Você está na página 1de 297

[Digite texto]

Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Centro de Ciências Sociais
Faculdade de Direito

Marcos Alves da Silva

Da superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto


jurídico da família

Rio de Janeiro
2012
[Digite texto]

Marcos Alves da Silva

Da superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da família

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Direito, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Direito Civil.

Orientador: Prof. Dr. Gustavo Mendes Tepedino.

Rio de Janeiro
2012
[Digite texto]

CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/C

S586s Silva, Marcos Alves da.

Da superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto


jurídico da família / Marcos Alves da Silva. - 2012.
295 f.

Orientador: Gustavo Mendes Tepedino.

Tese (Doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade


de Direito.

1. Direito de família - Teses. 2. Casamento - Teses. 3. Concubinato -


Teses. I. Tepedino, Gustavo. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Faculdade de Direito. III. Título.
CDU 347.61/.64

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde
que citada a fonte.

_______________________________________ _____________________
Assinatura Data
[Digite texto]

Marcos Alves da Silva

Da superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da família

Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor ao Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Direito Civil.

Aprovado em 20 de março de 2012.

Banca Examinadora:
_____________________________________________
Prof. Dr. Gustavo Mendes Tepedino (Orientador)
Faculdade de Direito da UERJ

_____________________________________________
Prof.ª Dra. Heloisa Helena Barboza
Faculdade de Direito da UERJ

_____________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Faculdade de Direito da UERJ

_____________________________________________
Prof. Dr. Paulo Luiz Netto Lôbo
Faculdade de Direito da UFPE

_____________________________________________
Prof.ª Dra. Silvana Maria Carbonera
Setor de Ensino Profissional e Tecnológico da UFPR

Rio de Janeiro
2012
[Digite texto]

DEDICATÓRIA

À memória de meu tio Davi Ribeiro que


realizou seus sonhos de menino das Minas
Gerais no Rio de Janeiro, para sempre sua
cidade maravilhosa.
[Digite texto]

AGRADECIMENTOS

Realizar o doutorado na área de concentração de Direito Civil, no Programa de Pós-


Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, constituiu para
mim especial privilégio. Trata-se da culminação de um processo iniciado no começo dos anos
2000, em razão do Projeto Diálogos de Direito Civil, que envolveu Grupo de Pesquisa da
UERJ (Perfis do Direito Civil), liderado pelo professor Gustavo Tepedino, e Grupo de
Pesquisa da UFPR (Virada de Copérnico), coordenado pelo professor Luiz Edson Fachin.
Estes dois civilistas, em torno da proposta audaciosa de repensar o Direito Civil brasileiro
contemporâneo, têm congregado uma nova geração de pesquisadores e professores. É
perceptível que sou devedor de valiosos aportes das investigações desenvolvidas por colegas
que integram esses Grupos de Pesquisa do Rio de Janeiro e Paraná. A todos sou grato pelo
companheirismo e pela inspiração.
Registro minha profunda gratidão ao Professor Doutor Luiz Edson Fachin, amigo e
mestre inspirador desde a graduação e o mestrado realizados na UFPR.
Ao Professor Doutor Gustavo Tepedino, meu orientador, agradeço pela forma calorosa
e carinhosa com que me recebeu no Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Sua
dedicação ao magistério, sua capacidade de despertar nos alunos o gosto pela pesquisa e sua
reflexão sempre inquietante e questionadora, que não permite acomodação em lugares
estabelecidos pelo senso comum, foram para mim fonte de inspiração. Sou grato pelo
privilégio de sua inspiração e orientação.
Agradeço aos meus queridos pais, Waldete e Jonas, pela paciência na correção dos
originais desta tese. Os eventuais deslizes devem ser imputados ao autor que, por certo, na
revisão ou em interpolações posteriores não observou com o devido cuidado e atenção as
correções. Quando ingressei na primeira série do curso primário, meus pais presentearam-me
com um estojo no qual havia a seguinte inscrição: Hei de vencer estudando. Dei alguns
passos... Todavia, o mais gratificante é que ainda hoje tenho o privilégio de contar com a
companhia e o apoio de ambos.
Registro agradecimento aos colegas com os quais, há alguns anos, venho dialogando
sobre o tema de que me ocupei nesta tese. A professora Silvana Maria Carbonera tem sido
companheira em muitas jornadas acadêmicas. Lecionamos juntos, escrevemos e
compartilhamos preocupações muito próximas em relação ao Direito de Família. Durante dois
anos de viagens semanais ao Rio de Janeiro, contei com a companhia e desfrutei do diálogo
[Digite texto]

sempre vivo e inteligente de dois queridos colegas, os professores Samir Namur e Vinícius
Klein, também doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Ao colega e
companheiro de coordenação do Curso de Direito da Universidade Positivo, professor Eros
Belin de Moura Cordeiro, agradeço o diálogo lúcido e importantes sugestões. Reconheço o
apoio de muitos colegas de trabalho para que me fosse viabilizado tempo para dedicação aos
estudos. Também, sou grato ao amigo e companheiro, Professor Agemir de Carvalho Dias,
pela abertura de sua biblioteca e valiosas indicações de leitura.
Agradeço à Universidade Positivo pela bolsa de estudos concedida nos dois primeiros
anos do doutorado e pelo apoio recebido na liberação de carga horária para elaboração da
tese.
Por fim, o agradecimento que transcende palavras e se expressa por meio do que é
inaudito. Para Márcia, minha querida esposa, companheira por tantos e variados caminhos, o
haikai de Helena Kolody revela o que em prosa não é possível dizer: “Usando as mesmas
palavras / Precisas e limitadas, / Os homens raro se entendem. / As almas se identificam / Nas
graves coisas profundas. / Inominadas.” Aos meus filhos, Pedro e Guilherme, agradeço por
serem meus irmãos e companheiros de sonhos.
[Digite texto]

Toda sociedade organizada se funda precipuamente na


regulamentação, não importa a complexidade posterior que dela
resultará, dos dois instintos básicos do Homem: o econômico e o
sexual.

Caio Prado Júnior

O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado


não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao
mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio.

Michel Foucault
[Digite texto]

RESUMO

SILVA, Marcos Alves da. Da superação da monogamia como princípio estruturante do


estatuto jurídico da família. 2012. 295 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de
Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

A tese propõe novos fundamentos para a abordagem da conjugalidade contemporânea,


tendo como eixo de referência a superação da monogamia como princípio estruturante do
estatuto jurídico da família. Alguns fios condutores perpassam a tese e norteiam o tratamento
do tema: (i) o princípio jurídico da monogamia como mecanismo legitimador da dominação
masculina; (ii) a preocupação com a construção de lugares de não-direito e de invisibilidade
jurídica de determinadas pessoas, mormente, as concubinas, excluídas da condição de sujeito
de direito; (iii) o concubinato, campo privilegiado de estudo, é referido e analisado como
estatuto de exclusão; (iv) os fatores decisivos para a reconfiguração da conjugalidade
contemporânea: a democracia, o pluralismo cultural e a laicização do Direito; (v) a
perspectiva do Direito Civil constitucionalizado é tomada como referência para a
problematização da questão central da tese, e os princípios constitucionais da dignidade
humana, solidariedade, igualdade, liberdade e democracia prestam-se ao estabelecimento de
um banco de provas a que é submetida a assertiva que constitui o enunciado da própria tese: a
superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico das famílias
contemporâneas. O tratamento dado à matéria é necessariamente interdisciplinar, tendo-se
mostrado indispensável a interlocução, ainda que pontual, com historiadores, antropólogos, e
sociólogos e mesmo com autores das ciências naturais. O princípio da monogamia —
consolidado no Ocidente, por força do monopólio da regulação das relações familiares pelo
Direito Canônico, especialmente, pelos decretos e cânones tridentinos, e transposto ao
domínio jurídico do Estado, a partir das revoluções burguesas — experimenta, na
reconfiguração da conjugalidade contemporânea, efetivo arrefecimento. Fatores, como a
superação da dominação masculina, a laicização do Estado e do Direito, a primazia alcançada
pela autonomia privada no campo das situações subjetivas existenciais e coexistenciais, a
consagração do princípio do pluralismo das entidades familiares, nítida expressão da
democratização da intimidade, são indicados como razões decisivas para a superação da
monogamia como princípio jurídico.

Palavras-chave: Família. Conjugalidade. Monogamia. Dominação masculina. Famílias


simultâneas. Concubinato. União Estável. Liberdade. Autonomia privada.
[Digite texto]

ABSTRACT

The thesis proposes new foundations to approach the contemporaneous conjugality,


specially referring to the overcoming of monogamy as a structural foundation for the juridical
status of the family. Some essential ideas permeate the thesis and guide the discussion of the
topic: (i) monogamy as the juridical institute able to legitimize the masculine domination; (ii)
attention to the construction of “no-Law” zones and to the invisibility of some persons,
mainly concubines, that are not entitled to the ownership of rights; (iii) the concubinage, an
important field of study, is referred and analyzed as a exclusionist status; (iv) the decisive
factors for the reconfiguration of contemporaneous conjugality: democracy, cultural pluralism
and laicization of Law; (v) a constitutionally based Civil Law perspective is the foundation
for the construction of the thesis discussions, and the constitutional principles of human
dignity, solidarity, equality, freedom and democracy serve as tests to the main thesis proposal:
the overcoming of monogamy as a structural basis for the juridical foundation of
contemporaneous family. The perspective adopted in this study is perforce interdisciplinary,
and the discussion, even if topical, with historians, anthropologists and sociologists and, also,
with some authors from natural sciences, has been essential. The monogamy principle –
consolidated in the Occident by the Canonic Law’s monopoly on the regulation of familiar
relations, especially regarding decrees and Tridentine canons, and transported to the State
juridical domination by the Bourgeois Revolutions – is subjected to an effective loss of
strength in the reconfiguration of contemporaneous conjugality. The overcoming of male
domination, the laicization of the State and the Law, the primacy achieved by private
autonomy regarding the field of existential and co-existential subjective situations, the
consecration of the pluralism of familiar entities as a principle, a clear a expression of the
democratization of the intimacy, are decisive factors for the overcoming of the monogamy as
a juridical principle.
.

Keywords: Family. Conjugality. Monogamy. Male domination. Simultaneous families.


Concubinage. Civil union. Liberty. Autonomous privacy.

LISTA DE ABREVIATURAS
[Digite texto]

ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade

ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

CC1916 - Código Civil Brasileiro (1916)

CC2002 - Código Civil Brasileiro (2002)

CF – Constituição da República Federativa do Brasil (1988)

CPC – Código de Processo Civil

DJMG – Diário da Justiça do Estado de Minas Gerais

RT - Revista dos Tribunais

STJ - Superior Tribunal de Justiça

TJMG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais

TJSP - Tribunal de Justiça de São Paulo

TJRS - Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

SUMÁRIO
[Digite texto]

INTRODUÇÃO............................................................................................. 13
1 A MONOGAMIA E SUA CONSTITUIÇÃO EM PRINCÍPIO
JURÍDICO...................................................................................................... 17
1.1 Sexualidade e reprodução social................................................................... 18
1.2 A monogamia nos limites da biologia: a perspectiva evolucionista........... 19
1.3 A monogamia, a propriedade, a família e o Estado: a tese de
Engels............................................................................................................... 26
1.4 A monogamia e a condição feminina: a questão da reprodução, da
sexualidade e de gênero.................................................................................. 29
1.5 A monogamia nos recortes da história da sexualidade
ocidental........................................................................................................... 33
1.5.1 Do cuidado de si à suspeita de si ou do estoicismo à pastoral cristã:
fragmentos da reflexão foucaultiana............................................................... 33
1.5.2 Indissolubilidade do casamento e monogamia: da privacidade familiar ao
espaço público.................................................................................................. 40
1.5.3 Casamento e concubinato: entre a posse perpétua e a locação sem garantia... 44
1.6 A monogamia como dogma: o casamento tridentino.................................. 47
1.7 A recepção do decreto tridentino em Portugal............................................ 54
1.8 Reflexos do casamento tridentino e o princípio da monogamia no
direito civil codificado.................................................................................... 58
2 MONOGAMIA E EXCLUSÃO: A REGULAÇÃO DA
CONJUGALIDADE NO BRASIL ............................................................... 66
2.1 Concubinato e matrimônio no Brasil: fontes da discriminação................. 67
2.1.1 Concubinato e os socialmente desclassificados no Brasil Colônia.................. 67
2.1.2 Casamento, bigamia e legitimidade social no Brasil Colônia.......................... 74
2.2 O discurso jurídico sobre o concubinato...................................................... 80
2.2.1 Concubinato: a negação jurídica de uma evidência sociológica...................... 81
2.2.2 Da família sem casamento: entre a pureza e a impureza.................................. 90
2.2.3 Do concubinato à união estável: instabilidades da transição............................ 92
2.2.4 Código Civil de 2002: ambiguidades remanescentes....................................... 95
2.2.5 União estável: por uma nova conjugalidade desvencilhada do casamento...... 98
2.3 O princípio da monogamia no direito civil brasileiro............................... 108
2.3.1 Monogamia: expressão de vida dos povos cultos........................................... 108
[Digite texto]

2.3.2 A monogamia criou o amor: o casamento como instituição consciente........ 111


2.3.3 Monogamia: a sedimentação do princípio nos manuais de Direito de Família 114
2.3.4 Monogamia: interdito ao desejo e desinstalação do caos (da promiscuidade) 117
3 DEMOCRACIA, PLURALIDADE E LAICIZAÇÃO: O CONTEXTO
CONTEMPORÂNEO DA CONJUGALIDADE......................................... 122
3.1 Democratização do cotidiano: intimidade e liberdade............................... 124
3.2 Processos emancipatórios: a condição feminina......................................... 129
3.3 Pluralismo: igualdade e diversidade............................................................ 134
3.4 Laicização do direito e a conjugalidade....................................................... 139
4 PERSPECTIVAS JURÍDICAS DA SUPERAÇÃO DA MONOGAMIA
COMO PRINCÍPIO....................................................................................... 145
4.1 Indícios da superação da monogamia como princípio jurídico:
construções doutrinárias do Direito Civil brasileiro contemporâneo
sobre a simultaneidade de famílias............................................................... 148
4.2 A monogamia no discurso dos tribunais: espaço de reconstrução? ......... 159
4.2.1 A norma produzida pelo intérprete: a positividade do direito é a sua
interpretabilidade.............................................................................................. 160
4.2.2 O tratamento jurisprudencial da monogamia: o precedente aberto ao futuro 174
4.3 O princípio da dignidade da pessoa humana: o critério fundamental e a
monogamia...................................................................................................... 194
4.3.1 A Pluralidade e o singular: a dignidade humana em Hannah Arendt – direito
à própria biografia............................................................................................ 196
4.3.2 A negação da vida concreta dos sujeitos: a dignidade humana em Dussel – o
dever da produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito
humano............................................................................................................. 201
4.3.3 O princípio da dignidade da pessoa humana no Direito brasileiro
contemporâneo e a questão da monogamia...................................................... 206
4.4 O princípio da solidariedade e o arrefecimento da monogamia como
regra intransponível....................................................................................... 216
4.4.1 O sentido constitucional da solidariedade: superação das discriminações e
da marginalização............................................................................................. 217
4.4.2 Solidariedade e responsabilidade: o cuidado do outro como critério ético
fundamental...................................................................................................... 223
[Digite texto]

4.5 O princípio da igualdade: condição feminina e a monogamia.................. 225


4.5.1 A igualdade na diferença: conjugalidade e a questão de gênero...................... 228
4.5.2 Famílias: igualdade e pluralidade..................................................................... 235
4.6 O princípio da liberdade: autonomia privada nas situações subjetivas
existenciais e a monogamia............................................................................ 241
4.6.1 A liberdade: do arranjo contratualista à autonomia da vontade em Kant......... 241
4.6.2 O conceito jurídico de autonomia privada: sua ressignificação
contemporânea.................................................................................................. 245
4.6.3 A autonomia privada nas situações subjetivas existenciais e a monogamia.... 248
4.6.4 Deveres conjugais: normas cogentes inderrogáveis? ...................................... 253
4.7 O princípio da democracia: Direito, Estado e Sociedade – a monogamia
em questão...................................................................................................... 263
4.7.1 Da mítica vontade geral à pluralidade social: possibilidades para a
democracia contemporânea............................................................................ 265
4.7.2 Por uma ressignificação do princípio democrático: democracia e intimidade. 269
5 CONCLUSÃO................................................................................................ 276
REFERÊNCIAS............................................................................................. 279
13

INTRODUÇÃO

Em variados contextos e circunstâncias a monogamia tem sido afirmada como princípio


estruturante do Direito de Família no Ocidente. Não há dúvida de que a assertiva tornou-se
lugar comum. A monogamia como princípio jurídico está instalada entre as categorias
consideradas como de longa duração. Há que se considerar, todavia — com os que trilham
por caminhos que estão para além da história política — “os discursos como palcos de lutas
sociais. As categorias como praças fortes que se conquistam ou se perdem, na luta social”. 1
O próprio enunciado da tese evidencia que as palavras não designam simplesmente
coisas ou objetos do mundo real. O discurso é constitutivo do real. E do poder a palavra não é
mera retratação, é, antes, sua condição de existência e legitimação de seu exercício. A
afirmação peremptória de que a monogamia constitui princípio estruturante da regulação das
relações familiares no Ocidente deve merecer ao menos, metodologicamente, o benefício da
dúvida. A proposta em foco, todavia, não se assenta em cogitações de ordem meramente
teórica ou em especulação sobre o fato de ser ou não a monogamia natural à espécie humana
ou aos primatas mais evoluídos.
As questões que puseram em movimento a pesquisa e que constituem a mola propulsora
da própria tese podem ser resumidas nos seguintes termos: O princípio da monogamia deve
ser de tal maneira considerado como fator estruturante do Direito de Família, que eventuais
arranjos familiares simultaneamente integrados por uma mesma pessoa (cônjuge ou
companheiro) devam merecer a pecha jurídica de concubinato e, em consequência,
permanecer excluídos da proteção estatal? É plausível exigir inexistência dos impedimentos
para o casamento, previstos no art. 1.521 do CC2002, como condição para caracterização da
união estável? O princípio da monogamia deve e pode continuar sendo utilizado como critério
de exclusão da tutela jurídica de entidades familiares que se formam simultaneamente? Em
face ao princípio da dignidade da pessoa humana consagrado na Constituição Federal e de
seus reflexos e desdobramentos no âmbito da família (repersonalização, 2
despatrimonialização), há ainda lugar para se falar em concubinato e, portanto, na
manutenção da monogamia como princípio estruturante do sistema jurídico pátrio? É possível
admitir que se negue existência jurídica à união estável que de fato existe, para manter a tutela
à determinada conjugalidade que não mais expressa comunhão plena de vida, mas que apenas

1
HESPANHA, António Manuel. Imbecillitas – a linguagem da desigualdade e da discriminação no discurso jurídico de
antigo regime. São Paulo: Annablume, 2010. p. 18.
2
CARVALHO, Orlando de. A teoria da relação jurídica: seu sentido e limites. 2. ed. Coimbra: Centelha, 1981. p. 11.
14

formalmente subsiste? A existência concomitante de duas uniões estáveis implicará a


caracterização de uma delas como concubinato, embora não presentes os elementos
configuradores deste, consignados no art. 1.527 do CC2002?
Estas questões enunciadas, assim, de forma pragmática, objetiva e simples podem
ganhar contornos novos e maior complexidade se, na linha de Pierre Bourdieu, for
considerada a natureza de poder simbólico do discurso jurídico. Poder simbólico, portanto,
entendido como “o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de
confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto
o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força
(física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, [que] só se exerce se for
reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário”.3
Se das questões formuladas para o impulso inicial da pesquisa é possível inferir fissuras
no discurso jurídico, que antes se apresentava monolítico e inquebrantável, reforçadas restam
as suspeitas de iminente derrocada de certo capital simbólico, trabalhado para dissimular e
transfigurar relações de força e de marginalização ignoradas, isto é, tornadas irreconhecíveis
ou invisíveis pelo próprio discurso jurídico. O desvelamento do arbitrário ocultado pelo poder
simbólico4 do discurso jurídico articulado sobre a categoria da monogamia apresenta-se, ao
mesmo tempo, como caminho e objetivo da reflexão proposta.
Não se trata de análise do discurso jurídico de um ponto de mirada que lhe seja exterior.
Cuida-se, antes, de exercício de construção teórica no âmbito do próprio Direito. Esta linha de
abordagem viabiliza-se tendo em vista a circunstância histórica de constitucionalização
experimentada pelo Direito Civil, que permitiu verdadeira reconstrução deste campo do saber
jurídico. A tese inscreve-se, pois, no marco referencial da perspectiva do Direito Civil-
Constitucional, 5 orientada à construção de uma teoria crítica do direito privado. 6

3
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 6. ed., Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2003. p. 14.
4
Segundo Bourdieu “a destruição deste poder de imposição simbólico radicado no desconhecimento supõe a tomada de
consciência do arbitrário, quer dizer, a revelação da verdade objectiva e o aniquilamento da crença: é na medida em que o
discurso heterodoxo destrói as falsas evidências da ortodoxia, restauração fictícia da doxa, e lhe neutraliza o poder de
desmobilização, que ele encerra um poder simbólico de mobilização e de subversão, poder de tornar actual o poder potencial
das classes dominadas”. (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico... p. 15 – nota de rodapé).
5
Entre os autores que têm fixado as bases da reconstrução de um Direito Civil de índole constitucional podem ser referidos:
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar,
1997; TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001; TEPEDINO, Maria Celina
Bondin de Morais. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil, São Paulo, n. 65, p. 21-33, 1993;
BARBOZA, Heloísa Helena Gomes. Perspectivas do direito civil brasileiro para o próximo século. Revista da Faculdade
de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, nº 6/7, p. 27-39, 1998,1999; RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A constitucionalização do
direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. (Coord.) Repensando fundamentos do direito civil
brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998; LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito Civil.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 36, nº 141, p. 99-109, jan./mar. 1999.
6
Neste sentido a tese tem marcada referência em autores como FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito Civil. Rio
15

A tese é desenvolvida em quatro capítulos. O primeiro pautado pela interlocução com as


ciências sociais, especialmente, a história, a antropologia e a sociologia. Um exercício de
recuperação dos fundamentos determinantes da monogamia como princípio estruturador do
modelo jurídico da família moderna ocidental. Neste capítulo, busca-se evidenciar que o
princípio da monogamia é resultante da dominação masculina, que ganha referendum no
direito canônico, justificativa no discurso filosófico, e é legitimado, posteriormente, pela
codificação do Direito Civil. No segundo capítulo a atenção está centrada no levantamento de
elementos históricos da configuração do concubinato no Brasil, bem como nele se busca
recolher manifestações da doutrina e da jurisprudência sobre a monogamia, a partir do final
do século XIX, com os ensaios de codificação do Direito Civil até a Constituição de 1988, e
seus reflexos no Direito Civil contemporâneo. O terceiro capítulo destina-se a demonstrar a
mudança do cenário social e político, decisiva para que a monogamia — erigida como
princípio jurídico central no Direito Civil de matiz oitocentista — perdesse vigor no quadro
atual. Neste terceiro capítulo, alguns temas tomam destaque: a dimensão existencial da
democracia, o pluralismo cultural, a laicidade do Estado, enfim, a explicitação do novo
contexto no qual deve ser reformulado de forma permanente e dinâmica o conceito jurídico de
conjugalidade. Por fim, o último capítulo tem como escopo problematizar as consequências
jurídicas da superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da
família. Abre-se campo para reflexão sobre o discurso dos tribunais superiores a respeito do
tema. O último capítulo tem a pretensão de servir como que de um banco de provas. Uma
experimentação da própria tese. A monogamia, como princípio jurídico, é submetida a um
teste de resistência face à tábua axiológica dos princípios constitucionais da dignidade
humana, da solidariedade, da igualdade, da liberdade e da democracia. São apontados, no
último capítulo, marcantes indícios da superação da monogamia como princípio jurídico.
Alguns fios condutores perpassam a tese: (i) a monogamia como fator de legitimação da
dominação masculina sobre a mulher; (ii) em decorrência, a preocupação com a construção de
lugares de “não-direito” e de invisibilidade jurídica de determinadas pessoas, que ficam na
externalidade da situação de sujeito de direito; (iii) o concubinato, campo privilegiado de
estudo, é tomado como estatuto de exclusão; (iv) são tratados os fatores decisivos para a

de Janeiro: Renovar. 2000; CARVALHO, Orlando de. A teoria da relação jurídica: seu sentido e limites. 2. ed. Coimbra:
Centelha, 1981; CORREAS, Oscar. Introducción a la crítica del derecho moderno. 2 ed. Puebla: Universidad Autónoma
de Puebla, 1986. CORREAS, Oscar. Crítica da ideología jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1995. MIALLE, Michel.
Introdução crítica ao direito. Lisboa: Estampa, 1994. RODOTA, Stefano. El terrible derecho: esdudios sobre la
propriedad privida. Madrid: Civitas, 1986. BARCELONA, Pietro. Diritto privato e società moderna. Napoli: Jovène,
1996. BARCELONA, Pietro. El individualismo propietario. Madrid: Trotta, 1996. EDELMAN, Bernard. O direito
captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976.
16

reconfiguração da conjugalidade contemporânea: a democracia, o pluralismo cultural e a


laicização do Direito; (v) a perspectiva do Direito Civil-Constitucional é tomada como
referência para a problematização da questão fundamental da tese: a superação da monogamia
como princípio estruturante do estatuto jurídico da família.
Cumpre referir que as premissas a partir das quais se desenvolve a tese são tomadas de
marco teórico que se inscreve no âmbito do que se convencionou denominar Direito Civil-
Constitucional e Teoria Crítica do Direito Civil, todavia — para usar a metáfora do silogismo
— as conclusões apresentadas podem, eventualmente, não ser endossadas por aqueles autores
de cuja produção teórica as referidas premissas foram extraídas. Esta ressalva é necessária
tanto por uma questão de honestidade intelectual como também para que os marcos teóricos
de referência não sejam percebidos como manipulação de argumento de autoridade.
As considerações sobre a superação da monogamia como princípio jurídico contribuem
para tornar salientes as novas demarcações e contornos da conjugalidade e das famílias
contemporâneas, em um país que, na Constituição de 1988, fixou sólidas bases de um projeto
democrático emancipatório que se espraia para além da praça e alcança as casas e as relações
coexistenciais fundantes da condição humana, imprescindíveis ao exercício da plena
cidadania. É o que se persegue.
17

1 A MONOGAMIA E SUA CONSTITUIÇÃO EM PRINCÍPIO JURÍDICO

O sistema mítico-ritual desempenha um papel equivalente ao que incumbe ao campo


jurídico nas sociedades diferenciadas: na medida em que os princípios de visão e
divisão que ele propõe estão objetivamente ajustados às divisões pré-existentes, ele
consagra a ordem estabelecida, ajustando-a à existência conhecida e reconhecida,
oficial.

Pierre Bourdieu

O discurso jurídico sobre a monogamia e a sua elevação ao status de princípio


estruturante do Direito de Família não devem ser compreendidos como puro fenômeno
normativo. O sentido e o alcance da produção jurídica sobre o tema só podem ser apreendidos
se tomadas em consideração a ambiência sociocultural e política, suporte do referido discurso,
que, por sua vez, no mercado de bens simbólicos,7 produz e reproduz uma determinada
mentalidade.
Conquanto demarcada no âmbito jurídico, a reflexão proposta não se aprisiona em
signos e conceitos estruturados formalmente em um sistema fechado de abstrações e
definições indiferentes ao tempo e lugar e, sobretudo, às razões de sua própria construção.
Tem, portanto, a pretensão de alinhar-se a uma perspectiva crítica do Direito Civil, 8 o qual,
em inegável crise, abre espaços para sua própria reconstrução e revigoramento.
O estudo da monogamia confinado ao campo da dogmática jurídica, sem ampla
interlocução com a história, a antropologia, a sociologia e a psicologia, resultaria em análise
reducionista, refém de dados tidos como naturais e historicamente desconsiderados.9 Se a
dimensão jurídica, em geral, não deve ser dissociada da base histórico-social que a ancora,

7
Id. O mercado de bens simbólicos. In: MICELI, Sergio (Org.), A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,
1974.
8
Nas palavras de Luiz Edson Fachin, a crítica do Direito Civil “é uma busca de respostas que sai do conforto da armadura
jurídica, atravessa o jardim das coisas e dos objetos e alcança a praça que revela dramas e interrogações na cronologia
ideológica dos sistemas, uma teoria crítica construindo um modo diverso de ver. E aí, sem deixar de ser o que é, se reconhece
o ‘outro’ Direito Civil. E, se essa proposta escala montanhas epistemológicas, voa em rotas mal percorridas e mergulha em
águas turbulentas, não despreza as planícies, os caminhos bem torneados, muito menos o flúmen tranquilo de cognição
adquirida. Crítica e ruptura não abjuram, tout court, o legado, e nele reconhecem raízes indispensáveis que cooperam para
explicar o presente e que, na quebra, abrem portas para o futuro.” (FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito Civil.
Rio de Janeiro: Renovar. 2000. p. 4 e 5).
9
Constatou Michel Miaille que esta é a tônica de grande parte dos cursos de Direito: “expresso e mantido pelas estruturas
universitárias actuais, na concepção de que é desejável uma análise isolada do direito, acompanhada, é certo, por alguns
conhecimentos periféricos dados por outras disciplinas. (...) O erro reside no facto de tal perspectiva estar necessariamente
ligada a uma compreensão tecnológica do direito e, portanto, a uma definição empírico-descritiva da ciência jurídica”.
(MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. 2ª ed., Lisboa: Estampa, 1994. 60). Michel Miaille fala da
“ultrapassagem das fronteiras actuais das disciplinas.” E explica: “Esta ultrapassagem não significa que não existam objectos
científicos legitimando investigações autônomas, mas estes não têm existência senão num campo científico único que
chamaremos na esteira de alguns ‘o continente história’”. Mais adiante arremata: “... Para admitir esta nova perspectiva é
necessário abandonar o mito da divisão natural do saber. Este mito não é de papel: é um obstáculo, na medida em que é
preciso forçá-lo, a fim de se conseguir obter os meios de traçar um caminho científico.” (op. cit. p. 61 e 62)
18

com maior e especial razão o tratamento jurídico da monogamia não pode ser deslocado de
uma ampla interlocução com importantes áreas das ciências sociais.

1.1 Sexualidade e reprodução social

Para a antropologia, a sexualidade constitui a base sobre a qual se assenta a própria


sociedade. 10 A sexualidade resulta da interdição normativa — da fixação do permitido e do
proibido. A interdição fundamental seria a do incesto. Ela permite a passagem da dimensão
puramente biológica da reprodução para a dimensão social, isto é, para a criação de alianças.
Apesar das críticas posteriormente feitas ao estruturalismo de Lévi-Strauss, inegável foi sua
contribuição, ao perceber que a regulação básica da sociedade humana e que a constitui como
tal reside na normatização da sexualidade. Em suas próprias palavras: “Ao projetar, se
podemos dizer, as irmãs e filhas para fora do grupo consanguíneo, e atribuir-lhes maridos
provenientes de outros grupos, ela (a proibição do incesto) estabelece entre esses grupos
naturais laços de aliança, os primeiros passíveis de serem classificados de sociais. A proibição
do incesto fundamenta, assim, a sociedade humana e, em um sentido, ela é a sociedade.”11
Importa ressaltar que as regras contra o incesto não são uniformes em todas as
sociedades.12 Variam de cultura para cultura, ora abrangendo apenas a família mais restrita,
cônjuges, filhos e irmãos, ora alcançando a família ampliada ou extensa, sempre para o
controle da exogamia e para a regulação da endogamia, conformando o sistema de parentesco
em cada sociedade que, por vezes, revela-se extremamente complexo.
Ainda que a proibição do incesto não seja regra uniforme em todas as sociedades e
culturas, revela-se como norma de incontestável eficácia, não em razão tão somente de
castigos e previsões de punição pelo seu descumprimento, mas, porque se trata de norma com
internalização plena e mesmo irrefletida ou inconsciente. Por esta razão, registra Marilena
Chaui: “os estudiosos falam em tabu do incesto, isto é, na transformação do incesto em falta
cuja gravidade não pode ser reparada de modo algum, senão pela morte do infrator, porque

10
“Os antropólogos chamaram a atenção para o fato de que a sexualidade constitui o pilar sobre o qual se a ssenta a própria
sociedade e que, portanto, está sujeita a normas; normas que podem variar de uma sociedade para outra, mas que constituem
um fato universalmente observável...” (LOYOLA, Maria Andréa. Sexo e sexualidade na antropologia. In: LOYOLA, Maria
Andréa (org.). Sexualidade nas ciências humanas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. p. 18).
11
LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. p. 26.
12
A demonstrar que a proibição do incesto não encontra um parâmetro unitário e fixo está a própria vedação ou a
autorização, no Brasil, do casamento entre parentes de terceiro grau na linha colateral, isto é, o casamento entre tio-sobrinha
ou tia-sobrinho. O Código Civil de 1916 elencava entre os impedimentos do casamento o terceiro grau de parentesco na linha
colateral. Já o Decreto-Lei nº 3.200/1941 autorizou o casamento entre os parentes de terceiro grau mediante prévio atestado
médico de não haver inconveniente sob o ponto de vista da saúde para os nubentes e para eventual prole. O casamento entre
primos, embora não encontre impedimento legal, na cultura brasileira não é usual. Tal fato, por certo, decorre de regra de
exogamia assimilada pelo inconsciente coletivo.
19

seu ato põe em risco a vida de um grupo inteiro, de uma sociedade inteira.”13 Chaui esclarece
que o pavor decorrente do tabu é de tal ordem que, para a morte do infrator, não há
necessidade de intervenção física do grupo em que está inserido. Ele morreria em razão da
culpa, do medo, do isolamento, da loucura.14 A internalização da regulação da sexualidade
opera-se não por força puramente de leis biológicas, mas por potentes razões de reprodução
social, profundamente enraizadas no inconsciente coletivo.
A regulação da sexualidade e a estruturação de laços de família permanentes não
decorrem de uma simples e inexorável lei de propagação da espécie. Vinculam-se, sobretudo,
à transmissão (tradição) cultural. Sendo a sexualidade humana resultante de condicionamentos
e interditos sociais, as explicações e justificativas fundadas nas teorias estritamente biológico-
evolucionistas podem ser consideradas, mas ao mesmo tempo devem ser relativizadas, dada a
condição eminentemente cultural do mundo humano.

1.2 A monogamia nos limites da biologia: a perspectiva evolucionista

Há aqueles que se propõem à realização de análises quase que estritamente biológica em


relação à monogamia. 15 Estes trabalhos podem ser considerados, mas, adota-se, aqui — como
restará evidenciado no curso da exposição — entendimento de que as experiências da
conjugalidade humana e suas múltiplas configurações têm ingredientes culturais e
sociológicos muito mais fortes que supostos determinismos de natureza biológica. De
qualquer maneira, ainda que de forma concisa e sem maiores aprofundamentos, as
perspectivas estritamente biológicas devem ser referidas.
Nesta direção, é significativa pesquisa de Barash e Lipton sistematizada no livro O Mito
da Monogamia. Em suma, sustentam que os seres humanos não são naturalmente
monógamos, como usualmente se supõe e nem tampouco muitas espécies animais —
particularmente algumas aves — que sempre foram tidas como exemplo de experiência de
monogamia, na realidade não o são.

13
CHAUI, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. 12. ed., São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 11.
14
“O tabu é interdição sagrada e divinizada, tanto mais respeitada quanto mais distante no tempo estiver sua origem e quanto
mais invisível forem os poderes que a decretaram.” (CHAUI, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. 12ª
ed., São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 11)
15
Ao escrever sobre o Mito da Monogamia, David Barash e Judith Lipton, frisaram: “Nossa abordagem será biológica,
porque, independentemente do que possamos ser, nós, seres humanos, somos criaturas absolutamente biológicas.”(BARASH,
David; LIPTON, Judith Eve. O mito da monogamia. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 14). E Jared Diamond, na mesma
direção, endossa: “A chave para se compreender a sexualidade humana é reconhecer que este é um problema de biologia
evolutiva.” (DIAMOND, Jared M. Por que o sexo é divertido: a evolução da sexualidade humana. Rio de Janeiro: Rocco,
1999. p. 19)
20

Estes autores fazem diferença entre a monogamia social e a monogamia sexual ou


genética. A primeira não aparece em quase nenhum dos mamíferos, inclusive na maioria dos
primatas, mas, por outro lado, a monogamia social é encontrada em diversas espécies de
aves16 e tem forte correlação com o envolvimento dos pais e das mães na criação dos filhos.
Era lugar comum até bem pouco tempo a afirmação de que muitas espécies de aves
observavam além da monogamia social, a sexual ou genética. Todavia, pesquisas recentes
com utilização de exame de DNA apontam para certa poligamia sexual entre as aves. 17 Aves
criam filhos alheios em significativa quantidade. 18
Quanto aos mamíferos, os biólogos sustentam que entre eles a monogamia é fenômeno
raro. Os machos mamíferos, em regra, não tomam a si o encargo do cuidado, proteção e
alimentação de suas crias. Contribuem com o material genético e não fazem mais qualquer
outro investimento em sua progênie. A explicação da ausência de pareamento entre um macho
e uma fêmea, em significativo número de espécies mamíferas, relaciona-se à questão da
proporção de investimento dos pais na prole potencial. Até a fertilização representaria um
investimento muito maior para as fêmeas do que para os machos. O óvulo é infinitamente
maior que os espermatozoides e carrega nutrientes e mecanismos metabólicos aptos ao
desenvolvimento do embrião.19 A fertilização interna, que é a regra no caso dos mamíferos,
obriga a fêmea a um alto investimento no embrião. Há uma diferença colossal entre o aporte,
por exemplo, do pai humano, em poucos minutos de cópula e fornecimento de mililitros de
espermatozoides e o investimento da mãe humana, durante nove meses de gestação e mais a
fase de lactação. Em razão dessa discrepância, torna-se mais difícil para a mãe — que fez um
alto investimento — fugir ao cuidado dos filhos após o parto.20
O mamífero macho, instintivamente, pode “fazer o cálculo” de que se a cria carrega os
seus genes, para que ela tenha chances de sobreviver e perpetuar-se, deve ele ficar por perto
16
“Embora a monogamia seja amplamente um mito, mesmo entre as aves, ainda é verdade que o mundo das aves tende mais
à monogamia do que qualquer outro grupo de animais. Não é coincidência que elas tenham um metabolismo muito rápido e
as ninhadas devam ser alimentadas com quantidades imensas de comida, às vezes um inseto a cada 15 segundos! Com
demandas tão extraordinárias, há uma recompensa óbvia em ter dois adultos comprometidos no cuidado da cria, de modo que
é compreensível que a monogamia social seja uma especialidade das aves.” (BARASH, David & LIPTON, Judith Eve. O
mito da monogamia. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 189)
17
BARASH, David; LIPTON, Judith Eve. O mito da monogamia. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 15 e 16.
18
“Dois indivíduos são socialmente monógamos se vivem juntos, nidificam juntos, alimentam-se juntos e copulam juntos.
Ao ver toda essa unidade, os biólogos costumavam pressupor, o que não é de surpreender, que os animais estudados também
estavam misturando seus genes. Mas graças à impressão digital de DNA, estamos aprendendo que não é necessariamente
assim. (...) Quando se trata da reprodução, até espécies de aves que há muito eram consideradas o epítome da monogamia
social, e, portanto, eram antes conhecidas por sua fidelidade, agora estão se revelando aventureiras sexuais. Ou pelo menos
sexualmente não-monógamas.” (BARASH, David & LIPTON, Judith Eve. O mito da monogamia. Rio de Janeiro: Record,
2007. p. 21)
19
DIAMOND, Jared M. Por que o sexo é divertido: a evolução da sexualidade humana. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 28.
20
Ibid. p. 30.
21

para protegê-la e providenciar sua alimentação. Mas neste “cálculo biológico” corrobora outro
fator: o macho poderia continuar distribuindo seus genes entre muitos outros filhotes, pois,
tão logo termine de expelir seus espermatozoides em uma fêmea, está disponível para deixar
nova carga em outra e, assim, ao menos potencialmente, expandir as probabilidades de
transmitir seus genes a outros filhos. Isso ocorreria porque os machos mamíferos e outros
animais que fertilizam internamente não têm confiança na paternidade dos filhos da fêmea.
Face à inevitável incerteza, a “conclusão evolutiva” a que significativa parcela dos machos
mamíferos chega é de que deve sair a campo para procurar outras fêmeas para fertilizar,
pejando uma ou mais. Neste tipo de cálculo evolutivo, as fêmeas devem conseguir criar os
filhos sem contribuição do macho.21
A deserção pós-cópula, segundo Diamond, não ocorre em três circunstâncias excepcionais
entre os animais em geral: (i) quando a fertilização é externa e o macho se responsabiliza pelo
cuidado dos ovos, o que ocorre entre peixes e sapos; (ii) nos casos de poliandria de inversão
do papel sexual; é o caso de fêmeas grandes que competem para composição de um harém de
machos menores; ocorre com algumas aves como os jaçanãs. Entre estas aves, o macho é que
incuba os ovos da única fêmea soberana do harém masculino, que fica livre para ser
fecundada novamente, enquanto ele cuida da prole na expectativa de que, na estação, seguinte
possa fecundá-la novamente; (iii) a terceira exceção ao padrão da deserção pós-cópula
verifica-se nas espécies, incluindo a humana, para as quais é difícil ou mesmo impossível ao
pai ou à mãe criar o filho sem a colaboração de outro adulto. Nestas espécies, a fêmea não
seria capaz de alimentar e defender a cria sem a contribuição do macho. Logo, desertar após a
cópula não representaria um ganho evolutivo para o macho, porque este ato poderia significar
a morte dos filhotes por ação de predadores ou por inanição. O interesse na perpetuação de
seus genes imporia ao macho permanecer com a fêmea e vice-versa.22
Logo, para os biólogos evolucionistas a monogamia não é algo natural em nenhuma
espécie. 23 Trata-se, nada mais nada menos, de uma contingência ou estratégia de fazer os

21
DIAMOND, Jared M. Por que o sexo é divertido: a evolução da sexualidade humana. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.p. 30.
22
Ibid. p. 35-39.
23
Este aspecto é explicado por Robin Fox em As condições da evolução sexual: “É necessário sublinhar a respeito da seleção
sexual que, qualquer que seja o critério adotado (força, velocidade, ocupação de um território, manifestação de ostentação,
etc.), apenas uma minoria de machos consegue se reproduzir enquanto de modo geral todas as fêmeas conseguem fazê-lo
pelo menos uma vez. É fácil ver por quê: um macho pode fecundar um grande número de fêmeas, enquanto a fêmea, uma vez
grávida, deve carregar o feto durante um período que pode chegar a um ano, e, além disso, muito freqüentemente tem que
amamentar e criar o filhote. As ‘estratégias’ dos dois sexos, conseqüentemente, só podem mesmo diferir de modo marcante.
Do ponto de vista da reprodução, o macho tem a vantagem de se acasalar com tantas fêmeas quanto possível, ao passo que a
fêmea, — que tem somente uma oportunidade por ano — deve tentar conseguir para si os melhores genes. (...) Mas notemos
em primeiro lugar que as estratégias mencionadas acima serão sensivelmente modificadas a menos que, do ponto de vista da
reprodução, o macho tenha interesse em investir em sua progenitura. (...) Quando os machos têm que investir em sua
descendência para assegurar-lhe a sobrevivência, a concorrência ainda existe, mas se torna mais sutil e mais complicada, e o
22

genes sobreviverem e evoluírem. Todavia, observam esses biólogos que “mesmo entre as
espécies de mamíferos e de pássaros em que o pai cuida da cria, os machos tentam ter o
menor trabalho possível e fazer com que a cria sobreviva principalmente pelos esforços da
mãe. Os machos também tentam engravidar as companheiras de outros machos, deixando que
o infeliz macho traído, na ignorância, cuide dos filhos do traidor.”24 Na visão da biologia
evolucionista a monogamia nada mais é que uma estratégia engendrada pela força evolutiva,
por questão de sobrevivência, mas não como algo natural. 25 Este jogo ou disputa biológica
guarda alguns parâmetros de comparação com a condição humana, 26 que, repita-se, é
estabelecida a partir de fortes componentes culturais, econômicos e sociais que não podem ser
reduzidos a mero determinismo genético.
Mesmo em estudos que têm pretensão de análise exclusivamente biológica os autores
resvalam para questões de natureza econômica ou social. Por exemplo, Barash e Lipton
observam que “quanto maior o grau de ‘estratificação’ na maioria das sociedades não-
tecnológicas, maior o grau de poliginia. Em outras palavras, aqueles que eram muito

macho deve dar uma atenção maior a um número menor de fêmeas. Isso se torna mais importante entre os primatas, os
carnívoros sociais e em particular entre os homens.” (FOX, Robin. As condições da evolução sexual. In: ARIÈS, Philippe e
BÉJIN, André. Sexualidades Ocidentais – Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. 3. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1987. p. 13 e 14).
24
DIAMOND, Jared M. Por que o sexo é divertido: a evolução da sexualidade humana. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 36.
25
Para biólogos evolucionistas Barash e Lipton, a demonstrar que a monogamia não é natural na espécie humana estariam
diversas pesquisas. Citam que “o povo toda da Índia, por exemplo, não tinha o conceito de adultério e nem considerava
imoral que um homem desse, de má vontade, sua esposa a outro. Em muitas sociedades, o sexo extraconjugal era limitado a
determinadas categorias, como irmãos e cunhadas entre os sirionos do leste da Bolívia. Esses povos eram ‘monógamos’, mas
os homens podiam fazer sexo com as irmãs das esposas e com as esposas dos irmãos. As mulheres, por sua vez podiam fazer
sexo com os irmãos dos maridos e com os maridos das irmãs. Na tribo haida, homens e mulheres casados em geral podiam
ter relações sexuais com qualquer um que pretendesse ao clã do cônjuge; no máximo, o marido ou a esposa podiam ‘objetar
delicadamente’. Normalmente, ele ou ela não o faziam. Em resumo, mesmo quando a monogamia foi a forma legalmente
instituída de parceria, isso não inviabilizou algumas relações extraconjugais específicas, pelo menos em algumas sociedades
humanas.” (BARASH, David; LIPTON, Judith Eve. O mito da monogamia. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 225).
26
Muitas vezes a monogamia é apenas aparente. A semelhança entre os humanos e os pássaros papa-moscas malhados
impressiona: “Um exemplo muito estudado e bastante típico dessas tensões inerentes à paternidade é o da espécie de pássaros
europeus conhecidos como papa-moscas malhados. A maioria dos papa-moscas malhados, em princípio, é monogâmica;
muitos, porém, tentam ser polígamos, e uma boa quantidade deles consegue. (...) Eis como funciona a poligamia entre os
papa-moscas malhados. Na primavera, o macho encontra um bom lugar para fazer o ninho, demarca seu território ao redor,
corteja uma fêmea e copula com ela. Quando essa fêmea (denominada sua fêmea primária) coloca seu primeiro ovo, o macho
se sente confiante de que a fertilizou, de que ela estará ocupada chocando os ovos dele, de que não se interessará por outros
machos e de que, de qualquer forma, ela se encontra temporariamente estéril. Assim o macho procura um lugar próximo para
fazer outro ninho, corteja outra fêmea (denominada sua fêmea secundária) e copula com ela. Quando a fêmea secundária
inicia a postura, o macho se sente seguro de que a fertilizou também. Mais ou menos nessa mesma época, os filhotes de sua
fêmea primária estão começando a sair do ovo. O macho volta para ela, dedica a maior parte de sua energia, alimentando
esses filhotes, e menos ou nenhuma energia para dar de comer aos filhos de sua fêmea secundária. Os números contam a
cruel história: o macho faz em média 14 entregas de alimentos por hora no ninho da fêmea primária, mas apenas sete no da
fêmea secundária. (...) Os grandes vencedores são os machos polígamos, que geram em média 8,1 filhotes de papa-moscas
por ano (somando-se as contribuições de ambos os parceiros), comparados com os apenas 5,5 filhotes gerados pelos machos
monogâmicos.” (DIAMOND, Jared M. Por que o sexo é divertido: a evolução da sexualidade humana.... p. 36 e 37). Em
termos de comparação com dados da população humana, no mínimo é curiosa a observação de Barash e Lipton: “Mesmo
antes da impressão digital do DNA, os estudos de grupos sanguíneos na Inglaterra revelaram que o suposto pai era o pai
genético em cerca de 94% das vezes; isso significa que, em seis de cada cem casos, alguém que não o homem que criou a
criança era o pai genético.” (BARASH, David; LIPTON, Judith Eve. O mito da monogamia. Rio de Janeiro: Record, 2007.
p. 27).
23

poderosos e muito ricos (os dois, há muito tempo, costumam ser sinônimos) eram quase
sempre (1) homens e também (2) donos de grandes haréns. Não era incomum que o tamanho
do harém fosse calibrado com precisão em relação ao poder e à riqueza”. 27
Para os biólogos a monogamia aparece como circunstância em que a sobrevivência da
prole depende dos cuidados e da participação do macho. Para eles a maioria dos mamíferos
não é monógama porque não há investimento maior dos machos no processo reprodutivo. A
transmissão de seus genes dá-se pela competição espermática. Todavia, à semelhança de
muitas aves, os bebês humanos, crianças e adolescentes demandam alimento, proteção e
cuidados por muitos anos, por isso, o macho humano vê-se obrigado a parear, de tal sorte que
os genes que transmitiu não pereçam. Assim, a monogamia surge como oposição à
competição espermática. “Se um macho continua estreitamente associado a uma fêmea,
copulando com a mesma até que ela não seja mais fértil, então ele tem um nível alto de
confiança em sua própria paternidade e assim está predisposto a ajudar cuidar da cria”. 28
Desta forma, a questão da fidelidade e do ciúme deitam raiz em arquétipos primitivos de
“preocupação” com a ascendência genética. Não ter filhos intencionalmente é coisa recente.
Seria incorreto deduzir que haveria menos ciúmes entre o casal que optou por não ter filhos.
Trata-se de uma disposição de natureza animal instalada no decorrer dos milênios no
inconsciente coletivo da espécie humana. 29
A tese de Barash e Lipton é de que “não há evidências, nem da biologia, nem da
primatologia ou da antropologia, de que a monogamia é ‘natural’ ou ‘normal’ para os seres
humanos. Há, em vez disso, muitas evidências de que as pessoas há muito tempo tendem a ter
vários parceiros sexuais”. 30 Sustentam que essa tendência não é exclusivamente masculina.
Estes autores tomam como referência a vida sexual dos chipanzés, que jamais foram
considerados monógamos, e têm uma complexa vida sexual.
Nessa espécie, as fêmeas se envolvem em uma série de CEPs (cópulas extrapar), ainda
que exista um chipanzé macho dominante. Os testes de DNA revelaram que as fêmeas de

27
BARASH, David; LIPTON, Judith Eve. O mito da monogamia. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 224.
28
Ibid. p. 191.
29
Ibid. p. 237.
30
Ibid. p. 231. Estes autores chegam mesmo a cogitar que “talvez os homens fossem até pais melhores se as mulheres fossem
monógamas mais confiáveis. (O que, por sua vez, exigiria que os homens fossem monógamos mais confiáveis também!)
Pode ser impossível. Uma análise de 56 sociedades humanas diferentes revelou que em 14% quase todas as mulheres
envolviam-se em CEPs [cópula extra par], enquanto em 44% um proporção moderada o fazia e em 42% relativamente poucas
— mas, ainda assim, algumas — o faziam. É revelador comparar esses números com os de suas contrapartes masculinas:
quase todos os homens se envolviam em CEPs em 13% das sociedades, uma proporção moderada de homens em 65% e
poucos — mas, ainda assim, alguns — em 31% dos casos, Em resumo, a análise intercultural do índice de infidelidade
mostra que mulheres e homens são extraordinariamente semelhantes.” (BARASH, David & LIPTON, Judith Eve. O mito da
monogamia. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 238 e 239)
24

chipanzé se envolvem não só em CEPs (cópulas extrapar), mas em CEGs (cópulas


extragrupo). Segundo os pesquisadores, ao menos dois motivos explicariam por que os
chipanzés fêmeas se ausentam até por alguns dias de seu grupo para fertilizar-se com
elementos de outro grupo. A hipótese é de que assim procedem pelas possibilidades de
escolhas que se alargam, resultando o melhoramento da espécie, e, também, porque as fêmeas
ganhariam tolerância para seus filhotes na ocorrência de interação entre diversos bandos. O
infanticídio — praticado muito comumente entre os primatas, quando, por exemplo, um
chipanzé se apodera de um harém, depondo seu antecessor — poderia ser evitado, pois o novo
dono do harém reconheceria a fêmea com quem copulou. “Dado que até os machos adultos
cruéis se preocupam com a própria progênie, pode ser que, por meio da cópula com mais de
um macho, as fêmeas introduzam um certo grau de incerteza estratégica (ou até de confiança
errônea) quanto à possibilidade de um macho que desfrutou dos favores sexuais de uma fêmea
ser, de acordo com isso, o pai de sua prole. Se for assim, então as CEPs podem servir como
uma espécie de garantia contra o infanticídio, um meio pelo qual as fêmeas conseguem
alguma imunidade para sua cria.”31
Das considerações sobre o mundo animal é possível traçar paralelo com as relações de
conjugalidade humana. Para Barash e Lipton o divórcio tem uma forte correlação com as
CEPs. Criticam a idéia de que as CEPs uma vez descobertas levam ao divórcio. Seria
exatamente o contrário. O envolvimento em cópulas extra par tem exatamente a finalidade de
explorar possibilidades de divorciar-se do parceiro atual, assegurando, antecipadamente,
ligação com o parceiro da CEP, ou mesmo, seria uma cautela para o caso de futuro divórcio
ou viuvez. E, ainda estratégia para busca de melhor alternativa. 32 Em última hipótese, as
fêmeas usariam as CEPs para avaliar a qualidade de parceiros em potencial, antes de
romperem com o parceiro atual. 33

31
BARASH, David; LIPTON, Judith Eve. O mito da monogamia. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 147.
32
Diamond observa que a “mulher insatisfeita tende a buscar um novo relacionamento duradouro: seja um casamento ou um
relacionamento extraconjugal prolongado com um homem com maior capacidade de lhe proporcionar recursos ou bons gens
do que o marido.” (DIAMOND, Jared M. Por que o sexo é divertido: a evolução da sexualidade humana.... p. 43). Assim,
se estratégia dos machos para o envolvimento em CEPs (cópulas extrapar) está relacionada à quantidade, o envolvimento das
fêmeas estaria afeto à qualidade.
33
Op. cit., p. 157. “O ecólogo do comportamento Bert Kempenaers conta esta história: depois que um macho chapim-azul foi
ferido — aparentemente por um gavião —, sua parceira visitou outros machos em vários territórios próximos e foi vista
copulando com pelo menos um deles. Ela depois colocou vários ovos e, alguns dias após, seu parceiro ( o macho ferido)
morreu. Dos seis filhotes gerados, a análise de DNA revelou que um tinha como pai o macho ferido, três eram filhos de um
macho extrapar que foi visto copulando com a fêmea e os dois restantes tinham como pai um terceiro macho. Nenhum dos
machos extrapar ajudou a criar os filhos bastardos, embora seja interessante que um deles tenha ameaçado um observador
humano que visitava o ninho da fêmea viúva; nunca se havia visto machos de chapim-azul comportando-se desse jeito em
relação a um ninho que não fosse seu...Então, talvez esse macho estivesse exibindo pelo menos uma inclinação paterna
mínima.” (BARASH, David & LIPTON, Judith Eve. O mito da monogamia. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 168).
25

Ainda que Barash e Lipton se proponham a evidenciar a monogamia como mito, chegam,
porém, a conclusão eivada de ambiguidade, ou, no mínimo, paradoxal, pois afirmam que a
“espécie humana é preferencial e biologicamente polígina, mas também é principalmente
monógama e — quando as condições são propícias — avidamente adúltera... Tudo de uma só
vez. Não há um modelo animal simples que encerre toda a condição humana ‘natural’. Assim,
em algumas espécies, os machos procuram CEPs [cópula extrapar]; em outras, são as fêmeas
que o fazem. Qual o modelo para os seres humanos? Provavelmente os dois.” 34
Por todos estes fatores, Barash e Lipton afirmam categoricamente que: “a monogamia não
é natural em nossa espécie. E, na verdade, é muito menos comum do que poderia sugerir uma
visão ingênua e sentimental de ‘casamento e família’”. 35 Mesmo que se admita que as
hipóteses deste tipo de biologia evolucionista sejam interessantes e que são estribadas em uma
racionalidade que não pode ser de todo desprezada, certo é que, face aos complexos arranjos
das sociedades humanas e sua diversidade, as explicações fundadas em um determinismo
biológico são insuficientes.
A perspectiva evolucionista — mesmo na área da antropologia, que toma em conta fatores
para além daqueles meramente biológicos — já vem sofrendo diversas e fundadas críticas.
Malinowski, por exemplo, desmontou a fragilidade e a inconsistência da concepção quase
idílica de uma sociedade humana primitiva, em completa promiscuidade sexual, passando à
família consanguínea, à punaluana, o casamento em grupo, a poliandria, até, depois de um
longo processo evolutivo, chegar ao casamento monogâmico. 36 Superando visões monistas da
espécie humana, dos seus agrupamentos e sociedades, é impossível, atualmente, desconsiderar
a diversidade cultural. Não há lugar para reducionismos, nem para aqueles fundados em
concepções religiosas ou morais, nem tampouco para aqueles outros estabelecidos em
pretensas premissas de uma biologia evolucionista, com alegada capacidade de explicar a

34
BARASH, David; LIPTON, Judith Eve. O mito da monogamia. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 269.
35
Ibid.. p. 201.
36
Pondera Malinowski que a concepção de um comunismo grupal primitivo deveu-se a inexistência de métodos de pesquisa
adequados e do amadorismo de certos etnógrafos: “Os autores tiveram de se basear nos dados dos antigos etnógrafos
amadores — o moderno trabalho de campo do especialista, feito com métodos, com objetivo e conhecimento dos problemas,
ainda não existia naquela época. Em tema tão abstrato como a lei primitiva, o conjunto de observações do amador é inútil. Os
primeiros estudiosos alemães da vida selvagem em sua maioria admitiam a hipótese da ‘promiscuidade primitiva’ e do
‘casamento grupal’, exatamente como seu contemporâneo britânico, Sir Henry Maine, fora prejudicado por sua rigorosa
adesão ao esquema patriarcal. No continente europeu, a maioria dos esforços no estudo da jurisprudência antropológica
estava direcionada — ou melhor, era desperdiçada — na tarefa de provar que as teorias de Morgan estavam certas. O mito do
‘casamento grupal’ lançava sua sombra em todos os agrupamentos e descrições deles e influenciava suas elaborações
jurídicas com os conceitos assemelhados da ‘responsabilidade grupal’, da ‘justiça grupal’, ‘propriedade de grupo’ e
‘comunismo’ — resumindo, com o dogma da ausência de direitos individuais e da responsabilidade entre os selvagens.”
(MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e costume na sociedade selvagem. 2. ed., Brasília: UNB, 2008. p. 10).
26

sexualidade humana em suas multifacetadas manifestações, simplesmente, a partir de uma


força ou tendência genética evolutiva.
Crítica veemente à análise biológica evolucionista foi formulada pelo movimento
feminista. Evidenciou-se ser insustentável a confusão entre gênero e sexualidade, que
implicava a inevitabilidade e naturalidade da subordinação das mulheres. 37 Escapando do
determinismo biológico, mas, sustentando um determinismo econômico, Engels tornou-se
referência obrigatória para toda abordagem sobre a monogamia. É imprescindível que à sua
tese seja igualmente feita referência.

1.3 A monogamia, a propriedade, a família e o Estado: a tese de Engels

O primeiro tratamento não dogmático da monogamia foi desenvolvido por Morgan e em


seguida por Engels.38 Escapando às visões idealizadas desde Platão ou provenientes das
doutrinas religiosas, a família foi considerada como um fenômeno essencialmente histórico,
variável no tempo e geograficamente, e com estruturação determinada e modificada por
fatores decorrentes do modo de produção econômica de cada época.
Como os demais estudos desenvolvidos no século XIX, os trabalhos de Morgan e Engels
são marcados pelo evolucionismo linear característico daquele quadrante histórico. Morgan
evidencia o caráter não estável da família. Ela passa de um modelo inferior a formas
superiores à medida que a sociedade se desenvolve tecnológica e economicamente. Engels,
seguindo pelas trilhas lançadas por Morgan, sustenta a existência de uma promiscuidade
primitiva, “um comércio sexual promíscuo”, 39 sendo que a primeira família teria sido a
consanguínea, na qual o tabu do incesto não alcança a relação sexual entre irmãos, aparecendo
já a interdição da relação sexual entre pais e filhos. Na sequência, ter-se-ia configurado a
família punaluana, em que aparece a interdição do comércio sexual entre irmãos e irmãs, para,
em seguida, conformar-se a família sindiásmica, na qual o homem vive com uma só mulher,
sendo a poligamia e infidelidades eventuais privilégios masculino. 40

37
Sobre o tema ver artigo de Carole Vance, que esclarece: “O reexame teórico levou a uma crítica geral do determinismo
biológico, em particular do conhecimento baseado na biologia das diferenças sexuais. A evidência histórica e do cruzamento
de várias culturas minou a noção de que os papéis das mulheres, que variavam tão amplamente, pudessem ser determinados
por uma sexualidade e reprodução humana aparentemente tão uniformes. À luz da diversidade de papéis de gênero na
sociedade, parecia impossível que esses fossem inevitáveis ou causados pela sexualidade.” (VANCE, Carole. A
antropologia redescobre a sexualidade: um comentário teórico. Physis: Revista de Saúde Pública, Rio de Janeiro, UERJ,
v. 5, nº 1, p. 7-31. 1995.p. 10)
38
MICHEL, Andrée. Sociologia da família e do casamento. Porto [Portugal]: Res, 1983. p. 38.
39
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 12. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1991. p. 31.
40
Ibid. p. 37-66.
27

Sob a diretriz do materialismo dialético, Engels postula que “a monogamia não aparece
na história, portanto, absolutamente como uma reconciliação entre o homem e a mulher e,
menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a
forma de escravidão de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre sexos,
ignorado, até então, na pré-história.”41
Na percepção de Engels, a família monogâmica “baseia-se no predomínio do homem;
sua finalidade expressa é a de procriar filhos cuja paternidade seja indiscutível; e exige-se
essa paternidade indiscutível porque os filhos, na qualidade de herdeiros diretos, entrarão, um
dia, na posse dos bens de seu pai.” 42 Engels valeu-se do trabalho de Morgan,43 que
desconhecendo a perspectiva marxista, em seus estudos sobre a família monogâmica, chegou
a conclusões muito próximas àquelas fixadas pelo materialismo histórico.
Apesar do excessivo determinismo econômico da análise de Engels, não se pode negar a
pertinência e acerto de suas reflexões, especialmente, quando se toma em consideração a
consagração jurídica da regra pater is est quem justae nuptia demonstrat.44 Na perspectiva de
Engels, a razão fundante deste princípio não era tanto manter a “honra, a ordem social e a
dignidade mesma do casamento”,45 como aparentemente pode-se inferir, mas, sim, assegurar a
transmissão patrimonial aos descendentes do pater familias. Sem a monogamia imposta às
mulheres seria impossível fixar a paternidade e, em consequência, legitimar os herdeiros. O
princípio milenar foi consagrado nas codificações burguesas dos séculos XIX e XX.
Em alguma medida, o adultério masculino, no Ocidente, sempre foi tolerado, ao tempo
em que o feminino, severamente reprimido, pois poderia provocar a chamada turbatio
sanguinis. A moldura jurídica reconsagra a regra inscrita secularmente na cultura patriarcal.
Ao marido, com exclusividade, e dentro de lapso temporal limitadíssimo cabia o direito de
41
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 12. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1991. p. 70.
42
Op. Cit. p. 66.
43
Sobre a análise da evolução da família primitiva, ver: MORGAN, L. H. A família antiga. In: CANEVACCI, Massimo
(Org.). Dialética da família. 2. ed., São Paulo: Brasiliense. 1982. p. 54 – 70.
44
O adágio romano indica que “é presumida a paternidade do marido no caso de filho gerado por mulher casada”.
(OLIVEIRA José Lamartine Corrêa & MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família – direito matrimonial. Porto
Alegre: Fabris, 1990. p. 38). O próprio Engels, de forma irreverente, evoca o princípio pater is est, tendo-o como uma
decorrência do princípio da monogamia. Escreveu: “Com a monogamia, apareceram duas figuras sociais constantes e
características, até então desconhecidas: o inevitável amante da mulher casada e o marido corneado. Os homens haviam
conseguido vencer as mulheres, mas as vencidas se encarregaram, generosamente, de coroar os vencedores. O adultério,
proibido e punido rigorosamente, mas irreprimível, chegou a ser uma instituição social inevitável, junto à monogamia e ao
heterismo. No melhor dos casos, a certeza da paternidade baseava-se agora, como antes, no convencimento moral, e para
resolver a contradição insolúvel o Código de Napoleão dispôs em seu artigo 312: ‘L’enfant conçu pendant le mariage a pour
père le mari’. (‘O filho concebido durante o matrimônio tem por pai o marido.’). É este o resultado final de três mil anos de
monogamia”. (ENGELS, Friedrich. A origem da família.... p. 73)
45
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito de família. 3. ed. São Paulo: Max Limond, 1947. p. 46-
47.
28

impugnar a paternidade resultante da presunção pater is est.46 Na perspectiva de Engels, a


razão subliminar, mas verdadeira e profunda da monogamia reside na dominação do homem
sobre a mulher. Trata-se de mecanismo para que possa assegurar-se de que a prole que de sua
mulher descende é, efetivamente, também sua e tem, portanto, a legitimidade para sucedê-lo
na titularidade de seu patrimônio.
Em seu tratado sobre a origem e evolução do casamento, pronuncia-se Eduardo de
Oliveira LEITE no mesmo sentido: “Se o casamento monogâmico é um casamento de
conveniência, arranjado pelos parentes, este processo decorre da necessidade de conservar e
transmitir a propriedade privada. O substrato da monogamia não foi, de modo algum, um
fruto do amor sexual individual, como ingenuamente se poderia supor. (...) A monogamia,
porém, representa forma familiar fundada não sobre condições naturais, mas sociais,
particularmente no triunfo da propriedade individual sobre a comunidade espontânea
primitiva.”47
Engels, todavia, não resolve a questão da monogamia em toda sua amplitude, pois,
admitia ao lado do casamento monogâmico histórico, o casamento monogâmico em sentido
etimológico. O casamento monogâmico histórico seria para ele a quarta forma de casamento
que sucedeu a promiscuidade primitiva. A produção comercial, o estado de civilização e o
casamento monogâmico histórico são concomitantes. Os fundamentos do casamento
monogâmico histórico encontram-se na propriedade privada e no modo de transmissão do
patrimônio. O casamento burguês seria um refinamento do modelo. Para a burguesia, este se
dá por alianças de conveniência arranjadas pelos pais, a fim de se conservar e transmitir a
propriedade privada.
Por outro lado, não sustenta Engels que a libertação da mulher de sua condição de
escravidão doméstica implique, necessariamente, a abolição da monogamia. Ele expressa
ainda uma concepção essencialista em relação ao casamento. Para ele, o matrimônio só se
realizará plenamente, com toda liberdade, quando abolida a produção capitalista e dissolvido

46
O Código Civil de 1916, em seu art. 344 consagrava a seguinte regra: “Cabe privativamente ao marido o direito de
contestar a legitimidade dos filhos nascidos de sua mulher”. Este dispositivo fazia remissão aos prazos contidos nos §§ 3º e 4º
do art. 178 daquele Código, os quais previam prescrição, na verdade decadência, do direito do marido, no prazo de dois
meses, contados do nascimento da criança, se presente, e três meses, contados respectivamente da volta ou do conhecimento,
se ausente ou se desconhecesse o fato do nascimento. A preocupação com a turbatio sanguinis espelha-se também nos
impedimentos impedientes do casamento. Assim, ficava impedida de casar a viúva, até dez meses depois do começo da
viuvez, conforme dispunha o art. 183, inciso XIV do Código Civil de 1916. “Este prazo internupcial procura evitar a dúvida
quanto à paternidade, que se revela no conflito de presunções legais da paternidade (turbatio sanguinis), do filho que nascer
depois do segundo casamento”. (OLIVEIRA José Lamartine Corrêa & MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família –
direito matrimonial. Porto Alegre: Fabris, 1990. p. 207.)
47
LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casamento. Curitiba: Juruá, 1991. p. 49
e 50.
29

o sistema proprietário que a sustenta. Nessa situação ideal, o casamento terá como única causa
determinante a inclinação recíproca. E arremata asseverando que: “Desde que o amor sexual
é, por sua própria natureza, exclusivista — embora em nossos dias esse exclusivismo só se
realiza plenamente sobre a mulher — o matrimônio baseado no amor sexual será, por sua
própria natureza, monogâmico”.48 A esta monogamia refere-se como sendo monogamia em
seu sentido etimológico e não histórico.
Implicitamente, é possível concluir que o determinismo histórico-econômico que estaria
na base do casamento monogâmico não passa de uma circunstância, também, histórica,
todavia, não seria a gênese da monogamia, posto que, superada a desigualdade entre os sexos,
esta, ainda assim, prevaleceria como modelo de casamento. Apesar da crítica à monogamia
como mecanismo de dominação da mulher pelo homem, ela não desaparece no horizonte da
utopia comunista: “o que, sem sombra de dúvida, vai desaparecer da monogamia é o conjunto
dos caracteres que lhe foram impressos pelas relações de propriedade a que deve sua origem”
esclarece Engels.49 Não há como negar que a ressalva utópica acaba, em alguma proporção,
enfraquecendo ou mesmo negando a própria tese sobre a monogamia desenvolvida por
Engels.
Mesmo estando, hoje, superado o evolucionismo de Engels, não se pode desprezar sua
análise, mormente, quando há grande número de regramentos jurídicos da conjugalidade que
ainda têm como fonte de inspiração prevalecente a tutela da conservação e transmissão da
propriedade privada.50 Certo é que os estudos de Engels abrem caminho para a reflexão sobre
a condição feminina.

1.4 A monogamia e a condição feminina: a questão da reprodução, da sexualidade e de


gênero

Como já sublinhado, a monogamia segundo Engels se apresenta como dominação: “o


primeiro antagonismo de classe que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do
antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com
a opressão do sexo feminino”. 51

48
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 12. ed., Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1991. p. 89. (grifamos)
49
Ibid. p. 90.
50
Sobre este aspecto ver: MICHEL, Andrée. Sociologia da família e do casamento. p. 43.
51
Op. Cit., p. 70 e 71. E para sublinhar a condição de aviltamento da mulher, diz que o matrimônio se converte no mais das
vezes na mais vil das prostituições, sendo que a mulher “só se diferencia da cortesã habitual pelo fato de que não aluga seu
corpo por hora, como uma assalariada, e sim que o vende de uma vez, para sempre, como uma escrava”. (Op. Cit. p. 77).
30

Nesta direção, parece plausível a tese de Françoise Héritier, segundo a qual a diferença
efetiva entre o masculino e o feminino não deriva da fragilidade da mulher, menor tamanho e
limitações condicionadas pela gravidez e pelo aleitamento. Para ela o fator diferencial dos
sexos é antes “expressão de uma vontade de controle da reprodução por parte daqueles que
não dispunham deste poder tão particular: a procriação.” 52 Logo, a dominação masculina
sobre a mulher não decorre da natureza. Trata-se, antes, do exercício de poder historicamente
construído para compensar uma falta, isto é, o poder de procriar.
Como apreendeu Anthony Giddens com precisão, “foi somente na última geração que,
para as mulheres, viver a sua própria vida significou deixar a casa paterna. Anteriormente,
deixar a casa significava para todas, com exceção de uma pequena proporção de mulheres,
casar-se. Ao contrário da maioria dos homens, a maior parte das mulheres continua a
identificar a sua inserção no mundo externo com o estabelecimento de ligações.” 53
Sobre o tema é fundamental a contribuição de Bourdieu para quem o “sexismo é um
essencialismo, como o racismo de etnia ou classe, que visa imputar diferenças sociais
historicamente instituídas a uma natureza biológica, funcionando como uma essência, donde
se deduzem implacavelmente todos os atos da existência.” 54
A dominação masculina para Bourdieu, todavia, se insere em uma economia de bens
simbólicos que se enraíza na lógica da reprodução biológica e, acima de tudo, na reprodução
da ordem social. Ao lado dos dados da dimensão corpórea, física, existe a dimensão
simbólica. A construção social situa-se nas representações mentais que, todavia, refletem-se
nos corpos. Bourdieu fala da “somatização das relações de dominação”. 55 As construções
sociais acabam por inscrever-se no corpo e convertem-se em sistemas de disposições, nas
quais tem lugar a noção de habitus.56 Desta forma, “para compreender a dominação
masculina, é preciso situar-se dentro de uma filosofia disposicional, na qual o princípio das
ações não é a consciência, o projeto, a intenção racional, como nas teorias do individualismo

52
HÉRITIER, Françoise. La pensée de la difference. Apud: LOYOLA, Maria Andréa. Sexo e sexualidade na antropologia.
In: LOYOLA, Maria Andréa (org.). Sexualidade nas ciências humanas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. p. 35.
53
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. São
Paulo: Editora UNESP, 1993. p. 63.
54
BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. In: Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 84, septembre 1990.
pp. 2-31. p. 12 (“Le sexisme est un essentialisme: comme le racisme, d'ethnie ou de classe, il vise à imputer des différences
sociales historiquement instituées à une nature biologique fonctionnant comme une essenced' où se déduisent implacablement
tous les actes de l'existence”).
55
BOURDIEU, Pierre. La domination masculine... p. 11.
56
O habitus é involuntário. “As forças gravitacionais do habitus não são aquelas que podem elevar-se por um simples
esforço de vontade, baseado em uma consciência libertadora”. (Les pesanteurs de l'habitus ne sont pas de celles qu'on peut
lever par un simple effort de la volonté, fondé sur une prise de conscience libératrice.) (BOURDIEU, Pierre. La domination
masculine... p. 13)
31

metodológico ou da rational theory of action, mas das disposições, quer dizer, das maneiras
de ser permanentes que podem estar na origem das ações dotadas de todos os sinais de
finalidade, sem que os fins atingidos tenham sido colocados enquanto tal (sic) por uma
intenção da consciência.”57
Como não se trata de mera dominação e submissão conscientes, poderia parecer que
Bourdieu segue por um caminho sem perspectivas de saídas. Contudo, ele aponta
possibilidade de reversão. Sendo a dominação simbólica, ela é realizada com a anuência do
dominado, ou mais precisamente, com a cumplicidade das estruturas que o dominado
incorporou. Estando sob prolongado ajuste às referidas estruturas de dominação, não basta a
consciência da existência destas para promover sua transformação. É imprescindível realizar
transformação profunda nas disposições adquiridas por uma espécie de reeducação, o que só
torna-se possível por meio de uma luta simbólica coletiva. 58 Ou nas palavras do próprio
Bourdieu: “Mas, para isso, é necessário levar em conta que se trata de uma instituição que
está inscrita milenarmente na objetividade das estruturas sociais e na subjetividade das
estruturas mentais, e, assim, evitar o risco de empregar como instrumento de conhecimentos
categorias de percepção e de pensamento que deveriam ser tratadas como objeto de
conhecimento.”59
Bourdieu sustenta que pensadores de linhas filosóficas distintas incorrem no mesmo
equívoco de perceber a lógica reprodutora do sistema de dominação em relação a fatores que
decorrem de uma ordem de representação consciente e intencional, ao menos em parte, como
a ideologia ou o discurso. Todavia, para ele “a força da ordem masculina se evidencia no fato
de que ela dispensa justificação. (...) A ordem social funcional como uma imensa máquina
simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça.” 60
Não se trata, porém, de uma força simbólica descolada de determinadas condições
materiais. 61 Para Bourdieu, existem estruturas das quais as disposições de dominação e

57
BOURDIEU, Pierre. Novas reflexões sobre a dominação masculina. In: LOPES, M. J.M. et all (org.) Gênero e saúde.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 78.
58
LOYOLA, Maria Andréa. Sexo e sexualidade na antropologia. In: LOYOLA, Maria Andréa (org.). Sexualidade nas
ciências humanas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. p. 40.
59
Op. Cit., p. 78.
60
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 18. Explica Bourdieu:
“Dado o fato de que é o princípio de visão social que constrói a visão anatômica e que é essa diferença socialmente
construída que se torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão social que alicerça, caímos em uma relação
circular que encerra o pensamento na evidência de relações de dominação inscritas ao mesmo tempo na objetividade, sob a
forma de divisões objetivas, e na subjetividade, sob a forma de esquemas cognitivos que, organizados segundo essas divisões,
organizam a percepção das divisões objetivas.” (Op. Cit. p. 20).
61
Referindo-se à sua metodologia, esclarece no preâmbulo: “Será, portanto, necessário buscar em uma análise materialista da
economia os meios de escapar da ruinosa alternativa entre o ‘material’ e o ‘espiritual’ ou ‘ideal’ (mantida atualmente por
meio da oposição entre os estudos ditos ‘materialistas’, que explicam a assimetria entre os sexos pelas condições de
32

subordinação decorrem. Estas estruturas são particularmente formadas por um mercado de


bens simbólicos. Para ele, o casamento apresenta-se como dispositivo central no terreno das
relações de produção e reprodução do capital simbólico que estão na base de toda a ordem
social. As mulheres figuram necessariamente como objetos ou símbolos, “cujo sentido se
constitui fora delas e cuja função é contribuir para a perpetuação ou o aumento do capital
simbólico em poder dos homens.” 62
O tabu do incesto, considerado por Lévi-Strauss como o ato fundador da sociedade, tem
como razão de ser, exatamente, o estabelecimento de alianças pela troca de mulheres. Lévi-
Strauss explica que “a regra mostra-se ao mesmo tempo vantajosa para os indivíduos, porque,
ao obrigá-los a renunciar a um lote de mulheres imediatamente disponíveis, mas limitado ou
mesmo muito restrito, abre a todos um direito de reivindicação sobre um número de mulheres
cuja disponibilidade é na verdade diferenciada pelas exigências do costume, mas que
teoricamente é tão elevado quanto possível, sendo o mesmo para todos”. 63 Estas não são
sujeitos, mas, sim, instrumentos, signos fiduciários que circulam como valor simbólico capaz
de instalar alianças entre os homens. “É na lógica da economia de trocas simbólicas — e,
mais precisamente, na construção social das relações de parentesco e do casamento, em que se
determina às mulheres seu estatuto social de objetos de troca, definidos segundo os interesses
masculinos, e destinados assim a contribuir para a reprodução do capital simbólico dos
homens — que reside a explicação do primado concedido à masculinidade nas taxinomias
culturais.”64 Necessário ter em mente que o sistema mítico-ritual das sociedades primitivas,
que consagrava a ordem estabelecida, tem seu correspondente no campo jurídico das
sociedades contemporâneas. 65 A perspectiva de análise de Bourdieu presta-se como
instrumento a uma teoria crítica do estatuto jurídico contemporâneo da conjugalidade. Sob o
primado de determinada legalidade legitima-se a dominação masculina.

produção, e os estudos ditos simbólicos, muitas vezes notáveis, mas parciais).” (BOURDIEU, Pierre. A dominação
masculina... p. 9.)
62
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 55.
63
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 82. Sustenta Lévi-
Strauss que a exogamia é a condição que tende a garantir, pela proibição do incesto, “a circulação total e contínua desses
bens do grupo por excelência que são as mulheres e suas filhas”(...) “A troca, e por conseguinte a regra de exogamia que a
exprime, tem por si mesma um valor social. Fornece o meio de ligar os homens entre si e de superpor aos laços naturais do
parentesco os laços daí em diante artificiais, porque libertados do acaso dos encontros ou da promiscuidade da existência
familiar, da aliança governada pela regra. (...) “a exogamia tem um valor menos negativo do que positivo, afirma a existência
social de outrem, e só proíbe o casamento endógeno para introduzir e prescrever o casamento com um grupo diferente da
família biológica. Certamente não é porque algum perigo biológico se ligue ao casamento consanguíneo, mas porque do
casamento exógamo resulta um benefício social.” (LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco... p.
521)
64
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 56.
65
Ibid. p. 17.
33

O mítico-ritual desloca-se do campo da religiosidade para o da juridicidade por meio de


discurso que tem a aura da aceitabilidade geral. Insuficiente, todavia, será o mero
distanciamento crítico em relação a tal discurso, porque da mesma forma como as crenças
religiosas se instalam como categorias de longa duração, internalizadas e reproduzidas como
verdades inabaláveis, assim, também, as certezas jurídicas. A mera consciência ou
desvelamento do mercado de bens simbólicos subjacente à normatividade não implica sua
transformação. O embate se trava na dimensão simbólica e não tão somente no âmbito
discursivo racional. Por exemplo, o próprio enunciado da superação da monogamia como
princípio causa perplexidade e tal estado não se situa no campo do racional. Pode até ganhar
expressão em linha argumentativa típica da racionalidade, mas, tratando-se de concepção
simbólica de longa duração, situa-se, primordialmente, em outro âmbito.
A força simbólica não existe, porém, sem as condições materiais que lhe favoreçam e a
sustentem em permanente retroalimentação. A suspeita que impulsiona as reflexões que aqui
se alinham é de que significativas alterações das condições materiais operadas na segunda
metade do século XX e início do século XXI abriram brechas em um sistema fechado e
construído em grande medida sob o signo da monogamia.

