Você está na página 1de 107

1

2
Um segundo
poesias
admirativas
de mirações
casuais

3
Revisão:
Raphael Stein

Contato com o autor:


profpupo@gmail.com

4
Guilherme Pupo Falconni

Um segundo
poesias
admirativas
de mirações
casuais

5
6
Aos meus amados filhos
Flora, Lucas e Arthur,
aos meus amados pais
e a minha esposa

7
“Quero não o que está feito,
mas o que tortuosamente ainda se faz.
Minhas desequilibradas
palavras são o luxo de meu silêncio.”
Clarice Lispector – Água Viva

8
PREFÁCIO

Eis aqui, poetamigo irmão, o que em seus versos me


ocorreu, excluindo aquilo que me escapou.
Dura é a tarefa de prefaciar a obra de qualquer autor que
seja. Mais dura se torna quando se trata de Falconni, um
acadêmico, no mais pleno sentido da palavra. Por isso, demorei-
me contemplando (ad + mirando) os versos – para evitar tratá-
lo(s) com leviandade. Aguardei para assentar este prefácio, em
um momento de inspiração plena (se é que isso existe), digno da
altura do autor que hora comento (se é que posso vislumbrar tal
quintessência).
Não se enganem os futuros leitores achando que
encontrarão, aqui, água com açúcar e autoajuda. Falconni é
cáustico. Seus versos não deixam escapar nada – a vida é
pensada; no início e no fim; e do início ao fim do livro; e às vezes
com um realismo férreo que os desatentos chamarão de
pessimismo. Ele causa diversos sentimentos, reflexão, pra dizer
pouco.
Poeta, boêmio, filósofo, músico, historiador. Pra dizer
pouco sobre este autor de avant-garde.
A própria epígrafe escolhida pelo autor revela que ele se
arroga o direito e o dever de falar – dispõe-se a pagar o preço.
Mas o faz com maestria!
Seus versos estão repletos de questionamentos que fazem o
leitor refletir, fato que é possível notar desde o início, em LETRA
MORTA.
E em meio a tantos questionamentos, o poeta lança mão
do pronome “a gente” – sua fala por nós – sentimento de todos,
sem sentimentalismos, mas com o sentido pleno do humano e do
masculino, que também pode chorar.
Suas mirações conseguem contemplar temas diversos. A
vida, o cotidiano, o cotidiano das florestas de concreto, as
angústias, a angústia onde finda a vida, as revoltas-rebeldias-
revoluções, a solidão, o amor, o tempo, entre outros temas, são
temas reincidentes em seus versos aqui apresentados.
Com seus versos e sua linguagem poética, consegue
suavizar até mesmo a morte (cf. poema MADRUGADA)
O cotidiano é tratado com tamanha profundeza, que em
dias ruins, até mesmo o simples miar renitente de um gato pode
enlouquecer.

9
Com esse gato, figura recorrente ao longo do livro, e com
os Pombos, o poeta parece recitar ou sugerir a pergunta: “Que
grilo é esse? O que é que te aflige?”
E a resposta talvez possa surgir pela angústia de saber de si
– como em CAL VIRGEM.
Já “O Livro dos Pombos” parecem arrulhar: - de quanta
obsessão se faz um poeta, e de quanta dor se faz um homem?
O tempo é refletido neste livro como implacável, já que é
pensado pela metade historiador deste autor, nosso
contemporâneo.
A poética de Falconni, sem dúvida, revela um brincar com
palavras que perfeitamente se encaixa na contemporaneidade
poética do sec. XXI, que eu ousaria dizer, porque não, marcada
pela neopoesia, (pseudo)neopalavra, pós-desconstrução do
verso – TEMPORAMA; PENSAMOMENTO; TEMPOMIMA;
METATEMPO são exemplos disso.
Nessa linha da neopoesia chega mesmo a brincar com a
possibilidade semiótica do verso-palavra com sua Caligrafia
Viva. Vivíssima! E estabelece, sob um certo aspecto, em LÁPIS E
PAPEL e SÓLIDO, uma metalinguística da poética e do
existencial.
Apraze-me constatar e poder dizer que Falconni é um
revolucionário, em verso, palavra e em ações. A revolução como
tema aparece neste livro, ainda que seja de forma ensimesmada.
Os grandes fazem remissão aos grandes. Falconni deixa
transparecer muitas vezes, mesmo que não intencional, outros
grandes poetas, como Chico Buarque, João Cabral de Melo Neto e
também Pessoa.
Sempre é poético e às vezes melancólico. Explora a dor
como tema de um “fingi – dor” - “a lá Pessoa”. Alerta – viver é
bom, mas dói!
Explora também a beleza das imagens poéticas, como no
verso “Esse é o rio que em mim aldeia”.
Músico que é, explora a riqueza do som, chegando mesmo
a fazer trocadilhos poéticos-musicais (OUTRO SOM)
O rebuscamento de palavras que às vezes se apresenta
(roca, amplexo, AXIOMAS…) não detrai a beleza da simplicidade
de sua poética. Antes, revela uma simplicidade sem ser simplista.
Uma simplicidade sofisticada que pode se dar ao luxo de
rebuscar, em alguns momentos.
Há também uma maxi valorização dos questionamentos.
Às vezes ele contesta, com arte, o capitalismo consumista e a arte
como produto de consumo, apenas (PROMOÇÃO). Contesta

