lá depois do alto do São Gonçalo, que elas iam lavar, no Alto de Cima, elas
iam de jegue, iam de quinze em quinze dias lavar, para poder a gente manter a situação.
(Agricultor J. T. Entrevista - Bela Coquista/fevereiro de 2012.
Nessa família parafrástica, Orlandi (2010,) e ( 2009)o trabalho do interdiscurso nos conduz
aos sentidos da natureza como estoque de recursos cuja perspectiva discursiva encontra
ressonâncias na economia neoclássica que fundamentou a natureza geopolítica do espaço vital.
Tanto nos enunciados expostos acima, quanto nestes que seguem: A.N: “Mas para nós era nas
cacimbas que a gente pegava água para beber. Com referências à seca, era nas cacimbas, no rio.
Naquele tempo, não tinha outro jeito” e de A.N.T: “A água era pegada em barreiro para usar. Era
boa, era da minação”; J.T: “Água de lá de onde eu morava uma légua e meia”; I.S.T: “Tinha vez
que ainda tinha que fazer cacimbas, cavar aqueles buracos no chão, para ficar perto e os bichos
beber.”, percebemos remissões ao discurso do Semiárido como região hostil ou inóspita, palco
ressequido de uma vida sofrida e resignada como o significa a FD do combate à seca.
Simultaneamente, o conjunto de enunciados destacados acima explicita uma relação
discursiva agricultor/natureza com feições extrativista-utilitarista, pois é da natureza que eles, às
vezes, extraem a água doce das minações; outras vezes, água salobra das cacimbas; as ramas, palhas
e cactos, para alimentar os animais, retiram a matéria-prima para fazer artesanatos (cestos), preparar
alimentos (rosários de licuri).
Nesses enunciados, observamos a ocorrência dos esquecimentos nº 1 e nº 2. PÊCHEUX;
FUCHS, 1997, p. 168-9 apud MARTINS, 2004, p. 7). O esquecimento número nº 1 naturaliza as
mazelas sociais pelo discurso utilitarista da natureza hostil, que significa o campo como um símbolo
dessa hostilidade, isto é, da natureza desfavorável, lugar inóspito. Justificando assim as condições
de miserabilidade e pobreza socioeconômica e política, às quais são submetidas às populações
pobres e camponesas, para garantir o enriquecimento das minorias. Apagados discursivamente estão
à figura dos governantes e o aspecto político da seca. Tal esquecimento remete ao discurso
preconizado pela narrativa capitalista de natureza externalizada, que dicotomiza natureza e cultura.
Carvalho (2010, p. 122) e Porto Gonçalves (1990) existem duas vertentes de externalização: uma
vertente de que a natureza é harmoniosa e bondosa e outra da natureza hostil ao homem, lugar da
luta de todos contra todos.
Ambas as vertentes, segundo os autores, permeiam os sentidos da relação externalizada do
mundo ocidental com a natureza. Da vertente da natureza hostil, surge a necessidade de o Estado
estabelecer a lei e a ordem; enquanto que, na da natureza bondosa e harmoniosa, entende-se que os
homens são seus destruidores.
Para Carvalho(2010), a narrativa da natureza hostil se radica na mitologia criada em função
da submissão do homem aos mistérios da vida num estado mais primitivo, oriunda do oriente médio
que, tendo como interlocutores os textos sacros, chegou ao ocidente e foi recuperada pelos discursos
iluministas para atender às expectativas do sistema capitalista em formação. Nesse sentido,
Carvalho (2010, p. 123) afirma que:
Se o estio prolonga-se, se há falta d’água e o gado não tem na caatinga, o que comer, os
vaqueiros derrubam “ramas” das árvores, queimam os “espinhos” de certas cactáceas como
mandacaru, o facheiro e o xiquexique, do mesmo modo queimam a macambira, e dão ao
gado como alimentos.
Assim, restava às antigas elites, a reação por meio do capital intelectual, representado pela
nova geração de homens letrados, filhos dos antigos filhos dos “coronéis” através da reelaboração
discursiva da identidade regional, conforme Matos (2012, p. 16-17). Esse autor analisa que o
discurso sobre o Nordeste propagado pela literatura foi disseminado por dois grupos de autores que
ele distingue entre reacionários, os “filhos da elite regional”, “desterritorizada” que fazem apologia
a um passado romântico e glorioso, de ordem e harmonia para todos (do fausto da casa grade e da
“docilidade” da senzala, na paz e tranquilidade do império); e revolucionários, os que produziam
um nordeste ao avesso, denunciando a miséria e a injustiça social da região.
