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Comunicação Popular: O Diabo na Literatura de Cordel

Patricio Dugnani1

Resumo
O objetivo desse artigo é analisar o sistema de comunicação popular representado
pela literatura de cordel, observando a relação entre a herança simbólica da
representação da figura do diabo na Idade Média e sua semelhança na descrição dessa
entidade na cultura popular brasileira. Entende-se como sistemas de comunicação
popular, à partir dos estudos de J. Luyten, a emissão de conteúdos transmitidos por
estratégias e meios que se desenvolvem em uma cultura popular espontânea. Nesse
estudo buscou-se uma metodologia de pesquisa teórica e exploratória, levantando
junto às expressões da cultura popular, formas de comunicação que se dão
principalmente à partir da literatura de cordel, e do conjunto do cancioneiro de origem
folclórica típicas do Brasil. Justifica-se esse artigo devido a importância em se
resgatar as formas e conteúdos que esse tipo de literatura são capazes de revelar,
como sua metrificação, seu sistemas de rimas e seus conteúdos, que apresentam as
características da formação do imaginário brasileiro, e sua influência medieval
durante à colonização. Além disso, sua eficiência como meio de comunicação,
representada pela extensão de contato que esses temas e formas conseguiram
alcançar, podem auxiliar as pesquisas que pretendem entender o funcionamento dos
sistemas de comunicação popular.

Palavras-chaves: Comunicação, sistemas, literatura, cordel, diabo, poesia.

1
Doutor em Comunicação e Semiótica; Professor e Pesquisador da Universidade
Presbiteriana Mackenzie

1
Abstract
The aim of this article is to analyze the popular communication system represented by
cordel literature, observing the relation between the symbolic heritage of the
representation of the figure of the devil in the Middle Ages and its similarity in the
description of this entity in Brazilian popular culture. It is understood as systems of
popular communication, from the studies of J. Luyten, the emission of content
transmitted by strategies and means that develop in a spontaneous popular culture. In
this study, a methodology of theoretical and exploratory research was sought, raising
together with the expressions of popular culture, forms of communication that are
given mainly from the literature of cordel, and from the set of the songbook of
folkloric origin typical of Brazil. This article is justified because of its importance in
rescuing the forms and contents that this type of literature is capable of revealing,
such as its metrification, its rhyme systems and its contents, which present the
characteristics of the Brazilian imaginary formation, and its influence During
colonization. In addition, its efficiency as a means of communication, represented by
the extent of contact that these themes and forms have managed to achieve, can help
the research that intends to understand the functioning of popular communication
systems.

Keywords: Comunnication, system, literature, cordel, devil, poetry.

Introdução
No ano de 2001, comemorou-se o centenário do movimento editorial que resultaria na
expressão de uma forma de literatura, com forte influência da oralidade e de
características muito particulares em relação à cultura popular espontânea a qual é
denominada como Literatura de Cordel.

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Essa literatura se caracteriza pela produção de poemas com temática popular, tinham
funções informativas, moralizantes, eram metrificados, rimados, e com uma
sonoridade que potencializava a oralidade em suas apresentações (os poemas de
cordel eram normalmente declamados em praça pública, antes de serem vendidos), e
eram comercializados, principalmente, nas feiras e praças da região nordeste. Essa
poesia fora nomeada como literatura de cordel, pois nas apresentações, os poetas, ou
os que comercializavam essas publicações, além de as declamarem em voz alta,
penduravam os livretos em cordames, barbantes, para que ficassem expostos para o
público consumidor.
Nesse artigo pretende-se analisar o sistema de comunicação popular representado pela
literatura de cordel, observando a relação entre a herança simbólica (DUGNANI,
2012) da representação da figura do diabo na Idade Média e sua semelhança na
descrição dessa entidade na cultura popular brasileira. Entende-se como sistemas de
comunicação popular, à partir dos estudos de J. Luyten, a emissão de conteúdos
transmitidos por estratégias e meios que se desenvolvem em uma cultura popular
espontânea. Nesse estudo buscou-se uma metodologia de pesquisa teórica e
exploratória, levantando junto às expressões da cultura popular, formas de
comunicação que se dão principalmente à partir da literatura de cordel, e do conjunto
do cancioneiro de origem folclórica típicas do Brasil. Justifica-se esse artigo devido a
importância em se resgatar as formas e conteúdos que esse tipo de literatura são
capazes de revelar, como sua metrificação, seu sistemas de rimas e seus conteúdos,
que apresentam as características da formação do imaginário brasileiro, e sua
influência medieval durante à colonização. Além disso, sua eficiência como meio de
comunicação, representada pela extensão de contato que esses temas e formas
conseguiram alcançar, podem auxiliar as pesquisas que pretendem entender o
funcionamento dos sistemas de comunicação popular.