10
também se há a possibilidade de uma esquerda no mundo atual.
Contesta a própria contestação e deixa-nos a impressão de
ter passado pela Escola de Frankfurt.
Mas afirma o sentimento cosmopolita e antifascista e isso
basta.
O autor enudece o ser humano e a sociedade, com seus
versos. Enaltece as mirações casuais e o delirium tremens – como
pássaro maluco – dos solitários. Mas não fala de solidão como
um sentimento ruim – e isso alenta e dá prazer à leitura. Não é
um “choramingo” nem reclamação. É constatação que faz refletir.
A solidão neste livro chega mesmo a extrapolar a questão
meramente estética e temática, se apresentando ora como gosto,
ora como estilo de vida, sempre olhando o seu lado bom “como se
tratasse de um autor-sábio-toaísta ou zen”. E vê o belo mesmo
nas Perdas, pois perdas também propiciam poesia. E a poesia
surge como uma opção de terapia (ou medicalização) para o
homem.
E no pessimismo realista refletido em alguns versos, a vida
se equilibra. Sua mensagem parece ser – nas dificuldades da vida
nos mantemos. E (r)existimos.
A Posologia da vida alucina. Alucina com estresse, com um
coração dilacerado ou numa convenção social só por aparências,
como um casamento que continua apenas pró-forma
E apesar da impermanência, este poeta afirma a beleza da
vida.
Diante da revolta e da rebeldia, às vezes expõe sua
indignação foucaultiana frente a impossibilidade de se dizer o que
se pensa sem repetir o que alguém já disse. Contesta com seu
VERNÁCULO a “ordem do discurso” e cria, como quase todo
“bom” poeta, um paradoxo. Inverso daquilo que pensa, faz
inevitavelmente rememorar Leminski e seu “Invernáculo”. Aliás,
como já se disse, Falconni tangencia os grandes, por ser um. E
tangencia Leminski não apenas em VERNÁCULO, mas em
diversos jogos de palavras que se apresentam em todo o
desenrolar do livro.
Às vezes aflora seu lado cósmico – POEMA IRREAL parece
evidenciar a impossibilidade de se dizer o todo, O UNO.
Através de seus AXIOMAS, o autor parece querer
questionar – qual a verdadeira importância das pessoas e das
coisas?
Ao se aproximar do clímax, o livro fica ainda mais ácido e
com seu “Bestiário e Heresia”, o poeta contesta e desafia o
“status quo social”, teológico, ideológico e filosófico.

11
Dialogia de Alice das Maravilhas, no mínimo nos remete
a um mundo suprarreal, só para nos fazer deparar com nós
mesmos e nossas angústias, mais uma vez – a finitude do tempo
humano, diante da infinitude do tempo supra-humano e
universal.
Finalizando o livro, o poeta deixa uma Saída poética. O
poeta, o poema e o livro se despedem, como a alma que se
desprende.
Falconni é para quem tem coragem e não tem preconceito.
Delicia-se com a poética pós-moderna e está disposto a muita
reflexão.

Deliciem-se!

Professor Maurílio de Carvalho.


(O amigo, poeta e professor de letras,
tem vários livros publicados

12
13
LETRA MORTA

A quem importa
se a letra é parente da minhoca,
se a poesia se escondeu atrás da porta?
Se este determinismo é fatal?
O dia de hoje?
A quem importa,
essa letra torta,
essa letra morta?

14
CHUVARADA

Tem dias que sorrir dói a cara


e dentro da gente se enche de água.
A alegria fica esquisita, cinza,
nublada,
quase sem graça.
A alma das gentes fica ilhada.
Então, quando a gente cansa da solidão de dentro
ou não aguenta mais de tanta água,
a gente chove,
transborda e chora.
Enxurrada….