1.5 A monogamia nos recortes da história da sexualidade ocidental

No ocidente cristão, a sexualidade recebeu exaustiva abordagem. Os limites fixados pelos


objetivos propostos não comportam revisão bibliográfica atinente a esta complexa temática.
São referidas apenas algumas análises que fornecem elementos essenciais a evidenciar o
percurso da consagração da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da
família, sistematizado e consolidado nas proclamações dos cânones tridentinos e,
posteriormente, transposto para a legislação civil fixada pelo Estado liberal burguês. Não se
trata, portanto, de apresentar escorço histórico. Cuida-se antes de um exercício para perceber
nas dobras de algumas abordagens históricas as razões que sustentaram a monogamia como
princípio durante séculos.

1.5.1 Do cuidado de si à suspeita de si ou do estoicismo à pastoral cristã: fragmentos da


reflexão foucaultiana

Neste passo, toma-se como especial referência o terceiro volume da História da


Sexualidade de Michel Foucault, intitulado o cuidado de si. Reconhece Foucault que muitos
34

dos autores cristãos dos primeiros séculos tomaram empréstimos maciços — de forma
expressa ou também não explicitada — da moral estoica sobre o abuso dos prazeres, a
valorização do casamento e das obrigações conjugais. Ele faz minucioso estudo de textos de
Soranus, Rufo de Éfeso, Musonius, Sêneca, Plutarco, Epicteto, Marco Aurélio e outros. Os
textos situados entre os dois primeiros séculos a.C. e os dois primeiros séculos da era cristã
põem em questão os prazeres e, mais precisamente, a relação e o uso que deles devem ser
feitos.66 De qualquer sorte, tratam esses textos da austeridade sexual em uma sociedade
frequentemente referida como de costumes dissolutos.
Ainda que essa reflexão médico-filosófica tenha-se tornado como que precursora da moral
expressa na pastoral cristã, com muitos elementos semelhantes, o fundamento ético era
bastante diverso. Para Foucault, o que “marca nos textos dos primeiros séculos — mais do
que novas interdições sobre os atos — é a insistência sobre a atenção que convém ter para
consigo mesmo.” E, mais adiante, acrescenta: “essa majoração da austeridade sexual na
reflexão moral não toma a forma de um estreitamento do código que define os atos proibidos,
mas a de uma intensificação da relação consigo pela qual o sujeito se constitui enquanto
sujeito de seus atos”.67 Ressalva-se que a austeridade sexual que ganha expressão em filósofos
da época imperial, não é propriamente manifestação de individualismo. Para Foucault, trata-se
de “um fenômeno de um bem longo alcance histórico mas que conheceu nesse momento seu
apogeu: o desenvolvimento daquilo que se poderia chamar de uma ‘cultura de si’, na qual
foram intensificadas e valorizadas as relações de si para consigo.”68
O cuidado — ou a cultura de si — é tema bem antigo na cultura grega e foi retomado por
Sócrates no preceito: “Conhece-te a ti mesmo”. Ocupar-se de si constitui preocupação que
perpassou diversas correntes doutrinárias da filosofia, tornando-se uma maneira de ser, uma
forma de viver. Sendo um conceito de longa duração, transformou-se em uma prática social,
condicionando as relações interindividuais, os negócios, a linguagem e mesmo as instituições.
Como notou Foucault, a noção do cuidado de si proporcionou “um certo modo de
conhecimento e a elaboração de um saber”. E reconhece que os primeiros séculos da época
imperial se constituem no clímax da cultura de si. A partir desta referência é que Foucault
analisa as manifestações sobre a sexualidade no referido período.
Nos limites das preocupações que norteiam esta tese, evidentemente, não há espaço para
extensa e detalhada referência à percuciente análise levada a cabo por Foucault. A reflexão
66
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 45.
67
Ibid. p. 46 e 47.
68
Ibid. p. 49.
35

sobre a sexualidade naquele período mostra-se relevante à medida que subsidiou,


significativamente, a produção da moral da pastoral cristã em relação à sexualidade, muito
embora — como será demonstrado — o fundamento ético de uma e outra seja diverso. Neste
aspecto, a reflexão foucaultiana é significativa para os objetivos propostos.
Relembra Foucault que da perspectiva institucional, primitivamente, “o casamento era um
ato privado, que dizia respeito à família, à sua autoridade, às regras que ela praticava e
reconhecia como suas, não exigia a intervenção dos poderes públicos nem na Grécia nem em
Roma”.69 Era uma situação de fato produtora de efeitos jurídicos. Mas, gradativamente houve
certa publicização do casamento. Tanto na Grécia como em Roma, medidas legislativas foram
progressivamente marcando a intervenção da autoridade pública sobre a instituição
matrimonial.
É certo, porém, que o casamento não pode ser percebido como instituição generalizada
para toda a sociedade. Esta seria uma visão ingênua e anacrônica. O casamento era a exceção
e correspondia ao objetivo privado de transmitir o patrimônio aos descendentes e não a outros
parentes ou filhos de amigos e, também, revelava-se como uma política para preservação de
determinadas castas.70 Para o homem livre pobre o casamento interessava na medida em que a
esposa e os filhos pudessem constituir mão-de-obra útil, mas mesmo para tanto exigia-se um
capital inicial de investimento mínimo, que não se encontrava ao alcance da grande maioria.
Manter mulher e filhos mostrava-se exigência pesada. Os demais eram escravos. Por estas
razões, em termos demográficos, o casamento era uma exceção. Todavia, este fato não o fez
menos importante para uma ética do comportamento matrimonial, cujos textos produzidos
entre os dois últimos séculos a.C. e o segundo da era atual são tomados em consideração.
Os textos do período são estudados por Foucault sob três perspectivas: (i) de uma arte do
vínculo conjugal; (ii) de uma doutrina do monopólio sexual e, finalmente, (iii) de uma estética
dos prazeres compartilhados.71 Para os fins propostos, a questão do monopólio ou do que
poderia ser denominado de conjugalização das relações sexuais é a que se desponta como
relevante. Portanto, a ela se atém a análise que segue.
A moral de um casamento rigoroso é encontrada na literatura referida por Foucault. O
estado de casado e a atividade sexual deveriam tender à coincidência. Não que houvesse
contundente repreensão à relação fora do casamento. Mesmo porque seria difícil requerer a
abstenção de um homem solteiro. Desde que houvesse comedimento e respeito aos costumes
69
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 79.
70
Ibid. p. 79.
71
Ibid. p. 151.
36

e não ocorresse lesão a direito alheio não havia condenação. Não faltavam, porém, encômios
aos feitos daqueles que se mantinham abstinentes até o casamento.72 Todavia, a castidade não
era convertida em um preceito arrogante. A discrição era permanentemente recomendada. A
conjugalidade de qualquer sorte sobressai como condição para o exercício legítimo da
sexualidade.
A questão subjacente a toda essa orientação moral é que a busca intensa e desenfreada do
prazer é contrária à diretiva ética do cuidado de si. Daí apresentar-se o prazer na instituição
matrimonial como instrumento de moderação. Não que se pudesse antever nestes textos a
condenação cristã ao prazer. Neles não há qualquer indício de mancha no próprio ato sexual
como mais tarde vai aparecer na pastoral cristã. O que se condena é o desregramento. A
racionalidade está vinculada à ideia do casamento, nela a sexualidade é direcionada à
produção de uma descendência legítima. Ligam-se o ato sexual, o vínculo conjugal, a
progenitura, a família, e, mais além, a cidade, a comunidade humana. 73 Nesta ambiência e
ordem é que o homem encontra sua dimensão racional. A sexualidade também deve estar
orientada à ordem natural.
Desta vinculação das relações e do prazer sexual à conjugalidade decorre a exigência de
fidelidade. O adultério era jurídica e moralmente condenado se cometido por um homem com
uma mulher casada e tão somente nesta circunstância. Para o homem, o estado de casado não
tinha maior relevância. “O engano e o dano constituíam problema entre dois homens — o que
se apoderava da mulher e o que tinha sobre ela os direitos legítimos”. 74 Nestas circunstâncias,
isto é, o de adultério de uma mulher casada, segundo Epicteto, o homem viola o dever de
fidelidade para o qual ele teria nascido. Para ele, a infidelidade não se estabelece em relação a
instituição matrimonial. O vínculo conjugal nem é por ele considerado. A infidelidade se
constitui em relação à vizinhança, aos amigos, à cidade. 75 O adultério aparece como falta em
razão do rompimento que acarreta no tecido de relações existentes entre os homens, pois, no

72
Michel Foucault faz remissão a texto de Sêneca que elogia o filho de Márcia que resistiu aos avanços de mulheres que o
desejavam. Cita a condenação de Díon de Prusa à prostituição como “forma não amorosa de amor”. E lembra que o próprio
Marco Aurélio se lisonjeava de haver “salvaguardado a flor de sua juventude” de não fazer prematuramente “ato de
virilidade”. Pela citação de Epicteto, vê-se que a matéria era tratada com muita discrição. No texto citado por Foucault
consta: “Quanto aos prazeres do amor, deve-se, na medida do possível, permanecer puro antes do casamento; se o sujeito se
entrega aos prazeres, que tome sua parte daquilo que é permitido. Não importunes os que usam deles, nem lhes dês lição; não
publiques em todos os lugares que tu não usas deles.” (FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 3: o cuidado de si...
p. 168).
73
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 171.
74
Ibid. p. 171.
75
Nas palavras de Epicteto, citadas por Foucault: “Se, ao rejeitarmos essa fidelidade para a qual nascemos, construímos
armadilhas para a mulher de nosso vizinho, o que fazemos? Nada diferente do que destruir e suprimir, não é verdade? A
quem? Ao homem fiel, digno, religioso. E isso é tudo? E as relações de boa vizinhança, não as suprimimos? E a amizade, e a
cidade, também não as suprimimos?” (FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 3: o cuidado de si... p. 171).
37

contexto destas relações, cada um é chamado a respeitar os demais e a reconhecer-se entre


estes.
Mesmo em pensadores como Musonius, que advoga a simetria do dever de fidelidade
tanto para o homem como para a mulher, a fundamentação de tal dever para o homem guarda
a peculiaridade de uma referência externa ao vínculo conjugal. Explica-se. Ele põe em
questão a relação com a serviçal. A escrava estava a tal ponto reconhecida como objeto sexual
no quadro doméstico, que não parecia plausível objetar a um homem casado seu direito de
usá-la. Musonius sustenta a interdição com interessante argumento descrito por Foucault. Ele
defende a simetria de deveres entre o homem e a mulher, pois, se ao homem fosse facultado
manter relações sexuais com uma serviçal, tal prerrogativa deveria estender-se à mulher em
relação ao escravo. O interessante é que tal simetria não decorre do reconhecimento de
direitos iguais. Musonius reconhece ser natural que na direção da família o homem tenha
direitos que são negados à mulher, mas não nas relações sexuais, pois, neste caso a simetria
decorre da necessidade de se demarcar claramente a superioridade do homem no domínio
moral, pois se fosse admitido ao homem fazer com a escrava o que a mulher não pode fazer
com o escravo, isso equivaleria admitir ou supor que a mulher é mais capaz do que o homem
de dominar e governar seus impulsos e desejos. Logo, sendo, moralmente, superior, ela é
quem deveria governar a casa.76 Para evidenciar sua superioridade moral, o homem deveria,
também, abster-se daquilo que interdita à sua mulher. Para esta moral estoica o matrimônio
afigura-se como um ponto de equilíbrio no uso dos prazeres.
A maioria dos autores não é tão exigente como Musonius. De qualquer forma, o uso dos
prazeres pelo homem fora do casamento não será tido como demonstração de sua
superioridade, mas, ao contrário, de sua fraqueza. À mulher será aconselhado ter tolerância,77
para salvaguarda de sua honra e prova de afeição pelo marido. Ao cabo, todavia, para a moral
estóica, a restrição do uso dos prazeres ao matrimônio constitui uma forma de exercício do
domínio sobre si, que é demandado como obrigatório de todo homem que quer ver
reconhecidos seu status e a autoridade que deve exercer na cidade.
Necessário é ressalvar que o rigor dos moralistas em relação à sexualidade jamais ganhou
a expressão de uma demanda de intervenção do poder público, nem tão pouco de uma

76
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 173.
77
Foucault faz referência de que Plutarco aconselha às esposas demonstrar uma certa tolerância; não somente é melhor que
fechem os olhos — um pouco como as esposas dos reis da Pérsia que participavam dos banquetes com seus maridos mas
retiram-se quando, no momento de embriaguez, chama-se os músicos e cortesãs; elas deveriam pensar que, se seu esposo
procura prazeres com uma hetaira ou com uma serviçal, é por respeito por elas, e porque não querem fazê-las participar da
própria devassidão, da própria licença e dos próprios excessos.” (FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 3: o
cuidado de si... p. 175 e 176.)
38

exigência de legislação coercitiva das práticas sexuais. Trata-se de um discurso dirigido


àqueles que têm interesse no cultivo do cuidado de si, distinguindo-se da massa ou da
maioria. Não há tampouco no discurso dos moralistas apelo a castigos ou a medidas
coercitivas para uniformização de certos comportamentos esperados de todos. 78 O que
sobressai — mais que interdições — é a insistência na atenção que se convém ter para
consigo mesmo.
A pastoral cristã, ainda que se valendo algumas vezes de forma expressa da moral estóica,
vai desenvolver não um cuidado de si, mas, sim, uma suspeita de si.79 Foucault sinaliza que,
historicamente, há dois procedimentos para falar sobre sexo. Um seria a ars erotica, sendo
que nela a verdade é extraída do próprio prazer, concebido como prática e reconhecido como
experiência. Nela não estão em questão uma lei geral de vedações ou uma razão teleológica.
O prazer é conhecido como tal. 80 Julga Foucault que na civilização ocidental, a princípio, não
haveria uma ars erotica, mas tão somente uma scientia sexualis. E, para ele, este saber-poder
em rigorosa oposição à arte das iniciações sexuais tem como fonte fundamental a confissão.
Demonstra que desde o sacramento da penitência, imposto pelo Concílio de Latrão, em 1215,
passando pelo desenvolvimento das técnicas de confissão, pelo uso do recurso na justiça
criminal, nos processo acusatórios, pelos métodos de interrogatório, pelos tribunais da
Inquisição, até os procedimentos científicos de observação e de demonstração, a confissão
tornou-se altamente valorizada como técnica de produção da verdade. 81 Ressalta Foucault que
o sexo tem sido a matéria privilegiada da confissão desde a instauração da penitência cristã.
A confissão tem a peculiaridade de ser um ritual no qual o sujeito que fala é o sujeito do
próprio enunciado e o ritual se desenvolve numa típica relação de poder, pois não há
confissão sem a presença de um confessor, que não é um mero interlocutor, pois, coloca-se na
condição de quem avalia, julga, pune, perdoa, consola, reconcilia. O sexo, durante séculos,
assume essa forma discursiva. 82 Foucault demonstrará que o discurso da confissão passará a
uma codificação clínica, com valorização também da interpretação médica, assim o que
78
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 46.
79
“Os séculos VI e VII testemunham o desenvolvimento da pastoral da suspeita de si mesmo nos livros penitenciais, que
instauram entre cristão e confessor uma dinâmica de atribuição de culpa e de varredura das consciências que resultara numa
ética sexual cotidiana de interdição e negação.” (RIBEIRO, Luiz Felipe C. Sexualidade cristã primitiva nos catálogos de
vícios - história e arqueologia de uma interdição. Oracula, São Bernardo do Campo, n. 6 a. 3, 2007. p. 150-160, p. 152.)
80
Os efeitos da ars erotica seriam: “o domínio absoluto do corpo, gozo excepcional, esquecimento do tempo e dos limites,
elixir de longa vida, exílio da morte e de suas ameaças”. (FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 1: vontade de
saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 57)
81
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 1: vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 58 e 59. Para
Foucault “O homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente”. (FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 1:
vontade de saber... p. 59)
82
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 1: vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 61.
39

escuta não será apenas o dono do perdão ou juiz, mas detentor da verdade. A sexualidade é
interpretada por um discurso científico com pretensão de verdade, verifica-se uma
medicalização dos efeitos da confissão.83
Poder-se-ia dizer que, no Ocidente, com fundamento no modelo da confissão, prevaleceu
a scientia sexualis em detrimento da ars erotica. Foucault levanta, no entanto, a interessante
suspeita de que a ars erotica nunca desapareceu, nem mesmo ficou ausente no transcurso do
movimento que produziu a ciência da sexualidade. Ele sustenta que o modelo ciência da
carne, com suas contundentes manifestações na Contra- Reforma, e sua sucedânea, a scientia
sexualis, positivista, do século XIX, inventaram um outro prazer: “o prazer da verdade do
prazer, prazer de sabê-la, exibi-la, descobri-la por meio de astúcia; prazer específico do
discurso verdadeiro sobre o prazer. (...) o formidável ‘prazer da análise’ (no sentido mais
amplo deste último termo) que o Ocidente desde há vários séculos fomentou sabiamente,
tudo isso forma como que fragmentos errantes de uma arte erótica, vinculados em surdina
pela confissão e a ciência do sexo”. 84 Foucault resiste à hipótese do poder da repressão na
sociedade ocidental. Poder-se-ia suspeitar que por uma via transversa a scientia sexualis,
produzida no Ocidente, não passe de uma maneira peculiar e sutil de ars erotica. Desta forma,
a repressão não seria sempre fundamental e vitoriosa. 85
O cuidado de si, na cultura grega, ainda que pensado apenas da perspectiva masculina,
põe ênfase na autonomia. A pastoral cristã com seu assento na ascese estabeleceu como regra
a suspeita de si ou a renúncia de si86 e, por conseguinte, detalhada regulação heterônoma da
sexualidade. Como referido anteriormente, ainda que dos filósofos estoicos a Igreja tenha
colhido elementos centrais, para Foucault, o fundamento ético destas morais é bem distinto. A
suspeita de si proporcionará campo fértil para a regulação heterônoma da sexualidade,
primeiro por parte da Igreja, com o extenso e detalhado domínio exercido sobre a vida
conjugal e, posteriormente, por parte do Estado que trará a si a prerrogativa da referida
regulação.

83
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. 1: vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 66.
84
Ibid. p. 69 e 70.
85
Ibid. p. 71.
86
Referindo-se à produção do período imperial, indica Foucault que “... no refinamento das artes de viver e o cuidado de si,
esboçam-se alguns preceitos que parecem bem próximos daqueles cujas formulações serão encontradas nas morais ulteriores.
Mas essa analogia não deve provocar ilusão. Essas morais definirão outras modalidades da relação consigo: uma
caracterização da substância ética a partir da finitude, da queda e do mal; um modo de sujeição na forma de obediência a uma
lei geral que é ao mesmo tempo vontade de um deus pessoal; um tipo de trabalho sobre si que implica decifração da alma e
hermenêutica purificadora dos desejos; um modo de realização ética que tende à renúncia de si”. (FOUCAULT, Michel.
História da Sexualidade. 3: o cuidado de si... p. 235).
40

1.5.2 Indissolubilidade do casamento e monogamia: da privacidade familiar ao espaço


público

O reconhecido historiador Philippe Ariès sustentou em seminário ocorrido entre 1979 e


1980, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, que “o grande fato da história da
sexualidade ocidental é a persistência, durante longos séculos, até os nossos dias, de um
modelo de casamento limitador, o casamento monogâmico e indissolúvel”. 87 Reconhece neste
modelo de casamento uma exceção vigorosa e de longa duração. Exceção tanto geográfica —
porque, salvo na cultura ocidental, a possibilidade de repúdio à mulher prevaleceu — quanto
temporal — porque foi só “durante a Alta Idade Média que se passou do casamento com
direito ao repúdio (pelo menos em face da mulher) a um casamento indissolúvel”. 88
Como sinalizou Foucault a moral estoica impunha certas exigências de continência sexual.
Não tinha, porém, a pretensão de subverter os costumes e, como observa Ariès, nada subverte.
A ideia da estabilidade (stabilitas) do casamento já aparece no pensamento desses filósofos.
Mas, não era uma realidade social. Ariès sustenta a tese de que o casamento ocidental foi
implantado entre os séculos IX e XII, por meio de um embate entre as classes aristocráticas e
a Igreja. 89
O casamento herdado da antiguidade romana é um ato tipicamente privado. Ocorre em
casa e só é público no sentido de que os esposos estão cercados de expectadores, isto é, dos
parentes e amigos.90 Ele vai tornar-se efetivamente um ato público quando passa a ser
celebrado à porta da igreja. O casamento como ato privado, realizado no interior da casa,
revelava-se como uma aliança pela qual a família dava uma mulher à outra família, que em
troca pagava um dote (donatio puellae). Suspeita Ariès que se a aliança representava algo de
pouca monta, se os valores em jogo fossem pouco significantes, o casamento poderia ser
interpretado como uma ligação passageira. 91

87
ARIÈS, Philippe. O casamento indissolúvel. In: ARIÈS, Philippe e BÉJIN, André. Sexualidades Ocidentais –
Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 163.
88
Ibid. p. 163.
89
Ibid. p. 164.
90
Norbert Elias descreve esta típica cerimônia privada; “A procissão à câmara nupcial era liderada pelos padrinhos. A noiva
era despida pelas damas de companhia e tinha que tirar tudo. O leito nupcial precisava ser montado na presença de
testemunhas para que o casamento fosse válido. Eles ‘se deitavam juntos’. ‘Uma vez na cama, vocês estão definitivamente
casados’, dizia o ditado. Em fins da Idade Média, esse costume mudou gradualmente e o casal teve permissão de se deitar
vestido.” (ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol. I. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. p. 178).
91
ARIÈS, Philippe. O casamento indissolúvel. In: ARIÈS, Philippe e BÉJIN, André. Sexualidades Ocidentais –
Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 164.
41

Assim, apenas nas classes aristocratas é que o casamento selava importantes alianças e
relacionava-se a interesses políticos. Estes casamentos estavam reservados aos poderosos e
apenas a alguns de seus filhos. Considera Ariès que o casamento não seria para todos. Não era
necessariamente desejável que alguém se casasse. Se todos os filhos se casassem cresceria
exponencialmente o número de interessados em receber parte do patrimônio, enfraquecendo o
poderio da família. De outros meios se lançava mão para a satisfação da voluptas: o rapto, a
aventura com uma prostituta, com uma camponesa ou filha de um vassalo, ou com uma
bastarda. Estas relações eram admitidas e toleradas. Existiam uniões estáveis, isto é, aquelas
estabelecidas sem as formalidades do testemunho familiar, mas que não constituíam
casamento real. As bastardas, em especial, construíam o que foi chamado de “reserva de
prazer”. 92
Como esses casamentos eram celebrados para o atendimento de interesse das famílias, se
estes desaparecessem ou se as finalidades não fossem alcançadas, o casamento deixa de se
justificar e devia ser dissolvido, voltando a mulher à sua família ou indo para o monastério.
Outro casamento devia sucedê-lo. Àquele tempo, a Igreja mantinha-se distante da celebração
do matrimônio. No máximo, o padre benzia o leito nupcial e os nubentes em sua cama.
Paralelo ao casamento da aristocracia, a Igreja desenvolveu outro modelo de casamento
que amadureceu lentamente até alcançar, no século XIII, o status de sacramento. O modelo
eclesiástico não se impôs com facilidade à aristocracia. 93 Também, o amadurecimento da
doutrina do casamento foi lento. Digladiavam-se duas tendências no interior da Igreja. Uma
hostil ao casamento, vendo neste um estado inferior ao do celibato. Logo, dele deveria afastar-
se a Igreja, não chamando a si a responsabilidade de regular coisa de natureza carnal. A outra,
que, ao final se sobrepôs, via no casamento um mal menor, um remédio para evitar os
desregramentos, os incestos, a homossexualidade.
A princípio, a Igreja não intervém nos casamentos, mas o estado conjugal é retratado
como eminentemente religioso. Entre as disposições da Igreja quanto ao casamento estavam a
de que os nubentes deveriam ser livres e iguais para manifestação do consentimento; que as
núpcias deveriam ser públicas; com a fusão honesta do sexos, com o consentimento paterno.
Ariès ressalta que no século IX ainda não se constatava uma característica do casamento que

92
Ibid. p. 167.
93
Tratando da insurgência do Papa Estevão III à facilidade com que Carlos Magno trocava de concubinas e se divorciava,
Jean-Claude Bolongne registra: “... a lenda acrescentou outros crimes, de outra gravidade, aos concubinatos e aos divórcios
do imperador. Já não é o Carlos Magno histórico, mas aquele que, na memória medieval, encarna a tradição germânica contra
a nova ordem cristã, que nos servirá de espelho no qual será possível surpreender o reflexo de outras uniões perdidas.”
(BOLOGNE, Jean-Claude. História do casamento no ocidente. Lisboa: Temas e Debates, 1999. p. 33).
42

depois veio a tornar-se essencial: a indissolubilidade (stabilitas).94 Apesar de a Igreja


manifestar-se contrária ao repúdio, não tinha força e nem estava segura de seu papel como
interventora nas relações conjugais até então circunscritas e sob o poder das famílias.
Nos séculos XI e XII, aumenta a intervenção da Igreja, que busca adequar os casamentos
ao modelo sacramental. Não mais se restringia mais a aconselhar, nem hesitava em impor
sanções até mesmo de excomunhão. O embate com a nobreza será grande, especialmente em
razão dos impedimentos até o sétimo grau de parentesco na linha colateral. A regra colocava
obstáculos a alianças matrimoniais estratégicas. Somente em 1215, no quarto Concílio de
Latrão, foi que a proibição do incesto é reduzida ao quarto grau de parentesco. Mas, como
registrado, este mesmo Concílio fixou a regra da indissolubilidade (stabilitas). Lembra Ariès
que o último grande embate entre o papa e um rei da França, em razão de repúdio da esposa,
dar-se-á no início do século XII, em 1190, com Felipe Augusto. Posteriormente, o ponto de
vista da Igreja vai triunfar com tal força que o modelo eclesiástico do casamento substituirá o
tradicional. Nenhum rei ousará contestar a indissolubilidade do vínculo matrimonial até o
século XVI, portanto, até Henrique VIII da Inglaterra.95
Não se pode, todavia, reduzir o casamento ao âmbito da aristocracia cavalheiresca e
clerical. Há que se perguntar pela imensa massa incógnita do campo e da cidade. Comparando
as classes, Phillipe Airès entende que havia maior realidade nos casamentos dos poderosos do
que no casamento dos pobres, ou em suas palavras: “Para utilizar uma terminologia moderna
e contemporânea, muito anacrônica para a época, havia mais casamentos de um lado e mais
concubinato de outro”.96 Para o historiador, a stabilitas (indissolubilidade)
independentemente da força legislativa da Igreja e, ao mesmo tempo, em harmonia com ela,
também acabou por se consagrar nas comunidades rurais. Ele entende que o repúdio foi
gradativamente superado no mundo rural porque a estabilidade do casamento proporcionava a
estabilidade da própria comunidade. Assim, se um homem ou uma mulher quisessem casar-se
novamente, restava-lhes a opção da fuga. Rompiam as relações com a aldeia ou vila rural e
renunciavam as condições de vida naquela comunidade. O casamento era um negócio de
famílias. Desta forma a Igreja, no mundo rural, não necessitava impor a stabilitas, posto que
esta era uma exigência como que natural da comunidade.

94
ARIÈS, Philippe. O casamento indissolúvel. In: ARIÈS, Philippe e BÉJIN, André. Sexualidades Ocidentais –
Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 169.
95
“É fato digno de nota que tenham sido necessários vários séculos para se passar do modelo leigo privado, e incluindo o
repúdio, ainda em uso na aristocracia carolíngia, ao modelo eclesiástico, cujos traços mais significativos foram-se tornando
pouco a pouco a publicidade e a indissolubilidade.” (ARIÈS, Philippe. O casamento indissolúvel... p. 171.)
96
Op. Cit., p. 172.
43

Em relação à publicidade do casamento, entretanto, houve sentida resistência. A Igreja


passou a considerar os casamentos que eram realizados segundo os costumes antigos
impregnados nos grupos mais conservadores, como concubinato, pois, celebrados na
privacidade da casa, não gozavam da publicidade e muito menos do caráter registral. “O que
importava acima de tudo não era tanto a cerimônia religiosa quanto o registro por escrito. A
escrita fundamentava o ato, ao mesmo tempo que o controlava. A celebração na Igreja
implicava dois atos fundamentais: 1. a publicidade do casamento; 2. seu registro por escrito.
Entrava-se, por um lado, numa nova concepção do poder e do seu controle, e, por outro, do
tempo e de sua divisão” 97 O casamento percebido como este ato bem demarcado no tempo,
publicizado e registrado é recente na história humana. Ressalvados pequenos bolsões de
resistência o casamento canônico tornou-se hegemônico.
Verifica-se certo paradoxo, pois, à medida que se intensifica o controle externo ou
público da conjugalidade, a sexualidade é reclusa atrás de portas bem fechadas. Ao abordar o
processo civilizador na relação entre os sexos, Norbert Elias demonstra que na sociedade
medieval havia muito menos pudor em relação aos impulsos sexuais e também quanto à
verbalização atinente às funções corporais. A sociedade burguesa experimentará significativa
repressão dos impulsos sexuais e será marcada pelo silêncio constrangido e por uma aura de
embaraço em relação à sexualidade, o que explica, em alguma medida, a dificuldade que o
adolescente terá para modelar-se aos padrões do adulto. Esta segregação das manifestações da
sexualidade não estava presente nas sociedades tradicionais. 98
Os casamentos arquetípicos de aldeões refratários ao registro 99 vão gradativamente
desaparecer, face ao modelo eclesial que se impõe com toda sua força. Este paradigma de
matrimônio exerceu e exerce tal influência que Phillipe Airès registra: “Mais tarde, o Estado
97
“Às cinco para as onze — ainda não se era casado, às onze horas e cinco minutos já se está casado. Os filhos nascidos
antes das onze horas eram ilegítimos, os filhos nascidos após as onze horas eram legítimos: a assinatura do registro
transformava tudo, substituindo por um momento pontual uma faixa de tempo mais ou menos extensa, que começava com o
primeiro compromisso e acabava com eventual solenização na igreja.” (ARIÈS, Philippe. O casamento indissolúvel... p. 180)
98
Esclarece Norbert Elias que mesmo ainda no meio da aristocracia de corte, já no período absolutista, “a relativa franqueza
com que as funções naturais são comentadas entre adultos é acompanhada por maior liberdade de fala na presença de
crianças. (...) Só aos poucos, e mais tarde, é que uma associação mais forte de sexualidade com vergonha e embaraço, e a
correspondente restrição ao comportamento, se espraia mais ou menos uniformemente por toda a sociedade. E só quando
cresce a distância entre adultos e crianças é que o ‘esclarecimento de questões sexuais’ se torna um ‘problema agudo’.”
(ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol. I, Rio de Janeiro: Zahar, 1994. p. 178).
99
Jean-Claude Bologne sublinha que a Igreja assumiu opor sua concepção de casamento único contra os vários tipos de
conjugalidade admitidos como válidos pelas comunidades germânicas tradicionais: “Um só Deus, uma só Igreja, um só
casamento.” A Igreja não assimilou nem os casamentos que gozavam de prestígio entre os povos bárbaros. “Verifica-se assim
como se confundiram voluntariamente dois tipos de ‘casamentos inferiores’, ambos combatidos pela Igreja: o concubinato
com uma escrava ou contubernium entre escravos, de origem romana, e a Friedelehe, uma união por afeição entre duas
pessoas livres, geralmente de posição semelhante, de origem germânica. Dois tipos de casamento facilmente dissolúveis, logo
mal vistos pela Igreja que esboça na época carolíngia a teoria sacramental do casamento. Assimilando a Friedelehe e o
concubinato, faz do casamento germânico uma união inferior que exclui os filhos da sucessão.” (BOLOGNE, Jean-Claude.
História do casamento no ocidente. Lisboa: Temas e Debates, 1999. p. 31)
44

leigo sucedeu a Igreja para impor seu modelo. Nem as transformações no interior do casal e
da família, hoje bem conhecidas, (....) liberaram o casamento de suas pressões legais, nem o
devolveram ao domínio privado. Continuou sendo sempre um ato público.”100 Somente em
um Estado que chamou a si a regulação do casamento como um ato público, registral e de
interesse do próprio Estado é que a monogamia pode figurar como um princípio jurídico.
Sobre esta disputa em torno do controle da conjugalidade manifestou-se Norbet Elias
sustentando que “a Igreja evidentemente lutou desde cedo pelo casamento monogâmico. Mas
o casamento assume essa forma rigorosa como instituição social obrigatória para ambos os
sexos apenas em um estágio posterior, quando os impulsos e ardores caíram sob controle mais
firme e estrito”.101 Pondera Elias que “em fases anteriores, dependendo do balanço do poder
social entre os sexos, as relações extraconjugais para os homens e, às vezes, também para as
mulheres eram aceitas mais ou menos como naturais pela sociedade secular”. 102
Mais tarde, contudo, a concepção monogâmica do casamento resultou de tal forma
arraigada que mesmo um filósofo como Kant, que pretendia a construção de uma metafísica
dos costumes fundada na razão e isenta dos dados sensíveis da experiência, sucumbiu ao
modelo, reconhecendo no contingente e histórico um como que imperativo categórico
universal e atemporal em relação à conjugalidade.

1.5.3 Casamento e concubinato: entre a posse perpétua e a locação sem garantia

Apesar dos esforços de construção de uma filosofia fundada na razão e despida das
impressões da experiência, filósofos como Kant ao tratar do casamento e do concubinato,
acorrentados ao imenso peso da história, revelaram-se filhos de seu tempo.
Kant concebe o casamento como a união sexual de acordo com a lei. E explica-o como “a
união de duas pessoas de sexos diferentes para a posse por toda a vida dos atributos sexuais
recíprocos”.103 Ressalva que embora a procriação decorra da atração natural dos sexos, não
pode ser tida como finalidade do matrimônio, posto que com sua cessação este poderia
desfazer-se por haver atingido sua finalidade. Vê o casamento como um ato complexo que
não se realiza pelo simples contrato, nem tão pouco pode resultar apenas do gozo dos mútuos

100
ARIÈS, Philippe. O casamento indissolúvel. In: ARIÈS, Philippe e BÉJIN, André. Sexualidades Ocidentais –
Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 181.
101
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol. I, Rio de Janeiro: Zahar, 1994. p. 182.
102
Ibid. p. 182.
103
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2008. p. 122.
45

atributos sexuais. Porém é certo, para ele, que a celebração sem a relação sexual conjugal
(copula carnalis) seria um contrato simulado, não instituindo o casamento.
O problema que surge para o pensamento kantiano é exatamente a questão da posse dos
atributos sexuais do outro. Admite que a consequência do casamento é que “um ser humano
torna a si mesmo uma coisa, o que conflitua (sic) com o direito da humanidade em sua própria
pessoa”.104 A resolução que Kant dá ao problema por ele próprio suscitado parece
insatisfatória, uma espécie de escapismo. Propõe: “Só há uma condição na qual isso é
possível: a de que quando uma pessoa é adquirida pela outra como se fosse uma coisa, aquela
que é adquirida, por sua vez, adquire a outra, pois desta forma cada uma se recupera e se
restaura sua personalidade”.105 Não parece razoável, pelo simples fato de a posse ser mútua,
ter ela, por isso, a força de promover a redenção daquele que se reduziu à coisa sob posse de
outrem.
E Kant insiste na tese-metáfora: “que este direito pessoal tem, igualmente, afinidade com
um direito a uma coisa é algo que se apoia no fato de que se um dos cônjuges se afastou ou se
entregou à posse de uma terceira pessoa, o outro cônjuge terá a justificativa, sempre e de
maneira inquestionável, de trazer seu parceiro de volta ao seu poder, tal como se justifica na
recuperação de uma coisa.” 106
Desta noção de posse, na qual se assentaria o casamento, decorre o raciocínio que
entabula Kant para justificar a monogamia como única forma de casamento conforme a lei
natural: “Pelas mesmas razões, a relação dos cônjuges num casamento é uma relação de
igualdade de posse, igualdade tanto na sua posse recíproca como pessoas (daí somente na
monogamia, visto que na poligamia a pessoa que cede a si mesma obtém apenas uma parte da
pessoa que a obtém completamente e, assim, se converte numa mera coisa) quanto também
igualdade na posse de bens materiais.” 107
Tendo equiparado o casamento a uma espécie de posse recíproca e perpétua entre os
cônjuges, desqualifica o concubinato, sustentando ser este incapaz de “encerrar direito”,108
visto que seria um contrato de locação, e, em consequência, a pessoa estaria cedendo a si

104
Ibid. p. 122.
105
Ibid. p. 122.
106
Ibid. p. 122-123. Tal assertiva não parece advir da mesma pena que distinguiu, de forma paradigmática, no reino dos fins,
dignidade e preço.
107
Ibid. p. 123. Quanto à posse dos bens, ressalva que os cônjuges podem abrir mão de parte deles mediante contrato.
108
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2008. p. 123.
46

mesma como uma coisa à disposição do outro.109 Logo, o rompimento do contrato,


arbitrariamente, por uma das partes, não assegura à outra qualquer tipo de direito.
Não obstante o ingente esforço de Kant por liberar sua filosofia das condicionantes
históricas e da imperfeita percepção dos sentidos para desenvolvê-la, assim, no âmbito da
mais pura metafísica, sua vinculação às contingências históricas mostra-se clara. Mesmo
tendo partido da premissa de que o ser humano existe como um fim em si mesmo e jamais
como meio do qual outra vontade possa servir-se,110 concebe o matrimônio a partir da
metáfora da posse e o concubinato — como pactum turpe — é assemelhado a um contrato de
locação sem fiador ou outras garantias.
A reflexão kantiana, embora empenhada na afirmação abstrata da igualdade e dignidade
de todo ser racional, homens e mulheres, de forma explícita espelha a dominação masculina
do patriarcalismo instaurado ao longo dos séculos. Posse perpétua e contrato de locação são
fortes metáforas que apontam — mesmo no quadro de reflexão filosófica mais promissor, em
razão do potencial emancipatório fincado na afirmação da dignidade humana — a reificação
do humano, sobretudo em referência à mulher.
A abstração do discurso kantiano, com a alegação da posse mútua, mascara, mas, ao
mesmo tempo, também, revela a dominação masculina, numa posse que na prática se mostra
unilateral, isto é, apenas do homem sobre a mulher. Diz o próprio Kant:
“Se é formulada, portanto, a questão, a saber, se também está em conflito com a igualdade dos cônjuges a lei
referente à relação do marido com a esposa que estabelece que aquele deve ser o senhor desta (que ele é a
parte que comanda, ela a que obedece), isso não poderá ser considerado como conflitante com a igualdade
natural de um casal, se essa dominação se basear somente na natural superioridade do marido em relação à
esposa no que respeita à capacidade dele de promover o interesse comum da vida doméstica, e o direito de
comandar que nisso está baseado pode ser deduzido do próprio dever de unidade e igualdade no que tange à
finalidade.” 111
É impossível conceber a igualdade partindo da premissa da “natural superioridade do
marido em relação à esposa”. Como em outros sítios, a monogamia sempre é evocada em

109
Ibid. p. 123.
110
Sempre referida esta constitui uma das premissas fundamentais do pensamento kantiano. O conhecido texto que adiante
segue consta da Fundamentação da Metafísica dos Costumes: “Seres racionais estão, pois, todos submetidos a esta lei que
manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente
como fins em si.” Mais à frente, esclarece: “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa
tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e
portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade. [...] Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de um
ser racional um fim em si mesmo pois só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino dos fins. Portanto, a
moralidade e a humanidade, enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade”. (KANT, Immanuel.
Critica da razão pura e outros textos filosóficos. (Os pensadores v. 25) São Paulo: Abril Cultural, 1974. p 233 e 234).
111
No mesmo texto sobre o direito matrimonial prossegue Kant: “Se é formulada, portanto, a questão, a saber, se também
está em conflito com a igualdade dos cônjuges a lei referente à relação do marido com a esposa que estabelece que aquele
deve ser o senhor desta (que ele é a parte que comanda, ela a que obedece), isso não poderá ser considerado como conflitante
com a igualdade natural de um casal, se essa dominação se basear somente na natural superioridade do mari do em relação à
esposa no que respeita à capacidade dele de promover o interesse comum da vida doméstica, e o direito de comandar que
nisso está baseado pode ser deduzido do próprio dever de unidade e igualdade no que tange à finalidade.” (KANT, Immanuel.
A metafísica dos costumes... p. 123-124)
47

conjugação com a posse ou com a propriedade ou, no mínimo, com um interesse social que
está para além da conjugalidade em si. Afinal, em Kant, o casamento monogâmico reflete a
dominação masculina e o concubinato é reduzido a um lugar de não direito. Suas reflexões
corroboram a suspeita de que a monogamia constitui legitimação de um domínio do homem
sobre a mulher.

1.6 A monogamia como dogma: o casamento tridentino

Ainda que extremamente significante para a construção do pensamento jurídico, o


racionalismo da metafísica kantiana, no campo da conjugalidade, 112 exerceu, evidentemente,
menor influência do que o direito canônico. Este foi decisivo para a montagem do arcabouço
e do próprio núcleo da concepção da família e da conjugalidade. Trata-se de concepção que
passou quase incólume do Ancien Régime para a nova ordem fundada pelas revoluções
burguesas.
Para a compreensão da regulação jurídica do casamento no Brasil e da consagração do
princípio da monogamia como ingrediente estruturante do estatuto jurídico da família é
imprescindível tomar em consideração o regramento tridentino do casamento. O Concílio de
Trento constitui referencial importante porque condensou e sistematizou o pensamento da
Igreja Católica em relação ao matrimônio e sua repercussão alongou-e por séculos.
O Concílio de Trento, instalado em 13 de dezembro de 1545, estendeu-se por quase duas
décadas. Representou uma resposta à Reforma Protestante. Seus decretos expressam as
máximas da chamada Contra Reforma. Os grandes temas que se colocavam para a Igreja,
desde questões dogmáticas, disciplinares e de ordem, foram tratados. Entre as questões
doutrinárias estava a problemática dos sacramentos, e, como um deles, o casamento foi
consagrado e burilado. A doutrina geral dos sacramentos começou a ser discutida na VII
sessão, em março de 1547, porém, somente em 11 de novembro de 1563, na XXIV sessão,
foram promulgados doze cânones e um decreto, De Reformatione Matrimonii,113 e também o

112
Apesar de lateral ou secundária no pensamento kantiano, a reflexão sobre a conjugalidade é reveladora de uma
mentalidade fortemente impregnada. A dominação masculina torna-se premissa até para um filósofo que teve a pretensão de
afastar-se da experiência para a construção de uma metafísica dos costumes.
113
BOLOGNE, Jean-Claude. História do casamento no ocidente. Lisboa: Temas e Debates, 1999. p. 204.
48

chamado Decreto Tametsi,114. Observa Eduardo de Oliveira Leite que foram “dezesseis anos
discutindo o casamento”.115
Os cânones e o decreto tridentinos são especialmente relevantes pelo menos por três
razões. Primeiro, porque transformaram o casamento em um contrato solene. O casamento
solo consensu foi banido, reprovando-se, daí em diante, os enlaces considerados clandestinos.
Segundo, porque regulamentaram de forma detalhada o matrimônio, avocando à Igreja a
exclusividade de sua realização. E, por fim, porque os cânones e o decreto tornaram-se a
grande referência para a regulação do casamento nos países católicos e em suas colônias do
Novo Mundo, com notórios reflexos posteriores na legislação civil.
Nem mesmo a Revolução Francesa, que proclamou a separação da Igreja do Estado, terá
capacidade de fazer eclipsar a influência do direito canônico em relação à regulação
matrimonial. No Brasil, por exemplo, a mera instituição do casamento civil, com a
proclamação da República, não implicou rompimento com o modelo tridentino, como mais
adiante será demonstrado.116
A Reforma Protestante questionou a qualidade sacramental do casamento e, ao fazê-lo,
lançou para a órbita secular a sua regulação. 117 Por outro lado, os reformadores admitiram o
divórcio nos casos de adultério e impotência. Alguns reformadores o admitiam também nos
casos de heresias, sevícias, abandono do lar, conduta desregrada da mulher anterior ao
casamento.118
Os cânones e o Decreto Tametsi constituem clara refutação às postulações dos humanistas
e dos protestantes. Tanto é assim, que cada um dos cânones foi redigido na forma de um
anúncio de tese, isto é, de uma afirmação dogmática, a partir da hipótese de sua contrariedade,
seguida da declaração de anátema para aqueles que pretenderem refutar o decreto do Concílio.

114
O decreto tridentino sobre o casamento ficou conhecido por esse nome em razão da palavra latina com que é iniciado seu
primeiro capítulo: tametsi (embora, todavia).
115
LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casamento. Curitiba: Juruá,1991. p.
238.
116
Orlando Gomes reconhece: “O Concílio de Trento, de 1545 a 1563, estatui normas que influenciariam de modo decisivo
na evolução do instituto do casamento. São de origem canônica muitas disposições legais consagradas nos Códigos, como,
por exemplo, as que disciplinam os impedimentos matrimoniais. A noção de casamento nulo, a consolidação da
monogamia...” (GOMES, Orlando. Direito de família. 12. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 67).
117
A respeito do casamento Lutero se expressou no seu polêmico livro Do Cativeiro Babilônico da Igreja: “... como o
Matrimônio existiu desde o princípio do mundo e permanece entre os infiéis até hoje, não há razões para denominá-lo de
sacramento da nova lei e exclusivo da Igreja. Os matrimônios dos pais não eram menos santos que os nossos, e os dos infiéis
são tão verdadeiros como os dos fiéis. Mesmo assim, eles não o consideram sacramento. Além disso, entre os fiéis também
há cônjuges ímpios, piores que qualquer infiel”. (LUTERO, Martin. Do cativeiro babilônico da igreja. In: LUTERO, Martin.
Obras selecionads. v. 2 – O programa da reforma (escritos de 1520). 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2000. p. 400).
118
BOLOGNE, Jean-Claude. História do casamento no ocidente. Lisboa: Temas e Debates, 1999. p. 177 e 178.
49

Para os fins da presente tese, alguns dos doze cânones devem ser referidos e suas
implicações analisadas.119 O Cânone I declarou o casamento como um dos sete sacramentos120
da Igreja Católica Romana. 121 Ao fazê-lo, assim, de forma peremptória, a Igreja chamou a si a
autoridade para ditar as condições de validade do casamento e para regulá-lo de forma
detalhada. O casamento deixa de ser concluído solo consensu, não bastando a vontade
manifesta dos nubentes ou de seus pais. Transforma-se em um ato solene, com a necessária
intervenção do sacerdote, acompanhado de testemunhas, precedido dos proclamas e com os
devidos registros. A solenidade do ato e necessário registro do casamento civil têm, pois, sua
gênese no decreto tridentino. Da sacralidade à formalidade jurídica secular foi um passo. A
partir das codificações oitocentistas, o controle da celebração e a legitimidade para estabelecer
os requisitos de validade do casamento, impedimentos, deveres dos cônjuges, etc., passarão
das mãos da Igreja às mãos do Estado.
Necessário consignar que durante o medievo e mesmo nos albores da modernidade, a
Igreja não havia conseguido impor seu pensamento em relação à matéria matrimonial. “A
celebração das núpcias constituía então, em todo o Ocidente, uma espécie de baluarte da
cultura popular, um ponto privilegiado de resistência à cristianização”. 122 A este respeito
escreveu Marilena Chaui: “Enquanto a aristocracia e camponeses prosseguiam em suas
práticas, a Igreja ia lentamente elaborando sua teoria do casamento, um modelo que seria
imposto de forma completa apenas no século XIII, sua implantação parcial fazendo-se ao
longo dos séculos.”123 O casamento com suas complexas regras apresenta-se como um dos
instrumentos do projeto de cristandade. Após o Concílio de Trento, vários livretos de moral
prática são publicados.124 Tratava-se de compilações catequéticas de regras simples de

119
Não têm maior relevância os cânones VI, VIII, IX, X e XI, que tratam respectivamente da possibilidade da dissolução do
casamento não consumado, das autorizações para abstinência sexual entre casados, do celibato, da superioridade da castidade
em relação ao casamento e da vedação da celebração do casamento em alguns períodos do calendário litúrgico.
120
Registra Jean-Claude Bolongne que, “até o século XII, o casamento não consta das listas dos sacramentos, ao lado do
baptismo, da eucaristia ou da penitência. (...) É num decreto contra os hereges que atacam os sacramentos, em 1184, que o
papa Luciano III incorpora pela primeira vez o matrimônio na lista dos sacramentos tradicionais...” (BOLOGNE, Jean-
Claude. História do casamento no ocidente. Lisboa: Temas e Debates, 1999. p. 123).
121
CANON I.— Si quis dixerit, matrimonium non esse vere et proprie unum ex septem legis evangelicæ sacramentis a Christo
Domino institutum, sed ab hominibus in Ecclesia inventum, neque gratiam conferre: anathema sit. (Se alguém disser que o
matrimônio não é verdadeira e propriamente um dos sete sacramentos da lei evangélica, instituida pelo Senhor Jesus Cristo,
mas que é invenção de homens introduzida na Igreja, que não confere a graça: que seja anátema. – tradução livre do inglês)
(http://www.ccel.org/ccel/schaff/ creeds2.v.i.i.xi.html consulta em 09.01.2010)
122
BOLOGNE, Jean-Claude. História do casamento no ocidente. Lisboa: Temas e Debates, 1999. p. 123.
123
CHAUI, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. 12. ed., São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 94.
124
“Exceptuando estes aspectos directamente influenciados pelas decisões de Trento, estas obras, no que respeita ao
sacramento do matrimónio - como a muitos outros aspectos canónicos -, caracterizam-se por um óbvio conservadorismo,
visível sobretudo na persistência da atenção sobre os pecados de ordem sexual, mesmo apesar da resolução diferenciada de
vários casos de consciência, provocada mais por discussões ou divergências entre canonistas e teólogos do que por alteração
50

conduta que visavam infundir o ideário do sacramento do casamento formatado pelo Concílio.
Portanto, a origem de um controle geral e da uniformização das regras do casamento revela-se
como obra da Igreja. Antes de Trento, a despeito das normas esparsas emitidas pela Igreja
Católica Romana, o casamento consistia em uma cerimônia doméstica de caráter privado.125
A elevação do casamento à condição de sacramento foi duramente criticada pelos
reformadores, sob vários argumentos de ordem teológica. Aqui cabe referir apenas que
Calvino, por exemplo, percebia que a sacramentalização do casamento tinha inquestionável
intenção de concentração de poder sobre a vida das pessoas, pois afirma: “Porque uma vez
que tenham ganhado esta questão [do casamento ser considerado sacramento], neste mesmo
momento reservam a si o julgamento das causas matrimonias, por ser coisa sagrada, na qual
não devem tocar os juízes não eclesiásticos.” 126 Vê-se, pois, que a sacramentalização do
casamento já era percebida ao tempo da Reforma Protestante como concentração de poder de
jurisdição sobre o casamento. Havia à época intenso debate sobre os impedimentos
matrimoniais e as possibilidades de divórcio. A sacramentalização implicava uniformização e,
consequentemente, contrariedade aos variados costumes difundidos na Europa em relação ao
casamento.
Em significativa medida, os documentos tridentinos consistiam em uma resposta aos
reformadores protestantes. Dentre eles, Lutero foi quem de forma mais extensa e detalhada
abordou a questão do casamento, advogando sua secularização e independência em relação à
Igreja. Criticou duramente a enorme série de impedimentos do casamento sustentados pela
Igreja. Naquela época eram 18 tipos de impedimentos. Indagava com sua usual
grandiloquência127: “...que significa proibir o casamento a não ser inventar tantos

de doutrina.” (FERNANDES, Maria de Lurdes Correia. Espelhos, cartas e guias – casamento e espiritualidade na
Península Ibérica (1450-1700). Porto: Instituto de Cultura Portuguesa, 1995. p. 210 e 211).
125
CHAUI, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. 12. ed., São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 93. Sobre o
casamento antes da influência tridentina e, especialmente, na época carolíngia, Ariès esclarece que “como em Roma, o
casamento é um ato essencialmente privado: passa-se em casa, embora seja também público no sentido (restrito e, diríamos,
mundano) de que os esposos e seus parentes estão cercados de expectadores que os aclamam e que, por sua presença,
testemunham a realização do ato e o assentimento da comunidade.” (ARIÈS, Philippe. O casamento indissolúvel. In: ARIÈS,
Philippe e BÉJIN, André. Sexualidades Ocidentais – Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. 3. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 1165)
126
Da tradução do espanhol: “Porque una vez que han ganado esta partida, al momento se reservan para sí el juicio de las
causas matrimoniales, por ser cosa sagrada, que no deben tocar los jueces no eclesiásticos.” E acrescenta: “Además han
promulgado leyes para confirmar su tiranía; pero tales, que en parte son impías y contra Dios, y en parte injustas para con
los hombres. Así, las que siguen: que los matrimonios entre jóvenes que aún están bajo la tutela paterna sean válidos e
irrevocables sin consentimiento de los padres; que los parientes no se puedan casar hasta el séptimo grado — porque su
cuarto grado, según la verdadera inteligencia del decreto, es séptimo — y que los que se han realizado dentro de esos
grados no valgan y sean deshechos”. (CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana. v. II Rijswijk: Stichting
Uitgave Reformatorisch Boeken,1967. p. 1167).
127
Sobre Lutero escreveu Lucien Febvre, o reconhecido historiador e fundador da revista Annales, veículo de comunicação
daquela que mais tarde se consagrará como a principal tendência ou escola da historiografia do século XX: “Todo Lutero está
en textos como estos, con toda a su fogosidad, sus impulsos nunca calculados, su intemperancia verbal, sus temibles excesos
51

impedimentos e preparar ciladas para que não se casem ou, caso se tenham casado, dissolver
os matrimônios? Quem deu tal poder aos seres humanos? Admitamos que tenham sido santos
e guiados por zelo piedoso. Mas por que a santidade alheia molesta a minha liberdade? Por
que me aprisiona o zelo alheio? Seja santo e zeloso quem quiser e quanto desejar, contanto
que não prejudique o outro e não me roube a liberdade.”128 Este primeiro Lutero, o Lutero do
rompimento, apresenta-se como um paladino da liberdade. Em relação ao casamento adotará
posturas que podem ser consideradas revolucionárias para o seu tempo. Dirá ainda em sua
obra O Cativeiro Babilônico da Igreja: “na verdade, eu detesto o divórcio tanto que preferiria
a bigamia ao divórcio”.129
É conhecido o caso em que aconselhou o landgrave Filipe de Hesse a contrair um segundo
casamento secreto com Margarete, dama de companhia de sua irmã, tornando-se assim
bígamo, para não abandonar Cristina, sua primeira mulher. Lutero e outros teólogos de
Wittenberg, embora não admitissem a bigamia como regra, entendiam que determinadas
situações e casos dispensavam sua vedação absoluta, e autorizaram o casamento de Filipe de
Hesse, em um “conselho de confessionário”. Lutero teve que implorar a Felipe para não
publicar o conselho. Em uma das suas cartas dizia: “Pois, V. E. P. [Vossa Excelência
Principesca] não poderá impor que o mundo aceite como público esse vosso matrimônio
secreto, ainda que invocasse a autoridade de cem Luteros, Filipes [Melanchthon] e outros.
Eles sempre dirão que Luteros e Filipes não têm poder para mudar a lei pública e honrada,
130
embora tivessem que aconselhar de outro modo em casos de conflito de consciência.”
Mesmo que não defendesse o casamento poligâmico, admitia sua possibilidade em casos
peculiares. Todavia, o conselho a Filipe de Hesse rendeu-lhe não poucos problemas. A
respeito do casamento tinha Lutero outras opiniões inusitadas para sua época. Admitiu até
mesmo a possibilidade de relacionamento sexual da mulher de um marido impotente com o
irmão deste ou com outro homem. 131 Mais do que posturas extravagantes, o que se pode

de lenguaje. (...) Un hombre de buen sentido, prudente, y que pesara sus acciones antes de cumplirlas, que no pusiera el pie
sino sobre un terreno firme y sondeado de antemano, no hubiera hecho he dicho sino lo que precisamente hacía e decía
Erasmo. Lutero no era más lógico, más sabio que hombre piadoso, un hombre piadoso que trataba de realizar grandes e
hermosas obras, de llevar una vida devota, virtuosa y santa. Era un instinto que seguía su impulso sin se preocuparse de las
dificultades e con las oposiciones o de las contradicciones que no percibía con inteligencia, sino que conciliaba en la unidad
profunda de un sentimiento vivo y dominador. Lutero no es ni un doctor, ni un teólogo: es un profeta.” (FEBVRE, Lucien.
Martín Lutero: un destino. México: Fondo de Cultura Económica, 1956. p. 113 e 114)
128
LUTERO, Martin. Do cativeiro babilônico da igreja. São Paulo: Martin Claret, 2011. p. 403 e 404.
129
Ibid. p. 409.
130
LUTERO, Martin. Lutero ao Landgrave Filipe – 24 de julho de 1540. In: LUTERO, Martin. Obras selecionadas. v. 5 –
fundamentos, oração, sexualidade, educação, economia. São Leopoldo: Sinodal, 1995. p. 293.
131
“Ponho o seguinte caso: uma mulher casada com um homem impotente não pode ou talvez não quer provar judicialmente
a impotência do marido com tantos testemunhos e ostentações que o direito exige. Mas quer ter prole ou não pode abster -se.
Eu aconselho que peça o divórcio ao marido para casar-se com outro (...) Porém, se o marido não quer, aconselharei ainda
52

enxergar nos postulados de Lutero é uma luta pela liberdade da consciência face à pretensão
de regulação excessiva do matrimônio pela Igreja. Ele condena inclusive a submissão do
Direito Civil ao direito canônico, ao criticar os impedimentos matrimoniais em virtude de
certos graus de parentesco muito alargados pelas normas eclesiásticas: “Eu me preocupo mais
com as consciências do que com as leis. A esta altura um jurista esperto talvez poderá objetar
que, neste ponto, a lei imperial se submeteu ao direito eclesiástico. Por isso não faz sentido
querer orientar-se pelo direito civil, visto que agora esse se atém submissamente ao direito
canônico.”132 O Concílio de Trento revela-se como uma resposta a este posicionamento e
busca trazer com maior vigor as rédeas da regulação matrimonial para as mãos da Igreja.
O cânone II estabelecido pelo Concílio de Trento consagrou a monogamia como princípio
estruturante do casamento.133 Ao proibir a poligamia simultânea, implicitamente, consagrou
licença para novo matrimônio após a morte de um dos cônjuges. O cânone faz referência à
possível alegação de inexistência de vedação da poligamia na lei divina, exatamente, porque
havia aqueles que evocavam as figuras dos patriarcas bíblicos sustentando a possibilidade de
se ter mais de uma esposa.
Os cânones III e IV fixam o direito da Igreja estabelecer os impedimentos impedientes e
dirimentes do casamento para além das vedações em razão de parentesco consignadas no
Antigo Testamento.134 Nestes dois cânones é que se tem o nascedouro da classificação dos
impedimentos consagrados nos códigos civis oitocentistas, que assimilaram em grande parte o
esquema canônico.

mais: que com o consentimento do marido (que já não é o marido, mas, simplesmente, vive separado dela sob um mesmo
teto) se una a outro ou ao irmão do marido.” (LUTERO, Martin. Do cativeiro babilônico da igreja. In: LUTERO, Martin.
Obras selecionadas. v. 2 – O programa da reforma (escritos de 1520). 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2000. p. 408) Anotam
os tradutores das obras de Lutero para o português que o seu conselho deriva do direito consuetudinário alemão da época, o
que confirma sua oposição ao regramento uniforme do matrimônio pela Igreja.
132
LUTERO, Martin. Assuntos matrimoniais. In: LUTERO, Martin. Obras selecionadas. v. 5 – fundamentos, oração,
sexualidade, educação, economia. São Leopoldo: Sinodal, 1995. p. 279.
133
CANON II.— Si quis dixerit, licere Christianis plures simul habere uxores, et hoc nulla lege divina esse prohibitum:
anathema sit. (Se alguém disser que é lícito aos cristãos ter diversas mulheres ao mesmo tempo, e isso não é proibido por
nenhuma lei divina: que seja anátema. – tradução livre do inglês) (http://www.ccel.org/ccel/schaff/creeds2.v.i.i.xi.html
consulta em 09.01.2010)
134
CANON III.— Si quis dixerit, eos tantum consanguinitatis et affinitatis gradus, qui Levitico exprimuntur, posse impedire
matrimonium contrahendum et dirimere contractum, nec posse Ecclesiam in nonnullis illorum dispensare aut constituere, ut
plures impediant et dirimant: anathema sit. (Se alguém disser que somente os graus de parentesco por consanguinidade e
afinidade estabelecidos no Levítico podem impedir a realização do matrimônio e dissolvê-lo quando já contraído, e que a
Igreja não pode dispensar alguns desses, ou estabelecer outros impedientes ou dirimentes: que seja declarado anátema. CANON
IV.— Si quis dixerit, Ecclesiam non potuisse constituere impedimenta matrimonium dirimentia, vel in iis constituendis
errasse: anathema sit. (Se alguém disser que a Igreja não pode estabelecer impedimentos dirimentes do casamento, ou que
errou ao estabelecê-los: que seja anátema. (Tradução livre do inglês) (http://www.ccel.org/ccel/schaff/ creeds2.v.i.i.xi.html
consulta em 09.01.2010)
53

Os cânones V e VI tratam da indissolubilidade do vínculo matrimonial. 135 Um novo


casamento antes da morte do cônjuge é considerado adultério. A indissolubilidade do vínculo
foi enfrentada pelo Concílio de Trento como uma consequência necessária e inafastável da
monogamia. Note-se que, para o direito canônico, a monogamia e a indissolubilidade do
vínculo conjugal são matérias afins, em significativa medida, concêntricas ou coincidentes. O
princípio da monogamia tem como decorrência a vedação do divórcio. Aquele ou aquela que
se divorcia e casa novamente comete adultério, porque não se pode ter mais que uma mulher
ou marido. Estas noções estão interligadas.
O Cânone XII estabelece a competência exclusiva dos juízes eclesiásticos para decisão
de todas as questões atinentes ao matrimônio. 136 Este dogma tem a intenção de afastar a
secularização do casamento proclamada pelos reformadores protestantes. Como a Igreja
chamou a si o poder de regular à exaustão as relações matrimoniais, o direito canônico acabou
por consagrar-se como paradigma quanto a esta matéria, mesmo depois da eclosão das
revoluções burguesas que pretenderam a separação entre Igreja e Estado.
Além dos cânones, têm especial interesse para os fins do estudo da monogamia alguns
capítulos do Decreto Tametsi. O capítulo VIII cuida da condenação ao concubinato.137 Há,
neste caso, uma gradação. Para os homens solteiros, constituía pecado grave e, para os
casados, gravíssimo, especialmente quando as concubinas fossem trazidas e mantidas na casa
da família. As punições divergiam em relação a homens e às concubinas impenitentes. Os
homens seriam advertidos a abandonar o estado de concubinato. Não atendendo, poderiam ser

135
CANON V.—Si quis dixerit, propter hæresim, aut molestam cohabitationem, aut affectatam absentiam a conjuge, dissolvi
posse matrimonii vinculum : anathema sit. (Se alguém disser que por causa de heresia, penosa coabitação, ou ausência
simulada de uma das partes, o vínculo do matrimônio pode ser dissolvido: que seja anátema). Si quis dixerit, Ecclesiam
errare, cum docuit et docet juxta evangelicam et apostolicam doctrinam, propter adulterium alterius conjugum matrimonii
vinculum non posse dissolvi, et utrumque, vel etiam innocentem, qui causam adulterio non dedit, non posse, altero conjuge
vivente, aliud matrimonium contrahere, mæcharique eum, qui, dimissa adultera, aliam duxerit, et eam, quæ, dimisso
adultero, alii nupserit: anathema sit. (Se alguém disser que a Igreja cometeu erro, tendo instruído e educado de acordo com
os ensinamentos evangélicos e apostólicos, que por causa de adultério de um dos casados o vínculo do matrimônio não pode
ser dissolvido; e que ambos, nem mesmo o inocente, que não deu causa ao adultério, não pode contrair outro matrimônio,
enquanto vivo o outro, mas que comete adultério tanto o homem que, tendo rejeitado a adúltera, casar com outra, bem como
aquela que, despediu o adúltero, tomar outro marido: que seja anátema). (Tradução livre do inglês)
(http://www.ccel.org/ccel/schaff/creeds2.v.i.i.xi.html consulta em 09.01.2010)
136
CANON XII.— Si quis dixerit, causas matrimoniales non spectare ad judices ecclesiasticos: anathema sit. (Se alguém
disser que as causas matrimoniais não são de competência dos juízes eclesiásticos: que seja anátema.) (Tradução livre do
inglês) (http://www.ccel.org/ccel/schaff/creeds2.v.i.i.xi.html consulta em 09.01.2010).
137
O texto inicia-se com as seguintes palavras: “Grave peccatum est homines solutos concubinas habere, gravissimum vero
et in huius magni sacramenti singularem contemptum admissum, uxoratos quoque in hoc damnationis statu vivere, ac audere
eas quandoque domi, etiam cum uxoribus, alere et retinere. (Grave pecado para os homens não casados ter concubinas;
gravíssimo pecado que conduz diretamente ao desprezo deste grande sacramento que é o casamento, para homens casados,
viver neste estado de condenação e ousar mesmo algumas vezes manter e alimentar, na sua própria casa, com suas esposas
(sic), suas concubinas). (Texto e tradução extraídos do anexo inserido no livro: LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de
direito de família: origem e evolução do casamento. Curitiba: Juruá,1991. p. 384).
54

excomungados. Para as concubinas eram reservados castigos rigorosos, inclusive expulsão da


cidade, se assim parecesse por bem à autoridade eclesiástica. 138
O Concílio de Trento, certamente, uniformizou a matéria atinente ao casamento e traçou
as diretrizes para a sua regulação. Entre os princípios enunciados, o da monogamia foi
consagrado com toda clareza e força, influenciando a concepção jurídica da conjugalidade até
os dias atuais, e só experimentando arrefecimento a partir da segunda metade do século XX.

1.7 A recepção do decreto tridentino em Portugal

A aplicação do decreto Tametsi variou de país para país. Gilissen reconhece que “em
Itália, em Espanha e em Portugal, os decretos do Concílio de Trento foram facilmente
recebidos e aplicados”.139 Amélia Maria da Silva registra que Portugal foi um dos primeiros
países a recepcionar e a fazer integrar em seu ordenamento jurídico os decretos tridentinos. 140
Embora estes só tenham sido confirmados em 26 de janeiro de 1564, por meio da bula papal
Benedictus Deus, Portugal adiantou-se. Onze anos antes, com a conclusão da segunda sessão
do Concílio de Trento, capítulos e apontamentos que veiculavam as orientações conciliares de
natureza pastoral foram enviados aos prelados portugueses. D. João III e o Cardeal D.
Henrique, que era seu irmão, fizeram circular, em Portugal, as diretrizes tridentinas mais de
dez anos antes do Papa confirmar os decretos do Concílio. 141
Esse ardente zelo da realeza e do alto clero português em divulgar documentos do
Concílio tinha causa o interesse de D. João III que ao seu irmão, o Cardeal D. Henrique, fosse
conferido o mais alto título de representante da Igreja, no reino de Portugal. 142 O objetivo do
rei de Portugal e de seu irmão, arcebispo de Évora, ainda que gerando desentendimentos com
o núncio de Roma, impulsionou a implementação dos decretos tridendinos antes que estes
fossem homologados pelo Papa.
As regras matrimoniais, na formatação dada pelo Concílio de Trento, impuseram-se em
Portugal não somente por força da legislação eclesiástica, mas, também, como resultado de
um bem-sucedido investimento pastoral doutrinário e catequético, por meio de obras didáticas

138
Decreto Tametsi, Apud: LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família... p. 385.
139
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 3. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 573.
140
SILVA, Amélia Maria Polónia da. Recepção do Concílio de Trento em Portugal: as normas enviadas por D. Henrique aos
bispos do Reino, em 1553. Revista da Faculdade de Letras – História. II Série, Vol. II, Porto, 1990. p. 133 – 143. p. 133.
141
“As iniciativas editoriais devem-se, portanto, em grande medida, à actuaçao do Cardeal Infante, e decorrem do seu
estatuto, respectivamente de regente do reino, legado a latere, e inquisidor-mor. Elas revelam, de resto, os investimentos
feitos pelas estruturas do poder constituído na divulgação e promoção das estipulações tridentinas.” (SILVA, Amélia Maria
Polónia da. Recepção do Concílio de Trento em Portugal... p. 134).
142
Op. Cit., p.135.
55

e de cunho moral. Em matéria de legislação eclesiástica é de se mencionar Manual de


Confessores e Penitentes, o Compêndio e Sumário de Confessores, bem como a Suma de
Casos de Consciência, de Manuel Rodrigues, amplamente editada e difundida depois de
1595.143 Além da legislação eclesiástica, certo é que leis extravagantes e as Ordenações
Filipinas144 assimilaram e divulgaram as principais decisões de Trento no que se refere à
matéria de direito matrimonial.
A legislação que implantou, em Portugal, o modelo tridentino de casamento recebeu forte
reforço da atividade pastoral. Entre os catecismos elaborados após o Concílio de Trento,
alcança ampla circulação, em Portugal, o Catecismo ou Doutrina Cristã e Práticas Espirituais
de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga. A primeira edição data de 1564,
precisamente o mesmo ano da sanção papal aos decretos e determinações do Concílio de
Trento. “O interesse desta obra é tanto maior quanto, como é sabido, a sua redação — em
português — e edição é anterior à do Catecismo Romano (1566) ordenado por Pio V, cuja
145
tradução e edição portuguesa datam apenas de 1590,” registra Maria de Lurdes Correia
Fernandes. Estes textos didáticos, articulados na forma de conselhos práticos e exemplos, se
prestarão à difusão da doutrina tridentina sobre o casamento.
Os decretos tridentinos tiveram especial eficácia em Portugal porque ganharam expressão
catequética de amplo alcance. Os párocos inclusive foram alvos de vasto material para
orientação da confissão e controle da vida dos casados. 146 A força normativa que a Igreja
alcançou em matéria matrimonial não decorreu meramente da sistematização e uniformização

143
FERNANDES, Maria de Lurdes Correia. Espelhos, cartas e guias – casamento e espiritualidade na Península Ibérica
(1450-1700). Porto: Instituto de Cultura Portuguesa, 1995. p. 209.
144
Registra Maria de Lurdes Fernandes observação de que “das Ordenações Filipinas (ed. fac-símile da de 1870, Lisboa,
1985), não só o Livro II, ‘Additamentos’, Alvará de 12 de Setembro de 1564, 503 ss.: ‘Publica e recommenda a observancia
do Sagrado Concilio Tridentino em todos os Dominios da Monarchia Portugueza’ e ‘Provisão de 19 de Março de 1569’, de
D. Sebastião, mas também diversos títulos que incorporam essas determinações, muito em especial no Livro IV, Título
XLVI, 832-3, em que vem transcrita a Carta Régia de 10 de Junho de 1615 contra os casamentos clandestinos.
Posteriormente, em 13 de Novembro de 1651, D. João IV fez promulgar uma Lei no mesmo sentido: ‘...considerando eu o
excesso, com que em estes meus Reynos se tem introduzido os Matrimonios clandestinos, e os grandes daños, que delles se
seguem a meus vassalos, na républica, perturbaçoens, e riscos, sendo este caminho occasionado a se extinguir a nobreza, que
eu tanto zélo, e desejo ver conservada em meus vassalos; havendo consideração a que não são bastantes as penas
Ecclesiasticas para se evitarem estes daños, e ao que se me pedio nas Cortes, que se celebrárão no Reyno, o anno de 1641 ...’
(B. N. Lisboa, Res. 1388 (14) A).” (FERNANDES, Maria de Lurdes Correia. Espelhos, cartas e guias... p. 212 e 213)
145
Op. Cit., p. 216.
146
“Complementares e intimamente relacionadas com este tipo de textos normativos e de incidência canónica —
permanecemos ao nível da legislação matrimonial — estão as sumas de casos de consciência e os manuais de confissão, tanto
quando atentam nos pecados ‘individuais’, como quando incidem nos ‘pecados públicos’. Em todos estes textos, a
incorporação das decisões tridentinas é um facto facilmente verificável. Devemos, contudo, lembrar a óbvia continuidade ou
a permanência do tratamento que, nas sumas de casos de consciência e nos manuais de confissão, caracteriza a abordagem
dos problemas conjugais, ou seja, daqueles aspectos que estão mais directamente orientados para a confissão dos casados,
quer do ponto de vista do exame de consciência destes, quer das perguntas que o confessor lhes devia fazer, perguntas essas
que, normalmente, deveriam obedecer a alguns critérios previamente traçados a fim de que, nos temas mais delicados,
nomeadamente os de ordem sexual, o confessor e o penitente soubessem respeitar os limites da prudência que em tais casos
se impunha...” (FERNANDES, Maria de Lurdes Correia. Espelhos, cartas e guias... p. 206).
56

formulada como resposta à Reforma Protestante, porém, resultou sobretudo de uma cuidadosa
instrumentalização de meios educacionais para consolidação do modelo matrimonial adotado
pelo Concílio e de meios de controle. Portanto, sucesso do modelo do casamento tridentino
deve ser imputado à eficácia da catequese e ao aparato da confissão como mecanismo de
controle.
As orientações para o controle social e da moral sexual por parte da Igreja são referidas no
livreto Lembranças aos Confessores. Entre as recomendações constam: (i) o reforço que se
devia dar à obrigação do cumprimento do débito conjugal, apenas dispensada em casos
especificamente definidos; (ii) a verificação de ocorrência de práticas de contracepção,
vedadas pela Igreja; e, também, (iii) a inquirição se as práticas sexuais respeitavam o "vaso
natural". O confessor devia ainda interrogar o penitente sobre casos de adultério,
especialmente entre parentes até do quarto grau.147
Há um estudo aprofundado sobre as repercussões dos decretos do Concílio de Trento no
Direito português realizado por Marcelo Caetano. A mencionada pesquisa, fundada em farta
documentação da época, foi publicada em Separata da Revista da Faculdade de Direito de
Lisboa no ano de 1965. Ainda que o autor revele certa tendência à defesa de uma perspectiva
eclesiástica o texto é extremamente esclarecedor. Os intrincados e indissociáveis vínculos
entre Estado e Igreja são referidos de forma muito ilustrativa. O Direito português e,
consequentemente, o Direito da Colônia serão indelevelmente marcados pelo direito
canônico.148
Importa registrar que ao tempo da publicação da bula papal Benedictus Deus, que
homologou e fez publicar os decretos tridentinos, isto é, no ano de 1564, D. Sebastião ainda
era infante e o Cardeal Dom Henrique cumulava as funções de Regente do Reino, Arcebispo
de Lisboa e Legado Pontifício. Ele era tio do rei infante. Logo, o Estado português e a Santa
Sé estavam absolutamente irmanados.149 Assim, a “preocupação em acatar e fazer executar
pronta e cabalmente os decretos conciliares em Portugal explica-se pela reunião dos dois
poderes, espiritual (como legado Pontifício) e temporal, na pessoa do Cardeal D.

147
FERNANDES, Maria de Lurdes Correia. Espelhos, cartas e guias... p. 207.
148
Sobre a influência do dos preceitos tridentes quanto à família e, especialmente, no que se refere ao papel da mulher,
registrou Mary Del Priore: “No jogo entre as realidades ultramarinas e os desejos da Igreja, a mulher, no papel de santa-
mãezinha, ganhava gradativamente a função de agente dos projetos do Estado e da Igreja dentro da família e do fogo
doméstico. Daí sua força e a ambigüidade de sua condição. Imersa numa situação específica, decorrente do processo de
colonização, a mulher como mantenedora, guardiã e gestora da maioria dos lares acaba por responsabilizar-se pela
interiorização dos valores tridentinos.” (PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e
mentalidades no Brasil Colônia. 2 ed. São Paulo: UNESP, 2009. p. 109).
149
CAETANO, Marcelo. Recepção e Execução dos Decretos do Concílio de Trento em Portugal. Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, vol. 19, p. 5-87, Lisboa, 1965, p.8.
57

Henrique”. 150 Dom Henrique baixou um Alvará determinando genericamente às autoridades


seculares a prestarem todo auxílio necessário às autoridades eclesiásticas na execução dos
decretos conciliares. Este Alvará foi regulamentado algumas vezes. Dom Sebastião, quando
atingiu a idade de quatorze anos, já no efetivo reinado, deu passos muito mais significativos
no sentido de conceder poderes nunca antes pensados à Igreja. Pela Provisão de 19 de março
de 1568, reconhecia jurisdição “aos prelados e juízes eclesiásticos para, nas causas cíveis ou
criminais pertencentes por qualquer via ao foro eclesiástico, proceder prendendo e
penhorando por seus próprios ministros os culpados, posto que fossem leigos e pessoas
seculares, ou executar nelas penas de degredo, pecuniárias ou outras contidas nos referidos
decretos [tridentinos]...”.151
Pela referida Provisão, o rei Dom Sebastião, praticamente, em nome do Estado, abdicava
de poderes típicos do braço secular a favor do poder eclesiástico. Para Marcelo Caetano, este
fato “pode explicar-se pela decisão pessoal do jovem soberano, numa fase de exaltada
religiosidade e sob a influência de alguns sacerdotes de ardente zelo apostólico”. 152 A decisão
inédita facultava às autoridades eclesiásticas o poder de executarem suas sentenças sobre
qualquer pessoa, sem a interferência do Estado, e antes que este pudesse averiguar se houve
processo regular e sentença assentada devidamente nos decretos tridentinos. Pela Provisão, a
Igreja como que se incorporava ao Estado para o trato de toda matéria aprovada no Concílio
de Trento.
Evidentemente, tal documento provocou imensa controvérsia no campo jurídico
português. Mas não foram somente os juristas que se escandalizaram com tamanha devoção e
submissão do rei à Santa Sé. Para apaziguar a desordem que o Provimento de Dom Sebastião
causou, o próprio Papa baixou Bula153 em louvor a Dom Sebastião, mas com o fito de
especificar as funções da Igreja e de restituir as prerrogativas régias.