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Literatura de Cordel e Comunicação
A literatura de cordel era escrita por poetas, quase sempre, com pouco estudo
acadêmico, porém com uma habilidade fantástica na manipulação das palavras, antes
pela oralidade, para depois registrar pela escrita. Outras características destacáveis são
a capacidade de criação das rimas quase espontaneamente, a observação e
representação das necessidades e temas, enfim, a sensibilidade ao captar os signos à
sua volta - os signos culturais - transformar em poesia, e reapresenta-los de forma
criativa a uma população, disseminando informações, fazendo a manutenção de
questões morais, éticas e políticas daquela comunidade, além de imprimir, conforme o
pensamento de Iúri Lotman (FERREIRA, 2004, p.77), um golpe contra o
“esquecimento”, através da repetição de seus versos, promove o registro da memória
cultural, fortalecendo a identidade dos indivíduos que compõem uma comunidade.
Lembrando-se que comunicar significa em latim – tornar comum - e que uma
comunidade é composta por uma “população organizada”, em um “território” e que
acabam por criar “relações de interdependência” (MATTELART, 1999, p. 31), a
identidade é a amalgama de um grupo social, e essa identidade é constituída a partir
da cultura e, consequentemente, pela memória. Por isso, seguindo a visão da
semiótica da cultura, deve-se observar que a cultura é um sistema de signos e não um
depósito de informações:

A cultura não é um depósito de informações; é um mecanismo


organizado, de modo extremamente complexo, que conserva as
informações, elaborando continuamente os procedimentos mais
vantajosos e compatíveis. Recebe as coisas novas, codifica e
decodifica mensagens, traduzindo-as para um outro sistema de
signos (FERREIRA, 2004, p. 73).

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Entre tantos poetas habilidosos podemos citar Rodolfo Coelho Cavalcanti (criador do
“best-seller”, A Moça que Bateu na Mãe e Virou Cachorra, que vendeu 500.000
exemplares), Manuel Caboclo, João Marthins Athayde, José Gomes (Cuíca de Santo
Amaro), Leandro Gomes e, Patativa do Assaré.
A temática da literatura de cordel gira em torno das questões populares, como
histórias fantásticas (O Homem que deu a à Luz um Menino, de Manoel Caboclo),
fatos cotidianos e jornalísticos (O Homem de Brotas, ou A Mulher que deixou o
Marido Desarmado, de Cuíca de Santo Amaro), contos moralizantes (A Sorte de uma
Meretriz, de João Marthins Athayde), a política (Jânio Quadros e as suas..., de Cuíca
de Santo Amaro), fatos religiosos (A Visita dos Romeiros como era Antigamente, de
Manuel Caboclo), entre outros. Além desses temas, e além dos temas moralizantes, a
literatura de cordel tinha como função social (através de seus A, B, C) a alfabetização
dos membros das comunidades (A Arca das Letras, de José Francisco Borges).
Outro fator interessante na literatura de cordel, que muitas vezes os leitores não
percebem, é o fato desta poesia – aparentemente simples em sua temática, na
utilização das rimas e na visão maniqueísta de sua argumentação – demonstrar uma
construção poética sofisticada em sua metrificação, o que nos faz lembrar da tradição
oral medieval dos trovadores, e, principalmente, do teatro de Gil Vicente, de onde
percebem-se influências na produção literária popular brasileira.
Encontramos entre a literatura de cordel, poemas que obedecem uma métrica rígida,
da qual, as medidas das sílabas poéticas se destacam, principalmente entre 05, 07, e
10 sílabas. Os poemas cujos versos apresentam 07 sílabas poéticas são denominados
redondilhas maiores, os de 05 sílabas denominam-se redondilhas menores, e os de 10
sílabas são os decassílabos. Para metrificarmos um poema, ou para analisarmos a sua
medida, precisamos dividir as suas sílabas e contá-las. Porém, na métrica poética,
levamos em consideração apenas até a última sílaba tônica. Por exemplo:

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Es/ses/ ho/mens/ da/ po/lí/ti/ca
1 2 3 4 5 6 7
Leandro Gomes Machado (1865 – 1918)

Veja como no poema de Leandro Gomes Machado – As Promessas da Política – o


autor dividiu as sílabas, porém apenas as contou até a última sílaba tônica, que no
caso é o /li/ da palavra política. Ou seja, o verso tem 09 sílabas, mas só são contadas
no caso da metrificação sete sílabas poéticas, trata-se de uma redondilha maior.
As estruturas da literatura de cordel, bem com os seus temas, parecem ter sido
influenciados, como afirmamos anteriormente, por tradições medievais de cantigas
populares trazidas pelos colonizadores portugueses. A tradição medieval das cantigas
surgiram em Portugal num período de transição entre a Alta Idade Média e a Baixa
Idade Média (séculos XI e XII). Além das cantigas do trovadorismo, outras estruturas
acabaram por desembarcar das naus lusitanas em nossas praias: a relação entre
religiosidade e a cultura. Esta relação ainda é demonstrada, nas tradições populares
que resistem até os nossos dias: como por exemplo o Bumba-meu-boi – espécie de
auto religioso e profano que imita e reflete a estrutura das agonias da paixão de
Cristo, com etapas como o batismo, a morte e a ressureição do boi.
Das cantigas de trovadorismo, as que parecem ter inspirado muito o nosso povo, são
as cantigas satíricas, conhecidas como cantigas de escárnio e de mal-dizer. Parece que
o lado zombador e irônico destas cantigas se adaptaram mais ao espírito brincalhão e
risonho das nossas tradições culturais. Então, os poetas de cordel valorizaram muito a
ironia, resgatando fortemente as cantigas satíricas.
Vejamos como os poetas de cordel e os trovadores tratam a questão da estética
(aparência) de uma moça com ironia e sarcasmo, tanto no Martelo Agalopado
(espécie de poema de cordel cantado), um repente em forma de desafio interpretado

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por Otacílio Batista e Diniz Vitorino, quanto na cantiga de escárnio do trovador, Joan
Garcia de Guilherme:

Martelo Agalopado
(...)
“Otacílio arranjou uma amada,
Certa vez lá na velha Paraíba,
Era feia que só uma guariba,
Uma perna troncha, outra alejada,
Tinha uma pá escachavada,
E da boca correndo aquela nata,
Um olho de vidro, outro de lata,
Uma aguaceiro correndo do nariz,
E essa peste é tão ruim que ainda diz:
O amor desse anjo é que me mata.”
(...)

Cantiga de Escárnio
Ai dona fea! Foste-vos queixar
Porque vos nunca louv’em meu trobar
Mais ora que vos loarei toda via;
E vedes como vos quero loar:
Dona fea, velha e sandia!
(...)

Esta tendência irônica da literatura de cordel, que chegou ao Brasil com as naus
portuguesas, foi reforçada pela arte de um poeta, que, como ninguém, soube utilizar

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sua veia satírica, para brincar com as palavras, com os erros e defeitos da sociedade:
Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno (1623 – 1696).
Veja como novamente a estética do escárnio é reavivada pela maestria do poeta.
Através de um mote – A mais formosa, que Deus – Gregório de Matos ironiza a
aparência física de uma moça:

(...)
Eu com duas damas vim
De uma certa romaria
Uma feia em demasia
Sendo a outra um Serafim:
E vendo-as eu ir assim
Sós, e sem amantes seus,
Lhes perguntei, Anjos meus,
Que vos pôs em tal estado?
A feia diz, o pecado
A mais formosa, que Deus.
(...)

Reconhecendo a herança satírica da poesia de Gregório de Matos, o poeta de cordel


Rodolfo Coelho Cavalcanti, cria o poema: Gregório de Matos Guerra – O Pai dos
Poetas Brasileiros, no qual demonstra a importância do poeta barroco para a literatura
popular.

(...)