15
MADRUGADA

A Morte, ao amortecer o dia,


a noite fria
esfinge as memórias vividas.
A Morte, lá pelas tantas,
bem na noitinha,
antes da madrugada,
esgrimam na cabeça
tudo quase, todas as farpas
de uma ideia que passa…

É impertinente a penumbra nas pálpebras.


Amortece a mortalha
nos frios fios
de quente algodão.

16
GATO

O gato é o miado do telhado,


espantaram o rato.
Mais um dia como este
e eu me mato…

17
TEMPORAMA

Se o tempo entortar,
quem vai desentortar o tempo?
O tempo nunca fracassa, o tempo passa,
e o sentido é qualquer coisa assim.

18
GEOMÉTRICO IMPOSSÍVEL

Desejo uma esfera revolucionária,


nascida de uma espiral.
Não precisa ser real
nem realmente uma esfera,
basta ser um sólido, tridimensional,
nascido dos prolongamentos espiralados
de todos os pontos
que compõem sua própria espiral.

19
INCOMUM

A cova rasa, oca, comum,


tumba no reino do sol.
Não tem mais girassol
e o dia-mais-dia roca o incomum…

PENSAMOMENTO

Pensar momento.
Pensa pensar.
Momento pensamento.
Pensapensamento…

20
EM OBRAS

Amplexo estreito,
abraço em meu peito…
em construção.
– ESCUTA! Escuta, escuta…
É um coração…

PROMOÇÃO

Aqui não tem arte,


só tem poesia.
É grátis.

21
CONCRETO

Lá não tem nem tristeza,


só tem concreto.
Nos urbanos pulmões
entra o ar óxido.
Meu coração é puro e concreto.
Meu coração é puro concreto.
Meu coração puro é concreto.

22
A AVE

Ali vai a ave no seu voo maluco!


Lá vem um homem em seu passo cerebral.
– Deus!
– Deus!
– Deus!
– Ó, Deus!
Lá sentado ficou
e ninguém respondeu.
Foi,
foi voando,
ver o céu e a solidão,
exclamando sua vida,
interrogando seus medos
e virgulando seus pensamentos.

23
TEMPOMIMA

O tempo pegou todas as coisas e estragou,


pegou a hora só para passar.
O tempo que tempa como ele só,
passou tão rápido,
como se sempre estivesse lá.

Uma pitada de tempo é a hora.


Quem tempa melhor do que eu?
Eu tempo já faz tanto tempo quanto tudo,
que já não sei quanto tempo tudo tem.

24
MENTÍCULO

Anjos tristes caem do céu a todo momento!


E lá vou eu morrer de novo pela primeira vez.
– Escuta, pss, escuta!
É o ventrículo pulsando,
é o ventre,
é na mente, é o mentículo…
mentículo pensando.
Para e sente…

25
VENTRÍCULO

Ventrículo pulsante,
mentículo pensante.
Escuta essa respiração…
pulsa mente,
repulsa coração…

26
PROPOSTA

A vida se nos apresenta de modo,


tão patética,
que nos impõe a existência.
Apesar dos dramas vividos,
ela nos acorda todo santo dia,
como se nada, nadica,
houvesse ocorrido….

27
BRILHO

Tudo o que é belo,


tudo que brilha,
dura pouco.
A permanência é fria e demorada.
A permanência é muito solitária.

28
DÓI

Calor,
suor,
dor,
frio,
peso nos olhos.
É como se a cabeça
pedisse, pudesse, quisesse explodir.
Um castigo, um flagelo,
como numa punição.
Só e vazio
é duro quando se sente
que não vai mais ser feliz.
Dói demais quando ainda dói.

29
DELUSÃO

Nessa poesia não vou mentir.


Quero apenas ver as coisas como são.
Me sinto como um cão
que levou um tiro.
Assim é o vazio dessa razão…

30
NOTAS MENTAIS DE ANO NOVO

Um imbecil,
entre suas inúmeras qualidades,
é arrogante,
preguiçoso,
escuta pouco e fala demais.

Caso isso não seja um autorretrato,


lembrar de não ser um imbecil.

31
CHUVARADA

– Vai chover!
Gritam as nuvens….
Finalmente,
dentro da gente,
caem chuvas.
Chove em minha vila,
uma tristeza
corre em minha veia,
um rio que corre ébrio.
Esse é o rio que em mim aldeia.
Seu curso arrasta tudo,
postes, ruas, pontes e o espaço.
Serpenteia….
Arrasta caminhos e os passos.
Junto às trilhas que não trilhei,
apaga as boas pessoas
com as quais nunca conversei….
e poeira.
O tédio engole até a lama na minha aldeia.