Parafraseando Albuquerque Jr. (2011, p. 47), podemos dizer que os primeiros dizem para
silenciar as verdadeiras relações de poder baseadas na opressão e na desigualdade, que constituíam
a ordem socioeconômica na região. Já os segundos, baseando-se nos relatos de Meneses e Morais e
Matos (2012, p. 16-17), avaliam que relacionam os relatos e narrativas históricas do acidente
climático a uma trama ficcional com intenção de denunciar os problemas econômicos do Nordeste,
o drama dos retirantes e a exploração do povo num sistema social injusto. Contudo, os
revolucionários ajudam os reacionários a consagrarem uma dada imagem, texto e discurso da região
que se impõem até hoje, como verdade; isto é, uma visibilidade e uma dizibilidade sobre o Nordeste
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 104-105 apud MATOS, 2012, p. 17).
Nesse contexto histórico-discursivo inventado e descaracterizado, as classes dominantes se
projetavam/eram projetadas como protetoras da região, da cultura e da identidade nordestinas, o
que, na nossa compreensão, faz parte de uma estratégia do dito para não dizer, ou seja, o discurso da
defesa da cultura e da identidade apaga a percepção da dominação política e social que se expressa
de maneira territorial. Para Albuquerque Jr. (2007, p. 104-105 apud MATOS, 2012, p. 17), “o
Nordeste nasce como o último território de domínio que sobrou para as elites agrárias do Norte que
antes dominavam o espaço nacional e agora se viam arrincoadas e reduzidas à dominação sob
apenas uma área do país.”
O discurso da seca como flagelo-catástrofe passou a ser divulgado nacionalmente como um
grave problema, tornando-se um argumento político quase irrefutável para a concessão de recursos,
obras e outras benesses que seriam monopolizadas pelas elites dominantes locais. Por isso,
concordamos com Matos (2012, p. 11) quando afirma que, nessa perspectiva discursiva, à seca,
interpretada como um “fato social total” era atribuído um sentido de igualdade absoluta que
atingiria a todos, indistinta e inexoravelmente. Ou seja: “como um castigo descido do céu ou subido
do inferno que se punha como uma interseção entre ricos e pobres”.
Apesar de enunciado por instituições políticas, religiosas, jurídicas e tecnológicas, o
funcionamento de tal discurso ao pôr no mesmo nível proprietários e produtores se configuram
discursivamente explicita o que Orlandi (2010, p. 83) chama de “o silêncio local, que é a censura,
aquilo que é proibido dizer numa certa conjuntura (é o que faz com que o sujeito não diga o que
poderia dizer)”.
Em outras palavras, o discurso sobre a seca como fato social total silencia as distâncias
sociais; concretas entre grandes proprietários, comerciantes e pequenos produtores: agricultores e
criadores e o fato de que os efeitos das estiagens não afetavam igualmente aos primeiros e aos
segundos como evidenciam Vieira Jr. (2003, p.6 apud MATOS, 2010, p.13) ao afirmar que os
primeiros possuíam recursos suficientes para resistir à seca sem a vergonha da miséria, além de se
aproveitarem da fragilidade das classes oprimidas para se apoderarem do seu trabalho e dos seus
bens. E também Duarte (20011, p. 436 apud MATOS, 2010, p.13), quando nos diz que os
“primeiros (os grandes agricultores), dispondo de mais sementes, plantaram proporcionalmente
mais”.
Dessa forma, o discurso da determinação divina e do abandono de Deus ao homem, que
apresenta a seca como um castigo de Deus ao homem, enunciado pelas elites políticas e
eclesiásticas, justificava ser a seca uma causa legítima da pobreza da região e projetava o combate à
seca como ato de generosidade dos dirigentes políticos e algumas oligarquias que resguardavam a
promessa de solução hidráulica, como um símbolo da redenção do Nordeste. A disseminação desse
discurso ampliou o efeito de sentido da seca como sinônimo da pobreza, privilegiada na música e na
literatura.
Para combater a seca só Deus dando chuva para trabalhar. Para combater a seca só pode
trabalhar plantar de tudo, milho feijão, abóbora, banana, capim para os bichos, aí combate e
tudo na vida. Aí Deus dando chuva, aí tudo vai para frente. Mas com o sol, com a seca nada
vai a frente, só faz é piorar (E. D.-Entrevista, Bela Conquista/Fevereiro2012).
Eu acho que é conviver com a seca, porque a seca para nós combater não tem jeito, sempre
vai ter aqui no nordeste. Combater com a seca só com Jesus Cristo quando manda chuva do
céu, que aí combate tudo, mas nós não temos este poder para isso (Agricultora I. S.-
Entrevista, Bela Conquista/Fevereiro 2012).