Bahia – mãe dos poetas

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Que toda poesia encerra,
Terra que deu Castro Alves
O maior gênio da terra
Também deu um grande vulto,
Dos poetas – o mais culto:
Gregorio de Matos Guerra.
(...)

Outra influência que se faz sentir na literatura popular, é a presença de estruturas e


temas semelhantes ao teatro medieval de Gil Vicente.

Auto da Barca do Inferno


(...)
Diabo — Que é isso, padre?! Que vai lá?

Frade — Deo gratias! Som cortesão.

Diabo — Sabês também o tordião?

Frade — Porque não? Como ora sei!

Diabo — Pois entrai! Eu tangerei e faremos um serão.

Essa dama é ela vossa?

Frade — Por minha la tenho eu, e sempre a tive de meu,

Diabo — Fizestes bem, que é formosa!
E não vos punham lá grosa no
vosso convento santo?

Frade — E eles fazem outro tanto!

Diabo — Que cousa tão preciosa...
Entrai, padre reverendo!

Frade — Para onde levais gente?

Diabo — Para aquele fogo ardente que nom temestes vivendo.

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Frade — Juro a Deus que nom t’entendo!
E este hábito não me vai?

Diabo — Gentil padre mundanal, a Belzebu vos encomendo!

Frade — Corpo de Deus consagrado!
Pela fé de Jesus Cristo, que eu nom
posso entender isto!
Eu hei de ser condenado?!...
Um padre tão
namorado e tanto dado à virtude?
Assim Deus me dê saúde, que eu
estou maravilhado!

Diabo — Não curês de mais detença.
Embarcai e partiremos: tomareis
um par de ramos.
(...)

Auto da Lusitânia
(...)
Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
sem mo Ninguém estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
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Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
(...)

Na literatura de cordel, que herda das tradições medievais parte de suas estruturas e
temas, o diabo – o coisa ruim, o cramulhão – em diversos poemas torna-se uma
figura, não apenas de tentação ou danação do homem, mas uma representação ligada
ao julgamento das almas, uma advertência aos “pecadores” e um ser fantástico que
paga as suas dívidas.
No poema “A Mulher que foi surrada pelo diabo”, de Rodolfo Coelho Cavalcante,
uma moça foge de casa, deixando os filhos e o marido trabalhador, em busca de
aventura. Na primeira encruzilhada encontra o diabo, disfarçado como um homem,
encostado em uma porteira. Ele adverte à moça que seria melhor ela voltar para casa,
pois se continuasse com seus planos, iria sofrer. Ou seja, o diabo procura levar a moça
à pensar racionalmente e voltar para casa. Contudo a moça não obedece e continua
seu caminho, perdendo-se no mundo e sofrendo todo tipo de violência. Ao voltar para
casa, arrependida após alguns anos, reencontra o homem na mesma porteira, como se
não tivesse saído dali, então descobre que o homem é o diabo, e este passa a surrá-la
como castigo, pois a moça afirmou que o diabo era culpado por sua desgraçada
experiência. O diabo, neste poema, é uma figura de alerta e de castigo e não procura a
danação dos outros. Veja um trecho do poema:

(...)
Nada faltava à mulher
Tendo tudo o que queria,
Mas por sua vaidade

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Tudo desfez-se num dia,
Resolveu ela deixar
O seu mais ditoso lar
Para entregar-se à orgia
(...)

A mulher aventureira
Quando da casa saiu
Na primeira encruzilhada
Um arrepio sentiu...
Quando ela olhou para trás
Foi avistando um rapaz
Que lhe saudou e sorriu
(...)

Esse moço era o diabo


Que respondeu para ela:
Sá Dona tenha juízo
Cuidado, muita cautela,
Que o mundo é duvidoso,
Falso, vil e mentiroso,
Cheio de toda procela.

- Tome conselho Sá Dona!


Regresse para seu lar,
Tomar conta de seus filhos
Para amanhã não chorar...

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Reflita nesse momento
Antes do arrependimento
Que um dia há de chegar.
(...)

Por fim disse o Satanás


Da forma que aqui estou
Um dia lhe esperarei
Diga que não me escutou,
Quando a senhora sofrer
Eu só peço não dizer:
O Diabo me enganou!...
(...)