150
CAETANO, Marcelo. Recepção e Execução dos Decretos do Concílio de Trento em Portugal... p.11. Recebida a bula
papal, em nome de D. Sebastião, o Cardeal Dom Henrique escreve ao Papa: “Pelo que pertence à nossa observância em a
dignidade do Concílio e a autoridade dessa Santa Sé, farei que os nossos súbditos e também os outros entendam nada nos
estar mais a peito do que restituir à Igreja a antiga dignidade, e fazer que todos os decretos do sagrado Concílio, tanto sob re a
fé como sobre os costumes, sejam observados com inconcussa e inviolável integridade, o que imediatamente comuniquei a
todos os prelados do nosso reino e domínios.” (CAETANO, Marcelo. Recepção e Execução dos Decretos do Concílio de
Trento em Portugal... p.11.)
151
Ibid. p.17.
152
Ibid. p.16. O autor transcreve parte do Provimento no qual o rei Dom Sebastião fez consignar:”Hei por bem e mando todas
as minhas justiças que querendo os ditos Prelados e Juízes eclesiásticos por seus próprios ministros usar contra lei gos da
jurisdição que lhes dá nos ditos decretos ou em quaisquer outros o dito Sagrado Concílio não ponham a isso dúvida nem
embargo algum, antes lhes dêem toda ajuda e favor necessários.” (CAETANO, Marcelo. Recepção e Execução dos
Decretos do Concílio de Trento em Portugal... p.18)
153
Alguns trechos da Bula transcritos por Marcelo Caetano merecem citação. Escreveu o Papa: “do bom Rei principalmente
deve ser próprio, dar a Deus o que é de Deus e tomar para si só o que é de César, ou seja a jurisdição temporal. (...) Ditosos
sem dúvida sacerdotes e príncipes se cada um no seu ofício servirem constantes a Deus: e nem porque V. Majestade tão
58

Essa circunstância pitoresca presta-se a elucidar a extraordinária força que tiveram os


decretos tridentinos para o Direito português. O próprio Papa sugeriu maior moderação àquele
Estado. Se prisões e degredos podiam ainda ser decretados pela Igreja, como punição por
pecados e heresias, a execução das penas ou o confisco de bens deveriam ser exercidos pelo
braço secular, o Estado. A forte aliança, todavia, é inequívoca. Necessário ainda referir que as
Ordenações, especialmente, as Filipinas, não se distanciaram do firme desiderato de conceder
especiais poderes à Igreja, mormente, em matéria matrimonial. 154
Cumpre referir que as questões levantadas sobre a influência do direito canônico na
consagração do modelo de casamento, monogâmico, público, registral, indissolúvel e
sacramental, no Ocidente, são da maior importância, pois, oportunamente, demonstrar-se-á
que o processo de secularização experimentado, como conditio sine qua non para o Estado
democrático de direito, repele este projeto de cristandade e a imposição generalizada aos
cidadãos de dogmas religiosos sejam estes hegemônicos ou de minorias.
Nos países católicos, como Portugal, França, Espanha e Itália, em relação à matéria de
regulação matrimonial, as diretrizes tridentinas terão ampla irradiação, firmando-se não
somente por força de lei, mas também por meio de um amplo esforço catequético. A fixação
deste modelo de casamento na cultura e no imaginário destes povos latinos será transposta
com certa fluência para a legislação civil mesmo depois das revoluções burguesas.

1.8 Reflexos do casamento tridentino e o princípio da monogamia no direito civil


codificado

Até a Revolução de 1789, não somente na França, mas em todos os Estados europeus de
origem latina, as doutrinas tridentinas sobre o casamento tinham sido referendadas pelo poder
público, de tal sorte que, em relação à conjugalidade, a lei da Igreja era a lei do Estado. A
Revolução Francesa significou, de fato, um rompimento entre Estado e Igreja. A própria
Constituição de 1791 proclamou que a lei considerava o casamento um contrato civil. 155 Ao

fielmente guarda o divino preceito deve recear que diminua em alguma cousa a sua jurisdição, nem o seu real poder; mas
antes deve esperar que o omnipotente Deus, que sê honrar nos seus sacerdotes por V. Majestade, há-de estender cada vez
mais os limites do seu império e sujeitar novas gentes à sua Coroa...” (CAETANO, Marcelo. Recepção e Execução dos
Decretos do Concílio de Trento em Portugal... p.26 e 27).
154
A respeito desta questão pronunciou-se Marcelo Caetano: “As Ordenações Filipinas não foram elaboradas para destruir a
obra dos monarcas no tocante à execução dos Decretos do Concílio de Trento. Vê-se que os compiladores consagraram nelas
tudo o que nesse ponto o Direito vigente continha, embora procurando manter-se na linha tradicional de equilíbrio entre o
poder espiritual e o poder temporal, com afirmação das clássicas prerrogativas da Coroa, sem prejuízo das justas liberdades
da Igreja”. (CAETANO, Marcelo. Recepção e Execução dos Decretos do Concílio de Trento em Portugal... p. 50).
.155 O art. 7º da Constituição de 1891 preceituava: “Article 7 La loi ne considère le mariage que comme contrat civil. Le
pouvoir législatif établira pour tous les habitants, sans distinction, le mode par lequel les naissances, mariages et décès
seront constatés ; et il désignera les officiers publics qui en recevront et conserveront les actes. ” (Tradução livre: “Artigo 7
A lei considera o casamento como um contrato civil. O poder legislativo deve estabelecer para todos os habitantes, sem
59

admitir-se, por meio de leis de 1792, o divórcio por mútuo consentimento, e, também, a
faculdade de cada um dos cônjuges solicitá-lo por incompatibilidade de gênios, 156 é aplicado
significativo golpe ao modelo matrimonial canônico. Apesar de declarado civil, mesmo
depois da Revolução são ainda os padres que mantêm os anais do registro civil. Somente a
partir de 1792 é que os casamentos passam a ser contraídos perante o funcionário municipal
que também conserva o registro civil. 157
A passagem do casamento das mãos da Igreja às mãos do Estado implicou, nos primeiros
momentos, verdadeira sacralização da laicidade. Em lugar dos textos sagrados, a
Constituição; em lugar do sacerdote, o funcionário público; a cerimônia converte-se em
exaltação da liberdade, da nação, quase um culto ao Estado.158 Estas tentativas mostraram-se
ridículas e não se impuseram. Por meio da Concordata de 1801 o casamento religioso voltou a
ser admitido paralelamente ao civil.
Muito embora se afirme de forma categórica que o período oitocentista tenha
experimentado vigorosa secularização, com a proeminência de filósofos que se distanciaram
definitivamente dos trilhos da teologia, também é certo, especialmente na França, que após o
primeiro momento de antagonismo entre Revolução e Igreja, Napoleão Bonaparte procurou
estrategicamente conciliar interesses com a Igreja. Impôs a supremacia do Estado em relação
a uma diversidade de matérias, mas abriu significativas concessões à Igreja. Jean Etiene
Portalis, que se notabilizou como um dos artífices do Código Civil napoleônico, era católico
sincero, Conselheiro de Estado e Diretor de Cultos.159
O Código Civil de 1804 permaneceu fiel aos princípios assentados na Constituição de
1791. O casamento continuou sendo regulamentado pela lei civil. Napoleão não transigiu em
relação à laicização. O máximo que se admitiu foi a possibilidade de separação de corpos,

distinção, o modo pelo qual os nascimentos, casamentos e óbitos deverão ser reconhecidos, e deve nomear funcionários
públicos para receber e conservar os atos.”).
156
LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casamento. Curitiba: Juruá, 1991. p.
302.
157
BOLOGNE, Jean-Claude. História do casamento no ocidente. Lisboa: Temas e Debates, 1999. p. 290.
158
Bologne transcreve uma das fórmulas com frases grandiloquentes, que acabou mais confinada aos panfletos
revolucionários, e sem efetiva utilização: “O funcionário público, verdadeiro oficiante, que brande a Constituição como as
Tábuas da Lei, dirá aos noivos em voz clara e audível: ‘Saúdo-vos, cidadãos livres, tende sempre sob vosso olhar a lei que
vos une em legítimo casamento, por laços que só a amizade e os vossos interesses devem tornar indissolúveis. (Ao noivo)
Homem livre, (à noiva) mulher livre, (às testemunhas), cidadãos livres, não vos esqueçais nunca de que a conservação das
leis constitucionais, que custou tantos sacrifícios a uma nação generosa, foi deixada sobretudo à vigilância dos pais de
família, às esposas e às mães, ao afecto dos jovens cidadãos, (à assembleia) e à coragem de todos os franceses. Os noivos
responderão: Viva a liberdade, viva a nação! Que os bons cidadãos abençoem a nossa união! O funcionário público
responderá: Que esses dois esposos sejam felizes! Que possam ficar unidos para sempre! As quatro testemunhas responderão:
Que sejam felizes! Que fiquem unidos para sempre’.” (BOLOGNE, Jean-Claude. História do casamento no ocidente.
Lisboa: Temas e Debates, 1999. p. 292).
159
BOLOGNE, Jean-Claude. História do casamento no ocidente. Lisboa: Temas e Debates, 1999. p. 306.
60

paralelamente, ao divórcio. O Código, por outro lado, assimilou grande parte do regramento e
das formalidades do casamento canônico, sobretudo, no que se refere aos impedimentos,160 as
nulidades, pátrio poder, poder marital. Enquanto durou o Império de Napoleão, o Código
Civil se manteve. Porém, “sob a Restauração, a intenção de restabelecer um melhor acordo
entre leis civis e leis religiosas provocou a promulgação da lei de 8 de maio de 1816, que
pronunciou a abolição do divórcio”. 161 Este acontecimento, na França, foi um dos sinais mais
visíveis de que em matéria matrimonial o Direito Civil ainda estava muito arraigado ao
Antigo Regime. Não lograva ser expressão dos novos tempos.
O Código Civil de 1804 não trouxe mudança revolucionária em matéria de casamento. O
esforço para dizer o contrário esbarra em uma série de evidências. Eduardo de Oliveira Leite,
por exemplo, afirma: “O advento do Código Civil francês assinala uma reviravolta radical na
história da legislação familiar, mesmo que se reconheça ter o legislador francês se inspirado
nas regras do direito canônico. Neste ponto, todos os juristas são unânimes. O modelo era
canônico mas o espírito era diametralmente diverso”.162 Se o modelo era o canônico, como
poderia ser diverso o espírito? A regulação do matrimônio apenas passou a emanar de centros
de poderes diferentes. Se antes a Igreja era detentora do poder regulador da matrimonialidade
este foi cooptado pelo Estado. O modelo, entretanto, permaneceu o mesmo. Este fato é tão
verdadeiro que a liberdade para o acesso ao divórcio, na França, só vai ser retomada com a
Lei do Divórcio, em 1884.
A alteração mais significativa operada refere-se à função do casamento. Os ideólogos da
revolução burguesa insistiam em uma concepção contratualista do matrimônio. Se era um
contrato ficaria à mercê do exercício da autonomia da vontade. Não se mostrava possível um
retorno ao casamento-sacramento. Mas era necessário por freio a uma visão meramente
contratualista. Assim, o casamento passa a ser exaltado como instituição de interesse

160
A importância do direito canônico para o Direito Civil codificado é sempre referida por diversos autores. Os
impedimentos matrimoniais e sua classificação estão estribados nas construções daquele direito. Ruggiero refere que os
canonistas dividiam os impedimentos em duas categorias, a dos impedimentos dirimentes (impedimenta dirimentia) e
impedimentos impedientes ou proibitivos (impedimenta impedientia). Enquanto os primeiros implicavam a anulação do
casamento, os impedimentos impedientes, se violados, poderiam provocar sanções de natureza penal ou civil, permanecendo
o casamento válido e inatacável. Dentre os impedimentos dirimentes, havia os absolutamente dirimentes (impedimentia
dirimentia publica) e os relativamente dirimentes (impedimentia dirimentia publica). Os primeiros produziam nulidade
perpétua e insanável e os segundos compreendiam nulidade sanável pela renúncia do exercício do direito de requerer a
anulação ou pela inércia durante certo lapso temporal. O direito moderno acolheu essa classificação que foi, sem resistência,
incluída nos diversos códigos civis oitocentistas. Evidentemente, nem todos os impedimentos do direito canônico foram
transpostos para o direito civil, como aqueles relativos aos sacramentos do batismo e crisma, nem tão pouco os referentes aos
votos religiosos. Não há dúvida, porém, que a inspiração do modelo civil é o canônico. (RUGGIERO, Roberto de.
Instituições de direito civil. Vol II. São Paulo: Saraiva, 1957. p. 95 e 96)
161
LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casamento. Curitiba: Juruá, 1991. p.
310.
162
Ibid. p. 310.
61

fundamental da sociedade e não como simples acordo de vontades manifesto pelo casal,
deixado à mercê das paixões individuais. Esta é a posição que será assumida por Portalis. 163 O
casamento como instituição toma proeminência. À medida que o casamento é funcionalizado
à realização de um interesse social ou de Estado, isto é, um interesse posto para além do
interesse dos cônjuges, deve ser controlado e regulamentado em seus detalhes. Do controle da
Igreja o casamento passa ao controle do Estado. A pretensão claramente perceptível do
projeto do Concílio de Trento de uniformização do instituto do matrimônio é assumida, então,
pelo Estado. Trata-se de uma transposição e não, propriamente, de uma transformação.
Se na França o liame entre Igreja e Estado em matéria matrimonial é perceptível, no
Brasil, pelas peculiaridades da tardia proclamação da República, este vínculo foi muito mais
notável. Basta lembrar que até 1891, quando foi promulgada a primeira Constituição
Republicana, o controle e registro da vida civil estavam nas mãos da Igreja Católica. Todos os
registros de nascimento (batismo), casamento e morte eram realizados pela Igreja. O Estado
brasileiro imperial jamais manteve registro civil. Estas situações reguladas e controladas pela
Igreja geravam efeitos de natureza jurídica relativos à propriedade, meação e herança. A
Igreja acabava por determinar a validade e a eficácia de muitos atos civis. Em última
instância, no Brasil Império, o poder eclesiástico é quem detinha a palavra sobre o status
jurídico das pessoas.164
Face ao abrangente poder exercido pela Igreja, os ideais republicanos esposados por
intelectuais não resistirão à força do modelo, que encontrava respaldo em uma economia
agrária e numa sociedade conservadora. As propostas do projeto de Código Civil de
Beviláqua de conotação mais inovadora que, por exemplo, consagravam o princípio da
igualdade entre homens e mulheres e a superação da diferença entre filhos legítimos e
ilegítimos, mereceram revisão contundente do legislador, que definiu o marido como o chefe
da família e fixou a distinção entre a filiação legítima e ilegítima. 165 O modelo de casamento e
de família do direito canônico ajustou-se perfeitamente à proteção da propriedade. As
codificações civis, simplesmente, aprimoraram o sistema, adequando-o de modo a atender
perfeitamente o sentido e a razão de ser da própria codificação. A este respeito sinalizou

163
BOLOGNE, Jean-Claude. História do casamento no ocidente. Lisboa: Temas e Debates, 1999. p. 294.
164
GRINBERG, Keila. Código civil e cidadania. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 37 e 38.
165
Sugere Keila Grinberg que “neste ponto, o Código Civil apenas continuava um movimento inaugurado tempos antes,
ainda no Império, que defendia a família em função da chamada proteção à moral, mas também por conta da necessidade de
circunscrever os limites dos direitos à propriedade. Diferenciando homens e mulheres entre capazes e incapazes, filhos entre
legítimos e ilegítimos, o código não só contribuiu para perpetuar as antigas relações patriarcais como também introduziu
conteúdos morais ao ideário liberal que movia seu autor.” (GRINBERG, Keila. Código civil e cidadania. Rio de Janeiro:
Zahar, 2001. p. 37 e 38.)
62

Orlando Gomes: “A autoridade do direito canônico em matéria de casamento foi conservada


até a lei de 1890, que instituiu o casamento civil. A despeito de rechaçada, continuou a
exercer, indiretamente, grande influência. A lei civil reproduziu várias regras do direito
canônico, e alguma instituições eclesiásticas se transformaram em instituições seculares, tal
como ocorreu, de regra, nos países católicos.” 166
O reconhecimento de uma única família, aquela formada do casamento, o estabelecimento
de um catálogo taxativo de impedimentos matrimoniais, a consagração civil de um
sacramento religioso, transubstanciado na indissolubilidade do vínculo matrimonial, a redução
da capacidade civil da mulher casada, a estigmatização dos filhos ex-matrimoniais tiveram
como efeito colateral a criação de uma família a latere. Além de filhos, umas tantas mulheres,
por força do sistema trazido do direito canônico, são colocadas à margem do sistema jurídico.
Diante deste inequívoco estatuto de exclusão em que se converteram os códigos civis,
registrou Keila Grinberg: “não é demais afirmar que para o direito civil, havia mulheres ‘mais
cidadãs’ do que outras, por disporem de mais direitos, dependendo de sua condição civil”. 167
Segundo percepção de Orlando Gomes, “Clóvis Beviláqua, convicto de que o divórcio
instauraria o regime de poligamia sucessiva, articula algumas razões que, no seu entender, se
opunham a qualquer reforma do princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial.” 168
Orlando Gomes transcreve, em nota de rodapé, as razões elencadas por Beviláqua. Um
pequeno trecho merece transcrição: “Se for concedido o divórcio a vínculo, facilitar-se-á o
incremento das paixões animais, enfraquecer-se-ão os laços da família, e essa fraqueza
repercutirá desastrosamente na organização social. Teremos recuado da situação moral da
monogamia para o regime da poligamia sucessiva que, sob a forma de poliandria, é
particularmente repugnante aos olhos do homem culto.” 169 Beviláqua detalha supostas
consequências morais drásticas que adviriam do divórcio provocando a degradação da família
e da sociedade. Do preâmbulo de sua linha de argumentação dados importantes podem ser
colhidos: (i) a monogamia é referida como o princípio que dá sustentação a um modelo de
família que interessa ao Estado, independentemente da felicidade e realização de seus

166
GOMES, Orlando. Direito de família. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 9. E em seu Raízes Históricas e
Sociológicas do Código Civil Brasileiro, Orlando Gomes sublinha que “o conservantismo na disciplina das relações de
família revela-se, expressivamente, na regra contida no parágrafo único do art. 315 do Código, pela qual o casamento válido
só se dissolve pela morte de um dos cônjuges. A indisposição para com o divórcio, no Brasil, é antiga. ( GOMES, Orlando.
Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 15)
167
GRINBERG, Keila. Código civil e cidadania. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 70 e 71).
168
GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 16.
169
Ibid. p. 16.
63

membros;170 (ii) o casamento, com suas regras estritas, sobressai como forma de controle
estatal da sexualidade; (iii) a obsessão com a noção de homem culto, pois, o Código Civil era
para ele Beviláqua e para parcela de intelectuais de classe média um projeto civilizador
colhido dos povos mais cultos da Europa e destinado a um país atrasado.171
Ainda que houvesse esta pretensão progressista, a elite brasileira era filha arraigada de
uma sociedade eminentemente agrária, provinciana e conservadora. A respeito, escreveu
Orlando Gomes: “No período de elaboração do Código Civil, o divórcio entre a elite letrada e
a massa inculta perdurava quase inalterado, A despeito de sua ilustração, a aristocracia de anel
representava e racionalizava os interesses básicos de uma sociedade ainda patriarcal, que não
perdera o seu teor privatista, nem se libertara da estreiteza do arcabouço econômico, apesar do
seu sistema de produção ter sido golpeado fundamentalmente em 1888”. 172
O princípio da monogamia consagrado nos sistemas jurídicos inspirados nas codificações
oitocentistas prestar-se-á como uma luva à realização das finalidades patrimonialistas, que
têm como consequência, ou efeito colareral, o estabelecimento de páreas civis, especialmente,
um contingente significativo de mulheres que jamais ascenderão à condição de cidadania
propalada pelo ideário liberal republicano, cidadania esta que deveria ter no Código Civil sua
expressão jurídica de maior fôlego.
Deve ser devidamente salientada a força do Direito Civil codificado. A vigorosa idéia da
codificação trazia implícita, como refere Noberto Bobbio, a expectativa de que “o direito se
tornaria mais simples, claro e acessível a todos”.173 Mas, muito mais do que isso, a
codificação trazia implícita a possibilidade de um legislador universal, que baixaria leis
válidas para todos os lugares e permanentes no tempo, tornando simples e unitário o Direito
que na França e como nos demais países europeus era regional, variado e complexo. 174

170
Entre os argumentos de Beviláqua consta: “Sendo assim, não parece duvidosa a escolha entre um remédio que se acomod a
perfeitamente a esses fins e um que os contraria, entre um recurso que não transforma os casais infelizes em seres ditosos,
mas evita a propagação da úlcera, circunscrevendo-lhe a ação corrosiva, e um expediente que, sobre as ruínas de uma família,
ergue a possibilidade de outras ruínas...” (GOMES, Orlando. Raízes históricas ... p. 16).
171
“As condições de vida do país, tão distantes daquelas em que tais construções se levantaram, reagiriam sobre o próprio
pensamento dessa elite progressista, e exerceriam marcada influência (...) sobre as instituições e o modo por que o Direito
seria aplicado. Por mais forte que houve sido o seu entusiasmo pelo progresso da ciência jurídica na Europa, não lhe foi
possível escapar à influência do meio. Na elaboração do Código Civil, como, de resto, em sua aplicação, esse
condicionamento revela-se de modo a se poder perceber nitidamente o particularismo a que dá lugar. (GOMES, Orlando.
Raízes históricas ... p. 20).
172
GOMES, Orlando. Raízes históricas ... p. 22.
173
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 66.
174
A respeito deste ideário iluminista escreve Judith Martins-Costa: “É conhecida a passagem de Voltaire no Dicionário
filosófico ironizando a multiplicidade de costumes e o maior número ainda de interpretações que lhes eram conferidas. A
criação de um ‘direito novo’, na ideologia voltairana, missão do ‘soberano esclarecido’, projeto de natureza
fundamentalmente política, teria como objetivo a extirpação do particularismo. Contudo, se do ponto de vista substancial o
ataque de Voltaire é dirigido às leis provenientes do direito canônico, aquelas que tutelavam os privilégios feudais, e às
normas penais, e se, do ponto de vista formal, o libelo afronta questão da ausência de unidade do corpus jurídico, gerador de
64

Haurido das leis naturais e imutáveis, o Direito Civil codificado nada teria a ver com o
direito arbitrário e regional do Antigo Regime. Supostamente extraído da natureza mesma das
coisas, tornado cognoscível pelo exercício da razão, o ideal iluminista impregnou na
codificação napoleônica a noção de permanência, pois, tratava-se de um direito pretensamente
posto para além das contingências históricas. 175 A codificação civil exercerá influência sem
precedentes em diversos países. O Código de Napoleão será referência e inspiração para
outros tantos códigos nos séculos XIX e XX. A pretensão de um Direito natural positivado
abrangerá a regulação das relações de família e, seu âmbito, o princípio da monogamia
desponta como um pressuposto inquestionável, recepcionado da ordem natural das coisas.
Sob esse manto mítico da racionalidade iluminista o princípio, praticamente, passa incólume
até praticamente o último quadrante do século XX.
O princípio da monogamia incorporado às regras dos códigos civis e revestido da aura do
direito natural passou do campo do casamento-sacramento ao núcleo do casamento civil
regulado pelo Estado. As codificações modernas representaram verdadeira força constitutiva
do Direito Civil. Este fator foi decisivo para fazer da monogamia princípio jurídico
inquestionável por um longo tempo, apesar das consequências danosas dele decorrentes.
Inserido no Código em virtude de regras específicas do casamento, o princípio da
monogamia passou à condição de dogma inquestionável. A dinâmica e movimentos próprios
da vida provocam transformações. Pode ocorrer, como repetidas vezes sucede, que a regra
não cubra mais com sua juridicidade positivada todas as circunstâncias. Evidenciam-se
espaços de não-direito. Com o tempo, estes vazios são abrangidos pela juridicidade. Luiz
Edson Fachin detecta que, esse processo se verificou, no caso brasileiro, com o concubinato.
Averba: “No contexto da família, a concepção matrimonializada forma um espaço de ‘não-
direito’, mas a produção de relações-sociais nesse espaço acabou gerando certa imposição, e o
que estava na ‘dobra’ do Direito passou, gradativamente, a ocupar a parte do núcleo no
modelo plural de família”.176 Para o tratamento jurídico adequado da conjugalidade
contemporânea e para as considerações sobre o princípio da monogamia é indispensável

incerteza à classe então emergente, o que em verdade propõe é a sua substituição por um direito natural positivo, isto é, um
direito natural burguês.” (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 1999. p. 183).
175
“Se o Código de Napoleão foi considerado o início absoluto de uma nova tradição jurídica, que sepulta completamente a
precedente, isso foi devido aos primeiros intérpretes e não aos redatores do próprio Código. É de fato àqueles intérpretes e
não a teste que se deve a adoção do princípio da onipotência do legislador, princípio que constitui, como já se disse mais de
uma vez, um dos dogmas fundamentais do positivismo jurídico.” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de
filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 73)

176
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 201.
65

trazer a lume dados da conformação da família brasileira, sob pena da produção jurídica
permanecer absolutamente descolada das condições e conjunturas sociais indutoras e
legitimadoras das diversas formas de ser família, no Brasil. A este exercício é destinado o
capítulo que segue.
66

2. MONOGAMIA E EXCLUSÃO: A REGULAÇÃO DA CONJUGALIDADE NO


BRASIL

Nesta terra há um grande pecado que é terem os homens quase todos suas negras por
mancebas.

Padre Manuel da Nóbrega

Questão fundamental a ser enfrentada, neste capítulo, diz respeito ao instituto do


concubinato no Brasil, construído como um lugar de não-direito,177 forjado à margem do
casamento, abalizado e legitimado pelo princípio da monogamia. Não se trata de pura e
simples descrição jurídica do concubinato. Muito diferente do modelo europeu, o
concubinato, no Brasil, tem peculiaridades históricas que não podem ser desprezadas.
Construído socialmente sob o signo da marginalidade, da discriminação e de certa moralidade
hipócrita, foi ignorado e/ou apreendido pelo discurso jurídico de diversas e variadas formas.
Quando algum efeito positivo era imputado ao concubinato, constituía uma espécie de
concessão, de admissão limitada, excepcional do que era, por excelência, marginal.
É impossível estudar seriamente o concubinato, no Brasil, sem considerar o seu lugar
social, construído na concretude dos fatos, mas também no imaginário social que sempre o
admitiu, ao mesmo tempo que o fez invisível e imperceptível à ordem jurídica, exceto
enquanto fator negativo a propiciar nulidades de certos negócios jurídicos.
Na justificação da marginalidade ou invisibilidade a que foi condenado o concubinato
sempre compareceu discurso jurídico assentado no princípio da monogamia. Assim, para
apurar como a monogamia é concebida e convertida em princípio estruturante do estatuto
jurídico da família, torna-se imprescindível decifrar o processo que engendrou a
marginalização do concubinato e como sua libertação, na união estável, indica na direção da
superação de seu princípio justificador: a monogamia.

177
Para Jean Carbonnier, que trabalhou amplamente o conceito de não-direito, este surge fundamentalmente da auto-
limitação que o próprio Direito se impõe: "Contra os juristas dogmáticos, que presumem a continuidade do direito subjetivo,
devemos verificar amplos intervalos de não-direito no seu interior. É natural imputar o fenômeno a forças antagônicas que
fazem retardar o direito. (...) Mas, estas não são sempre externas ao direito: podem residir no direito mesmo, ou mais
precisamente na vontade mesma do direito. Ocorre que o direito se auto limita e paradoxalmente organiza aqueles que se
poderiam definir como institutos jurídicos de não-direito (“Contro i giuristi dogmatici, che presumono la continuità del
diritto oggettivo, dobbiamo osservare ampi intervalli di non-diritto al suo interno. È naturale impurare il fenomeno a forze
antoagoniste che fanno retrarate il dirito. Ma quaste forze non sono sempre esterne al diritto: possono risiedere nel diritto
stesso, o perfino nella volontà stessa del diritto. (...) Accade che il diritto si limiti da sé e paradossalmente organizzi quelli che
si protrebbero definire istituti guridici di non-diritto.”). (CARBONNIER, Jean. Flessibile diritto – per uma sociologia del
diritto senza rigore. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1997. p. 27 e 28)
67

2.1 Concubinato e matrimônio no Brasil: fontes da discriminação

O concubinato é por excelência o principal subproduto da monogamia. Engels já havia


detectado esse fato. Ele recupera a reflexão de Morgan, definindo heterismo como “as
relações extraconjugais — existentes junto com a monogamia — dos homens com mulheres
não casadas, relações que, como se sabe, floresceram sob as mais variadas formas durante
toda a época da civilização e se transformam, cada vez mais em aberta prostituição.”178
Afirmou, também, o heterismo e o adultério como eternos companheiros da monogamia.179
Sublimou, todavia, de forma quase idílica, a monogamia do proletariado. Para tanto teve que
fazer um exercício nitidamente carente da cientificidade própria ao espírito acadêmico. Para
enfrentar a existência do critério da monogamia mesmo entre os não detentores dos meios de
produção, viu-se obrigado a dizer que “a família do proletariado já não é monogâmica no
sentido estrito da palavra, nem mesmo com o amor mais apaixonado e a fidelidade mais
absoluta dos cônjuges...”, para logo adiante concluir: “o matrimônio proletário é monogâmico
no sentido etimológico da palavra, mas de modo algum em seu sentido histórico.” 180

É senso comum que o heterismo, a prostituição e o concubinato não constituem privilégio


exclusivo da burguesia. A dominação masculina não ficou restrita aos proprietários dos meios
de produção. Não respeitou os pressupostos teóricos. Esteve e permaneceu nas famílias
nucleares dos trabalhadores. A monogamia em relação à mulher é também uma exigência do
senhor proletário.
A reflexão de Engels, de qualquer sorte, presta-se a identificar o concubinato como um
subproduto do casamento monogâmico, um locus marginal, excrecência do instituído
oficialmente. Tendo em vista essa condição de marginalidade do concubinato, impõe-se
análise da formação social brasileira e do papel que o concubinato teve desde a colonização.

2.1.1 Concubinato e os socialmente desclassificados no Brasil Colônia

A noção de concubinato é fundamental à interpretação da formação cultural brasileira.


Todos os chamados intérpretes do Brasil fizeram referência ao concubinato como uma das
mais distintivas marcas da colonização. 181

178
ENGELS, Friedrich. A origem da família.... p. 71.
179
ENGELS, Friedrich. A origem da família...., p. 78.
180
Ibid. p. 78.
181
Ao contrário da Europa que, a partir do século XVII, assistiu franco declínio do concubinato em razão da Reforma
Protestante e da Contrareforma Católica, o concubinato cresceu na colônia brasileira já a partir do século XVI, tornando-se
68

O concubinato acabou por ser a expressão doméstica da colonização, do exercício do


domínio sobre o inferior, nesse caso, sobre a mulher índia, negra ou branca pobre, de qualquer
sorte, subjugada, colonizada. Manoel da Nóbrega, em suas Cartas do Brasil e mais escritos
(1549-1560), escrevia que, em 1551, os homens da Colônia “tinham índia de muito tempo, de
quem tinham filhos, e tinham por grande infâmia casarem com elas.”182
A origem do concubinato, no Brasil, não pode ser desprezada, sob pena de se construir
compreensão equivocada, concebendo-o como alternativa ao casamento oficial, como união
não formalizada com o intuito de constituição de família. Muito ao contrário, o concubinato
viabiliza-se pelas condições de colonização e de escravidão e revela-se como exercício de
poder. O concubinato se consagra como um dos privilégios sexuais dos lusitanos,
primeiramente em relação às índias, depois em relação às negras, mulatas, mamelucas e
brancas pobres.
Na Colônia, o concubinato não guarda qualquer relação com a noção de casamento. O
estigma da concubina não permite esta aproximação. Também, o ingrediente racista do
concubinato não deve ser amenizado.183 O concubinato não resulta de uma relação entre
iguais, que, rejeitando as imposições e complexas regras do casamento optaram pela
informalidade, na constituição de uma família. Longe disso, os portugueses “preferiam a
morte à vergonha de esposar mulher infamada pelo sangue, pela cor ou pela condição
social.”184
Em que pese o concubinato não ser um privilégio exclusivo dos senhores, certo é que
representou importante faceta da exploração escravagista e, por essa mesma razão, carregou
consigo as marcas estigmatizadoras de sua origem.
Para além das uniões informais entre desiguais na estratificação social e étnica, o
concubinato foi a marca da relação entre os escravos. A despeito da pregação jesuítica, o

“espaço por excelência das relações sexuais e da procriação”. (VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral,
sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 83).
182
Apud VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997. p. 84.
183
Importa sublinhar que importantes intérpretes da brasilidade, como Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda,
sublimaram ou mesmo negaram o racismo dos colonizadores. Buarque de Holanda diz, expressamente, referindo-se ao
colonizador português: “A isso cumpre acrescentar outra face bem típica de sua extraordinária plasticidade social: a ausência
completa, ou praticamente completa, entre eles, de qualquer orgulho de raça. Ao menos do orgulho obstinado e inimigo de
compromissos, que caracteriza os povos do Norte. Essa modalidade de seu caráter, que os aproxima das outras nações de
estirpe latina e, mais do que delas, dos muçulmanos do norte da África, explica-se muito pelo fato de serem os portugueses,
em parte, e já ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo de mestiços”. (HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda.
Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 45).
184
VAINFAS, Ronaldo. Trópico... p. 84. Caio Prado Junior registra o caso do Governador de Goiás, Fernando Delgado de
Castilho, que apaixonado por uma mulher pobre com quem vivia publicamente no palácio, e de quem tivera prole numerosa,
“preferiu suicidar-se a levá-la casada para o Reino, de onde o chamavam.” (PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil
contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. p. 363).
69

casamento, nos moldes oficiais, constituiu uma raridade para eles. Assim, entre os escravos
prevaleceram as relações precárias de concubinato. Essas uniões eram determinadas em
grande medida e, também, desfeitas pelos próprios senhores de acordo com suas
conveniências. 185
O concubinato, todavia, não constituía apenas um privilégio dos grandes senhores e nem
tão pouco condição exclusiva dos escravos. O modelo espelhava-se para os homens simples.
Nesses casos, o concubinato se confundia, às vezes, com a prostituição. Não poucas vezes, as
mulheres eram prostituídas para geração de rendas aos seus amásios.186 Duas seriam as razões
para difusão do concubinato: o custo para o casamento na Igreja e a burocracia para sua
realização. Contudo, Ronaldo Vainfas sustenta que essas alegações não constituíam as
verdadeiras causas da difusão generalizada do concubinato entre a gente pobre. Entende ele
que “amancebavam-se por falta de opção, por viverem, em sua grande maioria, num mundo
instável e precário, onde o estar concubinado era contingência da desclassificação, resultado
de não se ter bens ou ofício, da fome e da falta de recursos, não para pagar a cerimônia de
casamento, mas para almejar uma vida conjugal minimamente alicerçada segundo os
costumes e a ética oficial”. 187
É plausível concluir que o concubinato no Brasil colonial significou “a principal
alternativa de vida amorosa e sexual para os ‘protagonistas da miséria’, escravos, forros e
pobres, para os quais o casamento era ‘interditado’ ou despropositado, fosse pela condição
servil, fosse pela instabilidade que lhes marcava a existência”. 188 Emerge, portanto, a pergunta
sobre a função social do concubinato. Fora os casos de sujeição explícita, como o das
escravas, o concubinato se apresenta, também, como alternativa de inserção e constituição de
grupo familiar. Como perfeitamente concluiu Torres-Londoño, “mal ou bem, o concubinato
permitia às mulheres viverem uma vida própria e fora do circuito da prostituição. Assim, o
concubinato colocava um homem na vida da mulher, mesmo que não fosse para sempre.
Além da presença masculina, para uma mulher podia significar o início de uma casa, de um
lar, mesmo que nele o homem não morasse muito tempo”. 189

185
Segundo Rodolfo Vainfas, as relações amorosas entre os escravos “eram, possivelmente, as mais instáveis, precárias e
vulneráveis de quantas houve na Colônia, as mais difíceis de firmar, com poucas exceções...” (VAINFAS, Ronaldo.
Trópico... p. 89)
186
VAINFAS, Ronaldo. Trópico... p. 86.
187
Ibid. p. 94
188
Ibid. p. 99
189
TORRES-LODONÕ, Fernando. A outra família – concubinato, igreja e escândalo na colônia. São Paulo: Loyola, 1999.
p. 94.
70

Nesta direção, têm lugar as reflexões levadas a cabo pela antropóloga Mariza Corrêa, que
critica a fixação da historiografia da organização familiar na família patriarcal, como sendo o
modelo por excelência do período colonial. 190 Tomando, como paradigmáticas, as obras de
Gilberto Freyre e Antônio Cândido de Mello e Souza, censura os estudos que colocam em
consideração a forma de organização familiar de um grupo dominante, em determinado tempo
e lugar, para fazer dela certa homogeneização do modelo familiar brasileiro como um todo. A
partir dos trabalhos de Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, e outros, evidencia que a
complexidade das atividades econômicas da Colônia não pode ser reduzida aos engenhos de
Pernambuco e nem tampouco às fazendas de café paulistas. Sublinha que são impossíveis e
incompatíveis a consideração de fato de uma “sociedade multifacetada, móvel, flexível e
dispersa e a tentativa de acomodá-la dentro dos estreitos limites do engenho ou da
fazenda”.191
Caio Prado Jr., por exemplo, tratando da vida familiar no Brasil Colônia, registra: “...
segundo o que se colige dos depoimentos contemporâneos, quase se pode afirmar que, fora o
caso das classes superiores, o casamento constitui uma situação excepcional.” E sublinha:
“Precisamos por isso dirigir nossa atenção, sobretudo, para o grau de estabilidade que
apresentam as relações sexuais, sejam ou não sancionadas legalmente pelo casamento.”192
Ressalva, porém, que a irregularidade de várias uniões não resulta simplesmente de
indisciplina sexual, mas, sim, de outros fatores, como a grande dimensão das paróquias e a
falta de sacerdote celebrante, os custos do casamento, e, sobretudo, os preconceitos de cor e
de classe que impediam a regularização de uniões de fato.193
A admissão da família patriarcal como modelo da organização familiar colonial, na
prática, implica a marginalização ou estigmatização de outras formas alternativas ou mesmo
sua negação. Assim, a perquirição da genealogia do concubinato em terra brasilis evidencia a
criação de um lugar de não direito, fruto do modelo colonialista aqui implantado, da
escravidão e do racismo, tendo como cenário de fundo a instabilidade social, a pobreza e a
sujeição.
Levantamentos feitos pela mais recente produção historiográfica, a partir de documentos
das chamadas devassas eclesiásticas, promovidas pelas visitas pastorais, trazem informações

190
CORRÊA, Mariza. Repensando a família patriarcal brasileira: notas para o estudo das formas de organização familiar no
Brasil. In: ARANTES, Antonio Augusto [et alli]. Colcha de retalhos – estudos sobre a família no Brasil. 3. ed., Campinas:
Editora da Unicamp, 1994. p. 15-42.
191
Ibid. p. 24.
192
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. p. 363.
193
Ibid. p. 363.
71

reveladoras, primeiro, em relação à relevância do concubinato, que não era um fenômeno


episódico. O concubinato é o crime religioso moral que mais se destaca nesses processos
eclesiásticos.194 Em relação à composição social dos concubinatos no período colonial, estão
envolvidos sempre e, predominantemente, homens livres com mulheres alforriadas e
escravas. 195 Estes dados reforçam a percepção já antes enunciada de que o concubinato
constitui por excelência espaço de dominação masculina.
Apesar de tolerado, admitido e até incentivado em alguns casos, o concubinato se
constituiu sob estigma, porque status social somente é reconhecido à mulher pela via do
casamento. Mary Del Priore relembra a observação de Segalen, afirmando que “na sociedade
tradicional a mulher não tem estatuto fora do casamento. Ele é a única instituição que lhe
permite realizar-se enquanto ser social”.196 O concubinato figura, assim, como expressão da
marginalidade e desqualificação social da mulher. 197

194
“Boschi, utilizando um livro de devassa eclesiástica de 1734, com 239 registros da Comarca do Rio das Velhas, constatou
que 94% dos casos autuados na região eram de concubinato. Luna e Costa realizaram o estudo das Comarcas do Serro Frio e
do Rio das Velhas, e concluíram que, dos 350 registros de devassas ali realizados em 1738, 87,4% se referiam a práticas
concubinárias. Figueiredo e Sousa, baseando-se em livros de devassas do século XVIII, relativos às Comarcas do Rio das
Velhas, do Serro Frio, do Rio das Mortes e de Vila Rica, encontraram a porcentagem de 85% referente a concubinagem. Fora
de Minas Gerais, em Mato Grosso, especificamente na paróquia de Santa Ana do Sacramento da Chapada, Londoño,
pesquisando o livro de devassas lavrado em 1785, detectou que os casos de amancebamento atingiam a faixa de 80% do total
de registros. Para a Bahia, Mott constatou, em Ilhéus, em 1813, um percentual de 60,5% de casos envolvendo os “desvios da
vida familiar”. Já Goldschmidt, estudando a sociedade colonial paulista, de 1719 a 1822, chegou a cifras que correspondem a
um total de 86,4%.” (CERCEAU NETTO, Rangel. A família ao avesso: “o viver de portas adentro” na comarca do rio das
velhas no século XVIII. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Jul/ Ago/ Set – 2008, Vol. 5, Ano V, nº 3.
Disponível em:
http://www.revistafenix.pro.br/PDF16/ARTIGO_12_RANGEL_CERCEAU_NETTO_FENIX_JUL_AGO_SET_2008.pdf .
Consulta em 08/08/2011.)
195
Rangel Cerceau Netto, que fez levantamento sobre condição sócio-jurídica dos sentenciados em relação aos casos de
concubinato, no livro de devassas eclesiásticas realizadas na Comarca do Rio das Velhas, entre os anos de 1727 e 1756,
registra: “O número de homens livres atinge, em porcentagem absoluta, um total de 53,3% de todos os livres (homens e
mulheres) envolvidos, e, em um percentual relativo, a 93,6% dos concubinos culpados. A participação dos homens forros é
modesta: 3,3% do total absoluto e 5,9% da parcela relativa aos amásios sentenciados. O envolvimento dos escravos
masculinos chega a ser insignificante: 0,3% do total absoluto e 1% do relativo. Entre as mulheres, há o predomínio das forras,
com 24,9% do total absoluto e 58,0% do total relativo de concubinas sentenciadas; as escravas vêm em seguida,
representando 11,5% do total de mulheres nesta condição, o que corresponde ao percentual relativo de 26,7%. Por fim, as
mulheres livres constituem 6,6% do total absoluto e 15,3% do número relativo de mancebas sentenciadas. Os maiores índices
do amasio, portanto, envolveram homens livres e mulheres forras: os homens livres correspondendo a 53,3% do total
absoluto e a 93,6% do relativo; as mulheres forras, com 24,9% do total absoluto e 58,0% do relativo”. (CERCEAU NETTO,
Rangel. A família ao avesso: “o viver de portas adentro” na comarca do rio das velhas no século XVIII. Fênix – Revista de
História e Estudos Culturais. Jul/ Ago/ Set – 2008, Vol. 5, Ano V, nº 3. Disponível em:
http://www.revistafenix.pro.br/PDF16/ARTIGO_12_RANGEL_CERCEAU_NETTO_FENIX_JUL_AGO_SET_2008.pdf .
Consulta em 08/08/2011.)
196
PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia. 2. ed. São
Paulo: UNESP, 2009. p. 123.
197
Trata-se de transposição de uma concepção portuguesa para as terras da Colônia. Assinala Fernando Torres-Londoño que
“a desqualificação das mulheres indígenas, por serem escravas e por sua identificação com as mancebas portuguesas, deu à
mancebia dos portugueses uma condição de naturalidade.” Esta transposição era dotada de tal normalidade para os colonos
portugueses que estes acreditavam “não pecar em seus relacionamentos com as índias, se lhes davam algo em troca, da
mesma forma que acreditavam que não se pecava com as mancebas portuguesas pagando por seus serviços. Da mesma
forma, em Portugal, muitas mulheres pobres e desprotegidas foram colocadas no território das mancebas, destinadas a
catalisar os impulsos sexuais dos homens; ainda mais, protegiam-se, assim, as moças de família encaminhadas aos mercados
de casamentos arbitrados pela política de alianças”. (TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família – concubinato, igreja
e escândalo na colônia. São Paulo: Loyola, 1999. p. 42).
72

A frouxidão das coerções sociais relativas à sexualidade, na Colônia, encontra sua


explicação sobretudo no modelo de colonização implantado. Não foram transplantadas
famílias instituídas para as terras conquistadas, mas, sim, indivíduos movidos pelo espírito
aventureiro, e estes preferirão as mulheres submissas de raças dominadas às restrições que
certamente lhes imporia a típica família constituída aos moldes europeus. 198
A moralidade permissiva da Colônia abria espaços para a aceitabilidade dos amores
irregulares, mas, ao mesmo tempo, distinguia claramente o concubinato do casamento, não
reconhecendo qualquer status de dignidade social e jurídica ao primeiro e exaltando o
segundo como garantia de respeitabilidade e de acessibilidade aos degraus sociais mais
elevados. Nessa ambiência de marcada ambiguidade é que se desenvolvem e se conformam as
famílias brasileiras.
Não se pode deixar de registrar que a pregação do casamento cristão, como instância de
segurança, encontrava eco na dura experiência de sobrevivência em um território ainda em
fase de colonização. O revestimento de sacralidade, de permanência e de indissolubilidade
constituía forte apelo para a população feminina carente de segurança. Todavia, a
instabilidade e a precariedade da vida na Colônia não permitiram que o casamento se
sobrepusesse completamente sobre outras formas de convivência sexual.
Tendo em conta a constante mobilidade dos homens no período de povoamento e de
exploração econômica da cana, do ouro, do café, e outros, como bem anotou Mary Del Priore,
estabeleceu-se grande semelhança entre o concubinato e o casamento, na medida em que tanto
num como no outro os homens permaneciam distantes da família, o que teve como
consequência as mulheres casadas ou concubinas tornarem-se “chefes de suas casas, famílias
e fogos, como se dizia então”.199

198
Neste passo, merece registro a observação de Caio Prado Júnior: “Sobre os costumes do Brasil Colônia há uma
documentação abundante que só faz o desânimo do pesquisador obrigado a escolher (sic). O desregramento atinge tais
proporções e se dissemina de tal forma que volta debaixo da pena de cada observador da vida colonial, por mais
desprevenido que seja. A causa primeira e mais profunda de um tal estado de coisas é com certeza, e já toquei
incidentalmente no assunto, a forma pela qual se processou, na maior parte dos casos, a emigração para o Brasil. Ela não se
faz senão excepcionalmente por grupos familiares constituídos, mas quase sempre por indivíduos isolados que vêm tentar
uma aventura, e que, mesmo tendo família, deixam-na atrás à espera de uma situação mais definida e segura do chefe que
emigrou. Espera que se prolonga e não raro se eterniza, porque o novo colono, mesmo estabelecido, acabará preferindo a
facilidade de costumes que proporcionam mulheres submissas de raças dominadas que encontra aqui às restrições que a
família lhe trará. E quando não, já tão habituado a tal vida que o freio da mulher e dos filhos não atuará nele senão muito
pouco.” (PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo... p. 363.)
199
A autora informa alguns dados: “Em Minas Gerais, no século XVIII, por exemplo, o predomínio de famílias matrifocais
era impressionante. Girava em torno dos 45% o número de mulheres à testa de suas casas, e destas 83% nunca haviam se
casado (...) Em São Paulo, de acordo com o estudo clássico de Marcílio, o desequilíbrio entre os sexos provocado pelo
deslocamento de homens em direção a regiões mais lucrativas deixara mulheres como maioria nas cidades e vilas. Maioria
esta que via seus parceiros partirem com os filhos nos braços e, ao recebê-los quando voltavam, tinham engrossado sua prole
com filhos de outros eventuais companheiros. Ou ainda, que haviam aumentado a família, criando os filhos de seus
companheiros com outras mulheres, que tinham sido deixadas para trás.” (PRIORI, Mary Del. Ao sul do corpo: condição
feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2009. p. 46).
73

O concubinato foi um modelo que se consagrou como opção de relacionamento para os


casados e, ainda, para os padres, em razão do voto de celibato. Todavia, como bem percebeu
Fernando Torres-Lodoño, por meio de ampla pesquisa documental, no Brasil colonial, o
concubinato foi também “frequente entre solteiros pobres, não-proprietários, que não tendo
bens, não tinham necessidade do matrimônio como contrato jurídico que garantisse direitos
em relação à propriedade.” 200 Duas razões fundamentais foram determinantes para que o
concubinato se difundisse como modelo entre os que não tinham impedimento para casarem-
se. Primeiro, grande parte da população estava envolvida em atividades que exigiam migração
constante em busca de fortuna ou de pura sobrevivência, o que se revelava como fator
impeditivo de vínculos duradouros. Segundo, porque as mulheres, sem chances da segurança
do casamento em razão da migração masculina, tinham no concubinato uma forma de
estabelecer relações.
É certo, porém, que o concubinato, segundo Torres-Londoño, evidencia-se “como forma
de relacionamento entre desiguais: senhor e escrava, proprietários e não-proprietários,
portugueses e índias ou negras”.201 O que justifica a proliferação do concubinato entre
desiguais é exatamente a possibilidade do estabelecimento de vínculos sem eliminação da
desigualdade. A tese de Torres-Londoño — que se alinha perfeitamente à hipótese com a qual
aqui se trabalha — é que o concubinato só mereceu severa reprovação da Igreja e do Estado,
que delegava essas questões à jurisdição eclesiástica, quando tendia a promover a igualdade.
Nessas circunstâncias, ele se convertia em escândalo, pois, a concubina jamais poderia
assemelhar-se à esposa e nem tampouco o concubinato poderia ameaçar as propriedades da
família legítima.
Fora destes extremos ou desvios, o concubinato não chocava a sociedade colonial, ao
contrário, era-lhe extremamente funcional. Constituía “válvula de escape para as interdições
que sustentavam o matrimônio-aliança. Dava espaço às relações pré-matrimoniais, poupando
as moças de família ou servindo de válvula de escape para sentimentos individuais nem
sempre contemplados nas alianças matrimoniais”.202 Contudo, o concubinato abriga um
paradoxo desde as origens. Apesar de tolerado segundo as conveniências do sistema social e
da vestimenta jurídica que o emoldurava e ainda o configura, nunca perdeu a tonalidade

200
TORRES-LONDONÕ, Fernando. A outra família – concubinato, igreja e escândalo na colônia. São Paulo: Loyola, 1999.
p. 197.
201
Ibid. p. 198.
202
Ibid. p. 198.
74

desqualificadora: não é um arranjo familiar para moça de família, mas, sim, para negras,
índias e pobres.
Apesar de vista como a outra, como proscrita e à margem, a família surgida do
concubinato guardava todos os traços típicos imputados à família matrimonial da época
colonial. Nas pesquisas documentais colhidas das devassas e pastorais, são recorrentes os
testemunhos sobre a fidelidade da mulher concubina e seu desempenho e desvelo maternos.203
Amalgamado entre a proscrição e a semelhança com a família matrimonial, o concubinato
estruturou-se como instituição social marcada sobretudo pela desigualdade e a marginalização
da mulher.
A monogamia se apresenta como princípio adequado e funcional a justificar o tratamento
que o sistema jurídico pátrio deu ao concubinato. Apresenta-se como legitimador por
excelência da marginalização da outra família, que se constitui como resíduo do sistema da
família matrimonializada, fundada no casamento-aliança, tão adequado ao modelo do
individualismo proprietário. O princípio da monogamia cumpriu e ainda cumpre papel
neutralizador do concubinato, para que este não se convertesse em fator disfuncional do
sistema centrado na propriedade, que tem na família matrimonializada um dos pilares de sua
sustentabilidade e segurança. Este princípio se revela como um filtro, separando as mulheres
pobres e desamparadas de qualquer proteção econômica daquelas moças de família destinadas
ao mercado de casamento, que visava fundamentalmente atender a uma política de alianças.
O princípio da monogamia é indispensável ao modelo, que necessariamente potencializa a
dominação masculina e tem como resultado a marginalização e opressão da mulher.
Perquirir pelas raízes históricas do concubinato no Brasil constitui exercício
indispensável para os fins perseguidos nesta tese, como adiante restará evidenciado, mas
também torna-se necessária referência ao fato de que a bigamia foi recorrente no período
colonial e não um fenômeno passível de ser desconsiderado.

2.1.2 Casamento, bigamia e legitimidade social no Brasil Colônia

A bigamia tornou-se um delito corriqueiro no Brasil colonial. A explicação é evidente. Os


constantes deslocamentos dos indivíduos da metrópole para as colônias, e mesmo de uma das
possessões ultramarinas para outra, ou ainda entre as longínquas províncias, forneciam as
perfeitas condições para a realização de matrimônios irregulares. O fenômeno era de tal

203
TORRES-LONDONÕ, Fernando. A outra família – concubinato, igreja e escândalo na colônia. São Paulo: Loyola, 1999.
p. 199.
75

relevância que o Concílio de Trento recomendou aos párocos especiais cuidados na


celebração de casamentos de “vagamundos”.204

A bigamia era um crime de “vagamundos”. Não se trata de indigentes ou de miseráveis,


mas, sim, de pessoas que andavam vagando sem domicílio certo, artesãos, mascates, letrados
sem posse, aventureiros do colonialismo. Os homens de posse, atentos à questão patrimonial,
não se lançavam à aventura da bigamia.

O elevado número de bígamos na Colônia reforça a ambivalência do casamento e do


concubinato. Em que pese o desprestígio do casamento, ele constituía caminho para o
reconhecimento e a ascensão social. Desta forma, em lugar de simplesmente amancebarem-se,
muitos colonos preferiam ocultar a existência de casamentos realizados em outras paragens
para contrair novas núpcias perante a Igreja. A bigamia foi assim uma opção pelo
reconhecimento social e uma recusa à situação de instabilidade e estigma que marcava o
concubinato.

Das denúncias morais feitas ao Santo Ofício, nas conhecidas visitações da Bahia, 42,70%
se referem à sodomia. Em segundo lugar, estão as denúncias de bigamia, num percentual de
25,6%.205 Vê-se, pois, que a bigamia, em termos estatísticos referentes aos pecados
denunciados ao visitador, era fenômeno relativamente importante. As denúncias iam de
homens que se casavam no Brasil, tendo deixado esposa e filhos em Portugal, e mulheres que
se casaram segunda vez depois de longa ausência dos maridos dos quais não tiveram mais
notícias. Vainfas sublinha que as denúncias espelham mais que o espírito murmurador dos
denunciantes, antes, “indicam o impacto da situação colonial na estabilidade do matrimônio,
sobretudo entre a gente simples que vinha para o Brasil. Aventureiros que abandonavam a
família na metrópole e acabavam-se fixando na colônia; mulheres cansadas de esperar os
maridos, que adentravam as matas e lá ficavam por anos a fio sem dar notícia”. 206 As
circunstâncias e condições precárias da vida na Colônia indicam a fragilidade do casamento,
quando este ocorria entre a gente mais pobre.

204
Ibid. p. 105.
205
VAINFAS, Ronaldo. Teia de intrigas. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.) História e sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro:
Graal, 1986. p. 46. Neste texto, o autor analisa a atuação da Inquisição ibérica que, para além da perseguição às heresias
desviantes dos cristãos-novos, representou a Contrareforma na defesa dos dogmas católicos relativos à moral familiar e
sexual. Os visitadores eram enviados do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa. Ronaldo Vainfas apresenta, neste ensaio, dados
e interessantes informações casuísticas que colheu dos documentos das Visitações da Bahia, ocorridas nos fins do século XVI
e início do século XVII.
206
Ibid. p. 48.
76

A bigamia consistia em opção acertada quando a intenção era de união a “moça de


família” bem dotada. Ainda que sob o risco de cair na malha fina do Santo Ofício, o
casamento conferia ao bígamo legitimidade social. A bigamia não resulta de desprezo pelo
matrimônio ou de intenção herética, como pretendiam os inquisidores extrair das confissões.
Decorria simplesmente das condições próprias da colonização, 207 das ausências e da falta de
comunicação prolongada com o cônjuge originário, somadas ao desejo de integração em um
novo meio social.

A instabilidade do matrimônio, apesar de sua indissolubilidade segundo as regras


canônicas, constituiu uma das marcas do Brasil colonial. Do rescaldo e da acomodação da
herança colonial é que se forma o quadro cultural no qual figura a família que será
recepcionada e legitimada na codificação civil.

A interdição legal da bigamia nas Ordenações Filipinas previa pena de morte para quem
cometesse o delito.208 As escusas para a não aplicação de tão radical pena sempre mereceram
a benevolência do poder estatal. O Código Penal do Império, para o delito de poligamia,
culminou pena de seis meses, com trabalhos forçados e multa, 209 já o Código Penal da
Primeira Republica tipificou o mesmo crime, estabelecendo pena de prisão celular de um a
seis anos para quem contraísse casamento mais de uma vez, sem estar o anterior dissolvido
por sentença de nulidade ou morte do outro cônjuge. 210 Já o Código Penal de 1940, ainda

207
Donald Ramos relata episódios da vida de um certo Manuel Lourenço Flores que teria casado seis vezes, mudado de nome
quatro e de residência constantemente. (RAMOS, Donald. Bigamia e valores sociais e culturais no Brasil colonial: o caso de
Manuel Lourenço Flores e o seu contexto histórico. In SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). Sexualidade, família e religião
na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001, p. 113-124.)
208
No Livro V, Título XIX, lê-se: “Do homem, que se casa com duas mulheres e da mulher que se casa com dous maridos.
Todo homem que sendo casado e recebido com huma mulher, e não sendo o matrimônio julgado por invalido per Juízo da
Igreja, se com outra casar, e se receber, morra por isso. E todo dano, que as mulheres receberem, e tudo que delas levar sem
razão, satisfaça-se por os bens delle, com fôr de Direito. E esta mesma pena haja a toda mulher que dous maridos receber, e
com eles casar pela sobredita maneira, o que tudo haverá lugar, ora ambos Matrimônios fossem inválidos per Direito, ora
hum delles. 1. E se o condenado a morte pelo dito malefício fôr menor de vinte e cinco annos, ou for Fidalgo, e a segunda
mulher com quem casou, for de baixa condição, ou se o condenado, sendo-lhe fugidia a primeira mulher, casou com a
segunda, sem saber certo, que era a primeira morta, ou em outros casos semelhantes, não se fará execução sem primeiro no-lo
fazer saber.” [Mantida a grafia do original – ALMEIDA, Cândido Mendes de (Org). Código Philippino ou Ordenações e
Leis do Reino de Portugal. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomathico, 1870. Texto original digitalizado
disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm - consultado em 26 de agosto de 2011].
209
O Código Penal de 1839, em seu art. 249, previa o crime de poligamia nos seguintes termos: “Contrahir matrimonio
segunda, ou mais vezes, sem se ter dissolvido o primeiro. Penas - de prisão com trabalho por um a seis annos, e de multa
correspondente à metade do tempo.”
210
O Código Penal de 1890, em seu art. 283, tipificava o crime de poligamia, nos seguintes termos: “Contrahir casamento,
mais de uma vez, sem estar o anterior dissolvido por sentença de nullidade, ou por morte do outro conjuge: Pena – de prisão
cellular por um a seis annos.
Paragrapho único. Si a pessoa tiver prévio conhecimento de que é casado aquelle com quem contrahir casamento, incorrerá
nas penas de cumplicidade.
77

vigente, estabeleceu, entre os crimes contra o casamento, o de bigamia, culminando pena de


dois a seis anos de reclusão para quem, sendo casado, contrair novo casamento.211

A criminalização da bigamia, com a pena de morte ou com penas mais atenuadas, desde a
proclamação da República, é indicativo da tutela de um bem jurídico localizado além da
proteção das juras de aliança eterna, sacramentadas pela lei canônica. A criminalização da
bigamia, em última análise, tem como escopo a proteção do sistema fundado sob a égide da
primazia da tutela da propriedade privada. O ilícito de contrair novo casamento, no âmbito
penal, não configura crime contra a honra do outro cônjuge, mas, sim, conduta lesiva à
instituição familiar, enquanto núcleo social e econômico de interesse do Estado. Tanto é
assim, que o crime desafia ação penal incondicionada.

O bem jurídico protegido pela tipificação da bigamia é a ordem jurídica matrimonial


ancorada no princípio da monogamia. Protege, sobretudo, uma dada forma de organização da
instituição familiar.

Enquanto no âmbito civil a bigamia constituiria lesão à confiança do cônjuge ofendido,


em razão da conduta do outro que contraiu novas núpcias, no âmbito penal, tal ofensa é
irrelevante. Assim, a bigamia configura-se como crime de ação penal pública, independe de
representação do ofendido, pois, ainda que o cônjuge do primeiro casamento consentisse ao
consorte contrair, com terceiro, novas núpcias, ao arrepio da lei, o crime prevaleceria. Com a
revogação do art. 240 do Código Penal, que descrevia a conduta tipificada como adultério,
não existe mais, no sistema penal brasileiro, qualquer proteção ao bem jurídico fidelidade. O
crime de adultério dependia de ação penal privada. O único legitimado para a titularidade da
referida ação contra o adúltero era o cônjuge ofendido.212 Vê-se, pois, que o crime de bigamia
tutela bem jurídico que não se confunde com um eventual direito subjetivo da pessoa casada à
fidelidade de seu cônjuge.

Por que, sob as Ordenações Filipinas, o condenado pelo cometimento de bigamia poderia
ser morto e o suspeito de ter cometido o delito, homem ou mulher, a partir de indícios ou
mera denúncia, poderia ser torturado para confessar e, se não o fizesse, deveria mesmo assim

211
O Código Penal de 1940 tipificou o crime de bigamia, em seu art. 235, nos seguintes termos: “Contrair alguém, sendo
casado, novo casamento: Pena - reclusão, de dois a seis anos. § 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com
pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos. § 2º - Anulado por
qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.
212
Assim dispunha o art. 240 do Código Penal revogado pela Lei nº 11.106/2005: “Art. 240. Cometer adultério: Pena -
detenção, de quinze dias a seis meses. § 1º - Incorre na mesma pena o co-réu. § 2º - A ação penal somente pode ser intentada
pelo cônjuge ofendido, e dentro de 1 (um) mês após o conhecimento do fato. § 3º - A ação penal não pode ser intentada: I -
pelo cônjuge desquitado; II - pelo cônjuge que consentiu no adultério ou o perdoou, expressa ou tacitamente”.
78

ser degredado?213 Obviamente, o crime revelava-se lesivo ao sistema que tal norma penal
busca resguardar. A gravidade da pena aponta a proteção de um bem jurídico diverso da
fidelidade conjugal. Remete à proteção da família — ou mais propriamente do casamento —
como instituição.214 A bigamia põe em risco a estabilidade, previsibilidade e organização de
importantes fatores econômicos que se amparam na organização familiar fundada
exclusivamente no casamento.

A tipificação da bigamia como crime estava perfeitamente adequada à família capturada


pelo Código Civil de 1916, uma família que se define como: matrimonializada, hierarquizada,
patriarcal e de feição transpessoal. Todavia, na Constituição Federal de 1988, outra família é
captada pelo legislador constituinte. Marcada pela pluralidade de entidades familiares, não
mais definidas com exclusividade pelo matrimônio, pela igualdade material, pela direção
diárquica e guiada por uma orientação eudemonista.215 Nesse novo quadro, não faz sentido a
proteção da família como instituição em si, isto é, funcionalizada a interesse transpessoal, que
está para além dos interesses e desejos de seus próprios integrantes. Nesta direção, apontaram
Francisco Muniz e Lamartine de Oliveira, sustentando que “a categoria do interesse familiar
não exige ‘uma concepção orgânica e supra-individual de família’, porque o interesse comum
não é um interesse superior, mas, sim, interesse essencial da pessoa que se realiza no interior
da família”. 216

Admitindo tal entendimento como premissa, o crime de bigamia seria, na atualidade, um


instituto penal a proteger um único bem jurídico — a fé pública — e não um crime contra o
casamento. Logo, a descriminalização da conduta se impõe, pois, suficientes para tutela da fé

213
Assim dispunham as Ordenações Filipinas no Livro V, Título XIX, item 3: “E per este mesmo modo se proceda contra
qualquer mulher casada, que for por parte da Justiça acusada por se dizer que tendo o marido vivo, se foi casar com outro.
Porque em este caso, sendo o casamento verdadeiramente provado, e do segundo havendo prova somente dos sobreditos
indícios, ou de cada hum delles, a não se podendo provar per verdadeira prova de vista e oitiva das palavras formaes de
Matrimonio, seja mettida a tormentos, para confessar o segundo casamento; e negando, seja degredada per cinco anos para
Castro-Mirin”. [Mantida a grafia do original – ALMEIDA, Cândido Mendes de (Org). Código Philippino ou Ordenações e
Leis do Reino de Portugal. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomathico, 1870. Texto original digitalizado
disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm - consultado em 26 de agosto de 2011].
214
Ao fundamentar acórdão ainda recente, assim pronunciou-se desembargador do Tribunal de Justiça de São
Paulo:“Ressalte-se que a intenção do legislador ao estabelecer a hipótese de incidência penal contida no artigo 235, do
Código Penal, foi proteger a organização da família, especificamente o casamento monogâmico, tido como regra nos países
ocidentais. Tem como elementar a existência formal e vigência de casamento anterior, pois somente o divórcio põe termo ao
vínculo e abre a possibilidade de novo matrimônio lícito. Anote-se que se o agente é separado judicialmente ou de fato,
contudo, não divorciado, será sujeito ativo do crime se, por ventura, casar-se novamente. Assim, consuma-se no momento da
formal manifestação da vontade, pondo em risco o bem jurídico tutelado, previsto no artigo 226, da Constituição Federal: ‘A
família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado’.” (TJ-SP. Apelação Criminal 9107420-43.2002.8.26.0000, Rel.
Des. Figueiredo Gonçalves. 1ª Câmara de Direito Criminal. Data do julgamento: 09/09/2008)
215
FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família – curso de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
p. 51.
216
OLIVEIRA José Lamartine Corrêa; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família – direito matrimonial. Porto
Alegre: Fabris, 1990. p. 16.
79

pública seriam os crimes de falsidade ideológica e de falsidade material de atestado ou


certidão. Na verdade, o crime de bigamia somente é consumado pela prática precedente, pelo
menos, do crime de falsidade ideológica. E, como a jurisprudência já consagrou, não se trata
de concurso de crimes entre estes delitos. 217 Suprimido o crime de bigamia, o delito
subsistiria, como falsidade ideológica ou mesmo, conforme o caso, falsidade material de
certidão. A fé pública continuaria a merecer tutela penal. Não é, porém, o caso de se seguir
tutelando a família monogâmica, pois, a norma penal não alcança mais este escopo em razão
das transformações vivenciadas pela família contemporânea.

Tanto é assim que a família da Constituição pode ser conformada por pessoas solteiras
que vivem em união estável. Se alguém constituir duas uniões estáveis simultâneas, a este
pode ser, moralmente, imputada a pecha de bígamo. Mas, em termos penais, a conduta é
irrelevante, posto que atípica. O crime de bigamia não protege, portanto, as entidades
familiares, mas, sim, a formalidade pública que tem o casamento. As transformações
experimentadas, durante o século XX, e início deste século, foram enormes e a própria
percepção jurídica da família alterou-se profundamente. Mas o Direito Penal continua a
tutelar, pela tipificação da bigamia, uma família cujos marcantes traços há muito foram
esmaecidos pelo tempo. A diversidade de molduras para o enquadramento das famílias, hoje,
não permite a concepção deste crime, que teve seu papel em um sistema que excluía da tutela
jurídica as famílias marginais ao sagrado matrimônio.

Este conjunto de fatores não pode ser desconsiderado. O discurso religioso-jurídico do


casamento monogâmico, no Brasil, desde o período colonial, prestou-se a tutelar a cumulação
patrimonial das famílias abastadas, marginalizando um sem número de núcleos familiares de
fato que se formavam à margem da família reconhecida juridicamente. Apresentados estes
traços fundamentais da genealogia da outra família, expressão cunhada por Fernando Torres-
Londoño, cabe passar à análise da captação jurídica desta realidade social.

217
HABEAS CORPUS – DIREITO PENAL – CRIME DE BIGAMIA E FALSIDADE IDEOLÓGICA – TRANCAMENTO
DA AÇÃO PENAL QUANTO AO DELITO DE BIGAMIA DETERMINADO PELO TRIBUNAL A QUO POR
AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA – IMPOSSIBILIDADE DE SEGUIMENTO DO PROCESSO – CRIME QUANTO À
FIGURA DO CRIME DE FALSIDADE – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. 1. O delito de bigamia exige
para se consumar a precedente falsidade, isto é: a declaração falsa, no processo preliminar de habilitação do segundo
casamento, de que inexiste impedimento legal. 2. Constituindo-se a falsidade ideológica (crime–meio) etapa da realização da
prática do crime de bigamia (crime-fim), não há concurso do crime entre estes delitos. 3. Assim, declarada anteriormente a
atipicidade da conduta do crime de bigamia pela Corte de origem, não há como, na espécie, subsistir a figura delitiva da
falsidade ideológica, em razão do principio da consumação. 4. Ordem concedida para determinar a extensão dos efeitos
quanto ao trancamento da ação penal do crime de bigamia, anteriormente deferido pelo Tribunal a quo, a figura delitiva
precedente da falsidade ideológica. (STJ – HC 39583/MS. 5ª T. Rel. Min. Laurita Vaz. Data do Julgamento: 08.03.2005 – DJ
11.04.2005).
80

2.2 O discurso jurídico sobre o concubinato

A produção doutrinária brasileira manteve-se durante longo período silente sobre o


concubinato. Nunca foi proibido ou tipificado como crime. Ignorado pela legislação, só foi
mencionado, nas Ordenações Filipinas 218 e no Código Civil de 1916 219, em razão das
vedações ao homem casado de doação e de disposição de última vontade em favor da
concubina.
O silêncio do Código Civil de 1916 sobre o concubinato é sublinhado
contemporaneamente. Silvio Rodrigues relembra que “o legislador de 1916 ignora a então
chamada família ilegítima, e as raras menções que faz ao concubinato (CC, arts. 248, IV,
1.177 e 1.719, III, etc.) são apenas com o propósito de proteger a família constituída pelo
casamento, e nunca como reconhecedoras de uma situação de fato digna de amparo”. 220 Antes
de vir a lume a Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, os cursos e manuais de Direito de
Família sequer reservam capítulo para tratar do concubinato. O próprio Silvio Rodrigues
registra que somente introduziu um capítulo intitulado concubinato, na terceira edição de sua
obra, e esclarece, em nota de rodapé, que o fez em razão da “necessidade de focalizar a
questão patrimonial resultante da dissolução do concubinato, cuja importância já se havia
revelado no passado; a matéria ganhou relevo com a publicação da Súmula 380 do Supremo
Tribunal Federal, que permitiu a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum dos
concubinos quando comprovada a sociedade de fato entre eles”.221
Mesmo com a Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, o concubinato não foi
reconhecido enquanto tal, pela jurisprudência. Um dos julgados apontados entre os
precedentes a embasar a Súmula 380 nega reconhecer efeito jurídico ao concubinato. Sustenta
218
No Livro IV, Título LXVI das Ordenações Filipinas, consta: “Da doação, ou venda, feita por homem casado a sua
barregã. Se algum homem casado der a sua barregã alguma cousa móvel, ou de raiz, ou à qualquer outra mulher, com que
tenha carnal afeição, sua mulher poderá revogar e haver para si a cousa, que assi foi dada; e mandamos que seja recebida em
Juizo a demandar a dita cousa sem authoridade e procuração do marido, que a esse tempo seja em poder do marido, quer
apartada delle, e essa cousa que ella assi demandar, queremos que seja sua própria, in solidum, sem seu marido haver em ella
parte, e que possa fazer dela tudo que lhe aprouver, assi e tão perfeitamente como se não fosse casada.” [Mantida a grafia do
original – ALMEIDA, Cândido Mendes de (Org). Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Rio de
Janeiro: Typographia do Instituto Philomathico, 1870. Texto digitalizado disponível
em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm - consultado em 14 de maio de 2011]. O texto prossegue aplicando
a mesma solução no caso de venda ou outro tipo de transferência de bens do homem casado à sua concubina, presumindo
fraude ao casamento.
219
Código Civil de 1916, art. 1.177: “A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou
por seus herdeiros necessários, até 2 (dois) anos depois de dissolvida a sociedade conjugal”. O art. 1.719, do mesmo Código,
também dispunha: “Não podem também ser nomeados herdeiros, nem legatários: (...) III - a concubina do testador casado”. A
Lei 4.121/1962 (Estatuto da Mulher Casada) deu nova redação ao art. 248 do Código de 1916, estabelecendo que: “ A mulher
casada pode livremente: (...) IV - Reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo marido à
concubina (art. 1.177).”
220
RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 6. direito de família. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p . 284.
221
Ibid. p. 283.
81

que gera efeitos a sociedade de fato e não propriamente a família de fato. Assim pronunciou-
se o ministro relator, Victor Nunes, em seu voto: “Como bem pondera a recorrida, o Tribunal
local, apreciando a prova, concluiu pela existência de uma sociedade de fato. ‘Está
completamente provada — disse o Ilustre Des. Melo Júnior — a colaboração da concubina na
formação do patrimônio’ (f. 236). Não é, pois, do concubinato, mas do esforço dos dois
companheiros para a formação do patrimônio comum que resulta o direito da recorrida.” 222
Há um denotado esforço para se realizar justiça, sem conceder ao concubinato, entretanto,
qualquer deferência ou tutela jurídica.
Ainda que se reconheça ter a Súmula 380 constituído um primeiro e importante passo
para o reconhecimento das famílias sem casamento, ela ainda condena o concubinato à
invisibilidade jurídica. Ele não existe, ainda, juridicamente. O que o direito entrevê é, no
máximo, o esforço comum entre duas pessoas, sob o nomem iuris de sociedade de fato,
desprezando totalmente a razão de ser da relação estabelecida entre elas.
Será a partir da Súmula 380 que se esboçará a construção doutrinária sobre o
concubinato. Necessário, neste passo, o registro de duas observações. Primeira. O emprego
da palavra concubinato não tem, aqui, qualquer conotação depreciativa. Seria anacrônica a
referência à união estável para momento histórico no qual o termo não era ainda consagrado.
Segunda. A análise da construção do discurso jurídico sobre o concubinato evidencia o
propósito de ocultamento de uma família de fato. Este tema ganha importância à medida que
o princípio da monogamia tem, também, o potencial de condenar à invisibilidade jurídica
famílias que, de fato, são presentes e reconhecidas no meio social.

2.2.1 Concubinato: a negação jurídica de uma evidência sociológica

Como já referido, é possível afirmar que a primeira fase do tratamento do concubinato


pela legislação, pela doutrina e pela jurisprudência brasileiras é caracterizada pela negação. O
fato social está inserido no campo da irrelevância jurídica. No máximo, comparece no marco
da ilicitude, como fator caracterizador de nulidade de doação ou de deixa testamentária, por
homem casado à sua companheira.
Apesar do concubinato constituir fato sociologicamente relevante, retratado
abundantemente na literatura bem como nos estudos sociológicos e históricos sobre a

222
STF - Recurso Extraordinário 49.064 MG, Rel. Min. Victor Nunes. DJ. 18/1/1962. Note-se que, no caso deste julgado, o
argumento do recorrente não era desprezível. Do relatório consta que o recorrente alega não ser aplicável à espécie o art.
1.366 do Código Civil de 1916 que corresponde ao art. 303 do Código Comercial, porque não havia entre os companheiros
qualquer intuito de lucro, logo, não se poderia falar de sociedade de fato entre eles, nos moldes de direito obrigacional.
82

configuração do povo brasileiro, no âmbito do discurso jurídico, durante longo tempo, existiu
apenas no avesso de um silêncio eloquente.
No Esboço de Código Civil de Teixeira de Freitas, certa forma de concubinato constituía
uma das causas autorizadoras do divórcio.223 Assim dispunha o art. 1.386 do Esboço: “Não
haverá outras causas que autorizem a intentar a ação de divórcio, senão as seguintes: 1º.
Adultério da mulher, quaisquer que sejam as circunstâncias, e o do marido, que tiver
concubina teúda e manteúda (art. 1.304)”.224 Vale dizer, o simples adultério do marido não
daria causa a pedido de divórcio pela esposa, mas, se ele tivesse e mantivesse uma concubina,
configurada, aí sim, estaria circunstância ensejadora do rompimento da sociedade conjugal.
O Código Civil de 1916 ignora o concubinato, com algumas exceções que visam extrair
do fato consequências para nulidades de doações ou deixas testamentárias. Tanto assim que,
em seus comentários, Clóvis Beviláqua assevera que o “direito de família é o complexo das
normas que regulam a celebração do casamento, sua validade e os efeitos que dele resultam,
as relações pessoais e econômicas da sociedade conjugal, a dissolução desta, as relações entre
pais e filhos, o vínculo de parentesco e os institutos complementares da tutela e da
curatela.”225 E, por outro lado, conceitua o casamento afirmando ser ele “um contrato bilateral
e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissociavelmente, legalizando por ele
suas relações sexuais, estabelecendo a mais estreita comunhão de vida e de interesses, e
comprometendo-se a criar e educar a prole, que de ambos nascer”. 226 Não há qualquer
referência ao concubinato.
O primeiro efeito jurídico positivo reconhecido ao concubinato não diz respeito a ele
próprio — isto é, a este tipo de conjugalidade sem casamento — mas, sim, à filiação dele
decorrente. Caio Mario da Silva Pereira, em artigo estampado na Revista Forense de 1960,
apresenta revisão bibliográfica sobre o tema até aquela época publicada no Brasil. Quase a
totalidade dos textos citados refere-se ao tema do concubinato por via transversa, ou seja,
vinculado à questão da investigação da paternidade.227 Dito de outra forma, o concubinato só
era tematizado enquanto meio de prova para fixação da paternidade.

