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A INTERDISCURSIVIDADE CONSTITUTIVA DO DISCURSO DO COMBATE À SECA

NOS ENUNCIADOS DOS AGRICULTORES FAMILIARES DE BELA CONQUISTA,


ITIÙBA, BAHIA

Edineide da Silva Ferreira

Pedagoga, Especialista em Desenvolvimento Sustentável no Semiárido com Ênfase em Recursos


Hídricos pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano – IF Baiano, Campus
Senhor do Bonfim, Bahia, Brasil. E-mail: edineidecat@gmail.com
link de cadastro no ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9702-4513

RESUMO
Neste artigo analisamos, por meio da paráfrase, da metáfora e da polissemia, a constituição
interdiscursiva do discurso do combate à seca nos enunciados dos agricultores familiares do
Assentamento Bela Conquista. Para tanto, adotamos os procedimentos de análise postulados por
Orlandi (2010), observando-se as etapas procedimentais da passagem da Superfície Linguística
(texto) para o discurso, a passagem do objeto discursivo (formação discursiva) para o processo
discursivo e a passagem do processo discursivo para a formação ideológica. O corpus é formado
por quinze enunciados sobre o discurso em questão, coletados de agricultores familiares do
Assentamento Bela Conquista, situado no município de Itiúba – BA, em situação de entrevista
semiestruturada. Como resultados de nossas análises concluímos: 1) que a interdiscursividade do
discurso do combate à seca se constitui na relação com as formações discursivas mítico-religiosa
fatalista, patrimonialista-escravocrata, extrativista-utilitarista da natureza e técnico-economicista e
2) o discurso do combate à seca e o da convivência com a semiaridez, a partir do surgimento
histórico deste último, se interconstituem, isto é, são marcados um pelo outro.

Palavras-chave: Discurso , Interdiscursividade, Agricultores Familiares, Combate à seca

ABSTRACT
In this paper, we aim to analyze, through paraphrase, metaphor and polysemy, the interdiscursive
constitution of the discourse of combating droughts in the utterances by family farmers from Bela
Conquista Settlement. To achieve this aim, we adopted the analysis procedures postulated by
Orlandi (2010), observing the procedural steps of the passage from the Linguistic Surface (text) to
the discourse, the passage from the discursive object (discursive formation) to the discursive
process and the passage from the discursive process to the ideological formation. The corpus is
formed by a set of utterances about the discourse of combating the droughts, collected from family
farmers from Bela Conquista Settlement, located in the municipality of Itiúba – BA, in a situation of
semi-structured interview. As a result of our analysis, we can affirm: 1) that the interdiscursivity of
the discourse of combating drought is constituted in the relation with the fatalistic mythical-
religious, patrimonialist-slavery, extractive-utilitarian nature and technical-economicist discursive
formations and 2) the discourse of combating drought and that of coexistence with semiaridity,
from its historical, appearance, are interconstituted, that is, they are marked by each other.
Keywords: Discourse, Interdiscursivity, Family Farmers of combating drought
INTRODUÇÃO

Considerando que os discursos são uma conjugação necessária da língua com a história
pelos efeitos ideológicos, produzindo a impressão de realidade(ORLANDI, 2007), a crise
ambiental, econômica e política que afeta o mundo contemporâneo se configura como condição de
produção de discursos sobre a situação ambiental dos homens e mulheres que vivem nessa
conjuntura socioambiental. Há mais de 40 anos, esses discursos de preservação ambiental, da
situação ambiental do planeta e da condição da vida na Terra, propagam-se e ganham corpo. No
âmbito nacional, mais especificamente no Nordeste, além desses discursos de alcance planetário, há
aqueles que estão vinculados ao famigerado fenômeno da seca, dos quais podemos destacar dois
discursos que interpretam o fenômeno seca/desenvolvimento: o discurso do combate à seca e o da
convivência com a semiariadez. Discursos que, em formação, dialogam com vários outros.
Nesse contexto, o presente artigo apresenta análises feitas durante um trabalho 1 que teve
como objeto de estudo os discursos do combate à seca e da convivência com a semiaridez na
enunciação dos agricultores familiares do Assentamento Bela Conquista. No recorte que ora
fazemos, daremos ênfase ao discurso do Combate à seca2, sem, contudo, desconsiderar que, através
de movimentos interdiscursivos, o discurso da convivência constitui o do combate pelo viés da
contraposição.
Tendo como objetivos: 1) analisar, por meio da paráfrase, da metáfora e da polissemia, a
constituição interdiscursiva do discurso do combate à seca nos enunciados dos agricultores
familiares do Assentamento Bela Conquista; 2) caracterizar os movimentos do interdiscurso que
atravessa o discurso do combate à seca e; 3) descrever o funcionamento desse discurso ao produzir
efeitos de sentido através da paráfrase, da metáfora e da polissemia.
Temos como principal referência teórico-metodológica os estudos de Orlandi (1978),
(1996), (1999), (2008), (2009) e (2010) embasados nas concepções de Michel Pêcheux ((1975),
1991), (1997c), fundador da Análise de Discurso de linha francesa. No âmbito metodológico, para
atingir os objetivos propostos, optamos pela pesquisa qualitativa na perspectiva da Análise do
Discurso de Linha Francesa de cujo aporte teórico-metodológico adotamos procedimentos de
análise postulados por Orlandi (2010), observando-se as etapas procedimentais da passagem da
Superfície Linguística (texto) para o discurso, a passagem do objeto discursivo (formação
discursiva) para o processo discursivo e a passagem do processo discursivo para a formação
ideológica. Isso será feito considerando-se o pressuposto de Orlandi (2010, p. 64), segundo o qual

1
Referimo-nos à monografia de Ferreira (2013), desenvolvida no âmbito da Especialização em Desenvolvimento
Sustentável no Semiárido com Ênfase em Recursos Hídricos promovida pelo IF Baiano em parceria com o CNPq.
2
Este artigo não enaltece o discurso do combate à seca, busca tão somente analisá-lo e descrevê-lo tal qual se explicita.
há uma “[...] necessidade de que a teoria intervenha a todo o momento para reger a relação do
analista com o seu objeto, com os sentidos, com ele mesmo, com a interpretação”.
Em consonância com Orlandi (2010), entendemos os processos parafrásticos, de metáfora
e da polissemia como essencialmente heterogêneos, o que levou nossa análise a considerar a
heterogeneidade do discurso do combate à seca e a caracterizá-lo de acordo com as respectivas
formações discursivas, cujas relações o constitui.
Considerando a afirmação de Pêcheux (1975 apud ORLANDI, 2010, p. 17) de que não há
discurso sem sujeito, não há sujeito sem ideologia, de que o indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia, pois, é assim que a língua faz sentido. Dessa forma, é pertinente esclarecer quem são
os agricultores familiares, sujeitos deste estudo, a partir do seu espaço de produção da vida, o
Assentamento Bela Conquista, lócus da coleta dos enunciados que compuseram o corpus desta
pesquisa.
Entre 2012 e 2013, quando da realização do estudo em questão, a Associação dos
Assentados da Bela Conquista informou que, no assentamento, havia 185 pessoas distribuídas em
52 famílias (das quais, 36 eram posseiras e 16 não posseiras). Os Agricultores Familiares do
Assentamento Bela Conquista são um grupo de famílias de agricultores e agricultoras Sem-terra3,
que, motivados pela problematização da própria situação social existente e pela leitura de mundo
que aprenderam nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), 4 ocuparam, no dia primeiro de agosto
de 1989, as dependências da ex-fazenda Experimental localizada no município de Itiúba – Bahia.
Essa área, há doze anos não cumpria a função social de terra produtiva, uma vez que a
experimentação agropecuária, realizada pelo governo estadual através da Empresa de Pesquisa
Agropecuária da Bahia – EPABA e da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia –
EMATERBA5, não tivera êxito, e a área estava se transformando em pasto para o gado bovino de
alguns fazendeiros da região.
Mesmo sendo área de terras devolutas, aquelas famílias sofreram ação de despejo logo nas
primeiras 48 horas. Apoiadas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais e pela Comissão Pastoral da
Terra, dirigiram-se à capital, ocuparam o órgão responsável pela regulamentação fundiária e de lá só

3
Essa autodesignação dos(as) agricultores(as) aponta para o sujeito discursivo, pois, embora empiricamente o indivíduo
esteja assentado na terra, discursivamente se filia a uma identidade ideológica que, de acordo com o Dossiê MST escola
documentos e estudos de 1990 a 2001 (2005, p. 206, supressão nossa), o sem-terra, “ao decidir fazer a luta pela terra e a
luta pela reforma agrária, decide sair de um mundo de isolamento e gerado pela exclusão social e passa a fazer parte de
uma coletividade [...]conquista uma identidade Sem-Terra.”
4
Informações obtidas pelo relato oral do assentado e ex-presidente da Associação dos Assentados da Fazenda Bela
Conquista – José Nelson Bispo.
5
A Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia – EMATERBA foi fundida com a Empresa de Pesquisa
Agropecuária da Bahia – EPABA no ano de 1991 para dar origem à Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola –
EBDA, que, em 2015, foi transformada em Superintendência Baiana de Assistência Técnica e de Extensão Rural -BAHIATER,
(ASSABER ,2015,oline).
6
Extraído do documento do Intercâmbio no Semiárido baiano Territorialidade e Desenvolvimento.Carítas Brasileira.
(DOCPLAYER, 2005,online).
saíram com a autorização de permanecer na terra outorgada pelo então governador da Bahia, Nilo
Coelho. Na área, foi instituído o sistema de produção-ocupação 6. Em uma parte do terreno (cerca de
60 hectares (ha), foram desenvolvidas, de forma coletiva, a horticultura e a fruticultura; e, numa
outra área, de cerca de 18 ha, foram criados bovinos e ovinos de forma semiextensiva. Nascia,
assim, o Assentamento Bela Conquista.
Constituímos um corpus, formado por quinze enunciados sobre o discurso em questão
coletados de seis agricultoras e doze agricultores familiares do Assentamento Bela Conquista, em
situação de entrevista semiestruturada. As entrevistas foram gravadas na casa de cada um/a dos
agricultores/as com uma câmara fotografia pela própria pesquisadora e posteriormente transcritas.
Também compôs o corpus um arquivo composto por um conjunto de textos que tratam dos temas
convivência com a semiaridez e combate à seca, da invenção do nordeste, fragmentos de textos
bíblicos e de músicas com a temática da seca, da reforma agrária, do Sertão entre outros como
Instituto de Obras Contra as Secas (IOCS), Instituto Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS),
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), tendo em vista o recorte temporal e situacional do
sujeito antes de 1980 (antes de ser assentado) e depois de 1980 (depois de assentado).
Em seguida, observando-se a etapa procedimental da passagem da Superfície Linguística
(texto) para o discurso, selecionamos os enunciados mais representativos das filiações ideológicas
de cada uma das formações discursivas em questão e distribuímos em dois grupos: o grupo dos
enunciados que consideram que o adequado para lidar com a seca é combatê-la (grupo do combate,
1) e outro grupo, o dos enunciados que consideram que o adequado para lidar com a questão da seca
é conviver com a semiaridez (grupo da convivência, grupo 2).
Prosseguimos nossa análise pondo o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em
um lugar com o que é dito de outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro
Orlandi,(2010). Como propõe Orlandi (2010, p.59), procuramos ouvir nos enunciados dos
agricultores de Bela Conquista, o dito e o não dito que, mesmo estando no âmbito do não dito
significa mais quando posto na relação das formações discursivas que atravessam os discursos do
combate à seca e da convivência com a semiaridez e, assim, significando-se, participam também
como elementos constituintes da interdiscursividade própria desses dois discursos.
Após esse passo, colocamos em diálogo o nosso corpus de enunciados dos agricultores
familiares e o arquivo. Tomando deles as formulações de sentidos que se repetem e a metáfora,
identificamos o trabalho da memória discursiva Brandão,(1993, p. 76-77) e procuramos descrever
como os movimentos dos interdiscursos significam e nos auxiliam na descrição dos funcionamentos
6
discursivos dos discursos do combate à seca e da convivência com a semiaridez. Posteriormente,
como compreendemos que a exterioridade é elemento constitutivo do discurso (ORLANDI, 1996
[2007], p. 38 apud PEREIRA, 2010, p. 24; COSTA, 2005, p. 20), e que “as condições de produção
de um discurso estão inscritas em sua materialidade linguística”, nossos gestos de análise foram,
assim, constituindo-se: da leitura dos enunciados dos agricultores de Bela Conquista e do
referencial teórico da Análise do Discurso francesa e da relação, do diálogo desses enunciados e
desses discursos com outros enunciados filiados às formações discursivas do combate à seca e da
convivência com a semiaridez e que tem ressonância no conjunto dos textos que compõem o já
citado arquivo.
A partir do eixo intradiscursivo, descrevemos como as relações entre as formações
discursivas e os interdiscursos constitutivos do discurso do combate à seca se movem por meio de
processos discursivos como a paráfrase, a metáfora e a polissemia. Podemos afirmar que a
interdiscursividade do discurso do combate à seca se constitui na relação com as formações
discursivas: 1) discursos mítico-religioso e fatalista, 2) discurso patrimonialista-escravocrata, 3)
discurso extrativista-utilitarista da natureza, 4) discurso técnico-economicista. Vale ressaltar que
essa distribuição das formações discursivas é um recurso adotado com a finalidade de tornar a
exposição mais clara e didática; no entanto, como sabemos os discursos são atravessados por outros
e as formações discursivas se entrelaçam (FERNANDES, 2008, p. 39).
Deste modo, o presente artigo está organizado em três partes, a saber: parte I –
Introdutória: traz a contextualização do estudo; parte II – Analítica: descreve as análises do
funcionamento do discurso do combate à seca nos enunciados dos agricultores familiares de Bela
Conquista; e parte III – palavras finais, que traz algumas considerações sobre os resultados de
nossas análises.

