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Peregrinação

Logo ao outro dia, pela menhã, nos partimos desta aldeia e fomos velejando ao
longo da costa com ventos terrenhos até despois da véspera, que dobrámos os
ilhéus de Anchepisão. e servindo-nos inda o vento sueste, inda que algum tanto
ponteiro, nos fizemos no bordo do mar o que mais restava do dia c alguma parte
da noite. E, sendo já passado pouco mais de meio quarto da prima, nos deu uma
trovoada de noroeste (que são os temporais que comummente a mor parte do ano
cursam nesta ilha Çarnalra1) que de todo nos teve soçobrados e, ficando a
lanchara a árvore seca, sem mastro nem velas, porque tudo o vento nos fez em
pedaços, e com três rombos por junto da quilha, nos fomos logo a pique
subitamente ao fundo, sem podermos salvar cousa nenhuma, e muito poucos as
vidas, porque de vime e oito pessoas que nela íamos, as vinte e três se afogaram
em menos de um credo, e os cinco, que escapámos, somente pela misericórdia de
Nosso Senhor, c assai feridos, passámos o mais que restava da noite postos sobre
os penedos, lamentando com bem de lágrimas o triste sucesso da nossa perdição,
E porque então nos não soubemos dar a conselho, nem determinar-nos no que
fizéssemos de nós. nem que caminho tomássemos, por ser a terra toda alagadiça
e fechada de mato tão basto que nenhum pássaro, por muito pequeno que fosse,
podia passar por antre os espinhos de que o arvoredo silvestre era tecido,
estivemos ali três dias postos assi em cócoras, sobre uns penedos, sem comermos
em todos eles mais que os limos do mar que, na babujem da água, achávamos.
Passado este tempo, com assaz de confusão e pena, sem sabermos determinar o
que fosse de nós, caminhámos ao longo da ilha Çamatra. atolados na vasa até à
cinta, aquele dia e. já quase sol posto, chegámos à boca de um rio pequeno, de
pouco mais de um tiro de besta em largo que, por ser muito fundo e nós virmos
muito cansados, nos não atrevemos a o passar. Ali nos agasalhámos aquela noite,
metidos na água até o pescoço, e a passámos com assaz, de tormento e trabalha
por parte dos atabões2 e mosquitos do mato que nos atazanavam de tal maneira
que não havia nenhum de nós que não estivesse banhado em sangue. E como a
menhã foi clara, perguntei aos quatro marinheiros que iam comigo se conheciam
aquela terra e se havia ali por derredor alguma povoação, a que um deles,
homem já de dias1, e casado em Malaca, me respondeu chorando:
- A povoação, senhor, que tu e eu agora temos mais perto, se Deus
milagrosamente nos não socorre, é a morte penosa que temos diante dos olhos, e
a conta dos pecados que antes de muito poucas horas havemos de dar. para o
qual nos é necessário fazermo-nos prestes muito depressa, como quem
forçadamente há-de passar outro muito mor trago que este em que nos agora
vemos, tomando com paciência isto que da mão de Deus nos é dado; e não te
desconsoles por cousa que vejas, e que o temor te ponha diante, porque,
considerado bem tudo, pouco vai em ser mais hoje que a menhã4.
(...)
Determinados todos quatro nisto, roguei eu aos dois deles que fossem diante, e
ao outro que fosse junto comigo para me ajudar a sustentar, porque ia já muito
fraco; dos dois, se lançou logo um ao rio. e após ele. o outro, dizendo-me ambos
que os seguisse e não houvesse medo. E, em chegando eles a pouco mais de meio
rio, arremeteram a eles dois lagartos muito grandes e. em muito pequeno
espaço, fizeram a cada um deles em quatro pedaços, ficando toda a água cheia
de sangue, e assi os levaram ao fundo; de qual vista fiquei eu tão assombrado que
nem gritar pude. nem sei quem me tirou fora, nem como escapei, porque neste
tempo estava metido na água até os peitos co outro negro que me linha pela
mão. o qual estava tão cheio de medo que não sabia parte de si.

Femão Mendes Pinto, Peregrinação

1. Analise o excerto da Peregrinação e, entre outros aspectos considerados


pertinentes, desenvolva os seguintes tópicos:
• A localização da acção.
• A descrição da situação.
• Os comportamentos e reacções das personagens.
• O conceito de herói.

2. Com exemplos do texto transcrito, comprove a afirmação contida na citação


seguinte:

"A linguagem de Fernão Mendes Pinto é simples, natural e exuberante, por vezes
cheia de belas imagens. As coisas que trata ganham cor, vida e relevo, são de
impressionante realismo, vê-se nelas movimento e sente-se todo o seu
dramatismo. O vocabulário é frequentemente estranho porque Mendes Pinto foi o
escritor que deu maior impulso à literatura exótica entre nós."

A. de Carvalho Costa, in Questões sobre História da Literatura Portuguesa

II

De forma sucinta, não excedendo o limite de 10 linhas, mostre até que ponto
a Peregrinação nos oferece uma visão exótica, mas muito humana, do mundo
oriental.

III

Dentro da Literatura de Viagens, embora de uma forma muito distinta, também


se insere a Carta do Achamento de Pêro Vaz de Caminha.
Numa dissertação bem elaborada, mostre como esta se apresenta como um
documento rigoroso e fidedigno da chegada dos europeus ao Brasil.

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