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Heidegger e a herança fenomenológica de E.

Husserl

Tratarei aqui, com este trabalho, da importância da obra husserliana Investigações Lógicas
para o pensamento de Martin Heidegger. Partirei das considerações que Heidegger faz (em Meu
caminho para a fenomenologia) a respeito da importância da grande obra de Husserl em seus
primeiros estudos, tanto no que diz respeito a sua compreensão da fenomenologia husserliana, como
para a determinação de sua própria concepção de fenomenologia. Ainda, dentre essas
considerações, pretendo dar especial relevo àquela em que Heidegger destaca a importância da
distinção feita por Husserl, na Sexta Investigação Lógica, entre intuição sensível e intuição
categorial. Visto que o filósofo de Messkirch diz ser esta noção (a de intuição categorial) a
responsável pelo impulso que o levou a vislumbrar a questão, crucial em Ser e Tempo, do sentido de
ser.
As Investigações Lógicas, de acordo com Heidegger, teriam chegado até ele através da leitura
que vinha fazendo, desde 1907, da dissertação de Franz Brentano Sobre o significado múltiplo do
ente em Aristóteles (1862). Heidegger havia sabido, por meio de indicações em revistas filosóficas,
que a maneira de pensar de Husserl era determinada pela de Franz Brentano. A compreensão que
Heidegger tinha da dissertação de Brentano permanecia, no entanto, indeterminada. Assim, se
indaga Heidegger: "(...)se o ente é expresso em múltiplos significados, qual será, então, o
determinante significado fundamental? Que quer dizer ser?". Assim, através de Brentano, a questão
do ser surge pela primeira vez como problemática para Heidegger. Das Investigações Lógicas, de
acordo com Meu caminho, Heidegger esperava um estímulo decisivo com relação às questões
suscitadas por Brentano. Mas, já desde suas primeiras leituras, Heidegger experimentou uma
enorme dificuldade de compreensão da grande obra husserliana, assim como do "estranho nome"
Fenomenologia, que vinha ligado à obra.
As dificuldades que Heidegger experimentava com relação às Investigações Lógicas, só muito
lentamente solveram-se. A publicação de Ideias a Propósito de uma Fenomenologia Pura e de uma
Filosofia Fenomenológica (1913), a posterior convivência com Husserl - quando este vai para
Freiburg im Breisgau em 1916-, os exercícios e a progressiva aprendizagem do "ver"
fenomenológico, ajudam Heidegger a superar sua incompreensão, ao mesmo tempo em que
fecundam suas interpretações de Aristóteles e de outros pensadores gregos. Mais tarde, por volta de
1919, quando já se dedicava às atividades docentes na proximidade de Husserl, Heidegger volta de
novo seu interesse às Investigações Lógicas, especialmente para à Sexta Investigação, onde,
segundo Heidegger, a distinção contruída por Husserl entre intuição sensível e intuição categorial,
revelou-lhe "seu alcance para a determinação do 'significado múltiplo do ente'". Assim, através
desta distinção construída por Husserl na 6ª Investigação, Heidegger encontrou uma via que
fecundou sua compreensão das questões antes suscitadas pela dissertação de Brentano e, assim lhe
parecia, da própria questão do ser. Mas, o que Heidegger vislumbrou de tão radical nesta distinção
e, especialmente, na noção de intuição categorial, a ponto dela se tornar determinante para a
delimitação da questão do sentido de ser? No que segue, procuraremos dar uma resposta a esta
questão.