Eu acho que é combater, porque conviver com a seca, aí a crise aumenta. Eu acho que a
pessoa passa muita privação, bicho morre de fome e a gente caçando jeito de acabar como o
seco, aí a alimentação aumenta. Para combater a seca, Deus dando chuva para trabalhar.
Para combater à seca só pode trabalhar plantar de tudo, milho feijão, abóbora, banana,
capim para os bichos, aí combate e tudo na vida. Aí Deus dando chuva, aí tudo vai para
frente (Agricultor E. D.-Entrevista, Fevereiro de 2012/Bela Conquista).
Mas eu tenho que fazer por onde conviver, principalmente no semiárido que a gente vive
né! Eu acho que uma das coisas que mais a gente aprendeu é a gente participar dos
movimentos sociais, que faz a gente trocar muitas experiências... Para que não chegue o
momento de você dizer são os bichinhos que estão passando sede a não ser uma
determinação de Deus porque as aguadas feitas, subterrâneas, ou do chão mesmo, chega um
período que tem assim a seca e a gente tá vendo esta represa do porte desta que nós temos
aqui, tá seca aí quase secando. Então, isso é uma coisa que pertence a Deus. Depois que a
gente veio para cá, antes de vim, a gente já participava de alguns encontros, mas a gente
veio fazer uma participação mesmo da convivência depois que a gente já tava aqui.
(Agricultor J. T.-Entrevista, Bela Conquista/Fevereiro2012).
Eu sei lá, às vezes eu fico dividida assim, porque combater ninguém nunca combate, só
Deus é que com o passar do tempo, porque quando não tem a chuva, a gente vive no
semiárido seco, aí quando vem a chuva combate um pouco porque chega a água para todo
mundo (Agricultor J.O. -Entrevista, Bela Conquista/Fevereiro2012).
Eu acho que a gente tem que conviver como Deus é possível (Agricultor V. F.-Entrevista,
Bela Conquista/Fevereiro2012).
O nosso município é semiárido, não adianta a gente pode ter vários reservatórios, mas
quando chega esse tempo todo mundo sofre com a seca (Agricultura C. G.-Entrevista, Bela
Conquista/Fevereiro2012).
É agora mesmo pelo mês de dezembro na véspera no dia de Santa Luzia, deu uma chuvinha
teve lugar que encheu os tanques teve lugar que nem água fez né? Então, a chuva vem
sendo assim é a seca verde chamada (Agricultura J. T.-Entrevista, Bela
Conquista/Fevereiro2012).
No imaginário popular ficou a imagem de que a chuva é um dom de Deus. A Ele e aos
santos é que se pede chuva. Quando não chove, é também por vontade de Deus.
Normalmente, esse “chover ou não chover” era relacionado aos pecados do povo. As
procissões ao redor das lagoas para pedir chuva e o “seqüestro dos santos” são práticas que
revelam o modo popular de compreender a natureza. Essa compreensão está de tal forma
enraizada no inconsciente religioso do povo que, ainda hoje, muitas pessoas precisam ser
convencidas de que construir uma cisterna não é tentar manipular a vontade divina. Na
prática educativa para a convivência com o Semiárido, essa experiência se tornou tão
presente que organizações não governamentais (ONGs) tiveram que incluir reflexões
bíblicas na formação de seus agentes de campo, para facilitar o diálogo com o povo,
enfatizando outro modo de compreender a relação de Deus e da pessoa humana com a
natureza.
uma vez apresentada como catástrofe, a partir dela as retóricas de fatalidade climática,
passaram a direcionar os projetos e programas de desenvolvimento para o Semiárido.
“Emerge um sentido de se conhecer e dominar a natureza, quando a cada “grande” seca,
surgia uma nova orientação para as intervenções do Estado sobre esse território,
reordenando-o segundo planos de desenvolvimento regionais, com ênfase nas ações de
correção hídrica denominada de combate à seca.
PALAVRAS FINAIS
8
Sementes crioulas são sementes nativas ou que não sofreram modificações genéticas.
O discurso cientificista serviu para produzir conhecimento sobre a região semiárida do
Nordeste a ponto de demonstrar a regularidade cíclica do fenômeno climático que inferiu o
deslizamento do sentido de polígono das secas para significar o semiárido – meio seco –, e não
terra seca. Concluindo, com Guimarães Duque, Celso Furtado, dentre outros estudiosos, que não é
possível combatê-la e que, com tecnologia, é possível produzir no Semiárido. Todavia, pronunciado
a favor das novas oligarquias, o discurso cientificista não serviu significativamente aos agricultores
familiares, que continuaram dependentes da extração degradativa da caatinga, cada vez mais
escassos e próximos da extinção para alimentar os animais nos períodos de estiagem e a depender
dos auxílios governamentais.
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