223
No Projeto de Código de Teixeira de Freitas, o divórcio não implicava a dissolução do vínculo matrimonial. Era o
equivalente ao desquite ou separação judicial, sendo sua decretação de competência do juízo eclesiástico.
224
FREITAS, Augusto Teixeira. Esboço do Código Civil. Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 1983. p. 297.
225
BEVILÁQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1956. p. 6.
226
Id. Direito de Família. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943. p. 34.
227
Entre os vários autores citados por Pereira estão: Arnoldo Medeiros da Fonseca: "Investigação de Paternidade"; Soares de
Faria: "Investigação de Paternidade Ilegítima"; Sílvio Portugal: "Investigação de Paternidade"; Orlando Gomes e Nelson
Carneiro: "Do Reconhecimento dos Filhos Adulterinos", entre outros (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Concubinato – sua
moderna conceituação. Revista Forense, v. 190, a. 57, jul/ago 1960. (p. 13-17). p. 15).
83

Como em meados do século passado nem se cogitava da possibilidade da prova pericial


genética por meio do exame de DNA, a prova da existência do concubinato não trazia em si
presunção pater is est, própria do casamento, mas consubstanciava a praesumptio facti das
relações sexuais, pois, como observa Caio Mário da Silva Pereira, “não é crível que duas
pessoas de sexos diferentes se encontrem com frequência, admitam a notoriedade de sua
união, apenas para se olharem nos olhos”. 228
Tendo-se tornado o concubinato meio de prova fundamental nas ações de investigação
de paternidade, tal função condicionou o estabelecimento dos requisitos de seu
reconhecimento. Ponderando as tendências da doutrina e da jurisprudência, em relação ao
conceito de concubinato, Caio Mario da Silva Pereira, no início dos anos de 1960, reduziu a
três os requisitos fundamentais para caracterização do concubinato: (i) continuidade das
relações; (ii) notoriedade; (iii) fidelidade da mulher.
A funcionalização do concubinato à investigação de paternidade, àquele tempo, é
indiscutível. Daí a importância que alcançou a exigência da comprovação da fidelidade da
mulher. Caio Mario da Silva Pereira indica que “Arnoldo Medeiros da Fonseca, em farta
pesquisa, mostra não só que o Supremo Tribunal Federal, de maneira geral, não exige a
aparência de casamento, contentando-se com a estabilidade da ligação e a possibilidade de
conhecimento dela e aparente fidelidade da concubina ao seu amante”229 (Grifos no original).
Fácil é concluir que a temática da fidelidade da concubina, posta em juízo, abriu vasto campo
a imputações de ordem moralista, a macular a reputação da mulher, com o fito de afastar o
reconhecimento judicial da paternidade. Nestas razões, vinculadas à questão probatória da
paternidade, encontra-se a gênese da fixação na fidelidade feminina, tão reiterada pela
dogmática civilista brasileira para a caracterização do concubinato.
Vê-se, pois, do reconhecimento do concubinato não decorre, à época, a configuração de
uma família merecedora de amparo estatal. O reconhecimento subjacente, isto é, o da
paternidade é o que mais importa. Nas linhas não escritas nos processos de investigação de
paternidade, subliminarmente, comparece a dominação masculina no controle de qualidade de
sua linhagem. A concubina permanece na penumbra, é invisível ao sistema jurídico. Só é vista
na provisória condição de reprodutora, isto é, na condição de meio para a prova do fim — a
filiação — daí a importância da fidelidade ao seu amante, designativo utilizado por Caio
Mario da Silva Pereira, em 1960.

228
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Concubinato – sua moderna conceituação... p. 15.
229
Ibid. p. 15.
84

A invisibilidade da concubina é algo inclusive desejado e aplaudido pelas


conveniências sociais. Ao tratar dos requisitos caracterizadores do concubinato, Caio Mario
da Silva Pereira ressalva que a notoriedade, segundo a moderna doutrina, não carece ser tão
notória...230 O que se revela como problema, atualmente, é que a invisibilidade por força das
conveniências sociais, de cunho notadamente moralista, seja albergada pelo sistema jurídico,
com negação de reconhecimento de direitos fundamentais, especialmente, da mulher que vive
relação de união estável.
Nesta mesma linha de negação jurídica de reconhecimento do concubinato como
relação familiar, segue Pontes de Miranda. Ao tratar da vida em comum, ainda que admita
que o concubinato possa ser suscetível de estabelecer relações de ordem jurídica, Pontes de
Miranda sublinha que “tais comunhões não são de direito de família” e mais adiante acresce:
“Quem não é cônjuge não se torna cônjuge pelo fato de ser tratado como tal. Ser criado como
filho não é ser filho. Ter bens em comum com o cônjuge não é estar sob o regime matrimonial
da comunhão. (...) As tentativas de dilação do círculo familiar fracassam sempre.” 231 Em
outras palavras, não constitui família o que não é previamente definido como tal pela ordem
jurídica.
Pontes de Miranda, ao abordar o conceito de família, reforça ainda mais a concepção de
que a família com existência jurídica distingue-se da família sociológica. Ressalta que a
família não é definida no Código Civil de 1916, mas que é referida no art. 163 da
Constituição Federal de 1946 como aquela constituída pelo casamento de vínculo
indissolúvel, e como tal merecedora da proteção especial do Estado. E pondera: “Cumpre,
contudo, notar-se que não é a algo de concreto que se refere o texto constitucional, e sim à
instituição social da família, o que vale por diretriz programática da Constituição de 1946.” 232
(grifo no original) A negação da concretude social da família é admitida como um dado talvez
230
“E é claro, também, que a notoriedade a que alude a doutrina francesa há de ser recebida com certa dose de relatividade
bem marcada, em função da situação pessoal dos concubinos. Um homem casado, ou mesmo solteiro, portador de marcada
condição social, não pode passear com a amante por toda parte, desafiando o meio em que vive e trabalha. Uma mulher, que
cumpre profissão fora do lar, que exerce atividade em convivência com um grupo, que preenche função pública, se não se
conserva hoje marcada pela imposição de uma abstinência severa, tem, entretanto, os cuidados de uma reserva zelosa de seu
prestígio e do respeito que requer o meio onde labuta. Em casos que tais não se pode exigir, como elementar do concubinato,
nem a vida quase-conjugal, nem a notoriedade das relações (notoriedade incompatível com o recato e a discrição), substituída
pela continuidade das relações e pela fidelidade. Compreendendo-o muito bem, Cunha Gonçalves alude a que a ligação
concubinária há de ser notória, porém pode ser discreta, situações de aparente incompossibilidade (sic), que ele procura
conciliar, contentando-se em que o conhecimento ou divulgação se faça dentro de um círculo mais restrito, o dos amigos, o
das pessoas da íntima relação de ambos, o dos vizinhos da concubina, que poderão atestar das visitas frequentes do amante,
suas entradas e saídas, sua conduta para com o filho (....). Discrição seria então um meio termo entre a publicidade ou
notoriedade franca e o segredo, as relações sigilares e secretas”. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Concubinato – sua
moderna conceituação... p. 16)
231
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo VII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1956. p.
193.
232
Id. Tratado de direito privado. Tomo VII... p. 174.
85

típico da juridicidade e não como um problema que deveria confrontá-la permanentemente.


Em todo seu Tratado de Direito Civil, Pontes de Miranda dedica apenas um parágrafo ao
concubinato para sublinhar que “o concubinato não constitui, no direito brasileiro, instituição
de direito de família”. 233
A percepção da família somente a partir da formalidade do casamento impôs, como
decorrência lógica, o absoluto silêncio a respeito do concubinato para os tratados, cursos e
manuais de direito de família até o início da década de 1960. Realizados os excertos
generalizantes sobre a origem da família, a título preambular, de regra, todos esses textos
passam a abordar, imediatamente, o tema da existência e validade do casamento, sem dedicar
qualquer espaço ao concubinato.
O silêncio sobre os efeitos jurídicos positivos do concubinato só começa a ser quebrado
pela jurisprudência efetivamente em meados da década de 1950.234 No início dos anos de
1960, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal começa a firmar-se no sentido da
aplicação da analogia com a sociedade de fato, para determinar a partição de haveres entre os
concubinos.235 Em 1963, o Supremo Tribunal Federal aprova a Súmula 35, dispondo que “em

233
Segue a transcrição de todo o parágrafo por ser deveras ilustrativo: “CONCUBINATO. – O concubinato não constitui, no
direito brasileiro, instituição de direito de família. A maternidade e a paternidade ilegítimas o são. Isto não quer dizer que o
direito de família e outros ramos do direito civil não se interessam pelo fato de existir, socialmente, o concubinato. Assim,
serve ele de base à reivindicação dos bens comuns doados ou transferidos pelo marido à concubina (Código Civil, arts. 248,
1.177); à ação de investigação da paternidade, nos casos de art. 363, I; etc. E a legislação social o vê.” (MIRANDA,
Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo VII... p. 174) Interessante notar que o próprio Pontes de
Miranda vale-se da metáfora da visibilidade e invisibilidade do concubinato, posto que, segundo seu entendimento, para a
legislação social ele é um fenômeno juridicamente visível.
234
Acórdão do STF de 1955, nos termos do voto do Relator, reconheceu efeito ao concubinato estabelecido entre Maria
Virgínia de Jesus e Anselmo Cardozo de Carvalho, que em união viveram de 1928 a 1947, todavia, manteve a decisão do
Tribunal de Justiça da Bahia, visto que, para dar provimento ao Recurso Extraordinário indispensável seria a reapreciação da
prova. Assim, em seu voto, pronunciou-se o Min. Afrânio Antônio da Costa: “A simples leitura dos autos deixa claro a
impressão de que a prova da contribuição da senhora em prol do patrimônio do falecido é de uma clareza meridiana.
Infelizmente, assim não entendeu o Tribunal que é soberano na apreciação da prova.” Portanto, apesar de reconhecer a
contribuição da concubina para a formação do patrimônio do companheiro falecido, o STF não conheceu do Recurso
Extraordinário em razão da limitação de alçada imposta pela Constituição. Todavia, a declaração de voto do Min. Mário
Guimarães é reveladora de postura bem mais conservadora, que, certamente, ainda prevalecia no Supremo Tribunal Federal,
nos anos de 1950. Seu entendimento foi explicitado nos seguintes termos: “Também não conheço dos recursos. Nem
mandaria pagar coisa alguma, porque ela não é uma assalariada — e isso mesmo reconheceu o acórdão — e como
comunheira, não tem direito à comunhão, porque não é casada. Mas, se pelo trabalho de ambos, eles lograram alguns bens,
então, o que deveria ter feito era a apuração de uma sociedade de fato e precisaria saber com quanto capital entrou cada um
dos sócios. Serviços de concubinato, eu, habitualmente, não os mando pagar. Tais serviços não merecem remuneração
alguma.” (STF - Recurso Extraordinário 26.755 BA, Rel. Min. Afrânio Antônio da Costa. J. 23.06.1955)
235
Em 1960, acórdão, também, da lavra do Min. Afrânio Antônio da Costa, foi ementado nos seguintes termos:
“CONCUBINATO: esforço comum, por falecimento de um dos concubinos metade dos bens pertence ao outro.” Tratava-se
de Recurso Extraordinário de acórdão proferido em sede de ação rescisória. O acórdão do Tribunal Regional que se buscava
rescindir havia reconhecido à concubina viúva direito à metade dos bens que, por esforço conjunto, foram amealhados
durante 20 anos de vida em comum. O fundamento alegado para o Recurso Extraordinário era de que o acórdão rescindendo
ofenderia o art. 163 da Constituição de 1946, que assegurava proteção especial à família. Sobre a questão constitucional ,
pronunciou-se o Min. Relator em seu voto: “A citação do texto constitucional que diz respeito à família não se ajusta à
hipótese, porque uma coisa é impedir o locupletamento de alguém com o esforço de outrem, e outra coisa é a proteção à
família”. (STF - Recurso Extraordinário 40.586 SP, Rel. Min. Afrânio Antônio da Costa. J. 11.12.1959). No caso em apreço a
recorrente era filha do companheiro falecido que buscava rescindir o acórdão que assegurou a meação à companheira de seu
pai. Ainda que a fundamentação do acórdão do STF não reconheça qualquer sombra de família no concubinato — o citado
art. 163 da Constituição Federal estabelecia: “A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à
86

caso de acidente do trabalho ou de transporte, a concubina tem direito de ser indenizada pela
morte do amásio, se entre eles não havia impedimento para o matrimônio”. Em 1964, é
editada a Súmula 380, já referida e considerada anteriormente, fixando que “comprovada a
existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a
partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. Na mesma data é, também, aprovada
a Súmula 382, reconhecendo que “a vida em comum sob o mesmo teto, ‘more uxorio’, não é
indispensável à caracterização do concubinato”. Também, ainda no ano de 1964, é aprovada a
Súmula 447, que reconhece a inexistência de nulidade em razão de presunção de disposição
testamentária por meio de interposta pessoa, quando é beneficiário o então denominado “filho
adulterino”. Assim, dispôs a referida Súmula: “É válida a disposição testamentária em favor
de filho adulterino do testador com sua concubina”. Quebrado estava, efetivamente, o silêncio
da jurisprudência em relação a efeitos jurídicos reconhecidos ao concubinato.
Na doutrina, o silêncio é rompido com a obra de Edgard de Moura Bittencourt, O
Concubinato no Direito, cuja primeira edição, apresentada em dois volumes, data de 1961.236
Antes deste trabalho mais expressivo e referencial no tratamento da matéria atinente ao
concubinato, foram publicados apenas artigos esparsos como o de Caio Mário da Silva
Pereira, Concubinato: sua moderna conceituação,237 ou o de Alípio Silveira, Do concubinato
e seus efeitos jurídicos.238
Bittencourt esclarece que o objetivo de sua monografia é a “conceituação do
concubinato capaz de operar efeitos jurídicos positivos”. 239 Ele rechaça a ideia de se buscar o

proteção especial do Estado” — não poderia prevalecer o enriquecimento sem causa. Nesta direção é que se firmou
entendimento que veio a consolidar-se na Súmula 380.
236
BITTENCOURT, Edgard de Moura. O concubinato no direito. 2 v. Rio de Janeiro: Alba, 1961. Bittencourt mesmo
assevera: “Até o século passado e mesmo no atual, antes do desencadeamento dos rumos sociais e trabalhistas do direito, as
leis dos diversos povos ou silenciavam sobre o concubinato ou a ele se referiam para reprimi-lo, por qualquer forma”.
(BITTENCOURT, Edgard de Moura. O concubinato no direito. v. I. Rio de Janeiro: Alba, 1961. p. 29). Ainda que seja
verdadeira a observação de Bittencourt, não se pode esquecer que as Ordenações Filipinas previam o direito a meação para
aqueles que, vivendo more uxorio, não lograssem provar o estado de casado. No Livro IV, Título XLVI, §§ 1º e 2º
encontram-se as seguintes disposições: “Todos os casamentos feitos em nosso Reino e senhorios se entendem feitos por Carta
de ametade; salvo quando entre as partes outra cousa for acordada e contratada, porque então se guardará o que entre elles for
contractado. Outrossim, serão meeiros, provando que estiveram em casa teúda e manteúda, ou em casa de seu pai, ou em
outra, em pública voz e fama de marido e mulher por tanto tempo, que, segundo o Direito, baste para presumir Matrimônio
entre eles, posto se não provem as palavras de presente.” (ALMEIDA, Cândido Mendes de (org) Ordenações Filipinas, vols.
1 a 5. Rio de Janeiro. 1870, p. 832-834. Texto digitalizado disponível em
http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm. Consulta realizada em 18/06/2011) . Note-se, portanto, que não se trata
propriamente de reconhecimento de efeito jurídico ao concubinato, mas, antes, de prova de posse estado de casado, para
aqueles que não conseguem provar a celebração do casamento perante a igreja.
237
Em 1960, Caio Mário da Silva Pereira escreveu artigo que foi republicado em edição comemorativa da Revista Forense:
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Concubinato: sua moderna conceituação. Revista Forense: comemorativa - 100 anos. Rio
de Janeiro: Forense, 2007. p. 151-160, v. 4.
238
SILVEIRA, Alípio. Do concubinato e seus efeitos jurídicos. In: Archivo Judiciario. Suplemento, v. 61, p. 63-74, jan.
1942.
239
BITTENCOURT, Edgard de Moura. O concubinato no direito. v. I... p. 54.
87

sentido e as raízes do concubinato contemporâneo no direito romano ou na cultura grega, ou


ainda na Idade Média. 240 Pretendeu, antes, encarar o concubinato, à época em que escreveu,
como “expressivo fato social, a demandar delicadas soluções jurídicas”. 241 Bittencourt captou
perfeitamente o desvio que a abordagem jurídica do concubinato provocava. O tratamento
meramente punitivo do concubinato desresponsabilizava o homem e vitimava a mulher. O
homem que não quisesse sobre si as responsabilidades que o Estado impunha ao casamento
— algumas até de natureza penal — mas que não dispensasse as benesses da vida conjugal,
amancebava-se. Todavia, quando lhe fosse conveniente, rompia a união. “Sai, então,
vitorioso, em nome da moral, o agente que, pensando bem, deveria sofrer o maior castigo. E
se sacrifica a verdadeira vítima”.242
Ainda que a obra de Bittencourt demande especial análise pelo que representa em
termos de inédita abordagem do concubinato, no Brasil, à época em que foi escrita — face aos
limites e objetivos propostos nesta tese — cumpre apenas apontar alguns temas tratados pelo
autor que, por sua pertinência, ainda são atuais e instigantes. Consagra o entendimento
segundo o qual o concubinato é um fato social multifacetário,243 que não deve ter o seu
conceito reduzido à determinada fronteira, de tal sorte que podem ser concubinato a união dos
que vivem em posse de estado de casado, mas não têm como provar a regularidade da
celebração do casamento, passando por aqueles que celebraram apenas o casamento religioso
sem efeito civil, os que vivem em longa e reconhecida união estável more uxorio, até a união
adulterina paralela ao casamento. Tudo é concubinato.
Esta percepção de Bittencourt é coerente com o atual princípio constitucional da
pluralidade de entidades familiares. Característica fundamental das uniões informais está
exatamente em sua plasticidade. Decorrência necessária desta constatação será o
reconhecimento de que regras precisas não podem ser fixadas como é comum para o
casamento. Princípios e cláusulas gerais melhor se ajustam para o tratamento de situações
jurídicas subjetivas que não têm qualquer modelo prefigurado em lei e que se conformam e se
estruturam em razão de fatores sociais e conjunturais específicos.

240
“Que interesse oferecerá, por exemplo, o próprio Direito Romano, quando no Digesto consigna cinco leis sobre o
concubinato, chegando a permitir que o chefe de uma província pudesse ter por concubina uma mulher natural dela? Que
importa, outrossim, que tão arraigado estivesse o concubinato na Idade Média que, sem embargo de sua aversão ao instituto,
o cristianismo o tenha tolerado? Que importa, finalmente, que entre os gregos, a concubinagem não acarretasse qualquer
desconsideração e que fosse, em certa medida, reconhecida pelas leis?” (BITTENCOURT, Edgard de Moura. O
concubinato no direito. v. I... p. 55 e 56)
241
BITTENCOURT, Edgard de Moura. O concubinato no direito. v. I... p. 56.
242
Ibid. p. 57
243
Ibid. p. 63.
88

Além de conceber o concubinato como fato social multifacetário, Bittencourt entende


ser ele um fato jurídico, isto é, “como acontecimento ao qual o corpo jurídico positivo
concede consequências jurídicas”. 244 Extrai fundamento para assumir tal posicionamento de
precedentes da jurisprudência pátria que, ao interpretar a Lei de Acidentes do Trabalho,245
reconheceu à companheira — inclusive de homem casado, mas separado de fato — o direito
de receber a cobertura securitária em razão de morte do companheiro por acidente de trabalho.
A jurisprudência acabou por consolidar o entendimento de que a expressão “pessoa a quem a
subsistência provesse” poderia ser aplicada à concubina. Na esteira da jurisprudência, o
Decreto 24.637, de 10 de julho de 1934, fez expressa referência à companheira nos casos da
cobertura securitária. 246 A legislação posterior não mais retrocedeu em relação a esta garantia
dada à companheira. Note-se que para os efeitos positivos decorrentes do concubinato jamais
é utilizada a palavra concubina, mas, sim, companheira. Bittencourt reconhece a importância
que teve a Lei de Acidentes do Trabalho para o tratamento do concubinato no Brasil. Assinala
que foram os juízes, em contato cotidiano com a realidade social, que abrandaram a norma,
mas, a um só tempo, abrandaram-se eles próprios, para compreender o sentido mais
humanitário do direito, que se revela tocante no campo da infortunística. Nesta área, os
problemas humanos ganham a visão ampliada. 247
Em relação aos benefícios previdenciários, reconhece Bittencourt que o exercício
hermenêutico da jurisprudência, para não deixar ao desamparo a companheira em razão da
morte de seu consorte, foi ainda mais exigente e longo. O legislador demorou a reconhecer,
expressamente, à companheira o direito ao recebimento de pensão por morte daquele que com
ela vivia em estável união. A chamada concubina recebeu o amparo da jurisprudência em
razão da evocação constante de um direito social. Bittencourt cita voto de Aguiar Dias,
proferido no antigo Tribunal Federal de Recursos, nos seguintes termos:

244
BITTENCOURT, Edgard de Moura. O concubinato no direito. v. I, p. 64.
245
O Decreto 3.724, de 15 de janeiro de 1919, chamada Lei de Acidentes do Trabalho, no § 3º do art. 7º dispunha “Na falta
de cônjuge, ou estando este divorciado por culpa sua ou voluntariamente separado, e não havendo herdeiros necessários, se a
vítima deixar pessoas cuja subsistência provesse, a essas pessoas deverá ser paga a indenização, reduzida neste caso à soma
igual ao salário de um ano”.
246
O art. 20, § 3º do Decreto 24.637, de 10 de julho de 1934, dispôs: “Em caso de morte, a indenização consistirá numa soma
calculada entre o máximo de três anos e o mínimo de um ano de salário da vítima, e, salva a hipótese do art. 23, será paga de
uma só vez, na forma dos parágrafos seguintes. (...) § 4º Para os efeitos desta lei, equiparam-se aos legítimos os filhos
naturais e à esposa a companheira mantida pela vítima, que hajam sido declarados na carteira profissional”.
247
BITTENCOURT, Edgard de Moura. O concubinato no direito. v. II. Rio de Janeiro: Alba, 1961. p. 211. Ao tempo em
que escreveu Bittencourt a questão da culpa na dissolução do vínculo matrimonial ainda tinha consequências relevantes. O
cônjuge supérstite desquitado somente era excluído da condição de beneficiário do seguro acidentário se, voluntariamente,
houvesse abandonado o lar ou tivesse sido considerado culpado na ação de desquite. Tanto é assim que pondera Edgard de
Moura Bittencourt: “Não é possível, portanto, deixar de atender o largo alcance da Lei de Acidentes do Trabalho e a extensão
de sua exegese, ao serem examinadas as pretensões da companheira. A amplitude só deverá encontrar obstáculo nos
interesses da esposa inocente”. (BITTENCOURT, Edgard de Moura. O concubinato no direito. v. II.. p. 212.)
89

O legislador brasileiro, atendendo a imperativo de evolução social, consagrou de há muito a proteção


à concubina, isto porque, nos meios mais humildes, o concubinato transformou-se em verdadeiro
casamento. Esforços de educação, tanto por parte de autoridades civis como das religiosas, não têm
conseguido remover essa irregularidade da nossa vida social e o juiz tem que lidar com os dados
sociais e não apegar-se a teorias. A justificação do estado de casada não prova casamento. Se a
justificante, ela própria, reconhece que nunca houve casamento, não pode com a justificação suprir a
prova do casamento, a que ela mesma se reporta. Eu, como disse, lidando com os fatos sociais, não
posso deixar de conceder em parte, o mandado, reconhecendo que é situação sólida, não obstante os
preconceitos existentes, é sólida nas classes mais humildes, e, para não ser indiscreto, em outras
classes, o concubinato existe com fôros de casamento.248

Não raro, questões de ordem moral tornavam-se determinantes para a concessão do


benefício à companheira, mesmo que esta provasse a dependência econômica do segurado
falecido.249 Somente com a Lei Orgânica da Previdência Social de 1960, que revogou os
regimentos anteriores, é que surge previsão expressa da possibilidade de inscrição da
companheira como dependente do segurado.
Do trabalho de Edgard de Moura Bittencourt, cabe destacar também a crítica que já,
antes da edição da Súmula 380, fez à teoria da sociedade de fato, para justificar a proteção à
concubina. Considera tratar-se antes o concubinato de uma sociedade civil de natureza
especial. Embora, ele próprio, entendendo que “o concubinato é um estado”,250 sustenta que a
sociedade não se presume do mesmo. Para o autor, “não nasce a sociedade, como no
matrimônio, apenas pelo fato do concubinato; não cria o concubinato, por si só, nenhuma
comunhão de bens ou de interesses”. 251 Acompanhando a jurisprudência dos tribunais
brasileiros da época, afirma que a sociedade e comunhão de bens deve ser provada.
Por fim, especialmente, tendo em conta linha nuclear desta tese, merece destaque o
reconhecimento de efeitos jurídicos positivos do concubinato adulterino observados pela
análise atenta de Bittencourt. Ele bem percebeu que a Lei de Acidentes do Trabalho abriu
caminho para o reconhecimento de efeitos jurídicos ao concubinato adulterino, naqueles casos
em que o desquite ou a separação de fato se deu por vontade da esposa legítima ou por culpa
desta. Ressalta Bittencourt ser delicada a tarefa do juiz que deverá investigar e decidir com
base na perquirição da culpa pelo desfazimento da sociedade conjugal. O embate entre esposa

248
BITTENCOURT, Edgard de Moura. O concubinato no direito. v. II, p. 235 e 236.
249
Bittencourt sinaliza que não raro, mesmo a antiga jurisprudência, mais favorável à concubina, não deixava “de examinar
os aspectos como a união concubinária se estabeleceu, sobretudo em relação à esposa legítima separada. O Tribunal Federal
de Recursos acolheu os seguintes fundamentos de sentença recorrida ao recusar razão a uma concubina: ‘Não houve, na
espécie, desquite judicial e a esposa é pobre, tendo que viver de lavar roupa... Mas, pelo abandono em que a deixou o marido
para sustentar a amante, achou o réu que ela perderia o direito à pensão porque não vivia na dependência econômica do de
cujus. Embora, em direito social, a dependência econômica seja uma situação de fato e não jurídica, não pode, todavia,
revogar as obrigações do marido, porque seria aplaudir atitude pouco abonadora deste’.” (BITTENCOURT, Edgard de
Moura. O concubinato no direito. v. II.. p. 237-238).
250
BITTENCOURT, op. cit., p. 275.
251
BITTENCOURT, op. cit., p. 277 e 278.
90

e concubina revela-se espinhoso porque a lei é obscura em relação ao ônus da prova da culpa
ou da inocência. Fato é que o mencionado autor evita referência a concubinato puro ou
impuro.

2.2.2 Da família sem casamento: entre a pureza e a impureza

Ao se construir reflexão autônoma sobre a família sem casamento, os juristas brasileiros


começaram a distinguir entre concubinato puro e impuro. Os precedentes que constituíram
base para a Súmula 380 não reconhecem efeito ao concubinato, mas, sim, à sociedade de fato
a ele subjacente. Logo, se para o ordenamento jurídico da época não se tratava de família, e a
tutela jurídica prestada era, antes e tão somente, a uma dada sociedade de fato, não haveria
razão para se cogitar da pureza e da impureza da referida relação.
A analogia com a sociedade de fato era ambígua e contraditória. Negava-se
veementemente a existência de família, eram reconhecidos direitos tão somente aos partícipes
do concubinato puro. Se na sociedade de fato é que o olhar jurídico punha sua atenção, em
nada deveriam importar os fatores de natureza tipicamente familiar. Mas, em verdade, não foi
o que ocorreu. A própria terminologia empregada — puro e impuro — denuncia a natureza do
tratamento jurídico dada às uniões sem casamento.
A distinção entre pureza e impureza da relação concubinária, na dicção da doutrina que
se formulou à época, além dos impedimentos para o casamento, recaía fundamentalmente na
verificação da fidelidade da mulher. Mesmo em edições recentes da obra de Sílvio Rodrigues
foi mantido o seguinte conceito de concubinato: “a união do homem e da mulher, fora do
matrimônio, de caráter estável, mais ou menos prolongada, para o fim da satisfação sexual,
assistência mútua e dos filhos comuns e que implique uma presumida fidelidade da mulher ao
homem”. 252 Ele entende que a fidelidade da mulher é elemento inafastável por duas razões: a
evidência do propósito da vida em comum e a preservação da presunção pater is est em
relação aos filhos que eventualmente venha a gerar durante o período da relação mantida com
o companheiro.
Este requisito da necessária fidelidade da mulher ao homem para caracterização da
pureza do concubinato, e, consequentemente, para a configuração da atual união estável, é por
Silvio Rodrigues ressaltado, pois, no seu entender, “dentre os vários elementos capazes de
configurar a união estável, o que, realmente, parece fundamental para esse fim é a presumida

252
RODRIGUES, Silvio. Direito civil.... p. 287.
91

fidelidade da mulher ao homem”. 253 Surpreende que concepção tão desconectada da


principiologia constitucional, que molda o Direito de Família contemporâneo, tenha sido
mantida em edições da obra de Silvio Rodrigues posteriores ao ano de 1988.
Esta visão em relação à necessária fidelidade da mulher ao homem, para caracterização
do concubinato, é compartilhada por diversos autores que trataram do tema antes da
Constituição de 1988. Luiz Pinto Ferreira define o concubinato como “a união estável e
prolongada de homem com mulher, vivendo ou não sob o mesmo teto, sem vínculo pelos
laços do casamento, revestindo-se, porém, tal união, necessariamente, de algum requisito,
como a notoriedade, fidelidade da mulher e continuidade de relacionamento sexual.” 254 Sem
qualquer constrangimento, a doutrina consagrou a fidelidade unilateral da mulher como
elemento essencial à configuração do concubinato dito puro.
Em termos de sobrecarga posta sobre a concubina, merece, também, especial
consideração a caracterização do concubinato puro formulada por Antônio Chaves. Segundo o
referido autor, são cinco os elementos que, em conjunto, configuram o concubinato puro. O
primeiro recai fundamentalmente sobre o papel da mulher: “união fiel, com dedicação
recíproca e colaboração da mulher no sustento do lar, na sua função natural de administração
e de provedora, não como mera fonte de disposição e de despesas.” 255 Sobressaem a
fidelidade e o fato de que a mulher não pode ser tão somente beneficiária da manutenção
masculina. Para constituir-se o concubinato puro, a concubina deve assumir a função natural
esperada das mulheres, isto é, a de administração e provisão. Em segundo lugar, Chaves
aponta a notoriedade, no sentido de que a manutenção de laços íntimos deve ser ostensiva. O
terceiro elemento caracterizador do concubinato puro seria a duração relativamente
prolongada. O quarto diz respeito à exigência de que “nenhum dos parceiros esteja vinculado
por matrimônio válido, e até mesmo, por outro liame de barregania, e que não se trate de
união incestuosa”.256 Logo, o conceito de concubinato puro repulsa, até mesmo, a duplicidade
de concubinatos, bem como a união entre pessoas que estão impedidas de se casarem em
razão do grau de parentesco. Por fim, como último requisito, indica a inexistência de
compromissos recíprocos, isto é, a inexistência do casamento.
Ao tratar de distinguir entre concubinato puro e impuro, Álvaro Villaça de Azevedo
indica que, comumente, a palavra companheira presta-se a designar “a concubina, no

253
RODRIGUES, Silvio. Direito civil.... p. 287.
254
FERREIRA, Luiz Pinto. Investigação de paternidade, concubinato e alimentos. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 113.
255
CHAVES, Antônio. Lições de direito civil: direito de família. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. p. 12.
256
Ibid. p. 12.
92

concubinato puro, e o vocábulo concubina, quando da união impura”.257 O concubinato


impuro ou concubinagem, segundo Azevedo, ao contrário do puro, não deve merecer nenhum
reconhecimento dos órgãos públicos, nem da sociedade, dele não surtindo qualquer efeito,
salvo para o caso do concubino de boa-fé, como ocorre, também, no casamento putativo, para
evitar o enriquecimento sem causa. 258 Os critérios de distinção e de exclusão de juridicidade
para o fato social reforçam a condição de invisibilidade a que são relegadas pessoas que
vivem situação subjetiva existencial que não se conforma à moldura jurídica previamente
formatada.
A distinção entre concubinato puro e impuro, com denotada carga moralista, impõe o
estabelecimento de lugares de não-direito, de desamparo, especialmente, à mulher, a quem
desde as construções mitológicas é imputada a culpa pela impureza, pelo pecado. Como bem
percebeu Ana Carla Harmatiuk Matos, a carga negativa e pejorativa atribuída ao concubinato
é, sobretudo, dirigida à mulher na família não matrimonializada. 259 A distinção entre
concubinato puro e impuro é reveladora de uma discriminação social incorporada como que
naturalmente e sem ressalvas pelo discurso jurídico. A tonalidade das lições da dogmática
mais conservadora deixa transparecer a concepção moralizante que deveria ser ocultada pela
exatidão e assepsia de um discurso apenas ancorado na legalidade.

2.2.3 Do concubinato à união estável: instabilidades da transição


A união estável ainda não ganhou estatuto próprio, consentâneo com o tempo atual e
com a ordem constitucional estabelecida a partir da Carta de 1988. Herdeira do concubinato,
não se desvencilhou ainda da carga negativa inscrita em seu código genético. O instituto vai-
se formando a solavancos. Há os que o impulsionam para uma refundação a partir da nova
tábua axiológica fixada pelos princípios constitucionais, porém, há, e ainda em grande
número, aqueles que buscam o sentido e o alcance do conceito de união estável nas bases em
que se consolidou a noção de concubinato.

257
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. 3 ed., São Paulo: Atlas, 2011. p. 166.
258
Ibid. p. 165.
259
Para demonstrar o acento discriminatório da mulher, a autora destaca: “A título exemplificativo, observa-se trazer o
dicionário Aurélio apenas o verbete concubina (no feminino) sendo: ‘mulher que vive amasiada com um homem; amante,
amásia.’ Não diferentemente, consta no dicionário Michaelis a palavra concubina significando ‘mulher ilegítima, amásia,
barregã’. Não há, nos mencionados dicionários, o verbete concubino (no masculino). A verificação desta ausência, nos
dicionários, tem uma carga de significação relevante, quer pelo não reconhecimento da existência do substantivo masculino,
quer pelo significado deferido na utilização deste substantivo no feminino”. (MATOS, Ana Carla Harmatiuk. As famílias
não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 42.)
93

Trata-se, portanto, de situar a união estável à margem do casamento, tendo-o como o


grande referencial, para, a partir dele, caracterizá-la, ou de concebê-la como uma das formas
de constituição de família, em pé de igualdade com o matrimônio, anteriormente, considerado
o único idôneo a originar a família classificada, então, como legítima.
O delineamento da união estável como instituto distinto do casamento e não vinculado
aos estigmas do concubinato foi traçado por dois professores que sempre estiveram à frente de
seu tempo e enxergaram peculiaridades da recém consagração constitucional da união estável
como entidade familiar. José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz
captaram elementos da união estável sem deixarem-se enredar por equívocos grosseiros que
até o presente dominam a legislação, boa parte da doutrina e a própria jurisprudência.
Em publicação de 1990, afirmavam: “o concubinato é, portanto, uma pura relação de
fato”. Em razão desta percepção concluíam que, diferentemente do casamento, não é cabível a
imposição de deveres para a união de fato. “Os concubinos não têm obrigação de vida em
comum. De modo que esta se assenta na vontade do casal cotidianamente renovada. Por isso
se diz com razão que na vontade de uma relação estável reside o elemento determinante do
concubinato.”260
Diferentemente do pensamento tradicional, sustentaram que as relações sexuais não
podem ser exigência categórica para a configuração do concubinato e argumentavam que esta
era questão da vida íntima dos casais, uma esfera protegida, que não poderia ser devassada
pelo Estado juiz, senão quando o interesse público tornasse a interferência necessária. Para os
civilistas cuja produção se toma para análise, o concubinato, com a Constituição Federal de
1988, constitui uma relação de fato que, como o casamento, “entra igualmente no âmbito do
juridicamente relevante”, pois, “a rigor não é essencial o nexo família-matrimônio: a família
não se funda necessariamente no casamento”. Isto significa, portanto, que “casamento e
família são realidades diversas”. 261 A autonomia da união estável em relação ao casamento é
clara para estes autores, pois sustentam: “o que interessa é a relevância social da relação de
fato em si mesma, cujo substrato é a comunhão de vida ( um ménage comum) estabelecida
entre o homem e a mulher”.
Oliveira e Muniz, todavia, ponderam que o reconhecimento do fato social, no plano
jurídico, não pode ter como consequência “submeter, autoritariamente, e de um modo geral, a
união de fato às disposições do direito matrimonial. Como logo se vê, isso significa impor a

260
OLIVEIRA José Lamartine Corrêa; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família – direito matrimonial. Porto
Alegre: Fabris, 1990. p. 79.
261
Ibid.. p. 89.
94

disciplina jurídica do matrimônio à convivência de duas pessoas que jamais manifestaram a


intenção de casar. (...) O casamento é uma liberdade que compreende, por evidente, a
liberdade de não se casar.” Tivesse esse pensamento orientado o codificador de 2002, não
teria o Código Civil vigente enveredado por equívocos tão acentuados como os que marcam a
regulação da união estável. A união estável não é casamento.
Os professores José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz vão
mais longe. Repelem a distinção entre concubinato puro e impuro. Na verdade, sequer fazem
referência e esses termos tão usuais em manuais de Direito Civil no Brasil. Analisando
acórdão da lavra do Ministro Francisco Resek, censuram a posição adotada pelo Supremo
Tribunal Federal,262 que entendeu não ser possível a existência de uma sociedade de fato entre
um homem casado e sua companheira, em razão da jurisprudência que serviu de base para a
Súmula 380, e a que se formou posteriormente, por haverem fixado que a noção de sociedade
de fato só pode ser aplicável a concubinos desimpedidos. Lamartine Oliveira e Muniz
perguntam “....justificar-se-á esta solução?”, para prontamente responder: “Cremos que
não.”263
Face à importância dos argumentos dos civilistas citados para os propósitos perseguidos
nesta tese, estes devem ser transcritos na sua integralidade:
A decisão do Supremo Tribunal Federal é, a rigor, manifestação pontual do considerar o
concubinato adúltero contrário à ordem pública e aos bons costumes, o que transparece na
expressa referência “aos fundamentos da moral constituída” ou “a dupla meação em
detrimento da família legítima”. Com efeito, se o imóvel tivesse sido adquirido por um sócio,
por conta de uma sociedade de fato e em virtude de atos de gestão, com vista à formação de
valores economicamente comuns, não se deixaria de tratar o sócio-não-proprietário como
economicamente proprietário do patrimônio social. Esta é a ordenação básica. Ao afastá-la, o
Supremo Tribunal Federal desconsiderou a situação comunitária, consubstanciada pela
integração do trabalho dos companheiros, porque um deles era casado. Necessidades
imperiosas de harmonia da ordem jurídica e da justeza dão razão ao voto vencido do Ministro
Aldir Passarinho, pois, como salientara o Desembargador José Brison, “o bem, adquirido
mediante esforço comum, não se comunica à esposa na sua totalidade, para que se considere
imoral ou ilegal a participação da concubina, porque essa comunicação apenas se faz na parte
que corresponde ao marido, afastado o quinhão da concubina. Embora único o bem,
comportava divisão e na parte restante é que poderá ser objeto de meação da esposa”.264

No entendimento esposado pelos referidos autores estava condensada e em germe a tese


que ora se busca sustentar. Eles perceberam com absoluta lucidez que havia notória
contradição na aplicação da Súmula 380 tão somente para os casos em que não ficasse

262
O acórdão analisado recebeu a seguinte ementa: “CONCUBINA. PARTILHA PATRIMONIAL. RÉU CASADO.
COMPREENSÃO DA SÚMULA 380. A ação de partilha patrimonial promovida pela concubina não pode prosperar se o réu
é casado, visto que tanto conduziria ao despropósito da dupla meação. A súmula 380, interpretada à luz da jurisprudência que
lhe serviu de base, e daquela que lhe sobreveio, refere-se a concubinos desimpedidos.” (STF, RE 103775-RS, Rel. Min. Aldir
Passarinho. DJ: 19.12.1985).
263
RODRIGUES, Silvio. Direito civil.... p. 118.
264
Ibid. p. 119.
95

caracterizado o concubinato adúltero. Se o que estava em consideração era a sociedade de


fato e não a família formada pelo concubinato, não fazia sentido suscitar a questão do
impedimento ou desimpedimento dos concubinos.
Esta compreensão, todavia, embora consequente e solidamente fundamentada na mais
avançada doutrina estrangeira, não logrou ser hegemônica. Ao contrário, bom número de
civilistas tem insistido na distinção entre o concubinato puro e impuro, na transposição dos
deveres do casamento para a união estável, e na classificação desqualificadora de dadas
situações subjetivas de convivência amorosa, para marginalizá-las da tutela jurisdicional do
Estado.

2.2.4 Código Civil de 2002: ambiguidades remanescentes

O ordenamento jurídico brasileiro, no que se refere à regulamentação das relações de


família, vive verdadeiro paradoxo. De um lado, a Constituição Federal, superando o modelo
de família originada exclusivamente do casamento, consagrou o princípio da pluralidade de
entidades familiares, e, de outro, o sistema do Código Civil de 2002 — ainda que trate, por
exemplo, da união estável, ressuscitou a noção de concubinato que parecia já definitivamente
superada pela Constituição Federal e pelas Leis 8.971/1994 e 9.278/1996.265 Ao que
anteriormente se denominava concubinato impuro o Código Civil de 2002 denominou
simplesmente concubinato, consagrando a seguinte definição legal em seu art. 1.727: “As
relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem
concubinato”.
A regulação da união estável pelo Código Civil de 2002 tem merecido severas críticas,
tanto no que se refere à matéria da conjugalidade surgida de tal relação, como também no que
diz respeito à matéria sucessória. Cabe, neste espaço, somente, reflexão sobre o concubinato,
reconsagrado pelo já referido art. 1.727 do Código Civil.
A primeira crítica que aflora refere-se à redação deste dispositivo do Código Civil, posto
que faz configurarem concubinato as relações não eventuais entre pessoas impedidas de se
casarem,266 contrariando o próprio art. 1.723 que, em seu parágrafo primeiro, admite a união

265
A este respeito escreveu Luiz Edson Fachin: “Antes tratava-se do concubinato, suas formas e espécies, efeitos jurídicos de
um fato. Não mais agora. A questão não é apenas semântica, é histórica, cultural e jurídica. (...) E aí não há mais lugar
legítimo para a designação do concubinato”. (FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família – curso de
direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 62-63)
266
A noção de que o reconhecimento da união estável somente seria possível entre pessoas para as quais não houvesse
impedimento para o casamento apareceu, inicialmente, na reflexão de alguns civilistas. Por exemplo, Guilherme Calmon
Nogueira da Gama especifica a figura dos concubinos em sentido estrito, distinguindo-a do companheirismo, e sustenta que
“para a existência do companheirismo, não é possível a presença de qualquer impedimento matrimonial entre os
96

estável entre os companheiros, ainda que um ou ambos sejam casados, bastando que estejam
separados judicialmente ou de fato. Quem é separado judicialmente ou de fato está impedido
de contrair novo casamento, mas, ao estabelecer união de fato, esta enquadrar-se-á na moldura
da união estável e não do concubinato, como, contraditoriamente induz a leitura do
dispositivo legal em tomado em consideração.267
Ainda que truncada a redação, o art. 1.727 do Código Civil prestou-se a reforçar a
distinção entre concubinato puro e impuro.268 Nas palavras de Zeno Veloso, ao comentar o
referido dispositivo, “concubinato, assim, sem adjetivação alguma, é a figura que, no passado,
para distinguir do concubinato puro — atualmente chamado companheirismo ou união estável
— denominava-se concubinato impuro.”269 Tão ambíguas quanto a lei têm sido as conclusões
ou consequências que dela são extraídas. Zeno Veloso mesmo assevera que “o concubinato
não gera direito e deveres nem produz os efeitos da união estável. Isto não quer dizer, todavia,
que o concubinato não produz qualquer efeito”.270 A solução que sugere é a aplicação da
antiga Súmula 380 do STF, isto é, a tutela da sociedade de fato e não da família.
A desclassificação da condição de família fica clara ao longo de sua reflexão: “Se o
concubinato viola a moral, ofende os bons costumes, afronta os princípios das verdadeiras
entidades familiares, não é por isso que se vai permitir que ocorra a exploração humana, que
um dos concubinos enriqueça e prospere financeiramente, reduzindo-se à miséria o outro...”
Se existem famílias que são verdadeiras é porque existem as que são falsas ou apenas
arremedos de família. Assim, “a união estável é entidade familiar que, na constituição e nos
efeitos, é regulada pelo Direito de Família; o concubinato, conforme o caso concreto, pode
determinar efeitos patrimoniais, disciplinados pelo Direito das Obrigações”. 271

companheiros, já que do contrário estar-se-ia estimulando a proliferação de ‘uniões estáveis’ em detrimento das uniões
matrimoniais, o que não é o desejo constitucional.” (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo – uma
espécie de família. 2 ed. São Paulo: RT, 2001. p. 545). Nesta perspectiva de análise a possibilidade da conversão da união
estável em casamento prevista na Constituição Federal seria um indicativo de que ao casamento é consagrada valoração
superior àquela endereçada à união estável. Em outro trecho de sua obra o autor é ainda mais contundente: “De maneira
sucinta: o casamento é estimulado pela Constituição Federal, ao passo que o companheirismo é reconhecido no próprio texto,
sendo que ambos, como instrumentos, devem atender ao objetivo constitucional de promoção da dignidade da pessoa dos
seus partícipes. E, neste sentido, ao casamento ainda é reservada posição de destaque, representativa do ideal de união entre
pessoas de sexos diferentes como um projeto de vida familiar comum.” GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O
companheirismo – uma espécie de família. 2 ed. São Paulo: RT, 2001. p. 79).
267
A crítica à redação é referida, entre outras, nas seguintes obras: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Comentários ao novo
código civil. Vol. XX: da união estável, da tutela, da curatela. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 219; LÔBO, Paulo. Direito
civil: famílias. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010. p. 182.
268
Álvaro Villaça de Azevedo, ao comentar o referido dispositivo diz: “Certamente que esse artigo trata do concubinato
impuro ou adulterino”. (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 421).
269
VELOSO, Zeno. Código civil comentado: direito de família, alimentos, bem de família, união estável, tutela e curatela:
arts. 1.694 a 1.783, vol. XVII. São Paulo: Atlas, 2003. p. 155.
270
Ibid. p. 156.
271
Ibid. p. 156.
97

Ainda que faça críticas à construção gramatical, Rodrigo da Cunha Pereira conclui que
“a redação do art. 1.727 traduz, em suma, uma evolução do pensamento doutrinário e
jurisprudencial, que veio se fazendo ao longo das últimas décadas, especialmente após a
Constituição da República de 1988. Em outras palavras, concubinato é um gênero que
comporta duas espécies: o concubinato não-adulterino, denominado então de união estável, e
o concubinato adulterino a que podemos nomear de concubinato propriamente dito.”272 Não é
possível com tal leitura concordar. O referido dispositivo é indicativo de retrocesso e não de
evolução.
Não há como pensar o concubinato, previsto no Código Civil de 2002, sem retroagir ao
passado de desclassificação da família não-matrimonializada que só encontrava amparo por
meio de uma analogia forçada com a sociedade de fato, mas que, como família jamais vista ou
considerada. A mesma experiência de discriminação se dá em relação à união de pessoas do
mesmo sexo, consagrada atualmente pela expressão união homoafetiva. Em que pese a
importante decisão do Supremo Tribunal Federal que, no julgamento da ADI 4277 e da ADPF
132,273 reconheceu como união estável aquela formada entre pessoas do mesmo sexo, não faz
muitos anos, o Superior Tribunal de Justiça ainda consagrava entendimento segundo o qual a
dissolução de união entre pessoas do mesmo sexo constituía matéria de competência das varas
cíveis, por se tratar de relação meramente obrigacional, e não das varas de família.274

272
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Comentários ao novo código civil. Vol. XX: da união estável, da tutela, da curatela. Rio
de Janeiro: Forense, 2003. p. 218.
273
No dia 05 de maio de 2011 o Supremo Tribunal Federal, julgando a ADPF 132 e a ADI 4277 reconheceu a união
homoafetiva – aquela formada por pessoas do mesmo sexo – como entidade familiar e sendo que dela devem decorrer todos
os direitos e deveres que emanam da união estável entre homem e mulher, consagrada no art. 226, § 3º da Constituição
Brasileira e no art. 1.723 do Código Civil.
274
“DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS.
HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. COMPETÊNCIA. VARA CÍVEL. EXISTÊNCIA DE FILHO DE UMA DAS PARTES.
GUARDA E RESPONSABILIDADE. IRRELEVÂNCIA. 1. A primeira condição que se impõe à existência da união estável
é a dualidade de sexos. A união entre homossexuais juridicamente não existe nem pelo casamento, nem pela união estável,
mas pode configurar sociedade de fato, cuja dissolução assume contornos econômicos, resultantes da divisão do patrimônio
comum, com incidência do Direito das Obrigações. 2. A existência de filho de uma das integrantes da sociedade
amigavelmente dissolvida, não desloca o eixo do problema para o âmbito do Direito de Família, uma vez que a guarda e
responsabilidade pelo menor permanece com a mãe, constante do registro, anotando o termo de acordo apenas que, na sua
falta, à outra caberá aquele munus, sem questionamento por parte dos familiares. 3. Neste caso, porque não violados os
dispositivos invocados - arts. 1º e 9º da Lei 9.278 de 1996, a homologação está afeta à vara cível e não à vara de família. 4.
Recurso especial não conhecido”. (STJ – REsp. 502995 / RN. Rel. Min. Fernando Gonçalves. Quarta Turma. Data de
Julgamento: 26/04/2005. DJ 16/05/2005 p. 353). Atualmente, isto é, depois de cinco ou seis anos, o Superior Tribunal de
Justiça mudou completamente seu entendimento, conforme demonstra ementa de acórdão a seguir transcrita: “CIVIL.
RELAÇÃO HOMOSSEXUAL. UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. EMPREGO DA ANALOGIA. 1. A regra do
art. 226, § 3º da Constituição, que se refere ao reconhecimento da união estável entre homem e mulher, representou a
superação da distinção que se fazia anteriormente entre o casamento e as relações de companheirismo. Trata-se de norma
inclusiva, de inspiração anti-discriminatória, que não deve ser interpretada como norma excludente e discriminatória, voltada
a impedir a aplicação do regime da união estável às relações homoafetivas. 2. É juridicamente possível pedido de
reconhecimento de união estável de casal homossexual, uma vez que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação
explícita ao ajuizamento de demanda com tal propósito. Competência do juízo da vara de família para julgar o pedido. 3. Os
arts. 4º e 5º da Lei de Introdução do Código Civil autorizam o julgador a reconhecer a união estável entre pessoas de mesmo
sexo. 4. A extensão, aos relacionamentos homoafetivos, dos efeitos jurídicos do regime de união estável aplicável aos casais
heterossexuais traduz a corporificação dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. 5. A Lei
98

O signo da desqualificação e, portanto, da marginalização de determinadas famílias


parece imperceptível a muitos civilistas, mesmo para alguns daqueles que advogam posições
reconhecidas como muito avançadas por uma esmagadora maioria reacionária às
transformações da percepção jurídica das famílias contemporâneas.
A noção de concubinato, reforçada pelo Código Civil de 2002, consagra-se, pois, como
um estatuto de exclusão, expulsando do âmbito de proteção entidades familiares que — por
força do art. 226 da Constituição Federal, e, fundamentalmente, em razão do princípio da
dignidade humana — deveriam merecer especial tutela do Estado.

2.2.5 União estável: por uma nova conjugalidade desvencilhada do casamento

Considerado o princípio da pluralidade das entidades familiares, consagrado pela


Constituição Federal de 1988, faz-se premente a construção doutrinária e jurisprudencial que
desvincule a união estável do casamento. Como o casamento civil foi, por um longo período,
o único meio de constituição de família reconhecido juridicamente, veio a se converter em
referencial quase que natural e impositivo para o tratamento de toda e qualquer conjugalidade.

Mesmo depois de bom tempo da consagração da tábua principiológica fixada pela


Constituição, o legislador, o doutrinador e a jurisprudência de um modo geral pensam a
conjugalidade a partir dos moldes do casamento. Daí resulta a dificuldade histórica, diga-se
— de construção jurídica autóctone da conjugalidade no âmbito da família não fundada no
casamento.

Verifica-se que houve como que uma imediata e irrefletida transposição de peculiaridades
do casamento para a união estável, que nada têm em comum com a nova situação jurídica.
Conquanto a experiência de uniões permanentes fora do casamento seja tão remota como são
as instituições matrimoniais primitivas, certo é que a sua elevação a entidade familiar
merecedora de tutela estatal é demasiado recente. Por esta razão, ainda não se desenvolveu,
suficientemente, reflexão sobre este novo arranjo familiar, independente de uma visão
contaminada pelo instituto do casamento.

Tanto é assim, que a própria Constituição estabeleceu que a lei deve facilitar a conversão
da união estável em casamento. Uma primeira leitura do texto constitucional pode levar à
conclusão de que o reconhecimento da união estável como entidade familiar é uma mera

Maria da Penha atribuiu às uniões homoafetivas o caráter de entidade familiar, ao prever, no seu artigo 5º, parágrafo único,
que as relações pessoais mencionadas naquele dispositivo independem de orientação sexual. 6. Recurso especial desprovido.
(STJ – REsp 827962 / RS. Rel. Min. João Otávio De Noronha. Quarta Turma. Data de Julgamento: 21/06/2011. DJe
08/08/2011).
99

condescendência para com aqueles que não formalizaram suas famílias pelos vínculos do
casamento. Pode ser que, na mentalidade do constituinte, esta fosse mesmo a noção
subjacente ao enunciado. Mas a Constituição é dinâmica e sua força resulta de sua própria
interpretação sempre atualizada.

Nesta direção, apontou a interpretação que Paulo Luiz Netto Lôbo deu à locução
“devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Para o civilista, não existe, na frase,
qualquer valor de juízo ou de comparação que coloque o casamento num grau hierárquico
superior à união estável. Não se pode deduzir da expressão constitucional qualquer primazia
para o casamento. Segundo ele, o comando constitucional não é dirigido aos jurisdicionados
de um modo geral, como se o Estado se intrometesse na vida privada a dizer para cada
brasileiro qual a melhor forma de ele constituir família. O comando constitucional é, antes,
dirigido ao legislador infraconstitucional para que este, ao elaborar as leis, não coloque
obstáculos à transformação de uniões estáveis em casamentos.275 Não se trata de comparação
valorativa, mas, sim, de instrução operacional. Nada mais.

Esta compreensão da norma constitucional revela-se como verdadeira premissa para o


desenvolvimento de substancial reflexão jurídica sobre a união estável. Enquanto a união
estável for tratada como uma derivação do casamento ou como um quase-casamento, as
formulações jurídicas a seu respeito serão defeituosas.

Necessário é ter em vista que a união estável constitui fato social da maior relevância. Não
se trata de excepcional acidente à normalidade das uniões matrimonializadas. Os dados do
IBGE revelam número expressivo de conformações familiares fundadas na união estável. 276
Isto já seria razão suficiente para que esta situação fática, colhida por alguns doutrinadores
como ato-fato277 — mas, que, em verdade, revela-se propriamente como relação jurídica de

275
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Revista Brasileira de
Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, nº 12, p. 40-55, jan./mar. 2002. p. 43.
276
O Censo de 2010 indica que 36,41% dos brasileiros vivem em união estável, 42,92% são casados civilmente e no
religioso; 17,24% são casados apenas perante Cartório de Registro Civil e 3,43% são casados apenas perante autoridade
religiosa e, portanto, também vivem também em união estável, nos termos da lei. (Dados dos Resultados Preliminares da
Amostra – Tabela 3329 – Site do IBGE: www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/protabl.asp?c=3329&z=t&o=1&i=P. Consulta em
21/12/2011)
277
Paulo Luiz Netto Lôbo considera a união estável como ato-fato jurídico, indicando que “no ato-fato jurídico, a vontade
está em sua gênese, mas o direito a desconsidera e apenas atribui juridicidade ao fato resultante”. (LÔBO, Paulo. Direito
civil: famílias. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2010. p. 169). Este enquadramento da união estável como ato-fato jurídico não
parece coadunar com a caracterização que Pontes de Miranda emprestou à noção de ato-fato. De forma elucidativa explicou:
o “ato humano é fato produzido pelo homem; às vezes, não sempre, pela vontade do homem. Se o direito entende que é
relevante essa relação entre o fato, a vontade e o homem, que em verdade é dupla (fato, vontade-homem), o ato humano é ato
jurídico, lícito ou ilícito, e não ato-fato, nem fato jurídico stricto sensu. Se, mais rente ao determinismo da natureza, o ato é
recebido pelo direito como fato do homem (relação ‘fato homem’), com que se elide o último termo da primeira relação e o
primeiro da segunda, pondo-se entre parênteses o quid psíquico, o ato, fato (independente da vontade) do homem, entra no
mundo jurídico como ato-fato.” (MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo II. Rio de
100

direito pessoal de natureza familiar 278 — recebesse sério tratamento jurídico que considere
suas peculiaridades e sua complexidade. Não é admissível nem tão pouco honesto do ponto de
vista acadêmico, bem como da perspectiva jurídico-prática, simplesmente, transpor para a
união estável as formulações seculares construídas em torno do casamento.

Para enfrentamento da questão nuclear proposta como tese, é imprescindível, ainda que de
forma pontual, demarcar contornos próprios da união estável. Tais demarcações permitirão
reavaliação levada a efeito, no último capítulo, sobre a aplicação do princípio da monogamia
às situações jurídicas caracterizadas como união estável.

Nas relações não-matrimonializadas reconhecidas, juridicamente, como constitutivas de


família, sob a designação de união estável, pode ser, atualmente, considerada, entre suas
características, a desnecessidade de formalização contratual e cartorial. 279

O contrato escrito constitui mera faculdade para os companheiros regularem os aspectos


patrimoniais de sua relação familiar. Todavia, a união estável independe, absolutamente, de
qualquer termo e registro. Diferentemente do casamento, que tem existência jurídica em
decorrência de um negócio solene, a união estável, em regra, obtém relevância jurídica a
posteriori. Todavia, quando o casamento é tomado como paradigma, é verificada a tendência
da união estável tornar-se cartorial.

A união estável é expressão de uma relação muito mais flexível e fluída. Ela existe e tem
potencialmente a virtude de produzir efeitos jurídicos, sem qualquer declaração formal
constitutiva. A união estável põe em cheque conceitos consolidados pela doutrina, quando se
tinha em vista apenas o casamento. A questão acerca do status familiae do companheiro, por
exemplo, revela-se complexa. Segundo ensina Orlando Gomes, o estado é uno e indivisível, 280
assim, não poderia uma pessoa ter ao mesmo tempo o status familiae de companheiro e de

Janeiro: Borsoi, 1972.) Geralmente do ato-fato são exemplo a especificação, como a pintura de um quadro, ou a produção
literária e artística, etc.
278
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico – plano da eficácia. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
279
Diferentemente do sistema brasileiro, o direito francês só admite a união estável realizada mediante contrato. O chamado
pacto civil de solidariedade (PACS). Assim dispõe o art. 515 do Código Civil Francês: “Un pacte civil de solidarité est un
contrat conclu par deux personnes physiques majeures, de sexe différent ou de même sexe, pour organiser leur vie
commune.” (Tradução livre: O pacto civil é um contrato celebrado entre duas pessoas naturais maiores, de sexo oposto ou do
mesmo sexo, para organizar sua vida comum).
280
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 169. Na mesma direção segue o
ensinamento de Caio Mario da Silva Pereira: “A indivisibilidade e a unidade do estado provêm de ser ele a qualificação do
indivíduo na sociedade. Não pode, v.g., um indivíduo, simultaneamente, ser casado e solteiro, como também não pode ser
filho de dois pais ou de duas mães. Informam a indivisibilidade do estado duas categorias de princípios, uns de ordem natural
e outros de ordem pública. (...) A ordem jurídica requer a certeza da qualificação individual e determina que os fatos
constitutivos ou modificativos do estado sejam inscritos no Registro Civil, para que dele resulte, com sentido de ordem
pública, a circunstância de ser o estado uno e obrigatoriamente reconhecido por todos na sociedade.” (PEREIRA, Caio Mário
da Silva. Instituições de direito civil (Vol. I). 20ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 267 e 268)
101

casado ou, simultaneamente, o status de separado e companheiro. Para Caio Mário da Silva
Pereira, o status familiae é matéria de ordem pública, logo, todos os fatos constitutivos ou
modificativos de estado devem ser objeto de inscrição no Registro Civil. 281

Como a união estável não depende de qualquer registro para sua conformação, ou se
concluirá que seu estabelecimento não altera o status familiae das pessoas que passam a viver
em tal condição — e são mantidos os princípios já consagrados, os quais se ajustam
perfeitamente ao casamento, ou se admite que a união estável altera o status familiae dos
companheiros — passando a existir um status familiae registral e outro de fato. A certeza
jurídica presumida do estado da pessoa pelos doutrinadores clássicos do Direito Civil
brasileiro ficaria, neste último caso, grandemente prejudicada.

Não parece razoável a pretensão por parte de alguns doutrinadores de se reconhecer status
familiae à condição de companheiro. Maria Berenice Dias, por exemplo, assevera que “está
mais do que na hora de definir a união estável como modificadora do estado civil, única forma
de dar segurança às relações jurídicas e evitar que os conviventes sofram prejuízos...”282 . Ao
contrário do que afirma, a identificação pelo status de companheiro, em certos casos, é que
pode gerar insegurança jurídica. Se alguém é separado de fato, qualificar-se-á como
companheiro, sendo, pelo registro civil, casado? Dias entende que sim, e vai além: “Finda a
união pela morte de um dos parceiros, o sobrevivente deve-se identificar como viúvo.
Desarrazoado que tenha de se qualificar como solteiro ou até como casado, se eventualmente
estivesse somente separado de fato, quando da constituição da união estável.” 283

Não é possível, neste ponto, o alinhamento com a posição de Maria Berenice Dias. A
união estável, embora seja conformadora da família tanto quanto o casamento, sem qualquer
distinção hierárquica, tem natureza jurídica distinta. O status familiae tem referência no
registro civil. Pretender que a união estável produza efeitos no status familiae implica seu
atrelamento ao modelo formalista do casamento. Levadas às últimas conseqüências a
afirmação de Maria Berenice Dias, aos conviventes dever-se-ia assegurar a faculdade de fazer
inscrever no Registro Civil sua condição de companheiros, averbando tal status, conforme o
caso, na certidão de nascimento ou de casamento, da mesma forma que se averba o divórcio
ou a viuvez. Definitivamente, não parece ser o caso. E isso, por uma razão simples: a união

281
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil (Vol. I)... p. 269.
282
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 175.
283
Ibid. p. 175.
102

estável pode ser convertida em um arremedo de casamento. Ao contrário, a ela deve ser aberto
espaço próprio, adequado às suas características de informalidade.

Neste aspecto, o modelo brasileiro de união estável é diferente do francês. Na França, só é


reconhecida a união estável se houver a formalização do pacto civil de solidariedade – PACS,
previsto no Código Civil daquele país, em seus art. 515-1 a 7. A união estável ou parceria
civil só é reconhecida como tal em razão de declaração conjunta, devidamente inscrita perante
órgão de registro.284 Como demonstrado anteriormente, há razões históricas para que, no
Brasil, a união estável tenha a natureza jurídica de ato-fato e não de contrato. O Direito Civil
brasileiro não deve ser subserviente a modelos alienígenas. Deve seguir destino próprio,
amoldando-se às demandas características e à dinâmica da realidade social brasileira.

Se reconhecida como tal apenas a união estável formalizada por contrato, um sem número
de relações familiares, no Brasil, ficaria ao desamparo da tutela estatal. A inclusão da união
estável entre as entidades familiares merecedoras das garantias e proteção constitucional teve
como objetivo, exatamente, trazer para o âmbito da tutela legal um grande número de
situações jurídicas de conjugalidade não formalizadas pelo casamento. Trata-se, portanto, no
sistema constitucional brasileiro, de instituto de inclusão.285 Por ele estendeu-se foro de
cidadania a quantidade imensa de relações que estavam relegadas ao status de concubinato.

Por outro lado, não se justifica a transposição pura e simples dos impedimentos do
casamento para o âmbito da união estável, como fez o Codigo Civil de 2002. 286 Se a união
estável constitui ato-fato reconhecido juridicamente, de regra, a posteriori, a aplicação de
impedimentos matrimoniais para descaracterizar sua constituição é, no mínimo, remissão
indevida ao casamento.

284
É o que dispõe o art. 515-3 do Código Civil francês.
285
Nesta direção, valiosas são as observações de Luiz Edson Fachin, ao tratar das leis que regularam, num primeiro
momento, a união estável: “Quando presente na maior parte das populações carentes, o gesto de eleição é uma ficção. Pois
bem: não casar é um ato de liberdade para os ‘livres’, os que têm patrimônio, contratam e testam, e aí sim, gozando desse
discernimento econômico, social e cultural, não casar é uma opção por não se matrimonializar. Elitista e equivocada a crítica
segundo a qual a nova legislação é exageradamente concessiva. Deixar ao sabor das circunstâncias a regulação destas
relações é sustentar que prevaleça a opressão do mais forte (econômica e culturalmente) sobre o mais fraco. No reverso da
crítica ácida à intervenção do Estado, o paradoxal elogio de uma sociedade patriarcal e da predominância dos interesses da
linhagem masculina.” (FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família – curso de direito civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999. p. 67)
286
Ao regular a união estável o codificador fez incluir o parágrafo primeiro ao art. 1.723, que assim dispõe: “A união estável
não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa
casada se achar separada de fato ou judicialmente”. Por sua vez, o art. 1.521 arrola os impedimentos do casamento, todos
impedimentos absolutos, que restaram assim definidos: “Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o
parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com
quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o
adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas; VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou
tentativa de homicídio contra o seu consorte”.
103

A união estável se apresenta como situação subjetiva de conjugalidade sem casamento.


Ainda que se concorde com Paulo Luiz Netto Lôbo, no sentido de que a união livre deixou de
existir à medida que foi regulada pelo Estado,287 sua regulação não pode prestar-se a convertê-
la em uma subespécie de casamento. O excesso de regulação implicaria a morte da união
estável, a destruição de sua essência. Adverte Pietro Perlingieri: “É necessário cautela para
individuar os elementos sem os quais a família não fundada no casamento não seria tal. Mais
correto é ter consciência de que existem diversos modelos de família não fundada no
casamento. As razões colocadas na base da família de fato são várias: razões ideológicas,
contestadoras do sistema, ligadas a situações econômicas e de abandono cultural, à falta de
confiança.”288 Desta forma, quando os requisitos de validade do casamento são tomados em
seu conjunto, com uma única exceção, para se converterem em critérios impeditivos de
constituição de união livre, fica evidenciada tendência de tomar o casamento como paradigma
maior.

A união estável, porém, não é casamento. A chamada Lei dos Conviventes, Lei 9.275/96,
que tinha como objetivo regulamentar o § 3° do art. 226 da Constituição Federal, estabeleceu
simplesmente: “É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e
contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família”.
Não havia, pois, na referida lei qualquer referência ao estado civil dos conviventes ou aos
impedimentos do casamento.

Desta descrição legal da união estável a doutrina deduziu o entendimento de que, para sua
caracterização, quatro requisitos apenas se colocam: a continuidade, a durabilidade, a
notoriedade, e o objetivo de constituir família, sendo este último de natureza subjetiva. O
primeiro refere-se ao lapso temporal, para que um relacionamento efêmero e circunstancial
não seja caracterizado como união estável. Não há prazo pré-fixado na Lei. Das circunstâncias
do caso concreto é que o juiz verificará a presença do requisito da continuidade. De qualquer
sorte, ela está vinculada ao lapso temporal. Já, a durabilidade diz respeito à permanência ou
constância da união. Uma série de meros encontros, ao longo de muitos anos, não faz presente
a durabilidade requisito indispensável à caracterização da união estável. Por sua vez, a
notoriedade ou ostensibilidade indica a não-clandestinidade do relacionamento. Assim, os
companheiros devem eles ser reconhecidos como um núcleo familiar no meio social por eles
frequentado.

287
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2010. p. 168.
288
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 997.
104

Um último requisito, de natureza subjetiva, soma-se aos três objetivos, isto é, a intenção
de constituir família. Este elemento volitivo, todavia, independe de uma declaração e de sua
formalização por meio contratual, como anteriormente referido. Este requisito subjetivo,
teleológico, é captado objetivamente do conjunto de fatos que conformam a união estável.

Estes elementos são suficientes para a caracterização da união estável. A união estável,
juridicamente, só é reconhecida a posterius, ao contrário do casamento, para o qual, em razão
de ser negócio jurídico formal e datado, os impedimentos se apresentam como prius. Logo,
não faz sentido transferir para a união estável tais requisitos, pois, como bem ensina Luiz
Edson Fachin, “admitindo-se a pluralidade familiar insculpida na Constituição, aquele modelo
do companheirato não devia se ajustar, a qualquer custo, às molduras já conhecidas. A família
é, antes de tudo, uma realidade sociológica”. 289

Sendo a família, antes de tudo, uma realidade sociológica, não pode o Direito Civil negar
sua existência jurídica, quando a existência sociológica constitui dado incontestável. Presentes
os requisitos de continuidade, durabilidade, notoriedade e o elemento teleológico, isto é, o
objetivo de constituir família — todos claramente de matiz sociológico — existe uma família
no mundo dos fatos. Esta não pode ser juridicamente invisível. Desta forma, a transposição
dos impedimentos matrimoniais para o âmbito da união estável, convertidos em elementos
impeditivos da sua constituição, revela-se totalmente incongruente.

De forma clara e contundente, ponderou Maria Berenice Dias a cerca da assertiva contida
no § 1º do art. 1.723 do Código Civil, que dispõe: “a união estável não se constituirá se
ocorrerem os impedimentos do art. 1.521.” Diz: “... em que pese a proibição legal, se ainda
assim a relação se constitui, não é possível dizer que ela não existe”. 290 Seus argumentos
indicam na direção de que não há como o Estado dizer se um fato existe ou não. Não há como
negar a existência de uniões incestuosas, nem tão pouco daquelas estabelecidas entre pessoas
impedidas de casar, em virtude de casamento anterior e laços de parentesco por afinidade na
linha reta. Sustenta a autora que “tais relações estão sujeitas à reprovação social e legal, mas,
nem por isso há algum meio de coibir sua formação. Como existem, não há como ignorá-las”.

O fio condutor da reflexão de Maria Berenice Dias aponta no sentido de que negar
existência à união estável, ao argumento de ausência de requisitos objetivos de sua
caracterização, trazidos dos impedimentos matrimoniais, implica condenar tal vínculo à

289
FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família – curso de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
p. 74.
290
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 176.
105

condição de invisibilidade, gerando irresponsabilidade e ensejando o enriquecimento sem


causa em favor do outro. “O resultado é mais que desastroso, é perverso: nega divisão de
patrimônio, desonera de obrigação alimentar, exclui direito sucessório. (...) Estar à margem do
direito traz benefícios, pois não impõe nenhuma obrigação. Quem vive com alguém por
muitos anos necessita dividir bens e pagar alimentos. Todavia, àquele que vive de modo que a
lei desaprova, simplesmente, não advém qualquer responsabilidade, encargo ou ônus”. 291

É de todo evidente que tomar os impedimentos matrimoniais como critérios autorizadores


do reconhecimento da união estável constitui mecanismo de exclusão de tutela jurisdicional
que não mais se justifica ante a principiologia constitucional.

A união estável é primeiro e fundamentalmente um fato sociológico que o Direito colhe


como relevante à produção de certos efeitos jurídicos. Logo, não devem ser aplicados à união
estável os impedimentos do casamento, como quis o codificador de 2002. 292 Trata-se de um
grande equívoco a opção do legislador. O Código Civil de 2002 segue à deriva da rota
indicada pela melhor doutrina.

Na vigência da Lei dos Conviventes, Lei 9.275/96, ensinava Luiz Edson Fachin que não
havia mais “lugar legítimo para a designação do concubinato” e, mais adiante, acrescia:
“Sentido algum permanece na divisão do concubinato, levando-se em conta a existência ou
não de impedimentos matrimoniais. Uma página virada da história jurídica da família no
Brasil.”293 Infelizmente, a página foi apenas, temporariamente, virada. O concubinato acabou
ressuscitado pelo Código Civil de 2002 em consideração e deferência explícitas aos
impedimentos matrimoniais.

Se a reflexão desenvolvida permite a conclusão de que a união estável é antes de tudo um


fato sociológico — que dispensa pactuação formal e registro, e que, sendo esta sua natureza,
constitui-se independentemente de qualquer impedimento matrimonial, podendo mesmo

291
Ibid. p. 176.
292
Ainda que visíveis os ranços de conservadorismo do Código Civil de 2002, nele, também, já se destacam indícios da
superação de uma aplicação estrita do princípio da monogamia. A circunstância de alguém ser separado judicialmente ou
apenas de fato constitui impedimento para o casamento, nos termos do inciso VI do art. 1.521 do Código Civil. No entanto,
tal circunstância não se revela como fator impeditivo ao reconhecimento da união estável, conforme dispõe o § 1º do art.
1.723 do Código Civil. Logo, se um homem casado, desde que separado judicialmente ou apenas de fato, constituir união
estável, essa nova família merecerá plena tutela do Estado. O casamento existirá porque o vínculo matrimonial somente se
extingue pelo divórcio, pela anulação ou pela morte, e, ao mesmo tempo, existirá e será reconhecida a união estável. Pode-se
afirmar que, neste caso, há, evidentemente, marcado arrefecimento do princípio da monogamia. Privilegia-se a realidade
fático-social da família e não a formalidade do matrimônio.
293
FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família – curso de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
p. 63 e 64
106

contrariá-los totalmente — impõe-se a conclusão de que a regra da monogamia não alcança a


união estável. Esta assertiva será devidamente aprofundada no quarto capítulo.

Na mesma linha de pensamento, impõe-se crítica à transposição dos deveres do casamento


para a união estável. 294 Contaminado pelo paradigma do casamento, o legislador fez tal
arranjo sem a devida reflexão e, também, desatento às peculiaridades desta relação de
conjugalidade sem casamento. Antes mesmo que entrasse em vigor o Código Civil de 2002,
esta indevida ingerência estatal regulatória, no âmbito das relações não fundadas no
casamento, mereceu veemente crítica. 295

A operação legislativa é impertinente e, igualmente, inócua. Impertinente porque, como


bem opinou Maria Berenice Dias, “parece que o Estado, com sua onipotência, olvida que são
os vínculos e pactos íntimos que ligam o par, e não as imposições sociais ou os mandamentos
legais que os mantêm unidos.”296 O comando legislativo é desprovido de força porque, muito
embora enunciado como dever jurídico entre os companheiros, não tem como ser imposto.
Falta-lhe cogência, elemento essencial e subjacente à ideia de dever.

O dever de fidelidade é referido no art. 1.724 do Código Civil como dever de lealdade.
Como não foi utilizada a mesma palavra de que se lança mão para definir o dever do casado,
isto é, a fidelidade, poder-se-ia concluir que o legislador reconheceu que a fidelidade não
constitui dever entre os companheiros. 297 Ou poderia ainda ser interpretada a palavra lealdade
como um eufemismo de fidelidade. Não constituindo a união estável casamento, o dever dos
companheiros não seria de fidelidade, propriamente, mas de algo similar, que ainda está para
ganhar densidade conceitual.

Fato é que a fixação de tal dever é desnecessária. Na hipótese de um dos companheiros


descumprir o dever de fidelidade, que consequência resultará de tal ato? Evidentemente, não

294
Os deveres dos companheiros foram estabelecidos pela primeira vez na Lei 9.278/1996, que, em seu art. 2º, preconizou:
“São direitos e deveres iguais dos conviventes: I - respeito e consideração mútuos; II - assistência moral e material recíproca;
III - guarda, sustento e educação dos filhos comuns”. Por sua vez, o Código Civil, além destes, acresceu mais um. Assim,
dispõe seu art. 1724: “As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência,
e de guarda, sustento e educação dos filhos.”
295
DIAS, Maria Berenice. A estatização das relações afetivas e a imposição de direitos e deveres no casamento e na união
estável. In: PEREIRA. Rodrigo da Cunha. Família e cidadania – o novo CCB e a vacatio legis (Anais do III Congresso
Brasileiro de Direito de Família). Belo Horizonte: IBDFAM/Del Rey, 2002. p. 301 – 308.
296
DIAS, Maria Berenice. A estatização das relações afetivas e a imposição de direitos e deveres no casamento e na
união estável.... p. 303.
297
Nesta direção, inclusive por vezes se encaminha a jurisprudência: “União Estável – Reconhecimento – Coabitação
Inexistente e Infidelidade. O hábito da moradia na mesma casa não é, no tempo atual, indispensável para a diferenciação da
relação séria relativamente à aventura passageira. A fidelidade, que é dever nem sempre cumprido do casamento, não é
condição indispensável para a caracterização da união estável. Reconhece-se a união estável quando é evidenciada a
convivência duradoura e contínua dos companheiros como uma entidade familiar (TJMG, AC 1.0797.97.002504-5/001, 4ª
Câm. Cív., rel. Des. Almeida Melo, j. 21.05.2008)”.
107

há como o credor da obrigação negativa buscar a tutela específica do Estado, para que o juiz,
por exemplo, imponha multa diária pelo não cumprimento de ordem judicial de abstinência de
relacionamento sexual fora da união estável. Mesmo para as ações de dissolução de união
estável, o descumprimento do dever de fidelidade/lealdade constitui irrelevante jurídico. O
rompimento da união estável revela-se como direito potestativo que pode ser exercido, a
qualquer momento, independentemente da observação de qualquer requisito prévio.
Desprovida de sentido, portanto, qualquer alegação de descumprimento do dever de lealdade.
Tal dever imposto à união estável revela-se como mera petição de princípio. Disposição legal
retórica que, todavia, traz subjacente norma de natureza moralista ancorada na ideia da
monogamia.

Exercício coerente, na linha da construção de uma dogmática crítica, no que concerne à


união estável, deve, necessariamente, recusar a transposição simplista dos deveres típicos do
casamento para esta relação marcadamente informal. Sendo a união estável realidade
sociológica — a que o ordenamento jurídico brasileiro alberga, a posteriori, como ato-fato,
para imputar-lhe efeitos jurídicos — não há como, logicamente, atribuir deveres aos
companheiros que a integram. A união estável situa-se na instância do ser e não no locus do
dever ser.

Ainda que a juridicidade da união estável não seja percebida, cronologicamente, como um
posterius, ela o é logicamente. Não há como impor deveres para o que é. Os deveres somente
têm lugar no campo do dever ser. O dever de fidelidade/lealdade, associado tradicionalmente
ao princípio da monogamia, é desprovido de sentido na união estável. A ordem jurídica pode
ou não reconhecer efeitos à situação fática coexistencial, que veio a ser caracterizada como
união estável, mas não tem como de forma lógica estabelecer efetivos deveres jurídicos para
os partícipes de tal relação.