2 A INTERDISCURSIVIDADE CONSTITUTIVA DO DISCURSO DO COMBATE À SECA


NA ENUNCIAÇÃO DOS AGRICULTORES FAMILIARES DE BELA CONQUISTA

Embora compreendamos que, na enunciação dos agricultores familiares de Bela Conquista,


o discurso do combate à seca se constitui na interdiscursividade e que, nela, as formações
discursivas se entrelaçam o tempo todo, neste artigo, para fins didáticos, procuramos demonstrar a
relação de um discurso com os outros discursos, ou seja, como as formações discursivas. Nessa
perspectiva, segundo Brandão (2006, p.107):
Para Maingueneau, a interdiscursividade tem um lugar privilegiado no estudo do discurso
ao tomar: um lugar privilegiado: ao tomar o interdiscurso como objeto, procura-se
apreender não uma formação discursiva, mas a interação entre formações discursivas
diferentes. Neste sentido, dizer que a interdiscursividade é constitutivo de todo discurso é
dizer que todo discurso nasce de um trabalho sobre os outros discursos.
Vale salientar que o posicionamento do discurso do combate à seca tem sido concebido
como os efeitos de sentidos que significam o enunciado seca como uma anomalia climática e
fatalística, como uma catástrofe natural e/ou vontade divina, para justificar a situação de pobreza
socioeconômica das populações e de subdesenvolvimento da região semiárida brasileira, ou que
interpreta o termo seca como obstáculo à viabilidade do semiárido imposta exclusivamente pela
hostilidade da natureza que deve ser combatida pela tecnologia.

Nesse sentido, os recursos da paráfrase e da polissemia nos permitem ler no enunciado


“tinha cesta, mas o valor da cesta era descontado no pagamento, era uma farinha e um feijão” o
auxílio aos flagelados da seca através de alimentos distribuídos ou usados como pagamento pelo
trabalho na frente de emergência. Como uma paráfrase do enunciado “socorro às vítimas da fome
das secas prolongadas” significado na distribuição de alimentos (feijão, farinha e milho) para as
vítimas da fome, como medidas governamentais em resposta aos insistentes pedidos das províncias,
com relatos trágicos de miséria e morte no sertão, após o período colonial.

Dentro desse contexto, o enunciado da agricultora M.G7:

Trabalhei carregando banguê mais as mulheres ali onde tem a matança onde o Zé Saldado
fez uma casa. A emergência era ali para cima, seu Valdo trabalhou lá também, carregando
aqueles banguês, era banguê, era lata... de tudo nós carregava. Eu não me lembro mais
quanto recebia, era uma cesta, esse negócio de farinha. Eta! Foi o pior trabalho que eu
achei, quando era de noite eu não aguentava de dor, mas eu ia... para não tirar meus filhos
da escola, fazia tudo.” (M. G./fevereiro de 2012/Bela Conquista).

O fragmento “Eu não me lembro mais quanto recebia, era uma cesta, esse negócio de
farinha” – remete aos sentidos disseminados na/pela letra-canção “Vozes da Seca” ( GONZAGA E
DANTAS,1953) citado por Morais ( 2010) na/da qual lemos/ouvimos: “Seu doutô/os nordestinos
têm muita gratidão/Pelo auxílio dos sulistas/Nessa seca do sertão”. Nessa relação, os termos entre
aspas significam o apelo dos empobrecidos cuja vulnerabilidade foi intensificada pela estiagem
prolongada, o que aumentou a clemência dos endinheirados aos governantes; além disso, ameniza o
sentido da exploração da mão de obra do sertanejo nos Estados do Sul. Esses efeitos de sentidos
estão alinhados com a FD do combate à seca na medida em que as cestas, a farinha significa o
assistencialismo e as medidas emergenciais dos governantes que atribuíam a responsabilidade pela
miserabilidade dos nordestinos ao flagelo da seca, de modo que a suas intervenções consistiam em
socorrer as vítimas de tal flagelo, enviando cestas, que se convertiam em assistencialismo, em
moeda de troca de favor/votos.

O substantivo cesta , designava também o auxílio dos sulistas em resposta ao sentimento


de comoção nacional despertado pelos apelos midiáticos nos períodos de grandes estiagens, como
7
Neste artigo os nomes dos entrevistados foram substituídos pelas iniciais dos verdadeiros prenomes
e sobrenomes para evitar expor os entrevistados a possíveis retaliações por parte dos fazendeiros contrários
à reforma agrária.
aparece textualizado no fragmento “ Nos anos 53 e 54 houve uma seca da molesta o Brasil ficou
cheio de arapuca, ajuda teu irmão, uma esmola pro flagelado nordestino, qualquer coisa serve,
dinheiro, roupa véia, sapato veio, tudo serve [...]”, textualizado na Canção vozes da Seca de
Gonzaga e Dantas que aparece no LP Gonzagão e Gonzaguinha, A Vida do Viajante (Álbum
duplo), EMI - Odeon/RCA, 1981, (MORAIS,p.11,2010).

Também, remete aos argumentos governamentais empregados para instituir as frentes


emergenciais de serviço (intervenções governamentais) que estão, enquanto discurso alinhado à FD
do combate à seca o enunciado de J. N:

Naquele tempo o que existia para lidar com a seca era as famosas frentes de serviços. Era
para cavar os tanques, limpar as estradas e era isso que eles faziam com a gente, tinha cesta,
mas o valor da cesta era descontado no pagamento, era uma farinha e um feijão que não
cozinhava nunca. Então, quando acabava o mês, a gente recebia uma mixaria que já vinha
descontado a cesta por conta dos políticos” (J. N./ fevereiro de 2012/Bela Conquista).

Dialoga com os sentidos disseminados na música Vozes da Seca, nos enunciados: “Pois
doutô dos vinte estado/temo oito sem chovê.../Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cume/Dê
serviço o nosso povo”. O enunciado do agricultor A.N:

O que mudou? Os recursos do governo que não existiam e apareceu uma frente de serviços
e os homens trabalhavam, manualmente, para cavar um tanque. Era tudo manual, era um
trabalho humilhante, servia, como se diz, o tempero de feijão puro é a fome, mas a gente
passou muita humilhação. Naquele tempo o Brasil era pobre, a tecnologia que hoje existe
aqui não existia nem na aparência, vinha de outros países” (A. N./fevereiro de 2012/Bela
Conquista).

Nessa perspectiva da análise do discurso através do trabalho da memória discursiva, os


termos “o tempero do feijão puro é a fome” funcionam como uma paráfrase da quase metade do
Brasil está sem comer. Na FD do combate à seca é atribuída ao fenômeno climático seca a
responsabilidade pela condição humilhante e degradante dos nordestinos/sertanejos empobrecidos e
famintos. E o enunciado “era um trabalho humilhante” remete às frentes de serviços emergenciais
um dos componentes do discurso da indústria da seca, textualizado nos termos: “E encha os rios de
barrage/Dê comida a preço bom/Não esqueça a açudage [...]”. Esses enunciados indicam para uma
solução hidráulica para a falta de chuvas na região Nordeste/semiárida, que passava pela construção
de grandes barragens, proposta em formulações do discurso do combate à seca, enunciadas
oficialmente na construção “obras do combate à seca”.

De acordo com Pompeu Sobrinho (1982, p.87) citado por Silva (2006, p.44), a solução
hidráulica, pela açudagem e a irrigação, era defendida como uma capacidade humana de modificar
as condições naturais inóspitas, ou seja, como solução direta dos problemas da seca pela
“[...]correção da natureza semi-árida do Nordeste”. Esse discurso foi historicamente, apropriado
pela indústria da seca, para causar uma impressão de responsabilidade social e impressionar pela
envergadura dos empreendimentos desafiadores, enquanto mantinham a maioria da população na
condição de dependência do carro-pipa, da cesta básica e dos favores. O que inviabilizou aquilo que
Ab’Saber (1999 apud CARVALHO, 2010, p. 104) chamou de “compacto feixe de atributos
climáticos, hidrológicos e ecológicos que conferem uma dinâmica particular à natureza no bioma,
Semiárido/Caatinga definido pelo ciclo do tempo seco e do tempo verde ou estação seca e estação
chuvosa”.

Retornando os enunciados dos agricultores acimas transcritos A.N no trecho: “Era tudo
manual, era um trabalho humilhante servia, como se diz, o tempero de feijão puro é a fome, mas a
gente passou muita humilhação”, que associa a humilhação dos trabalhadores à pobreza tecnológica
do Nordeste pois, explicita o efeito de sentido da dependência dos agricultores sertanejos em
relação aos Estados mais desenvolvidos. Em sintonia com o enunciado polígono das secas,
significava, no discurso oficial, “o Nordeste é região problema do Brasil, o lugar das terras secas, da
fome e da pobreza econômica e intelectual”. Textualizado na estrofe de Gonzaga e Dantas (1981):
“Seu doutô os nordestinos/Têm muita gratidão/Pelo auxílio dos sulistas/Nessa seca do sertão”.
Estrofe que traz à tona a destituição do Nordeste da posição de polo econômico em razão da crise
dos engenhos de açúcar na zona da mata que enfraqueceu o poder econômico dos coronéis do sertão
a partir do evento seca de 1877, quando pereceram cerca de 500 mil pessoas e o sistema produtivo
do Nordeste brasileiro ficou desestruturado.

E nos fragmentos dos enunciados de J. N: “Era para cavar os tanques, limpar as estradas
e era isso que eles faziam com a gente, tinha cesta , mas o valor da cesta era descontado no
pagamento, era uma farinha e um feijão que não cozinhava nunca”; e de A.N: “Naquele tempo, o
Brasil era pobre, a tecnologia que hoje existe aqui não existia nem na aparência, vinha de outros
países”. remetem aos discursos técnico-economicista e técnico-cientificista.