E passa….
na rua onde toda gente mora.
Bem na minha porta devora,
a lama….
O lodo da cabeça….
Arrasta os pensamentos.
Leva e engole momentos.

32
E quando vem o sol,
não há mais tristeza, na vila,
na veia,
qualquer pensâme,
pensamentos empilhados até o teto….
só resta asfalto e concreto
e o coração de gente,
puro
concreto….

33
VERNÁCULO

Tudo é vício de linguagem,


todos escravos das palavras
e é esse determinismo que me mata.

Às vezes, não raras,


sua voz e não a minha,
passa a declamar minha poesia.
Noutras, seu riso invade minha cabeça.
Neste tempo percebo que algo está errado.
Obcecado na ideia de sobreviver,
quero coisa prática,
como tudo que é idealizado.
Tenho medo do fracasso.
É esse determinismo que me mata.

34
MANIFESTO DE AMOR

É preciso amar
para continuar vivendo.
Mesmo que amar seja apenas
um truque para viver melhor.
Mesmo que se ame
para não ser igual.
É preciso amar com medo.
Amar negando a existência do amor.
Amar como se amou
quando se acreditava no amor.
Amar, amando como se acredita ser o amor.
E fazer poesia,
tocar músicas,
fazer teatro,
inventando alegria.
É preciso amar….
É preciso amar,
um pouco mais
a cada dia.

35
FIO DA NAVALHA

Viver é fio de navalha,


à espera de sanar
ou sangrar as feridas.
O frio é o medo,
a dor sou eu.
A solidão e o vazio
são seus.
Viver é fio de navalha
não vendo a hora de sangrar.

36
POUCA COISA

Pouca coisa.
Primeiro uma parte,
depois outra,
então inteiro.
Mesmo assim,
pouca coisa,
para não falar:
solidão.

37
METATEMPO

O tempo tiquetaqueia
lá no relógio da cozinha
e não tem tempo de parar.
Lá vem ele sempre passando,
no mesmo lugar.
Sem nunca esquecer de
tiquetaquear.

38
A COLUNA ERETA

A coluna ereta
à calúnia errata.
A cabeça obesa de pensar.
Na cardíaca bomba
pulsa
engodo e chiste,
engano e farsa.
Rota a face,
decrépita ruga.

39
VERSINHO ESQUISITO

Dum versinho esquisito,


sem pé nem cabeça,
brotou uma indagação
que ninguém pensa:
– Quem viu o pássaro maluco
em seu voo esquisito?
Por favor, sem demora,
fale comigo.

40
OLHADELA

Olhei,
não percebi,
era muito mais
do que devia saber.
Mas agora sei
o quanto é só.

41
PÁSSARO MALUCO

Aí vem o pássaro maluco


em seu voo esquisito.
Lá vai o pássaro maluco
em seu voo esquisito.
Xi! Que versinho
mais ao inverso,
sem pé nem cabeça.
– Sabe o que é isto?
É o pássaro maluco em seu voo esquisito.

VIDA OCA

Pele em ossos,
não mais que num varal
para esta carne seca,
este couro fino, curtido.

Árida é a falta do sangue,


do suco
da vida como visgo.
Só resta areia, pó e cascalho,
a serragem fofa da cabeça,
nos pulmões,
fumaça.

42
FLERTE

Esguia,
sinuosa,
clara.
Passou por mim
bailando
como se flutuasse.
Menos mansamente,
como surgiu,
desapareceu.
Se desfez no ar,
sem fitar,
nem esperar.
Era só
fumaça
de
incenso….

43
MADRUGADAS

Quem canta solitário na madrugada


conhece também o dia,
só não conhece companhia
de quem não canta à madrugada.

44
OUTRO SOM

Uma dor em dó maior,


lá sem sol,
si em mim
um tom de mi.

45
PROPRIEDADE PARTICULAR

Esta solidão que trago


e que tenho
é somente minha,
e por mais que sorria,
não vai conseguir me roubar.

46
CALIGRAFIA VIVA

Foi logo de manhã,


deu uma volta e desceu,
deu um pulo e botou-se um pingo.
Estava feito, estava pronto.
Mas hoje, hoje era diferente,
sentia-se diferente
e estava decidido.
Não queria mais ser palavra,
nem letra,
nem mesmo gíria.
“Oi” hoje era para ser apenas um caracol.
Um pequeno caracol.
… … ...Oï
Já não parava
mais quieto em conversa
ou carta alguma,
onde quer que o colocassem.
Hoje era especial,
queria passear e conhecer o campo.