Quando completou três anos


Que ela no mundo sofreu
Um dia viu a cancela
Que o moço apareceu...
Logo foi o avistando
E tristemente chorando
Contou-lhe o que sucedeu.

Disse ela: - Ai seu moço


O mundo é mui diferente...
O Diabo me enganou
Pois nada estava ciente!
Pensei gozar minha vida

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Hoje estou arrependida
Do que fiz antigamente

O Satanás nessa hora


Tinha um chicote na mão,
E logo se transformou
Com rabo, chifre e esporão
E disse: - Mulher danada
Você foi a culpada
Da sua situação!
(...)

Podemos encontrar em outros poemas esta representação do diabo, deslocado das


funções e atitudes que consideramos usuais desta entidade. Vejamos no poema
“Brossogó, Militão e o Diabo”, de Patativa do Assaré, como a representação do diabo
se apresenta como um ser justo em suas atitudes e que sempre paga as suas dívidas. A
história narra a aventura de um vendedor ambulante – miçanqueiro – chamado
Brossogó. Certo dia, em um povoado distante, ele parou e foi comprar ovos, na casa
de um coronel da região de nome Militão, para fazer o jantar. O poderoso Militão,
tinha como verdade maior, a vontade de enganar e de trapacear à todos. Ao tentar
pagar os ovos que comprou, foi enganado pelo coronel, que mentiu dizendo não ter
troco, e afirmando que o Brossogó poderia pagar outra hora. Satisfeito, Brossogó
seguiu seu caminho, sem desconfiar que aquela atitude era uma artimanha do Militão.
Brossogó prosperava com seus negócios e todos diziam que ocorria por causa da
honestidade e religiosidade do moço. No dia de Santo Antônio, Brossogó, sempre
fazia uma festa, para comemorar seu casamento. Neste dia acendeu velas para todos
os santos, de A à Z, sobrando, mesmo assim, três velas. Não tendo mais nome de

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santo para louvar, resolveu acender as três velas para o diabo, não que ele fosse um
pecador, ou adorador, mas por um pensamento bastante lógico, pois se o diabo nunca
o atrapalhou, então ele o ajudou. Veja essa argumentação no trecho:

(...)
Disse consigo: o Diabo
Merece vela também
Se ele nunca me tentou
Para ofender a ninguém
Com certeza me respeita
Está me fazendo o bem.

Se eu fui um menino bom


Fui também um bom rapaz
E hoje sou pai de família
Gozando da mesma paz
Vou queimar essas três velas
Em tenção do Satanás.
(...)

Porém Brossogó, com o passar do tempo, esqueceu sua dívida com o Militão e ao
voltar aflito para paga-lo, o coronel, já com as contas feitas, queria arrancar tudo que
o vendedor tinha conseguido ganhar com seu esforço, afirmando que os ovos, se
fossem chocados, dariam uma grande quantidade de aves, e, consequentemente, um
bom dinheiro. O coronel chamou seu advogado e mandou marcar o julgamento.
Brossogó saiu arrasado pois não tinha nenhum advogado, foi quando surgiu um
cavaleiro em seu corcel branco, oferecendo-se para defender o vendedor.

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(...)
Quando ia pensando assim
Avistou um cavaleiro
Bem montado e bem trajado
Na sombra de um juazeiro
O qual com modos fraternos
Perguntou ao miçangueiro:

Que tristeza é esta?


Que você tem Brossogó?
O seu semblante apresenta
Aflição pesar e dó
Eu estou ao seu dispor
Você não sofrerá só
(...)

No dia do julgamento, quando Militão estava prestes a por as mãos nas posses do
pobre Bossogó, surge na última hora o cavaleiro, e diz estar atrasado, pois estava
plantando feijão cozido. O advogado do coronel protestou, dizendo que não nasce
feijão de semente cozida. Mas era essa a artimanha inventada pelo defensor do
Brossogó, para livrá-lo da culpa, pois se não nasce feijão de semente cozida, também
não choca-se ovo cozido. E assim o homem do corcel branco, o diabo, livrou o
inocente das garras do Militão.

(...)
Respondeu o cavaleiro:

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Esta mentira eu compus
Para fazer a defesa
É um foco de luz
Porque ovo cozinhado
Sabemos que não produz
(...)