2.1 DISCURSO TÉCNICO-ECONOMICISTA

Os enunciados da família parafrástica expostos acima explicitam as medidas emergenciais


do combate à seca significada no fragmento de J.N: “Era para cavar os tanques, abrir as estradas”
remetendo ao discurso tecnicista. Nessa perspectiva discursiva, o termo seca significava, na relação
com o discurso técnico-cientificista, uma anomalia meteorológica, provocada pela natureza hostil e
como uma justificativa técnico-científica das intervenções às ações imediatistas e assistencialistas
de seus efeitos sobre as populações, especialmente as rurais, que devia combater os efeitos com
obras; uma vez que, sem chuva, não havia pasto nem água para o gado, fonte geradora de renda, e
sem estradas não havia como escoar a produção quando chovesse. Esses sentidos foram
textualizados pelo historiador Villa (2000, p. 133) citado por Silva (2006, p. 49):

[...] foram construídos no Nordeste 291 quilômetros de estradas de ferro e mais 304
quilômetros estavam com o leito preparado para a colocação dos trilhos e outros 104
quilômetros em construção. As estradas de rodagem ganharam cerca de 500 quilômetros
pavimentados, mil quilômetros estavam em construção e havia aproximadamente 1200
quilômetros de caminhos carroçáveis. Foi levantada uma ampla rede telegráfica, os portos
foram reformados, construíam-se 2030 açudes e foram perfurados mais de uma centena de
poços.

Por sua vez, na perspectiva discursiva, na música Vozes da Seca de Gonzaga e Dantas
(1953): o fragmento “ O deputado do povo, bradou do parlamento nacional. Seu presidente! Esse
baião de Gonzaga e Zé Dantas, vale mais do que cem discursos”, dialoga com o discurso político
paternalista, remetendo ao discurso institucional do combate à seca.

O termo seca no cenário discursivo técnico-economicista, figura na trama discursiva como


um grande obstáculo ao desenvolvimento imposto pela hostilidade da natureza que deve ser
combatido com grandes obras conforme Gonzaga e Dantas solicitam ao doutor – “Não esqueça a
açudage”. Tal fragmento replica o discurso de que a solução para a seca no sertão é a construção de
grandes obras, que é atualizado no discurso institucional da transposição do Rio São Francisco ou
Integração de Bacias, enunciado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, explicitado no efeito de
sentido como “redenção para o problema da falta de água no Nordeste”, funciona como uma
paráfrase dos discursos da indústria da seca. Discursos esses, que se apoiavam na boa impressão
que a grande construção causada pelo tamanho, para desmobilizar a população que sofria com a
estiagem e mantê-la na dependência do carro-pipa que trazia água e levava votos, como afirmam
Morais (2010) e Baptista e Campos (2011).

No discurso governamental oficial, a solução hidráulica é significada nas grandes obras


propostas pelos governantes como apontam Santos, Schistek e Oberhofer (2007, p. 22), ao
apresentarem a síntese das propostas dos governantes brasileiros do Império até a década passada.
Nesse sentido, a criação do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS,
mecanismo da atuação governamental frente aos efeitos das adversidades climáticas da região
semiárida, constitui o marco material, histórico e ideológico da enunciação institucional do discurso
do combate à seca.

Assim sendo, as paráfrases apontam para o que Menezes e Morais (2002, p. 63-64 apud
MATOS, 2012, p. 5) classificam como três grandes períodos de ações de intervenção
governamental no combate à seca. De acordo com Matos (2012, p. 5):
I) Dos anos 1870 aos anos 1940, época do coronelismo, em que as políticas públicas se
resumiam à estratégia de abastecimento de água do semiárido por meio de construção de
grandiosas obras de açudagem e infraestruturas. II)Dos anos 1950 aos anos 1970. época do
desenvolvimento planejado pelo enfoque tecnicista e cientificista, em que buscou-se o
aproveitamento racional dos recursos hídricos por meio de atividades diversas
desenvolvidas por agência como Codevasf (Comissão do Vale do São Francisco, criada em
1948), BNB (Banco do Nordeste, fundado em 1951), SUDENE (Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste, instituída em 1959) e GTDN (Grupo de Trabalho para o
Desenvolvimento do Nordeste, constituído em 1958). III)A partir dos anos 1970, quando
foi implantada uma série de programas de combate à seca [...] como Proterra (1971),
Pronordeste (1974), Projeto Sertanejo (1976), Proidro (1979) e Projeto Nordeste (1984) –
este incorporou o Polonordeste e se constituiu de três programas da área produtiva
(Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural, Programa de Apoio a Pequenos Negócios
não Agrícolas e programas de Irrigação) e três da área social (Programa de Ações Básicas
de Saúde no Meio Rural, Programa de Educação no Meio Rural e Programa de Saneamento
Básico Rural).

Dessa forma, os fragmentos extraídos de Meneses e Morais (2002) explicitam a evolução


cronológica dos sentidos do combate à seca textualizando a situação do discurso do combate à seca
de cunho tecnicista significado na solução hidráulica pela açudagem para o problema da seca. Os
fragmentos textualizam e situam a agregação de cunho cientificista e economicista aos sentidos do
discurso do combate à seca entre os anos de 1950 e 1970, apontando o GTDN como enunciador e
disseminador do mesmo. Nesse período, o discurso recorre à ciência e ao aparato da infraestrutura
econômica e tecnológica para solucionar as problemáticas da carência da região
Nordeste/Semiárida. Neste cenário discursivo, a responsabilidade pela miséria ainda recai sobre a
seca, mas agora o principal responsável é o subdesenvolvimento econômico e o atraso técnico-
científico da região que contribuem para produzir a situação de pobreza e humilhação dos sertanejos
como enunciou o agricultor A. N.

Nessa perspectiva, Silva (2006, p. 143) salienta a análise qualitativa feita por Celso
Furtado apontando a dependência econômica, cultural e política que se estabelece entre os países
centrais e periféricos advertindo que a dependência da base tecnológica não tardaria em se tornar
uma dominação econômica, subordinando o processo de formação de capital das economias
subdesenvolvidas.

A partir de 1970, o discurso da solução pelo desenvolvimento técnico e econômico que


caracteriza o discurso técnico-economicista se consolida. Por isso, a solução se direciona aos
pacotes/programas governamentais de fomento ao crescimento da produção econômica na região
por meio de assistência técnica e financeira, conjugados com a correção hídrica. Tal discurso
interpela os herdeiros das elites/coronéis que outrora constituíam o polo econômico do Nordeste
para tentar resgatar a posição da qual haviam sido destituídos em razão da crise dos engenhos de
açúcar na zona da mata, o que enfraqueceu os coronéis do sertão a partir do evento da seca de 1877.
Inicia-se, assim, nesse período, os empreendimentos do agronegócio na região. Os programas de
desenvolvimento começam a abranger negócios não agrícolas contemplando a industrialização.

Segundo Silva (2006, p. 215), a partir de então, Celso Furtado começa a enunciar um
discurso de mudança substancial no padrão civilizatório, que era hegemônico, concebendo o
desenvolvimento como um “Projeto Social”, como uma orientação política que possibilitasse a
transformação global da sociedade.

Aqui lançamos mão da noção de heterogeneidade discursiva, fenômeno que torna


perceptível uma fissura discursiva no discurso técnico-economicista e cientificista por onde o
discurso do desenvolvimento sustentável começa a ressoar, ainda que prevaleçam os ecos do
discurso técnico-economicista agregado ao cientificista apoiado na concepção de externalização da
natureza hostil que o valida.

. A esse respeito, Carvalho (2010, p. 124) avalia que:

A concepção externalizada de natureza hostil ganha a leitura determinista pelo Estado


Moderno, e o Estado Brasileiro põe em prática ações de intervenção sobre as secas, uma
vez que essas foram avaliadas como as causas naturais do atraso e da pobreza no
Semiárido. Na concepção de território naturalizado pelas secas, caberia ao Estado-nacional
a tarefa de “civilizar “ o território, corrigindo o determinismo natural, cujas intervenções
dariam conta de inserir esse território dentro da ideia de nação forte, redirecionando-o para
o desenvolvimento nacional.

Nesse aspecto, o trabalho do interdiscurso Pêcheux (1997c),faz os sentidos do discurso


técnico economicista encontrar ressonâncias na concepção de externalidade da natureza hostil, que
referenda a polarização natureza/produção e crescimento econômico textualizada no enunciado da
senadora e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária no Brasil – CNA, Kátia Abreu, ao
afirmar que “o homem não vive sem equilíbrio ambiental, tampouco vive sem alimento...” (Revista
Defesa Vegetal, 2009), significando que é a ciência quem proverá a satisfação das necessidades
humanas pela manipulação e dominação da natureza pela tecnologia.

Assim, na linha desse discurso, cabe ao Estado providenciar as tecnologias de correção das
hostilidades ao crescimento econômico postas pela natureza ou as limitações ao crescimento desse
pela preservação ambiental. Esse discurso polarizador tende sempre a favorecer a produção e o
crescimento econômico em detrimento do equilíbrio ecológico a ponto de justificar, na atualidade, a
presença das commodities da cana-de-açúcar no bioma da Floresta Amazônica, em contraposição a
outros discursos, que atestam sua inapropriação. Segundo a Revista Defesa vegetal (2009, p. 17):

[...] a CNA vê como fundamental discutir mudanças na legislação ambiental... a história do


desenvolvimento brasileiro, com a utilização de áreas para garantir o abastecimento da
população, e a importância da agropecuária para a economia do país. Como as
preocupações sobre a preservação original são recentes no Brasil, novas regras devem ser
elaboradas com base na ciência. Precisamos comprovar até que ponto é necessário
preservar e até onde é possível produzir sem prejudicar o equilíbrio entre meio ambiente e
agricultura. Queremos construir um consenso, mas com base na ciência.

É, dessa forma, que a concepção de externalidade da natureza hostil regeu também o viés
cientificista do discurso do combate à seca a partir da leitura que, na equação
custos/benefícios/preservação/exploração da natureza, os benefícios da exploração justificariam os
prejuízos ao meio ambiente, por exemplo a degradação ambiental e a expulsão das populações das
áreas atingidas pelas barragens e pela açudagem. Desse modo, o parâmetro do equilíbrio ambiental
nas decisões da sociedade deve ser subordinado ao parâmetro das necessidades econômicas do
mercado capitalista e, assim, a concepção de externalidade vem impulsionando uma movência
discursiva no sentido da dessacralização da natureza à capitalização da mesma.

2.2 DISCURSO TÉCNICO-CIENTIFICISTA

Tendo em vista que na AD o trabalho do analista pressupõe a existência de relações entre o


sujeito e a ideologia, a tarefa de compreender um discurso não pode prescindir a historicidade do
enunciado uma que o discurso é impregnado pelo contexto de produção e carrega consigo o sujeito,
os seus sentidos e as formações discursivas que lhe constituíram (CAMARGO,2019), a enunciação
do agricultor A. N: “Naquele tempo o Brasil era pobre, a tecnologia que hoje existe aqui não existia
nem na aparência, vinha de outros países” , remete ao discurso técnico-cientificista, ao associar à
pobreza tecnológica do país às dificuldades e humilhações dos trabalhadores, o que explicita um
efeito de sentido, de que a solução para a situação de miséria do país e da carência de água no
semiárido viria pela modernização e tecnologia.

Considerando que formações ideológicas aparecem como marcadores constantes nos


discursos, porque permitem que os sujeitos inscrevam-se dentro das formações discursivas e
determinam as possíveis posições a serem ocupadas por tais sujeitos afirmamos que o
posicionamento técnico-cientificista do discurso do combate à seca caracteriza-se por pregar que o
avanço tecnológico acabará com a fome, a miséria e o atraso social, e concebe a industrialização
como sinônimo de progresso civilizatório. Com efeito, quanto menos industrializado (desprovido de
aparato tecnológico sofisticado), mais miserável. Esse discurso dialoga ainda com a propaganda da
Revolução Verde, textualizada no fragmento abaixo por Baptista e Campos (2011, p. 2):

O capital com suas empresas transnacionais e seu governo imperial dos EUA, procurou dar
resposta ao problema: criou a chamada “REVOLUÇÃO VERDE”. Uma grande campanha
de propaganda para justificar a sociedade que bastava “MODERNIZAR” a agricultura, com
o uso intensivo de máquinas e fertilizantes químicos [...] aumentaria a produção de
alimentos no mundo e se acabaria a com a fome.