47
CASINHA

Que casinha pequenina,


que gente mora dentro dela?
– Uma porta e uma janela.

48
RAIKAI INFELIZ

Faz tempo
e o tempo já não sabe mais,
já foi o dia de ser feliz….

49
BARULHO

Ninguém consegue dormir


com o barulho que o tempo faz.
E faz tempo que o tempo faz barulho,
o tempo faz barulho demais.
Faz barulho quando passa por toda a gente,
faz barulho quando não quer passar.
Faz barulho para não deixar a gente dormir,
faz barulho para acordar….

50
GATO NO TELHADO

Olha lá
o gato no telhado.
Olha lá o gato,
duas orelhas quatro patas
e um rabo.
Lá vem o miado do gato.
Lá vai o gato inteiro.

51
COISINHA

Coisa,
coisinha futurosa
que nunca vem.
Por você espero saudoso.
Por você espero saudosa
coisa que
nunca vem.

52
COISINHA OUTRA

Coisinha típica,
muito corriqueira.
Se não me perguntarem de esgueio,
meio às esquerdas.
Qual esquerda?
A de quem entra
ou a da direita.

53
PESSOA

Se tantas pessoas podem lhe ter,


se tantos corpos lhe querem,
por que preciso lhe
querer também?
Por que preciso lhe
querer tão bem?
Você não precisa de mim.

54
MENININHA

Como é essa menina?


Linda e pequenina,
ama
e cabe num coração.
Um sentimento de bolso
do tamanho da palma da mão….

55
FOTOGRAFIA

Mais uma dessas fotos vai virar memória.


O que eu mais gostaria de dizer aos senhores
é que não tenho nada a dizer.
Do tempo das falas,
as perguntas
e mais nada.

56
POEMA IRREAL

É tudo limite.
Até o irreal é limitado,
creio que sei algo,
mas estou enganado,
roto,
obtuso,
errado.
É só.

57
PORRADA

Quero tomar um banho de faca,


arrancar da boca dinamite,
arrancar minhas tripas de lã
e do peito o coração de piche.
E quando nada tiver restado,
Vou dormir uma noite de sol.

58
PESSOAS ESTRANHAS

As placas nas ruas são pessoas estanques.


As pessoas das ruas são placas distantes
dizendo coisas, como letreiros….
As pessoas são placas estranhas.
As placas fazem silêncio.

59
POEMA ROTO

Paira tênue em toda poesia,


pois soa belo que paire.
Porém, o que realmente paira?
Nada paira,
somente vaga um tênue chavão,
o jargão do mau gosto
num poema roto.

60
POSOLOGIA

Às vezes,
algo tão banal
quanto o ar
causa um tipo terrível de alergia;
alguns dias, não seguida a correta posologia,
o ar alucina.

61
AMOR

Quero amor
por quem quer que seja,
onde quer que esteja.
Quero amar
tão profundamente
quanto minha alma “poça”.

62
NÁUFRAGOS

Esperanças na vida...
Vão-se últimas caravelas,
uma após outra se afastando,
infinitamente náufragas,

solitariamente, naufragando.

63
AXIOMAS
apotegmas
prolóquios
rifões

Olha a lua no fim da rua.


Olha a rua por debaixo dela….

Olha o meu olhar, olhar o seu,


olha os seus olhos nos meus.

Ao inferno com as batatas.


E ao diabo com as pessoas.

Par
é não ficar sozinho.

64
DIÁRIA

Pra quem olha,


o dia passa
e a vida vai à fora.
Passo o dia, passa hora,
passa perto, passo fora.
Só não passa meu amor…

65
SAUDADES

Não tenho saudades,


renasço a cada momento.
O tempo não me cai bem.

Não quero memória,


rancores,
ressentimentos.
Renasço a cada instante.
E nesse instante,
em cada momento
o tempo
não me faz bem.

66
MINTO

Minto, pois já não sei o que sinto.


Finjo e esvazio o meu coração.
Sinto…
Pensamentos são fantasia.
Penso…
Sentimentos são ilusão.

67
PERDAS

Perdi oque eu amava,


sua amizade, seu respeito.
Singular, confiante; seu jeito
quanto me ajudara a caminhar.
Perdi, bem devagar,
como se perde todas as coisas boas na vida,
sem querer, sem perceber,
que havia:
a poesia.