A autonomia e recorte próprio que a união estável adquire à medida que vai,
gradativamente, descolando-se do casamento, trazem inquietações e problemas que
anteriormente não estavam postos. Um dentre outros tantos pode ser formulado nos seguintes
termos: Havendo reconhecida união estável entre homem e mulher solteiros — não
aparentados e civilmente capazes, inclusive com celebração contratual de referida união —
configurado estaria, em razão de tal fato, impedimento para o casamento civil de um deles
com outrem? À medida que qualquer forma de conjugalidade não matrimonializada é
admitida como família pelo ordenamento jurídico, a estabilidade do sistema sofre abalos. A
108

previsibilidade austera, típica das relações formalizadas pelo casamento, perde lugar, abrindo
espaço para um sistema poroso capaz de interagir com a realidade social.

Nesta ordem de ideias e considerada a tendência à flexibilização da concepção


contemporânea de família, aparecem indícios significativos de superação da monogamia
como princípio estruturante do estatuto jurídico da família. Todavia, é necessário, para os fins
propostos, demarcar como foi recepcionado e desenvolvido o princípio da monogamia pelo
pensamento jurídico brasileiro.

2.3 O princípio da monogamia no direito civil brasileiro

Não existe produção monográfica propriamente dita sobre o princípio da monogamia no


Direito Civil brasileiro. O tema é versado nos tratados, cursos e manuais de Direito Civil,
também, em alguns artigos e, lateralmente, tem sido abordado em dissertações e teses.
Imperativo, pois, coligir algumas dessas expressivas manifestações sobre tema ainda pouco
desenvolvido. Neste capítulo, propositadamente, são referidos apenas aqueles autores que
sustentam a monogamia como princípio estruturante do Direito de Família. A opção é
metodológica. No senso comum dos juristas, trata-se de um dogma, isto é, de uma verdade
proclamada a priori. Uma vez proclamada, ela necessita apenas de amparos argumentativos
ou de justificação legitimadora. Assim, o objetivo, neste momento, é evidenciar como esse
senso comum ganhou forma e defesa no âmbito da dogmática civilista brasileira.

2.3.1 Monogamia: expressão de vida dos povos cultos

Precedido de Lafayette Rodrigues Pereira, Clóvis Beviláqua foi o segundo jurista


brasileiro a escrever um volume sobre o Direito de Família. 298 Ao fazê-lo, procurou valer-se
de informações históricas e de um exercício de direito comparado. Em razão desta
peculiaridade de sua obra, não se restringiu à exegese do direito positivado. Ao estabelecer
diálogo com outras áreas do saber acabou por abordar o tema da monogamia. Ao tempo em
que ressalta as teses de antropólogos e etnólogos sobre a família, com os contornos do
evolucionismo típico do século XIX, com sérias ressalvas a tese da existência de estado

298
Escreveu Beviláqua no prefácio da primeira edição,: “Possui a literatura jurídica brasileira um livro clássico sobre o
Direito de Família, devido à pena de preclaro jurista, o Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira, cuja segurança de doutrina e
lucidez de exposição cativam a todos os que o lêem”. E depois de referir as peculiaridades de sua própria obra — o elemento
histórico e o comparativo — modestamente arremata: “compreender-se-á, sem dificuldade, a razão de ser desse livro, que
apenas irá prestando serviços, enquanto um jurista de maior competência não tomar a si a tarefa de escrever outro”.
(BEVILÁQUA, Clovis. Direito de Família. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956. p. VII)
109

primitivo de promiscuidade ou heterismo, que teria precedido a poliandria, Clóvis Beviláqua,


nas linhas e nas entrelinhas, faz entender que concebe o casamento monogâmico como típica
299
regulação da sexualidade dos povos cultos, assim concebidos em oposição aos
selvagens.300

Recusa a proposta evolucionista, e, ao mesmo tempo, revela concepção marcadamente


preconceituosa em relação aos povos tidos como incultos. Ressalta que o casamento não pode
ser compreendido por esses povos que, em tempos de catástrofes, recorrem à promiscuidade e
à prostituição cultual. Admite o heterismo ocasional ou temporário, mas rejeita a
generalização primitiva que alguns estudiosos lhe atribuem. Como argumento, lembra que “é
fácil apontar, entre selvagens contemporâneos, seja em tribos brasileiras atuais ou das que ao
longo de nosso país vagabundeavam, no tempo da descoberta, o uso da monogamia ao lado da
poligamia.”301 Para reforçar sua tese contrária à admissão da existência de um heterismo
primitivo generalizado, Beviláqua evoca a autoridade de Darwin, posto que segundo ele,
“dado o ciúme de todos os machos mamíferos, é extremamente improvável a promiscuidade
no estado de natureza. E, a julgar pelos hábitos sociais dos homens de hoje e pela poligamia
de quase todos os selvagens, acrescenta o eminente observador, a opinião mais provável é que
o homem primitivo viveu em pequenas comunidades, cada macho tendo tantas mulheres
quantas podia obter.”302

A partir desta ponderação, sustenta que mais comum que a poliandria poligínica, que
existiu e persiste apenas na experiência de alguns povos muito localizados, como entre os
tibetanos, é a poliginia monândrica, que está presente em todos os quadrantes do globo.
Ressalva, porém, que esse modelo encontra inconvenientes, porque, apesar das guerras que
dizimam a população masculina, há um certo equilíbrio entre o número de homens e mulheres
nas populações.

299
Antepondo-se às noções segundo as quais a família primitiva teria como único móvel as energias biológicas, sendo
dirigida pelo mero instinto reprodutivo, e que gradativamente sofreu os influxos da disciplina social, pela religião, pelos
costumes e pelo direito, diz: “Penso, ao contrário, que não passa ela de uma criação natural, que a sociedade amolda e
aperfeiçoa. Estudando as várias formas de família, achou efetivamente Spencer que a evolução dos tipos familiais está em
correlação com a evolução da inteligência e do sentimento; que as relações domésticas mais elevadas, sob o ponto de vista
ético, são também as mais elevadas, sob o ponto de vista biológico e sociológico”. (BEVILÁQUA, Clovis. Direito de
Família. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956. p. 17 e 18)
300
“Para alguns povos incultos o casamento é alguma coisa inatural e ilícita”. (BEVILÁQUA, Clovis. Direito de Família. p.
37).
301
BEVILÁQUA, Clovis. Direito de Família. p. 37.
302
Ibid. p. 37.
110

Mas, ao final, pondera que a monogamia “é a forma de união conjugal de mais forte
coesão entre os consortes, a melhor organizada para a manutenção da prole, a mais
consentânea com a dignidade da mulher e com a moralidade social, finalmente, ‘a mais
adaptada ao desenvolvimento da simpatia humana’”. 303 Pautando-se pelas análises de
Spencer, Beviláqua sustenta o modelo da monogamia como o clímax da evolução da família.
Apesar de tratar da monogamia na parte introdutória de sua obra, não a correlaciona ao dever
de fidelidade quando analisa os deveres comuns dos cônjuges. Sobre tais deveres é
excessivamente conciso: “De deveres comuns e recíprocos resultam direitos igualmente
recíprocos, contidos, aliás, na mesma ideia e noção. Inútil é, portanto, alongar considerações a
respeito”. E, de fato, nada diz sobre tais deveres, de sorte que as reflexões iniciais sobre a
monogamia ficam completamente dissociadas da análise jurídica que faz do casamento de seu
tempo. Nem quando trata do adultério, como quebra do dever de fidelidade, autorizador do
pedido de desquite, Beviláqua faz qualquer evocação ao princípio da monogamia. 304 Esta é
presumida e por isso mesmo sequer é referida explicitamente.

Na obra de Beviláqua, portanto, tomando como referência grupos primitivos e incultos, a


monogamia é tratada como questão antropológica. Não se trata de uma questão jurídica. Neste
campo, a monogamia apresenta-se como um princípio presumido com tal força que mal é
referido para respaldar regras jurídicas relativas aos impedimentos matrimoniais 305 ou dar
amparo ao dever de fidelidade. Beviláqua parte da premissa de que para os povos cultos a
monogamia constitui uma conquista definitiva. A premissa carrega em si um argumento de
autoridade na medida em que desqualifica o diferente como inculto e primitivo. A linha de
argumentação é perfeitamente compreensível em seu contexto. O pensamento jurídico
brasileiro desenvolve-se com os olhos postos na Europa.

303
Ibid. p. 41. Beviláqua não se furta a realizar reflexões sobre a exogamia e a endogamia como pano de fundo das
explicações sobre os costumes que antecederam os impedimentos matrimonias em razão do parentesco. (BEVILÁQUA,
Clovis. Direito de Família. p. 42 e ss.).
304
Ibid. p. 288 e ss.
305
“Prosseguindo na exposição dos impedimentos, declara o Código Civil, art. 183, que também não podem contrair justas
núpcias; 1º As pessoas, ou, como dizia a lei anterior, que estivessem ligadas por outro casamento ainda não dissolvido (n. V).
Esta vedação da bigamia e, mais forçosamente, da poligamia é geralmente consagrada nas leis dos povos cultos. É uma
conquista definitiva da disciplina social, que a biologia aprova, diga embora contrário Gustavo Le Bom. Exceções que
apresentávamos, os muçulmanos e mórmons, não infirmavam a regra. E estes, já hoje, se são polígamos na realidade, são-no
contra a lei e contra o expresso compromisso tomado.” (BEVILÁQUA, Clovis. Direito de Família. p. 68). Esta é a única
referência que Beviláqua faz à monogamia ao tratar dos impedimentos matrimoniais. Note-se que a entende como uma
conquista definitiva da civilização, com respaldo da biologia, portanto, da ciência. As exceções ainda existentes, mulçumanos
e mórmons se apresentam como contrárias à lei, que teria consagrado um princípio inafastável chamado pelo civilista de
povos cultos.
111

2.3.2 A monogamia criou o amor: o casamento como instituição consciente

Pontes de Miranda constituiu sempre forte referência para o pensamento jurídico


brasileiro. Ele não se pronunciou longamente sobre o tema da monogamia, mas, de seu
Tratado de Direito de Família e do Tratado de Direito Privado, é possível apreender as linhas
mestras que guiaram a reflexão do civilista sobre a temática.

Pontes de Miranda parte de uma crítica às teorias sociológicas e antropológicas da


existência de uma promiscuidade originária, com manifestações de poliandria e poliginia. Tais
teorias, para ele, são demasiadamente inseguras. Argumenta, com inegável anacronismo, que
“na história da prostituição não se pode encontrar qualquer forma de família, pois a
prostituição é a negação mesma de organização familial”. 306 O equívoco da assertiva é bem
pronunciado. A prostituição constitui fenômeno social muito distinto da poliandria ou da
poliginia verificado em povos já estudados pela antropologia. A confusão entre prostituição e
manifestações de poliandria e poliginia revela preconceito subjacente.

Da mesma forma, afirma que, se a economia doméstica é confiada à mulher, isto é, se esta
se apresenta como chefe de família, a opção pela monogamia é por ela imposta. Por outro
lado, quando o poder econômico está nas mãos do homem, sobressaem a prostituição e a
poligamia. Sem maior justificação teórica, em outras palavras, Pontes de Miranda sustenta
que a mulher, ao contrário do homem, tem uma inclinação natural para a monogamia. Desta
constatação atual faz guinada argumentativa para o passado: “Seria o matriarcado o estado
intermediário entre a anomia (ausência de regras) e o patriarcado. Antes do matriarcado, há
promiscuidade. Por quê? Se a preponderância da mulher no terreno econômico-profissional
leva à monogamia, é difícil aceitar que o matriarcado exija a promiscuidade como forma de
que proveio.”307

Sustenta que “é um dado sociológico que a mulher, na história, quando dela depende a
fixação das formas, prefere a monogamia, exatamente o que é mais propício à procriação, à
criação dos filhos e à segurança da família num par andrógino + filhos.” 308 Tendo a mulher o
poder econômico, recusaria a poliginia, mesmo com o inconveniente de diminuir a
procriação, porque esta “é subversiva da ordem social: fundando-se na desigualdade de sexo,
acaba por escravizar a mulher e desenvolver nos homens a perversão sexual, os excessos, com

306
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito de família. Vol. I, Campinas: Bookseller, 2001. p. 61.
307
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito de família... p. 63.
308
Ibid. p. 65.
112

todas as suas resultantes mórbidas e degenerativas, isto é, o enfraquecimento do indivíduo e


consequente fraqueza da prole”.309

Já a poliandria, além dos inconvenientes em razão da baixa fecundidade da mulher, seria


“contrária a dados de moral e de organização social”. 310 Sublinha Pontes de Miranda, em
primeiro lugar, entre as razões da vedação contemporânea da poliandria, a incerteza da
paternidade, com a consequente entrega da prole à responsabilidade exclusiva da mãe e o
decréscimo da solidariedade social.

A monogamia, no pensamento de Pontes de Miranda, é tão fundamental, que chega ele a


afirmar que “a monogamia criou o amor,”311 isto é, o sentimento de amor que atualmente
pode ser atribuído ao casamento não lhe é anterior, ao contrário, só existe como resultado de
seu desenvolvimento e aprimoramento. Daí concluir que “o casamento — no seu sentido
jurídico — é instituição consciente, ritualizada, que veio a desenvolver-se desde as formas
mais primitivas, que são quase-nada casamento, seja poligâmico, seja poliândrico”.312

Destacam-se, portanto, de plano, duas questões centrais na reflexão de Pontes de Miranda.


A primeira é que o casamento monogâmico é resultado de uma evolução histórica linear, e, a
segunda, que a monogamia é questão de ordem pública, ou, em suas palavras, questão moral e
de organização social.

Ainda que afirmasse a monogamia como um interesse da mulher e que esta, ao contrário
do homem, é naturalmente propensa ao regime monogâmico, aponta a (falta de) identificação
da paternidade como o problema central justificador da monogamia. Em seu Tratado de
Direito Civil, ao abordar o dever de fidelidade conjugal, Pontes de Miranda lembra que para
os canonistas e para os juristas com formação eclesiástica deve haver maior exigência de
correção em relação à observância do dever de fidelidade por parte da mulher do que em
relação ao homem. Esta diferença de tratamento teve repercussão no Direito Civil e também
no Direito Penal. Isto porque, em razão de seu sexo e das ideais recebidas, a mulher está
obrigada a manter maior recato, logo, sua falta agride mais profundamente “a moral e os
costumes públicos”, mas, principalmente, porque sua “infidelidade pode motivar filhos
adulterinos e, destarte, introduzir no seio da família elementos de sangue estranho,

309
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito de família. Vol. I, Campinas: Bookseller, 2001. p. 65.
310
Ibid. p. 64.
311
Ibid. p. 66.
312
Ibid. p. 66.
113

provocadores de desordem conjugal, complicações de parentesco e incertezas constantes da


paternidade”. 313

Ao se apurar as razões últimas, como já evidenciado anteriormente, sobressai sempre o


vínculo da monogamia com o controle da sexualidade feminina pelo homem. Controle que
ganha roupagem de conotações morais e de costumes públicos, bem como de proteção da paz
doméstica, para assegurar a presunção da paternidade. A noção de “costumes públicos” ou de
“interesses públicos” aparece como eufemismo no pensamento pontiano, quando aborda
situações jurídicas que inferiorizam a mulher. Ao tratar, por exemplo, da incapacidade relativa
da mulher casada, ameniza: “As limitações à situação da mulher não se fundam na sua
infirmeza de caráter; nem, tão pouco, na inferioridade de sexo. É [sic] criação da lei por
motivos de interesses públicos de família.” 314

Não há dúvidas, contemporaneamente, que a evocação do interesse público de família


para justificar a subjugação da mulher casada ao marido, pelo mecanismo da incapacidade
relativa, constitui verdadeira aberração. Da mesma sorte, não podem o interesse público ou os
costumes públicos ser evocados como elementos justificadores da intervenção estatal
legiferante invasiva e ofensiva a direito fundamental.

Tendo em consideração a superação da família dita transpessoal e a afirmação da família


eudemonista como referência para o Direito de Família contemporâneo, não parece razoável
admitir que existam interesses públicos de família que justifiquem a intromissão do Estado no
recôndito da intimidade de um indivíduo para lhe impor dever referente ao exercício de sua
sexualidade. A sexualidade de uma pessoa só interessa ao Estado à medida que, e tão somente
à medida que, ao Estado cumpre assegurar ao indivíduo sua liberdade, mormente nas
situações subjetivas existenciais. 315

O que se evidencia no pensamento de Pontes de Miranda é que a monogamia se presta a


justificar um modelo de família formada exclusivamente pelo casamento e funcionalizada à
realização de interesses institucionais. Ao afirmar o casamento como uma instituição
consciente, aponta para sua finalidade, sua meta histórica relativa à ordem social.

313
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo VIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. p.
110.
314
Id. Tratado de direito privado. Tomo VIII... p. 137.
315
Superada deveria estar aquela etapa do Direito Civil brasileiro, a respeito da qual se poderia dizer, com Gustavo Tepedino
“que o vínculo conjugal atraía imensa proteção por parte do Código Civil, em favor da coesão formal do núcleo familiar, a
prescindir de qualquer valoração substancial do legislador quanto à realização pessoal dos cônjuges e dos filhos no âmbito da
família.” (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 200, p. 345). Este aspecto é
desenvolvido no quarto capítulo desta obra.
114

2.3.3 Monogamia: a sedimentação do princípio nos manuais de Direito de Família

A monogamia é enumerada como um dos dois princípios básicos que, para Orlando
Gomes, regem o direito matrimonial. O outro é a livre união dos futuros cônjuges. Assevera
que o vínculo matrimonial “tem que ser monogâmico. Não se permite a existência simultânea
de dois ou mais vínculos matrimoniais contraídos pela mesma pessoa. A bigamia é punida.
Quem é casado está proibido de contrair segundas núpcias, defesas enquanto permanece o
vínculo. Nessa proibição consiste, tecnicamente, a monogamia”. 316 A tratar do dever de
fidelidade, Orlando Gomes afirma também ser este decorrência do “caráter monogâmico do
casamento.”317

San Tiago Dantas, por seu turno, resume: “Há ainda impedimento em que o legislador não
faz mais do que obedecer à organização da sociedade. Se a sociedade se organiza sob a forma
de monogamia familiar, o casamento seguinte é impossível.” 318 Vê-se que a monogamia, para
o civilista, constitui um dado de natureza sociológica, colhido de forma obsequiosa pelo
legislador que o transpõe ao mundo normativo estatal.

Ao tratar do impedimento resultante do casamento anterior de um dos nubentes, assevera


Washington de Barros Monteiro: “Em todos os países em que domina a civilização cristã, a
família tem base estritamente monogâmica, que, no dizer de Clóvis, é o modo de união
conjugal mais puro, mais conforme os fins culturais da sociedade e mais apropriado à
conservação individual, tanto para os cônjuges como para a prole”. E, com esteio em Savigny,
complementa: “A monogamia constitui a forma natural de aproximação sexual na raça
humana. A poligamia, ao inverso, corresponde ao estágio menos avançado da moral.”319

Também Maria Helena Diniz indica a monogamia como um dos princípios do direito
matrimonial, sustentando que “embora alguns povos admitam a poliandria e a poligamia, a
grande maioria dos países adota o regime da singularidade, por entender que a entrega mútua
só é possível no matrimônio monogâmico, que não permite a existência simultânea de dois ou
mais vínculos matrimoniais contraídos pela mesma pessoa, punindo severamente a
bigamia.”320 Ao abordar o impedimento de vínculo, ressalta que ele deriva da proibição da
bigamia, em razão do casamento fundar-se no princípio da monogamia. Amparada em

316
GOMES, Orlando. Direito de família. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 62
317
Ibid. p. 136.
318
DANTAS, San Tiago. Direito de família e das sucessões. Rio de Janeiro: Forense: 1991. p. 142.
319
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito de família. 33. ed., São Paulo: Saraiva, 1996. p. 53.
320
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – direito de família. 23. ed., São Paulo: Saraiva, 2008. p. 45.
115

Herbert Spencer, proclama que “a monogamia é a forma natural e mais apropriada de


aproximação sexual da raça humana, ao passo que a poligamia, como pondera Savigny, é o
estágio menos avançado da moral.” 321 Discorrendo sobre os deveres conjugais, alude que “o
dever moral e jurídico da fidelidade mútua decorre do caráter monogâmico do casamento e
dos interesses superiores da sociedade, pois constitui um dos alicerces da vida conjugal e da
família matrimonial”. 322

Nos manuais de Direito Civil, o princípio da monogamia aparece como um dado e não
como uma construção jurídica que possa ser problematizada. No máximo se faz referência ao
exótico, ao direito estrangeiro de povos bárbaros e incultos, que em seu estágio de involução
experimentam ainda a poligamia, na forma de poliginia ou, excepcionalmente, na forma de
poliandria. A monogamia é apresentada como princípio do direito matrimonial, do qual
decorrem tanto o impedimento em razão do vínculo, isto é, a proibição da bigamia, como o
dever de fidelidade, que uma vez violado dava ocasião para a chamada separação-sanção.

Silvio Rodrigues, por exemplo, ao tratar dos impedimentos dirimentes, assevera que “a
sociedade, no intuito de preservar a família, tendo em vista considerações eugênicas e morais,
edita oito proibições que visam: “1º) impedir núpcias incestuosas (n. I a V); 2º) preservar a
monogamia (n. VI); 3º evitar enlaces que deitam raízes no crime (n. VII e VIII)”.323 E mais
adiante, ao tratar do impedimento consignado no inciso VI do art. 183 do Código Civil de
1916, sustenta que tal dispositivo “visa preservar a monogamia. O legislador partia do
pressuposto de que a sociedade ocidental assenta sua estrutura na família legítima, e esta no
casamento monogâmico”.324 Vê que a monogamia comparece ao discurso do civilista
expressamente como pressuposto. Trata-se de uma premissa e não de um problema posto à
discussão. A literalidade do texto de Silvio Rodrigues só faz por evidenciar que na dogmática
civilista brasileira a monogamia não comparece como tema posto à discussão, não está
colocada no rol das considerações, nem muito menos é percebida como um problema a
merecer maior referência ou reflexão. É um dado solidificado da cultura ocidental. Logo, não
se permitem questionamentos sobre sua expressão jurídica no instituto do casamento.

Mesmo alguns autores que escreveram seus manuais mais recentemente, após a
Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002, são igualmente lacônicos em relação à

321
Ibid. p. 75.
322
Ibid. p. 129.
323
RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 6: direito de família. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 41.
324
Ibid. p. 45.
116

monogamia. Carlos Roberto Gonçalves, por exemplo, ao tratar do impedimento decorrente de


casamento anterior, apenas faz consignar que “procura-se, assim, combater a poligamia e
prestigiar a monogamia, sistema que vigora nos países em que domina a civilização cristã”.325
E ao tratar dos deveres conjugais, diz simplesmente que “o dever de fidelidade recíproca é
uma decorrência do caráter monogâmico do casamento”.326 Em que pese a afirmação
categórica, o autor não teve como deixar de enfrentar a questão do reconhecimento que o
Código Civil de 2002 dá à união estável conformada por pessoas casadas mas separadas de
fato. Sustenta, simplesmente, que nesse caso o “animus de por fim na relação conjugal
bastaria para fazer cessar a adulterinidade”. 327

No mesmo diapasão, manifesta-se Silvio de Salvo Venosa. Ao tratar dos impedimentos


matrimoniais em relação a pessoas casadas, assenta: “Trata-se do princípio do casamento
monogâmico que domina a civilização cristã”. 328 Com este anúncio de jaez nitidamente
dogmático, lança fundamento inquestionável a partir do qual discorre sobre o impedimento
matrimonial. Não se trata aqui de qualquer juízo de valor sobre a assertiva do autor, mas, sim,
de apontar sua construção epistemológica de natureza dogmática, em nada crítica, dialética,
contextualizada.

Ao tratar do dever de fidelidade recíproca, Venosa sublinha que, como já consagrado na


cartilha da dogmática civil, tal dever “é corolário da família monogâmica admitida por nossa
sociedade. A norma tem caráter social, estrutural, moral e normativo, como é intuitivo”. 329
Porém, parece certo que, com a Emenda 66 que alterou o inciso VI do art. 226 da
Constituição Federal, a quebra do dever de fidelidade perdeu eficácia jurídica. Não parece
razoável afirmar com a mesma tenacidade e certeza o dever de fidelidade como corolário do
princípio da monogamia, como se nada houvesse ocorrido no regramento jurídico da família.

325
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. v. 6: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 59.
326
Ibid. p. 174.
327
Ibid. p. 175.
328
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 10. ed., São Paulo: Atlas, 2010. p. 75. Na mesma direção se
manifesta Rolf Madaleno ao analisar os impedimentos matrimoniais: “A monogamia é a prática das nações ocidentais, e a
quebra desse princípio importa na fulminante nulidade do segundo matrimônio, sem prejuízo das implicações advindas do
crime de bigamia do art. 245 do Código Penal, classificando como crime grave o novo casamento sem estar dissolvido o
anterior.” (MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 83)
329
Ibid.. p. 147. A edição de 2010 traz, todavia, notórios equívocos, pois, o autor ainda sustenta que “há tendência acentuada
de ser suprimido o adultério da esfera criminal. No campo civil, porém, a transgressão do princípio implica sanções, como a
separação dos cônjuges com reflexos patrimoniais”. O adultério não constitui crime. O art. 240 do Código Penal foi revogado
pela Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005. Em relação aos aspectos civis, com a Emenda 66, que alterou o inciso VI do art.
226 da Constituição Federal, o adultério passou a constituir, em regra, fato juridicamente irrelevante, posto que o divórcio
tornou-se direito potestativo que independe de qualquer motivação. O adultério, de per si, ao contrário do que afirma o autor
não traz consequência de natureza patrimonial.
117

Questão que se impõe à reflexão diz respeito à pura transposição da idéia do dever de
fidelidade — e consequentemente da monogamia — para a regulação da conjugalidade que,
especialmente, após a Constituição de 1988, foi percebida juridicamente em suas multiformes
expressões. Um princípio que regia o Direito de Família como direito matrimonial — posto
que o sistema reconhecia como família apenas aquela fundada no casamento — pode ter a
mesma força e expressão quando o leque de tutela da família ampliou-se para bem além do
casamento? Permanece hígido o princípio como antes da virada do Direito de Família que
ganhou especial visibilidade no texto constitucional?

2.3.4 Monogamia: interdito ao desejo e desinstalação do caos (da promiscuidade)

Entre os autores do Direito Civil brasileiro contemporâneo, Rodrigo da Cunha Pereira


sustenta a monogamia como um dos princípios fundamentais para o Direito de Família. 330
Cabe nesta altura das reflexões desenvolvidas referência expressa à linha argumentativa por
ele construída.

Admite que o princípio da monogamia estabeleça ponto de conexão entre moral e direito,
mas sustenta que não se trata de norma moral ou moralizante, antes cumpre função de
princípio básico organizador das relações jurídicas da família no Ocidente. Não apresentaria a
monogamia caráter moral, pois, se assim fosse, ter-se-ia que admitir a imoralidade de
ordenamentos jurídicos do Oriente que não adotam este princípio.

Sendo um princípio organizador das relações jurídicas da família ocidental, Pereira


assevera que não cabe perquirir razões de ordem antropológica se a monogamia humana
surgiu de uma necessidade de natureza ecológica ou se é resultante de imposição religiosa.
Embora assim se pronuncie, faz imediatamente referência ao texto de Freud “o tabu da
virgindade”, para dizer que a origem da monogamia está associada à virgindade da mulher e à
ideia de posse e propriedade. O texto de Freud citado por Pereira correlaciona a valorização
da virgindade à posse exclusiva da mulher pelo homem, inclusive em sentido pretérito, o que
constituiria a essência da monogamia.

A própria citação de Freud, por si só, faz levantar suspeitas em relação ao princípio da
monogamia. Se o sentido da valorização da virgindade e da monogamia aponta na direção de

330
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Belo Horizonte: Del Rey,
2006. p. 106-126.
118

um exercício de posse do homem sobre a mulher, é, no mínimo, estranho que se sustente,


contemporaneamente, a monogamia como princípio fundamental para o Direito de Família. 331

Seguindo em sua reflexão, insiste que a monogamia consiste em um princípio organizador


da família conjugal. Assim, a traição ou infidelidade não significam a quebra do sistema
monogâmico, ao contrário, tais situações o afirmam, posto que só pode existir infidelidade
onde esta é interditada. Para Rodrigo da Cunha Pereira, o sistema monogâmico só é rompido
quando se admite relação extraconjugal que venha a estabelecer família, “uma simultânea
àquela já existente, seja ela paralela ao casamento, união estável ou a qualquer outro tipo de
família conjugal”. 332

Apesar de afirmar que o sistema monogâmico não é um sistema de regras morais, mas,
sim, um sistema de organização de famílias que polariza com o sistema poligâmico,333 em
seguida, Pereira acaba por conceder que “como se percebe, a variação é sobre a natureza do
pacto sociocultural, poli ou monogâmico, mas, de qualquer forma, nesta ou naquela maneira
de organização de família, a premissa de fidelidade está sempre presente como uma
condenação moral pela infração àquele pacto social”. 334 Logo, infere-se que o princípio básico
a informar o sistema monogâmico e o poligâmico é o mesmo. Embora não o diga
explicitamente o autor, o fato de um homem poder ter apenas uma mulher em um dos
sistemas e mais de uma em outro não altera fundamento básico de ambos que é a posse
exclusiva das fêmeas.

Se não é na polarização com a poligamia que a monogamia revela a sua essência, Rodrigo
da Cunha Pereira a encontra na interdição organizadora do caos, portanto, da promiscuidade.
Se a saída do estado de natureza para cultura, ou seja, sociabilidade, segundo percebeu Claude
Levi-Strauss, dá-se por meio do tabu do incesto, isto é, seu interdito proibitório, o direito
funciona como uma “sofisticada técnica de controle das pulsões”. 335 A proibição ou interdição
é a condição fundante de toda sociedade e de todas as culturas. Não importam as variações,
porque mesmo a interdição do incesto varia de cultura para cultura. Fato é que, sem o

331
Este é o título do capítulo do livro no qual o autor desenvolve a linha de argumentação que está sendo descrita: “Os
Princípios Fundamentais para o Direito de Família”. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais... p. 91)
332
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais... p. 108. O autor faz referência à família conjugal para
diferenciá-la da família parental, explicando que elas podem se sobrepor, mas que na família conjugal é sempre pressuposto o
amor sexual.
333
Ibid. p. 108.
334
Ibid. p. 109.
335
Ibid. p. 109.
119

interdito primevo, instaurar-se-ia a promiscuidade que geraria o caos e inviabilizaria a


organização social e jurídica.

Nesta percepção, Rodrigo da Cunha Pereira estabelece a premissa da qual parte para
sustentar a monogamia como princípio fundamental organizador da família. Tanto a
monogamia como a poligamia importam juridicamente não enquanto regras morais, mas
como interditos proibitórios imprescindíveis à organização social e jurídica. Não importa, por
exemplo, a abrangência da limitação, quer dizer, se o homem pode ter uma, duas ou três
mulheres. A proibição, seja ela qual for, na expressão do autor, será “apenas uma variação em
torno do mesmo tema, ou seja, da necessidade de se barrar um excesso, fazer uma renúncia
pulsional para que possa haver civilização”.336

A defesa que faz da monogamia como princípio organizador do Direito de Família se


assenta, portanto, em uma visão freudiana, segundo a qual, o sujeito se instala e se constitui
em razão da Lei-do-Pai que estabelece a primeira interdição. Da mesma forma que a
interdição do incesto possibilita a civilização, a monogamia viabiliza uma dada ordem jurídica
fundada no dever de fidelidade, instrumento por meio do qual se opera a renúncia pulsional.

Seguindo pela trilha freudiana, Pereira esposa a ideia de que a cultura pressupõe uma
renúncia pulsional, isto é, a sublimação dos fins instintivos. Somente a sublimação das
pulsões instintivas possibilitaria as atividades psíquicas superiores, como as artes, a ciência ou
a política. Se a civilização pressupõe restrição ao desejo, o direito constitui um instrumento
desta ação civilizatória que se opera pela interdição proibitiva.

Estabelecidas as premissas maior e menor, naturalmente, deflui a conclusão silogística.


Rodrigo da Cunha Pereira a anuncia expressamente: “Neste sentido, a infidelidade torna-se
interesse do Estado na medida em que ele pretende dar proteção às famílias”. 337 Esta
contundente conclusão não passa incólume nem sequer por aquele que a formulou, pois,
problematiza acerca dos limites da intervenção estatal no âmbito da privacidade e intimidade
conjugal. Enuncia questionamento sobre o campo de autodeterminação do casal. Pergunta se,
em pacto de convivência ou em pacto antenupcial, além das regras de natureza econômica, os
companheiros ou cônjuges teriam direito de estipular cláusulas sobre a possiblidade do livre

336
Ibid. p. 110.
337
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais... p. 113.
120

estabelecimento de relações extraconjugais, isso, sob condição suspensiva e outros detalhes


típicos da contratualidade.338

A caricatura sempre limita a boa linha argumentativa. O que está subjacente às questões
formuladas pelo autor pode ser, assim, enunciado: Se a fidelidade é norma de ordem pública e
não está no âmbito dos direitos disponíveis não pode ser objeto de livre regulação pelos
nubentes ou companheiros em seus arranjos familiares. O equívoco do questionamento é
evidente. De fato não é possível disposição contratual sobre matérias desta natureza, isto é,
sobre a limitação ou ampliação da liberdade do exercício das atividades sexuais de uma
pessoa. Todavia, a impossibilidade de disposição contratual, seja em um contrato de união
estável seja em pacto antenupcial, não deriva do fato de tratar-se de matéria de ordem pública
e de interesse estatal, como parece concluir o autor, mas, sim, pelo fato de que a limitação do
exercício da sexualidade não diz respeito a ninguém mais do que à própria pessoa. Não diz
respeito nem ao outro cônjuge ou companheiro e muito menos ao Estado. O amor deverá ser
sempre um ato da mais pura liberalidade, desvinculado de qualquer tipo de obrigação jurídica,
sob pena de aviltamento da dignidade humana. 339 Como sustenta Giddens, no mundo da
sexualidade plástica e de relacionamentos puros, a monogamia deve ser repensada e a
fidelidade não tem qualquer significado a não ser aquele que diz respeito à integridade
presumida na confiança no outro.340

Por esta e outras razões que adiante serão expostas, não é possível fazer coro com
Rodrigo da Cunha Pereira na afirmação da monogamia como princípio ordenador do Direito
de Família contemporâneo. Causa admiração que se guie pela orientação freudiana de maneira
tão contundente, sendo que ele mesmo percebe as fissuras no sistema, quando analisa a
injustiça que pode redundar do não reconhecimento de famílias que se formam
simultaneamente, pois pergunta: “Como é possível conciliar o justo e o legal, ou seja, como
compatibilizar o princípio da monogamia com essas situações fáticas?” 341 Por outro lado, ao
tratar da natureza da monogamia, toma como referência a tese de Engels que demonstra ter a
monogamia fundamento de ordem econômica, implicando a escravização de um sexo pelo

338
Formulou assim as questões: “Se o casal tem livre determinação para estabelecer em um pacto de convivência, ou pacto
antenupcial, as regras econômicas da relação, não poderia então, estabelecer livremente sobre os deveres pessoais, entre eles
o da infidelidade, por exemplo? Se se estabelecer um pacto antenupcial ou de união estável que, após dez anos de
convivência, um dos dois poderia ter relações extraconjugais, seria válido? Se fosse em um pacto antenupcial esta cláusula
invalidaria o tipo penal adultério?” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais... p. 113 e 114).
339
O tema será devidamente desenvolvido no capítulo quatro.
340
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. São
Paulo: Editora UNESP, 1993. p. 162.
341
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais... p. 114.
121

outro, para garantir paternidade indiscutível e a transmissão da herança. O simples


aviltamento da condição feminina e a marcada dominação masculina implícita deveriam, por
si só, despertar desconfiança em relação ao princípio da monogamia. Este não poderia ser
simplesmente proclamado como um dado do sistema de casamento ocidental.

Outro aspecto que sobressai na argumentação de Rodrigo da Cunha Pereira é que ao tratar
do multiculturalismo e da possibilidade de reconhecimento, no Brasil, de casamento
poligâmico realizado em país árabe, admite o ato “em respeito à identidade cultural dos
povos, cuja base principiológica está na Constituição da República”. 342 Causa espécie que se
admita a pluralidade cultural apenas em relação a estrangeiros. Num país de dimensões
continentais como o Brasil a diversidade cultural se apresenta como uma realidade. Por isso,
soa estranho que, em atendimento ao princípio do respeito à pluralidade cultural dos
estrangeiros, fosse reconhecido seu direito à diversidade, no que se refere à constituição da
conjugalidade, e ao nacional não seja assegurada a mesma possibilidade.

Tendo sido indicada a genealogia do princípio de monogamia, o contexto de sua


ambientação na realidade social brasileira, e sua apropriação e conformação pelo discurso
jurídico pátrio, importa passar à análise de certos fatores que se revelaram decisivos para a
transformação da conjugalidade contemporânea. O princípio da monogamia tal como posto
na concepção tradicional de família não passou ileso às profundas transformações que os
relacionamentos conjugais experimentaram a partir da segunda metade do século XX.

342
Ibid. p. 126.
122

3 DEMOCRACIA, PLURALIDADE E LAICIZAÇÃO: O CONTEXTO


CONTEMPORÂNEO DA CONJUGALIDADE

É na política que reinam as ideias mais simplistas, menos fundamentadas, mais


brutais, mais mortíferas. É o pensamento menos complexo que reina nessa esfera que
é a mais complexa de todas. Nela, são as estruturas mentais mais infantis que impõem
uma visão maniqueísta na qual se opõem Verdade/Mentira, Bem/Mal. É na esfera
política que reinam o pensamento fechado sobre si mesmo, o pensamento dogmático,
o pensamento fanático, o tabu, o sagrado...

Edgar Morin

Mudaram radicalmente as condições socioeconômicas e políticas que propiciaram espaço


para o desenvolvimento, consagração e legitimação de certa conjugalidade, funcional e
necessária à realização de um modelo de organização social. Há estudos, como os de Lluís
Flaquer, sinalizando que no último quadrante do século XX o sistema do patriarcalismo
estabelecido desde épocas imemoriais da humanidade sofreu incontestável derrocada. Logo,
quando se fala de mudanças está-se a referir a um processo de transformações em proporções
que não podem ainda ser totalmente aferidas. 343 A tese de Flaquer é no sentido de que a perda
de legitimidade do patriarcalismo — refere-se metaforicamente à estrela minguante do pai —
ocorrida nos últimos decênios, constitui a mais transcendental mudança na evolução das
sociedades ocidentais. E esta mudança toma especial dimensão quando se considera que o
patriarcado foi o sistema prevalecente desde primórdios da história humana.

O patriarcalismo representou, segundo Flaquer, dominação no sentido weberiano do


termo, o que significa dizer a probabilidade de haver uma massa de indivíduos disposta à
obediência imediata, automática e estruturada em razão de uma disposição adquirida, isto, é
uma obediência sem questionamentos, críticas ou resistências. Este tipo de dominação não
está apoiado meramente no costume, em interesses materiais ou crenças religiosas. O decisivo
que se agrega a todos estes fatores é a crença na legitimidade. Para Flaquer, em relação à
dominação masculina na família, “se rompeu o feitiço que nos impedia de perceber a injustiça
desta situação, na medida em que era considerada como natural. Caiu a venda que todos
levávamos diante dos olhos e que cegava nossa compreensão. O patriarcalismo está ferido de
morte porque perdeu sua legitimidade”. 344

343
“Uno de los cambios más trascendentales que han marcado la evolución de las sociedades occidentales de fin de siglo es
la pérdida de legitimidad del patriarcado. (…) Considerando que el patriarcado es un sistema de dominación cuya vigencia
venía durando desde los albores de la historia de la humanidad, no cabe duda de que estamos hablando de un proceso de
transformación de un alcance insospechado”. (FLAQUER, Lluís. La estrella menguante del padre. Barcelona: Ariel. 1999.
p. 15).
344
FLAQUER, Lluís. La estrella menguante del padre. Barcelona: Ariel. 1999. p. 16.
123

Conquanto o patriarcalismo tenha sucumbido como ideologia, no Ocidente, não significa


inexistir uma série de práticas nele embasadas. O que evidencia sua queda como ideologia é o
fato de não haver hoje um partido que tenha como plataforma a defesa dos direitos do homem
ao mando, seja na esfera pública seja no âmbito privado. Evidentemente, no rescaldo desta
superação ideológica, muitos conflitos ainda surgirão. Serão necessárias décadas ou século
para uma possível ou provável superação dos reflexos de uma dominação que já dura
milênios.345

Os modelos de família que podem ser chamados pós-patriarcais, emergentes da


hecatombe do referido sistema secular, carregam em si potencialidades múltiplas, mas,
evidentemente, não poucos problemas. Um fato parece evidente e pode ser expresso tomando
por metáfora a conhecida expressão do Manifesto Comunista: “tudo que é sólido desmancha
no ar”. Os sólidos princípios que sustentavam o modelo patriarcal de família foram abalados.
O que se apresentava inquestionável, legítimo, natural evidenciou-se claramente como
dominação. Entre os princípios que escoravam o patriarcalismo estava o controle religioso ou
estatal da sexualidade feminina. Cumpre, assim, verificar os impactos destas mudanças em
relação ao princípio da monogamia, sempre proclamado pelo menos no Ocidente como
estruturante do modelo único de conjugalidade matrimonializada, que referendava o sistema
patriarcal.

Sob três perspectivas o princípio da monogamia foi analisado nos dois primeiros
capítulos: a dominação masculina, a construção de um lugar de não-direito, isto é, o
concubinato, e a legitimação dogmática emanada do direito canônico assimilado pelo Direito
Civil de um Estado que se havia proclamado independente da Igreja. Impõe-se, pois, neste
passo, reflexão sobre: (i) os desdobramentos da democracia e suas reverberações que
ultrapassaram os limiares da praça para ingressar nos espaços da intimidade; (ii) a condição
feminina e os processos emancipatórios; (iii) a igualdade e o direito de ser diferente: a questão
da pluralidade; e (iv) a laicização como condição para o Estado democrático de direito.

As novas situações ou ambiências sociais têm sido decisivas para a mais profunda
transformação operada nas relações familiares. Esta mudança sem precedentes impõe reflexão
sobre todas as sedimentadas crenças legitimadoras. Entre tais crenças situa-se o princípio da
monogamia.

345
Ibid. p. 16.
124

3.1 Democratização do cotidiano: intimidade e liberdade

A atenção de sociólogos, historiadores, antropólogos está posta nos modelos de famílias


que surgiram a partir da segunda metade do século XX. Não se trata aqui de reproduzir
tipologias, mas, sim, apontar os traços mais marcantes dessas famílias, que não são
homogêneas no tempo e no espaço. Convive em países como o Brasil uma multiplicidade de
famílias que não se ajustam perfeitamente às tipologias pré-articuladas. Pode-se falar em
tendências, mas estas não são uniformes, variam por inúmeros fatores. Nestes limites e com as
devidas ressalvas é que se pode apontar para a democratização da vida pessoal ou familiar
como fez Anthony Giddens. Ele próprio faz a advertência que, em termos de democracia,
como na esfera pública, da mesma forma dá-se no âmbito da intimidade: a distância entre o
ideal e a realidade é considerável. 346 Contudo, não há como negar que as condições materiais
e a representação simbólica que ensejaram ou permitiram o surgimento de novas formas de
famílias abriram efetivo caminho à democratização da intimidade.
Giddens aponta três condições que possibilitam a realização da democracia na família. A
primeira seria a autonomia que neste caso significaria “a realização bem-sucedida do projeto
reflexivo do eu — a condição de se relacionar com outras pessoas de um modo igualitário.
(...) Assim concebida, a autonomia permite aquele respeito pelas capacidades do outro,
intrínseco a uma ordem democrática. O indivíduo autônomo é capaz de tratar os outros dessa
forma e reconhecer que o desenvolvimento de suas potencialidades separadas não é uma
ameaça”. 347 A segunda condição seria a vedação da violência tanto física como emocional. A
democratização depende da superação de violência física, emocional e verbal. Sendo que a
superação do abuso emocional, por certo, é a mais difícil de ser obtida, no que Giddens
denominou relacionamento puro. A terceira condição refere-se ao envolvimento dos
indivíduos na determinação das condições de sua associação tanto para iniciar o
relacionamento como para sua continuidade. Não se trata simplesmente de respeitar o parceiro
ou parceira, mas de abertura em relação ao outro, o que envolverá o estabelecimento de
direitos e deveres, delimitação de responsabilidades fundadas na confiabilidade em relação ao
outro.
Os relacionamentos puros de Giddens correspondem, grosso modo, à família pós-
patriarcal de Flaquer. Para explicitar a família que denomina pós-patriarcal, tipifica uma

346
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. São
Paulo: Editora UNESP, 1993. p. 206.
347
Ibid. p. 206.
125

família que intitula tradicional institucional, outra que seria a nuclear funcional, para, então,
chegar à família pós-patriarcal. A tipologia de Flaquer é interessante como reflexão sobre a
democratização das relações familiares.
A família tradicional ou institucional seria aquela própria das sociedades pré-modernas.
Flaquer vislumbra vestígios desta família até recentemente, na Espanha, cuja industrialização
foi tardia. A semelhança com o Brasil pode ser traçada. São tipos de famílias ligadas ao modo
de produção rural. Nelas o destino da vida de seus membros estava ligado inexoravelmente a
uma direção de antemão predeterminada pela tradição, sendo esta interpretada especialmente
pelos mais velhos. Verifica-se, neste modelo de família, a renúncia às aspirações próprias para
a realização dos interesses da linhagem. Assim se justificam as desigualdades entre marido e
mulher e entre filhos. Tais desigualdades foram consagradas pelo próprio Direito porque
interesses superiores deveriam ser blindados.348 A lógica da economia de subsistência é tão
determinante que as sujeições e renúncias são incorporadas como normalidade por todos os
integrantes do grupo familiar. Em razão de sua auto-suficiência sobressai nesta família a
autoridade do pater familias.
A família nuclear funcional de Flaquer já tem como característica o fato de que os recém-
casados vão buscar um novo lar, lugar distinto dos quais se originaram. A família será
reduzida à sua função reprodutiva. Haverá uma dissociação entre o centro de trabalho e o
local da residência. O modelo se expande à medida que o trabalho assalariado avança. Esta
alteração tem como consequência a criação do espaço doméstico. Pois o espaço da casa da
família tradicional era como que, em razão das atividades econômicas e do grande número de
familiares e mesmo agregados, um espaço público. A família nuclear funcional é que irá
consagrar o que é propriamente o âmbito privado e íntimo em oposição ao público e exterior.
Também, implicará em uma simplificação. O lar não comportará mais várias gerações e
parentes múltiplos. Consagrará o amor romântico e limitará a intromissão dos pais na escolha
do cônjuge. Será a típica família burguesa moderna que se desenvolverá no ritmo do processo
de industrialização. Este modelo irá difundir-se para todas as camadas sociais. Nele, porém, as
posições e papéis do homem e da mulher seguiram sendo os tradicionais. A mulher continuará
confinada no lar, economicamente dependente do marido, reforçando a demarcação do espaço
público e privado.349 Em uma sociedade que já se havia proclamado igualitária e democrática,

348
FLAQUER, Lluís. La estrella menguante del padre. Barcelona: Ariel. 1999. p. 23 a 25.
349
Ibid. p. 26 a 29.
126

a relação entre homens e mulheres apresenta-se cada vez mais como contradição
insustentável.
Já a família pós-patriarcal de Flaquer — à semelhança do relacionamento puro de Giddens
— é, pois, a menos institucionalizada. Nela os cônjuges não aderem a um modelo
preestabelecido, mas, ao contrário, assumem o protagonismo de optar entre várias alternativas
ou de criar novas para desenhar o projeto de família que querem constituir. Os cônjuges são
relativamente autônomos em contraste com os modelos anteriores fundados na
complementaridade e dependência. 350 Este modelo ganhou espaço em razão dos postulados
feministas e das políticas de igualdade que têm alcançado com o passar dos anos inclusive
expressão legal. Tratando-se de modelo que reforça o individualismo e autonomia, a
possibilidade de ruptura existe desde o começo do relacionamento. Como neste modelo cada
um dos partícipes tem renda própria e aporta para a manutenção da vida familiar, nele, a
posição da mulher saiu reforçada, potencializando-se sua capacidade de negociação e suas
condições de decidir.351 Por outro lado, o nível de conflitos e de tensões mostrou-se
igualmente intensificado. A sugestão de Flaquer é que esta família cumpre também uma
função político-social. Reflete a nova ordem da sociedade. Nesta a coletividade não é
composta mais de famílias e, sim, de indivíduos. 352
Entre as características da família pós-patriarcal está a expansão da coabitação
independentemente de vínculos conjugais formais ou previamente ao estabelecimento destes,
a formação de famílias monoparentais, uniões sucessivas e, às vezes, simultâneas. Sustenta
Flaquer que “o advento de uma família individualista e relacional constitui um signo da
democratização da vida privada”. 353 Esta democratização da vida privada necessita de
mecanismos de implementação vez que a democracia é um processo.
As ideias de autonomia, contrato, liberdade estão sempre presentes nas reflexões sobre a
família pós-patriarcal. Para Giddens, por exemplo, os relacionamentos puros são estabelecidos
por meio de um contrato móvel que “não lida com absolutos éticos. (...) O imperativo da
comunicação livre e aberta é o sine qua non do relacionamento puro; o relacionamento é o seu
próprio fórum.”354 A pergunta que se coloca é: Qual o aporte da democracia da intimidade
para a experiência da sexualidade? A resposta a essa questão, ligada diretamente à noção de
350
FLAQUER, Lluís. La estrella menguante del padre. Barcelona: Ariel. 1999. p. 30.
351
Ibid. p. 31.
352
Ibid. p. 31.
353
Ibid. p. 31.
354
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. São
Paulo: Editora UNESP, 1993. p. 211.
127

fidelidade, e, consequentemente, à ideia de monogamia, pode ser encontrada em André Béjin,


para quem, nos relacionamentos dos casais jovens contemporâneos, “não existe norma
universal aceita ou observada de fidelidade. Tampouco, existe, entretanto, anomia, vazio
normativo. Os coabitantes, na maioria das vezes, querem ser fiéis, tanto para respeitar seus
compromissos, quanto porque estão convencidos de que é de seu interesse: a situação,
relativamente simétrica, ‘igualitária’, de sua união, tendente a aumentar o risco de represálias’
da parte do parceiro ‘enganado’, e portanto, o risco de destruição da relação.” 355 Na mesma
linha de Giddens, sustenta que a coabitação se aproxima de um contrato cujas cláusulas são
indefinidamente rediscutidas.
A própria fragilidade do relacionamento é que imporá a exigência de fidelidade. Esta
reacomodação não deixará de produzir ou de evocar um tipo de dupla moral e a dissociação
entre a sexualidade puramente física e o amor indissociavelmente carnal e espiritual. Para a
mulher — ao menos até agora — seria mais difícil dissociar corpo e espírito. Sendo o amor
completo o mais autêntico, a infidelidade da mulher constituiria maior ameaça à manutenção
da coabitação. Assim, se nos relacionamentos ditos puros, para usar a expressão de Giddens,
não existem deveres pré-fixados, segundo Béjin, haveria dois tipos de comportamento: “no
domínio da chamada sexualidade ‘física’, as infrações pouco mudariam a consequência, ao
passo que no campo do amor — essa mescla de sexualidade e sentimento — as faltas seriam
muito mais graves. Não se trata mais, portanto da antiga oposição hierárquica do carnal e do
espiritual, mas ainda assim de uma oposição apesar de tudo bastante nítida e que não pode
deixar de evocar a antiga antinomia”. 356
A democracia é um risco. Não se pode ter qualquer certeza de que instituições
democráticas irão desenvolver-se em escala global ou se os sistemas políticos caminharão
para um processo destrutivo do planeta e do mundo hoje conhecido. A aposta de Giddens é
que “a natureza aberta do projeto global da modernidade tem um correlato real no resultado
incerto das experiências sociais do cotidiano...”357 O grande risco para a experiência da
intimidade e da sexualidade é que esta perca sua dimensão de transcendentalidade. Reflete
Giddens que enquanto a sexualidade esteve ligada à reprodução era um meio de
transcendência, posto que criava um vínculo entre a finitude do indivíduo e o ciclo das

355
BÉJIN, André. O casamento extraconjugal dos dias de hoje. In: ARIÈS, Philippe e BÉJIN, André. Sexualidades
Ocidentais – Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.
187.
356
Ibid. p. 188.
357
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. São
Paulo: Editora UNESP, 1993. p. 214.
128

gerações. Ela permitia que a vida individual encontrasse referência em uma ordem simbólica
mais ampla. 358
A possibilidade positiva de democratização da intimidade, segundo Giddens, reside na
sua condição de transcendência, mais especificamente, na comunicação e na confiança no
outro. A este respeito diz:
Confiar é ter fé no outro e também na capacidade do laço mútuo para resistir a traumas futuros. Isto é mais
que uma questão apenas de boa-fé, por mais problemático que isso possa ser. Confiar no outro é também
apostar na capacidade do indivíduo realmente poder agir com integridade. A tendência dos relacionamentos
sexuais serem diádicos (não confundir com monogâmicos) é provavelmente em algum grau o resultado do
desejo inconsciente de recapitular aquele sentimento de exclusividade que o bebê desfruta com sua mãe.
Segundo Freud, a característica “especial” que uma pessoa encontra na outra é, neste sentido, uma
‘redescoberta’. Mas o caráter diádico dos relacionamentos sexuais também tende a ser reforçado pela
natureza da pretensa confiança. Quando falamos de confiança nas pessoas, esta não é uma qualidade capaz de
expansão indefinida.359

Se a democracia na vida pública é complexa, tudo parece indicar que a democratização da


intimidade a supera exponencialmente em termos de complexidade. É muito tênue a linha
entre a confiança, a abertura dialogal, o respeito à alteridade e as possibilidades de
dependência e de dominação, posto que a intimidade pressupõe sempre algum grau de
exclusividade.360 A ideia de dominação ou, no mínimo, de obrigação mútua está presente no
que tradicionalmente foi consagrado como debitum conjugale. Este pressupõe um tipo de
contrato pelo qual um cônjuge se torna, em alguma medida proprietário do outro, pois pode
exigir a satisfação de seu crédito no próprio corpo do devedor. Este é o modelo consagrado
pelo casamento tradicional erigido sob o princípio da monogamia.
Nos relacionamentos puros ou pós-patriarcais, para usar as referidas nomenclaturas de
Giddens e Flaquer, se estabelece certa tensão, pois, ao decidirem viver juntos não há nos
conviventes a disposição de alienarem de pleno direito seus corpos e gozos ao companheiro
ou companheira. E, além disso, como refere André Béjin, “acreditam que estão naturalmente
investidos de um direito (abstrato e vago) à expansão sexual, direito não a um ato preciso (o
coito, por exemplo), mas direito ao gozo, isto é, a resultado fisiológico e psicológico de toda

358
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. São
Paulo: Editora UNESP, 1993. p. 220 e 221.
359
Ibid. p. 153.
360
“A história compartilhada que dois indivíduos desenvolvem juntos, em alguns momentos, inevitavelmente, deixa de fora
outras pessoas, que se tornam parte do ‘exterior’ generalizado. A exclusividade não é uma garantia de confiança, mas apesar
disso é um estímulo importante para ela. Intimidade significa a revelação de emoções e ações improváveis de serem expostas
pelos indivíduos para um olhar púbico mais amplo. Na verdade, a revelação do que é mantido oculto das outras pessoas é um
dos principais indicadores psicológicos capaz de evocar a confiança do outro e de ser buscado em retribuição. É fácil
verificar como a auto-revelação presumida pela intimidade pode produzir co-dependência se não acompanhar a preservação
da autonomia. Se a ‘entrega’ psicológica ao outro não for mútua, e razoavelmente bem equilibrada, um indivíduo é capaz de
definir as suas necessidades desvinculadas do outro, esperando que o outro o acompanhe.” (GIDDENS, Anthony. A
transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora UNESP, 1993.
p. 153 e 154)
129

espécie de atos colocados como quase equivalentes. Não se trata mais de reclamar o que lhe é
devido ao cônjuge, mas de ‘gozar sem entraves’, com ou sem a ajuda do parceiro”. 361
Reconhece Béjin que é muito difícil harmonizar interesses que se podem tornar absolutamente
díspares. Os cônjuges ou companheiros terão sempre que negociar ou introduzir ajustes, que,
todavia, não guardarão qualquer proximidade com o debitum conjugale. Segundo Béjin, “essa
tentativa desajeitada de conciliação às vezes leva a uma oscilação ou a uma mistura entre
atitudes de laxismo egoísta e moralismo intransigente”. 362
De qualquer forma, evidencia-se cada vez com maior clareza que a questões da fidelidade
e da regulação do gozo da sexualidade em suas múltiplas expressões não são questões do
Estado, mas, sim, de cada pessoa. Situam-se, antes, no âmbito da autonomia e da liberdade.
Estas significativas alterações operadas nas famílias contemporâneas indicam que não
existindo mais um modelo prevalecente, nem sendo este o único tutelado e regulamentado, e
sobressaindo-se a autonomia e a liberdade na conformação, manutenção e dissolução da
conjugalidade, não há mais espaço para um princípio heteronômico imposto pelo Estado
consagrando a monogamia como elemento estruturante do estatuto jurídico da família.

3.2 Processos emancipatórios: a condição feminina

Não falta quem sustente que o Século XX passará para a história como aquele que
presenciou a revolução das mulheres, 363 apontando que este processo de emancipação tornou-
se marco referencial de uma virada histórica, à semelhança de outras revoluções que deram
novos rumos às sociedades humanas.
Um dos fatores que contribuíram decisivamente para as transformações dos papéis
desempenhados pelas mulheres e para o seu ingresso na vida pública foi o desenvolvimento
de tecnologias que permitiram o controle seguro da contracepção. O planejamento familiar
com a prorrogação da natalidade e seu controle, além de contribuir em termos do
desenvolvimento de uma paternidade responsável, permitiu à mulher programar sua carreira e
o exercício de atividade fora do âmbito doméstico. Não por mera coincidência, a partir dos
anos de 1960 é estabelecida uma forte e contundente pauta pelo movimento feminista, que

361
BÉJIN, André. O casamento extraconjugal dos dias de hoje. In: ARIÈS, Philippe e BÉJIN, André. Sexualidades
Ocidentais – Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.
190.
362
Ibid. p. 190.
363
A respeito escreveu Lluís Flaquer: “Es muy posible que este verdadero cataclismo histórico sea equiparado en los libros
de texto del futuro a la Revolución Neolítica o a la Revolución Industrial, verdaderas rupturas culturales que tuvieron un
alcance y un calado subterráneo mucho mayores que las mismas revoluciones políticas.” (FLAQUER, Lluís. La estrella
menguante del padre. Barcelona: Ariel. 1999. p. 56).
130

reivindica a igualdade entre homens e mulheres na sociedade contemporânea. Opera-se


verdadeiro refazer dos discursos. Mesmo os mais progressistas pensadores recebem veemente
crítica deste movimento, pois, por outras janelas e de outra perspectiva é visto o mundo.
Especialmente, as ciências humanas e sociais aplicadas recebem o impacto desta nova visão,
agora, marcadas por um olhar que se quis original, o olhar da mulher. Mais que um dizer
feminino, que poderia estar contaminado por séculos de patriarcalismo, trata-se da construção
de novo discurso sob um novo ponto de vista, fundamentado em uma metodologia própria
predeterminada.
Vasta produção foi desenvolvida pelo movimento feminista nas mais diversas áreas do
saber humano. Hoje, vive-se um novo momento, o discurso feminista foi em grande parte
assimilado e assumido mesmo por homens. Talvez esteja distante o momento que possa ser
referido como de plena emancipação das mulheres, certo é, porém, que teve tal eficácia o
movimento que logrou impor a igualdade entre homens e mulheres como um princípio de
ampla repercussão pelo menos em termos de discurso hegemônico. Dificilmente, nos dias
correntes, um partido político assumiria como bandeira a defesa dos direitos da supremacia
masculina, e uma associação que empunhasse tal bandeira mereceria o desprezo e o repúdio
popular.
Todavia, é certo que as formulações ideológicas, no sentido vulgar e não marxista do
termo, assentam-se em condições históricas que lhes permitem o êxito. Os ideais feministas
penetraram, sustentaram e justificaram transformações em graus diferentes nas diversas
camadas sociais. Não há dúvida de que nos segmentos mais escolarizados e com formação
cultural ampliada as mulheres conquistaram muito mais espaços do que nas camadas pobres e
de baixa escolaridade. Entre as mulheres pobres e analfabetas o grau de sujeição à dominação
masculina é exponencialmente mais expressivo.
Esta circunstância demonstra que o discurso emancipatório não carrega em si as forças
libertárias se não estiver ancorado em condições históricas que lhe permitam tornar-se eficaz.
Portanto, para explicitar o significado do processo atual da emancipação feminina é
necessário fazer referência ao trabalho. Como percebeu Flaquer, “falar da recém incorporação
da mulher ao mercado de trabalho dissimula o fato de que em todas as sociedades sempre
realizaram o que eufemisticamente se conhecia como ‘os trabalhos próprios de seu sexo’.” 364

364
FLAQUER, Lluís. La estrella menguante del padre. Barcelona: Ariel. 1999. p. 57.
131

O salto determinante tem a ver com a mudança da concepção do próprio trabalho como
demonstra Flaquer em percuciente análise. 365
Ao longo da história, segundo o mencionado autor, o trabalho foi percebido de formas
diversas. A própria origem etimológica da palavra trabalho, proveniente de tripalium,
instrumento de tortura usado na antiguidade, e, também, da palavra serviço, originada de
servus, estão a indicar que a atividade laboral era vista com desprezo e mesmo concebida
como tortura ou sofrimento. A ociosidade e o simples desfrute da vida em uma sociedade
aristocrata tipicamente estamental eram valorizados, já o trabalho era atividade própria dos
empregados e servos.
Atualmente, a situação é completamente inversa. Se a ociosidade era prerrogativa de uma
minoria e o trabalho o castigo das massas, hoje, o trabalho é percebido como um privilégio e a
ociosidade dos desempregados um castigo. Esta transformação, todavia, passou por estágios.
Assinala Flaquer que “de fonte de dependência e subordinação na primeira sociedade
industrial, o trabalho converte-se em signo de bem-estar, de status por meio do consumo, de
definição do lugar social e de autorealização pessoal na época em que vivemos”. 366 Desta
forma, para a típica mulher burguesa, no século XIX e, também, em boa parte do século XX,
em alguns países como o Brasil, trabalhar para terceiros seria visto como um castigo.367 O
trabalho e seu sentido reforçam a distinção entre o espaço público e o espaço privado.368 O
labor da mulher era exercido dentro das fronteiras do lar.
Nos dias atuais o trabalho alcançou outro significado, posto que permite separar entre
aqueles que têm as possibilidades de viver bem e os que não as têm. A ociosidade que era a
marca de ostentação dos senhores que viviam de suas rendas, perdeu significado. Desponta,
hoje, como status a sobrecarga laboral dos altos executivos. Assiste-se a exaltação do homo
faber. É neste momento de prestigio do trabalho que as mulheres das classes médias e
educadas saem para trabalhar.

365
Ibid. p. 56 a 60.
366
FLAQUER, Lluís. La estrella menguante del padre. Barcelona: Ariel. 1999. p. 58
367
Ana Carla Harmatiuk Matos sublinha um fato que, claramente perceptível no passado, hoje perdeu sentido: “Somente as
famílias de certo poder econômico poderiam determinar a mulher o confinamento dos serviços domésticos. Muitas mulheres
auxiliavam no negócio do marido e outras desempenhavam várias tarefas de produção rural, ainda que tendo uma atividade,
de modo geral, diretamente ligada a do marido; ou poderiam exercer, igualmente uma atividade considerada extensão
‘natural’ de seu papel feminino — como costureira, lavadeira, cozinheira, empregada doméstica e de cuidado para com as
crianças.”( MATOS, Ana Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000. p. 129).
368
“A divisão do trabalho (tanto afetivo quanto instrumental) e a distribuição do poder nas famílias estavam estruturadas
não apenas conforme as hierarquias geracionais, mas também ao redor das esferas de influência conforme o gênero, que
obtêm sua legitimidade precisamente em virtude da criação de uma dicotomia pública e privada”. (ZAMBERLAM, Cristina
de Oliveira. Os novos paradigmas da família contemporânea – uma perspectiva interdisciplinar. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001. p. 69).
132

O mais extraordinário movimento com repercussões na reconfiguração da família e da


vida pública tem direta relação com a ressignificação que as mulheres de classe média e alta
deram ao trabalho. A atividade econômica e laboral passou de carga ou castigo a uma
inigualável fonte de retribuição econômica e gratificação pessoal. De donas de casa as
mulheres converteram-se em empresárias, profissionais liberais, executivas, funcionárias
públicas de alto escalão, mandatárias políticas. Evidentemente, esta ascensão está diretamente
vinculada ao incremento do nível de escolarização. Hoje, nas universidades, há praticamente
paridade entre o ingresso de homens e mulheres.
Por certo, este processo se desenvolve entre antagonismos e ajustes. São estabelecidos
tipos distintos de famílias, e os modelos diferem-se ainda mais quando consideradas as
diversas camadas sociais. O novo aparece, às vezes, como um modelo consagrado ou como
um “já, mas ainda não”. A transição será longa e nada uniforme. O arcaico, o intermediário e
o novo seguirão por bom tempo em paralelo. Todavia, a força do novo, consubstanciado na
que foi genericamente denominada emancipação da mulher, é tão notável que dará a direção e
fixará a pauta para o repensar das sociedades humanas e, especialmente, para a reconfiguração
da família que experimenta o que Flaquer designou de a estrela minguante do pai.
O processo de emancipação da mulher não pode ser reduzido ou simplificado à questão
de seu ingresso no mercado de trabalho, ou às condições para o planejamento da natalidade,
ou ainda à consagração discursiva de uma nova condição social, política e familiar. A
emancipação da mulher envolve questões constitutivas deveras complexas.
No espaço e para as finalidades em vista não há campo para análises mais detalhadas da
matéria, mas, apenas a título exemplificativo, é possível mencionar questão intrincada
levantada por Pierre Bourdieu atinente ao ser feminino como ser percebido.369 Para Bourdieu
“tudo, na gênese do habitus feminino e nas condições sociais de sua realização, concorre para
fazer da experiência feminina do corpo o limite da experiência universal do corpo-para-o-
outro, incessantemente exposto à objetivação operada pelo olhar e pelo discurso dos
outros”.370 Desta forma a dominação masculina de natureza eminentemente simbólica, que
constitui as mulheres como objetos simbólicos, sendo seu ser (esse) um “ser-percebido”
(percipi), tem como consequência colocá-las em situação de insegurança em relação ao corpo
ou de dependência simbólica. “Elas existem primeiro pelo, e para o olhar dos outros, ou seja,
enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis. Delas se espera que sejam ‘femininas’,

369
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 79 e ss.
370
Ibid. p. 79.
133

isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo


apagadas.”371 Trata-se de evidente heteronomia constitutiva do ser feminino. A necessidade
do olhar do outro para se constituir leva à prática da autoavaliação antecipada do apreço que
sua aparência despertará no outro. E a distância entre o corpo real e o ideal, construído
socialmente pelo olhar do outro, viabiliza a tendência “à autodepreciação e à incorporação do
julgamento social sob forma de desagrado do próprio corpo ou de timidez”.372
A experiência confirma o que registrou Bourdieu: “é na pequena burguesia, que devido à
sua posição no espaço social estar particularmente exposta a todos os efeitos da ansiedade em
relação ao olhar social, que as mulheres atingem a forma extrema de alienação simbólica”. 373
Esta situação de dominação pode chegar a tomar dimensão masoquista por uma espécie de
erotização das relações sociais de dominação. O masoquismo opera uma forma de
compensação. O olhar dos poderosos374 teria como que uma função reasseguradora.
Evidentemente, não seria um círculo vicioso que se retroalimenta eternamente. A
transformação subjetiva e objetiva do corpo opera-se quando a mulher deixa de existir apenas
para o outro ou para o espelho, que em alguma medida representa o outro, pois é “instrumento
que permite não só se ver, mas também experimentar ver como é vista e se fazer ver como
deseja ser vista”.375 Bourdieu sustenta que a independência intelectual como também a prática
intensiva de determinados esportes liberam as mulheres da tendente construção de si a partir
do olhar social alheio. O risco de ser vista como não feminina é difícil de ser assumido,
quanto mais estiver exposta ao veredicto do olhar masculino. Tanto a sedutora quanto a não
feminina estão expostas às manifestações de sexismo e de preconceitos estabelecidos na
cultura machista.
Complexos aspectos da emancipação da mulher, como este por Bourdieu ressaltado com
muita lucidez, trazem à tona o fato de que a dominação masculina ainda deixa significativos
vestígios, mesmo que se reconheça que está minguando à medida que as condições históricas
favorecem câmbios profundos na sociedade e na estruturação das famílias.

371
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 82.
372
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 83.
373
Ibid. p. 83.
374
“O dominante tem, principalmente, o poder de impor sua visão de si mesmo como algo objetivado e coletivo (sendo seu
auge representado pelas estátuas equestres ou pelos retratos majestáticos), e de obter dos outros que, tal como se dá no amor
ou na crença, eles abdiquem de seu poder genérico de objetivação, constituindo-se, assim, em sujeito absoluto, sem exterior,
plenamente justiçado de existir tal como existe.” (BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed., Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2002. p. 85)
375
Ibid. p. 83.
134

Certo é, porém, que após o avanço da emancipação da mulher em significativos


segmentos da sociedade, especialmente aqueles com maiores condições de acesso à educação,
tem-se experimentado uma segunda transição nas estruturas familiares. Fala-se em família
pós-moderna ou pós-nuclear. Se na família nuclear, o lar constituía o refúgio do mundo
competitivo do mercado e do trabalho — o lar mantinha-se impermeável às tensões externas
— na família pós-nuclear as tensões se põem no centro da casa. E o equilíbrio entre as esferas
pública e privada verifica-se nas circunstâncias em que as mulheres de níveis educacional e
profissional mais elevados tornam-se protagonistas de significativas mudanças nas estruturas
e funções familiares. Obviamente, não é sem tensões que a igualdade material entre homens e
mulheres é vivida como experiência de fato. Registra Flaquer que “o casal não se acha em
crise como ideal, mas sua vivência cotidiana se encontra atormentada por armadilhas”.376 À
medida que cessa todo tipo de dominação e sobretudo aquela não explícita, simbólica,
assimilada e tida como natural ou decorrente das condições de gênero, a conjugalidade fica
suspensa apenas pela fragilidade às vezes insustentável do amor. Todo transformação drástica
tem implicações epistemológicas. Força-se um exercício de reaprendizado.
O princípio da monogamia está entre aqueles que ancoram o secular modelo patriarcal de
dominação masculina. Nestes novos tempos, em que se apresenta tão promissor o processo de
emancipação da mulher, não há mais lugar para um princípio que, no Ocidente, ao longo dos
séculos, só teve efetiva vigência como vedação da poliandria e, por isso mesmo, sustentou
moralismo hipócrita em relação à poliginia. Assumido juridicamente, tal moralismo tornou
invisíveis inúmeras mulheres, reificadas pela dominação masculina e marginalizadas com
designação pejorativa de concubinas. Não se tem a aparente segurança que desfrutava a
família tradicional e mesmo a típica família nuclear burguesa,377 pois, estabelecendo-se entre
iguais, a relação amorosa tornou-se muito mais tênue e sensível.

3.3 Pluralismo: igualdade e diversidade

Cogita-se que uma das características das sociedades arcaicas concerne ao fato de
possuírem um único estatuto que a um só tempo era religioso, jurídico e moral. Regidas por
uma única religião, os deuses dos antepassados seriam os deuses de todos os membros do clã
e da cidade. Registram Peter Berger e Thomans Luckmann que “durante a maior parte da
376
FLAQUER, Lluís. La estrella menguante del padre. Barcelona: Ariel. 1999. p. 62.
377
“O casal tradicional podia aguentar muitos deslizes, tanto mais se estes fossem imputados ao marido. Um casal de hoje
talvez não consiga sobreviver a uma só infidelidade.” (FLAQUER, Lluís. La estrella menguante del padre. Barcelona:
Ariel. 1999. p. 62). E não se trata de reafirmação do princípio da monogamia como norma heterônoma, imposta pelo Estado,
antes diz respeito ao pleno exercício da liberdade entre pessoas efetivamente iguais.
135

história da humanidade foi simplesmente impensável uma sociedade sem uma religião única
que dissesse respeito a tudo e a todos.”378 A ordem do mundo, a organização social, as
atividades laborais, a estrutura e as relações familiares, a ritualística religiosa estariam,
segundo esta perspectiva, reunidas em uma única cosmovisão que emprestava sentido e
justificava miticamente todas as coisas.
Ainda que se admita a hipótese dessa univocidade nas sociedades primitivas, há muitos
séculos antes da era cristã, as sociedades humanas tornaram-se muito mais complexas, com
rompimentos paradigmáticos de cosmovisões que se antagonizavam. Por outro lado, sempre
foram recorrentes as tentativas de imposição de sistemas simbólicos unificadores. O projeto
de cristandade, iniciado na Idade Média, pretendeu trazer todas as pessoas para um único,
comum e supraordenado sistema de sentido. A inquisição com sua estrutura e mecanismos
coercitivos e de controle constituiu o grande censor daqueles que não se enquadravam no
projeto de cristandade, como os hereges em geral, os judeus e as bruxas. Esta tentativa de
imposição de um sistema de sentido enfrentou a resistência e insurgência do islamismo que
fez notáveis incursões na Europa. Também, a Reforma Protestante enfraqueceu as pretensões
do estabelecimento da cristandade sob um poder unificador.
Mesmo que isento de conotação religiosa não se pode negar que o projeto comunista
tinha pretensão de construir um sistema único de sentido. Ao menos nas experiências
concretas do socialismo soviético e chinês, por exemplo, esse intento era notório. São
igualmente evidentes os conteúdos simbólicos do nazismo e do fascismo que têm nítidas
pretensões de uniformização de sentido. Todas essas tentativas parecem apontar em direção
diversa daquela assinalada como a vocação da modernidade desde sua gênese. O iluminismo
colocou sob suspeita de uma vez para sempre toda e qualquer pretensão de totalização
dogmática. A crítica racional pressupõe a liberdade de pensamento e expressão. Logo, a
diversidade e o pluralismo são consequências inarredáveis da modernidade.
A modernidade está vocacionada ao secularismo como oposição ao dogmatismo religioso
e ao pluralismo como consequência da liberdade de pensamento e, portanto, como recusa ao
sentido unitário e autoritário do mundo, da vida, da sociedade e da condição humana. Berger e
Luckmann entendem que, somente na modernidade, o pluralismo teve sua expansão máxima,
e que isso é ainda mais visível nas sociedades altamente industrializadas. Nessas, “a forma
moderna de pluralismo está plenamente desenvolvida, as ordens de valores e as reservas de
sentido não são mais propriedade comum de todos os membros da sociedade. O indivíduo

378
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 41.
136

cresce num mundo em que não há mais valores comuns que determinam o agir nas diferentes
áreas da vida, nem uma realidade única, idêntica para todos.”379 As situações sociais
contemporâneas, especialmente, nos países democráticos estão a demonstrar que não há mais
campo para se pressupor que a coesão social decorra de uma visão unitária do mundo, da
vida, da sociedade e do sentido da existência.
Esta circunstância pode provocar crise de sentido. É a percepção de Berger e Luckmann,
quando sustentam que “essa forma moderna de pluralismo é também a razão básica principal
da difusão de crises subjetivas e intersubjetivas de sentido”. 380 Quanto às crises subjetivas e
intersubjetivas de sentido vivenciadas pelas sociedades contemporâneas, os sociólogos citados
estão em companhia de Edgar Morin que consagrou a ideia do “princípio da incerteza inerente
a toda ação, e singularmente, a toda ação política”, 381porém, os primeiros apresentam
possibilidades ou soluções bastante diferentes daquelas indicadas por Morin.
Berger e Luckmann admitem que o pluralismo moderno tem como decorrência suscitar a
tolerância como “virtude elucidativa” por excelência, porque ela propicia que indivíduos e
sociedades vivam lado a lado com suas vidas dirigidas por valores diferentes. O pluralismo
moderno “teria efeitos úteis, à medida que fomentam a coexistência pacífica de diferentes
formas de vida e de ordens de valores. Mas não se destinam a agir diretamente contra a
difusão de crises de sentido”.382 Estes autores entendem que a questão da crise de sentido
somente poderá ser solucionada em comunidades de vida quase autônomas. “As comunidades
concretas de vida como comunidades quase autônomas de sentido e as comunidades de
convicção (...) mais estáveis e ‘puras’, por assim dizer, frustram a difusão muito grande, a
discrepância entre a comunidade prospectada e a realizada pode ser promotora de novas crises
intersubjetivas de sentido”.383 Esta análise revela sua inconsistência ao trabalhar com a

379
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 39.
380
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 38.
381
MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: 1986. p. 360.
382
Op. Cit., p. 39 e 40.
383
Estes autores mostram-se bastante conservadores. Tomam o pluralismo como um dos males da modernidade. Sustentam
que “contra a diferenciação e o pluralismo não há remédio cujo efeito não se tenha mostrado como veneno moral. (...) Entre a
impossibilidade da reação ‘relativista’ à modernidade e as amedrontadoras possibilidades do ‘fundamentalismo’ há uma outra
posição. Ela consiste em tentar, da melhor forma possível, conformar-se com as consequências negativas da diferenciação
estrutural e do pluralismo moderno. A gente se volta contra o perigo da destruição da sociedade moderna através de
regressões totalitárias, mas não vê nenhum motivo para celebrar o pluralismo moderno. O programa é modesto, mas,
pensamos nós, realista: as instituições intermediárias precisam ser apoiadas lá onde não encarnam atitudes
‘fundamentalistas’, mas onde apóiam os ‘pequenos mundos da vida’ de comunidade de sentido e eventualmente também de
convicção e educam ao mesmo tempo seus membros para serem portadores de uma ‘civil society’ pluralista. Nos ‘pequenos
mundos da vida’ os diversos sentidos oferecidos pelas entidades que os intermedeiam não são simplesmente consumidos,
mas são objeto de uma apropriação comunicativa e processados de forma seletiva até transformarem-se em elementos da
comunhão de sentido das comunidades de vida”. (BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e
crise de sentido. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 83).
137

hipótese de unicidade cultural. Como registrou Vicente de Paula Barreto, “a própria ciência
antropológica mostra como dentro das culturas encontra-se uma enorme gama de
interpretações da própria tradição e das práticas culturais, podendo-se afirmar que neste
sentido todas as culturas são pluralistas”. 384 A concepção pluralista parte do princípio de que
sempre existirão posições divergentes sustentadas por alguns atores sociais mesmo em
sociedades aparentemente monolíticas.
Por senda diferente daquela tomada por Berger e Luckmann, encaminha-se a reflexão de
Edgar Morin. Para ele, não se trata de buscar refúgio em comunidades de vida em meio a um
mundo que sucumbe às crises de sentido. Diz Morin: “Não vamos eliminar a incerteza e o
imprevisível, vamos aprender a melhor trabalhar e jogar com eles. Não nos tornaremos, de
repente, ‘sábios’; vamos aprender a conviver com nossa loucura para nos preservar de suas
formas atrozes de massacre. Apostar? Não sabemos se já se jogou tudo ou se nada foi jogado.
Nada é certo, principalmente o melhor, mas inclusive o pior.”385 A perspectiva de Morin não
desacredita das possibilidades políticas contemporâneas, apenas não se ancora em certezas.
Por isso, a figura do jogo é recorrente em seu pensamento.
Ainda que de forma sucinta um aspecto da reflexão de Edgar Morin deve ser referido,
pois, guarda especial relação com a temática da igualdade e da diversidade. Para ele, o que há
de radicalmente novo na história é o que chama de emergência planetária da humanidade.
Há milhões de anos o homo sapiens dispersou-se pelo planeta conformando etnias que se
fecharam em suas línguas, culturas e crenças. As mais próximas tinham contato e faziam
alianças ou guerras. As mais distantes ignoravam-se ou no máximo eram conhecidas por
parcas notícias e lendas. As histórias eram “variadas, múltiplas, assincrônicas, não uma
história.”386 A humanidade começa a ser percebida como tal com a descoberta da América,
desenha-se com o desenvolvimento técnico do século XIX, quando os imperialismos
ocidentais, por meio de seus exércitos, se espalham pelo mundo. As grandes guerras do século
XX dividiram o planeta para em seguida fazer surgir a urgência de uma construção planetária
da humanidade. Atualmente, “o primeiro tecido conjuntivo de um grande corpo planetário
passa a ser tecido e re-tecido por miríades de intercomunicações, interconexões,
interdeterminações, interdependências, inter-retroações não só técnicas, econômicas,

384
BARRETTO, Vicente de Paulo. Multiculturalismo e direitos humanos: um conflito insolúvel? In: BALDI, César Augusto
(Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 279-308. p. 286.
385
MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: 1986. p. 360 e 361.
386
MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: 1986. p. 330.
138

informáticas, ideológicas, culturais, mas, também, biológicas.” 387 Morin menciona inclusive
as epidemias anuais de gripe e as mestiçagens múltiplas dos seres humanos.
Forjou-se, portanto, contemporaneamente uma consciência de humanidade. Desde a
bomba atômica, esta tornou-se, , uma comunidade de destino, uma comunidade de vida ou
morte. Com precisão pontuou Edgar Morin: “A humanidade viveu a sua morte potencial antes
de poder nascer”.388 Desta forma, segundo Morin, o radicalmente novo na história é que “na
base biológica da espécie homo sapiens, através de extraordinária diversificação das culturas,
a humanidade constitui-se em entidade geográfica planetária, unifica-se sob a égide da técnica
que lhe permite todo tipo de intercomunicação, reconhece-se como comunidade de destino no
seio da biosfera e, afinal, emerge como consciência...” 389 A questão da igualdade e da
diversidade é definitivamente posta em pauta e se converte em um dos mais intrincados temas
quando se pensa os direitos humanos. 390
Se correta a afirmação de Edgar Morin no sentido de que a mais radical novidade
histórica é a tomada de consciência de uma humanidade planetária, este fato impõe novas
pautas para as discussões jurídicas centradas no tema da igualdade e do direito à diversidade.
Apenas a título exemplificativo, deve ser mencionada uma circunstância, posto que o tema
será efetivamente aprofundado no próximo capítulo. Como poderia um Estado democrático de
direito impor sua regulamentação acerca do matrimônio — regulamentação esta fundada no
princípio da monogamia — para estrangeiros oriundos de países de cultura poligâmica que se
tornassem residentes, sem ferir gravemente direitos fundamentais? Igualmente, seria possível
um Estado democrático de direito estancar pela força da lei as adaptações culturais e as
mutações de hábitos e costumes dos próprios nacionais que na atualidade se constituem como
cidadãos do mundo e não necessariamente de uma nação?
A complexidade das sociedades contemporâneas não permite soluções singulares próprias
de um modelo que não responde mais aos desafios postos para o Direito Civil e,
especialmente, para o Direito de Família. Diretamente vinculada à temática do pluralismo está
a questão da laicidade do Estado e do Direito. Considerações sobre este viés de análise são

387
Ibid. p. 330 e 331.
388
MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: 1986. p. 331.
389
Ibid. p. 331.
390
A consciência de humanidade trouxe consigo o problema da fundamentação dos direitos humanos. O modelo do
positivismo jurídico entra em crise. Que argumentos racionais e morais justificam a pretensão de validade universal desses
direitos? Como superar a noção de um direito vinculado diretamente à noção de soberania do Estado nação? Sobre o tema ver
BARRETTO, Vicente de Paulo. Multiculturalismo e direitos humanos: um conflito insolúvel? In: BALDI, César Augusto
(Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 279-308.
139

fundamentais para o caso brasileiro em razão da inquestionável influência do direito canônico


na conformação do Direito de Família.