Na mesma direção, o pressuposto da historicidade determinante dos sentidos no discurso


do combate à seca aponta para os sentidos da solução hidráulica textualizada por Gustavo Maia
(2001, p. 87 apud SILVA, 2007, p. 40) significados no enunciado: “o ministro do império autorizou
a liberação pelo império de recurso para a perfuração de poços, no ano de 1833.”

Nesse sentido, o trabalho da memória discursiva nos conduz ao que afirma Carvalho
(2010), isto é, à crença nas leis naturais e na capacidade da ciência de desvendá-las com vistas à
geração de valor de troca, o que estabelece os parâmetros de relação entre homem e natureza. A
ciência moderna se fundamenta nas regularidades objetivas, matematicamente descritíveis, capazes
de desvendar os segredos da natureza: “o objetivo da ciência passou a ser aquele conhecimento que
pode ser usado para dominar e controlar a natureza”. Como postulavam as concepções cartesianas,
“a natureza é uma máquina perfeita, governada por leis matemáticas exatas”. Essas concepções
forneceram as sanções para a manipulação e exploração científicas da natureza. Assim, o combate à
seca encontra ressonância no paradigma antropocêntrico da dominação da natureza, pois é com a
modernidade que se afirma a dominação humana. Nesse contexto, o ser humano é concebido “como
um ser especial, que dispõe da terra como herança”. Para Bartholo Júnior (1984, p. 75 apud Silva
2007, p. 474) a dessacralização da natureza atinge seu ápice nas sociedades modernas e torna
possível a “sua redução a um objeto de livre manipulação técnica, um reservatório de matéria e
energia disponível [...] a serviço da elevação progressiva do bem-estar material do homem”.

Para Capra (1999 citado por Silva, 2003), esse paradigma baseia-se nas seguintes crenças:
o método científico como única abordagem válida do conhecimento; a concepção do universo como
um sistema mecânico composto de unidades materiais elementares; a concepção da vida em
sociedade como uma luta competitiva pela existência, o que reafirma a crença na capacidade do
progresso como solução técnica aos problemas, consistindo, dessa forma, em um mecanismo de
domínio da natureza, da seca, bem como dos efeitos da seca.

Os estudos de Silva (2006), seguindo a trajetória das intervenções governamentais no


semiárido nos períodos de seca, através dos documentos oficiais, encontram registro e evidência
substancial de que os violentos impactos na economia nordestina provocados pela seca de 1845
desencadearam um progresso na organização das ações governamentais sinalizadas pela criação,
em 1856, da Comissão Científica Multidisciplinar para estudar a realidade do Nordeste seco e
propor soluções para o enfrentamento do problema das secas
Nesse aspecto de acordo com Menezes e Morais (2002, p. 30-49 apud MATOS, 2012, p.
5):

a periodicidade da estiagem/seca é de 8 a 10 ocorrências por século, e pode prolongar-se


por até cinco anos, atingindo toda a região do Polígono das Secas ou parte dela, e
provocando uma escassez branda (seca relativa – distribuição inadequada das chuvas
durante o ano) ou grave (seca absoluta – a precipitação pluviométrica não é suficiente para
atender às necessidades mínimas da população, das lavouras e dos animais) de água.
Contudo, a seca anual (o regime de chuvas situa-se entre 100 mm e 300 mm, prejudicando
a lavoura, e reduzindo a alimentação das famílias e dos animais - estes passam a ser a fonte
de renda das famílias) e plurianual (a escassez das chuvas estendem-se por dois anos ou
mais, provoca a mortandade dos animais e prejudica enormemente a renda das famílias) é
apenas uma das tipologias possíveis desse fenômeno, que se manifesta também na forma de
estação seca anual (período de verão, que dura de seis a oito meses) e seca “verde” (quando
o regime da chuva é instável, mantém a cobertura vegetal, mas não é suficiente para o
desenvolvimento da lavoura).

Assim sendo, Moreira (1993, p. 31 apud CARVALHO, 2010, p. 124) considera a


externalidade a concepção legitimadora da visão da natureza como “estoque de recursos da
economia neoclássica e que fundamentou a natureza geopolítica do espaço vital”. Para ele, a
dominação da natureza pelo Estado guarda a visão utilitária e econômica do território cuja base
discursiva concebeu a ideia de espaço vital dos emergentes Estados-Nações dos séculos XIX e XX,
O que caracterizou o discurso extrativista-utilitarista da natureza, concebendo-a como “estoque de
recurso”.

2.3 DISCURSO EXTRATIVISTA-UTILITARISTA

A relação entre o que já foi dito com o que se está dizendo define a constituição do
sentido e a sua formulação. Orlandi (2010, p. 31) define o interdiscurso como “aquilo que fala
antes, em outro lugar, independentemente” e acrescenta que o “interdiscurso disponibiliza dizeres
que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada”. Dizeres esquecidos,
mas que fazem parte da memória discursiva do sujeito como enunciados latentes possíveis de
serem resgatados em qualquer situação de comunicação.
O conceito de memória discursiva que, às vezes, é empregado como sinônimo de
interdiscurso, mas que também se define como aquilo que, em face de um texto, vem estabelecer
“implícitos. A Memória Discursiva explica Camargo (2019) se estabelece pela relação entre
intradiscurso e interdiscurso, logo, essa dualidade relacional objetiva evocar um sentido de origem,
no qual a repetição dos discursos fortalece a sua presença, porém, outra possibilidade encontra-se na
memória fragmentada, que busca a construção do discurso pelo apagamento. Brandão
(1996)elucida que “o domínio discursivo da memória é uma formação discursiva de referência” e
seus efeitos podem ser de “lembranças, de redefinição, de transformação quanto ao esquecimento,
de ruptura, de negação do já-dito”. Já o domínio de atualidade é fruto do efeito de memória
retomado no presente, dessa maneira, discursos anteriores são retomados e reforçam discursos no
presente.

Sendo assim, o interdiscurso irrompe nos sentidos presentes nos enunciados dos
agricultores entrevistados em que o sujeito ocupa o lugar de locutor do posicionamento utilitarista
quando se reporta à natureza como estoque de recurso a ser explorado. Assim, observem-se os
seguintes enunciados:
Sobre os animais eu mesmo dei pindoba, sambambaia e mandacaru ao gado levantando
quando tava caída no chão morrendo de fome. Tinha vez que eu quando batia o machado
no mandacaru cheio de espinho eles não esperavam nem tirar os espinhos, se acabando de
fome. Então eu recortava mandacaru na Serra da Rebeca para o gado comer, era pindoba,
era sambambaia na seca de 76. Essa foi uma seca grande. Eu trabalhava ali com gado dando
pindoba e derrubando mandacaru. Quando eu derrubava não dava tempo nem de tirar os
espinhos, Vez de tá afastado um quilometro, quando eu batia o mandacaru eles chegavam
berrando. (Agricultor E. D - Entrevista, Bela Conquista fevereiro de 2012).
Os animais ainda é uma coisa que não mudou até hoje, no tempo da seca a gente usa muita
palha de licurizeiro, mancambira, queimava palmatória, queimava tudo para dá ração aos
bichos e continua hoje muita gente ainda usa. (Agricultor, J. N. - Entrevista, Bela
Conquista/Fevereiro/2012).
Eu trabalhava na fazenda Santa Helena, que era fazenda de Dr. Moura, e trabalhava
também na Pindoba, que era onde minha vó morava, a gente nunca deixou de trabalhar e
outra coisa que nós fazia quando meu pai ficava na roça trabalhando, e minha mãe
cuzinhando o feijão e nas outras coisas. A gente ia catar licori verde para cozinhar e fazer
os rosários, cozinhava, fazia rosário e vendia na rua, era um meio como a gente sobrevivia
[...] Então quando não chovia tinha que optar por outras atividades e outros meios de
sobrevivência ou ia fazer isso ou então morria de fome. [...] Além disso que nós fazia, meu
pai pescava aqui no açude do Coité que já pertencia a esta fazenda e era assim a gente
passava a noite, dormia no açude, meu pai também pegava peixe para a nossa
sobrevivência. (Agricultora C. G. - Entrevista, Bela Conquista, fevereiro de 2012).
Eu criava uns bichinhos e algumas cabeças de gado. Ave Maria! A gente era só sofrimento,
a gente tinha que derruba palha de licurizeiro, cortar aqueles mandacarus e tirar os
espinhos. E o gado para beber, os bichinhos tinham que andar uma légua ou duas. Tinha
vez que ainda tinha que fazer cacimbas, cavar aqueles buracos no chão, para ficar perto e os
bichos beber. (I. S. T. - Bela Conquista, fevereiro de 2012).
Água de lá de onde eu morava uma légua e meia. A gente saía três horas da manhã, para
pegar água nos carotes, aí a gente só pegava aquela água para beber, aí tinha umas
cacimbas salgadas onde as mulheres pegavam água para lavar as roupas. Porque não tinha
como ir lavar longe, outras vezes, iam lavar no Rio Grande. Lá de onde nós morava para o
Rio Grande, é lá depois do alto do São Gonçalo, que elas iam lavar, no Alto de Cima, elas
iam de jegue, iam de quinze em quinze dias lavar, para poder a gente manter a situação.
(Agricultor J. T. Entrevista - Bela Coquista/fevereiro de 2012.

Nessa família parafrástica, Orlandi (2010,) e ( 2009)o trabalho do interdiscurso nos conduz
aos sentidos da natureza como estoque de recursos cuja perspectiva discursiva encontra
ressonâncias na economia neoclássica que fundamentou a natureza geopolítica do espaço vital.
Tanto nos enunciados expostos acima, quanto nestes que seguem: A.N: “Mas para nós era nas
cacimbas que a gente pegava água para beber. Com referências à seca, era nas cacimbas, no rio.
Naquele tempo, não tinha outro jeito” e de A.N.T: “A água era pegada em barreiro para usar. Era
boa, era da minação”; J.T: “Água de lá de onde eu morava uma légua e meia”; I.S.T: “Tinha vez
que ainda tinha que fazer cacimbas, cavar aqueles buracos no chão, para ficar perto e os bichos
beber.”, percebemos remissões ao discurso do Semiárido como região hostil ou inóspita, palco
ressequido de uma vida sofrida e resignada como o significa a FD do combate à seca.
Simultaneamente, o conjunto de enunciados destacados acima explicita uma relação
discursiva agricultor/natureza com feições extrativista-utilitarista, pois é da natureza que eles, às
vezes, extraem a água doce das minações; outras vezes, água salobra das cacimbas; as ramas, palhas
e cactos, para alimentar os animais, retiram a matéria-prima para fazer artesanatos (cestos), preparar
alimentos (rosários de licuri).
Nesses enunciados, observamos a ocorrência dos esquecimentos nº 1 e nº 2. PÊCHEUX;
FUCHS, 1997, p. 168-9 apud MARTINS, 2004, p. 7). O esquecimento número nº 1 naturaliza as
mazelas sociais pelo discurso utilitarista da natureza hostil, que significa o campo como um símbolo
dessa hostilidade, isto é, da natureza desfavorável, lugar inóspito. Justificando assim as condições
de miserabilidade e pobreza socioeconômica e política, às quais são submetidas às populações
pobres e camponesas, para garantir o enriquecimento das minorias. Apagados discursivamente estão
à figura dos governantes e o aspecto político da seca. Tal esquecimento remete ao discurso
preconizado pela narrativa capitalista de natureza externalizada, que dicotomiza natureza e cultura.
Carvalho (2010, p. 122) e Porto Gonçalves (1990) existem duas vertentes de externalização: uma
vertente de que a natureza é harmoniosa e bondosa e outra da natureza hostil ao homem, lugar da
luta de todos contra todos.
Ambas as vertentes, segundo os autores, permeiam os sentidos da relação externalizada do
mundo ocidental com a natureza. Da vertente da natureza hostil, surge a necessidade de o Estado
estabelecer a lei e a ordem; enquanto que, na da natureza bondosa e harmoniosa, entende-se que os
homens são seus destruidores.
Para Carvalho(2010), a narrativa da natureza hostil se radica na mitologia criada em função
da submissão do homem aos mistérios da vida num estado mais primitivo, oriunda do oriente médio
que, tendo como interlocutores os textos sacros, chegou ao ocidente e foi recuperada pelos discursos
iluministas para atender às expectativas do sistema capitalista em formação. Nesse sentido,
Carvalho (2010, p. 123) afirma que:

A concepção de natureza hostil demonstra o grau de alienação intrínseco ao conceito


natureza, cuja leitura externalizada pela hostilidade objetiva manter a ordem vigente, isto é,
o status quo justificado pelo elevado poder aquisitivo de uma minoria da população. A
vertente é mantida pela apropriação desigual da natureza na ocupação dos espaços e na
concretude do desenvolvimento desigual e combinado.
Nesse aspecto, Morais (1999 apud CARVALHO, 2010, p. 123) analisa que o discurso da
natureza hostil se desdobra em comportamentos que dão o status de eventos naturais, tais como:
desastres e catástrofes associados à falta de recursos das populações pobres ou da tendência dessas
se reproduzirem rapidamente, referindo-se à perspectiva malthusiana, que concebe os pobres como
os mais sujeitos aos azares naturais e mais afetados na maioria dos desastres.
Já o esquecimento nº 2 silencia a preocupação com a conservação ambiental. Nesse
sentido, os enunciados aludem à natureza como o depósito de riquezas a ser explorado, discurso que
dialoga com o discurso da mercantilização da natureza, enunciado pelo colonizador português que
fez do pau-brasil uma riqueza a ser explorada; também significados no enunciado de J.N: “Os
animais ainda é uma coisa que não mudou até hoje no tempo da seca, a gente usa muita palha de
licurizeiro, macambira, queimava palmatória, queimava tudo para dá ração aos bichos e continua
hoje muita gente ainda usa”, que dialoga com o princípio baconiano de “conhecer a natureza para
dominá-la”, o que induz ao processo de apropriação espontaneísta dos recursos com o advento do
novo conhecimento, científico e tecnológico. Nessa leitura, o enunciado natureza produz efeitos de
sentido ligados ao enunciado, é passível de ser dominada e submetida.
Essas paráfrases nos conduzem ao esquecimento nº 1 e ao posicionamento de locutores
do discurso da hostilidade da natureza preconizado por Porto-Gonçalves. Também, nesse sentido,
Moreira (1993, p. 31 apud CARVALHO, 2010, p. 123) avalia que o sentido da hostilidade da
natureza no semiárido é recorrente no discurso parlamentar-elitista, justificando o
subdesenvolvimento da região e a implementação das medidas de combate à seca pautada em
grandes obras técnicas e hidráulicas. Assim, no diálogo dos posicionamentos técnico-cientificista e
economicista, que constituem a FD do combate à seca enunciado institucionalmente, o discurso do
vale irrigado, oásis do Sertão, silencia o empobrecimento maior das famílias cujas terras foram
expropriadas e/ou atingidas por barragens. Da mesma forma o discurso que significa a vegetação
do semiárido apensa como paisagem espinhosa apaga a diversidade biológica e da exuberância da
caatinga. Nesse aspecto os enunciados dos agricultores familiares de Bela Conquista dialogam
também com a literatura euclidiana, especificamente com Os sertões:

[...] a caatinga abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama espinescente e


não o atrai; a expulsa com as folhas urticantes, com o espinho com os gravetos estalados
em lanças; e o desdobra-se lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado:
árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando
rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de
torturas, da flora agonizante... as suas árvores vistas em conjunto assemelham a uma
família de poucos gêneros, quase reduzida a uma espécie invariável, divergindo apenas no
tamanho ,tendo todas a mesma conformação, a mesma aparência de vegetais morrendo...é
que por explicável de adaptação estreitas do meio ingrato, envolvendo o pensamento em
círculos estreitos, aquelas mesmas que tanto se diversificam nas matas, ali se talham por um
molde único (CUNHA, 2008, p. 70).
O discurso textualizado na citação de Os Sertões, bem como na obra em seu conjunto,
significa o Sertão/Semiárido como um território seco, espinhoso em que a pobreza natural se
incrusta na figura do sertanejo e se desdobra em pobreza econômica, intelectual e configura um
cenário de desolação, morte, rusticidade, em um misto de resignação e violência. Imagens tão
fortes, que foram assimiladas pela memória discursiva Brandão, (1993). de tal forma que se
tornaram uma dizibilidade, quase dogmática da realidade do Sertão para não dizer um retrato
fidedigno, corroborando com o que disserta Albuquerque Júnior (2011, p. 93): “É na memória que
se juntam os fragmentos de história e lembranças pessoais de catástrofe, de fatos épicos que
desenham o rosto da região”.
Considerando o raciocínio de Albuquerque Júnior (2011, p. 93-94), a busca dos artistas,
poetas e romancistas tradicionais por arrumar, estética e discursivamente, na memória, as
lembranças, significou a tentativa de explicitar uma identidade da região Nordeste e manter “a vida
deste espaço”, explicitando uma resistência da memória de uma dominação existente em crise, à
medida que emergia no cenário discursivo uma disposição de formação discursiva Orlandi (2010) a
nacional e popular suscitando a emergência do apagamento das diferenças regionais e a sua
“integração no nacional”.
Desse modo, essa dizibilidade imágetico-discursiva do Sertão/Semiárido encontrou, num
dado momento histórico, o concurso de uma locução ampla do discurso literário enunciado,
sobretudo, pelos autores regionalistas do Modernismo Brasileiro. Dizibilidade que foi acolhida e
respaldada pelos meios de comunicação de massa patrocinados pelas elites favorecidas pelos
desdobramentos dos efeitos de sentido deste discurso que, por um lado, desperta na sociedade um
sentimento de comoção que propicia a barganha de recursos para combater a seca na região, por
outro reforça a ideia de que a pobreza nela é uma consequência natural das condições climáticas
hostis, e os estereótipos da região e do sertanejo.
Acontece que a memória espacial, esteticamente registrada e disseminada pelo discurso
literário, se por um lado, desperta comoção e resignação; por outro, expõe a resistência e a
dominação à leitura crítica, que vários autores fizeram e, ao fazerem-na, suscitaram novos
agenciamentos discursivos para explicitar os aspectos silenciados e apagados nessas memórias. O
que constitui, também, o discurso de contraposição ao discurso do combate à seca que foi se
configurando no que estamos chamando de discurso da convivência com a seca, cujos
deslizamentos de sentidos conduziram ao discurso da convivência com a semiaridez.
Nessa perspectiva, os enunciados dos agricultores familiares de Bela Conquista, sobretudo
os inscritos na FD do combate à seca também dialogam com outras literaturas regionalistas como a
graciliana, ao descrever um modo de vida completamente vulnerável aos efeitos das estiagens e ao
aspecto semimorto da paisagem e dos viventes que passam pela existência tocada por uma espécie
de marcha fúnebre que embala o espírito temeroso dos retirantes, configura- lhes o corpo raquítico
aos cactos da paisagem, a pele tostada , os pés rachados na terra estorricada. Essas literaturas
denunciavam os efeitos da seca e da ausência do Estado. A título de exemplo, Ramos (2010, p. 10),
no famoso romance Vidas Secas, afirma que:

A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de que eram ossadas. O voo


negro dos urubus fazia círculos altos em redor dos bichos moribundos. [...] Tinham deixado
os caminhos, cheios de espinhos e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama
seca e rachada que escaldava os pés.

Nesse aspecto, a mistificação do enunciado seca como responsável pelos resultados


negativos de atividades econômicas, tecnológicas e os baixos indicadores sociais figura como um
esquecimento forjado ideologicamente nas narrativas capitalistas para invisibilizar e/ou isentar o
projeto de crescimento econômico de matriz patrimonialista da pobreza socioeconômica ou da
responsabilidade pelas desigualdades sociais.
A leitura da natureza como estoque de recursos a serem explorados, associada à atribuição
da culpa pelo fracasso econômico e social à seca, enunciada pelos agricultores – no lugar de
locutores do discurso do imperialismo (econômico-utilitarista) do capitalismo neoliberal silencia o
discurso crítico do fenômeno sociopolítico da seca ou a crítica ecológica textualizada pelos autores
Santos, Schistek e Oberhofer (2007, p. 21): “o culpado é o modelo de desenvolvimento implantado
na região que não condiz com a convivência com o bioma local”.
Os autores supracitados significam a responsabilidade apontando para as consequências da
ocupação portuguesa que, instalando o latifúndio e a pecuária bovina apropriadamente, impediu o
acesso à terra ao povo em geral em quantidade suficiente. Isso, em relação às condições climáticas,
empurrou a população pobre, camponesa, para uma atividade de alta vulnerabilidade na região.
Assim, o plantio de plantas inapropriadas para o clima encaminhou a região semiárida brasileira
para uma direção também inapropriada, em relação ao clima e capacidade produtiva em relação aos
parâmetros da fertilidade do solo e dos recursos nativos. Segundo Manuel Andrade (2005 apud
SANTOS, SCHISTEK, OBERHOFER, 2007, p. 21), “O gado cria o homem aí, em lugar de o
homem criar o gado”. Sobre a degradação da caatinga nos períodos secos, Santos, Schistek e
Oberhofer (2007, p. 21) esclarecem que:

Se o estio prolonga-se, se há falta d’água e o gado não tem na caatinga, o que comer, os
vaqueiros derrubam “ramas” das árvores, queimam os “espinhos” de certas cactáceas como
mandacaru, o facheiro e o xiquexique, do mesmo modo queimam a macambira, e dão ao
gado como alimentos.

Enunciado que aparece, parafrasticamente, retomado pelos agricultores familiares de Bela


Conquista nos enunciados: I. S.T: “Criava uns bichinhos, cabeça de gado. Ave Maria! A gente era
só sofrimento, a gente tinha que derruba palha de licurizeiro, cortar aqueles mandacarus e tirar os
espinhos. Tinha vez que ainda tinha que fazer cacimbas, cavar aqueles buracos no chão, para ficar
perto e os bichos beber”. J.N: “ Os animais ainda é uma coisa que não mudou até hoje no tempo da
seca a gente usa muita palha de licurizeiro, macambira, queimava palmatória, queimava tudo para
dá ração aos bichos e continua hoje muita gente ainda usa”. Já nos fragmentos a seguir a
agricultora M.G. enuncia: “Trabalhava fazendo cesto naquele solão para dá comida aos filhos, eu
pegava e subia na serra para tirar licuri para fazer aquelas voltinhas para vender”. Explicita o
extrativismo vegetal, animal e mineral como atividade subsidiária da economia, alimentação, e
abastecimento de água para consumo destas famílias.
No fragmento “mas para nós era nas cacimbas que a gente pegava água para beber. Com
referências à seca, era nas cacimbas, no rio. Naquele tempo, não tinha outro jeito”. O agricultor A.
N. remete aos sentidos do termo seca como obstáculo à viabilidade do semiárido imposto
exclusivamente pela hostilidade da natureza que deve ser combatido pela tecnologia; o que dialoga
com os sentidos do enunciado de Moreira (1993, p.31 apud CARVALHO, 2010, p. 124), que
significa a externalidade como concepção legitimadora da visão da natureza como “estoque de
recursos da economia neoclássica e que fundamentou a natureza geopolítica do espaço vital”.
Além disso, há ainda a significação fatalística dos efeitos de sentido produzidos
significando o termo seca como catástrofe natural, e ou vontade divina. Nesse sentido, o enunciado
do agricultor S. T. –“Porque é como diz o outro as coisas começaram a piorar dos anos oitenta para
cá, porque o povo começou a desmatar as coisas, aí foi ficando mais difícil, a chuva distanciou um
pouco pra nosso nordeste.”– faz sentido na dispersão discursiva explicitada na interdiscursividade
que dialoga com o discurso sobre a seca vinculada a um lugar geográfico, o Nordeste. Entretanto,
esses sentidos são atravessados pelo posicionamento do discurso ambiental climático-científico que
procura explicar a falta de chuvas no Nordeste como um fenômeno climático ecológico-social
associado à consequência do modelo de ocupação do Nordeste e de apropriação extrativista
utilitária da natureza. Discurso esse disseminado nas cartilhas do IRPAA, as quais apontam a
retirada da cobertura vegetal da caatinga como uma das principais causas do aumento da aridez.
O enunciado “a chuva distanciou um pouco pra nosso nordeste”, do agricultor O. B. S.,
nos remete aos efeitos de sentidos do discurso institucional sobre a seca como catástrofe, ou flagelo,
cuja responsabilidade é atribuída à hostilidade da natureza de um determinado espaço geográfico
para o qual se criou, discursivamente, o Nordeste, para designar a parte da área empobrecida do país
onde há frequentes ocorrências de secas, distinguindo a da parte dessa área onde as precipitações
pluviométricas são mais abundantes no Norte, termo que anteriormente designava toda a parte mais
economicamente empobrecida do Brasil. Tal discurso textualiza-se no redesenho da cartografia do
país, como disserta Albuquerque Júnior (2001, p. 29-49 apud MORAIS, 2010, p. 9):
O Nordeste é tomado, neste texto, como invenção pela repetição regular de determinados
enunciados, que são tidos como definidores do caráter da região e de seu povo, que falam
de sua verdade mais interior. Uma espacialidade, pois, que está sujeita ao movimento
pendular de destruição/construção, contrariando a imagem de eternidade que sempre se
associa ao espaço. [...] O Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir
de uma sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente, em relação a uma
dada área do país. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 24-49).