68
APOTEGMA

Qualquer ponto num plano dado


é sempre uma circunferência
cujo raio se apequena ao infinito,
porém sempre maior e nunca igual a zero.
Como quereria Zenão, com sua flecha
em voo ao alvo.
Do mesmo modo,
qualquer ponto no espaço é uma esfera
cujo raio, assim como no primeiro caso,
sempre escapa ao zero.
Posto isso, questiona-se:
Qual a área desse ponto?
Qual o volume dessa esfera?
Qual sua massa?
A quem isso importa?

69
LÁPIS E PAPEL

Poesia é alma esquecida


num mundo colapso.
Poesia é só,
é lapso
de lápis e papel.

70
MADRUGADA PASSA

Na madrugada,
corre a caneta pelo papel,
carro na avenida,
sangue da vítima desprevenida,
dinheiro no bordel.
Corre o véu do tempo
e logo na manhãzinha corre aquele vento
que vira o céu.

71
COCHICHO

Atento, atento amor…


Amante e amador
das coisas que fazem n’alma.

Atento, atento amor…


nesse canto fingidor
das coisas profundas d’alma.

72
CIVILIZAÇÃO

Civilização.
Civiliza ação.
Civiliza cão.
Civiliza mão.
Civiliza nada.
Civiliza não!
Moralização.
Moraliza ação.
Moraliza cão.
Moraliza mão.
Moraliza nada.
Moraliza não!
Virilização.
Viriliza ação.
Viriliza cão.
Viriliza mão.
Viriliza nada.
Viriliza não!

73
SEMIPÁTRIA PATRIÓTICA

pátria Pedra
pátria Podre
pátria Puta.
Nacionalismo
Nasce o fascismo
Nasceu na bosta.
E é a mim agora a quem se volta.
E é a mim agora aquém se volta.
Pátria idi
Pátria ego
Patriota
Idi pátria
Idi ego
Ide.
Idiota.......

74
LAVOURA

Fertilização.
Fertiliza são.
Fertiliza ação.
Fertiliza terra.
Fertiliza
o chão.

75
N’'ALMA

O frio n’alma
à flor da pele
a realidade aflige.
(a ferida fere)
a dor d'alma
ao frio da pele

76
ORÁCULO E PUTREFAÇÃO

Das pérolas aos porcos;


A vida é lama perfumada.
Um detalhe que passa.
Lodo oloroso,
embotado de ossos,
quinquilharias,
mortos-vivos,
cadáveres pilhados,
bugigangas de viagem.
Putrefação alucinada
joga nas ruas o jogo social,
o resto dos dias
nos restos das vidas.
Caldo groso de náufragos corpos, coisas,
donde borbulham vozes, lembranças,
nas cabeças catedrais.
Tudo flutua à deriva.
Ilusão, ao alcance das mãos,
escorre pelas bordas do tempo.
Ilusão, ao alcance das mãos,
escorre pelas bordas da vida.

77
BILHETE NA MESA DO CAFÉ, FRIO

E quando fingia estar só,


você dormia
e morri assim,
fazendo manhãs…

78
VIVO

Caminho rápido,
Corro lento.
Ofego,
quase percebo;
estou vivo…

79
SÓLIDO

Ser parede.
Ser porta.
Ser mão reta,
ser mão torta.
Ser a cara,
depois das costas.
Ser verso
ou ser
prosa?

80
CRÔNICA

O triste fim de dona Tica, a viúva rica.

Dona Tica, viúva rica,


recebeu um patrimônio
para contrair matrimônio
com o, infelizmente finado, Possidônio.

O enlace até marcado,


o reverendo já quitado,
dar-se-ia na capela de Santo Antônio.

Tica, com esse patrimônio,


tornar-se-ia ainda mais rica.
Porém, finado o coitado, sozinha fica.
Enlouquecida coitada, sem matrimônio,
desesperada e solitária,
vende a alma pro demônio.

Tica, pobrezinha, não viu buquê, véu e grinalda


nem terno.
Porém, agora já falecida,
de mãos dadas,
vivem boas no inferno.

81
CAL VIRGEM

Mau coração é cal virgem


na carne viva.
Minha razão, vendaval.
A saber do mais,
o que saber de mim;
o resto é só agreste,
brisa morna,
caatinga e chão de pé de moleque.

82
CARNE VIVA

Enquanto a carne é viva,


arde o sangue,
dói a ferida.
Enquanto a carne é viva,
Sangra a dor,
fere a vida.
Quando a carne é viva,
quanto a carne é viva?
É viva quando jorra sangue
a espuma aferida.
A carne é viva,
quando em carne viva.