3.4 Laicização do direito e a conjugalidade

No último quadrante do século XX e primeira década do Século XXI assistiu-se a


encontros de culturas em razão da migração de grandes massas populacionais e da expansão
sem precedentes dos meios de comunicação, especialmente, a Internet. O que num primeiro
momento poderia sugerir congraçamento e tolerância não sucedeu. Antes, estabeleceram-se
guetos de imigrantes em países desenvolvidos da Europa e da América do Norte, e reacendeu-
se o fundamentalismo religioso, fortalecendo estados ou governos teocráticos no mundo
islâmico, despertando o ímpeto da direita mais fundamentalista em vários países do Ocidente.
Uma das marcas distintivas dos Estados teocráticos é a regulação totalitária da vida das
pessoas que habitam e também daquelas que simplesmente ingressam em seu território. A
questão central para qualquer Estado teocrático diz respeito à verdade. Se há uma verdade
revelada apropriada pelo Estado e convertida em norma a ser aplicada a todos pela força que
tem de dizer o direito, interditado estará qualquer espaço à diversidade e ao pluralismo.
O totalitarismo não constitui exclusividade dos estados teocráticos. A este respeito diz
Edgar Morin que “quando uma ideia política se acredita científica e não projeção do espírito
sobre o real; quando ela acredita possuir a verdade lógica da matemática, a verdade operatória
da razão, a verdade ontológica do real, então, todo obstáculo, toda contradição torna-se erro
ou mentira a ser eliminada.” 391 O cientificismo pode cumprir papel idêntico ao da religião. Os
totalitarismos são fundados em um conhecimento que se auto-referencia e se legitima de
forma inquestionável. A intolerância revela-se como decorrência necessária de todo e
qualquer totalitarismo. O pensamento divergente tem que ser eliminado.
O reacender dos movimentos fundamentalistas desperta outros fundamentalismos
latentes, pondo em perigo princípios democráticos estabelecidos há mais de século em países
que se intitulam guardiões dos anais e da experiência histórica da democracia. Se o
cientificismo se apresentou como fundamento de totalitarismos do tipo nazista, fascista ou
stalinista, atualmente, o fundamento da verdade religiosa é que tem sido evocado com maior
fervor.
Ainda que sejam imensas as críticas que se possa fazer à modernidade e às revoluções
burguesas, fato é que marcaram posição da qual não se deve retroceder: a laicização do

391
MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: 1986. p. 296.
140

Estado. Esta constitui pressuposto ou conditio sine qua non da própria democracia. Se
qualquer grupo encastelado no poder estatal julgar ter a verdade e a impuser como razão de
Estado não há chance alguma para o convívio democrático e plural. Tratar da laicização do
Estado e, conseqüentemente, do Direito implica tanger questão nodal da política, isto é, a
questão da verdade. Edgar Morin o expressou de forma irretocável: “Impõe-se a nós uma ética
política que nos obriga a jogar o jogo da verdade e do erro e não a controlá-lo, isto é, a
impedir que seja jogado. O que é mais sagrado não é a verdade, é o jogo da verdade. A
existência desse jogo é que é sagrada, mesmo que o jogo seja sempre mal jogado, com muitas
trapaças, blefes, astúcias, falsas informações, e o exercício desse jogo determine a vitória do
erro”.392 O respeito ao jogo constitui também um jogo, uma aposta nas possibilidades da
democracia. Trata-se de uma escolha que comporta não poucos riscos e abriga apenas parcas e
incertas certezas.
Partindo da premissa acima exposta, cabe referir que os Estados teocráticos sempre
tiveram obsessão pela regulamentação da sexualidade. Os exemplos caricatos e que
escandalizam o Ocidente referem-se à mortificação da sexualidade feminina nos países
islâmicos, com a imposição do uso da burca 393 que tem a finalidade de apagar o corpo da
mulher, a excisão394 para anular vestígios de qualquer gozo sexual, ou ainda pior, a
infibulação395 para evitar o coito e assegurar a “utilização” da mulher apenas pelo marido. A
regulamentação religiosa da sexualidade, seja no Oriente seja no Ocidente, tem sua maior
incidência sobre o corpo da mulher. Mesmo que nos países ocidentais as regras religiosas
sejam menos presentes e menos eficazes em razão do processo de secularização, se o Estado

392
MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: 1986. p. 296.
393
Sobre o tema anotou Helena Zamora: “As mulheres sob o regime talibã não podem deixar de usar a burca, sob pena de
morte. Trata-se de uma vestimenta que as cobre dos pés à cabeça e que tem pequenos furos na face para permitir a visão. As
mulheres também não podem estudar, trabalhar, divertir-se, participar politicamente, escolher seus maridos, opinar na
educação de seus filhos. Se ficarem doentes, a assistência é muito limitada, porque não podem falar com o médico, e não há
médicas. O único aspecto de suas vidas que elas podem escolher é a cor de sua burca.” (ZAMORA, Maria Helena. A burca:
notas para a compreensão do estupro. In: Revista Vivência. UFRN/CCHLA. n.32, p. 311-320. Natal, 2007. p. 312).
394
“A prática da excisão varia de acordo com a cultura de cada povo que ainda a adota. Consiste na mutilação do clitóris
(órgão do prazer sexual feminino) e dos pequenos lábios vaginais. A excisão mínima, utilizada no oeste da África e na
Indonésia, é a retirada do capuz do clitóris.” (DAMASIO, Celuy Roberta Hundzinski. Luta contra a excisão. In: Revista
Espaço Acadêmico, ano I, n 3, ago/2001 - http://www.espacoacademico.com.br/003/03col_celuy.htm - consulta em
20/11/2011)
395
“Temos ainda, no leste africano (Djibuti, Etiópia, Somália, Sudão, Egito, Quênia), a infibulação, também chamada de
excisão faraônica, considerada a pior de todas, pois, após a amputação do clitóris e dos pequenos lábios, os grandes lábios são
secionados, aproximados e suturados com espinhos de acácia, sendo deixada uma minúscula abertura necessária ao
escoamento da urina e da menstruação. Esse orifício é mantido aberto por um filete de madeira, que é, em geral, um palito de
fósforo. As pernas devem ficar amarradas durante várias semanas até a total cicatrização. Assim, a vulva desaparece sendo
substituída por uma dura cicatriz. Por ocasião do casamento a mulher será “aberta” pelo marido ou por uma “matrona”
(mulheres mais experientes designadas a isso). Mais tarde, quando se tem o primeiro filho, essa abertura é aumentada.
Algumas vezes, após cada parto, a mulher é novamente infibulada.” (DAMASIO, Celuy Roberta Hundzinski. Luta contra a
excisão. In: Revista Espaço Acadêmico, ano I, n 3, ago/2001 - http://www.espacoacademico.com.br/003/03col_celuy.htm -
consulta em 20/11/2011).
141

toma tais regras como suas e as impõe à coletividade, certamente ocorre grave lesão ao
princípio da democracia e da liberdade.
Sendo laico o Estado e, por decorrência, também o Direito, inadimissível que a
regulamentação jurídica da conjugalidade não contemple a multiplicidade de suas expressões
culturais e mesmo a idiossincrasia de novos modelos conjugais sui generis. No Estado
democrático de direito deve ser assegurado às diversas confissões religiosas o direito de
professar seus respectivos credos e a partir deles estabelecer seus estatutos éticos, bem como a
cada pessoa deve ser garantido o direito associativo e a liberdade de professar sua crença.
Todavia, não será admissível, em um regime democrático, que o Estado assuma qualquer
credo e seu código moral como referência, extraindo dele normas de conduta a serem
observadas por todos os cidadãos.
A efetividade da laicização não é um processo que decorre de simples proclamação. Não
se pode esquecer que a religião é um dos fortes componentes culturais, também, constitutivo
do ethos de todos os povos seja no Ocidente seja no Oriente. Houve períodos históricos em
que a questão da laicidade quase correspondeu a uma ferrenha disputa entre clericalismo e
anticlericalismo. 396 Num primeiro e claro momento de rompimento de superação do Antigo
Regime, em que o clero e a nobreza estavam entrincheirados no poder, o programa de
laicização do Estado aparece como uma luta contra a religião. Esta percepção foi uma
decorrência normal do embate.
O princípio da laicização não perdeu importância com o decorrer dos anos, ao contrário,
seu significado aprofundou-se atualmente. Tendo sido superada a primeira fase, na qual se
pensou a laicidade como posto de combate às concepções clericais ou religiosas, ela obteve
novo sentido e alcance, assim, referidos nas palavras de Stefano Rodotà: “A laicidade, como
sabemos, não é uma tábua de valores a serem simplesmente contrapostos a outros valores. É,
sobretudo, uma dimensão da liberdade, um instrumento para a livre formação da
personalidade, um elemento essencial para a convivência.” 397 Esta nova percepção decorre do

396
Bem o percebe Stefano Rodotà: “La vicenda della laicità viene storicamente identificata con la contrapposizione tra
clericali e anticlericali che, con il passare del tempo, ha finito con l'apparire sempre più datata, addirittura presentata con le
stimmate negative di un anacronismo. Ma così non è, perché le pretese dei diversi fondamentalismi, le dispute intorno ai
valori ripropongono spesso drammaticamente la questione dei rapporti tra fede e politica, tra regole giuridiche e regole
etiche”. (“O percurso da laicidade é historicamente identificado pela contraposição entre clerical e anticlerical que, com o
passar do tempo, se mostrou cada vez mais datada, e até mesmo apresentada com o estigma negativo de um anacronismo.
Mas assim não é, isto porque as reivindicações dos mais diversos fundamentalismos, as disputas em torno dos valores, muitas
vezes reproduzem de forma dramática as relações entre fé e política, entre as regas jurídicas e as regras éticas.”). (RODOTÀ,
Stefano. Perché laico. 6. ed. Bari: Laterza, 2009. p. 60)
397
“La laicità, lo sappiamo, non è una tavola di valori da contrapporre semplicisticamente ad altri valori. E' piuttosto una
dimensione della libertà, uno strumento per la libera formazione della personalità, un elemento essenziale per la convivenza”.
(RODOTÀ, Stefano. Perché laico. 6. ed. Bari: Laterza, 2009. p. 60)
142

amadurecimento histórico do “conceito” de laicidade. Apesar da nova dimensão que tomou,


Rodotà adverte que, todavia, há componentes da laicidade que remetem à sua matriz
iluminista, mormente o alto valor da consciência plena e crítica, libertada de catecismos e de
censura.398 Este elemento da laicidade, em verdade, é francamente positivo. Por ele a
laicidade não é concebida como oposição ou negação de nenhuma fé, crença ou convicção,
mas, sim, como um princípio assegurador da liberdade de pensamento e inibidor das censuras
e dos dogmatismos.
As raízes históricas da defesa da liberdade de pensamento e do repúdio aos dogmatismos
e censuras eclesiásticas, que deram base ao princípio da laicidade do Estado e do Direito,
encontram-se na reação às guerras religiosas que espalharam tragédia, medo e miséria pela
Europa durante muitos anos. Talvez, por esta razão, a laicidade sobressaiu-se como reação ao
absolutismo clerical, vinculando-se ao ideário iluminista como oposição às trevas e ao atraso
impostos pela religião.
Partindo da premissa de que a laicidade é antes de tudo uma dimensão da liberdade, um
instrumento para o livre desenvolvimento da personalidade e um elemento fundamental para a
convivência humana, Stefano Rodotá propõe o exercício de repensar o conceito de tolerância.
Sustenta que a tolerância não pode ser pensada como um conceito meramente passivo, no
sentido de se aceitar a existência das outras culturas ou grupos étnicos. A sociedade pluralista
correria o risco de converter-se em um agrupamento de guetos. Não é possível conceber uma
sociedade que tolera cada vez mais e que integra cada vez menos. 399 A indiferença não
incorpora o respeito, porém, o medo. A tolerância deve, pois, revelar uma atitude ativa e não
meramente de abstenção quanto à existência do outro, do diferente.400
Pertinente à problemática enfrentada nesta tese é a reflexão da maior importância que
Rodotà propõe em relação à laicidade no que se refere à produção legislativa ou técnica de
disciplina. A grande questão é que o Estado de direito foi sempre pensado a partir de um
modelo destinado a superar ou a extinguir os conflitos por meio de uma regra de supremacia
que prevalece entre os interesses em choque. Quando se toma a laicidade como diretriz para o
pluralismo, aumenta-se a possibilidade de regras se compatibilizarem, fazendo coexistirem
valores diversificados, pontos de vista e interesses diversos. Sustenta o citado autor que as
cláusulas gerais e os conceitos “elásticos” seriam mais apropriados como técnica legislativa,
398
RODOTÀ, Stefano. Perché laico. 6. ed. Bari: Laterza, 2009. p. 60.
399
Ibid. p. 62.
400
Para que a tolerância, como aspecto positivo da laicidade seja desenvolvida, Rodotà indica espaços públicos de
confrontação que deveriam ser privilegiados: a escola, os meios de comunicação, a rede mundial de computadores, a
democracia local, e os comitês de ética. (RODOTÀ, Stefano. Perché laico. 6. ed. Bari: Laterza, 2009. p. 63).
143

que contempla o pluralismo, pois, o concreto significado pode ser adaptado aos diversos
contextos em que as normas forem aplicadas. 401
Em um Estado que se proclame democrático e orientado pelo princípio pluralista
inclusivo, não há lugar para o regramento unívoco da conjugalidade. Estabelecer um standard
para todas as relações conjugais, com as facilidades e praticidades inerentes a determinado
modelo único, talvez seja o caminho mais fácil e mais apto a proporcionar a chamada
segurança jurídica, porém, a vida e os relacionamentos são dinâmicos, criativos, voláteis e
mutantes. A diversidade que implica sempre certa dose de conflito não pode ser aniquilada em
nome de um modelo único expresso em lei. Como pontua Rodotà :
O exercício da laicidade exige também, e talvez sobretudo, cuidado no uso do
instrumento legislativo. Este não deve transforma-se em atalho autoritário para impor
valores não compartilhados, para aniquilar a autonomia individual em nome de
ideologias ou de crenças. O laico conhece os riscos daquilo que Paolo Prodi chamou
de ‘a norma de uma dimensão’, na qual a juridicidade torna-se veículo obrigatório de
uma ética. Distinguindo entre sistema do direito e sistema da ética, o laico demonstra
consideração e respeito bem maiores por este último do que dizem lhe tributar os
leiloeiros oficiais de uma moral.402

A juridicidade das relações conjugais é por certo, ainda hoje, tributária do modelo
religioso do casamento, como se buscou evidenciar nos dois primeiros capítulos. E, entre os
princípios estruturantes do estatuto jurídico da conjugalidade e da família, haurido do direito
canônico, estava o princípio da monogamia. Como se demonstrou, a laicidade não deve ser
reduzida à concepção de antagonismo à fé ou a qualquer credo religioso, antes, há de ser
percebida como princípio assegurador não somente da tolerância em relação àquele que não é
considerado igual, mas, também, como princípio que permite a convivência pacífica,
integradora da diversidade humana.
A laicidade reforça a autonomia e a liberdade das pessoas. 403 Experimentado como laico,
o Estado não chama a si a responsabilidade de estabelecer como norma jurídica padrões
morais de uma religião ou de uma ideologia, especialmente nas relações existenciais. As

401
RODOTÀ, Stefano. Perché laico. 6. ed. Bari: Laterza, 2009. p. 67.
402
“L'esercizio della laicità esige anche, e forse soprattutto, misura nell'uso dello strumento legislativo. Questo non deve
trasformarsi in scorciatoia autoritaria per imporre valori non condivisi, per mortificare l'autonomia individuale in nome di
ideologie o fedi. Il laico conosce i rischi di quella che Paolo Prodi ha chiamato "la norma ad una dimensione", nella quale la
giuridicità diviene veicolo obbligato di un'etica. Distinguendo tra sistema del diritto e sistema dell'etica, il laico mostra
considerazione e rispetto per quest'ultimo ben maggiore di quello che dicono di tributargli i banditori ufficiali d'una morale.”
(RODOTÀ, Stefano. Perché laico. 6. ed. Bari: Laterza, 2009. p. 67).
403
Discorrendo sobre o tema, pondera Silvana Maria Carbonera: “O reconhecimento da existência de quaisquer valores,
inclusive os religiosos, não pode se dar com fundamento na exclusão de outros vigentes na sociedade, já que o próprio
reconhecimento da religião como um valor juridicamente protegido encontra seu fundamento na liberdade, na democracia, e
em sua própria relatividade: como já afirmado, trata-se de mais um valor, e não o único ou o mais importante deles, tal como
ocorre com a laicidade propriamente dita.” (CARBONERA, Maria Silvana. Laicidade e família: um diálogo nece ssário a
partir do olhar de Stefano Rodotà. In: TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson. Diálogos sobre direito civil. Vol. III.
Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 379.)
144

normas restritivas atinentes as formas ou possibilidades de constituição de famílias e de


conjugalidades só podem ter lugar num Estado que pretenda uniformizar condutas. No caso
da regulação da conjugalidade, assiste-se, atualmente, verdadeira cruzada religiosa no
Congresso Nacional. Todos os projetos de lei tendentes a dar tutela jurídica às famílias
estruturadas fora do modelo heterossexual e monogâmico têm sido objeto de veementes
críticas. Nestes momentos, a laicização ganha seus antigos contornos de luta anticlerical. O
calor das disputas torna a visão viciada e míope de ambos os lados. O fundamentalista e o
defensor da laicidade postam-se em uma arena que não lhes permite contemplar novos
horizontes para uma sociedade inclusiva. Por esta razão, necessário enfatizar a dimensão
positiva da laicidade que, segundo a percepção de Silvana Maria Carbonera, “é o
reconhecimento e a atribuição de valor à diferença cultural, de modo que todas as pessoas que
vivam em uma determinada sociedade possam buscar a realização de suas personalidades,
albergadas em um sistema jurídico flexível o suficiente para permitir que escolhas diferentes
possam receber a tutela jurídica adequada”. 404
Os quatro temas referidos neste capítulo são nitidamente interconectados. A
democratização dos espaços da intimidade, os processos de emancipação da mulher, a
consagração dos princípios da igualdade e do direito à diversidade na ambiência plural
contemporânea e a laicização do Estado e do Direito forneceram as condições para os notórios
câmbios experimentados pela família contemporânea. Referidos estes fatores fundamentais,
importa passar à análise da questão da monogamia no contexto jurídico atual, precipuamente
em relação à tábua axiológica enfeixada nos princípios constitucionais.

404
CARBONERA, Maria Silvana. Laicidade e família: um diálogo necessário a partir do olhar de Stefano Rodotà. In:
TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson. Diálogos sobre direito civil. Vol. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.p. 395.
145

4 PERSPECTIVAS JURÍDICAS DA SUPERAÇÃO DA MONOGAMIA COMO


PRINCÍPIO
“Os direitos atribuídos aos componentes da família garantem e promovem
diretamente exigências próprias da pessoa e não de um distinto organismo, expressão
de um interesse coletivo.... A família não é titular de um interesse autônomo, superior
àquele do pleno e livre desenvolvimento de cada pessoa.” Pietro Perlingieri405

É inegável que com a modernidade o Direito passou a experimentar crescente


emancipação em relação à moral, à religião e outras ordens normativas. Tal emancipação —
que implica, ao mesmo tempo, concentração — tem um alto preço: o chamamento para o
controle exclusivo do Estado de uma enorme gama de conflitos surgida da complexidade
social contemporânea, na qual o evidente ético, como demonstrou João Maurício Adeodato,
não tem mais lugar assegurado.406 Sustenta Adeodato que o grande desafio da pós-
modernidade reside no fato de haverem desaparecido as bases morais comuns, enunciadas
pela retórica jusnaturalista, as quais sedimentavam a segurança jurídica das sociedades mais
simples. Na complexificação social contemporânea, verifica-se difícil a formação de
consensos, mesmo sobre problemas comezinhos do dia a dia. Esta concentração regulatória do
Estado tem como decorrência o que o citado autor denominou sobrecarga de demanda para o
Direito.407
Em relação à conjugalidade a modernidade foi mais tardia. O matrimônio, no Estado
moderno, ainda carregou fortes marcas canônicas e com enorme dificuldade é que
experimenta a secularização que alcançaram, rapidamente, os demais ramos do Direito. No
Brasil, ainda que com certo retardo, desde o segundo quadrante do século XX, mediante
grandes embates, a regulação das relações conjugais vem desvencilhando-se de seu invólucro
religioso, para encontrar seu fundamento ético na tábua axiológica dos valores e princípios
fixados pela Constituição.
As certezas e a segurança que eram próprias da ordem normativa religiosa ou moral das
sociedades simples, em matéria de casamento e organização familiar, experimentam o
impacto das sociedades complexas. Não existem, como outrora, autoridades religiosas ou

405
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.974
406
ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional: sobre a tolerância, direitos humanos e outros fundamentos
éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 3.
407
“Em lugar de serem trazidos para o âmbito do direito apenas os conflitos mais agudos, como era tradicionalmente sua
função, todo tipo de problema vem sobrecarregá-lo. Relações de vizinhança, conflitos familiares, problemas entre professores
e alunos, tudo vai se distanciando dos âmbitos de autoridade moral e religiosa, por exemplo, para virem sobrecarregar a
coercitividade do direito. (...) Assim essas ordens normativas, que enfraqueciam os conflitos sociais, perderam essa função
agregadora e deixaram o direito como único meio de tratamento de conflitos realmente significativos no âmbito da sociedade
complexa.” (ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional... p. 92.)
146

morais que dirimiam ou arrefeciam os conflitos atinentes à vida conjugal e à organização


familiar. A diversidade e a pluralidade constituem marcas distintivas da sociedade complexa.
Como não existem mais as bases axiológicas exteriores comuns para a legitimação impositiva
da norma, surge o problema da legitimidade da regulação jurídica da conjugalidade
contemporânea.
A concentração da disciplina estatal da conjugalidade pode seguir pela trilha dos regimes
totalitários, nos quais uma dada concepção de família se impõe a todos, como ocorre ainda no
presente, em regimes teocráticos, 408 ou a regulação estatal da conjugalidade pode ser
estabelecida com assento no princípio da democracia e do pluralismo social, que são
nucleares ao Estado democrático de direito.
A reflexão ora proposta, certamente, situa-se temporal e espacialmente. Tal tempo-lugar
pode ser referido pelo que Pietro Perlingieri denominou personalismo e solidarismo
constitucionais. Esta marca-referência remete à confluência de ideologias que depois da
Segunda Guerra Mundial demarcaram compromisso político vincado nos princípios que
fundaram as novas democracias ocidentais e, também, algumas no Oriente. Esta convergência
refere-se ao pensamento cristão social moderno, ao existencialismo, ao marxismo, não na
integralidade mas em seu viés humanista e de libertação social. O personalismo, como
sublinha Perlingieri, após a Guerra, deixa de ser a expressão exclusiva de uma determinada
corrente de pensamento.409 Tal confluência, forjada nos destroços da Guerra, apresentou-se
como uma exigência para a reconstrução da condição humana.
A pessoa exsurge como ponto de confluência de uma pluralidade de culturas. Em resposta
a toda forma de totalitarismo, as constituições irão afirmar os direitos inderrogáveis da pessoa
humana, seja como indivíduo, seja nas formações sociais, onde desenvolve sua personalidade,
e, em decorrência de tal centralidade da pessoa, o solidarismo sobressai como dever
jurídico.410 Não se trata, portanto, do solidarismo como subordinação de todos à finalidade do
Estado, com escopo nacionalista e voltado à eficiência do sistema e ao aumento da
produtividade. Ao contrário, o Estado e a organização da sociedade é que se funcionalizam à

408
É o caso do Irã como manifestação explícita. Mas há um significativo número de Estados que, em maior ou menor grau na
matéria de regulação da conjugalidade, espelham sua face teocrática.
409
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 461. O autor, em
nota de rodapé, transcreve trecho do “Manifesto ao serviço do personalismo de 1935, que afirmava: ‘O personalismo não
presume ser um partido determinado, mas afirma poder acolher sem qualquer contradição motivos socialistas, comunistas e
cristãos. Tal corrente de pensamento ‘na sua intolerância por qualquer metafísica e por todos os mitos não é um sistema, mas
uma perspectiva, uma exigência, um método’.”
410
É o que dispôs, por exemplo, o artigo 2º da Constituição Italiana de 1947: “La Repubblica riconosce e garantisce i diritti
inviolabili dell'uomo, sia come singolo, sia nelle formazioni sociali ove si svolge la sua personalità, e richiede l'adempimento
dei doveri inderogabili di solidarietà politica, economica e sociale.”
147

realização e ao desenvolvimento da pessoa. É o primado da dignidade da pessoa humana que,


“como supremo princípio constitucional, funda a legitimidade do ordenamento e a soberania
do Estado”.411 Do princípio da dignidade da pessoa humana são indissociáveis os princípios
da solidariedade, da igualdade, do pluralismo das formações sociais e o da própria
democracia.
Tendo em consideração este espaço/tempo de onde se fala e, aqui, apenas brevemente
referido, é que o tema da monogamia deve ser posto em questão. Ao ser deslocado de seu
lugar original, qual seja a regulação religiosa e moral da conjugalidade, para o âmbito
jurídico, obviamente opera-se o que Adeodato denominou sobrecarga de demanda do Direito.
Ainda que a monogamia fosse antes tematizada pelo jurista, ela o era como dogma posto ou
transposto de outra esfera, notadamente, no Brasil, do direito canônico. A monogamia,
todavia, ainda que implique sobrecarga de demanda, deve ser repensada a partir da
perspectiva do pacto constitucional, fundado em uma principiologia que tem como referência
espaço-temporal o personalismo e o solidarismo constitucional. Este é o objetivo que se tem
em mira neste último capítulo.
Parte-se da premissa, ou, ainda melhor, da suspeita/hipótese de que a monogamia —
submetida à prova dos princípios constitucionais incidentes sobre o ordenamento como um
todo, o que inclui as situações subjetivas existenciais de natureza familiar — não pode ser
carreada pura e simplesmente para o âmbito do Direito Civil contemporâneo, nem tão pouco
subsiste como princípio estruturante do estatuto jurídico da família.
Situado o patamar de onde se arranca, antes de proceder ao exercício de conferir a
monogamia em face da principiologia constitucional, impende referir que, no recente repensar
do Direito Civil contemporâneo, 412 no Brasil, existe nítida sinalização confluente para a
perspectiva ora esposada. Desde o início da década que inaugurou o novo milênio, surgiram
trabalhos apontando a superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto
jurídico da família. Da demonstração desta produção acadêmica é que se ocupa a próxima

411
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. p. 460-461.
412
O exercício de repensar o Direito Civil e, em particular, o Direito de Família contemporâneo foi impulsionado por uma
série de inquietações que a nova ordem constitucional impôs àqueles que, com seriedade, desejavam delinear novas
referências consentâneas com a reconfiguração das famílias nos dias atuais. A este respeito, entre os pioneiros desse repensar
do Direito de Família, escrevia Heloisa Helena Barboza: “Como se vê está delineado o novo perfil atual da família, mas a
grande pergunta, aquela cuja resposta conterá o rumo a ser trilhado pelo Direito, ainda não foi respondida: Qual a função
atual da família? Se é certo que ela é a base da sociedade, qual o papel que a ela cumpre desempenhar, já que não tem mais
funções precipuamente religiosa, econômica, ou política como outrora. Qual a base que se deve dar à comunidade famili ar
para que alcance a tão almejada estabilidade, tornando-a duradoura? Devemos reunir todas essas funções ou simplesmente
considerar o seu verdadeiro e talvez único fundamento: a comunhão de afetos?” (BARBOZA, Heloísa Helena. Novas
tendências do direito de família. Revisa da Faculdade de Direito da UERJ. Rio de Janeiro, v. 2, p. 227-232, 1994. p. 232.)
Estas questões, ao longo de mais de vinte anos, têm movido a pesquisa e dado feição e conteúdo a uma nova forma de refletir
juridicamente os núcleos familiares e suas relações.
148

seção deste capítulo. No entanto, a jurisprudência dos tribunais brasileiros, especialmente a


dos superiores, revela apego desmesurado a um modelo de família que mais se ajustava à
família matrimonializada, consagrada nos códigos civis, do que ao modelo pluralista adotado
pela Constituição de 1988. O tratamento jurisprudencial da monogamia é, por isso, na
seqüencia, também, passado em revista, pois, as decisões judiciais revelam-se como locus
privilegiado da produção do Direito, como bem assentou Eros Grau, recordando lição de
Kelsen, a interpretação autêntica é a que “cria direito tanto quando assume a forma de uma lei
ou decreto, dotada de caráter geral, quanto quando, feita por um órgão aplicador do direito,
cria direito para um caso concreto”.413 A análise da jurisprudência é, por assim dizer, um
exercício de aproximação em relação à face mais concreta do Direito, todavia, não para tomá-
la como palavra final ou determinante, como a expressão interpretação autêntica, ao
inadvertido, pode sugerir. Trata-se, antes, de exercício indispensável a toda teorização que se
pretenda dialógica.414

4.1 Indícios da superação da monogamia como princípio jurídico: construções


doutrinárias do Direito Civil brasileiro contemporâneo sobre a simultaneidade de
famílias

No Direito Civil brasileiro contemporâneo já existem significativas manifestações que


apontam na direção da superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto
jurídico da família. O tema da simultaneidade de famílias foi suscitado só recentemente. Ele
não tinha lugar na pauta das reflexões daqueles que se debruçavam sobre o Direito de Família.
Antes da Constituição de 1988, só era tangenciado, quando se tratava do concubinato
adulterino. O novo enfoque constitucional dado à família ou às famílias, como ultimamente
tem sido preferido por alguns doutrinadores, abriu margem ao debate. O fato que estava posto
à margem do âmbito jurídico foi trazido para o centro de acaloradas discussões e alcançou
dignidade de tratamento reflexivo e não mais apenas a pecha irrefletida, embora com selo
acadêmico, de concubinato impuro. Ainda que com grandes resistências e sob suspeitas
preconceituosas, ao menos na academia, o tema escapou ao tratamento típico do senso
comum.415

413
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed., São Paulo: Malheiros, 2009.
p. 96.
414
O conceito é, aqui, metaforicamente, tomado de empréstimo de Paulo Freire, para quem “o educador já não é mais o que
apenas educa, mas o que enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. [...] Os
homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.” (FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1978. p. 78-79).
415
No Brasil, trabalho de fôlego foi desenvolvido por Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, no livro Famílias simultâneas: da
unidade codificada à pluralidade constitucional, resultado de dissertação de mestrado concluído no Programa de Pós-
149

Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, que produziu densa reflexão sobre o tema, parte de uma
constatação: Reconhece a monogamia como característica de longa duração da família
ocidental. Ressalta, porém, que não pode ser ela tomada como absolutização de um dado
histórico. Ao contrário, advoga que a história da monogamia não é nem um pouco linear,
porém, marcada por variadas rupturas, especialmente quando se trata de experiências de
poligamia exógena, isto é, a formação de conjugalidades externas a determinada comunidade
familiar originária. 416
Reconhece Ruzyk a monogamia como característica histórico-cultural “marcante na
construção do que se apresenta como um ‘padrão médio’ de família ocidental”. Logo, para
ele, “seria irreal pretender negar que a sociedade ocidental contemporânea é, efetivamente,
centrada em um modelo familiar monogâmico”. 417 Todavia, ressalva que esta afirmação não
implica negar a existência de formações familiares que se diferenciam deste padrão, nem tão
pouco se extrai, como consequência, que o Estado deva eleger o padrão monogâmico como o
único susceptível de ser apreendido juridicamente e, portanto, único merecedor de tutela,
restando os modelos “desviantes” banidos para o campo da ilicitude.
Lançadas estas reflexões preliminares, conclui Ruzyk que “tomar o princípio jurídico da
monogamia como um ‘dever ser’ imposto pelo Estado a todas as relações familiares é algo
que entra em conflito com a liberdade que deve prevalecer naquela que é uma das searas da
vida na qual os sujeitos travam algumas das mais relevantes relações no tocante à formação de
sua subjetividade e desenvolvimento de sua personalidade.” 418
Para Ruzyk, a monogamia não pode ser afirmada como um princípio do direito estatal de
família, revela-se, contemporaneamente, como “uma regra restrita à proibição de múltiplas

Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. O tema foi abordado, também, em alguns artigos e mencionados
em alguns cursos e manuais de Direito de Família publicados mais recentemente. Estes textos são referidos na abordagem
que ora se faz sobre construções doutrinárias do Direito Civil brasileiro contemporâneo acerca da simultaneidade de famílias.
416
Para o autor poligamia é gênero que comporta duas espécies: (i) a poligamia endógena, quando se verifica multiplicidade
de conjugalidade, conformadas por elementos comuns, dentro de uma mesma comunidade familiar; (ii) poligamia exógena,
verificável quando há multiplicidade de conjugalidades, conformadas por elementos comuns, porém, integrantes de núcleos
familiares distintos. “A poligamia exógena masculina não é rara na história da família ocidental, recebendo, em muitos
momentos, o beneplácito da aceitação social. O mesmo não se pode afirmar sobre uma poligamia endógena, que implique
múltiplas conjugalidades ostensivas e no interior de uma única formação familiar”. (RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski.
Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 98.)
417
PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Famílias simultâneas e monogamia. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Anais do V
Congresso Brasileiro de Direito de Família: Família e dignidade humana. São Paulo: IOB Thompson, 2006. (p. 193-221)
p. 195.
418
O autor faz questão de ressalvar que “não se trata de criticar a orientação monogâmica comum a uma moral social média,
que reflete uma longa permanência histórica. Trata-se, sim, de criticar a pretensão de atribuir ao direito estatal o poder de
reputar ilícitas formas de convivência decorrentes de escolhas coexitenciais materialmente livres.” (PIANOVSKI, Carlos
Eduardo. Famílias simultâneas e monogamia... p. 197)
150

relações matrimonializadas”. 419 Nesta construção doutrinária, tem-se a clara redução da


monogamia ao status de regra implícita na proibição da bigamia, porém, desprovida das
qualidades ínsitas a um princípio estruturante e norteador do Direito de Família.
Maria Berenice Dias adota a posição sustentada por Ruzyk, e, citando-o, afirma que a
monogamia “não é um princípio do direito estatal de família, mas, sim, uma regra restrita à
proibição de múltiplas relações matrimonializadas, constituídas sob a chancela do Estado”. 420
Para Dias, a pretensão de guindar a monogamia ao status de princípio constitucional
ocasionaria resultados desastrosos, com a negação de efeitos jurídicos em razão de verificação
de simultaneidade, admissão de enriquecimento sem causa, e desprezo ao princípio da
dignidade humana.421
Não há dúvidas quanto à pertinência e correção do argumento desenvolvido por Ruzyk,
todavia, a monogamia não deve constituir, nem mesmo como regra, obstáculo intransponível
em relação à vedação de múltiplas relações matrimonializadas, isto é, nos casos de bigamia.
Desconsiderado o âmbito penal, a vedação da bigamia tem expressão jurídica nos
impedimentos matrimonias e, em consequência, no campo das nulidades do matrimônio.
Considerada a hipótese do casamento putativo, não parece razoável que, a despeito de um
primeiro matrimônio inexistir de fato, por mais de vinte anos, por exemplo, seja anulado o
segundo matrimônio.
Se, na dicção do art. 1.511 do Código Civil, o casamento estabelece comunhão plena de
vida entre os cônjuges, o rompimento de fato da vida conjugal põe fim à referida comunhão e,
portanto, o que resta do matrimônio é tão somente um vínculo formal. Se assim é, mesmo
tratando-se de relações matrimonializadas, segundo as regras do Estado, não é plausível
prestigiar a regra da monogamia para dar vigência ao que não mais existe e tornar nulo o
existente. A proteção dada ao casamento putativo tem natureza meramente patrimonial. 422
Importa dizer, até o trânsito em julgado da sentença que decretar a nulidade do casamento do
bígamo, este produz todos os efeitos para o cônjuge que, de boa-fé, casara-se com ele.

419
PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Famílias simultâneas e monogamia. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Anais do V
Congresso Brasileiro de Direito de Família: Família e dignidade humana. São Paulo: IOB Thompson, 2006. (p. 193-221)
p. 198.
420
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 60.
421
Ibid. p. 61
422
Assim dispõe o art. 1.561 do Código Civil: “Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os
cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória. § 1 o Se
um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão. § 2 o Se
ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão.”
151

O que se põe em questão é: Por que o Direito deve, em homenagem à regra da


monogamia, reconhecer vigência e efetividade a um casamento que, no mundo dos fatos, não
mais existe e, por outro lado, desconstituir, pela decretação da nulidade, o segundo casamento
que, de fato, expressa a comunhão plena de vida própria da conjugalidade?
Não seria o caso de extinguir-se o primeiro casamento, assegurando ao cônjuge
abandonado todos os seus direitos, mantendo hígido, todavia, o segundo matrimônio, posto
que de fato expressa comunhão atual de vida?423 Tomando o casamento putativo como
referência, sobressai a função patrimonialista que informa a regra da monogamia. Prestigiá-la
de forma inexorável em todos os casos, implica, por certo, o afastamento de princípios como
o da solidariedade familiar, da liberdade, da afetividade, da convivência familiar, e em
algumas hipóteses, até mesmo do princípio do melhor interesse da criança.
Esta discrepância foi captada pela análise atenta de Samir Namur: “... veda-se a
constituição de novo casamento, mas protege-se o patrimônio daqueles que procederam de
boa-fé, claramente em sua modalidade subjetiva, que verdadeiramente reflete o
desconhecimento do casamento anterior, denotando igualmente a preocupação simplesmente
patrimonial para uma situação familiar extremamente complexa, que pode envolver variáveis
para além do binômio conhecimento/desconhecimento.”424
Outro tema que tem sido posto em discussão pelos doutrinadores e, também, enfrentado
pela jurisprudência, diz respeito à transposição da regra da monogamia para as uniões estáveis
simultâneas. Ainda que, com a ressalva acima desenvolvida, se admita com Ruzyk que a
monogamia constitui regra aplicável apenas como vedação à bigamia, não faltam aqueles que,
por analogia, estendem tal regra ao campo das uniões estáveis. 425 Mais do que a aplicação dos
efeitos do casamento putativo à união estável putativa, pela via da analogia, considerado o
caso concreto de uniões estáveis simultâneas, impõe-se, muitas vezes, o reconhecimento de

423
Nestas hipóteses a anulação do segundo casamento é inafastável, segundo a análise de Carlos Eduardo Pianovszki Ruzyk,
pois, no plano formal, “o segundo vínculo será precário, uma vez que sobre ele incide nulidade”. E mais adiante conclui:
“Pode ser cogitável que a segunda união, em certos casos, mesmo contraída de má-fé [...] produza efeitos jurídicos análogos
aos da união estável, desde que não gere prejuízos à esfera jurídica do cônjuge do primeiro casamento”. (RUZYK, Carlos
Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional... p. 205.)
424
NAMUR, Samir. A desconstrução da preponderância do discurso jurídico do casamento no direito de família. Rio
de Janeiro: Renovar, 2009. p. 172-173.
425
Nesta direção, apenas a título de exemplo, é possível mencionar a percepção de Guilherme Calmon Nogueira da Gama
para quem “ao lado do casamento, o companheirismo também impõe o dever de fidelidade a ambos os partícipes, e não
apenas a um deles, ante a regra constitucional já analisada. Tal conclusão se afigura coerente como os contornos traçados
pela doutrina e pela jurisprudência na caracterização do companheirismo que, repita-se, deve ser o único vínculo que une o
casal em perfeito clima de harmonia e estabilidade”. (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo: uma
espécie de família. 2. ed. São Paulo: RT, 2001. p .232).
152

cada uma das famílias pelo Estado juiz, com seus consectários legais. 426 Os tribunais parecem
ainda distantes deste duplo reconhecimento. Nem a analogia com o casamento putativo tem
sido admitida, como evidencia acórdão do Superior Tribunal de Justiça, citado por Samir
Namur.427
E não se trata de admitir somente o reconhecimento de famílias simultâneas quando
presente a boa-fé (subjetiva), isto é, a ignorância por um dos companheiros da existência de
outra família paralela integrada pelo consorte. O conhecimento, de per se, não pode ter o
condão de tornar juridicamente irrelevante a existência da família constituída em
concomitância com a originária.
Nesta altura da reflexão, impõe-se avaliação mais detalhada quanto à ostensibilidade ou
notoriedade como um dos requisitos configuradores da união estável. Pode haver
ostensibilidade de uma dada conjugalidade em certa localidade e perante certo número de
pessoas componentes do ambiente social em que está inserida uma família e, paralelamente,
um dos cônjuges/companheiros integrar outro núcleo familiar conjugal, igualmente
reconhecido como tal, em localidade distinta e perante grupo relacional diverso.
Tomem-se, por hipótese, duas uniões estáveis simultâneas, notórias em suas respectivas
localidades e meio social. O mútuo desconhecimento ou o conhecimento da existência do
outro núcleo familiar por uma das partes tem força modificativa em relação à eficácia jurídica
de tais conjugalidades? A resposta a essa pergunta situa-se no quadro da boa-fé subjetiva e
não no âmbito da boa-fé objetiva, como dever de lealdade. Conforme observação de Anderson
Schreiber, em “inúmeros conflitos de direito de família em que, mesmo diante da referência

426
Este entendimento é também esposado por Samir Namur, exatamente porque postula a desconstrução da predominância
do discurso jurídico do casamento no Direito de Família. NAMUR, Samir. A desconstrução da preponderância do
discurso... p. 184
427
Em sua fundamentação, o relator, Ministro Menezes Direito entabulou a seguinte linha de raciocínio: “O objetivo do
reconhecimento da união estável e o reconhecimento de que essa união é entidade familiar, na minha concepção, não autoriza
que se identifiquem várias uniões estáveis sob a capa de que haveria também uma união estável putativa. Seria, na verdade,
reconhecer o impossível, ou seja, a existência de várias convivências com o objetivo de constituir família. Isso levaria,
necessariamente, à possibilidade absurda de se reconhecer entidades familiares múltiplas e concomitantes. No caso dos autos,
o acórdão afirma que o autor da herança mantinha esse relacionamento estável e duradouro com as duas mulheres,
reconhecendo embora que com a recorrente o relacionamento era anterior e dela não se desvinculara ao manter o
relacionamento com a recorrida. Essa circunstância, na minha compreensão, tira qualquer possibilidade do emprego
analógico da regra do casamento putativo, porque, enquanto neste existe o vínculo formal duplo, o que é possível, naquele só
existe a convivência com aquela vocação de constituir família, havendo, portanto, um vínculo não formal. Ora, se o falecido
J. N. de S. não se desvinculou da convivência mantida com a recorrente, a união estável estava caracterizada aqui, tendo a
apelada, então, um relacionamento amoroso que se não pode identificar como união estável, muito menos equipará-lo com o
casamento putativo. Para que houvesse a configuração da união estável com a recorrida, que é posterior à recorrente no amor
do autor da herança, seria necessário que dessa última estivesse desvinculado, o que não ocorre neste feito”. (STJ - Recurso
Especial 789.293 RJ, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 20/03/2006.)
153

nominal à ‘boa-fé objetiva’ ou de alusão simplesmente à ‘boa-fé’, o conceito vem aplicado em


sua acepção subjetiva ou psicológica”.428
A ocultação da dupla conjugalidade por um dos companheiros dá ensejo a que se cogite da
boa-fé subjetiva de seus consortes nos respectivos núcleos familiares. Neste caso, deve-se ter
claro que a situação se assemelha ao casamento putativo. Como já referido, é de longa data o
reconhecimento dos efeitos do casamento para o cônjuge ignorante da bigamia, efeitos estes
que permanecem imutáveis até a data do trânsito em julgado da sentença que decreta a
nulidade do casamento. Se este é o entendimento em relação ao casamento, parece não haver
razão para dar tratamento diferenciado à união estável, estabelecida na ignorância de que o
companheiro já mantém outra família, constituída por união estável anteriormente
conformada.
A questão que ainda prevalece diz respeito à circunstância em que o companheiro conhece
o fato de que o outro já vive em união estável ou que é casado, e mesmo conhecedor da
conjugalidade anterior, estabelece com ele vida em comum, com todos os requisitos de
estabilidade, durabilidade, ostensibilidade, e com o intuito de constituir família. Nesses casos,
aplicar-se-ia a boa-fé objetiva, isto é, um dever de conduta? Parece ter sido este o
entendimento de Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, pois, ao seu ver
aquele que, ciente de que está a manter relação de conjugalidade com pessoa que já compõe um
núcleo familiar anterior, procede de modo a desprezar qualquer dever ético perante os componentes
da primeira entidade familiar, pode não ter plenamente atendidas suas expectativas acerca de eventual
chancela jurídica da relação por ele mantida, se essa eficácia vier a intervir na esfera jurídica dos
membros do outro núcleo familiar. O sentido ético que na análise do caso concreto pode obstar
parcialmente a eficácia jurídica de uma situação de simultaneidade familiar pode ser inferido do
princípio da boa-fé-objetiva.429

O autor ressalva, fazendo referência a Menezes Cordeiro, que em certas circunstâncias, a


boa-fé objetiva não está completamente apartada da boa-fé subjetiva.430 Ou, dito de outra
forma, o conhecimento de certo fato (boa-fé subjetiva) impõe ao sujeito cognoscente um
dever de conduta (boa-fé objetiva). Porém, sublinha que “ainda que a boa fé subjetiva possa
constituir, em alguns casos, ante-sala para aferição do atendimento dos deveres decorrentes da
boa-fé objetiva, é sobre esta última que se está, neste ponto, a versar”. 431 Portanto, sustenta
Ruzyk que, tendo conhecimento de conjugalidade anterior de seu companheiro, surge para o

428
SCHREIBER, Anderson. O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Anais do
V Congresso Brasileiro de Direito de Família: Família e dignidade humana. São Paulo: IOB Thompson, 2006. p. 125-143.
p. 137.
429
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005. p. 188
430
Ibid. p. 189
431
Ibid. p. 189.
154

integrante da segunda relação dever de natureza jurídica vinculado à cláusula geral da boa-fé
objetiva.
Este entendimento ou orientação esbarra em dois problemas que se entrelaçam. Um de
ordem sociológica e outro de natureza jurídica. O dever de abster-se de certo comportamento,
aplicável às relações obrigacionais, em homenagem ao princípio da boa-fé, é perfeitamente
compreensível, dada a natureza dessas relações. A transposição deste conceito para a esfera
das relações de conjugalidade seria plausível e factível, quando se admitia como família
legítima apenas aquela surgida de um negócio jurídico, solene, público, e que se celebra com
a intervenção da Igreja ou do Estado. A natureza negocial do matrimônio permitia este fluxo
de conceitos. Se a família surge de um negócio que em vários elementos se assemelha às
relações obrigacionais, parece razoável e até admissível a transposição do conceito de boa-fé
objetiva para as relações conjugais.
A rigidez do modelo matrimonial, impregnado de natureza contratual, era suscetível à
assimilação de conceitos típicos das relações obrigacionais. Contemporaneamente, a família
se constitui e se reconstitui de múltiplas e variadas formas, e o próprio casamento tem sido
precedido, muitas vezes, por uma ante-sala já caracterizadora da família. Os namorados
estabelecem vida em comum. Desta união estável, que pode ser curta ou duradoura, segue-se
ou não o casamento.
O amor a princípio é episódico. Zygmunt Baumann, citando Milan Kundera, lembra que
“um episódio ‘não é a consequência inevitável de uma ação precedente, nem a causa do que
virá em seguida’”, mas adverte: “O problema é que ‘ninguém pode garantir que um evento
totalmente episódico não contenha em si uma força capaz de algum dia transformar-se,
inesperadamente, na causa de eventos futuros’”.432 Diferentemente dos negócios, nos quais,
presente o suporte fático previsto na norma, a declaração de vontade torna-se a causa eficiente
da relação jurídica que dela decorre,433 nas famílias que se formam paralelamente a outras já
existentes não há uma declaração instituidora. O máximo que se poderia admitir, a título de
transposição da teoria geral do negócio jurídico para o campo da conjugalidade, seria a noção
de comportamento concludente.434 Todavia, salta aos olhos a impropriedade da aplicação do

432
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p.70.
433
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 13. ed., São Paulo: Saraiva. 2007. p. 172 e
ss.
434
Karl Larenz explicita o que se entende por comportamento concludente no âmbito contratual, fazendo referência ao
usuário que ao ingressar em transporte coletivo, por seu comportamento, realiza negócio jurídico: “O efeito obrigatório do
comportamento do usuário não se baseia, repetindo mais uma vez, no fato de ele ser imputado ao sujeito como expressão de
vontade própria de obrigar-se, mas sim no fato de que, sem levar em conta a vontade do agente, o comportamento será
entendido, de acordo com os usos do tráfego, como justificador de uma obrigação. É a ‘resposta’ ou ‘reação’ social típica à
oferta e tem, por isso, o significado socialmente típico de uma fonte de obrigação. Ninguém pode afastar as conseqüências
155

conceito no âmbito do Direito de Família. Sendo a conjugalidade situação jurídica subjetiva


existencial deve como tal ser tratada.
O episódico, para usar a expressão de Baumann, transforma-se em causa e configurada
estará, sociologicamente, uma nova família paralela a outra já anteriormente constituída.
Entretanto, juridicamente, sua existência dependeria da boa-fé dita objetiva, sendo esta
derivada da boa-fé subjetiva, isto é, do desconhecimento da existência da outra família.
Havendo tal conhecimento (má-fé, na dimensão subjetiva), presumida estaria a má-fé objetiva
(ofensa ao dever de comportamento negativo imposto, erga omnes, a todos os não
participantes da conjugalidade anteriormente constituída). Ao se condenar a família paralela,
sociologicamente existente, à inexistência jurídica, impõe-se especialmente à mulher,
reconhecida como concubina, um lugar de não direito.
O reconhecimento jurídico de famílias simultâneas, independentemente da boa-fé
objetiva, diferente do que pode parecer, não implica desvalorização da família. Em um
determinado sentido, trata-se mesmo de postura conservadora. Conservadora na medida em
que reconhece que “as íntimas conexões do sexo com o amor, a segurança, a permanência e a
imortalidade via continuação da família não eram, afinal de contas, tão inúteis e
constrangedoras como se imaginava, se sentia e se acusava que fossem.” 435 O concubinato
adulterino, com as implicações que os juristas usualmente dele extraem, reforça a dissociação
entre sexo, amor, solidariedade, responsabilidade, enfim, família.
A desconsideração jurídica de famílias simultâneas, reconhecidas sociologicamente,
implica reificação de pessoas que integram tais relações, boa parte das vezes, em
circunstância de sujeição e dominação em relação à mulher. Ignorar reforça o
desvanecimento da capacidade de sociabilidade e aceleramento das tendências inspiradas no
estilo de vida consumista prevalecente na atualidade, que reduz os seres humanos a objetos de
consumo, passando a julgá-los segundo padrões determinados pelo volume de prazer que
provavelmente deveriam oferecer.436 Neste sentido, então, o reconhecimento jurídico da
família surgida em paralelo à outra já existente traz em si uma dimensão “conservadora”,
pois, em última instância, trata-se do reconhecimento e proteção ao núcleo familiar.

jurídicas de seu próprio ato. A conseqüência do comportamento social típico do agente, inafastável, independente da sua
vontade e, por isso, impossível de ser eliminada por ele, é ser o agente obrigado, por meio do recebimento de fato da
prestação, à contraprestação de costume ou conforme tarifas. (...) É importante, como enfatizou especialmente Betti, que o
comportamento social típico se encontra ainda no campo da ‘autonomia privada’, ou seja, da liberdade do indivíduo em
estabelecer suas relações de cunho jurídico. O significado social típico do seu comportamento é normalmente conhecido pelo
agente; ao menos, ele precisa conhecê-lo.” (LARENZ, Karl. O estabelecimento de relações obrigacionais por meio de
comportamento social típico. Revista Direito GV. v. 2, n. 1, p. 055 – 064, jan/jun 2006. p. 60).
435
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido... p. 65.
436
Ibid. p. 96.
156

Evidencia-se que não há como tutelar mais apenas aquela família unitária, unívoca,
insofismável, cuja existência, validade e efeitos estavam prédispostos nos códigos civis.
Ainda que as famílias contemporâneas sejam dotadas de maior fluidez e plasticidade, ainda
que sejam cambiantes por excelência, ainda que não correspondam a fattispecie por
excelência — o casamento monogâmico — elas reclamam reconhecimento jurídico.
Tomar a boa-fé objetiva como critério para o reconhecimento de famílias simultâneas
pode converter-se em mecanismo de reforço de uma concepção matrimonializada de família.
Pois, neste caso, ainda que se admita a união estável como relação de fato, esta viria carregada
dos estigmas, dos pressupostos e da forma típica do casamento.
Além deste problema de ordem sociológica há ainda uma questão jurídica. Desta
perspectiva, a aplicação da boa-fé objetiva às situações subjetivas existenciais só deve ser
realizada cum grano salis. A cláusula geral da boa-fé objetiva, hoje, largamente estudada e
aplicada, originalmente, estava circunscrita às relações negociais. Ainda que se admita a
aplicação da boa-fé às situações jurídicas existenciais, necessário é atentar para a advertência
de que “invocada como receptáculo de todas as esperanças, a boa-fé objetiva acaba por correr
o risco de se converter em um conceito vazio e inútil mesmo na consecução daqueles fins que
cientificamente lhe são próprios”. 437
Desta forma, parece descabido estender a boa-fé objetiva à situação de famílias
simultâneas, para sustentar que tendo conhecimento da conjugalidade da outra pessoa,
configurada anteriormente, ainda mantida na atualidade, surge para o integrante de uma
potencial segunda relação dever de natureza jurídica, vinculado à cláusula geral da boa-fé
objetiva. Em seu sentido técnico, a boa-fé revela-se como cláusula geral que “impõe deveres
de lealdade e respeito à confiança recíproca entre as partes de uma relação jurídica, à margem
da expressa constituição de obrigações neste sentido”.438 O companheiro que vier conformar
núcleo familiar com pessoa que já integra outro não mantém qualquer relação jurídica com as
pessoas que compõem o primeiro núcleo. Pode-se até afirmar, de uma dada perspectiva, que
haveria um dever moral negativo, isto é, de abstenção no que se refere ao estabelecimento de
conjugalidade com quem é casado ou já vive em união estável com outra pessoa, mas não
parece possível transpor tal dever moral para o campo jurídico, albergando-o sob o manto da
boa-fé objetiva.

437
SCHREIBER, Anderson. O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Anais do
V Congresso Brasileiro de Direito de Família: Família e dignidade humana. São Paulo: IOB Thompson, 2006. p. 125-143.
p. 130.
438
Ibid. p. 131 e 132. Acerca dos riscos de esvaziamento do conteúdo da boa-fé objetiva, ver, também: MARTINS-COSTA,
Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 1999.
157

Nesta mesma direção, Samir Namur e Vinícius Klein sustentam que “o atual estágio do
direito civil não permite mais a tradicional confusão entre situações jurídicas patrimoniais e
existenciais. Cada qual possui seus princípios e métodos de interpretação, em especial no que
dizem respeito a atos de autonomia do indivíduo.”439 Por esta razão fazem notar que “a
incidência do princípio constitucional da liberdade para constituir família não exige
constituição de família mediante boa-fé, o que certamente seria exagerado diante de tal
escolha existencial para os indivíduos envolvidos, até porque tal escolha (a de como se
relacionar) sempre estará sujeita a infinitas variáveis”.440
Ponderam Tepedino e Schreiber que a alusão à boa-fé objetiva não pode converter-se em
uma “cláusula de estilo”, empregada na argumentação jurídica, como um equivalente à
moralidade ou equidade, como um conceito capaz de abarcar o sentido de todo o
ordenamento.441 A boa-fé objetiva não parece ser o melhor instrumental para o enfrentamento
da questão das famílias simultâneas. Se aplicada em seu sentido técnico não se ajusta
adequadamente, se tomada como conotação ampliada, quase equivalente à moralidade, corre-
se o risco de uma mitificação do conceito.442 Por outro lado, é certo que as situações
subjetivas existenciais no âmbito familiar receberão melhor tratamento, fazendo-se incidir
diretamente sobre elas os princípios constitucionais da liberdade, da igualdade, da
solidariedade e da democracia. A cláusula geral da boa-fé objetiva é indiscutivelmente
limitada para tornar-se pedra de arrimo a dar solução para essas complexas relações.
Na verdade, o concubinato — pressuposto o adulterino — previsto no art. 1.727 do
Código Civil tem-se revelado como vexata quaestio para os civilistas.443 Hesitam, exatamente
porque o Código Civil tratou de definir o concubinato, e o fez com graves equívocos, mas não
cuidou de estabelecer suas consequências, como concluiu Paulo Luiz Netto Lôbo.444 O citado
civilista reconhece em tal dispositivo uma “norma de exclusão”. Evoca o tema da monogamia
que está subjacente, para dizer que “o concubinato é questão sensível e difícil, ante os valores
monogâmicos majoritários da sociedade brasileira, o que torna sempre controvertida qualquer

439
NAMUR, Samir e KLEIN Vinicius. A boa-fé objetiva e as relações familiares. In: TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz
Edson. Diálogos sobre direito civil. Vol. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 371.
440
Ibid. p. 366.
441
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código
Civil. Revista da EMERJ, n. 23, Rio de Janeiro, v. 6, 2003. p. 139-151.
442
CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1977. p.
443
“Intrincado problema do Direito de Família contemporâneo é o da simultaneidade familiar no âmbito conjugal, vez que a
família sempre se fundou no princípio da monogamia, ordenador da organização familiar no mundo ocidental, que determina
que cada pessoa deve viver uma relação conjugal de cada vez, com exclusividade.” (TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. &
RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias entre a norma e a realidade. São Paulo: Atlas, 2010. p. 116)
444
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2010. p. 182.
158

solução jurídica”.445 Ainda que não refute expressamente o princípio da monogamia, que se
apresenta como critério desclassificatório da união de fato em concubinato, critica
severamente a indenização por serviços prestados pela concubina, com amparo na Súmula
380, a qual pelo autor é considerada superada, com o advento da Constituição de 1988, pelo
que sustenta: “Soa contraditório com a dignidade da pessoa humana que uma relação de
natureza indiscutivelmente afetiva seja degradada à dimensão meramente patrimonial. O
afeto, a intimidade e a vida privada são valores constitucionais (art. 5º, X da Constituição),
sociais e personalíssimos, indisponíveis, inegociáveis e intransmissíveis, que não podem ser
violados em razão do fato de um dos figurantes da relação ser casado”.446
Não há dúvida de que na construção do Direito de Família brasileiro contemporâneo
esboçam-se ora com maior ou ora com menor veemência sugestões de que o princípio da
monogamia encontra-se abalado.447 Fissuras em sua estrutura tornam-se visíveis. No âmbito
do Direito Previdenciário, uma delas é apontada por Ana Carolina Brochado Brochado e
Renata de Lima Rodrigues. Segundo as autoras, a monogamia perde sua natureza de princípio
absoluto neste ramo do Direito, porque a ratio deste está consubstanciada no princípio da
solidariedade, “tendo em vista que sua finalidade é evitar o desamparo material após a morte
de um ente do qual se presume a dependência econômica no âmbito da família”. 448 Ponderam,
todavia, as autoras: “Não entendemos que o princípio da monogamia está em crise e que a
sociedade brasileira ou o mundo ocidental tem tendências poligâmicas. Entretanto, os novos
arranjos familiares impõem uma interpretação adequada deste princípio, apta a albergar
exceções que as peculiaridades do caso concreto possam construir.” 449
Já Maria Berenice Dias é bem mais contundente: “A monogamia — que é considerada
monogamia só para a mulher — não foi instituída em favor do amor. Trata-se de mera
445
Ibid. p. 184.
446
Ibid. p. 184.
447
Já no ano de 2002, em trabalho apresentado no III Congresso de Direito de Família promovido pelo IBDFAM, Carlos
Cavalcanti de Albuquerque Filho abordou de forma expressa a questão das famílias simultâneas decorrentes do chamado
concubinato adulterino, indicando que “a crise no sistema monogâmico apresenta-se patente. A legislação vem acentuando a
crise. Medidas legislativas, no âmbito constitucional e infraconstitucional, como o reconhecimento expresso de outras
entidades familiares, dentro de uma perspectiva pluralista; a possibilidade da dissolução do vínculo do casamento, com o
divórcio, e do reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento, entre outras, vêm-nos mostrando que, paulatinamente, a
situação de exclusividade do casamento e do casamento exclusivo, monogâmico e indissolúvel, com filhos havidos na
conjugalidade, mesmo no contexto jurídico, vem decrescendo”. E mais adiante pondera: “As relações intersubjetivas
estabelecidas repercutem no mudo jurídico, pois os concubinos, que preferimos chamar de companheiros, convivem, às vezes
têm filhos, existe construção patrimonial comum. Destratar mencionada relação não lhe outorgando qualquer efeito atenta
contra a dignidade dos partícipes, companheiro(a), filhos porventura existentes”. (ALBUQUERQUE FILHO, Carlos
Cavalcanti. Famílias Simultâneas e concubinato adulterino. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família e cidadania – o novo
CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey. 2002. p. 159).
448
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias entre a norma e a
realidade.... p. 123.
449
Ibid. p. 124.
159

convenção decorrente do triunfo da propriedade privada sobre o estado condominial


primitivo.” E, partindo desta premissa, conclui:
Pretender elevar a monogamia a status de princípio constitucional autoriza que se chegue a resultados
desastrosos. Por exemplo, quando a simultaneidade de relações, simplesmente deixar de emprestar
efeitos jurídicos a um ou, pior, a ambos os relacionamentos, sob o fundamento de que foi ferido o
dogma da monogamia, acaba permitindo o enriquecimento ilícito exatamente do parceiro infiel. Resta
ele com a totalidade do patrimônio e sem qualquer responsabilidade para com o outro. Essa solução,
que vem sendo apontada pela doutrina e aceita pela jurisprudência, afasta-se do dogma maior de
respeito à dignidade da pessoa humana, além de chegar a um resultado de absoluta afronta à ética. 450

O texto de Maria Berenice Dias, entre os diversos cursos e manuais de Direito de Família,
é aquele que de forma franca enfrenta o tema das famílias simultâneas, reconhecendo a
posição divergente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, para
afirmar que “deixar de reconhecer a família paralela como entidade familiar leva à exclusão
de todos os direitos no âmbito do direito das famílias e sucessório. Ou seja, a companheira
não pode receber alimentos, herdar, ter participação automática na meação de bens adquiridos
em comum.”451
Tendo em consideração as demarcações e trilhas já indicadas pela reflexão jurídica sobre a
conjugalidade produzida no Brasil nos últimos tempos, importa, de forma sistemática,
conferir a resistência da monogamia como princípio colocado em confronto com a tábua
axiológica enfeixada na principiologia constitucional. Antes, porém, de submeter o
proclamado princípio da monogamia à contraprova dos princípios constitucionais, necessário
se faz apurar como os tribunais superiores têm apreciado e decidido matérias que guardam
relação direta com o tema.

4.2 A monogamia no discurso dos tribunais: espaço de reconstrução?

A base epistemológica do Direito não é nem a das ciências naturais que fixam suas
indagações sobre a empiria, nem a das ciências exatas que, com apoio na lógica matemática,
possibilitam verificação rigorosa da compreensão e de sua aplicação por meio de método
intersubjetivo comunicável e controlável. Por seu turno, “o Direito se funda no processo que
permite o seu próprio conhecimento”,452 isto é, a interpretação. E esta, a interpretação do
Direito, não pode ser reduzida à mera compreensão do significado das normas extraído dos
significantes que conformam o texto legal.

450
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 60.
451
Ibid. p. 52.
452
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 600.
160

Toda e qualquer construção teórica, na perspectiva jurídica, necessita tomar em conta a


natureza epistemológica do próprio Direito, que não é propriamente uma juris scientia, mas,
sim, e antes, uma juris prudentia, logo, um saber prático.453 Como a norma jurídica se destina
à interpretação/aplicação tendo como referência o caso concreto, assim, o próprio Direito é
criado na concretização da norma. Não existe o Direito em si como na concepção
jusnaturalista, universal e imutável, ao qual a razão acede por meio de deduções lógicas e
necessárias, nem tão pouco existe o Direito em si, como idealizado pelo positivismo jurídico,
como se fosse imanente e inerente ao enunciado textual da regra jurídica que, uma vez
compreendida, diz o direito.
Ainda que se faça abstração teórica acerca do Direito, conforme de ordinário ocorre nas
salas de aula, o caso concreto está sempre presente, mesmo que meramente pressuposto, isto
porque o Direito é um saber prático. A sua interpretação — que ao ser realizada, também, o
constitui e estabelece — é atividade do jurista e dos que atuam no cenário jurídico, como os
advogados e os membros do Ministério Público, mas, a interpretação do Direito se
potencializa na atividade judicante, pois, é o juiz quem da produção das normas jurídicas,
extrai a norma de decisão aplicável ao caso concreto.454 Por esta razão, as decisões dos
tribunais e, especialmente, dos tribunais superiores são fonte por excelência do Direito. Logo,
qualquer estudo jurídico sobre a monogamia deve considerar com a devida atenção o discurso
jurídico normativo que vai sendo tecido na urdidura das decisões judiciais.
Antes, porém, de proceder à análise do discurso normativo produzido pela jurisprudência
acerca da monogamia é necessário explicitar a perspectiva teórica da referida análise, pois,
não se trata de simplesmente descrever tendência jurisprudencial ou analisar julgados que se
converteram em precedentes paradigmáticos para decisões futuras. A própria produção
jurisprudencial deve ser problematizada.

4.2.1 A norma produzida pelo intérprete: a positividade do direito é a sua interpretabilidade

453
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed., São Paulo: Malheiros, 2009.
p. 39.
454
“... é importante também observarmos que todos os operadores do direito o interpretam, mas apenas uma certa categoria
deles realiza plenamente o processo de interpretação, até o seu ponto culminante, que se encontra no momento de definição
da norma de decisão. Este, que está autorizado a ir além da interpretação tão somente como produção das normas jurídicas,
para dela extrair normas de decisão, é aquele que Kelsen chama de ‘intérprete autêntico’: o juiz.” (GRAU, Eros Roberto.
Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito... p. 28).
161

É de Pietro Perlingieri a assertiva de que “a positividade do direito é a sua


interpretatividade”.455 O percurso para considerações sobre esta perspectiva fica desde logo
indicado. Num primeiro momento é imprescindível referir, ainda que com certa brevidade, os
avanços das reflexões sobre o fazer hermenêutico que, atualmente, não mais se coaduna com
a noção de reconstrução do pensamento do legislador e de revelação do significado do texto.
Em um passo seguinte, importa sinalizar as diretrizes, critérios e limites impostos à atividade
interpretativa, para, por fim, demarcar as principais balizas da interpretação na perspectiva do
Direito Civil-Constitucional. Assentar estas bases constitui exercício inafastável para a
apreciação do tratamento jurisprudencial dado ao tema da monogamia.
A fonte do mito jurídico da interpretação silogística por subsunção pode ser encontrada no
formalismo jurídico. As várias nuanças do positivismo jurídico fizeram assentar no senso
comum dos operadores do direito a noção quase irremovível de que as normas, os conceitos e
as definições em abstrato constituem realidade descolada da factualidade. Daí a insistência
da abordagem do Direito como direito puro, como expressão do dever ser, sem a
contaminação pelas ciências sociais que têm o ser no centro de suas preocupações.
Esta tendência à abstração dos conceitos e do próprio objeto da produção jurídica terá
como corolário a distinção entre o normativo e o factual, entre o Direito e o que é histórico. O
Direito é percebido como verdade lógica dedutível e não como construção histórica, flexível,
complexa, dialética e, portanto, continuamente mutável. 456 Os fatos, desta forma, não
integram a racionalidade do Direito. São exteriores a ele e são considerados apenas na medida
em que preencham a pré-formatação jurídica, abstrata, para a aplicação do direito.
Do formalismo jurídico se infere que o sentido das proposições do direito positivo só pode
ser encontrado dentro do próprio direito. Do que resulta a relevância do texto legal —
especialmente no sistema da Civil Law. O equívoco repetido ao longo dos anos, para não dizer
séculos, tem sido sustentar que o conhecimento jurídico decorre de processos assemelhados
ao da lógica matemática ou dos métodos das ciências naturais. 457 O direito seria assim um

455
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 602.
456
Como reação ao formalismo e ao dogmatismo jurídico exsurge o realismo jurídico que, como bem observou Pietro
Perlingieri, cai no extremo oposto, qual seja a hipertrofia do factual, tendente a desvalorizar o momento ordenação que se
verifica exatamente na norma. Com o realismo, o direito dissolve-se “no mundo dos fatos, negando, às vezes, não somente
sua autonomia, mas até mesmo sua existência.” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil – introdução ao direito civil
constitucional. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 60).
457
“O problema de interpretação da norma, nessa ótica restrita, deve se reduzir a um procedimento de reconstrução —
procedimento previsto com precisão aritmética — da vontade imperativa no momento em que essa se separou do
‘comandante’ (sempre antropomorficamente pensado) e coagulou-se em um texto, imobilizando-se nesse até irromper de
uma nova, contrária ou diferente manifestação de vontade.” (GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 69).
162

“dado” cognoscível descoberto e revelado pelo observador (intérprete), que o declara como
tal.
Para quebrar este paradigma já plasmado na mentalidade média dos juristas, Eros Grau
lança mão de interessante metáfora: a distinção entre artes alográficas e artes autográficas. 458
Nas primeiras, isto é, nas alográficas, para a sua completa expressão são necessárias duas
figuras: a do autor e a do intérprete, para que um terceiro aprecie a obra. É o caso da música e
do teatro. Já nas artes autográficas o autor não depende da mediação de um intérprete. São
exemplo a pintura e a literatura. A obra se apresenta diretamente do autor ao apreciador. Num
caso ou noutro a interpretação sempre está presente. Mas são dois tipos de interpretação. Na
apreciação da pintura basta a compreensão e esta visa a “emoção estética” imediata, não
dependendo do fazer de nenhum intermediário. Já na interpretação teatral, à compreensão
soma-se a reprodução. O segundo intérprete compreende pela mediação de um primeiro, que
tendo compreendido reproduz dando-lhe sentido.459
Da constatação de que a interpretação jurídica se assemelha às artes alográficas, impõe-se
a conclusão de que o texto legal não se identifica com a norma. A interpretação é o meio de
expressão da norma. Os textos, os enunciados, e preceitos escritos nada dizem. Somente
ganham expressão quando convertidos em normas, isto é, quando interpretados.
A metáfora de que lança mão Eros Grau é muito adequada porque o intérprete não é um
criador da norma ex nihilo, não a produz como quem fabrica, ele, de fato, a produz, da mesma
forma que o ator a arte cênica. Disse o mesmo de outra forma Pietro Perlingieri: “A ligação
entre o texto e o intérprete requer a presença de ambos: ao intérprete não é consentido saltar
ou deliberadamente ignorar o texto, como aconteceu em alguns desvios do sociologismo.” 460
A questão é que a norma não exsurge apenas dos elementos captados do texto legal, ela se
conforma na dialética com os elementos hauridos da realidade pelo intérprete. Constitui, pois,
um equívoco seccionar a interpretação e a aplicação da lei.
A separação entre interpretação e aplicação da lei é resultado do silogismo subsuntivo.
Considerado o mecanicismo da operação simplista de verificação da adequação da premissa
maior — a lei geral — à menor, situação fática concreta, para se extrair a
458
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed., São Paulo: Malheiros, 2006.
459
Esta percepção já há tempo externara Carlos Maximiliano: “Ninguém ousará dizer que a música escrita, ou o drama
impresso dispensem o talento e o preparo do intérprete. Este não se afasta da letra, porém dá ao seu trabalho cunho pessoal, e
faz ressaltarem belezas imprevistas. Assim o juiz: introduz pequenas e oportunas graduações, matizes vários no texto
expresso, e, sob a aparência de o observar à risca, em verdade o melhora, adapta às circunstâncias do fato concreto, aproxima
do ideal do verdadeiro Direito. Deste modo, ele desempenha, à maravilha, o seu papel de intermediário inteligente entre a lei
e a vida.” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 83).
460
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil – introdução ao direito civil constitucional. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar,
2002. p. 67.
163

conclusão/aplicação, compreende-se facilmente a distinção cartesiana que se criou entre


interpretação e aplicação.
Esta concepção ganhou especial legitimidade em razão dos ideais da revolução francesa.
O juiz deveria restringir-se à atividade de ser a boca da lei, tomada esta como expressão da
vontade geral. A interpretação in concreto nem seria propriamente interpretação, mas mera
aplicação da lei. Ela não se refere à premissa maior, a lei. O juiz não determina o significado
dos termos da lei. Cuida da premissa menor, isto é, de interpretar os fatos, de cotejá-los com a
lei, que é clara. A interpretação reduz-se à qualificação jurídica dos fatos, isto é, à
aplicação.461
Da herança do Direito Civil oitocentista tem-se que a interpretação in abstracto — aquela
que se ocupa da premissa maior do silogismo — é função do legislador. Pois, interpretar in
abstracto é legislar. Todavia, é certo que não pode haver interpretação que prescinda dos
fatos. Nem mesmo quando considerados os dispositivos legais em si é possível a abstração
dos fatos neles pressupostos. A redução da interpretação à lógica do silogismo não é
sustentável. Considera Pietro Perlingieri que
o sentido não é uma ‘qualidade da palavra’, mas a sua ‘relação a uma coisa’, a um contexto material ou a um
contexto de experiência. De maneira que com a palavra ‘sentido’ se entende a senha ‘para a específica
relação’ entre expressão linguística e a relativa coisa, que é estabelecida através da definição: não existe,
portanto, um sentido imanente à palavra, este é a relação (e nada mais) entre o texto e o objeto ao qual se
refere. Deste modo, então, a interpretação deve levar em consideração essa referência necessariamente
externa ao texto, resultando estéril qualquer interpretação fechada a um ‘significado próprio das palavras’,
como se existisse um significado interno ao texto, que prescinde da sua relação com o mundo exterior.462

O jurista não tem como abrir mão ou renunciar sua responsabilidade de construir o
Direito. O Direito não é um dado a ser declarado. A palavra do intérprete tem antes natureza
constitutiva do Direito. Valendo-se da linearidade de uma lógica dedutiva de adequação do
caso concreto a uma dada fattispecie, o discurso da subsunção só fez por mascarar as escolhas
ideológicas do jurista. Nesta operação, escamoteia-se a responsabilidade de todo intérprete,
seja ele o doutrinador, o advogado, o promotor ou o juiz. A lei converte-se em uma couraça
capaz de eximir o jurista de responsabilidade em suas manifestações e, sobretudo, em suas
decisões.
Se, por um lado, impõe-se refutação ao silogismo subsuntivo e à presunção de que a
interpretação é o exercício de desvelar a norma já contida no texto legal, por outro, é certo,
que não se pode admitir a supremacia dos fatos em relação ao ordenamento jurídico, de modo
a afirmar-se a prevalência de uma certa tópica. Na primeira hipótese, caminha-se para a

461
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação... p. 94.
462
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil – introdução ao direito civil constitucional. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar,
2002. p. 67 e 68.
164

dissociação dos conceitos jurídicos da realidade social. À medida que se separam norma e
fato, o direito restringe-se ao campo do dever ser e tende às abstrações, perfeitas no campo da
lógica, mas totalmente descoladas da vida. Na segunda, o caso concreto toma tal vulto, que o
Direito se reduz à busca de solução casuística para situações-problema.
Reconhecendo a natureza constitutiva e não meramente declaratória da interpretação
jurídica, necessário se faz apontar alguns limites a esta atividade, de modo a torná-la,
primeiramente, factível e, em um segundo momento, admissível e efetiva para os seus
destinatários, especialmente, porque a interpretação jurídica tem consequências práticas
exponenciais, se comparada, por exemplo, à interpretação de um texto meramente literário.
Admitindo-se que a interpretação revela-se como atividade constitutiva e não meramente
declaratória de uma norma que existe ipso facto no texto legal e, consequentemente, que é o
ato interpretativo que constrói a norma, muito embora não ex nihilo, a questão que daí decorre
diz respeito aos limites desta atividade, ao seu controle e à própria responsabilidade do
intérprete.
As questões que surgem em relação à atividade do intérprete, mormente do intérprete juiz,
referem-se em grande parte ao pluralismo interpretativo, isto é, a possibilidade de múltiplas
soluções contraditórias entre si para solução de uma mesma controvérsia. O modelo do
silogismo subsuntivo dá, em um primeiro momento e sob uma análise superficial, a impressão
de segurança e unicidade para as decisões judiciais sobre casos assemelhados. Se, por um
lado, é verdade que a interpretação da norma não pode enquadrar-se num esquema redutor de
“tudo ou nada”, ou de ser ela “verdadeira ou falsa”, por outro, é inimaginável um sistema no
qual a interpretação fique à mercê das preferências subjetivas do intérprete, ou que a pré-
compreensão e idiossincrasia do juiz sejam os critérios últimos.
Nos sistemas constitucionais contemporâneos existe como pressuposto o controle da
interpretação normativa. O princípio do duplo grau de jurisdição sublinha o referido
pressuposto de controle do rigor interpretativo. 463 Por outro lado, mesmo consideradas as
diversas instâncias recursais, cabe precipuamente ao Supremo Tribunal Federal apreciar, em
sede de recurso extraordinário, as decisões que contrariem norma constitucional. 464 A
previsão deste controle da interpretação normativa faz supor que esta deve assentar-se em
uma argumentação rigorosa e como tal aceita.