Isso remete à perspectiva discursiva da hostilidade da natureza que ecoa no movimento


intitulado o “Romance de 30”. Dessa forma, Morais (2010, p. 5) aponta o “Manifesto Regionalista”
como um dos subsídios do discurso sobre a região nordeste, dos “Nordestinados”. Nesse sentido, para o
autor supracitado, o Nordeste/semiárido faz surgir, a partir de um projeto de regionalização do país, o
discurso historicamente construído sobre a seca. De acordo com Albuquerque Junior (2011), como todo
recorte territorial é uma invenção humana que emerge num dado momento histórico. A partir de
interesses políticos, econômicos, sociais e ideológicos, a palavra (Nordeste/semiárido) surgiu no final da
década de 1930 do século XX, nos documentos oficiais que definiram a área de atuação da IFOCS
(Inspetoria Federal de Obras contra as Secas) que se transformou em DNOCS (Departamento Nacional
de Obras Contra a Seca), para nomear uma parte da região Norte onde se verificava abrangência da seca
ou “Polígono das Secas”. Nesse sentido, salienta Matos (2012, p. 17) “A invenção do Nordeste ou a
produção da identidade nordestina, no espaço político-econômico nacional desde o início está associada
à inferioridade, à escassez de recursos e oportunidades” . E ainda observa Matos (2012, p. 18) que:

Uma passagem de discurso fragmentário para um discurso meta narrativo acerca do


Nordeste e da seca provocam um conflito entre natureza e sociedade, presente e passado: (a
natureza seria perversa e destrutiva, a sociedade nordestina perfeita; a seca, mais do que o
pecado original, teria transmudado o Éden nordestino num limbo insuportável).

Assim, restava às antigas elites, a reação por meio do capital intelectual, representado pela
nova geração de homens letrados, filhos dos antigos filhos dos “coronéis” através da reelaboração
discursiva da identidade regional, conforme Matos (2012, p. 16-17). Esse autor analisa que o
discurso sobre o Nordeste propagado pela literatura foi disseminado por dois grupos de autores que
ele distingue entre reacionários, os “filhos da elite regional”, “desterritorizada” que fazem apologia
a um passado romântico e glorioso, de ordem e harmonia para todos (do fausto da casa grade e da
“docilidade” da senzala, na paz e tranquilidade do império); e revolucionários, os que produziam
um nordeste ao avesso, denunciando a miséria e a injustiça social da região.
Parafraseando Albuquerque Jr. (2011, p. 47), podemos dizer que os primeiros dizem para
silenciar as verdadeiras relações de poder baseadas na opressão e na desigualdade, que constituíam
a ordem socioeconômica na região. Já os segundos, baseando-se nos relatos de Meneses e Morais e
Matos (2012, p. 16-17), avaliam que relacionam os relatos e narrativas históricas do acidente
climático a uma trama ficcional com intenção de denunciar os problemas econômicos do Nordeste,
o drama dos retirantes e a exploração do povo num sistema social injusto. Contudo, os
revolucionários ajudam os reacionários a consagrarem uma dada imagem, texto e discurso da região
que se impõem até hoje, como verdade; isto é, uma visibilidade e uma dizibilidade sobre o Nordeste
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 104-105 apud MATOS, 2012, p. 17).
Nesse contexto histórico-discursivo inventado e descaracterizado, as classes dominantes se
projetavam/eram projetadas como protetoras da região, da cultura e da identidade nordestinas, o
que, na nossa compreensão, faz parte de uma estratégia do dito para não dizer, ou seja, o discurso da
defesa da cultura e da identidade apaga a percepção da dominação política e social que se expressa
de maneira territorial. Para Albuquerque Jr. (2007, p. 104-105 apud MATOS, 2012, p. 17), “o
Nordeste nasce como o último território de domínio que sobrou para as elites agrárias do Norte que
antes dominavam o espaço nacional e agora se viam arrincoadas e reduzidas à dominação sob
apenas uma área do país.”
O discurso da seca como flagelo-catástrofe passou a ser divulgado nacionalmente como um
grave problema, tornando-se um argumento político quase irrefutável para a concessão de recursos,
obras e outras benesses que seriam monopolizadas pelas elites dominantes locais. Por isso,
concordamos com Matos (2012, p. 11) quando afirma que, nessa perspectiva discursiva, à seca,
interpretada como um “fato social total” era atribuído um sentido de igualdade absoluta que
atingiria a todos, indistinta e inexoravelmente. Ou seja: “como um castigo descido do céu ou subido
do inferno que se punha como uma interseção entre ricos e pobres”.
Apesar de enunciado por instituições políticas, religiosas, jurídicas e tecnológicas, o
funcionamento de tal discurso ao pôr no mesmo nível proprietários e produtores se configuram
discursivamente explicita o que Orlandi (2010, p. 83) chama de “o silêncio local, que é a censura,
aquilo que é proibido dizer numa certa conjuntura (é o que faz com que o sujeito não diga o que
poderia dizer)”.
Em outras palavras, o discurso sobre a seca como fato social total silencia as distâncias
sociais; concretas entre grandes proprietários, comerciantes e pequenos produtores: agricultores e
criadores e o fato de que os efeitos das estiagens não afetavam igualmente aos primeiros e aos
segundos como evidenciam Vieira Jr. (2003, p.6 apud MATOS, 2010, p.13) ao afirmar que os
primeiros possuíam recursos suficientes para resistir à seca sem a vergonha da miséria, além de se
aproveitarem da fragilidade das classes oprimidas para se apoderarem do seu trabalho e dos seus
bens. E também Duarte (20011, p. 436 apud MATOS, 2010, p.13), quando nos diz que os
“primeiros (os grandes agricultores), dispondo de mais sementes, plantaram proporcionalmente
mais”.
Dessa forma, o discurso da determinação divina e do abandono de Deus ao homem, que
apresenta a seca como um castigo de Deus ao homem, enunciado pelas elites políticas e
eclesiásticas, justificava ser a seca uma causa legítima da pobreza da região e projetava o combate à
seca como ato de generosidade dos dirigentes políticos e algumas oligarquias que resguardavam a
promessa de solução hidráulica, como um símbolo da redenção do Nordeste. A disseminação desse
discurso ampliou o efeito de sentido da seca como sinônimo da pobreza, privilegiada na música e na
literatura.

2.4 DISCURSO MÍTICO-RELIGIOSO FATALISTA

Nesse tópico, far-se -à uma análise de como a interdiscursividade articula o


funcionamento do discurso do combate à seca e o da convivência com a semiaridez nos enunciados
dos agricultores de Bela Conquista, que se filiam a redes de sentidos diferenciados para
significarem na formação discursiva do combate à seca, na formação discursiva da convivência com
a semiaridez ou na relação dessas duas formações discursivas.

Nesse sentido, os enunciados dos agricultores assentados de Bela Conquista, transcritos,


são atravessados por formações discursivas mítico-religiosas que se distinguem em formação
mítico-religiosa-fatalista, patrimonialista-escravocrata, extrativista-utilitarista da natureza, técnico-
economicista, quando remetem ao discurso do combate à seca e ao discurso bíblico-libertador,
quando remetem ao discurso da convivência com a Semiaridez. A formação mítico-religiosa-
fatalista significa o sofrimento das pessoas e mortandade dos animais sob os efeitos da seca como
sendo vontade de Deus, remetendo à ideologia religiosa explicitada pela teologia da recompensa
(bênção da fartura produzida com a presença da chuva) e da punição (expiação através do
sofrimento causado pelos efeitos da seca). Os sentidos de chuva como bênção ou recompensa e de
seca como punição enviada por Deus naturalizam os impactos da seca e despertam uma espécie de
resignação social silenciando a responsabilidade da falta das políticas estruturantes destinadas aos
impactos das estiagens sobre o Semiárido, o que faz falta de chuva significar, na interlocução do
sertanejo faminto, sedento, sem trabalho e desassistido, o esquecimento de Deus. Explicitado no
trecho: “A seca fez dissertar da minha terra/Mas felizmente deus agora se alembrou /De mandar
chuva pra esse sertão sofredor” , da música “A volta da Asa Branca de Luís Gonzaga” , quando
posto o dito em relação ao não dito. Orlandi (2010,p.82) Consideremos que há sempre no dizer um
não – dizer necessário quando se diz “x” o não dito permanece como uma relação de sentido que
informa o dizer de “x”. Isto é uma formação discursiva pressupõe uma outra.
No nosso estudo, identificou enunciados dos agricultores familiares de Bela conquista estão
inscritos, na FD mítico-religiosa, que enunciam a convivência com a semiaridez quanto os que
enunciam o combate à :
Eu acho que a gente convive com a seca, porque quando chega esse tempo assim a gente se
quebra muito. A gente não tem jeito a fazer. Quem dá jeito mesmo só Deus. Então, eu digo
que a gente convive mesmo é com a seca (H.-Entrevista, Bela Conquista/Fevereiro2012).

Para combater a seca só Deus dando chuva para trabalhar. Para combater a seca só pode
trabalhar plantar de tudo, milho feijão, abóbora, banana, capim para os bichos, aí combate e
tudo na vida. Aí Deus dando chuva, aí tudo vai para frente. Mas com o sol, com a seca nada
vai a frente, só faz é piorar (E. D.-Entrevista, Bela Conquista/Fevereiro2012).

Eu acho que é conviver com a seca, porque a seca para nós combater não tem jeito, sempre
vai ter aqui no nordeste. Combater com a seca só com Jesus Cristo quando manda chuva do
céu, que aí combate tudo, mas nós não temos este poder para isso (Agricultora I. S.-
Entrevista, Bela Conquista/Fevereiro 2012).

Eu acho que é combater, porque conviver com a seca, aí a crise aumenta. Eu acho que a
pessoa passa muita privação, bicho morre de fome e a gente caçando jeito de acabar como o
seco, aí a alimentação aumenta. Para combater a seca, Deus dando chuva para trabalhar.
Para combater à seca só pode trabalhar plantar de tudo, milho feijão, abóbora, banana,
capim para os bichos, aí combate e tudo na vida. Aí Deus dando chuva, aí tudo vai para
frente (Agricultor E. D.-Entrevista, Fevereiro de 2012/Bela Conquista).

Mas eu tenho que fazer por onde conviver, principalmente no semiárido que a gente vive
né! Eu acho que uma das coisas que mais a gente aprendeu é a gente participar dos
movimentos sociais, que faz a gente trocar muitas experiências... Para que não chegue o
momento de você dizer são os bichinhos que estão passando sede a não ser uma
determinação de Deus porque as aguadas feitas, subterrâneas, ou do chão mesmo, chega um
período que tem assim a seca e a gente tá vendo esta represa do porte desta que nós temos
aqui, tá seca aí quase secando. Então, isso é uma coisa que pertence a Deus. Depois que a
gente veio para cá, antes de vim, a gente já participava de alguns encontros, mas a gente
veio fazer uma participação mesmo da convivência depois que a gente já tava aqui.
(Agricultor J. T.-Entrevista, Bela Conquista/Fevereiro2012).