Ao se despedir do Brossogó, o homem do corcel se apresentou como sendo o diabo, e


que estava pagando as três velas que o Brossogó acendeu para ele.
(...)
Eu sou o Diabo a quem todos
Chamam de monstro ruim
E só você neste mundo
Teve a bondade sem fim
De um dia queimar três velas
Oferecidas a mim

Quando disse estas palavras


No mesmo instante saiu
Adiante deu um pipoco
E pelo espaço sumiu
Porém pipoco baixinho
Que o Brossogó não ouviu
(...)

Uma das construções mais interessantes na narrativa da literatura de cordel, bem


como a demonstração da criatividade e da consciência das regras e artimanhas de um

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discurso e das atitude comuns aos contadores de histórias é a parte final deste poema.
Patativa do Assaré, um dos maiores poetas de cordel, dono de uma memória
magnífica, demonstra toda a sua maestria, ao nos revelar uma das artimanhas dos
contadores de história de cordel, que narram a aparição do diabo, ironizando esta
fórmula:

(...)
Caro leitor nesta estrofe
Não queira zombar de mim
Ninguém ouviu o estouro
Mas juro que foi assim
Pois toda históri do diabo
Tem pipoco no fim
(...)

Além desta sofisticação narrativa, que deixa transparecer as técnicas de um narrador,


Patativa do Assaré, brinca com o tênue limite simbólico entre a realidade e a ficção,
demonstrando que esta ficção criada pelo poeta, embora contenham algumas
“mentiras”, serve para ensinar aos ouvintes questões morais. Esta consciência reflete
o espaço sígnico formado, que se torna fundamental para que os diversos sistemas de
códigos, compreendendo as várias dimensões da linguagem e da cultura, possam
conviver em sua existência, constituindo as suas relações, em uma verdadeira
semiosfera, onde a cultura se demonstra em todas as suas relações, organicamente
integradas. O poeta agricultor, que mal concluiu o ensino fundamental, é capaz de
compreender e nos ensinar sobre as artimanhas de uma narrativa e desenvolve-la com
habilidade, ultrapassando os limites teóricos de seu estudo acadêmico.

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(...)
Bom leitor tenha cuidado,
Vivem entre nós
Milhares de Militões
Com o instinto feroz
Com trapaças e mentiras
Perseguindo os Brossogós
(...)

Considerações Finais
Através do estudo da literatura popular, bem como de toda a tradição popular
brasileira, podemos reconhecer os caminhos envolventes e dinâmicos das relações
culturais. Demonstrando que elas não têm limites tão definidos e nem que seus
movimentos sejam unilaterais. Aquele que conhece a cultura de outros povos, também
se deixa contaminar por suas estratégias, por suas expressões. Através da literatura de
cordel e da representação do diabo nestes poemas, pudemos perceber a influência da
literatura medieval, na literatura popular brasileira. Neste pequeno estudo tentou-se
demonstrar, como um beija flor, que transporta um oceano, gota à gota, uma reflexão
sobre as origens de nossa literatura, as quais refletem o pensamento do povo
brasileiro.

Referências Bibliográficas
ASSARÉ, P., 2000, Cordel. São Paulo: Hedra.

AYALA. W., 1991, Antologia Poética de Gregório de Matos. Rio de Janeiro:


Ediouro.

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CAVALCANTE, R. C, 2000, Cordel. São Paulo: Hedra.

CEREJA, W. R. e MAGALHÃES, T. C, 1997, Panorama da Literatura Portuguesa.


São Paulo: Ática.

DUGNANI, P. A Herança Simbólica na Azulejaria Barroca: Os Painéis do Claustro


da Igreja de São Francisco. São Paulo: Editora Mackenzie, 2012.

FERREIRA, J. P., 2004, Armadilhas da Memória. São Paulo: Atelie Editorial.

LUYTEN, J, 1998, Sistemas de Comunicação Popular. São Paulo: Ática.

MATTELART, A. e MATTELART, M., 1999, História das Teorias da


Comunicação. São Paulo: Loyola.

MELO, J. M., 1978, Comunicação Social. Petrópolis: Vozes.

STRINATI, D., 1999, Cultura Popular. São Paulo: Hedra.

VICENTE, G., s/d, Auto da Barca do Inferno. São Paulo: Zero.

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