463
Constituição Federal, inciso LV do art. 5º: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
464
Constituição Federal, art. 102, inciso III, alínea “a”: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da
Constituição, cabendo-lhe: (...) III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância,
quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição”.
165

É certo, assim, que a atividade interpretativa do juiz não pode ser arbitrária. De outro lado,
não se trata de encontrar a interpretação verdadeira. Importa ter em vista que, partindo de um
enunciado legal, ao intérprete juiz caberá a individuação da norma, isto é, a formulação do
preceito em face do caso concreto e suas peculiaridades. Ao decidir, a interpretação do juiz
vincula-se aos valores que informam o ordenamento jurídico em que a regra está inserida.
Qualquer norma só ganha sentido em um ordenamento.465 Compartimentalizar a norma,
sem preocupação com o ordenamento, implica provocar situação de antinomia de tal
magnitude, que impossível cogitar de direito. Por esta razão, sustenta Pietro Perlingieri que “a
atividade do intérprete é criadora no sentido de que manifesta historicamente os valores do
ordenamento, individua a norma idônea, constitui um precedente doutrinal e jurisprudencial
com a sua autoridade e um peso nas elaborações sucessivas da jurisprudência e da ciência;
julga a compatibilidade da norma com o caso concreto.”466 Assim, como a norma não existe
fora do ordenamento, da mesma sorte a interpretação normativa do caso concreto não
constitui um ato isolado. Na verdade, a interpretação do caso singular integra-se e constitui o
próprio ordenamento.
A interpretação revela-se como atividade vinculada, controlada e responsável exatamente
porque supera a noção do ordenamento como um sistema imóvel, formado por um conjunto
de enunciados linguísticos encadeados em uma hierarquia formal. Na concepção positivista, o
intérprete tomava como escudo o enunciado normativo para ditar, em cada caso concreto, o
que a lei dizia. Eximia-se de responsabilidade. Como na perspectiva civil-constitucional o
sistema é concebido como um sistema poroso,467 em reconstrução contínua alimentado pela
experiência obtida dos fatos concretos em seu devir histórico, a carga de responsabilidade do
intérprete aumenta significativamente, posto que sua atividade deixa de ser mecanicista.
Longe de lançar o Direito em um mar de incertezas e de fazer naufragar o pressuposto de
um sistema jurídico, o intérprete — mormente o juiz, mas não somente ele — terá sua
atividade vinculada aos valores constitucionais, e ao interpretar a norma, seja em abstrato seja
para conformá-la a um caso concreto, compromete-se com a reconstrução permanente da
democracia e com o reavivamento dos direitos civis.
465
“A noção de ordenamento mostra-se: (i) abrangente, para comportar toda a pluralidade de matrizes da normativa social,
muito além do direito positivo; (ii) complexa, já que tal conjunto de normas advém de fontes e de níveis hierárquicos
diversos; (iii) dinâmica, para permitir que se preserve a coercitividade, coerência e eficácia, a despeito da transitoriedade
normativa, assegurando-se a abertura do sistema”. (TEPEDINO, Gustavo. Editorial: Unidade do ordenamento e teoria da
interpretação. In: Revista Trimestral de Direito Civil, v. 30, Rio de Janeiro: Padma, abr.-jun. 2007, p. iii-iv. p. iii)
466
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil... p. 81.
467
“Os dias de hoje são a demonstração inequívoca de que os poros do sistema jurídico estão abertos, que os diques
construídos pelo sistema clássico, para barrar este tipo de influências recolhidas dos fatos, estão ruindo.” (FACHIN, Luiz
Edson. Teoria crítica do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 316)
166

O ordenamento, como um sistema aberto, dinâmico, histórico, resultante de uma interação


constante e dialética entre práxis, norma e fato, tem como consequência imediata a imposição
de maior ônus argumentativo para o intérprete. Desaparece a simplificação silogística e
reducionista. Superado o mito do sistema fechado, que cumpriu certamente importante papel
histórico nas revoluções burguesas, a complexidade do tempo presente desafia a ação
responsável do intérprete. Não poderá ele transpor para o campo da lógica silogística,
cartesianamente esquematizada, a complexidade dos dilemas contemporâneos.
A interpretação, especialmente a do juiz, deverá a um só tempo satisfazer os critérios de
segurança do direito e de sua aceitabilidade racional. 468 O critério de segurança, longe de
encontrar sua base no mero texto legal, se apresenta como aspiração de viabilizar “uma
melhor interpretação num dado momento, estabelecida por meio da persuasão racional,
segundo procedimento justo e democrático. Encontra-se, pois, lugar para uma interpretação
que intente ser a melhor, isto é, que se apresente, num dado período, capaz de manter o
sistema em sua unidade e abertura, para além das argumentações disjuntivas (‘ou’ ... ‘ou’)” 469
Dito de outra forma, a segurança jurídica está referida na conformação da interpretação ao
ordenamento jurídico, observados os valores contidos nos princípios constitucionais.
Já o critério da aceitabilidade racional está diretamente conectado ao primeiro critério e
diz respeito à argumentação. Esta deve a um só tempo ser capaz de apresentar fundamentos
normativos e possibilidade de universalização. Não são suficiente o bom senso e o sentimento
de justiça pessoal do intérprete, a argumentação há de estar assentada na ordem jurídica. 470
Também, em alguma medida, a interpretação deve apresentar potencial aptidão para
universalizar-se, isto é, ser aceita em uma determinada comunidade. A aceitabilidade é
pressuposto do próprio Estado democrático de direito. A este respeito diz Habermas: “A
obrigação do juiz de decidir o caso singular à luz de uma teoria que justifique o direito vigente
como um todo a partir de princípios, é reflexo de uma obrigação precedente dos cidadãos,
confirmada através do ato de fundação da constituição, de proteger a integridade de sua

468
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997. p. 297.
469
FREITAS, Juarez. A melhor interpretação constitucional versus a única resposta correta. Revista latino-americana de
estudos constitucionais, Belo Horizonte, n. 2, p. 279-316, jul./dez. 2003. p. 283.
470
Como destacam Luiz Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, a exigência de uma argumentação estruturada com base
no ordenamento “tem sido deixada de lado com mais frequência do que se poderia supor, substituída por concepções pessoais
embaladas em uma retórica de qualidade”. (BARROSO, Luiz Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história:
a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In; SILVA, Virgílio Afonso da. (Org.)
Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 293).
167

convivência, orientando-se por princípios da justiça e respeitando-se reciprocamente como


membros de uma associação de livres e iguais”. 471
Por todas estas razões, parece certo que a interpretação, especialmente, aquela levada a
cabo pelo magistrado, encontra-se vinculada ao ordenamento jurídico como um todo e
submetida a controle formal e substancial. Por isso mesmo, avulta no quadro atual a
responsabilidade do intérprete.
Nos termos do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, “quando a lei for omissa, o
juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.
Esta disposição legal é reveladora de um paradigma que, durante longo tempo e até o
presente, orientou a interpretação da lei para a solução dos litígios decorrentes das relações
privadas, em especial, mas também aquelas de Direito Público, visto que a Lei 4.657 de 1942,
antes que introdução ao Código Civil, constitui uma introdução às leis em geral.
Tomando o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil como contraponto, cumpre
esboçar os novos contornos que a interpretação ganha no âmbito da legalidade constitucional.
A referência à omissão pressupõe a pretensão de plenitude da lei no sentido de recobrir todas
as possíveis situações fáticas de relevância jurídica. A menção à analogia revela a crença de
que cada fattispecie assentada no texto legal corresponde, exatamente, a um fato ou situação
real. A alusão aos costumes, como algo distinto da lei, desvela a concepção de um direito
legislado que rejeita a experiência. A remissão, por fim, aos princípios gerais do direito,
como um último recurso do qual deve lançar mão o intérprete, evidencia despreocupação com
a noção de sistema. A norma é percebida de maneira insular. A este modelo — que tem suas
principais características espelhadas na expressão legal acima referida — se opõe aquele
sustentado a partir da perspectiva do Direito Civil-Constitucional.
O desmonte do modelo silogístico subsuntivo começa pela constatação de que a analogia é
a regra e não a exceção. Constitui falácia a presunção de que a fattispecie é o espelho de uma
gama significativa de situações fáticas. Os casos concretos são irrepetíveis e únicos. Uma
série de fatores, espaciais, temporais, subjetivos e tantos outros, implica sua individualização.
Sendo assim, as hipóteses legais podem ser apenas semelhantes aos fatos concretos. Logo,
como conclui Pietro Perlingieri, “a interpretação é sempre analógica”, inferindo o civilista que
“diante da inesgotável variedade de casos concretos, a norma representa para o intérprete um
modelo a ser seguido, não um comando específico dado pela autoridade para um específico

471
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia... p. 268.
168

destinatário”.472 O intérprete não pode ser um subserviente aplicador da lei, pois, a


observância estrita à letra de um dispositivo legal em relação a um caso concreto pode
converter-se na negação da própria norma contida no texto. A analogia, portanto, é a regra e
não uma excepcionalidade como o Direito Civil tradicionalmente consagrou.
Necessário é objetar, também, a presunção de que a atividade interpretativa é escalonada.
A dicção do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil tem como pressuposto a completude
e a clareza da lei. Havendo omissões, de maneira suplementar, são indicados caminhos
alternativos e excepcionais ao intérprete. As codificações civis oitocentistas tiveram a
intenção de regular toda a dimensão das relações privadas. Desta premissa impõe-se o
princípio in claris non fit interpretatio. Havendo lei que fixa claramente a fattispecie
desnecessário seria maior esforço hermenêutico. Ocorre que a norma não constitui um prius
em relação à interpretação, mas, sim, um posterius.473 A norma não exsurge da compreensão
lexical do texto da lei. Como adiante será evidenciado, só pode ou pelo menos só deve ser
compreendida tendo em vista sua articulação lógica e axiológica com o ordenamento como
um todo e os princípios que lhe dão suporte.474 Por isso mesmo, seja o texto legal claro ou
não, a atividade de interpretação é inafastável. 475
Por outro lado, ao referir aos costumes para colmatar as lacunas da lei, na atividade
interpretativa, o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil grifa outra característica da
interpretação de matiz silogística por subsunção, qual seja, a dicotomia entre norma e fato,
entre o estrito dever ser e a vida. Esta dicotomia, todavia, não é verificável. É apenas
idealizada, pois, a positividade do Direito não reside no enunciado do legislador. Como
formulou Pietro Perlingieri, “o direito é positivo ‘se, mas somente se, ele é interpretado, e é
positivo só na medida em que for interpretado’.”476 O sentido não é inerente ao signo
linguístico, o sentido se constrói na relação entre a palavra e a coisa por ela designada,

472
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil... p. 75.
473
“A norma jurídica é um posterius e não um prius, de tal modo que, do processo interpretativo, produz-se, a um só tempo,
a norma interpretada e o fato qualificado. O sistema jurídico assim concebido faz convergir a atividade legislativa e
interpretativa na aplicação do direito, que permanece aberto a todos os matizes norteadores da vida em sociedade. Daí a
imprescindibilidade da fundamentação das decisões e da argumentação que as legitimam.” (TEPEDINO, Gustavo. Editorial.
Itinerário para um imprescindível debate metodológico. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro: Padma v. 35,
jul.-set. 2008. iii-iv. p. iv.)
474
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil... p. 80.
475
“A qualificação de clareza que pode ser atribuída a um texto legislativo tem sentido quando seja o resultado de um
posterius da sua interpretação. Será claro aquele texto que, lido em conexão com os outros, com os princípios e os valores
juridicamente relevantes, adquirir significado normativo sem que seja necessário forçar abertamente a sua letra. Contudo, a
sua leitura será sempre influenciada pelo conhecimento do universo normativo. A clareza, de qualquer modo, não implica um
juízo de congruência entre o ‘significado natural’ das palavras usadas e a solução escolhida.” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis
do direito civil... p. 74).
476
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil... p. 67.
169

porquanto, na relação com um contexto material, a experiência, e, por isso mesmo, com o
costume, com a tradição.477 Desta forma, o costume, vale dizer, a experiência vivida — não
apenas excepcionalmente, mas sempre — há de ser tomada em conta na atividade
interpretativa. Se não houver na interpretação uma referência externa ao texto, o resultado
será minguado à mera análise sintática, nada mais. Interpretação jurídica não haverá. O
costume — que nesta reflexão é tomado no sentido de experiência vivida e sedimentada em
uma sociedade, como sinônimo de cultura 478 — não pode ser tomado em conta apenas em
casos excepcionais, isto é, na ausência de texto legal, mas, sempre porque não existe norma
(resultante da interpretação) que decorra apenas do texto.
Na análise do contido no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, por fim, merece
referência a alusão aos princípios gerais do Direito. Em última instância, se não for claro o
texto legal ou se lacunoso, deve valer-se o intérprete da analogia, não sendo esta possível,
deve verificar a possibilidade de atentar para a força da regra da experiência, isto é, o
costume, e, se todos estes recursos faltarem ou se forem insuficientes é que deve, então, o
intérprete lançar mão dos princípios gerais do Direito.479 O lugar secundário legado aos
princípios revela a despreocupação com a noção de sistema e ordenamento. A norma não
pode ser compreendida ou reduzida ao enunciado de um artigo de lei. Impossível conceber
uma norma isolada. Somente é cabível pensar a norma jungida a um dado ordenamento, que a

477
Sobre este difícil tema, ponderou Daniel Sarmento: “A hermenêutica constitucional deve operar de forma reconstrutiva
sobre as tradições. Não lhe cabendo nem afastá-las em bloco, aplicando o direito a partir de alguma ‘tabula rasa’ moral, nem
aceitá-las acriticamente, referendando todos os seus vícios e distorções. O intérprete da Constituição deve ler as tradições e
valores criticamente, na sua ‘melhor luz’. Deve filtrar a moral positiva através do exercício da razão pública, buscando
fundamentar suas decisões em argumentos cuja aceitabilidade pelos interlocutores não dependa de adesão a qualquer credo
religioso ou metafísico, ou a qualquer compreensão particular sobre a ‘vida boa’ – ainda quando se trate da compreensão
majoritariamente escolhida.” (SARMENTO, Daniel. Interpretação constitucional, pré-compreensão e capacidades
institucionais do intérprete. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira; SARMENTO, Daniel e BINENBOJM, Gustavo. Vinte anos
da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008. p. 16).
478
Nesta direção, assevera Pietro Perlingieri: “A cultura, entendida como conjunto de valores éticos, religiosos, tecnológicos,
econômico-sociais etc., funciona ora como parâmetro, por assim dizer, externo – mas que na realidade condiciona o sistema
jurídico, interpretado à luz do processo histórico, ora como conteúdo explicito do mesmo sistema. Isto se verifica quanto
mais reduzida for a discrepância entre a cultura de um País e aquela que consegue se estabilizar e se consolidar no
ordenamento”. (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 197).
479
Importante não confundir princípios gerais do Direito com princípios constitucionais. Esclarece Gustavo Tepedino que
“não se pode concordar com os civilistas que se utilizam dos princípios constitucionais como princípios gerais de direito. Os
princípios gerais de direito são preceitos extraídos implicitamente da legislação pelo método indutivo. Quando a lei for
omissa, segundo a dicção do art. 4º da Lei de Introdução o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia e os costumes; e, só
então, na ausência de lei expressa e fracassada a tentativa de dirimir o conflito valendo-se de tais fontes, decidirá com base
nos princípios gerais do direito. No caso dos princípios constitucionais, esta posição representaria uma subversão da
hierarquia normativa e uma forma de prestigiar as leis ordinárias e até os costumes, mesmo se retrógrados ou conservadores,
em detrimento dos princípios constitucionais que, desta forma, só seriam utilizados em sede interpretativa na omissão do
legislador, e após serem descartadas a analogia e a fonte consuetudinária.” (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2.
ed., Rio de Janeiro: Renovar. 2001. p. 18).
170

significa e ressignifica na dinamicidade viva do próprio sistema ao qual pertence. 480 Por esta
razão, a interpretação jurídica é necessariamente “lógico-sistemática e teleológico-
axiológica”. A cognição de qualquer texto legal deve-se dar a partir dos princípios explícitos e
implícitos hauridos do ordenamento. Assim, por mais clara que seja a letra do texto legal, o
intérprete não poderá eximir-se de uma interpretação norteada pelos princípios, mormente,
pelos princípios constitucionais. A questão da antinomia sempre foi tema mesmo da
hermenêutica positivista tradicional. Esta preocupação é reveladora de que é impossível
pensar a norma desvinculada do ordenamento. Sem a unicidade do ordenamento nem mesmo
é possível sustentar a existência do Direito. Contradições internas de textos normativos
levariam à implosão do sistema e à inviabilidade do Direito. Com maior razão, num sistema
aberto, os princípios constitucionais ganham a primazia no fazer interpretativo. São eles que
determinam e conformam a interpretação da regra mais específica e periférica do
ordenamento.
Do postulado de que a interpretação deve ser sistemática e fundada nos princípios
constitucionais surge como decorrência a questão do ordenamento. Para o positivismo
jurídico de índole formalista o ordenamento é tomado à consideração em razão da mera
hierarquia normativa e da validade formal das normas integradas a um sistema fechado e
autopoiético. No entanto, para o Direito Civil-Constitucional o ordenamento constitui um
sistema aberto, permeável às mudanças históricas, todavia estruturado sobre o primado dos
valores da pessoa humana e de seus direitos fundamentais.
Toda atividade interpretativa deve ser orientada pelo princípio da dignidade da pessoa
humana. E esta assertiva implica uma guinada de cento e oitenta graus para o Direito Civil
forjado nas codificações oitocentistas de matriz nitidamente patrimonialista e centrado no
direito proprietário. Consequência desta virada é a afirmação da supremacia do Direito e da
política sobre o mercado e a economia. Ao interpretar e individualizar a norma no caso
concreto, o intérprete deverá tomar como parâmetro a clara opção de base constitucional que
privilegia a tutela da dignidade da pessoa humana. Questão ruidosa surge, todavia, quando se
trata de aplicação de norma constitucional nas relações privadas, seja direta ou indiretamente.
O modelo silogístico subsuntivo está tão recrudescido na mentalidade jurídica que, mesmo
aqueles que advogam uma interpretação conforme a Constituição, como é o caso de Luís

480
“Não há aplicação de um princípio ou regra jurídica, mas sim do direito como um todo, o que confirma a importância da
aplicação sistemática”. (MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e sistema constitucional – a decisão judicial entre o
sentido da estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008. p. 125).
171

Roberto Barroso, sustentam que “o limite de tal interpretação está nas possibilidades
semânticas do texto normativo”481 infraconstitucional. Significa dizer que, se o texto legal,
considerado na literalidade de sua dicção não admitir interpretação conforme a Constituição,
tal interpretação não poderá ser operada. Ao estabelecer tal proposição, Barroso se reporta,
em nota de rodapé, ao entendimento esposado pelo Ministro Moreira Alves, vertido nos
seguintes termos: “Se a única interpretação possível para a compatibilização da norma com a
Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se
pode aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em
verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo (STF, DJU,
15.4.1988, Rp 1.417-7/DF, Rel. Min. Moreira Alves).”482
Desta citação evidencia-se o convívio conflituoso entre os dois modelos de interpretação.
O novo já alcançou determinado status e é referido até nos setores mais conservadores.
Entretanto, a rigidez do antigo modelo resiste subjacente mesmo na dicção daqueles que já o
superaram.
Por outro lado, há aqueles que sustentam que a interpretação de índole constitucional das
normas de direito privado deve sofrer contingenciamento sob pena de ofensa ao princípio
democrático. Nesta direção já se pronunciou Daniel Sarmento, afirmando que a
“constitucionalização do Direito em excesso pode ser antidemocrática, por subtrair do povo o
direito de decidir sobre a sua vida coletiva.”483 Em outra passagem, afirma que “a filtragem
constitucional (...) confere uma ampla latitude decisória para o intérprete, que pode ser mal ou
bem empregada. É aqui que a dificuldade metodológica exsurge.” 484
Primeiramente, cumpre dizer que é no mínimo estranho se falar em excesso de
constitucionalização danoso à democracia, posto que na Constituição estão estabelecidos os
direitos e as garantias fundamentais da pessoa humana, entre eles, a liberdade e a igualdade.
O fato de a filtragem do texto constitucional ser ou não bem empregada é questão exterior à
metodologia de interpretação proposta pelo Direito Civil-Constitucional. Diz respeito à
habilitação e capacitação do intérprete para valer-se do método. Desvirtuações em razão de
limitações humanas podem ser verificadas independentemente da linha hermenêutica adotada.

481
BARROSO, Luis Roberto. Constitucionalização do direito e do direito civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito civil
contemporâneo – novos problemas à luz da legalidade constitucional: anais do Congresso Internacional de Direito Civil-
Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Atlas, 2008. p. 256.
482
Ibid. p. 256.
483
SARMENTO, Daniel. Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;
SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro:
Lumem Juris, 2007. p. 115.
484
Ibid. p. 142.
172

Neste sentido, assiste razão a Daniel Sarmento ao sustentar que “o operador do direito não
pode agir como se o ordenamento jurídico fosse um sistema composto apenas por princípios,
onde lhe coubesse toda a tarefa de concretização, comportando-se como se as regras
simplesmente não existissem. No mínimo, há o ônus argumentativo do julgador de
demonstrar por que uma determinada regra ditada pelo legislador, e a priori incidente sobre o
caso, não deve ser aplicada.”485
Verifica-se que a crítica à perspectiva civil-constitucional, neste caso, é feita a partir de
situação caricata. É certo que interpretação que afasta a regra posta pelo legislador infra-
constitucional para concreção direta de princípio constitucional exige redobrado ônus
argumentativo do intérprete. Pode existir intérprete ou magistrado que atue, saltando por
sobre o legislador, sob a mera alegação de aplicação direta de princípio constitucional.
Revela-se, neste caso, arbítrio escamoteado de constitucionalidade. Não há, todavia, quem
sustente teoricamente tal orientação.
Inadmissíveis, porém, são a timidez e subserviência à legislação quando esta se revela
manifestadamente inconstitucional. Ao contrário de entendimento do ministro Moreira Alves,
citado por Roberto Barroso, caso a interpretação para a compatibilização da norma com a
Constituição contrariar o sentido inequívoco que a legislação infraconstitucional lhe deu, deve
o intérprete aplicar, sim, o princípio da interpretação conforme a Constituição, posto que é
necessário distinguir entre produção legislativa (função privativa do legislador) e produção
normativa (atividade dinâmica do intérprete, vinculada aos valores constitucionais e
controlada formal e substancialmente).
Não faltam céticos a perguntar se a interpretação segundo a metodologia civil-
constitucional é um programa realizável. Determinadas perguntas, por sua própria inflexão,
são reveladoras da acomodação ao que está posto ou dado. Há, por outro lado, perguntas que
impulsionam o fazer acadêmico e a práxis militante no campo do Direito Civil. O tema da
interpretação, por sua própria natureza, é problemático e, captado da perspectiva civil-
constitucional, surgem algumas questões peculiares. Três delas merecem referência em razão
dos fins propostos nesta reflexão.
Um primeiro questionamento refere-se ao fato de que os critérios para interpretação,
sustentados na perspectiva do Direito Civil-Constitucional, só podem ser aplicados em um
Estado democrático de direito assentado em sistema constitucional fundado no princípio da

485
SARMENTO, Daniel. Ubiquidade constitucional... p. 147.
173

dignidade humana e que espelhe os princípios da solidariedade social, da liberdade e da


igualdade substancial. Em outras palavras, não haveria uma teoria geral que sustentasse a
interpretação, abstraída a contingência histórica de se viver e experimentar um Estado
democrático de direito. Neste sentido, pode-se afirmar que a perspectiva do Direito Civil-
Constitucional é coerente, pois sustenta a necessidade da atividade hermenêutica tomar como
parâmetro os valores da Constituição, assumidos em sua historicidade, e considerada a
dinâmica da experiência social em sua totalidade. De fato, há na proposta uma limitação. Mas
uma limitação assumida e intrínseca à própria concepção da constitucionalização do Direito
Civil.
Diferentemente da pretensão kelseniana, não existe intenção de construir teoria que isole o
campo do dever ser e despreze a contingência e a historicidade do Direito. O limite imposto
pelas condições históricas da possibilidade de um Estado democrático de direito deve ser
assumido. Portanto, não faz sentido o questionamento sobre como interpretar a norma, se
ausente o pressuposto da legalidade constitucional, fundada na dignidade da pessoa humana.
Logo é possível indagar se esta teoria da interpretação não constitui trincheira e um fronte
privilegiado de defesa do próprio Estado democrático de direito.
Uma segunda abordagem é inerente à segurança jurídica. Os críticos do Direito Civil-
Constitucional constantemente suscitam a questão da imputação de excessivo poder ao juiz
que, lançando mão de princípios, dá um salto sobre o legislador ordinário para imiscuir-se na
esfera da autonomia da vontade.486 O problema reside no fato de que a metodologia civil-
constitucional demanda a construção de uma substancial reflexão sobre os princípios. Não se
trata de um câmbio abrupto. O novo intérprete há de ser dotado com instrumental adequado a
esta nova perspectiva. E, mais que instrumental, trata-se de uma nova ratio para a
interpretação do Direito. Os exageros e a banalização da aplicação dos princípios por alguns
magistrados devem-se ao fato de que manejam nova perspectiva interpretativa valendo-se de
instrumentais e, sobretudo, da antiga ratio da interpretação silogística subsuntiva. Impõe-se,
portanto, o seguinte questionamento: O problema real não estaria situado no ainda limitado
desenvolvimento dos estudos sobre os princípios constitucionais? Os exageros e aplicação
superficial e, por isso mesmo, arbitrária dos princípios constitucionais não decorreriam da

486
Maria Celina Bodin de Morais demonstra que este tipo de questionamento parte de uma equivocada concepção de
segurança jurídica. Primeiramente, é necessário sublinhar que a segurança jurídica assentada na regulação minudente típica
do Direito Civil do século XIX é ilusória. Reforça que não se trata de abandonar a aspiração por segurança jurídica, mas de
redefinir o que é a segurança jurídica na contemporaneidade. (MORAIS, Maria Celina Bodin de. Perspectivas a partir do
direito-civil constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo. Direito civil contemporâneo – novos problemas à luz da legalidade
constitucional: anais do Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 40 e 41).
174

ausência de uma ressignificação do ônus argumentativo das decisões judiciais? 487 Não seria
possível admitir uma fase de transição e esperar o amadurecimento da perspectiva civil-
constitucional que ainda está apenas em fase germinal?
Por fim, cabe perguntar sobre o papel do ensino jurídico. Trata-se de uma mudança de
mentalidade. O novo intérprete há de resultar da formação de “uma classe de juristas
adequadamente preparada para tais obrigações, capaz de construir uma jurisprudência
avaliativa, atenta às conseqüências das decisões. Uma classe de juristas que (...) contribua
para realizar uma justiça segundo os valores da Constituição, concretizados no impacto com a
totalidade da experiência cultural como historicamente se determina e se evolui”. 488 A
depender da formação dessa classe de juristas, a realidade brasileira a despeito de inegáveis
avanços desperta preocupações.
Expostas, ainda que de forma sucinta, as bases da perspectiva do Direito Civil-
Constitucional em relação à interpretação e, portanto, em relação à própria condição e
possibilidade de positivação do Direto, importa, tomando-as como referência, passar à análise
crítica da construção jurisprudencial a respeito da regra da monogamia.

4.2.2 O tratamento jurisprudencial da monogamia: o precedente aberto ao futuro

Se o modelo do silogismo subsuntivo não pode ser admitido na atualidade, se o direito


positivo não é imanente ao texto da lei, mas é produzido exatamente pela atividade de
interpretação/aplicação do Direito, em relação dinâmica e dialética com os fatos sociais,
analisados sob a perspectiva da tábua axiológica fixada pelos princípios constitucionais, que
dão unidade ao ordenamento jurídico como um todo, então, o ônus argumentativo é ampliado
e a exigência em relação à fundamentação das decisões judiciais faz com que estas percam a
aparente simplicidade que o positivismo formalista sugeria. Nesta direção, cumpre observar
que as decisões dos tribunais superiores tendentes a abrandar ou mesmo desconsiderar a regra
da monogamia, como foram decisões prolatadas contra legem, sempre impuseram maior ônus
argumentativo para que fosse afastada a interpretação/aplicação que resultava imediatamente
da literalidade da lei.

487
Um princípio que está a merecer estudo mais aprofundado e alargado é o princípio da motivação das decisões judiciais,
consignado no inciso IX do art. 93 da Constituição Federal.
488
PERLINGIERI, Pietro. A doutrina do direito civil na legalidade constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo. Direito civil
contemporâneo – novos problemas à luz da legalidade constitucional: anais do Congresso Internacional de Direito Civil-
Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Atlas, 2008. p. 4.
175

Já a manutenção da monogamia como princípio instransponível, parece dispensar todo


ônus argumentativo. Nesta direção, é paradigmático acórdão prolatado pela Terceira Turma
do Superior Tribunal de Justiça.489 O voto condutor do acórdão que, por unanimidade, deu
provimento ao recurso especial não tem propriamente o objetivo de convencer o
jurisdicionado do acerto e da correção da decisão. Na verdade, a fundamentação não dá
qualquer sustentabilidade para a decisão, que se revela aleatória no sentido etimológico do
termo. Não está presente no acórdão argumentação que revele mínimo apreço ao princípio da
razoabilidade. Trata-se, na verdade, de obediência a uma suposta literalidade da lei, em pura e
simples homenagem a um igualmente suposto princípio da monogamia.
Os fatos, que são tomados como certos e incontroversos, pela peculiaridade do caso
merecem ser referidos ainda que de forma sucinta. Um homem indicado pela letra “M” era
casado com “S” desde 1980. Do casamento nasceram três filhos. Em 1993, separaram-se
judicialmente. Em 1994, ocorreu a derrogação da separação em virtude de reconciliação do
casal. Por fim, em 1999, divorciaram-se, mas mantiveram sua relação, como se marido e
mulher ainda fossem, até a morte de “M” (o companheiro), que ocorreu em 2003. Por outro
lado, “M” (o companheiro) manteve união estável simultânea com “D”(outra mulher), desde o
ano de 1994 até a sua morte. Ambas ingressaram com ações declaratórias de união estável
cumuladas com pedido de pensão por morte do falecido companheiro. Configurada a
conexão, as ações foram reunidas perante o juízo prevento. Até os filhos do casamento do
falecido reconheceram os fatos relativos à união estável que o pai mantivera com “D”, mas
sustentaram que tal relação era espúria e que o pai tencionava romper o relacionamento e só
não o fez por piedade, porque “D” fora acometida de câncer. Por meio de prova documental e
pericial, foi igualmente comprovada a união estável entre “M” e sua ex-esposa “S”, de 1999
até a data do óbito.
O juízo de primeira instância — face às incontestadas provas produzidas, reconheceu a
duplicidade das uniões estáveis que “M” manteve com a Sra. “D”, a partir de 1994, e com sua
ex-esposa, Sra. “S”, a partir de 1999, julgando, assim, procedentes ambos os pedidos. Por
conseguinte, foi determinado o pagamento da pensão pela morte de “M” em favor das autoras,
na proporção de 50% para cada uma. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte manteve
a sentença de primeira instância. Por meio do acórdão em comento, o STJ deu provimento ao
recurso especial interposto pela Sra. “D” para excluir o direito de pensão por morte da Sra.
“S”, ex-esposa, mas, posteriormente, apenas companheira do falecido.

489
STJ, Resp 1.157.273-RN, 3ª T. Rel. Min. Nancy Andrighi, J. 18/05/2010.
176

A princípio poderia parecer que o acórdão do STJ teria até mesmo prestigiado a união
estável em detrimento do casamento. Todavia, não foi o que ocorreu. A Ministra relatora
iniciou seu voto fazendo consignar que “Cinge-se a lide a definir, sob a perspectiva do Direito
de Família, a respeito da viabilidade jurídica de reconhecimento de uniões estáveis
simultâneas.” E tendo transcrito boa parte do acórdão do Tribunal de Regional, concluiu:
“Com base nos contornos fáticos acima descritos, atesta-se a indiscutível existência de uniões
de afeto simultâneas, mantidas entre o falecido e as postulantes: D., pelo período
compreendido entre o ano de 1994 até a data do óbito do companheiro – 17.4.2003 –; e S.,
após a homologação do divórcio do casal – 17.12.1999 –, também até a data do óbito de M.
da C. G.”
A solução dada ao recurso especial, interposto com fundamento em dissídio
jurisprudencial daquela Corte Superior, foi no sentido de que com o divórcio ocorrido em
1999 rompido estava o laço matrimonial entre “M” e sua ex-esposa “S”, e ele, “M”, não
poderia ter mantido, ato contínuo, união estável com sua própria esposa, porque com o
divórcio teria ganhado força jurídica a união estável iniciada com “D”, em 1994, e, portanto,
em razão do dever de lealdade para com a companheira “D”, não poderia ser reconhecida
como união estável aquela por ele mantida com a ex-esposa.490 Solução mais formalista e
descolada da realidade não poderia ser adotada. O critério utilizado foi declinado pela
Ministra relatora: “... uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia
não pode atenuar o dever de fidelidade – que integra o conceito de lealdade – para o fim de
inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência,
desleais...”491
A conclusão do voto apresenta solução inusitada. Reconhece que a conduta reprovável
seria do falecido, mas, sua ex-esposa, quando deixou a condição de cônjuge, em razão do
divórcio, teria sido reduzida à condição de concubina, pois, o seu marido já mantinha união
estável anterior com outra mulher. Como a regra da monogamia não admite uniões estáveis

490
Nos termos do próprio acórdão consta: “A despeito do reconhecimento – na dicção do acórdão recorrido – da “união
estável” entre o falecido e sua ex-mulher, S. M. de L. C., em concomitância com união estável preexistente, por ele mantida
com a recorrente, certo é que já havia se operado – entre os ex-cônjuges – a dissolução do casamento válido pelo divórcio,
nos termos do art. 1.571, § 1º, do CC/02, rompendo-se, em definitivo, os laços matrimoniais outrora existentes entre ambos.
A continuidade da relação, sob a roupagem de união estável, não se enquadra nos moldes da norma civil vigente – art. 1.724
do CC/02 –, porquanto esse relacionamento encontra obstáculo intransponível no dever de lealdade a ser observado entre os
companheiros.” (STJ, REsp 1.157.273-RN, 3ª T. Rel. Min. Nancy Andrighi, J. 18/05/2010).
491
Em que pese o formalismo da análise, ao lavrar o seu voto, a Ministra relatora reconhece que a existência de famílias
simultâneas é uma constante na sociedade brasileira contemporânea, pois, assevera: “As uniões afetivas plúrimas, múltiplas,
simultâneas e paralelas têm ornado o cenário fático dos processos de família, com os mais inusitados arranjos, entre eles,
aqueles em que um sujeito direciona seu afeto para um, dois, ou mais outros sujeitos, formando núcleos distintos e
concomitantes, muitas vezes colidentes em seus interesses”. (STJ, REsp. 1.157.273-RN, 3ª T. Rel. Min. Nancy Andrighi, J.
18/05/2010).
177

concomitantes, a segunda, estabelecida com a própria esposa, foi desclassificada para o nível
de concubinato. Transcrição dos termos do próprio acórdão em suas últimas linhas:
Por fim, merece atenção o fato de que o autor de conduta reprovável, M. da C. G., já falecido, é quem deveria
suportar as penalidades pelo comportamento afetivo paralelo, e não a concubina, que, muito embora detivesse
conhecimento da vida dúplice que ele ostentava, não logrou êxito em comprovar o direito subjetivo
pretendido, nos termos da legislação vigente.
Considerada a imutabilidade, na via especial, da base fática tal como estabelecida no acórdão recorrido, em
que consta, expressamente, o paralelismo das relações mantidas pelo falecido com a recorrente e a ex-mulher,
deve ser reformado o julgado, para que se mantenha apenas o reconhecimento da união estável havida entre
M. da C. G. com D. A. de O., desde 1994 até o seu óbito.

O equívoco da decisão pode ser inferido, facilmente, mesmo por aqueles que não são
afetos à área jurídica. Uma questão seria, de pronto, formulada: Por que a decretação judicial
do divórcio, que em nada afetou a relação conjugal de fato entre os ex-cônjuges, que seguiram
vivendo more uxorio, desqualificou a ex-esposa para condição de concubina e elevou a outra
mulher, até então, concubina, à condição de companheira? A indagação que traz em si certa
irresignação com a solução dada ao caso pelo STJ revela a impropriedade de interpretação
focada em lógica pré-estabelecida, fundada no pressuposto de que o conhecimento jurídico
possa ser estabelecido por meio de operações de encaixe automático de certo fato concreto em
fattispecie abstratamente fixada pela lei. Como ensina Pietro Perlingieri, a clareza do texto é
um posterius e não um prius.492 Não existe a norma clara no texto legal, de modo a ser
aplicado o brocardo in claris no fit interpretatio. Bem expressou, também, Pontes de Miranda
o mesmo entendimento: “Pouco importa, ou nada importa, que a letra seja clara, que a lei seja
clara; a lei pode ser clara, e obscuro o direito que, diante dela, se deve aplicar. Porque lei é
roteiro, itinerário, guia.”493
Quando o juiz, simplesmente, aplica a lei, segundo o pressuposto clássico do silogismo
subsuntivo mecanicista, o ônus argumentativo encolhe, porque o magistrado se refugia no
texto legal, isentando-se da consequência jurídica que de sua decisão decorre. Na metodologia
do Direito Civil-Constitucional, não há lugar para o servilismo à literalidade da lei. “A norma
nunca está sozinha, mas existe e exerce a sua função dentro do ordenamento, e o seu
significado muda com o dinamismo e a complexidade do próprio ordenamento; de forma que
se impõe uma interpretação evolutiva da lei.” 494 A interpretação, que é produção normativa,
exige, além da harmonização com os princípios constitucionais, o confronto e o conhecimento

492
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 615.
493
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo VI. Rio de Janeiro:
Forense, 1974. p. 291. Ou ainda, de outra forma, bem o disse Helena Kollody: “Identificação. Usando as mesmas palavras/
precisas e limitadas/ os homens raro se entendem./ As almas se identificam nas graves coisas profundas,/ inominadas.
(KOLODY, Helena. Helena de Curitiba: poemas selecionados de Helena Kolody. Coordenação Grupo de Marketing do
Grupo Positivo. Curitiba: Positivo, 2005. p. 41.)
494
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 617.
178

contextual do fato concreto a ser regulado. Se a interpretação é assim como consignou


Perlingieri, “por definição, lógico-sistemática e teleológico-axiológica, isto é, finalizada à
realização dos valores constitucionais”, não pode resultar em um desvalor, repudiado pela
mesma ordem constitucional, como ocorreu a olhos vistos no acórdão do STJ sob análise.
Ainda que seja nas dobras de decisões que ainda não expressam a força da principiologia
constitucional, a regra da monogamia, como um a priori rígido, evidencia sua fragilidade, e
mais, sua impertinência. Note-se que, neste caso, a monogamia foi evocada como elemento
decisivo: “... uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode
atenuar o dever de fidelidade”, proclamou a ministra relatora. Necessário lembrar que o
recurso especial manejado por “D”, companheira de “M”, em desfavor de “S”, ex-esposa, mas
também companheira de “M” até a sua morte, foi admitido em razão do comprovado dissídio
jurisprudencial entre o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte e Superior Tribunal de
Justiça em relação à matéria de reconhecimento de famílias simultâneas. Admitir a existência
de famílias simultâneas, mesmo em um caso como este — em que todos os elementos fáticos
conspiram a favor e o conjunto dos princípios fundamentais da Constituição impõe tal
reconhecimento jurídico — implicaria reforçar a tese contrária à que vem prevalecendo
ultimamente no STJ e, em última ratio, admitir que a regra da monogamia não deva
prevalecer sempre. Na perspectiva dos integrantes daquela Câmara, esta regra não deve ser
fragilizada, pois, nos termos do acórdão, “constitui elemento estrutural da sociedade”.
No Superior Tribunal de Justiça, em tempo um pouco mais remoto, já foi mantido
entendimento diverso daquele que atualmente é esposado. Ainda que em alguns casos não
fosse reconhecida a união estável paralela ao casamento, à relação, considerada como
sociedade de fato, eram imputados efeitos de natureza obrigacional. É o que se constata, por
exemplo, de acórdão prolatado em 1995, que apreciou recurso especial, tendo como suporte
fático a união de fato paralela ao casamento, que se estendeu por 36 anos, até o falecimento
daquele que, casado, mantinha família paralela. Ao longo desses anos, o homem passava parte
da semana ora na casa da esposa ora na casa da companheira.495 Ainda que o direito
reconhecido à denominada concubina derivasse de uma suposta relação obrigacional, o

495
“No caso dos autos, sem se estar a revolver matéria de prova, porque ela está exposta nas três decisões das instâncias
ordinárias, é certo que o de cujus mantinha uma vida dupla – residia com sua esposa (recentemente falecida) e também
alguns dias e noites por semana com a concubina autora – durante 36 anos, período que, induvidosamente, refoge ao normal,
mesmo considerando-se que atualmente o fato de alguém frequentar, pernoitando, a casa de outrem, às vezes, não representa,
de logo, um concubinato, dada a maior liberalidade nas relações amorosas de hoje. Assim é que a pensão fixada no acórdão
da apelação, de ½ salário mínimo mensal, do começo ao fim da relação extraconjugal, que terminou quando da morte do
concubino Antônio, parece-me coerente com o direito postulado nos autos, pela longa duração, superior a três décadas, da
convivência em comento, ainda que na constância do casamento.” (STJ, REsp. 303.604 - SP, 4ª T. Rel. Min. Aldir Passarinho
Junior, J. 20/03/2003).
179

Superior Tribunal de Justiça não admitia àquela época o enriquecimento sem causa do
concubino em desfavor da concubina.
Esta solução — a de não reconhecer relação familiar — mas, sim, a obrigacional entre o
homem casado e sua concubina, sempre causou embaraço ao Superior Tribunal de Justiça. Em
acórdão prolatado em 2003, pronunciou-se o Ministro Aldir Passarinho Junior, na qualidade
de relator, nos seguintes termos:
A orientação tranquilizada no Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que, durante o período de vida em
comum, faz jus a concubina a uma indenização por serviços domésticos prestados ao companheiro, o que não
importa, evidentemente, em dizer que se está a remunerar como se "serviçal" ou "empregada" fosse, data
venia do voto condutor, mas, sim, na sua contribuição para o funcionamento do lar, permitindo ao outro o
exercício de atividade lucrativa, em benefício de ambos. É que, liberado dos afazeres domésticos, o
concubino não despende preocupação, tempo e energia para a manutenção da casa e de si mesmo, encargos
confiados à concubina, e isso tem certo valor, reconhecido jurisprudencialmente (cf. REsp ns. 132.826/SP,
Rel. Min. Eduardo Ribeiro, unânime, DJU de 06.12.1999; 229.033/SP, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha,
unânime, DJU de 19.06.2000 e 125.401/RJ, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, unânime, DJU de
21.08.2000).496

É de todo evidente que a equiparação do concubinato a uma relação obrigacional, após a


promulgação da Constituição Federal de 1988, apresenta-se inadequada. Como considerou
Paulo Luiz Netto Lôbo: “O que era um avanço, ante a regra de exclusão das entidades
familiares fora do casamento, converteu-se em atraso quando a Súmula [380] continuou a ser
utilizada após a Constituição de 1988”. 497 Todavia, para evitar a negação de todo e qualquer
direito à mulher, enquadrada na condição de concubina, repetidas decisões do Superior
Tribunal de Justiça reconheciam a ela direito ao recebimento de indenização por serviços
prestados. Acórdão da lavra do Ministro Eduardo Ribeiro, prolatado no ano de 1994, recebeu
ementa nos seguintes termos: “Concubinato – Sociedade de fato – Homem casado. A
sociedade de fato mantida com a concubina rege-se pelo Direito das Obrigações e não pelo de
Família. Inexiste impedimento a que o homem casado, além da sociedade conjugal, mantenha
outra, de fato ou de direito, com terceiro. Não há cogitar de pretensa dupla meação. A
censurabilidade do adultério não haverá de conduzir a que se locuplete, com o esforço alheio,
exatamente aquele que o pratica.” 498

496
STJ, Resp. 303.604 - SP, 4ª T. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, J. 20/03/2003.
497
E na seqüência esclarece: “O equívoco da aplicação da Súmula 380 à união estável expandiu-se às demais entidades
familiares, em decisões consideradas ousadas e avançadas. Com efeito, o fundamento na orientação contida na Súmula, ainda
quando ela não seja claramente indicada, contém um insuperável defeito de origem, pois classifica as relações afetivas como
relações exclusivamente patrimoniais, não regidas pelo Direito de Família.” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares
constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: PEREIRA. Rodrigo da Cunha. Família e cidadania – o novo CCB e
a vacatio legis (Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família). Belo Horizonte: IBDFAM/Del Rey, 2002. p. 89 –
107. p. 100.)
498
STJ, REsp. 47.103-6 - SP, 3ª T., Rel. Min. Eduardo Ribeiro, J. 29/11/1994. Na mesma linha de entendimento podem ser
mencionados os seguintes julgados: STJ, REsp. 1.648 - SP, 3ª T., Rel. Min. Eduardo Ribeiro, J. 27/03/1990; STJ, REsp. 483 -
SP, 3ª T., Rel. Min. Nilson Naves, J. 21/08/1990; STJ, REsp. 38.657 - SP, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, J.
22/03/1994; STJ, REsp. 45.886- SP, 4ª T., Rel. Min. Torreão Braz, J. 25/04/1994.
180

Para não configurar o completo desamparo à concubina, ainda que não lhe seja
reconhecido direito afeto à condição familiar, ao menos, assegura-se-lhe alguma tutela no
âmbito obrigacional.
No ramo previdenciário, os Tribunais Regionais Federais têm reconhecido direito à
divisão da pensão por morte entre a concubina e a esposa.499 Por vezes, já decisões que
pretendem basear-se apenas em um suposto princípio da equidade, mas, à falta de
fundamentação de maior envergadura, tornam-se frágeis e passíveis de pertinentes críticas. A
mera evocação do princípio da equidade e do livre convencimento do juízo, como ocorreu em
julgado da Segunda Turma Especializada do TRF da Segunda Região, 500 não é suficiente para
o reconhecimento de direitos a quem vive em família simultânea. Ao contrário, decisões deste
jaez municiam aqueles que se entrincheiram sob os auspícios da concepção de interpretação
de modelo silogístico subsuntivo. Este desvirtuamento metodológico é indicado por Ingo
Sarlet como “potencial autoritário dos princípios, que também guarda vinculação com a
possibilidade de, a partir de sua gramática aberta e axiologicamente impregnada, autorizar um

499
Apenas a título de exemplo, seguem transcritas ementas de alguns julgados: “ADMINISTRATIVO. PENSÃO MILITAR.
RATEIO. EX-ESPOSA E COMPANHEIRA. POSSIBILIDADE. 1. Apesar de não constar a companheira como beneficiária
da pensão militar, nos termos da legislação de regência aplicável à data do óbito, em homenagem ao princípio tempus regit
actum, a nova ordem constitucional, em seu artigo art. 226, § 3º, CF/1988, diante de sua especial proteção à família,
agasalhou seu status equiparando-o ao da esposa, reconhecendo a união estável entre o homem e a mulher, razão pela qual
não há que se excluir a postulante do rol do artigo 77 da Lei 5.774/71. 2. Uma vez que o óbito é posterior ao advento da Carta
Magna, a aplicação de seus postulados não pode ser arredada. 3. Quanto à cota a ser percebida, nos termos dos dispositivos
legais acima transcritos, especialmente o inciso I do art. 7º, a viúva e a companheira do de cujus devem ratear em partes
iguais o valor do benefício, pois ambas se enquadram na primeira ordem de prioridade.” (TRF4, APELREEX
2004.71.04.010255-3, Terceira Turma, Relator Fernando Quadros da Silva, D.E. 08/09/2011) “ADMINISTRATIVO .
MILITAR. PENSÃO. COMPANHEIRA. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. SUM-253/TFR. . Comprovada a convivência por
dezessete anos, bem como a dependência econômica, faz jus a companheira à pensão militar, ainda que permanecesse casado
o mesmo, nos termos da SUM-250 TFR. Apelação e remessa oficial, considerada interposta, improvidas.” (TRF4, AC
93.04.09556-5, Quarta Turma, Relatora p/ Acórdão Silvia Maria Gonçalves Goraieb, DJ 13/01/1999). “PREVIDENCIÁRIO.
PENSÃO POR MORTE. CUMULAÇÃO DE BENEFÍCIOS. COMPROVAÇÃO DO CONCUBINATO. 1. Não há vedação
legal quanto à acumulação de duas pensões por morte, sendo uma decorrente da morte do marido civil e a outra em virtude
do óbito do concubino, cuja morte sobreveio ao convívio estabelecido durante a viuvez da Autora. 2. Comprovado o
concubinato entre a Autora e o falecido segurado, bem como a dependência econômica, mediante prova material e
testemunhal, deve ser concedido o benefício da pensão por morte. 3. Apelação provida.” (TRF4, AC 94.04.03783-4, Sexta
Turma, Relator Carlos Antônio Rodrigues Sobrinho, DJ 18/02/1998).
500
É o caso, por exemplo, de julgado da Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, cuja ementa restou
assim registrada: “I- A existência de impedimento para se casar por parte de um dos companheiros, como, por exemplo, na
hipótese de a pessoa ser casada, mas não separada de fato ou judicialmente, obsta a constituição de união estável. II- Nossa
sociedade se pauta nos princípios da monogamia, fidelidade e lealdade, que se encontram não apenas na ética ou na moral,
mas que são imposições legais de nosso ordenamento jurídico. III- Circunstâncias especiais reconhecidas em juízo para que
se divida, em definitivo, a pensão de morte entre a viúva e a concubina; pesando as circunstâncias fáticas e as de direito,
concluo, com base na eqüidade, no livre convencimento e no princípio da igualdade material, pelo rateio da pensão no
percentual de 70% para a esposa e 30% para a concubina. IV- Condenação a pagar os atrasados devidos a partir da suspensão
do benefício. V- Agravo Interno parcialmente provido e Embargos Declaratórios prejudicados.” (TRF2, AGT 392837,
Segunda Turma Especializada, Rel. Des. Federal Messod Azulay Neto. DJU 30/08/2007). Contraditoriamente, ao mesmo
tempo em que o julgado afirma a prevalência dos princípios da monogamia e da fidelidade no ordenamento jurídico
brasileiro, assevera que pesando os fatos e com base na equidade, no livre convencimento e no princípio da igualdade
material, reconhece o direito ao rateio entre esposa e concubina numa injustificada proporção de 70% e 30%
respectivamente.
181

voluntarismo hermenêutico e o arbítrio judicial...”.501 Esse risco, contudo, não deve servir de
pretexto, como o mesmo Sarlet adverte, para que seja desprezada a força normativa dos
princípios, nem tão pouco para permitir que a baixa densidade da fundamentação das decisões
judiciais ou a ausência de atenção aos limites inerentes ao sistema jurídico possam abonar um
minimalismo judicial. 502 Este seria um retrocesso de todo indesejado.
A aplicação simplista de princípios, com a dispensa do ônus argumentativo, direciona
irresponsavelmente o pêndulo para o polo oposto ao do silogismo subsuntivo, isto é, da
submissão irrefletida à letra da lei passa-se a um ativismo judicial voluntarista, igualmente,
inadmissível. Nesta ordem de ideias, é necessário reprisar que a proposta da metodologia do
Direito Civil-Constitucional pressupõe a interpretação como atividade vinculada, controlada e
responsável. “A interpretação é atividade vinculada mais especificamente às escolhas e aos
valores do ordenamento; é controlada porque deve ter uma motivação idônea, adequada; é
responsável porque o dolo e a culpa grave na decisão justificam a responsabilidade da parte
que se encontre em tais condições”. 503 De qualquer sorte, a uniformização da interpretação
das leis infraconstitucionais no sistema constitucional brasileiro é de competência do Superior
Tribunal de Justiça e a uniformização da interpretação constitucional é do Supremo Tribunal
Federal.
A matéria atinente à regra da monogamia tem sido apreciada tanto pelo Superior Tribunal
de Justiça como pelo Supremo Tribunal Federal. Para os fins propostos, mostra-se
conveniente e oportuna a análise de um acórdão do STJ e de outro do Supremo Tribunal
Federal, posto que não foram julgados à unanimidade. A polêmica entre os julgadores
oportunizou fundamentação mais alongada dos votos divergentes, o que, em regra, qualifica
tais julgados em termos de maior esforço argumentativo.
Nestes dois casos os fatos são eloquentes e não podem ser desprezados, para prevalecer a
referência apenas às questões jurídicas em tese levantadas. Pessoas com seus nomes e com
sua história são mais que um dado sujeito de direito envolvido em uma relação jurídica em
tese.

501
SARLET, Ingo. Breves notas sobre a contribuição dos princípios para a renovação da jurisprudência brasileira. In:
TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo – novos problemas à luz da legalidade constitucional: anais do
Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Atlas, 2008. (p. 296-310) p.
309.
502
Ibid. p. 309.
503
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
p. 81.
182

O caso submetido a julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça tem como pano de
fundo a história de Maria Olga Moreira Cintra,504 que viveu como companheira de Sylvio
Barros, desde 1967 até sua morte em 1995, o que veio a perfazer quase 30 anos. Ao longo
desse tempo, Sylvio, embora casado com Maria Isa de Almeida Barros, com quem teve duas
filhas, manteve ininterrupta relação com Maria Olga, providenciando, inclusive, sua
transferência para o Recife, quando ele e sua esposa mudaram-se de São Paulo para aquela
cidade, em 1969. Em Recife, foi Sylvio quem assegurou moradia e, também, emprego para
Maria Olga. Com a morte de Sylvio, Maria Olga ajuizou demanda em face do INSS,
pugnando ser reconhecida como beneficiária da Previdência Social, na qualidade de
dependente do segurado, para o recebimento de 50% (cinqüenta por cento) da pensão por
morte. O juízo de primeira instância julgou improcedente o pedido, sendo a sentença
reformada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região. A viúva, Maria Isa, interpôs recurso
especial que foi conhecido e julgado pelo Superior Tribunal de Justiça. Por maioria de votos
foi dado provimento ao recurso especial para restabelecer o entendimento do juízo de primeira
instância. Alguns pontos salientes da linha argumentativa dos ministros que participaram do
julgamento devem ser referidos.
O relator, Ministro Nilson Neves, teve o voto vencido. Ao fundamentar sua decisão
retomou os fatos conforme compreendidos e registrados pelo Tribunal Regional,505
endossando o entendimento consagrado no acórdão recorrido. A linha de argumentação
restringe-se ao anúncio de que a divisão da pensão por morte entre a esposa viúva e a
companheira seria decisão mais acertada e que se tornaria injusto preterir do benefício a
companheira, que manteve durante longos anos relação permanente com o segurado. Na
decisão transcrita, apenas de forma lacônica, há referência a proteção constitucional à união
extraconjugal, evocando-se lição de Edgar de Moura Bittencourt.506 Chama o relator à colação

504
Os nomes foram divulgados pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, que publica a íntegra do acórdão em seu sítio
oficial na Internet. (STJ, REsp. 674.176 – PE, 6ª T., Rel. Min. Hamilton Carvalhido, J. 17/03/2009).
505
Do voto condutor do acórdão do Tribunal a quo transcreveu: "As provas documentais e testemunhais demonstram que, de
fato, a demandante manteve com o segurado relação amorosa durante vinte e oito anos, embora já estivesse casado com
Maria Isa de Almeida Barros e assim tenha permanecido até o falecimento. Esclarecem, ademais, que a relação, embora
desconhecida da esposa, filhas e parentes próximos do segurado, era notória na localidade em que residia a demandante."
506
“Creio ser este posicionamento o mais acertado, vez que não seria justo preterir do gozo do benefício da companheira que
manteve relacionamento estável durante quase trinta anos com o segurado. A união extraconjugal, no caso, merece a proteção
outorgada pela Constituição Federal de 1988. Como bem salientou Edgar de Moura Bittencourt, especialista no tema, as
uniões adulterinas devem ser contempladas pelo direito à vista das circunstâncias que as envolvem, como a boa-fé da
concubina, a sua fraqueza e o grau de sedução a que foi submetida. Na hipótese, vislumbro, ao menos, a boa-fé da autora, que
acompanhou o segurado durante longo período, sob sua dependência.”
183

a Súmula 382 do STF,507 a sustentar que para caracterizar o concubinato não se exige vida
comum sob o mesmo teto.
Socorreu-se, também, de decisão da 2ª Turma do STJ, na qual ficou assentado que
“pacífica é a orientação das Turmas da 2ª Seção do STJ no sentido de indenizar os serviços
domésticos prestados pela concubina ao companheiro durante o período da relação, direito
que não é esvaziado pela circunstância de ser o concubino casado, se possível, como no caso,
identificar a existência de dupla vida em comum, com a esposa e a companheira, por período
superior a trinta anos.”508 E, para decidir, consignou: “Tais as circunstâncias indicadas, o
acórdão recorrido adotou, a meu ver, a melhor das soluções: proteger a boa-fé da concubina,
resultante de relação concubinária de quase trinta anos. É indiferente para o concubinato fosse
o homem casado – tratava-se de relação tão íntima, que providenciou ele a ida dela para
Recife quando, para lá, ele, esposa e filhos se mudaram no ano de 1969”.
Desse voto, diga-se vencido, é possível extrair algumas conclusões. A fundamentação
mostra-se voltada para o passado. O Ministro relator, a quem o recurso foi distribuído
inicialmente, evocou as Súmulas 380 e 382 do STF, recordou anotações e comentários que,
àquele tempo fez, a estas súmulas. 509 Mas em nenhum momento trouxe à discussão as radicais
transformações sofridas pelo Direito de Família, a partir da Constituição de 1988. Por outro
lado, sua razão de decidir, em que pese não amparada em linha argumentativa sistemática,
referenciada na principiologia constitucional, é reveladora de inquietação face a uma situação
de injustiça. A questão subjacente que o levou a negar provimento ao recurso especial
interposto pela esposa viúva restou explicitada e poderia ser expressa pela seguinte indagação:
Como poderia ficar ao completo desamparo aquela que por quase trinta anos dedicou sua vida
a um homem, deixou sua cidade e reorganizou sua existência em função dele, em cidade tão
distante e, reconhecidamente, viveu como sua mulher, embora fosse ele casado? Esta difusa
razão de decidir, todavia, não é equacionada por meio de reflexão jurídica amparada na
crítica à regra da monogamia, que permite a desqualificação da união estável em concubinato
nos casos de conjugalidades simultâneas.
Da linha de argumentação do voto do Ministro Hamilton Carvalhido — que se converteu
em voto vencedor — devem ser sublinhadas algumas peculiaridades. Parte da premissa que a
Constituição Federal admitiu a união estável prevendo sua conversão em casamento, “em
507
Súmula 382 do STF: "A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do
concubinato"
508
STJ, REsp. 303.604 - SP, 4ª T. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, J. 20/03/2003. Acórdão já referido anteriormente.
509
“Já faz tempo quando, nos intervalos dos meus trabalhos de assessoria, eu me dedicava a anotar códigos e súmulas; foi
então que fiz estas notas para a Súmula 382, de 1964, do Supremo ....”
184

inequívoca demonstração de evolução social”. Nesta concepção a união estável teria status
constitucional inferior ao casamento e deveria para ele convergir. Logo, a união estável como
instituto estabeleceria inequívoca distinção entre uniões livres e relações adulterinas. Evoca a
legislação previdenciária, inclusive o § 4º do art. 19 do Decreto nº 357 de 7 de dezembro de
1991, que veio a regulamentar a Lei nº 8.213/91, que dispõe expressamente: “O segurado
casado está impossibilitado de realizar a inscrição de companheira, exceto se separado de
fato”. Para concluir, que “o concubinato impuro, concubinagem ou concubinato adulterino,
simultâneo à relação de casamento, mantém-se à margem da legislação previdenciária”.
A Ministra Maria Thereza de Assis Moura endossou o voto dissidente, acompanhando sua
linha de argumentação e acresceu que além da legislação previdenciária não amparar a
pretensão da autora, não havia como admitir sua boa-fé, pois “sabia que o segurado era casado
e que mantinha a relação matrimonial ainda presente, convivendo ele com a esposa e a
família, simultaneamente à relação concubinária, esta tida como adulterina”. Portanto,
introduziu a questão da boa-fé. Como se referiu apenas ao conhecimento pressuposta estaria
neste raciocínio a boa-fé subjetiva.
O juiz federal convocado acompanhou o voto do relator, que, ao final, foi vencido. O
Ministro Paulo Gallotti, em voto de desempate, alinhou-se aos votos dissidentes. Sublinhou,
preliminarmente, que o acórdão do Tribunal Regional da 5ª Região decidiu a controvérsia sob
o enfoque eminentemente constitucional e que, portanto, o recurso especial não seria a via
própria para a apreciação da questão. Demonstra que casos desta natureza têm sido resolvidos
pelo Supremo Tribunal Federal, mas avançaria ao mérito, porque os demais votos já o haviam
feito. Demarca que a legislação previdenciária na definição de união estável manteve
autonomia em relação ao Código Civil até que o Decreto nº 6.384/2008 passou a fazer
remissão à delimitação codificada do instituto, mas que, de qualquer sorte, tal legislação
especializada não teria, em qualquer momento, amparado “situações à margem da legislação”.
Evoca decisões recentes do STF para dar provimento ao recurso especial, desqualificando a
autora da condição de companheira para a de concubina, negando-lhe direito à pensão por
morte.
Ainda que a orientação do Superior Tribunal de Justiça, atualmente, aponte para o não
reconhecimento de conjugalidades paralelas — e, portanto, de famílias simultâneas —
merecedoras de plena cobertura da tutela constitucional, não há unanimidade sobre o tema,
como demonstra o acórdão em comento. Tal dissenso se presta a expor o núcleo da questão
que orienta as reflexões desta tese. As divergências em relação à matéria estão presentes,
185

também, nos julgados do Supremo Tribunal Federal. E trata-se, com certeza, de objeto de
natureza constitucional.
Cumpre lembrar que o tema de conjugalidades simultâneas é questão polêmica já
enfrentada pelo STF antes da Constituição Federal de 1988. Em 1985, sob a relatoria do Min.
Aldir Passarinho, o Supremo Tribunal Federal decidiu sobre o tema mediante julgado que
restou ementado nos seguintes termos: “Concubina. Partilha patrimonial. Réu casado.
Compreensão da Súmula 380. A ação de partilha patrimonial promovida pela concubina não
pode prosperar se o réu é casado, visto que tanto conduziria ao despropósito da dupla meação.
A Súmula 380, interpretada à luz da jurisprudência que lhe serviu de base, e daquela que lhe
sobreveio, refere-se a concubinos desimpedidos.”510 Tratava-se de demanda proposta pela
concubina contra o concubino e a esposa deste, pleiteando o reconhecimento da sociedade de
fato e o direito de haver a metade de um imóvel, em razão da dissolução da união paralela ao
matrimônio.
O Min. Aldir Passarinho, relator sorteado, com voto vencido, consignou em sua
manifestação: “A mim parece, data vênia, que não tem suporte em qualquer princípio de
moralidade é que venha a concubina a perder tudo aquilo que reconhecidamente foi fruto do
seu labor, empregado na aquisição do imóvel juntamente com aquele que era seu concubino,
vindo este e sua esposa a ficar com tudo, mediante uma manobra sobremodo ardilosa e
condenável”.
Do voto do Ministro Cordeiro Guerra, que acompanhou o voto vencedor do Ministro
Francisco Rezek, um trecho merece transcrição, porque deveras ilustrativo: “Ao contrário do
que tanto comove o tribunal a quo, na realidade o que se protege é a família, e a Constituição
da República diz que merece a família legalmente constituída proteção dos poderes públicos.
Não é possível que a família seja entregue aos caprichos sentimentais dos homens desatentos
aos seus deveres conjugais”. É até admissível, sob a égide da Constituição de 1966/1969, o
argumento de que a proteção estatal se dirigia à família como instituição, mas, após a
Constituição de 1988, que funcionalizou a família à realização da dignidade e ao
desenvolvimento da personalidade daqueles que a integram, parece, no mínimo, estranho que
o mesmo argumento seja mantido na atualidade.
Neste caso, o Ministro Cordeiro Guerra arrematou ironizando:

Sensibilizou muito o eminente Relator o argumento de que a concubina do homem


casado teria contribuído com quantias em dinheiro para a sua prosperidade. Nada
impede que mova uma ação de cobrança contra o espólio, se de espólio se cuida, vá

510
STF, RE 103.775-RS, 2ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho, relator para o Acórdão Ministro Francisco Rezek, J. 17.09.1985.
186

cobrar dele o que a ele deu. Agora, o que não é possível é dissolver uma sociedade de
fato com homem casado na plena vigência da sociedade conjugal. Isso o Supremo
nunca admitiu, nem a súmula podia visar uma coisa dessas. Seria uma heresia
jurídica, que atingiria os fundamentos da moral constituída.

O problema é posto em termos de heresia jurídica capaz de atingir os fundamentos de uma


dada moral constituída. Note-se que a concubina, para o resguardo desta moral constituída, é
remetida a uma cobrança impossível daquilo que “deu” ao concubino. Como alguém pode
cobrar contribuições financeiras postas em um projeto de comunhão de vida? Não se trata de
mútuo. O suposto crédito não é representado por qualquer título, pois, trata-se, efetivamente,
de aporte a um projeto familiar, por mais que receba o epíteto de concubinato. Logo, a
meação é o único mecanismo jurídico apto à realização do direito em casos como este. Mas
admiti-lo seria uma heresia jurídica ofensiva à moral e aos bons costumes. Atualmente, pelo
menos de uma dada perspectiva, o Supremo Tribunal Federal rompeu a posição moralista no
caso das uniões homoafetivas.
A união estável consagrada na Constituição Federal, sob a égide do princípio da
pluralidade das entidades familiares e na superação do monismo do matrimônio, não pode ter
sua compreensão encastelada pelos limites linguísticos de seu anúncio na prescrição
normativa. Tanto assim é que, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 4277 e a ADPF
132, decidiu pelo voto do Ministro Ayres Brito: “No mérito, julgo procedentes as duas ações
em causa. Pelo que dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme a Constituição
para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua,
pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade familiar’, entendida esta
como sinônimo perfeito de ‘família’. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas
regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”. 511

511
No dia 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, julgando a ADPF 132 e a ADI 4277, reconheceu a união
homoafetiva – aquela formada por pessoas do mesmo sexo – como entidade familiar e sendo que dela devem decorrer todos
os direitos e deveres que emanam da união estável entre homem e mulher, consagrada no art. 226, § 3º da Constituição
Brasileira e no art. 1.723 do Código Civil (Acórdão ainda não publicado, mas a íntegra do voto do Ministro Ayres Brito, que
foi acompanhado à unanimidade, encontra-se publicado no site do STF:
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277.pdf - Consulta realizada em 17.09.2011). Cumpre anotar
que a petição inicial da ADI, ajuizada pela Procuradoria Geral da República, foi instruída com pareceres de dois professores
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor Titular de Direito Civil, Gustavo Tepedino e Professor Titular de
Direito Constitucional, Luis Roberto Barroso. Em seu parecer Gustavo Tepedino fez consignar: “Se a tutela da personalidade
deflui da cláusula geral da proteção da dignidade humana, e se o respeito à intimidade afigura-se expressão essencial da
personalidade, mostra-se imperativa a obediência às escolhas individuais quanto à constituição do núcleo familiar, excluindo-
se a definição apriorística de padrões preconceituosos para a convivência em família”.
(http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincident
e=11872 – Consultado em 17.09.2011, site do STF).
187

A interpretação conforme a Constituição do art. 1.723 do Código Civil512 implica


necessária interpretação do § 3º do art. 226 da Constituição Federal, 513 também, conforme a
própria Constituição. A Constituição Federal ao referir-se à união estável fez expressa menção
à união entre homem e mulher. À primeira vista, a regulação da união estável no Código
Civil, limitando-a expressamente aos casos de relação heterossexual estaria em plena
conformidade com a Constituição Federal, que ao referir a essa forma de constituição de
entidade familiar, também, indicou a união entre homem e mulher.
Como a interpretação conforme do art. 1.723 do Código Civil realizada pelo Supremo
Tribunal Federal veda que na sua aplicação se extraia qualquer significado que impeça o
reconhecimento de união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, como
entidade familiar — sendo esta sinônimo perfeito de família, tal significado limitador não
pode tão pouco ser, aplicado ao § 3º do art. 226 da Constituição Federal, que também se
refere apenas à união estável entre homem e mulher.514 Mais. O reconhecimento das uniões
homoafetivas — nos termos do voto condutor da decisão que é dotada de repercussão geral —
deve ser realizado de acordo com as mesmas regras da união estável entre um homem e uma
mulher e deve produzir os mesmos efeitos que esta última.
Reconhecendo a importância da decisão referida e os desdobramentos que terá para a
reconfiguração da compreensão das famílias e para superação de discriminação que não
poderia ser mais tolerada em um Estado que se qualifica como democrático e de direito, não é
o mérito propriamente dito da decisão que mais importa para a reflexão que aqui se
desenvolve. Antes, ganha relevância a perspectiva de que a própria Constituição Federal deve
receber interpretação dinâmica e em permanente relação dialética com as transformações
sociais. Ainda que o texto constitucional tenha se referido apenas à união estável entre
homem e mulher, a interpretação conforme a Constituição deste estatuto, segundo o Supremo
Tribunal Federal, tem igual aplicação e efeitos para as relações heterossexuais ou
homossexuais. Qualquer que pondere sobre a interpretação da união estável realizada em
512
Dispõe o art. 1.723 do Código Civil: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher,
configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”
(Grifamos)
513
De forma semelhante dispõe o § 3º do art. 226 da Constituição Federal: “ Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida
a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
(Grifamos)
514
Este ponto que não é um mero detalhe foi registrado por Gustavo Tepedino em editorial da Revista Trimestral de Direito
Civil: “Consagrou, então, como inconstitucional, a interpretação do art. 1.723 do Código Civil e de outros preceitos
infraconstitucionais que excluísse a formação de famílias homoafetivas, em favor de interpretação dita conforme à
Constituição. Preferiu o STF o caminho hermenêutico mais sinuoso — mas nem por isso menos corajoso e altivo —, da
proibição hipotética de interpretação restritiva da regra que curiosamente, limita-se a reproduzir, ipsis litteris, a dicção do art.
226, § 3º da Constituição da República”. (TEPEDINO, Gustavo. Editorial: Uniões de pessoas do mesmo sexo e a teoria da
interpretação. Revista Trimestral de Direito civil. V. 45, Rio de Janeiro: Padma, 2011. (p. v-vii) p. vi.)
188

2011 pelo STF, isto é, 23 anos após a promulgação da Constituição de 1988, há de convir que
jamais poderia ser tal interpretação concebida ao tempo em que entrou em vigência a Carta
Magna brasileira. A Constituição não é um dado, como ensina Luiz Edson Fachin, mas se faz
e se revela em um processo histórico de construção, de natureza eminentemente
prospectiva. 515
A decisão do STF sobre a união homoafetiva constitui uma amostra da tensão entre um
sistema fechado — fundado na propriedade e mantido sob o manto do voluntarismo jurídico,
estipulando titularidades de direito, e delimitando separação intransponível entre o direito e o
não-direito — que não é perene e vai-se esvaindo e um sistema aberto, assentado nos
princípios constitucionais e cláusulas gerais permeáveis, e realimentado sempre pelos fatos e
pela concretude viva das relações sociais em permanente mutação. Neste caso específico, o
sistema fechado, típico de toda concepção codificada do Direito Civil, cedeu. Mas não se deve
esquecer, conforme registro de Luiz Edson Fachin que “o sistema artimanhado, de tal sorte
competente, atribuiu a si próprio o poder de dizer o Direito, e assim o fazendo, delimitou com
uma tênue, mas eficaz lâmina, o direito do não-direito; por essa via, fica fora do sistema o que
a ele não interessa”. 516
O estabelecimento de lugares de não-direito, por força de uma concepção fechada do
sistema pode ser claramente percebida em julgado do Supremo Tribunal Federal, ao decidir
sobre caso que envolveu famílias que se estabeleceram simultaneamente. Os fatos e as
pessoas neles envolvidas gritavam por sua existência, melhor dito, pelo reconhecimento
jurídico de tal existência. Todavia, prevaleceram face ao critério de exclusão promovido pela
regra da monogamia o estabelecimento de um lugar de não-direito para fatos,
sociologicamente, localizados, e a invisibilidade jurídica para pessoas que constituíram sua
história e, portanto, suas personalidades durante longos anos em uma teia de relações da qual
qualquer pessoa diria: uma família.

515
“O desafio é apreender extra-sistematicamente o sentido de possibilidade da constitucionalização como ação permanente,
viabilizada na força criativa dos fatos sociais que se projetam para o Direito, na doutrina, na legislação e na jurisprudência,
por meio da qual os significados se constroem e refundam de modo incessante, sem juízos apriorísticos de exclusão. Nessa
toada, emerge o mais relevante desses horizontes que é a dimensão prospectiva dessa travessia. O compromisso se firma com
essa constante travessia que capta os sentidos histórico-culturais dos códigos e reescreve, por intermédio da ressignificação
dessas balizas lingüísticas, os limites e as possibilidades emancipatórias do próprio Direito.” (FACHIN, Luiz Edson. A
construção do direito privado contemporâneo na experiência crítico-doutrinária brasileira a partir do catálogo mínimo para o
direito civil-constitucional no Brasil. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo – novos problemas à
luz da legalidade constitucional: anais do Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio
de Janeiro. São Paulo: Atlas, 2008. p. 15.
516
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar. 2000. p. 213.
189

Trata-se do acórdão do Supremo Tribunal Federal proferido em sede de recurso


extraordinário.517 A demanda originária da Bahia cuida de pedido de divisão de pensão por
morte, formulado pela companheira de um homem casado. Este manteve, simultaneamente ao
casamento, união estável com a autora. Do casamento teve 11 filhos. Da união paralela, que
perdurou por 37 anos, até a sua morte, nasceram-lhe 9 filhos. Os nomes são enigmáticos: o
falecido chamava-se Valdemar do Amor Divino Santos e sua companheira (a autora da
demanda), Joana da Paixão Luz.
O juiz de primeira instância julgou improcedente o pedido da companheira do segurado. O
Tribunal de Justiça da Bahia reformou a sentença, e, acolhendo o pedido, determinou a
divisão da pensão por morte entre a companheira (viúva) e a esposa (viúva) do segurado. Foi
interposto recurso extraordinário ao argumento de que o acórdão estadual ofenderia o art. 226,
§ 3º da Constituição Federal. Interessante que a iniciativa recursal não partiu da viúva do
segurado. O recorrente era o Estado da Bahia. Ao final, com a consignação de um voto
divergente, é dado provimento ao recurso extraordinário, para reformar o acórdão do Tribunal
de Justiça da Bahia, e, em consequência, negar à autora, companheira do falecido, o direito à
pensão por morte. Para os fins propostos, mostra-se oportuno destacar alguns aspectos deste
acórdão, no corpo do qual ficou registrado longo debate envolvendo ministros integrantes da
Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal.
Ao tecer considerações sobre o acórdão do Tribunal de Justiça da Bahia que, em sua
fundamentação, tomou em conta a força dos fatos para determinar a partição da pensão entre
as viúvas, o Ministro Marco Aurélio, na condição de relator, assim pronunciou-se: “sob o
ângulo estritamente leigo, não merece crítica o raciocínio desenvolvido” no acórdão estadual.
Em seguida, porém, contrapõe: “Entrementes a atuação do Judiciário é vinculada ao Direito
posto”. A distensão entre o discurso jurídico e a realidade perceptível pela sociedade dos
leigos é aqui sublinhada pelo julgador. O enunciado é revelador da concepção de um sistema
jurídico fechado. O direito posto, nesta perspectiva não dialoga com os leigos, nem há neste
sistema qualquer porosidade. Aprisionado à formatação da dicção legislativa, o Direito segue
incólume.
A força dos fatos não é negada pelo Ministro relator: “Percebe-se que houve um
envolvimento forte — de Valdemar do Amor Divino dos Santos e Joana da Paixão Luz —

517
STF, RE 397762–BA., 1ª T., Rel. Min. Marco Aurélio. J. 03.06.2008. O referido acórdão foi analisado em ensaio
publicado na Revista Trimestral de Direito Civil. (SILVA, Marcos Alves da. O caso da mulher invisível – a refundação do
humano como tarefa política do direito civil contemporâneo: uma análise de acórdão do STF – RE 397.762. Revista
Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 47, p. 151-162, jul/set. 2011).
190

projetado no tempo — 37 anos —, dele surgindo prole numerosa — nove filhos —, mas que
não surte efeitos jurídicos ante a ilegalidade, ante o fato de haver sido mantido o casamento
com quem Valdemar contraíra núpcias e tivera onze filhos.” O Direito Civil que exsurge de
um sistema fechado, ao cabo, vê-se constrangido a interpretar a Constituição Federal à luz do
Código Civil e não o contrário. Para concluir que o acórdão estadual infringiu o § 3º do art.
226 da Constituição Federal, o Ministro relator valeu-se da regra discriminatória do
concubinato, inscrita no art. 1.727 do Código Civil. Face à clareza da inversão argumentativa,
excerto do voto merece transcrição:
No caso vislumbrou-se união estável, quando, na verdade verificado simples concubinato, conforme
pedagogicamente previsto no artigo 1.727 do Código Civil: Art. 1.727. As relações não eventuais entre o
homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato. O concubinato não se iguala a união estável
referida no texto constitucional, no que esta acaba fazendo as vezes, em termos de consequência, do
casamento. Gera, quanto muito, a denominada sociedade de fato. Tenho como infringido pela Corte de
origem o § 3º do artigo 226 da Constituição Federal, razão pela qual conheço e provejo o recurso para
restabelecer o entendimento sufragado pelo Juízo na sentença prolatada.