Eu sei lá, às vezes eu fico dividida assim, porque combater ninguém nunca combate, só
Deus é que com o passar do tempo, porque quando não tem a chuva, a gente vive no
semiárido seco, aí quando vem a chuva combate um pouco porque chega a água para todo
mundo (Agricultor J.O. -Entrevista, Bela Conquista/Fevereiro2012).

Eu acho que a gente tem que conviver como Deus é possível (Agricultor V. F.-Entrevista,
Bela Conquista/Fevereiro2012).

O nosso município é semiárido, não adianta a gente pode ter vários reservatórios, mas
quando chega esse tempo todo mundo sofre com a seca (Agricultura C. G.-Entrevista, Bela
Conquista/Fevereiro2012).

É agora mesmo pelo mês de dezembro na véspera no dia de Santa Luzia, deu uma chuvinha
teve lugar que encheu os tanques teve lugar que nem água fez né? Então, a chuva vem
sendo assim é a seca verde chamada (Agricultura J. T.-Entrevista, Bela
Conquista/Fevereiro2012).

Os enunciados transcritos evidenciam que os discursos do combate à seca e da convivência


com a semiaridez, atravessados pelo discurso mítico-religioso fatalista nos enunciados: “Combater
com a seca só com Jesus Cristo quando manda chuva do céu, que aí combate tudo, mas nós não
temos este poder para isso...” e V.F: “Eu acho que a gente convive com a seca, porque quando
chega esse tempo assim à gente se quebra muito. A gente não tem jeito a fazer. Quem dá jeito
mesmo só Deus”, por meio do trabalho da memória discursiva, explicitam um efeito de sentido que
poderia ser parafraseado como a chuva é dom e bênção de Deus que vivifica e salva a quem lhe
agrada e a falta de chuva é abandono e punição, Castigo divino, que dialoga com o discurso sobre a
seca perversa no enunciado “Eu perguntei a Deus do céu, ai. Porque tamanha judiação”, da música
Asa Branca de Luiz Gonzaga, e com a música Triste Partida.
E, nesta perspectiva, remete à formação místico-religiosa que, historicamente, constituiu-se
nos discursos sobre o semiárido, elaborados com base na ação dos missionários tradicionais,
normalmente de congregações vindas de fora, como capuchinhos, franciscanos, que se espalharam
pelo sertão, e os vigários fixos, que difundiram um discurso religioso bastante ameaçador,
responsável pela produção de um imaginário popular sobre a chuva como um dom de Deus. Como
expõe Malvezzi (2007, p. 22):

No imaginário popular ficou a imagem de que a chuva é um dom de Deus. A Ele e aos
santos é que se pede chuva. Quando não chove, é também por vontade de Deus.
Normalmente, esse “chover ou não chover” era relacionado aos pecados do povo. As
procissões ao redor das lagoas para pedir chuva e o “seqüestro dos santos” são práticas que
revelam o modo popular de compreender a natureza. Essa compreensão está de tal forma
enraizada no inconsciente religioso do povo que, ainda hoje, muitas pessoas precisam ser
convencidas de que construir uma cisterna não é tentar manipular a vontade divina. Na
prática educativa para a convivência com o Semiárido, essa experiência se tornou tão
presente que organizações não governamentais (ONGs) tiveram que incluir reflexões
bíblicas na formação de seus agentes de campo, para facilitar o diálogo com o povo,
enfatizando outro modo de compreender a relação de Deus e da pessoa humana com a
natureza.

Assim, a dimensão cultural e a religiosidade popular, de matriz católica, afetaram a


construção do imaginário e dos enunciados dos sertanejos; quando se referem à chuva ou à seca. È
comum aos agricultores do semiárido mencionarem Deus ou alguns dos santos como se observa no
enunciado a seguir: “É agora mesmo pelo mês de dezembro na véspera no dia de Santa Luzia, deu
uma chuvinha teve lugar que encheu os tanques teve lugar que nem água fez né?” Nele, o agricultor
J. T. associa a chuva a passagens em que, no calendário católico, festeja-se Santa Luzia.
Nesse sentido, Carvalho (2010, p. 119) observa que, por ser um elemento raro, a água
aparece para o sertanejo como dependendo da vontade da natureza. No sentido católico, é a
“vontade de Deus” . E esses se apegam aos santos, sobretudo à Santa Luzia (cuja festa acontece
anualmente em 13 de dezembro) e a São José (festejado em 19 de março), aos quais associam uma
série de rituais para prever os anos bons e anos ruins (com ou sem chuva, respectivamente), uma
vez que atribuem a ambos a definição sobre a abundância ou não de chuva durante o ano. Sendo
assim, o trabalho da memória discursiva através do recurso da metáfora faz emergir o discurso
mítico-religioso da água que vivifica e dá vida nova que salva no batismo, discurso enunciado na
música És água viva de padre Zezinho costumeiramente cantada nas celebrações de Batismo e
bênçãos que identificam Deus (Jesus) com a própria água: “Eu te peço dessa água que tu tens/é
água viva meu senhor/tenho sede tenho fome de amor e acredito nessa fonte de onde vens./Vem de
Deus também és Deus [...]./És água viva, és vida nova, e todo dia me batizas outra vez/Me fazes
renascer, me fazes reviver [...].”
Interpretados nesta perspectiva tais enunciados remetem também ao discurso bíblico
textualizado na carta aos Hebreus, Capítulo seis, versículos 7 e 8: “De fato, quando uma terra
embebida de chuva abundante produz plantas úteis para quem cultiva, essa terra tem uma bênção de
Deus, mas se produz espinhos e ervas daninhas, não tem nenhum valor, está a um paço da maldição
e acabará sendo queimada.” (BÍBLIA SAGRADA, 1990, p. 1472).
Nesse sentido, se a disponibilidade da água depende da vontade exclusiva de Deus, não há
nada que se possa fazer para solucionar o problema. Não raramente os sofrimentos causados pela
seca eram explicados como consequências dos pecados do povo. Isentando a falta de políticas
estruturantes de captação, armazenamento, manejo de água e consequente democratização do
acesso dos recursos hídricos da responsabilidade pelas consequências da seca, uma vez que o
Semiárido seria “uma terra estorricada, amaldiçoada, esquecida por Deus”, como avaliou Castro
(1967, p. 168).
O enunciado do agricultor E. D. dialoga com o discurso mítico-religioso textualizado no
Livro dos Reis, capítulo 17, nos versículos de 1 a 9, quando o profeta Elias profetiza: “[...] pela
vida de Javé, o Deus de Israel, a quem sirvo: nestes anos não haverá nem orvalho nem chuva, a não
ser quando eu mandar” e no versículo doze, quando Elias pede água e pão a uma viúva da cidade de
Sarepta? Ela responde dizendo: “[... ] Estou ajuntando uns gravetos para preparar esse resto para
mim e meu filho. Depois, vamos comer e ficar esperando a morte”; os quais dialogam com o
discurso técnico-científico enunciado por Felipe Guerra (apud VIEIRA, 1951, p. 452):

O que caracteriza as grandes secas é, em primeiro lugar, a sua intensidade e sucessão


contínua por mais de um ano; em segundo lugar, a generalidade abrangendo longo trecho
do território; duração e extensão. É fácil conjecturar num só ano de seca os recursos
anteriormente acumulados auxiliam a arrostar a crise, as parcas economias são postas em
ação os fracos contingentes de pequena açudagem, dos poços, das lagoas, do lençol d’água
do subsolo, ainda fornecem valiosos elementos para a luta. Todos sofrem desde o
proletário, que se atira a se intoxicar o organismo com tudo aquilo que pode ser engolido,
até o abastado que, mal alimentado, vê sua fortuna desaparecer. Ao entrar ao mês de
dezembro de um ano seco, tudo se acha esgotado, cansado, depauperado. As águas que não
forem drenadas estão evaporadas (convém não esquecer que, em dezembro de um ano seco
o sertão está com dezoito meses sem chuvas). A população pobre já principia a morrer de
fome; as moléstias tomam conta do organismo, as economias foram arrebatadas para os
mercados produtores. Aparece então o início da boa estação, volta à esperança e tudo se
anima, principia a aparecer trabalho para o operário da lavoura embora o sofrimento e a
penúria prolonguem-se até as primeiras colheitas, a vida vai pouco a pouco se
normalizando. Não vindo, porém no tempo esperado das desejadas chuvas, entra o segundo
ano de seca. É então fatal o que há de acontecer. A população em massa na razão direta da
zona flagelada foge, dispara de seus lares, sem destino, à procura dos portos onde também
não são encontrados recursos. A emigração se estabelece. E a fome e as epidemias dizimam
esses infelizes. No segundo ano, a classe média passará a sofrer o que o proletário já sofreu
primeiro; e seguindo-se um terceiro ano de crise, será também vitimada como fora essa
última classe, já então extinta.
O enunciado da agricultora V. F., “Eu acho que a gente tem que conviver como Deus é
possível”, pode ser entendido como um deslizamento de sentido do discurso é assim porque Deus
quer! e inscreve-se na FD do combate à seca, que funciona ideologicamente fazendo ressoar o
discurso fatalista da vontade de Deus e silencia o sentido da vontade política, explicitado no
discurso sobre a seca como fenômeno sociopolítico. Assim, concordamos com a afirmação de
Orlandi (2010, p. 82) de que “há sempre no dizer um não dizer necessário”. O discurso fatalista da
vontade de Deus, aplicado aos sofrimentos dos sertanejos nas estiagens, tornava opacos os aspectos
socioeconômicos da vontade política de que a situação continue se arrastando e ao longo dos
séculos, uma vez que, sendo construído discursivamente como fenômeno responsável pelo
sofrimento e pelo entendimento de que “essa era vontade de Deus”, a seca impunha aos sertanejos
uma espécie de resignação, o que sugere a desmobilização e a racionalidade fatalista da
inexorabilidade da situação do sertanejo.
No discurso fatalista o que é “vontade Deus”, só ele dá jeito e as pessoas não têm nada a
fazer, e se mobilizar de qualquer forma que ultrapasse rezar e clamar pelo seu favor, assume um
sentido de querer mandar na vontade divina.
O discurso mítico-religioso remetia ao sentido da hostilidade da natureza retratada por
Graciliano Ramos( 1980)e Euclides da Cunha(2008)e mantinha, assim, um diálogo solidário com o
discurso patrimonialista escravocrata que significava o Sertão/Semiárido como “sertão” ou “serão”,
“terras sem fé, lei ou rei”, “áreas extensas”, terras afastadas do litoral, de natureza ainda indomada,
habitada por índios “selvagens”, animais bravios, sobre as quais as autoridades portuguesas, leigas
ou religiosas, ainda não tinham conhecimento suficiente para controlar”, para onde iam os
condenados da lei, significada de modo parafrástico como “uma terra estorricada, amaldiçoada,
esquecida de Deus”, como avaliou Castro (1967, p. 168).
Essa é mais uma das justificativas postas para a situação de subdesenvolvimento da região
a reivindicação de recursos financeiros e políticas governamentais compensatórias do Governo
Federal. No entendimento de Carvalho (2010, p. 122):

uma vez apresentada como catástrofe, a partir dela as retóricas de fatalidade climática,
passaram a direcionar os projetos e programas de desenvolvimento para o Semiárido.
“Emerge um sentido de se conhecer e dominar a natureza, quando a cada “grande” seca,
surgia uma nova orientação para as intervenções do Estado sobre esse território,
reordenando-o segundo planos de desenvolvimento regionais, com ênfase nas ações de
correção hídrica denominada de combate à seca.

Constituindo-se, assim, o discurso do combate à seca, podemos compreender a veemência


com que tal leitura é respaldada nos discursos parlamentares elitistas, apresentando o semiárido
como um território necessitado de obras técnicas competentes para corrigir o déficit hídrico
derivado de uma natureza limitada, escassa de recursos naturais e, por isso mesmo, a principal, se
não única responsável pela pobreza na região e opção de implementação de grandes programas e
projetos desenvolvimentistas, desvinculadas das características locais.