Vamos abordar aqui, no esforço de tentar esclarecer esta questão, ou seja, qual a importância
da distinção, feita por Husserl, entre intuição sensível e intuição categorial para a delimitação da
questão do sentido de ser, o protocolo do Seminário de Zähringen (1973), o último que Heidegger
deu em Freiburg. Onde ele tenta um acesso à questão do ser a partir do pensamento de Husserl. O
ponto de partida para esta tentativa é uma carta de Jean Beaufret, onde este coloca duas perguntas à
Heidegger, a primeira delas, a que nos interessa aqui, é: "Em que medida se pode dizer que não há
em Husserl pergunta pelo ser?". Com a questão de Beaufret, Heidegger reafirma a necessidade de
voltar sem cessar à questão do ser (Seinsfrage), pensamento central e orientador do projeto de Ser e
Tempo. Heidegger salienta que questão do ser quer dizer questão pelo sentido do ser. Neste sentido,
não haveria em Husserl questão do ser, do sentido de ser, o que estaria de acordo com a maneira
pela qual Heidegger caracteriza o essencial da metafísica: a interrogação pelo ser do ente, sem
interrogar pelo seu sentido. Pois Husserl, salienta Heidegger, só abordaria problemas estritamente
metafísicos, no sentido que este dá da metafísica, e que ser para Husserl significa ser-objeto, ser-
coisa.
No entanto, segundo Heidegger, Husserl teria chegado muito perto da questão do ser, no
capítulo sexto da Sexta Investigação Lógica, com a noção de "intuição categorial". A noção de
intuição categorial aparece, na Sexta Investigação Lógica, na sua segunda seção, intitulada:
Sensibilidade e Entendimento. O capítulo sexto, que inicia esta seção, se intitula: Intuição sensível e
Intuição categorial. Assim, Heidegger se coloca a questão: "Como Husserl chegou a intuição
categorial?". Neste contexto, o da posição em que a noção de intuição categorial aparece na Sexta
Investigação, Heidegger diz: "Se pode dizer, portanto, que Husserl parte desde a intuição sensível
para chegar a intuição categorial". O que quer dizer, segundo a interpretação heideggeriana, que
Husserl chegou a noção de intuição categorial pela analogia com a noção de intuição sensível. Mas
como se dá essa analogia? É o que tentaremos esclarecer, no que segue.
Heidegger, então, vai tentar esclarecer como se dá essa analogia, partindo da seguinte
indagação: “Mas, que é a intuição sensível? Qual é o ponto de partida de Husserl quando analisa a
intuição sensível?”. Parece que assim andamos em círculos, pois nem sequer oferecemos um
esclarecimento sobre a questão inicial, a saber, qual o sentido da noção de intuição categorial para
Husserl, pois se este chega a ela por analogia com a intuição sensível, teríamos que primeiro
esclarecer a noção de intuição sensível. Não obstante esta aparente dificuldade, vamos seguir e
tentar contornar este círculo.
Assim, dando prosseguimento, segundo o protocolo do Seminário de Zähringen, Jean Beaufret
relembra a Heidegger do exemplo dado por Husserl, na Sexta Investigação, para tentar elucidar
como se dão os enunciados de percepção: o tinteiro. Vejamos como este exemplo do tinteiro
aparece na Sexta Investigação: “No caso de um enunciado de percepção, não são preenchidas
apenas as representações nominais nele entrelaçadas; a significação do enunciado, no seu todo, se
preenche por meio da percepção subjacente. Diz-se igualmente, do enunciado inteiro, que ele
exprime a nossa percepção; não dizemos apenas 'vejo este papel, um tinteiro, vários livros', etc.,
mas também 'vejo que este papel está escrito, que há aqui um tinteiro de bronze, que vários livros
estão abertos', etc.”(I.L. VI Investigação, cap.6, §40). Heidegger, então, coloca a pergunta: “É um
tinteiro?”, ao que ele mesmo responde: “Não, não é um tinteiro.”. Para Heidegger, no contexto em
que aparece o exemplo do tinteiro e dos outros objetos, ele nada mais é do que isso mesmo, isto é,
exemplo de objeto sensível. O tinteiro é, em outros termos: Objeto de percepção sensível.
Mais adiante, no Seminário de Zahringen, Heidegger questiona em que se funda a percepção
sensível e o objeto sensível enquanto sensível: “Mas, qual é o fundamento da percepção sensível?