83
LIVRO DOS POMBOS

84
POMBOS E OUTRAS AVES

Pombos voam melhor que galinhas


e não voam melhor que beija-flores,
que voam melhor que os pombos
e as galinhas.
Estas, por sua vez, não sabem voar.
Já, jabutis não voam,
apesar de não servirem
como boas galinhas.

85
DE HOMENS E POMBOS

Os homens e os pombos
não voam melhor que os beija-flores.
O homem sofre,
os pombos têm histoplasmose
ou tuberculose, não sei,
só sei que tem, o quê tem.
O homem não tem asas, nem voa.
Não tem pés de pombo, nem bico.
Mas podem matar.
O homem é um pombo que não sabe voar.
Mas mesmo assim caça o pombo e come.
Assa a galinha e mata sua fome.
Mas nem a galinha ou o pombo assam o homem.
Quem assa o homem é o sol
e a terra come.

86
CONTINUAM OS POMBOS

Agora é só nisso que penso,


os pombos não pensam
e não usam sapatos.
Eu, por exemplo,
hoje uso sandálias
e não sapatos para pombos.
Não uso nem sapatos
ou qualquer coisa feita de pombos.
Minha cabeça está cheia delas.
Meu estômago parece cheio de borboletas.
Pombos não comem borboletas.
Não sei o que comem, os pombos.
Sei que são maridos das pombas.
Os pombos levam recados.
As pombas não sei se trabalham.
Os pombos são os explorados.
Sorte dos operários.
Os pombos não são o melhor amigo do homem.
O pombo é uma ave estúpida,
o homem não é reciclável….

(aqui termina o Livro dos Pombos)

87
BESTIÁRIO E HERESIA
ou
Versos detestáveis

“E pur si mouve
si mouve!!!”*

1 Segundo a tradição, essa frase teria sido sussurrada pelo filósofo


italiano Galileo Galilei, em 22 de junho de 1633, após a leitura de
sua abjuração no fim do processo inquisitorial do Santo Oficio.

88
BRASA DO PRESENTE

A brasa do presente
consome o futuro,
sem filtro e sem fumo,
faz fumaça do passado,
do vivido,
do deixado.
Eterno é o diabo,
pobre e coitado.

89
MAIS SÓ QUE O DIABO

Mais só que o diabo.


A cara e o corpo, o escarro.
Do amor, o cigarro.
Do tesão, escárnio.
Mais só que o diabo.

90
AINDA MAIS SÓ

Só é o diabo.
As eternidades são iguais
aos olhares dos retratos,
fitam,
aflitam.
Ser eterno e ser estático,
sisudo,
burocrático.
E ainda:
certo,
imutável,
pleno, estanque,
irredutível, irrefutável.
Então nulo, desprezível, dispensável.

91
UMA DAS ÚLTIMAS HERESIAS

Ave, diabo,
pobre coitado,
escapou da eternidade,
umbral dos danados,
donos da verdade.
Como é sabido,
entre tudo que é eterno
nunca se ouviu dizer
que constasse o inferno.
Triste, triste mesmo, é o santíssimo.
Tudo ouve,
assiste
e conhece
ad aeternum.

92
CALÚNIA, PECADO E DANAÇÃO!

Calúnia, pecado e danação!


Crianças mentirosas não entram no céu.
Moças donzelas não têm salvação.
Quem rouba por fome,
com fome, no inferno, será devorado.
– Esse é o pão que o diabo amassou!
– É a hora do tribunal!
O Medo-diabo é a lei
de quem errou
deus é o rei.
Deus errou?
Eu errei?

93
POEMA MALVADO

Belzebu,
Cão,
Capeta,
Demônio,
Diabo, Diacho,
Mefisto,
Mefistófeles,
Satanás,
Tinhoso,
Tantos nomes para o mal,
para a culpa e para o medo,
quando os verdadeiros
são todos os “homens”
Antônio,
João,
Ana,
Guilherme,
Augusta,
Fulano, Alfredo…

(aqui termina o Livro Bestiário e Heresia)

94
DIALOGIA DE ALICE DAS MARAVILHAS

95
DIÁLOGO PRIMEIRO

O que poderia Alice dizer


perante aquela figura alada?
Uma linda borboleta,
a antiga lagarta.
– Vamos! Vamos, menina,
se não voar, o tempo passa
e não vai ver o sol!
– Como não vou ver o sol – Respondeu Alice -
se ele está aí para todos ver?
– Ara! Este não é o sol, este foi o sol. – Disse a borboleta
e continuou – E você, o que é? Quem é você?
Antes que Alice pudesse rebater
a antiga lagarta, a borboleta saiu voando até perder-se de
vista.
Apesar de não entender muito bem o que ela lhe dissera,
aquelas palavras não lhe soavam de todo incoerente.