PALAVRAS FINAIS

Tendo em vista à abrangência da tessitura discursiva do discurso do combate à seca não


temos a pretensão de esgotá-lo neste artigo; contudo, alcançamos objetivos propostos e concluímos
que a interdiscursividade do discurso do combate à seca se constitui na relação com as formações
discursivas: discursos mítico-religioso e fatalista, discurso patrimonialista-escravocrata, discurso
extrativista-utilitarista da natureza, discurso técnico-economicista. Embora o discurso do combate à
seca preceda o discurso da convivência com a semiaridez num dado momento o discurso da
convivência com a semiaridez passa a constituir interdiscursivamente o discurso do combate à
seca pelo viés da contraposição.

Os diferentes gestos de interpretação evidenciam a heterogeneidade discursiva dos


enunciados que compõem o corpus discursivo desta pesquisa, marcado por diferentes formações
discursivas. Diante disso, entendemos que todas as formações discursivas de um atravessam,
inevitavelmente, o outro. Numa relação ideológica de tensão, de modo que o discurso da
convivência se constitui à medida que ressignifica e/ou explicita, reinterpretando os efeitos de
sentidos silenciados no discurso do combate à seca.

Nesse sentido, a análise do interdiscurso, mediado pelo trabalho da memória discursiva,


permitiu constatar que alguns enunciados dos agricultores familiares remetem ao discurso
patrimonialista, enquanto outros explicitam gestos de interpretação que se contrapõem aos efeitos
de sentido deste, por exemplo, os significados explicitados pela formação discursiva do discurso
sociopolítico sobre a seca.

O advento do discurso do combate à seca se dar-se-á por ocasião da grande estiagem de


1877, quando a tensão ideológica, que significava o discurso sociopolítico sobre a seca em função
dos esquecimentos ,que no discurso patrimonialista apagavam a responsabilidade dos aspectos
estruturais da conjuntura político-econômica e social sertaneja na geração da miséria e da fome no
Nordeste/Semiárido e a atribuía à ociosidade e incompetência dos empobrecidos.
Uma vez que, no referido evento climático de seca, não pereceram e morreram apenas os
animais e os supostos “ociosos e incompetentes” (escravos),mas também faliram e pereceram os
grandes e bem sucedidos que movimentavam o complexo econômico da região que também ruiu
com a desorganização das suas bases produtivas e migração forçada de médios produtores, a
ideologia interpelou os sujeitos enunciadores do discurso que significavam a pobreza e a miséria
como resultado da ociosidade e incompetência. Há nisso, um gesto de interpretação, que mediado
pelo interdiscurso a partir do intradiscurso, transferiu esses efeitos de sentido da pobreza e miséria
em função da ociosidade e incompetência para a hostilidade da natureza relacionada ao fenômeno
da seca..
A partir de tal deslocamento discursivo, aqueles que deveriam ser combatidos pelo
aparelho repressor do Estado monárquico foram transformados/transformaram-se, discursivamente,
em vítimas da seca, da hostilidade de uma natureza perversa, que deveriam ser socorridas pela
assistência paternalista do Estado Republicano. Esse gesto de interpretação gestou uma narrativa da
região Nordeste/Semiárida onde o termo seca, construído como catástrofe natural, passa a se
constituir como elemento identitário da região empobrecida do país, distinguida a parte
verde/chuvosa (região norte) da parte seca (nordeste) que foi sendo “inventado discursiva e
imageticamente”. Parafraseando Albuquerque Jr (2000 apud CARVALHO, 2006, p. 24), à seca é
uma metáfora a partir da qual se nomeia a necessidade e a carência na verdade das elites desse
espaço.
Uma vez que, mesmo não sendo ociosos, vagabundos, nem incompetentes, e atravessando
um momento de infortúnio que, por vezes, colocava-os na condição de pobreza, de migração
naturalizada para retirantes incompetentes, ignorantes e preguiçosos e precisando silenciar o clamor
provocado pelas desigualdades sociais, as formações discursivas valem-se dos registros das
ocorrências das sucessivas estiagens prolongadas no Sertão, bem como das narrativas mítico-
religiosas da água como dom de Deus, que usa a chuva excessiva (dilúvio) ou a ausência
prolongada dela (flagelo da seca) para punir os pecadores e purificá-los de seus pecados.
Esses discursos serviram de subsídio para a construção dos sentidos de natureza hostil e
perversa, causadora da fome, da miséria e da condição de retirante do sertanejo pobre e de
subdesenvolvimento do semiárido. Contando com a colaboração dos sujeitos enunciadores do
discurso institucional eclesiástico, através de seus evangelizadores, que gozando de grande
credibilidade junto aos sertanejos e sertanejas carentes, contribuíram com a afirmação do discurso
institucional do “Estado oligárquico”, visto que, dialogando com ele através da formação discursiva
mítico-religiosa fatalista da seca como castigo divino, exerciam um efeito de naturalização da
pobreza e inspiravam uma espécie de resignação dos empobrecidos frente aos sofrimentos
experimentados, pois criam ser castigo divino pelos pecados cometidos. Enquanto isso,
permaneciam invisibilizadas as causas políticas e econômicas de suas condições sociais e silenciado
o discurso que enunciaria que a estiagem em si não é a causa da miséria e da pobreza da região, mas
um elemento que acentua essa situação, provocada pelas desigualdades sociais.
Tal narrativa marca um posicionamento ideológico da classe dominante no sentido de
investir seu capital intelectual na construção de uma identidade imagético-discursiva de um espaço
geográfico, para mantê-lo sob seu domínio político e econômico e desse posicionamento ideológico
brota o discurso do combate à seca.
O discurso sobre a seca como um fato social total também invisibiliza as diferenças da
intensidade com que sofrem os efeitos das estiagens os latifundiários e os pequenos agricultores,
criadores e extrativistas. E respalda a construção da identidade regionalista do Nordeste e a
delimitação cartográfica da região por volta de 1929-30, e a associação desse às secas pela metáfora
território das secas pelo trabalho do interdiscurso textualizado, mais tarde no termo polígono das
secas, que atendeu aos interesses políticos e econômicos, pois soava como área carente do auxílio
governamental aos flagelados da seca.
Nessa perspectiva, é a noção de intervenção da exterioridade como constitutiva dos
significados na AD, articulada com a de heterogeneidade discursiva, que elucida o deslocamento do
sentido da pobreza como resultado natural da hostilidade da natureza para a associação da pobreza à
falta de tecnologia, como uma interpelação da ideologia ao indivíduo a filiá-lo às redes de sentido
que significam o discurso tecnicista.
Desse modo, a transferência dos sentidos que significam a seca como a causa da pobreza
para a falta de tecnologia faz-se pelo esquecimento ideológico, como explica Orlandi (2010, p. 35),
“ele é da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Por
esse esquecimento, temos a ilusão de ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos
sentidos pré-existentes.” Nesse caso, os sentidos estabelecidos pela burguesia industrial.
Nessa perspectiva discursiva, a solução tecnológica para a problemática da seca vinha de
fora, de outros países. Tal discurso colaborou com a concentração das riquezas da região nas mãos
de grupos empresariais que fazem os sentidos do enunciado latifúndio, por deslocamento, significar
no enunciado agronegócio.
Contudo, esse discurso é questionado pela FD sociopolítica, no sentido em que esta,
mobilizando a categoria da determinação do sentido pelas condições históricas de produção do
discurso, explicita uma dizibilidade por meio da qual a ideia da solução hidráulica para os
problemas do Nordeste contribuiu para que o Semiárido brasileiro seja a área mais açudada do
planeta e acentua que os efeitos da seca persistem graças à engenhosidade das oligarquias que,
enunciando o discurso de que as obras contra a seca seriam a redenção para a região, tornavam
opaca a transformação delas num mecanismo de transformação da seca num negócio lucrativo para
tais oligarquias, o que foi significado, na FD sociopolítica sobre a seca como a indústria da seca.
Observa-se que, em dadas circunstâncias históricas, os discursos bíblico-libertador e
sociopolítico dialogam e mantêm uma relação de solidariedade, um elucidando o outro. Já no bojo
da tensão ideológica posta na relação do discurso tecnicista, filiado às redes de sentidos da FD do
combate à seca, com os discursos bíblico-libertador e sociopolítico, filiados às redes de sentidos da
FD da convivência com a semiaridez, quando estes interpelam as formações ideológicas e sociais
do discurso tecnicista, suscitam outros discursos.
Nesse sentido, o discurso ambiental climático-científico, que significa o termo seca como
característica climática natural do Semiárido, o que contribui com o gesto de interpretação de que
seca, como característica climática, não se combate. Contudo, esse discurso é atravessado por um
posicionamento cientificista notadamente autoritário que, ancorado nos pressupostos iluministas do
conhecimento, do cartesianismo (conhecer a natureza para dominá-la e submetê-la), deixa
pressuposto o diálogo com o discurso mítico-religioso, textualizado no versículo 28, do capítulo
primeiro do livro do Gênesis: “Deus os abençoou: “Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a
terra e submeti-a, dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais
que se arrastam sobre a terra.”
Notadamente autoritário, o discurso cientificista, incorporando o tecnicista e o econômico,
nega os saberes construídos pela experiência dos pequenos agricultores e criadores sertanejos, em
nome da produtividade e da “segurança alimentar”, explicitando os sentidos da externalidade a
serviço do agronegócio. Taxando-os de ultrapassados, apaga os sentidos da autonomia que o capital
cultural desses sujeitos significados nas sementes crioulas 8, nos quintais produtivos, na experiência
construída, para expropriar cada vez mais os recursos e o trabalho destes em benefício do
agronegócio.
O discurso tecnicista e o econômico enquanto promete a segurança alimentar para o
mundo, vão contribuindo para que seja tirando, da posse dos agricultores, as sementes crioulas, os
rebanhos adaptados ao bioma da caatinga e impondo os interesses do mercado. Isso coloca o
agricultor na dependência de seus pacotes tecnológicos de sementes híbridas, dos agrotóxicos que
impulsiona o crescimento do mercado multinacional, expandido pela Revolução Verde; o que
justifica o investimento de grande soma do dinheiro público para matar a sede das famílias do
Semiárido. Além disso, expulsam várias famílias de suas terras para instalar os canais do projeto de
integração da bacia do São Francisco que mais beneficiará aos empreendimentos da agricultura
irrigada do agronegócio, enquanto outros agricultores ribeirinhos continuam sedentos. O chão
estorricado, que só produzia espinho, ocupado pelo sertanejo empobrecido vai se estrangeirizando e
produzindo lavouras tantas que fazem ressoar o enunciado textualizado de Pero Vaz de Caminha:
“Aqui em se plantado tudo dá”. Todavia, isso é compreendido, na FD da convivência com a
semiaridez, da seguinte forma: nem tudo o que a terra do Semiárido produz graças ao “milagre do
agronegócio” chega com a quantidade e a qualidade preconizada pela segurança alimentar e
nutricional à mesa dos sertanejos empobrecidos. Estes devem se contentar com os restos, para que o
mercado não perca o que a exportação refuga.

8
Sementes crioulas são sementes nativas ou que não sofreram modificações genéticas.
O discurso cientificista serviu para produzir conhecimento sobre a região semiárida do
Nordeste a ponto de demonstrar a regularidade cíclica do fenômeno climático que inferiu o
deslizamento do sentido de polígono das secas para significar o semiárido – meio seco –, e não
terra seca. Concluindo, com Guimarães Duque, Celso Furtado, dentre outros estudiosos, que não é
possível combatê-la e que, com tecnologia, é possível produzir no Semiárido. Todavia, pronunciado
a favor das novas oligarquias, o discurso cientificista não serviu significativamente aos agricultores
familiares, que continuaram dependentes da extração degradativa da caatinga, cada vez mais
escassos e próximos da extinção para alimentar os animais nos períodos de estiagem e a depender
dos auxílios governamentais.

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