Sobre o que está fundado o objeto sensível enquanto sensível?”. Segundo Heidegger, o fundamento
do sensível é o que Husserl chama de Hylé, isto é, aquilo que em grego quer dizer matéria, ou o que
afeta sensivelmente, em outros termos, os dados sensoriais. Pois, o que se percebe sensivelmente,
são os dados sensoriais mesmos, diz Heidegger. Assim, o que se daria na intuição sensível, através
da percepção, são os dados sensíveis, os dados sensoriais. Mas, além dos dados sensíveis se dá
também na percepção um objeto, embora não da mesma maneira em que se dão os dados sensíveis.
Este objeto, certamente, não pode se dar na percepção sensível, pois ele, em sua objetividade, não é
um dado sensível. A objetividade do objeto, assinala Heidegger, não pode ser percebida
sensivelmente, o que significa, como diz o filósofo: que “o fato de que o objeto seja objeto não
resulta de uma intuição sensível.”. Mas, não obstante, este objeto é certamente percebido, ao
mesmo tempo em se dá também à percepção os dados sensíveis.
Na linguagem da tradição, recorda Heidegger, este objeto é uma coisa, e uma coisa é uma
substância. Em Kant, a substância é uma das categorias do entendimento, o que significa, diz
Heidegger, “que a coisa é regida de antemão pela capacidade de conhecer, ou que a categoria
'substância' serve de antemão para dar uma forma a diversidade dos dados 'hyléticos'”. Assim,
para Kant o objeto se estabelece como síntese de intuição e conceito, através do conhecimento, que
seria o trabalho de dar uma forma realizado pelo entendimento. Diferentemente de Kant, segundo
Heidegger, Husserl conseguiu tornar presente, manifesto, fenomenologicamente, o que Kant se
limitara a caracterizar através do conceito de forma. Dessa maneira, prossegue Heidegger, a
categoria seria mais que somente uma forma o que, entretanto, não fica claro apenas pela locução
intuição categorial. Intuição categorial, esclarece então Heidegger: “quer dizer estritamente: uma
intuição que dá ao ver uma categoria; ou bem: uma intuição (um estar-presente para) 'que está'
imediatamente dirigido 'até' uma categoria”. Husserl, assim, chega a pensar, com a locução de
intuição categorial, o categorial como dado, arremata Heidegger.
Assim, podemos ver perfeitamente todas as coisas: uma folha de papel, um livro, um tinteiro.
Mas nisso tudo que vemos, através da percepção sensível, onde está a substância? Se ela é um
dado, como ela se dá? Não podemos vê-la, como vemos todas as demais coisas. E, como diz
Heidegger, estas coisas são certamente substâncias que devemos ver de algum modo, caso contrário
talvez não víssemos absolutamente nada. Aqui, explica Heidegger, tem lugar a ideia husserliana de
excedente (überschuss): o “é”– pelo qual constato a presença das coisas como objetos ou
substâncias – é excedente entre as afecções sensíveis: com efeito, o “é” não vem junto às
impressões sensíveis; ele é “visto” - mesmo que seja de outra maneira que o visível
[sensivelmente]. Pois, para que o “é” seja visto dessa maneira, é preciso antes, diz Heidegger, que
ele seja dado. Assim, diz Heidegger, para Husserl, o categorial é dado na mesma medida em que o
sensível também é dado. Há, portanto, “intuição categorial”.
Heidegger, então, retorna a indagação que propôs inicialmente, a respeito da noção de intuição
categorial: “Por qual caminho Husserl chega a intuição categorial?”. A resposta de Heidegger é:
“Husserl chega a intuição categorial pelo caminho da analogia”; uma vez que a intuição categorial
é como a intuição sensível, e vice-versa. Assim, contornando o círculo antes mencionado, voltamos
outra vez a ideia da intuição categorial como uma analogia da intuição sensível. E, continuando no
círculo, vale dizer que uma analogia consiste em um ponto de semelhança entre coisas diferentes.