96
DIÁLOGO SEGUNDO

Acordar alvorada…
Alice (a do país das maravilhas) em suas conversas com o
chapeleiro louco e a lebre:
– Que dia é hoje? Que dia realmente é hoje?
– Se não é sexta-feira,
será que não é realmente sexta-feira?
– Em todo o universo?…
– Que dia é naquela estrela? Naquele planeta?
– E qual é o dia da nojeira? Que dia é no vazio?
– Será o mesmo dia em todo espaço vazio?
– Não sei! Não sabe! Ninguém sabe…
Acho que só Deus sabe o dia.
Pois, afinal, descansou no sétimo.
Vai ver, ele só sabia o sétimo e nenhum outro.
Mas o sétimo, de quais dias?
Ou não descansou?
Não descansou porque é deus,
porque não é fiel,
ou porque é ateu,
então, não guarda o sétimo dia.
Talvez, os melhores dias venham depois do sétimo
e Deus guardou-os para si,
restando-nos só os primeiros.
Por isso, sabe qual é o sétimo e todos os outros.
– Mas afinal, qual dia é Hoje?
Mas, qual dia, realmente, é hoje?

97
DIÁLOGO TERCEIRO

Com os olhos doces de raiva, gritou Alice:


– Pimenta no nariz da rainha,
arranquem-lhe a coroa,
cortem-lhe a cabeça!

(aqui termina: Dialogia de Alice das Maravilhas)

98
EPILOGAIS

99
HAIKAIZINHO

Sai,
vai,
cai
e vêm o fim.

100
CASA CAIADA

Da minha casa vazia,


caiada e pequenina,
levaram até as janelas
enquanto eu dormia.

Da minha casa vazia,


pequenina e caiada
levaram até as tramelas
e me deixaram nada.

101
HISTORINHA

História típica
de pouca retórica.
Tudo aquilo que não vale ser dito
ou sequer repetido
em qualquer roda de amigos
em qualquer hora…

102
AO FIM

Que vá.
Tudo bem.
Tudo para bem longe,
para bem de mim.
Para não ver
e para ver o fim.

103
SAÍDA

A letra é parente da minhoca.


A poesia se escondeu atrás da porta.
Antes de sair dessa cabeça,
apague a luz,

pois tudo está


uma grande confusão

104
105
SUMÁRIO

Prefácio 9
Letra Morta 14
Chuvarada 15
Madrugada 16
Gato 17
Temporama 18
Geométrico Impossível 19
Incomum 20
Pensamomento 20
Em obras 21
Promoção 21
Concreto 22
A ave 23
Tempomima 24
Mentículo 25
Ventrículo 26
Proposta 27
Brilho 28
Dói 29
Delusão 30
Notas mentais de ano novo 31
Chuvarada 32
Vernáculo 34
Manifesto de amor 35
Fio da navalha 36
Pouca coisa 37
Metatempo 38
A coluna ereta 39
Versinho esquisito 40
Olhadela 41
Pássaro maluco 42
Vida oca 43Flerte 44
Madrugadas 45
Outro som 46
Propriedade particular 47
Caligrafia viva 48
Casinha 49
Raikai infeliz 50
Barulho 51
Gato no telhado 52
Coisinha 53
Coisinha outra 54
Pessoa 55
Menininha 56
Fotografia 57
Poema irreal 58

106
Porrada 59
Pessoas estranhas 60
Poema roto 61
Posologia 62
Amor 63
Náufragos 64
Diária 66
Saudades 67
Minto 68
Perdas 69
Apotegma 70
Lápis e papel 71
Madrugada passa 72
Cochicho 73
Civilização 74
Semipátria patriótica 75
Lavoura 76
N’alma 77
Oráculo e putrefação 78
Bilhete na mesa do café, frio 79
Vivo 80Sólido 81
Crônica 82
Cal virgem 83
Carne viva 84
LIVRO DOS POMBOS 85
Pombos e outras aves 86
De homens e pombos 87
Continuam os pombos 88
BESTIÁRIO E HERESIA 89
Brasa do presente 90
Mais só que o Diabo 91
Ainda mais só 92
Uma das últimas heresias 93
Calúnia, pecado e danação! 94
Poema malvado 95
DIALOGIA DE ALICE DAS MARAVILHAS 97
Diálogo primeiro 98
Diálogo segundo 99
Diálogo terceiro 100
EPILOGAIS 101
Haikaizinho 102
Casa caiAda 103
Historinha 104
Ao fim 105
Saída 106

107

Você também pode gostar