No nosso caso, a analogia husserliana entre intuição sensível e categorial. E, continuando na trilha
de Heidegger, com relação a esta analogia, este diz: “Em uma analogia, algo dá a medida para a
correspondência.” Mas, “na analogia entre os dois tipos de intuição, o que corresponde ao quê?”.
Heidegger responde dizendo que os dados sensíveis dão a medida para a correspondência, e que o
categorial seria o analogon dos dados sensíveis. Nas palavras de Heidegger: “A intuição categorial
é analogada a intuição sensível.”. Para que fique mais claro, o que Heidegger quer dizer é que
Husserl percebeu que, assim como através da intuição sensível se dava o dado da percepção
sensível, o mesmo deveria se dar com respeito ao categorial, para que fosse possível intuição
categorial e para que de fato o categorial se desse, seria preciso que de fato o categorial fosse um
dado.
O que é surpreendente e decisivo, segundo Heidegger, com esta analogia, é que o categorial, as
formas, o “é”, se fazem abordáveis, são dados acessíveis, pela intuição. Com a intuição categorial,
há em Husserl, o fato da categoria – isto é, que a categoria também seja dada como um dado dos
sentidos. Mas, no entanto, surge uma dificuldade aí, diz Heidegger: “Qual o descobrimento
decisivo de Husserl e, ao mesmo tempo, a dificuldade essencial?”. A dificuldade, para Heidegger,
se daria porque para Husserl, com a analogia entre intuição sensível e categorial, se dariam duas
significações de “ver”. Há ver e ver, duas visões, a visão sensível e a visão categorial. Como no
exemplo dado por Heidegger, “quando vejo este livro, vejo certamente uma coisa substancial, sem
ver, entretanto, a substancialidade do mesmo modo em que vejo o livro.”. Mas nisto, ao mesmo
tempo, estaria a descoberta essencial de Husserl: Ver que a substancialidade, em sua inaparência, é
o que permite ao aparecente aparecer. Neste sentido, ela seria muito mais “aparente” que o próprio
aparente.
Esta descoberta, da noção de intuição categorial, ou seja, de que o categorial é um dado do
mesmo modo que os dados sensíveis, é que teria sido para Heidegger, segundo o protocolo do
Seminário de Zähringen, um “estimulante essencial” para seu próprio pensamento. Mas como, em
que sentido, esta descoberta foi importante para Heidegger?
Ora, sabemos que desde Ser e Tempo, a pergunta central que move o pensamento de Heidegger
é a questão do ser, do sentido de ser (Seinsfrage). No entanto, como observa Heidegger, em toda a
tradição filosófica, com exceção do seu início grego, a única determinação fundamental do ser é a
cópula do juízo, o que é, segundo Heidegger, uma determinação justa e exata (richtig), mas não
verdadeira (unwahr). Assim, com a determinação da noção de intuição categorial por Husserl, este
teria liberado o ser de sua fixação no juízo. Com isto, todo o terreno para a colocação da questão do
ser se reorienta. Pois, se se coloca a questão do ser, diz Heidegger, é necessário antes que se esteja
além do ser entendido como ser do ente. Ou, mais precisamente, diz Heidegger, a questão pelo
sentido do ser tem dois momentos: o ser é o interrogado, ou melhor, o ser do ente; ao passo que o
questionado é o sentido do ser.
Para que a questão pelo sentido de ser pudesse ser articulada, diz Heidegger, era necessário
antes que o ser fosse dado de alguma maneira, afim de que seu sentido pudesse ser questionado. A
façanha de Husserl, segundo Heidegger, consistiu justamente em pôr o ser de manifesto, em
presença, isto é, Husserl tornou possível, com o tema da intuição categorial, a presentação do ser.
Para Heidegger, por esta façanha Husserl forneceu finalmente o solo para a articulação da questão
do sentido de ser. Ser deixou de ser simples conceito, ou uma pura abstração obtida graças ao
trabalho da dedução, para se dar, fenomenologicamente, em seu sentido.

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