A inversão é nítida. A principiologia constitucional e a abertura que as cláusulas gerais


admitem para a adequação do Direito ao caso concreto são abruptamente desconsideradas
para prevalecer a regra de exclusão. A figura do concubinato, que não tem lugar no texto
constitucional, é resgatada do Código Civil com chave de leitura interpretativa da norma
constitucional. Note-se que a perspectiva de interpretação do Supremo Tribunal Federal foi
totalmente outra quando tratou da união entre pessoas do mesmo sexo. Naquele caso, a
limitação imposta pela dicção expressa do Código Civil — ao referir-se à união estável entre
homem e mulher — foi afastada para o estabelecimento de interpretação conforme a
Constituição, com base nos princípios da igualdade social, da liberdade e da solidariedade.
No caso do julgado ora apreciado, o Ministro Carlos Ayres Brito, que ao final teve o voto
vencido, procurou demonstrar que a Constituição Federal de 1988, tratando da pensão por
morte, no art. 201, inciso V, referencia tanto o companheiro como o cônjuge. Sublinha que a
Constituição não fez uso “da palavra azeda, feia, discriminatória, preconceituosa, do
concubinato. Estou a dizer [registra Ayres Brito]: não há concubinos para a Lei Mais Alta de
nosso País, porém casais em situação de companheirismo”.
O Ministro Carlos Ayres Brito parte de duas premissas para sustentar que não há
concubinos para a Constituição Federal. A primeira seria de que o pluralismo das famílias
consagrado pela Carta de 1988 impõe como corolário necessário que o reconhecimento
constitucional de uma família independe de sua forma. A família revela-se substancialmente
como tal. A família não surge, pois, em razão de um negócio jurídico, antes, configura-se e se
confirma como situação subjetiva existencial. Em seu voto, Ayres Brito não faz a distinção
191

nestes termos, mas o diz com sua peculiar e elegante forma de escrever: “Com efeito, à luz do
Direito Constitucional brasileiro o que importa é a formação em si de um novo e duradouro
núcleo doméstico. A concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo
ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isto é família [sublinha], pouco
importando se um dos parceiros mantém uma concomitante relação sentimental a-dois”.
A segunda premissa na qual se apoia a assertiva de que não há concubinos para a
Constituição guarda relação com aquilo que já tem sido chamado de reserva da intimidade, 518
por um lado, e função protetiva do Estado em relação à família por outro. A família revela-se
pela configuração de uma situação subjetiva existencial, e ao Estado não é dado impor como
esta situação deve ser constituída, nem tampouco imiscuir-se na dimensão da vida pessoal
para premiar e privilegiar ou para sancionar opções que são moldadas no recôndito da
intimidade. Quanto a esta dimensão, pronunciou-se o Ministro Ayres Brito: “... andou bem
nossa Lei Maior, ajuízo, pois ao Direito não é dado sentir ciúmes pela parte supostamente
traída, sabido que esse órgão chamado coração ‘é terra que ninguém nunca pisou’”. A
expressão por ele tirada do cancioneiro da música popular brasileira, terra que ninguém nunca
pisou, é indicativa de um âmbito não dominado, não conquistado e, em consequência, não
regulado pelo Direito. A marca dos Estados totalitários foi sempre a ingerência na esfera mais
íntima das pessoas. Demarcar terra que ninguém nunca pisou implica distinguir um âmbito de
liberdade para as situações subjetivas existenciais, âmbito este constitucionalmente protegido,
não importando a estrutura e a forma pela qual as famílias se constituam. Para o Ministro
Carlos Ayres Brito, o Estado deve cumprir este desiderato constitucional em relação a toda e
qualquer família, não cabendo a ele, Estado, porém — a partir do tratamento dado à família
pela Constituição de 1988 — imiscuir-se no campo da regulação da intimidade das famílias.
A partir deste voto, desencadeou-se acirrado debate em que a regra da monogamia
aflorava sempre. O debate transcrito neste julgado de 48 páginas é revelador. Admitir que, em
um caso concreto, efeitos jurídicos oriundos de conjugalidades simultâneas fossem
reconhecidos, poderia implicar a fragilização da regra da monogamia e constituir fator de
instabilidade para o sistema supostamente assentado em tal regra. Este receio que se mostra
como verdadeiro medo pode ser claramente percebido no próprio acórdão.
Durante o voto da Ministra Cármem Lúcia, trava-se uma longa e acirrada discussão da
qual merece destaque o debate sobre o sentido da estabilidade como elemento caracterizador
da união estável. O Ministro Ayres Brito sustentou que para a caracterização da família

518
Sobre o tema ver: CARBONERA, Silvana Maria. Reserva de intimidade: uma possível tutela da dignidade no espaço
relacional da conjugalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
192

surgida da união estável a única exigência constitucional é a estabilidade. Retruca a Ministra


Cármem Lúcia: “Mas não há como estabilizar algo que é plural”. Responde o Ministro Ayres
Brito, evocando o caso concreto que estava sob julgamento: “E, no caso dos autos, a
estabilidade é tão evidente que durou trinta anos. Trinta anos!” Como os fatos espancavam a
tese da impossibilidade de estabilidade na co-existência de famílias simultâneas, desta feita,
quem se apresentou para socorrer a Ministra Cármem Lúcia foi o Ministro Marco Aurélio que
apenas insinuou: “A monogamia fica em segundo plano, desde que a duplicidade seja
estável.”
Note-se que da discussão sobre a possibilidade fática da estabilidade saltou-se para as
implicações que da admissão de tal estabilidade de uniões simultâneas poderiam decorrer. Em
jogo estaria posta a própria regra da monogamia que, na perspectiva do Ministro Marco
Aurélio, constitui princípio intransponível fixado pelo sistema do Código Civil. Na linha da
generalização, fez intervenção o Ministro Menezes Direito: “...esse raciocínio, que respeito às
completas, pode levar uma pessoa a manter várias relações ao mesmo tempo, com a
fragmentação da situação jurídica, relativa à união estável.” O Ministro Ayres Brito tenta
voltar à questão fática, que é, por si só, eloquente. Diz aos seus pares: “Vamos nos ater ao
caso: houve duas relações; ambas estáveis”. O diálogo que se seguiu, por sua peculiaridade,
considerando tratar-se de um acórdão do STF, deve ser transcrito em parte:
— Ministro Marco Aurélio: “Vossa Excelência coloca as duas no mesmo plano?”
— Ministro Ayres Brito: “Coloco no mesmo plano”.
— Ministro Marco Aurélio: “A mulher propriamente dita e a concubina...”
— Ministro Ayres Brito: “Não há mulher propriamente dita, Excelência”.
— Ministro Marco Aurélio: “Há, Excelência, pelas núpcias, porque a Constituição
preconiza a proteção do Estado à união estável, inclusive estimulando-a ao casamento”.
A referência à mulher propriamente dita é a afirmação de uma mulher que existe para o
Direito e de outra, a concubina, que é uma mulher invisível, imperceptível à ordem jurídica.
Por mais que exista concretamente, por mais que os fatos a seu respeito sejam incontestáveis,
o Direito não a enxerga, porque não se enquadra na moldura pré-fixada pela Lei. Como bem
sinalizou Luiz Edson Fachin: “No sistema clássico, a primazia é colocar acima do que se
verifica concretamente a previsão do modelo da relação jurídica. Para evitar que isso turbasse
a compreensão da relação jurídica abstratamente considerada, o que interessa é um paradigma
abstrato, que recolhe a realidade e faz com que a relevância jurídica dos dados se amolde a
193

essa ordem previamente estabelecida”. 519 A regra de exclusão, isto é, de construção de lugares
de não-direito, que torna pessoas, concretas em suas relações, invisíveis à ordem jurídica, foi
a que prevaleceu no caso do julgado sob consideração.
É inegável a importância que o Supremo Tribunal Federal tem alcançado como corte
constitucional. Este reconhecimento não se dá apenas no ambiente jurídico. Os meios de
comunicação, a sociedade civil organizada e boa parte da população têm no STF, atualmente,
uma referência. Trata-se de locus privilegiado do debate político. Na perspectiva do Direito
Civil não importa somente a construção legislativa ou a produção doutrinária. Cada vez mais
ganha relevância a produção jurisprudencial, mormente a do Supremo Tribunal Federal. Nas
demandas que esta Corte Constitucional apreciou em relação às uniões homoafetivas, um
significativo avanço foi alcançado, superando o imobilismo do Poder Legislativo face às
forças de resistência ao reconhecimento de direitos fundamentais às pessoas que vivem em
uniões homoafetivas e que, a partir de tais uniões, constituíram suas famílias. O mesmo
tratamento, todavia, o STF não deu especialmente a algumas mulheres que, historicamente,
vêm sendo condenadas à marginalidade social legitimada e referendada pela ordem jurídica.
Ainda que não vencedora a tese que evoca os princípios constitucionais e que concebe a
família como uma formação social de primeira ordem de importância, mas, funcionalizada à
realização da personalidade daqueles que a integram e não como um bem ou um fim em si
mesma, colocou em curso debate de grande relevância no Supremo Tribunal Federal. Cuida-
se do exercício da democracia. Esta não pode ser meramente plebiscitária ou reduzir-se à
representatividade eleitoral. A produção jurisprudencial desde a primeira instância até a Corte
Constitucional cumpre importante papel na construção da democracia.
Maria da Penha emprestou seu nome a uma lei que deu visibilidade à violência doméstica
ocultada, por séculos, no modelo patriarcal fundado na dominação masculina. Todavia, Joana
da Paixão Luz ainda não alcançou visibilidade na dimensão jurídica. Há uma regra que o
Supremo Tribunal Federal ainda erige à condição de princípio intransponível: a monogamia.
A democracia, a dignidade e a cidadania não são um dado. Revelam-se, antes, como
conquistas de uma luta cujos marcos estão inscritos nos princípios constitucionais. Eles
podem apontar para conquistas cujos perfis são apenas vislumbrados em horizonte que talvez
já se avizinhe.

519
FACHIN. Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 92.
194

4.3 O princípio da dignidade da pessoa humana: o critério fundamental e a


monogamia

Tomar o princípio da dignidade humana como critério fundamental não constitui recurso
retórico ou mera petição de princípio. Trata-se antes de situar, historicamente, a perspectiva
de abordagem. A conjugalidade, em seu mais ampliado significado, pode ser considerada
juridicamente a partir de uma concepção privatista do Direito Civil ou pode ser tratada a partir
dos patamares postos pela perspectiva do Direito Civil-Constitucional. O princípio da
dignidade humana constitui para a segunda, isto é, para a linha do Direito Civil de índole
constitucional, a pedra de toque para sua própria compreensão.
Cumpre, pois, contextualizar e identificar o sentido e o alcance do princípio da
dignidade humana, para auferir como se amoldam ou como se recompõem a conjugalidade
em geral e a noção de monogamia em particular, na ordem constitucional que se configurou
com esteio no referido princípio.
O câmbio operado, em decorrência da primazia da tutela da pessoa, é facilmente
perceptível. Antes, a proteção jurídica era dispensada à família como instituição e estrutura
que atendiam a interesses que estavam situados nela própria, como unidade de produção e
para além dela, em uma dada ordem econômico-social. E, ainda que a família tenha sido
prestigiada no texto constitucional, como sintetizou Gustavo Tepedino, ela “deixa de ter valor
intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de existir,
passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na medida em que constitua um
núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos filhos e de promoção da
dignidade de seus integrantes”.520 A razão deste tratamento diferenciado da família após a
Constituição de 1988 é tributado por Tepedino ao princípio da dignidade da pessoa humana,
consignado no art. 1º, inciso III da Carta Constitucional, posto que tal princípio impede que se
possa “admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes,
mesmo em se tratando de instituições com status constitucional, como é o caso da empresa,
da propriedade e da família”. 521
Para melhor situar o tema, cabe referência ao que Pietro Perlingieri designou de
formações sociais. O individualismo que moldou as codificações oitocentistas decorre de uma
concepção ficta de um sujeito abstrato que não pressupõe o outro, isto é, a coexistencialidade.
Já a tutela da personalidade, nos moldes constitucionais, pressupõe a pessoa em comunidade.

520
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 352.
521
Ibid. p. 352.
195

A pessoa só se constitui e se realiza em comunidades nas quais tem voz e age, o que inclui a
família, escola, empresa, igreja, partido, associação, etc.
Para Perlingieri, “as formações sociais assumem a fisionomia das comunidades
intermediárias, representam o ‘local’ natural do exercício da personalidade e realizam a
ligação com o Estado, que persegue como finalidade primeira a realização do valor-
pessoa”.522 Logo, as formações sociais somente são merecedoras da tutela à medida que
apresentem idoneidade funcional direcionada à realização da personalidade daqueles que as
integram. Por esta razão, Perlingieri sustenta que “não é possível excluir a priori o
merecimento de tutela de uniões diversas da família fundada no casamento, mas realizadas
sempre no respeito da dignidade humana e fruto da livre escolha segundo os princípios
constitucionais”. 523 Assentado de início fica, pois, que o princípio da dignidade da pessoa
humana vem provocando, no âmbito do Direito de Família, guinada sem precedentes, com
reverberações múltiplas que atingiram praticamente todos os campos das relações familiares.
A tutela não é mais dirigida à família transpessoal, matrimonializada, hierárquica,
heterossexual de matriz patriarcal, como valor em si mesma. Bem demarcaram Lamartine de
Oliveira e Francisco Muniz que “a família à margem do casamento é uma formação social
merecedora de tutela constitucional porque apresenta as condições de sentimento, de
estabilidade e responsabilidade social necessárias ao desenvolvimento da personalidade de
seus membros e execução da tarefa de educação dos filhos. Desempenha, portanto, funções
reconhecidamente familiares”.524 A função das formações sociais525 é que toma relevo e não
estas em si mesmas. Reforçando a noção de função, os citados autores explicitam: “Assim, a
concepção eudemonista da família progride à medida que ela regride ao seu aspecto
instrumental. E, precisamente por isso, a família e o casamento passam a existir para o
desenvolvimento da pessoa — para a realização dos seus interesses afetivos e existenciais”. 526
Se o princípio da dignidade da pessoa humana é que norteia a nova concepção jurídica
da família e se esta está funcionalizada ao desenvolvimento daqueles que na coexistêcia
relacional mais íntima têm a oportunidade de se fazerem verdadeiramente humanos, um
questionamento a propósito da reflexão realizada, anteriormente, se impõe: A regra da

522
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 466.
523
Ibid. p. 468.
524
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família – direito matrimonial. Porto
Alegre: Fabris, 1990. p. 19.
525
Mister anotar que Lamartine Oliveira e Francisco Muniz utilizam o mesmo conceito de que lançou mão Pietro Perlingieri:
formações sociais.
526
OLIVEIRA, op. cit., p. 11.
196

monogamia está alinhada à função constitucional da família, que encontra no princípio da


dignidade humana seu fundamento último? Corrobora para a realização da referida função?
Dito de outra forma, a regra da monogamia se impõe como instrumental para o
desenvolvimento da personalidade e para a realização dos interesses afetivos e existenciais
dos integrantes do núcleo familiar? Ou a regra tem como escopo outros interesses e
propósitos, transpessoais, típicos da família matrimonializada?
Ponderação mais abalizada sobre este questionamento exige prévia reflexão sobre o
adensamento do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, decorrente do amplo
exercício de construção teórica que, em uma certa perspectiva, poderia remontar à filosofia
grega, às origens do cristianismo, à tradição judaica ou de religiões orientais. Escapam aos
limites e propósitos fixados qualquer tentativa de análise histórica ou de ampla sistematização
em relação ao tema. O recorte e abordagem estão direcionados, fundamentalmente, à
percepção da incidência do princípio no âmbito do tratamento jurídico da conjugalidade
contemporânea. Duas referências teóricas prestam especial amparo ao propósito anunciado:
(i) a reflexão sobre a condição humana levada a efeito por Hannah Arendt, e (ii) a perspectiva
de Enrique Dussel em suas ponderações sobre a negação da vida concreta dos sujeitos. Ainda
que realizadas sob pontos de vista distintos, em tempos e circunstâncias históricas diversas, a
escolha de tais construções teóricas como marcos referenciais, justifica-se pelas seguintes
razões: dos escombros e do horror da Segunda Guerra Mundial reacendeu-se a especial
atenção em relação aos direitos humanos. Hannah Arendt é uma das expressões mais lúcidas
deste momento. O pensamento de Enrique Dussel, por seu turno, constitui importante
referência para a problematização dos sistemas de exclusão.
Não se trata de reunir e fazer convergir à força construções teóricas que, por suas
especificidades, podem não se conciliar. A intenção é, simplesmente, fazer breves incursões
na reflexão desses pensadores de modo a desviar água para o moinho 527 do argumento
nuclear que, nesta tese, se desenvolve.

4.3.1 A pluralidade e o singular: a dignidade humana em Hannah Arendt – direito à própria


biografia

527
A metáfora é colhida do próprio Henrique Dussel, que justifica a referência que faz a numerosos filósofos éticos
contemporâneos. Diz ele: “Não faço isso por um prurido de cientificidade bibliográfica, mas porque me defronto com autores
relevantes para incorporar suas contribuições ao discurso da ética da libertação e para mostrar como se pode transitar por se u
pensamento, mas ‘desviando água para o moinho’ de nosso argumento central.” (DUSSEL, Henrique. Ética da libertação –
na idade da globalização e da exclusão. 2. ed., Petrópolis: Vozes, 2002. p. 16).
197

A pluralidade é para Hannah Arendt um conceito central para a compreensão da


condição humana. Ela distingue três atividades humanas fundamentais que configuram o que
denomina vita activa: o labor, o trabalho e a ação. O labor compreende as atividades
indispensáveis à satisfação das necessidades vitais. Neste sentido, a condição humana do
labor seria a própria vida. Já o trabalho equivaleria ao artificialismo da existência humana,
que diferencia o mundo humano do ambiente natural, dele resultam os artefatos humanos. A
condição humana do trabalho seria a mundanidade. Mas a ação seria a única atividade
exercida diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria. Esta
dimensão da atividade humana constitui a condição de toda vida política. “A pluralidade é a
condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, a humanidade, sem
que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a
existir.”528
Julga Arendt que é insolúvel a questão sobre a natureza humana em si mesma, a
quaestio mihi factus sum (“a questão que me tornei para mim mesmo”) de santo Agostinho. O
exercício de cognição das coisas não pode ser aplicado sobre si, “seria como pular sobre nossa
própria sombra”. Na linha do pensamento de Agostinho, pondera: “se temos uma natureza ou
essência, então certamente só um deus pode conhecê-la e defini-la; e a condição prévia é que
ele possa falar de um ‘quem’ como se fosse um ‘quê’”.529 O homem, portanto, até poderia
responder à pergunta: quem sou? Mas — o que sou? — constitui indagação a ser formulada
somente, segundo Agostinho, na presença de Deus “a cujos olhos tornei-me uma pergunta
para mim mesmo”. 530 Assim, em lugar de tratar da natureza humana, Arendt prefere referir-se
às condições da existência humana.
Não se ocupando da natureza humana, ou seja, do que é o homem, foca sua reflexão nas
condições constitutivas do humano. E nesta trilha sobressai, entre as atividades humanas, a
noção de ação. Se as atividades humanas são condicionadas à circunstância de que os
homens vivem juntos, da ação não se pode sequer cogitar senão no âmbito da sociedade
humana. O labor não requer necessariamente a presença de outros humanos, embora sublinhe
a autora que em absoluta solidão ter-se-ia um animal laborans e não um homem. Da mesma
forma, alguém que se forjasse e se construísse num mundo no qual só ele tivesse presente, não
seria um homo faber, pois, perderia sua qualidade humana propriamente dita, e poderia ser até
um demiurgo divino, nos moldes platônicos, mas, não um homem. Todavia, é impossível
528
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
529
Ibid. p. 18.
530
Apud ARENDT, Hannah. A condição humana... p. 18 (nota de rodapé).
198

imaginar a ação fora da condição propriamente humana. Prerrogativa exclusiva do ser


humano, diferentemente das duas outras atividades, a ação só é possível na constante
presença dos outros, ou melhor, na coexistência com os demais humanos.531
A ação é que insere o homem na dimensão política. Salienta Hannah Arendt que para o
pensamento grego, “a capacidade humana de organização política não apenas difere mas é
diretamente oposta a essa associação natural cujo centro é constituído pela casa (oikia) e pela
família”. 532 Na polis, o homem tem uma segunda vida, a bios politikos. Nesta, a ação (praxis)
e o discurso (lexis) constituem as atividades consideradas propriamente políticas. Seriam duas
atividades afins e interligadas, descoladas do que é apenas e tão somente necessário (labor) e
útil (trabalho).
A ação e o discurso distanciam a polis da oikia, o público do privado. Na família, o
chefe da casa imperava de forma despótica e incontestável. Já “o ser político, o viver numa
polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força
ou violência”.533 O logos — palavra ou razão — na polis torna-se a atividade preponderante.
A partir destas premissas, sem perquirir propriamente pela natureza do homem — o que
é —, Hannah Arendt constrói um dos mais instigantes pensamentos sobre a dignidade
humana. Diz:
É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo
nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico
original. Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela utilidade, como o
trabalho. Pode ser estimulada, mas nunca condicionada, pela presença dos outros em cuja companhia
desejamos estar; seu ímpeto decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos, e ao qual
respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa. (...) O fato de que o homem é capaz
de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente
improvável. E isso, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada
nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. 534

E a ação e o discurso são constitutivos fundamentais e inseparáveis da condição


humana. Sem o discurso, a ação perderia o seu sujeito, não haveria o ator. A manifestação
física e bruta da ação somente ganha humanidade pela revelação falada de seu autor. “Na
ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades
pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas identidades
físicas são reveladas, sem qualquer atividade própria, na conformação singular do corpo e no
som singular da voz”.535

531
ARENDT, Hannah. A condição humana... p. 31.
532
Ibid. p. 33.
533
Ibid. p. 35.
534
Ibid. p. 189-191.
535
Ibid. p. 189-191
199

É a ação e o discurso que dão historicidade/humanidade a cada pessoa. Se da ação não


puder ser indicado o ator ela perde a qualidade de ação. “Sem a revelação do agente no ato, a
ação perde seu caráter específico e torna-se um feito como outro qualquer”. 536 A dignidade
humana revela-se na identificação do agente e seu ato criador. Hannah Arandt reporta-se aos
monumentos ao Soldado Desconhecido, que foram erigidos em muitos lugares após a
Segunda Guerra Mundial. Reconhece em tais monumentos “o desejo e a disposição de não
aceitar o fato brutal de que ninguém havia, realmente, sido o agente da guerra”. Estes
monumentos teriam sido erguidos “a todos aqueles a quem a guerra havia privado de
identidade, roubando-lhes não os atos, mas a dignidade humana.”537
Pode-se, assim, tangenciar o sentido da dignidade humana não pela declaração de sua
essencialidade ou a revelação do que é, mas, sim, pela sua falta ou ausência. Toda redução da
pessoa à invisibilidade, toda aniquilação de sua liberdade atuante, toda supressão do discurso
enunciativo de sua ação constituem violação à dignidade humana. A redução da pessoa ao
animal laborans, para a obtenção do mínimo necessário à sobrevivência (labor), ou ao mero
fabricador de artefatos (trabalho), subtrai do ser humano o que lhe faz propriamente humano.
O que singulariza o homem, no paradoxo da pluralidade que permite tal singularização, são o
discurso e a ação. É por meio deles que um ser se distingue e se manifesta aos demais não
como mero objeto físico mas como homem.
Se o ser humano é mais que sua atividade para sobrevivência, se é mais que um
fabricante de artefatos úteis, se ele se distingue como humano por sua ação e pelo discurso,
ele o é, porque como tal é reconhecido na teia de relações humanas e históricas. “Só podemos
saber quem um homem foi se conhecermos a história da qual ele é o herói — em outras
palavras, sua biografia”.538 A referência que Arendt faz ao herói539 é no sentido do
protagonismo de qualquer ser humano livre.
Estas reflexões, assim, compactamente enunciadas, podem indicar sentido e
conseqüências para o princípio da dignidade da pessoa humana, especialmente, em sua
aplicação ou incidência na regulação da conjugalidade contemporânea.
Quando uma conjugalidade conforma-se paralelamente a outra já existente — e, nela,
um homem e uma mulher pela ação e pela palavra protagonizam uma história e se

536
ARENDT, Hannah. A condição humana... p. 193.
537
Ibid. p. 193. (Grifamos)
538
Ibid. p. 199.
539
“O herói revelado pela história não precisa ter qualidades heróicas; originalmente, isto é, em Homero, a palavra ‘herói’ era
apenas um modo de designar qualquer homem livre que houvesse participado da aventura troiana”. (ARENDT, Hannah. A
condição humana... p. 199.)
200

reconhecem em uma teia de relações, envolvendo outros que, por sua vez, os reconhecem
como família, no seio da qual novos seres humanos se constituem pela ação e pelo discurso
dos pais, tornando-se também protagonistas neste espaço de coexistencialidade — seria
admissível ao Estado negar sua existência jurídica, com amparo na regra da monogamia, sem
ferir frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana? Reconhecer à denominada
concubina, com base na Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, apenas o direito ao
patrimônio que a sociedade de fato teria amealhado ou o direito à indenização por serviços
prestados não implicaria negar a própria condição humana no sentido que Hannah Arendt
emprestou à expressão?
A indenização por serviços prestados e o reconhecimento de uma relação obrigacional
assemelhada à sociedade de fato revelam-se como negação jurídica da dimensão
fundamentalmente humana dos integrantes do núcleo familiar não reconhecido como tal. A
indenização de um mínimo compensatório para a sobrevivência está posta no plano do labor,
e a participação na divisão das quotas societárias reduz o tratamento ao plano do trabalho. A
ação e o discurso constitutivos do que é efetivamente humano são negados. A família não
existe.
É próprio da condição humana o constituir-se por meio de uma biografia. Uma história
que é narrada pelo ator responsável pela ação e que é na teia das relações humanas
reconhecida pelos que com ele coexistem e, também, por aqueles que na comunhão histórica
hão de reconhecê-lo em sua singularidade. Não é sem razão que o culto aos antepassados
constituiu e constitui fundamento de muitas culturas. Ao incógnito, ao que foi mantido
desconhecido, àquele a quem se negou a possibilidade de afirmar-se pela ação e pelo discurso,
dele foi subtraído o que constitui propriamente a dignidade humana: sua biografia. O Soldado
Desconhecido revela ausência de humanidade. Sem o nome e sem a narrativa da ação de uma
vida restam apenas os fatos brutos que eloquentemente insultam o incógnito despido de sua
humanidade.
Ao se negar a condição de família àqueles que internamente e em sua circunvizinhança
como tal se constituíram, o Estado nega mais que um direito em si, nega o direito de ter
direito. Isola apátridas dentro de sua própria terra. Dispensa-lhes o tratamento de refugiados,
prestando-lhes algum auxílio típico dos devidos aos asilados, porém, sem lhes conferir ou
reconhecer a dignidade da cidadania. “A calamidade não é a perda de direitos específicos,
201

portanto, mas a perda de uma comunidade desejosa e capaz de garantir quaisquer direitos que
sejam.”540
A negação de uma família formada ao arrepio da regra da monogamia pode equivaler ao
banimento jurídico de uma biografia, ao despojamento e aniquilamento da ação e do discurso
que foram instaladores por excelência daquela condição de humanidade. E não se trata tão
somente da negação de um direito, cuida-se antes e, mais gravemente, de desamparo,
negação, invisibilidade. A destruição biográfica revela-se como o aviltamento da própria
dignidade humana. Uma história que nunca existiu. Desaparece o singular que se auto-
afirmaria na coexistência plural, habitat de sua condição humana.
É necessário que se tenha em conta que o não reconhecimento jurídico de famílias
simultâneas, ao prestígio da regra da monogamia, atinge especialmente mulheres que já vivem
sob a dominação masculina. Esta é uma condição histórica de boa parte das uniões paralelas
no Brasil, como referido no segundo capítulo. Sobre estas mesmas mulheres que vivem,
geralmente, em situação de sujeição, recai a negação estatal de sua condição familiar e,
portanto, de sua biografia e, ao cabo, de sua humanidade. No máximo, será contemplada
como empregada ou sócia de um dado empreendimento.
O princípio da dignidade humana, posto como fundamento da República, não pode ser
percebido apenas como um anteparo ao desrespeito de certos direitos. Ao contrário é dotado
de força promocional da dignidade que enuncia. 541 Desta forma, não parece plausível que a
regra da monogamia subsista como baliza a prevalecer em face do próprio princípio
constitucional da dignidade humana que insere todos, sejam nacionais ou estrangeiros, pela
sua simples condição de ser humano na esfera da cidadania, e nela o princípio da igualdade
substancial e da liberdade são pressupostos inarredáveis.

4.3.2 A negação da vida concreta dos sujeitos: a dignidade humana em Dussel – o dever da
produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito humano

540
A citação de Hannah Arendt é destacada por Celso Lafer de uma sentença de corte norte-america, cujo juiz prolator se
valeu da reflexão para afirmar o direito a ter direitos do apátrida. (LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos:
um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras. 1988. p. 163).
541
“O direito constitucional representa atualmente o conjunto de valores sobre os quais se constrói, na atualidade, o pacto de
convivência coletiva, função antes exercida pelos códigos civis. O direito é justamente isso, uma força de transformação da
realidade. É sua tarefa ‘civilizatória’, reconhecida através de uma intrínseca função promocional, a par da tradicional funçã o
repressiva, mantenedora do status quo.” (MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de
direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 75).
202

Neste tópico, toma-se como referência especial a obra Ética da Libertação, que
constitui, conforme o próprio autor, um segundo passo em relação à primeira: Para uma Ética
da Libertação Latino-Americana.542 Do pensamento de Dussel, para os fins propostos,
interessam em especial as reflexões sobre a exterioridade, a revelação do sujeito negado, o
reconhecimento Outro (da vítima) como sujeito autônomo, livre e distinto.
O ponto de partida da ética da libertação de Dussel é “o ‘fato empírico’, de ‘conteúdo’
material da corporalidade, da negatividade no nível da produção e reprodução da vida do
sujeito humano, como dimensão de uma ética material”. 543 Neste modo de encarar a questão
ética, como observa Celso Ludwig, o conceito de justiça é encontrado a partir do conceito de
injustiça. Se a injustiça é revelada pela não produção, reprodução e desenvolvimento da vida
humana, desde as condições materiais, econômicas e ecológicas, a justiça, por outro lado, se
evidencia pela produção das condições materiais da vida, com a preservação das fontes
originais de toda produção, reprodução e desenvolvimento, que são a natureza e o próprio ser
humano trabalhador.544 A ética da libertação parte, portanto, da vida concreta do ser humano e
“da afirmação da vida pode-se fundamentar a não aceitação da impossibilidade de reproduzir
a vida da vítima, donde se toca na fonte a partir da qual se pode (e se deve) exercer a crítica
contra o sistema que é responsável por essa negatividade”. 545
A proposta de Dussel é da construção de uma ética da libertação a partir das vítimas. É a
partir delas que se coloca o problema da legalidade, da legitimidade e da coação do Direito.
Os que estão colocados na exterioridade do sistema são sempre pressupostos, mas,
habitualmente, ignorados à medida que aceitam, passivamente, a dominação que é exercida
legalmente.546
Na concepção ética de Dussel, a noção de totalização e exterioridade é fundamental. A
totalidade implica a eliminação da alteridade. Dussel toma o mito de Caim e Abel como
referência metafórica. Caim ao eliminar o outro (a alteridade) é a totalidade. Caim se totaliza.

542
Esta segunda obra, escrita vinte anos após a primeira, capta as mudanças operadas no final do século XX e início do
século XXI. Supera a questão regional e a excepcionalidade dos conflitos e revoluções para propor-se como uma ética
cotidiana em favor das grandes massas excluídas pelo processo de globalização. Na expressão do próprio autor: “Não se deve
esquecer que o marco ou contexto último desta Ética é o processo de globalização; infelizmente, porém, e simultaneamente,
esse processo é a exclusão das grandes maiorias da humanidade: as vítimas do sistema-mundo. Esta Ética deseja explicitar
essa dialética contraditória, construindo categorias e discurso crítico que permitam pensar filosoficamente este sistema
performativo auto-referente que destrói, nega e empobrece a tantos neste final do Século XX.” (DUSSEL, Henrique. Ética
da libertação – na idade da globalização e da exclusão. 2. ed., Petrópolis: Vozes, 2002. p. 16).
543
DUSSEL, Henrique. Ética da libertação – na idade da globalização e da exclusão. 2. ed., Petrópolis: Vozes, 2002. p. 314.
544
LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação: paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e
direito alternativo. Florianópolis: Contexto. 2006. p. 220.
545
DUSSEL, op. cit., p. 373.
546
DUSSEL, op. cit., p. 554.
203

Totalizar-se é eliminar o outro.547 A totalização ganha expressão em diversas situações como


na conquista da América, na dominação pedagógica, na dominação política, na dominação
racial, na dominação social, na dominação erótica. “Dentro da totalidade, o rosto do ‘Outro’
aparece como uma coisa-sentido a mais. O motorista parece um prolongamento do carro, a
empregada, da cozinha, e assim por diante. O rosto humano só aparece como rosto do ‘Outro’
quando se manifesta na exterioridade, isto é, em um âmbito não passível de ser
instrumentalizado pelo sistema em que está inserido.”548
A imoralidade revela-se como condução ao mesmo, ao passo que a eticidade evidencia-
se no reconhecimento do outro, na alteridade. Como distingue Celso Ludiwig, “o movimento
que conduz ao ‘mesmo’ é o mal, é a injustiça. Ao contrário, o bem ético consiste em que o
outro não seja eliminado enquanto tal”. 549 Desta forma, a justiça não se funda na totalidade
mas a partir da exterioridade. O vértice da ética da libertação está posto “no Outro enquanto
pessoa inalienável, enquanto origem de todo o direito positivo. Justiça aqui é a
disponibilidade diante dos entes, não fetichismo nem absolutização das possibilidades do
projeto da Totalidade; é um colocar à disposição do Outro os entes que podem saciar sua
fome, mediar sua libertação cultural e humana integralmente.” 550
Assim, quando surgem da invisibilidade como que do nada os rostos dos que estavam na
exterioridade, estes mesmos interpelam o próprio sistema. A ética da libertação, todavia, não
se amolda à mera abstração. Só faz sentido por uma práxis de libertação, como ação possível
de transformação da realidade social e subjetiva, tendo como referência última sempre a
vítima ou comunidade de vítimas. 551 Assim, “o critério de transformação ético-crítico é um
critério de factibilidade em referência às possibilidades de libertação da vítima ante os
sistemas dominantes. (...) O sistema aparece como contradição, já que, pretendendo ser a
mediação da negatividade do dito sujeito, de sua vida (manifestada na própria vítima). A
própria vítima revela a contradição do sistema...”552 Evidencia sua insuficiência e
impossibilidade de produzir e reproduzir a vida humana dos afetados (vítimas). Na ineficácia

547
LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação... p. 145.
548
SILVA FILHO, José Carlos Moreira. Filosofia jurídica da alteridade. Curitiba: Juruá. 1999. p. 47.
549
LUDWIG, op. cit., p. 146.
550
DUSSEL, Henrique. Para uma ética da libertação latino-americana. v. II, São Paulo: Loyola, s.d., 149.
551
Id. Ética da libertação... p. 558.
552
Ibid. p. 559.
204

sistêmica é que se abre a brecha de factibilidade553 para a práxis do princípio-libertação, que


se apresenta como obrigação ética de realizar a transformação para as próprias vítimas.
Para explicar o critério de criticidade ou crítico de seu método, Dussel parte da
constatação de que a vítima é inevitável. E isso deriva do fato de que “é impossível
empiricamente que a norma, o ato, instituição e o sistema de eticidade sejam perfeitos em sua
vigência e consequências”.554 Só haveria um sistema perfeito se houvesse uma inteligência
infinita e de velocidade infinita para fazer sua gestão. Logo, haverá sempre e inevitavelmente
vítimas, que sofrerão as imperfeições, exclusões, dominações, injustiças das instituições e dos
sistemas. E o fato de haver vítimas como condição categórica de todo e qualquer sistema, a
crítica se faz imprescindível.
Neste sentido, a dignidade da pessoa humana aviltada (a da vítima) torna-se o critério
último do julgamento crítico de todo e qualquer sistema. Detectar empiricamente a vítima
implica constatar a negatividade. Diz Dussel: “se as instituições são a repetição de atos bem
sucedidos para evitar a dor e postergar a morte e assim alcançar a felicidade, a ‘vítima’ é sua
contradição absoluta – já que sendo fruto dessa instituição, sofre, entretanto dor e antecipa sua
morte”.555 Anterior à identificação da vítima está, por certo, o reconhecimento da igualdade
desta em relação a todos os seres humanos. A vítima é reconhecida desta forma como o
vivente humano detentor de exigências intrínsecas não cumpridas na reprodução da vida no
sistema.
Este reconhecimento responsável — pelo outro — imprime na comunidade das vítimas
a percepção crítica, isto é, a perspectiva da negação da negatividade. O mal, todavia, para a
ética da libertação não reside na matéria ou no outro, ele encontra-se na finitude humana, ou,
dito de outra forma, na impossibilidade de um conhecimento e de uma pulsão (amor)
perfeitos.556 Por esta razão, constata Dussel que “este tipo de ‘mal’ torna-se fundamento de
escolhas de mediações que geram vítimas, em grande parte não-intencionais, 557 que se

553
Explica Dussel que “o critério de transformação ético-crítico é um critério de factibilidade em referência às possibilidades
de libertação da vítima ante os sistemas dominantes. (...) O sistema aparece como contradição, já que, pretendendo ser a
mediação factível de reprodução da vida (como toda instituição) opera como a causa da negatividade do dito sujeito, de sua
vida (manifesta na própria vítima)
554
DUSSEL, Henrique. Ética da libertação... p. 373.
555
Ibid. p. 374.
556
Ibid. p. 374.
557
Dussel, em nota de rodapé, faz a seguinte observação: “De um ponto de vista estritamente filosófico, repetimos, aquela
expressão — ‘Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem’ (Lucas 23,34) — se apresenta como uma enunciação crítica
da ideologia e do fetichismo: aqueles simples soldados (mediação dos responsáveis pelos quais não se pedia perdão) não
tinham clara consciência da práxis que estavam cumprindo. Não sabiam que torturavam e matavam um perseguido, refém no
sistema (romano ou do colaboracionismo da elite judia e do Templo), que se havia levantado criticamente em favor dos
pobres e miseráveis oprimidos do povo judeu. Aquela ‘testemunha’ da Galiléia era um Zaratustra não de uma pulsão
narcisista, mas pulsão alterativa bem superior ao imaginado por Nietzsche, mas, em sua linha de proposta criadora, contra
205

acumulam na história (...). O mal é a origem oculta que causa vitimização. Esta ocultação do
mal é um processo de fetichização, de fundamentação da pretensa verdade da não-verdade do
sistema. A ‘critica do fetichismo’ é então uma inversão da inversão: é a descoberta da não-
verdade do sistema a partir das vítimas”. 558
A perspectiva metodológica da ética dusseliana constitui adequado instrumento para a
análise do sistema fundado na monogamia, posto que este oculta ou procura ocultar a vítima,
isto é, especialmente, aquela mulher que é qualificada ou desqualificada como concubina.
Reconhecer, responsavelmente, a vítima como sujeito autônomo é o primeiro passo para
futuro processo de libertação. Não se trata de reconhecer pura e simplesmente a vítima. O
mero reconhecimento não é ainda um ato ético porque não se situa no patamar do dever-ser. O
dever ético surge da consciência da responsabilidade em face do outro. Logo, sendo
responsável pelo outro diante do sistema, surge, aí sim, a dimensão ética, ou seja, o dever
(obrigação ética) de criticar o sistema.
Como se procurou demonstrar desde o primeiro capítulo, a regra da monogamia tem-se
prestado, no sistema jurídico brasileiro, a funcionar como norma de exclusão, ou para utilizar
a expressão de Dussel, de vitimização. Ao se pensar a partir de uma ética da libertação, deve-
se ter em vista que “libertar não é só quebrar as cadeias (o momento negativo), mas
‘desenvolver’ (libertar no sentido de dar possibilidade positiva) a vida humana ao exigir que
as instituições, o sistema abram novos horizontes que transcendam à mera reprodução como
repetição de “o Mesmo” — e, simultaneamente, expressão e exclusão de vítimas”.559 Ao se
indicar a superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da família
tem-se em mira exatamente a abertura de novas possibilidades de desenvolvimento da
personalidade — especialmente da mulher — e a superação, portanto, de um sistema,
claramente excludente.
A maior contribuição que se pode haurir de Dussel, para os fins postos, diz respeito à
revelação do outro como exterioridade ao sistema. Cada um é percebido, no sistema, como
extensão do papel que nele desempenha. Decorrem disso a reificação e a alienação. O rosto
humano, portanto, a dignidade da pessoa humana, revela-se como outro à medida que se
apresenta no sistema como exterior a ele, “como alguém, como uma liberdade que interpela,

uma ‘lei’ que era ‘para o homem, e não o homem para a lei’— princípio da transformação social radical....” (DUSSEL,
Henrique. Ética da libertação... p. 414)
558
DUSSEL, Henrique. Ética da libertação... p. 377.
559
Ibid. p. 566.
206

que provoca, que aparece como aquele que resiste à totalização instrumental. Não é algo; é
alguém”. 560
Se no sistema constitucional brasileiro a dignidade da pessoa foi posta como
fundamento de todo ordenamento jurídico, tem-se como decorrência a permanente
interpelação do sistema pela exterioridade ou alteridade, pelo rosto (corporalidade) humano
do outro. A regra da monogamia manipula o rosto do outro e o transforma em mera coisa sem
transcendência nem mistério, sendo, assim, incorporado à totalidade na condição instrumental
de concubina. Isto ocorre da mesma forma que nas demais totalizações político-sociais. Sem a
proximidade, ou sem o face a face,561 o outro é percebido como um operário, um índio, uma
empregada doméstica, um negro, um estrangeiro. Somente com a destruição da exterioridade
do outro, isto é de sua alteridade, é que ele pode ser coisificado, na totalidade sistêmica.562
Ao estabelecer o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da
República, a Constituição Federal de 1988 o converteu em critério basilar a partir do qual
todo o ordenamento jurídico é permanentemente interpelado pela exterioridade do Outro, que
jamais pode ser reduzido à coisa-sentido dentro do sistema. Esta condição da dignidade da
pessoa humana como critério último e inafastável não é apenas um dado posto pelo texto
constitucional. Na verdade, insere-se em uma luta permanente que, na perspectiva de Dussel,
poderia ser referida como práxis de libertação.563 Neste embate é que tem a pretensão de
inscrever-se a tese que se busca sustentar.

4.3.3 O princípio da dignidade da pessoa humana no Direito brasileiro contemporâneo e a


questão da monogamia

Faz-se amiúde referência à dificuldade de conceituação da dignidade da pessoa humana,


porque, diferentemente de outros direitos fundamentais que dizem respeito a determinadas
facetas ou perspectivas da existência, a dignidade se reporta à própria qualidade do ser

560
DUSSEL, Henrique. Filosofia da Libertação. São Paulo: Loyola. s. d., p. 47.
561
A noção de face-a-face desenvolvida por Dussel indica um momento metafísico de proximidade, no qual impera o
respeito pelo Outro, pelo diferente, por aquele que é exterior. Isso porque “as coisas adquirem um status de coisa-sentido,
quando interpretadas organicamente dentro de um sistema, de um ser, de uma totalidade, tornam-se entes. As coisas-sentido
ou entes não estão dispostos de forma caótica, mas, sim, de maneira sistemática dentro de um mundo”. (SILVA FILHO, José
Carlos Moreira. Filosofia jurídica da alteridade. Curitiba: Juruá. 1999. p. 35.). A proximidade é a condição para superar
toda reificação do humano.
562
Cabe anotar que em tempos de perigo, graças a determinadas ideologias, o outro reificado pelo sistema é convertido em
inimigo. (DUSSEL, Henrique. Filosofia da Libertação... p. 59).
563
“A práxis da libertação é o questionamento real do sistema (...) é uma práxis metafísica, transontológica, a libertação
propriamente dita. (...) É um trabalho (poiesis prática práxis poiética) que se realiza pelo outro na responsabilidade; para sua
libertação. A práxis da libertação é a procriação mesma da nova ordem, de sua estrutura inédita, ao mesmo tempo que das
funções e entes que a compõem. É tarefa realizadora por excelência, criadora, inventora, inovadora.” (DUSSEL, Henrique.
Filosofia da Libertação... p. 69-70).
207

humano. A dignidade da pessoa se identifica com a própria condição humana. 564 Em


princípio, o que parece ser decisivo é que “cada ser humano é humano por força de seu
próprio espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em
sua própria decisão, tornar-se consciente de si mesmo, de auto determinar-se na sua conduta,
bem como de formatar sua existência e o meio que o circunda.”565 Esta compreensão dá lugar
à matriz do pensamento kantiano e, portanto, coloca ênfase na autonomia e na liberdade.
A autonomia, todavia, em cada caso específico não pode condicionar o reconhecimento
da dignidade. Fosse assim, as criancinhas de tenra idade e os portadores de graves
deficiências mentais decairiam da dignidade humana que lhes é inerente. Logo, a autonomia e
a liberdade — que não se identificam com a dignidade, mas lhe fornecem o suporte — só
podem ser pensadas em abstrato em relação a todos os seres humanos, isto é, como condição
da humanidade, mas não necessariamente em cada caso concreto. Este aspecto, por si só,
demonstra as dificuldades em que está envolto o conceito de dignidade da pessoa humana.
Ainda que seja ínsita à pessoa tal dignidade não pode ser pensada de forma deslocada da
circunstância histórica na qual é evocada. Ela não existe como por uma lei imutável ao gosto
dos postulados jusnaturalistas. Inscreve-se na história e, na atual quadra do Direito, é
concebida como um princípio de categoria axiológica aberta,566 sendo, porém, irrenunciável e
inalienável porque é inerente à própria condição humana.
Reconhecer a dignidade humana como sendo uma qualidade própria da pessoa pelo
simples fato de ser humano não parece suficiente, conquanto tal reconhecimento seja
fundamental e constitutivo do próprio Estado democrático de direito. Nenhum ser humano
pode ser tido como coisa para que sobre ele o Estado ou qualquer outro centro de poder ou
outro ser humano disponham arbitrariamente sobre ele. Neste aspecto, a dignidade humana
aparece como limite em face do poder político, do poder econômico ou de qualquer outro.
Todavia, como referido, esta percepção é insuficiente porque o reconhecimento por si só não
564
SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3. ed., Porto
Alegre: Livraria do Advogado. 2004. p. 40. Nesta direção, Maria Celina Bodin de Moraes fala da “grande dificuldade de dar
substância a um conceito que, por sua polissemia, e pelo uso indiscriminado, tem um conteúdo ainda mais controvertido do
que no passado”. ((MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 75.). Também, na mesma linha, Fabio Konder Comparato: “Tudo gira
assim, em torno do homem e de sua eminente posição no mundo. Mas em que consiste, afinal, a dignidade humana? A
resposta a essa indagação fundamental foi dada, sucessivamente, no campo da religião, da filosofia e da ciência”.
(COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral, religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras,
2006. p. 1).
565
DÜRIG, Günter. Apud SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal
de 1988. 3. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2004. p. 40.
566
“A rigor, poder-se-ia mesmo dizer que, fora de um determinado contexto histórico, não existe possibilidade de se
estabelecer um bem jurídico superior, já que sua própria compreensão depende de condicionantes multifacetados e
complexos atinentes aos valores sociais historicamente consagrados.” (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed.,
Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 40).
208

promove a dignidade. Existem várias circunstâncias sócio-históricas que aviltam a dignidade


das pessoas, por isso, tê-la apenas como limite do exercício dos poderes é insuficiente. Assim,
fala-se em função defensiva (negativa) e função prestacional (positiva) em relação ao
princípio da dignidade da pessoa humana. Esta última se imporia como tarefa do Estado
objetivando a promoção da própria dignidade. Mas como bem demarcou Sarlet, não é correto
e é mesmo temerário reduzir a dignidade a uma prestação como se fosse conquista de
condição externa à pessoa.567 O autor opta pela conjunção destas duas dimensões e não pela
oposição entre elas. Assim, a dignidade deve ser considerada em sua dimensão ontológica,
como qualidade inerente a todo e qualquer ser humano e, simultaneamente, em sua dimensão
instrumental ou promocional das condições para a realização das potencialidades humanas em
um determinado tempo.568
Estas dimensões do princípio da dignidade humana foram colhidas pela Constituição
Federal de 1988 e o princípio foi posto como fundamento da República. A ordem jurídica
democrática é sobre ele alicerçada e erigida. Converteu-se em cláusula geral de tutela e
proteção da pessoa humana. O valor máximo do ordenamento.569 A partir desta percepção,
como registrou Gustavo Tepedino, à legislação infraconstitucional somente é autorizado
“impor restrições às garantias individuais ou sociais na medida em que a disciplina normativa
encontre justificativa na própria dignidade da pessoa humana”. 570 Desaparece da ordem
constitucional brasileira a dicotomia estrita entre direito público e direito privado. 571 Os
diversos grupos ou formações sociais, como a família, os sindicatos, a empresa, as
associações, as organizações religiosas, também, são constitucionalmente protegidos tão
somente e na medida em que estejam funcionalizados ao pleno desenvolvimento da dignidade

567
SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais... p. 47.
568
Ibid. p. 53. Poder-se-ia, neste sentido, referir-se ao conceito minimalista ou maximalista (ótimo) de dignidade. Reunindo a
perspectiva ontológica e a instrumental, o autor conceitua a dignidade da pessoa humana como “ a qualidade intrínseca e
distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Esta do e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direito e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra
todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para a
vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da
vida em comunhão com os demais seres humanos”. (SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais... p. 59-60).
569
“A escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de
erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2º do
art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos
princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral da tutela e promoção da pessoa humana,
tomada como valor máximo pelo ordenamento”. (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro:
Renovar, 2001. p. 48).
570
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil... p. 49.
571
“A pessoa, à luz do sistema constitucional, requer proteção integrada, que supere a dicotomia direito público e direito
privado e atenda à cláusula geral fixada pelo texto maior, de proteção à dignidade humana”. (TEPEDINO, Gustavo. Temas
de direito civil... p. 49).
209

da pessoa humana. Em outros termos, o direito associativo de natureza privada não prevalece
quando contraria este princípio fundamental da República.
Partindo desta premissa, isto é, de que a legislação infraconstitucional somente pode
impor restrições às garantias individuais e sociais se, e somente se, tais restrições encontrarem
justificativa no próprio princípio da dignidade humana, torna-se imprescindível a
interpretação conforme a Constituição de todo e qualquer texto de legislação
infraconstitucional. Esta premissa traz implicações e impõe releitura de textos legais que são
tomados, frequentemente, para reforçar a regra da monogamia e impor a exclusão de tutela a
certas pessoas que integram núcleos familiares resultantes de conjugalidades simultâneas.
Neste passo, impõe-se reflexão sobre duas perspectivas divergentes em relação ao papel
dos princípios constitucionais e das regras infraconstitucionais na interpretação/aplicação das
normas jurídicas aos casos concretos. Ainda que de forma sintética, a polêmica questão deve
ser explicitada, porque a tomada de posição é decisiva — pelo menos assim se pensa — para
se tratar a questão da regra da monogamia em face do princípio da dignidade da pessoa
humana.
Para uma corrente, a ponderação surge como técnica de decisão adequada aos chamados
hard cases, em relação aos quais a aplicação das regras por simples subsunção se mostra
inadequada e insuficiente.572 Estes casos difíceis surgem quando existem premissas maiores
igualmente válidas, de modo a não permitir a extração de conclusão que decorreria
necessariamente da aplicação de tais premissas ao caso concreto (premissa menor). Diante da
insuficiência da regra jurídica, tornar-se-ia necessário, então, o recurso à ponderação. Note-se,
portanto, que a técnica da ponderação, para esta corrente, aparece apenas como expediente
subsidiário, isto é, sendo clara a regra o caso é fácil. Aplica-se a regra posta, dispensando-se a
ponderação. Não se estando diante de um hard case, deve prevalecer, portanto, a regra pura e
simples, pois, neste caso o procedimento silogístico subsuntivo seria suficiente.
As regras, nesta perspectiva, são tomadas como proposições normativas sob a forma
“tudo ou nada”.573 No caso das regras, “o comando é objetivo e não dá margem a elaborações

572
BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional. In: BARROSO, Luiz
Roberto. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008. p. 55.
573
Com Ronold Dworkin consagrou-se uma dada distinção entre regras e princípios. A diferença seria de natureza lógica.
Regras e princípios distinguem-se em razão da orientação que oferecem para as decisões dos casos concretos. As regras
operam na lógica do “tudo ou nada”, são comandos disjuntivos, pois, a prescrição que cada uma delas estabelece deve ser
aplicada ao caso concreto (logo, são válidas) ou não (então, são inválidas). Já os princípios são normas que não fixam
consequência jurídica específica e precisa diante de uma dada situação. Por isso, as regras são ou não aplicáveis a um caso
concreto, enquanto os princípios podem ser ponderados. A prevalência de um não invalida ou anula o outro. (DWORKIN,
Ronald. Levando os direitos a sério. 2. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 39-44)
210

mais sofisticadas acerca de sua incidência”. 574 Relativamente aos princípios, como contêm
forte carga valorativa e conteúdo ético, é normal que haja colisão entre eles, sendo mesmo
previsível que tal ocorra. Por isso, aos princípios, diferentemente das regras, não se aplicaria a
condição “tudo ou nada”. A técnica a ser empregada neste caso é a da ponderação, que busca
estabelecer o peso relativo de cada princípio contraposto de modo a estabelecer concessões
recíprocas, para que se atinja o fim social desejável com o mínimo sacrifício de um dos
princípios ou de direitos fundamentais em choque.575 A distinção entre princípios e regras
desenvolvida por Dworkin e, também, tratada por Alexy 576 acabou por converter-se em um
patamar de acordo mínimo, desdobrando-se, daí, em soluções diversas.
Ao construir parâmetros preferenciais para ponderação dos princípios constitucionais,
Ana Paula de Barcellos, por exemplo, fixou como primeiro parâmetro o de que as regras têm
preferência sobre os princípios.577 Assim conclui porque, de modo geral, as regras não devem
ser ponderadas. Embora a distinção entre princípios e regras preste-se a um exercício
metodológico interessante, este apresenta suas limitações. Para a autora, enquanto as regras
descrevem comportamentos, sem cuidar imediatamente dos fins que tais condutas têm por
objetivo realizar, os princípios estabeleceriam estados ideais ou objetivos, sem descrição das
ações que devem ser praticadas para atingi-los.578 Adota, também, a distinção de Alexy, para
quem as regras seriam comandos de definição, ao passo que os princípios comandos de
otimização. Logo, em razão da estrutura das regras, estas não suportariam ponderação.
Ponderá-las seria como que afastar sua incidência. Já os princípios, mais elásticos
comportariam compressão ou expansão. Em razão destas peculiaridades, segundo a autora, a
regra deve prevalecer sobre o princípio.
Além deste argumento de natureza estrutural, Barcellos propõe ainda outro de natureza
funcional. Na ordem jurídica, as regras cumpririam a função de trazer segurança,

574
BARROSO, Luiz Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. In: BARROSO,
Luiz Roberto. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008. p. 31.
575
BARROSO, Luiz Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro.... p. 32.
576
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 85 e ss.
577
A própria autora, sabedora de que o enunciado surpreende, adverte: “O parâmetro que se acaba de propor pode parecer em
desacordo com tudo o que recentemente se tem como conhecimento assentado acerca dos princípios: sua ascendência
axiológica em relação às regras e sua centralidade no sistema”. E neste sentido cita Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se
irradia sobre diferentes normas (...) Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao
princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais
grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência
contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais.” (BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros
normativos para a ponderação constitucional... p. 69 e 70).
578
BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional... p. 71.
211

previsibilidade e estabilidade para as relações sociais. Todavia, num sistema de prevalência


absoluta da segurança e da previsibilidade, a injustiça poderia avolumar-se. Por isso, de outro
lado, os princípios funcionam como elementos aptos à realização da justiça. Mas, se
amplamente privilegiados poderiam fazer surgir o risco do arbítrio. Em outras palavras, a
segurança jurídica dependeria das regras e a justiça dos princípios. Numa ordem democrática,
segundo Ana Paula de Barcellos, competiria “ao Legislativo e ao Executivo, no exercício de
suas competências constitucionais, formularem opções que darão conteúdo aos princípios.” 579
A estes poderes, pois, cabe a formulação das regras. Conclui, portanto, “que as regras
(constitucionais e infraconstitucionais) devem ter preferência sobre os princípios. Isto é, em
uma situação de conflito inevitável, a regra deve ser preservada e o princípio comprimido, e
não o oposto”.580
Diverso é o entendimento de Pietro Perlingieri, para quem “os enunciados normativos
expressos não são exaustivos em si mesmos: eles devem ser especificados em conformidade
com o que dispõe a tábua de valores que fundamenta o ordenamento”. 581 Critica o enfoque
segundo o qual seria possível distinguir o casus legis do casus dubius. 582 Para Perlingieri
perceber a interpretação por essa perspectiva implica reforçar a concepção tradicional de que
os princípios somente são chamados à cena de forma subsidiária, conforme, dispõe, também,
a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro,583 vez que sendo clara a regra não é cabível
ponderação, vez que a regra está posta no campo do tudo ou nada. Se válida, deve ser
aplicada. Logo, implícita nessa concepção está a cisão da atividade interpretativa em dois
momentos: (i) a interpretação e (ii) a aplicação da norma propriamente dita. Em sentido
contrário, propugna Perlingieri por “um procedimento interpretativo único e global, no qual
interpretação e aplicação representam aspectos do fenômeno da individualização da normativa
do caso concreto”.584

579
BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional... p. 81.
580
Ibid. p. 81. Uma regra constitucional jamais poderia ser afastada, segundo a teoria sustentada pela autora, para a aplicação
de um princípio constitucional. Escreve: “A situação é ainda mais grave, naturalmente, se se cuida de uma regra
constitucional. Neste caso, o intérprete estará afastando a incidência de uma regra elaborada pelo poder constituinte
originário e que, como padrão, veicula consensos básicos do Estado organizado pela Constituição.” (BARCELLOS, Ana
Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional... p. 82). Esta, todavia, não parece ser a posição do
STF em relação à união homoafetiva, admitida pela Corte como união estável. Há regra constitucional fixando que a união
estável é aquela estabelecida entre um homem e uma mulher. Entretanto, a diversidade de sexos estabelecida pela regra
constitucional foi afastada pelo Supremo Tribunal Federal em prestígio à principiologia constitucional.
581
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 620.
582
Ibid. p. 614.
583
Assim dispõe o art. 4º do Decreto-Lei 4.657/1942: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
584
PERLINGIERI, op. cit., p. 620.
212

Poder-se-ia argumentar que a valoração dos princípios teria como conseqüência a


insegurança jurídica. Necessário lembrar que as regras apenas numa concepção mítica — no
sentido grossiniano — geram a ilusão de segurança. A perspectiva do Direito Civil-
Constitucional não significa o abandono da aspiração por segurança jurídica como se
aplaudisse o arbítrio. Trata-se antes da compreensão de uma outra segurança jurídica. Como
percebeu Maria Celina Bodin de Moraes: “A vagueza e a ambigüidade intrínsecas às normas
jurídicas não são na realidade ampliadas pela utilização dos princípios, ao contrário, é a
identificação dos princípios que as justificam que fornece a segurança jurídica. O papel que os
princípios exercem como ratio (razão) em cada interpretação-aplicação jurídica é o que
garante a coerência entre elas”.585
Não se trata, portanto, de uma excepcionalidade a força de incidência dos princípios
constitucionais na definição do sentido e do alcance das regras constitucionais e
infraconstitucionais, como se somente, “por vezes, a própria estrutura da regra [admitisse]
certa ponderação interna para definição de seu próprio sentido”. 586
Ainda que se adote entendimento diverso daquele esposado por Ana Paula de Barcellos,
em relação ao primeiro parâmetro que estabelece para a realização da ponderação, certo é que
o segundo parâmetro por ela referido parece colocar-se como contrapeso, pois, assevera que
“os direitos fundamentais têm preferência sobre as demais disposições normativas”. 587 E, ao
fazê-lo, reporta-se ao princípio da dignidade humana como elemento central do sistema
jurídico. Não se trata tão somente de a Constituição haver posicionado a dignidade da pessoa
humana e os direitos fundamentais como centro do sistema por ela estabelecido. Na verdade,
eles é que proporcionam as próprias condições essenciais para a manutenção de um sistema
democrático. Nesta direção, cogita-se do que se convencionou designar de mínimo
existencial. 588 Todavia, a perspectiva que Ana Paula de Barcellos adota, ainda assim, não
coloca em posição privilegiada e definitiva a eficácia direta do princípio da dignidade
humana, quando se trata de ponderação na solução de conflitos normativos, visto que afirma
categoricamente que “a preferência das normas que promovem diretamente a dignidade opera

585
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p. 67.
586
BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional... p. 91. Apesar de
enunciar como parâmetro que as regras têm preferência sobre os princípios constitucionais. A própria autora se vê obrigada a
elencar “modelos de exceção” ao parâmetro: como a equidade, a teoria da imprevisão, e a invalidade da incidência específica
da regra.
587
Ibid. p. 108.
588
Por todos, ver: FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
213

na terceira fase, momento em que as normas propriamente ditas já foram apuradas”. 589 A
técnica de ponderação proposta acaba por alocar o princípio da dignidade humana em um
papel subsidiário. Ele é chamado à cena depois que “as normas propriamente ditas já foram
apuradas”.
A perspectiva que aqui se adota é outra. Qualquer regra ou cláusula contratual, por mais
lateral que seja, deve expressar a diretriz constitucional de prioridade de tutela à dignidade da
pessoa humana. Ou, como sustenta Maria Celina Bodin de Moraes, “a regulamentação da
atividade privada (porque regulamentação da vida cotidiana) deve ser, em todos os seus
momentos, expressão da indubitável opção constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa
humana”. 590 Se em outros campos do Direito Civil o princípio da dignidade da pessoa humana
teve repercussões significativas591 — suficiente mencionar a função social da propriedade, a
proteção do bem de família em detrimento do direito creditício, a proteção do contratante em
situação de vulnerabilidade, e outros. — no Direito de Família, muito mais, implicou
verdadeira virada copernicana. Este princípio, posto como fundamento da República trouxe
como consequência a repersonalização das relações familiares. 592 Não se tratava mais de
aplicar as regras do Código Civil de 1916, em vigência à época da promulgação da
Constituição de 1988, que não estivessem a contrariar o texto constitucional e que, portanto,
haviam sido recepcionadas e incorporadas ao novo ordenamento. O que estava e ainda está
em questão é a ressignificação de toda ordem jurídica — e, portanto, de cada uma das normas
que a integram — a partir da nova tábua axiológica fixada pela Constituição.
No âmbito do Direito de Família, o princípio da dignidade da pessoa humana teve como
decorrência a superação da tutela institucional voltada à proteção nitidamente
patrimonializante das relações familiares. A superação da família-instituição pela família-

589
BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p.
273. A autora esclarece: “Em resumo do que se expôs até aqui é possível registrar o seguinte: Os dois parâmetros descritos,
neste capítulo e no anterior, têm natureza geral, isto é, procuram fornecer ao intérprete preferências raci onais e juridicamente
consistentes para a solução dos conflitos normativos que, por suas peculiaridades, exijam o emprego da ponderação. A
preferência das regras sobre os princípios orienta o intérprete na primeira fase da ponderação, quando são identifica dos os
enunciados relevantes. A preferência das normas que promovem diretamente a dignidade opera na terceira fase, momento em
que as normas propriamente ditas já foram apuradas. Entre a primeira e a terceira fases da ponderação, porém, há uma etapa
intermediária, na qual são identificados os fatos relevantes, atribuídos pesos aos elementos normativos e afinal construídas as
normas em disputa, que continuam desvinculadas de qualquer parâmetro objetivo.”
590
MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil-constitucional. In: MORAES, Maria Celina Bodin de.
Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 15.
591
Por essa razão, consignou Gustavo Tepedino que, no Brasil, a partir da Constituição de 1988, deve-se “considerar a
personalidade não como um novo reduto do poder do indivíduo, no âmbito do qual seria exercido a sua titularidade, mas
como o valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade econômica a
novos critérios de validade”. (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 47).
592
Sobre o tema ver: LÔBO NETTO, Paulo Luiz. A repersonalização das relações de família. In: BITTAR, Carlos Alberto
(Coord.). O direito de família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 53 e ss.
214

instrumento, assim definida em razão do seu objetivo de proporcionar o desenvolvimento da


personalidade de seus integrantes, traz como conseqüência não a simples verificação da
aplicabilidade ou não de uma regra segundo o critério do “tudo ou nada”. A partir da
repersonalização das relações familiares todas as regras mudam. Ainda que a estrutura
normativa pudesse ser a mesma, a função de cada regra foi posta em questão frente ao
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Na nova ordem constitucional
nenhuma regra permaneceu como dantes, mesmo que a dicção do texto legal tenha-se mantido
idêntica.
A este respeito, por exemplo, registrou Paulo Luiz Netto Lôbo que “boa parte dos
impedimentos matrimoniais não tem as pessoas, mas o patrimônio dos cônjuges, como valor
adotado. (...) Esses tipos de impedimentos não devem persistir nas atuais relações de família,
centrada no princípio de liberdade estabelecido na nova Constituição e nas forças vivas da
instituição social. (...) Não deve a proteção do patrimônio suplantar a proteção das
pessoas”.593 Trata-se apenas de um exemplo porque desde a promulgação da Constituição
Federal de 1988 desenvolveu-se vasta produção teórica e também jurisprudencial que, entre
avanços e retrocessos, promove o repensar de todo o Direito de Família a partir do novo
paradigma constitucional.
Este exercício contínuo não foi em parte prejudicado com a entrada em vigência do
Código Civil de 2002, mormente, porque este surgiu de um anteprojeto esboçado no início
dos anos de 1970. Não espelha, portanto, a principiologia constitucional. 594 O fato de o
Código Civil ter apenas sofrido ajustes de forma para afastar as inconstitucionalidades mais
gritantes tem continuamente desafiado os civilistas e o judiciário a um complexo exercício
hermenêutico, posto que os valores que informaram o projeto convertido em lei são
completamente distintos daqueles que impregnam os princípios constitucionais.
Feitas estas observações e explicitado o lugar de onde se fala cumpre passar à análise da
regra da monogamia, tendo em consideração o princípio da dignidade da pessoa humana que
incide e orienta todo o ordenamento jurídico. Contornos elementares devem ser descritos em
relação ao princípio da dignidade da pessoa humana para que ele não paire como mera ratio
de todo e qualquer direito. Maria Celina Bodin de Moraes, valendo-se das reflexões de

593
LÔBO NETTO, Paulo Luiz. A repersonalização das relações de família. In: BITTAR, Carlos Alberto (Coord.). O direito
de família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 65 e 66.
594
Sobre o descompasso apontado entre o Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988, ver: FACHIN, Luiz
Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma
análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed., Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 89 – 106.
215

Marilena Chauí, sustenta que o substrato material da dignidade pode ser desdobrado em
quatro postulados: “i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos
iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é
dotado de vontate livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual
tem a garantia de não vir a ser marginalizado.”595 Destes postulados deduz os princípios
jurídicos da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade e da solidariedade.
Sendo estes sub-princípios derivados do princípio maior — a dignidade, passa este a ser
o melhor critério de ponderação entre os outros, quando estiverem em choque. Sempre
referenciados no princípio da dignidade da pessoa humana, os sub-princípios podem ser
relativizados, ponderados, estimados. A funcionalização da família ao desenvolvimento da
personalidade daqueles que a integram provoca significativa alteração na própria apreensão
jurídica da família. Os interditos legais que, com fundamento na regra da monogamia,
impedem o reconhecimento da simultaneidade de famílias inspiram-se em razões de natureza
nitidamente patrimonial. Trata-se da proteção do patrimônio de uma família eleita como
legítima e o desprestígio e, portanto, a negação jurídica da outra que é classificada como
ilegítima.
Sem dúvida, o critério último não é a proteção da dignidade da pessoa humana. A marca
distintiva deste critério é a desigualdade, posto que privilegia a titularidade de uma dada
relação jurídica e desconsidera totalmente outra situação existencial que, sociologicamente, é
configuradora de relação familiar. Verifica-se, em consequência, a ausência de respeito ao
outro em sua integridade moral, mormente, porque em termos jurídicos recebe a alcunha de
concubino, ou melhor, e mais especificamente, de concubina. Impera a desclassificação da
pessoa. Logo, ofensa à sua dignidade. A autonomia privada que deveria ser prestigiada e
maximizada quando exercida em situações subjetivas existenciais, sofre a indevida
intromissão do Estado, por meio de regras que de forma injustificada limitam o direito à livre
conformação das entidades familiares, o que em última instância cria as condições de
alienação e marginalização social. Enfim, todos os postulados ressaltados por Maria Celina
Bodin de Moraes como resultantes do princípio da dignidade da pessoa humana são
afrontados em razão da prioridade que, inconstitucionalmente, se devota a uma tutela
transpessoal ou institucional da família que, em última ratio, encobre por excelência tutela
patrimonial. Da mesma forma que a admissão jurídica e o reconhecimento de filhos

595
MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade da pessoa humana. In: MORAES, Maria Celina Bodin de.
Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 85.
216

extramatrimoniais, anteriormente classificados como ilegítimos, provocava a turbação da paz


doméstica — e diga-se, o receio da turbatio sanguinis é o receio da dispersão patrimonial — a
negação jurídica da conjugalidade paralela tem o mesmo fundamento, isto é, a proteção do
patrimônio.
Sendo o princípio da dignidade da pessoa humana não apenas um princípio subsidiário a
ser aplicado nos hard cases, mas, ao contrário, um princípio, fundamentalmente, dotado de tal
força normativa que ressignifica todo o ordenamento jurídico e, também, cada regra em
particular, quando a norma é produzida no caso concreto, não parece razoável sustentar a
monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da família. Sua afirmação
privilegia a família patrimonializada que não mais tem guarida na ordem constitucional
fundada na dignidade da pessoa humana.

4.4 O princípio da solidariedade e o arrefecimento da monogamia como regra


intransponível

Até a Constituição Federal de 1988, a palavra solidariedade ingressava no universo do


discurso jurídico brasileiro apenas na acepção própria das relações obrigacionais, 596 seja como
solidariedade ativa — quando havendo multiplicidade de credores, qualquer deles tem o
direito ao recebimento de todo o crédito, como se fosse o único credor — seja como
solidariedade passiva — quando verificada pluralidade de devedores, de qualquer deles pode
o credor exigir o pagamento de toda a dívida.
Com a Constituição Federal, a solidariedade introduz-se, pois, no ordenamento jurídico
pátrio com nova conotação, implicações e desdobramentos que ainda estão sendo assimilados
e efetivados. Entre os objetivos da República, ficou consignado no texto constitucional o de
“construir uma sociedade livre, justa e solidária” (CF, art. 3º, inciso I), bem como o de
“erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (CF,
art. 3º, inciso III). Estes dois enunciados, sob o título “Dos Princípios Fundamentais”
consubstanciam o princípio da solidariedade. Segundo Maria Celina Bodin de Moraes, “não
se trata de um vago programa político ou de mera proclamação retórica.” 597 Constitui, antes,
um inovador princípio a funcionar como diretriz fundamental tanto para o legislador

596
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p. 238. O texto sobre “o princípio da solidariedade”, publicado pela autora em outras obras antes de
ser incluído no livro citado, constitui um dos marcos de referência na doutrina brasileira sobre este princípio constitucional
que ainda está para ser estudado em todos os seus desdobramentos.
597
Ibid. p. 239.
217

ordinário, como para os responsáveis pela execução das políticas públicas, bem como para
intérpretes e aplicadores do Direito.
Não há dúvida de que o princípio da solidariedade decorre necessária e diretamente do
princípio da dignidade humana sobre o qual se funda a República. Ao afirmar a dignidade da
pessoa humana não se está a dar um passo atrás para confirmar o individualismo dos séculos
XVII e XVIII que teve acentuados reflexos nas codificações oitocentistas. O princípio da
solidariedade como que reforça e reafirma o caráter da sociabilidade humana que, além de ser
de natureza fática enquanto imprescindível à coexistência, tem também um caráter
deontológico enquanto dever para com os demais.
O princípio da solidariedade não se confunde com a fraternidade espontânea, comum entre
os agrupamentos humanos em razão de afinidades religiosas, ideológicas, esportivas, e outras.
Numa sociedade marcada pelas diferenças, pelo pluralismo cultural, pela diversidade de
concepções de vida, o princípio da solidariedade sobressai como comando constitucional de
respeito à diferença, de tal sorte que seja possibilitada coexistência pacífica dos diversos
grupos e mesmo de cada um dos seres humanos com suas idiossincrasias, sendo todos
percebidos com igual dignidade.
Vê-se, pois, que a solidariedade enquanto princípio constitucional não brota da
generosidade frequente entre os que são próximos ou entre os que comungam crenças e
afinidades. Como demarcou Maria Celina Bodin de Moraes, o princípio da solidariedade não
se confunde com as manifestações de beneficência ou com os atos caritativos, que defluem
espontaneamente da liberalidade daquele que se sente movido a agir em benefício de outrem
por razões de foro íntimo. O princípio da solidariedade consiste em um dever de natureza
jurídica imposto a todos.598
Fosse a solidariedade concebida, juridicamente, de forma jungida à ideia de comunidade
de interesses, tutelar-se-ia, na verdade, uma dada forma estendida de egoísmo. Na
Constituição Federal de 1988, a solidariedade está fixada como instrumento da superação da
pobreza e da marginalidade. Embora a pobreza e a marginalização, na esmagadora maioria
dos casos, estejam em íntima correlação, para os objetivos da tese que se busca sustentar, o
conceito de marginalização toma maior relevância.

4.4.1 O sentido constitucional da solidariedade: superação das discriminações e da


marginalização

598
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana... p. 244.
218

O princípio da monogamia é evocado, na maioria das vezes, quando se configuram


situações de simultaneidade de famílias constituídas por cônjuge comum a cada uma delas.
Em regra, a indicação legal e a tendência da jurisprudência têm sido no sentido de se tutelar a
família formada pelo casamento em detrimento daquela surgida da união estabelecida
paralelamente.
Não há dúvida de que o instituto do concubinato599 construído ao lado do casamento
constituiu, historicamente, instrumento jurídico legitimador da marginalização social da
concubina. À medida que a legislação e a jurisprudência dos tribunais penalizam a família
formada ao lado e simultaneamente àquela surgida do casamento, constrói-se a fronteira, o
limite, a margem e, em consequência, a marginalização. A sanção social encontra perfeito
espelho na ordem jurídica.
O que se põe em questão é, portanto, o concubinato, decorrente do princípio da
monogamia, como instrumento de marginalização, especialmente da mulher, constituindo-se
vetor de força contrária àquela indicada pelo princípio da solidariedade.
O concubinato não existe como essência. As diversas formas de constituição de família
são apreensíveis enquanto fatos sociais e transplantadas em standards jurídicos. O
concubinato constitui uma escolha, uma decisão de natureza jurídico/legislativa para denegar
status de família a agrupamento que se forma e é reconhecido como tal, ao menos sob
determinada ótica.
O concubinato, no Brasil, é a descrição e a legitimação jurídica de uma segregação
histórica. Este fato é notório. Tendo a Constituição Federal de 1988 reconhecido a união
estável como entidade familiar, discutiu-se muito sobre o grau de intervenção do Estado na
regulação da referida união. No Brasil, diferentemente do que ocorre na Europa, a maioria das
uniões não fundadas no casamento não constituem uniões livres, resultantes de uma opção de
vida contrária aos formalismos e amarras do matrimônio. 600 Refletem antes, em sua
esmagadora maioria, uma relação de “dominação masculina”, para usar a expressão de Pierre
Bourdieu.

599
Para as considerações aqui desenvolvidas, toma-se como referência o concubinato dito impuro, especialmente, porque o
que anteriormente era designado concubinato puro, atualmente, corresponde à união estável. Esta distinção feita pela doutrina
é, todavia, refutada nesta tese.
600
Já no final dos anos 1980, com base em diversas pesquisas, afirmavam José Lamartine e Francisco Muniz: “Nos países da
Europa Ocidental, a coabitação juvenil é o modo de vida em comum sem casamento mais difundido. Assim, a coabitação
entre os jovens precede muitas vezes o casamento em proporções que não cessam de crescer. Atualmente, por exemplo, na
Suécia e Dinamarca, fica ao redor de 100%, na França em 50%, na Alemanha em 30% e na Inglaterra em 20%.” (OLIVEIRA
José Lamartine Corrêa & MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família – direito matrimonial. Porto Alegre: Fabris,
1990. p. 82).
219

Sobre o tema da regulamentação da união estável assim pronunciou-se Luiz Edson


Fachin: “Elitista e equivocada a crítica segundo a qual a nova legislação é exageradamente
concessiva. Deixar ao sabor destas relações é sustentar que prevaleça a opressão do mais forte
(econômica e culturalmente) sobre o mais fraco. No reverso da crítica ácida à intervenção do
Estado, o paradoxal elogio de uma sociedade patriarcal e da predominância dos interesses da
linhagem masculina”. 601
No Brasil, as uniões não fundadas no casamento refletem mais uma circunstância histórica
de marginalização do que uma postura refratária em relação ao casamento. Não é difícil
concluir que a intervenção estatal imputando efeitos jurídicos a estes núcleos familiares
informais se deve ao fato de que neles se manifesta de forma mais contundente a dominação
masculina.
Contrariando a tendência protetiva dos vulneráveis em atenção ao princípio constitucional
da solidariedade social, o tratamento que o Código Civil de 2002 deu ao concubinato tem
como necessária consequência a criação de um lugar de não-direito, à margem dos âmbitos
recobertos pela proteção estatal.
O princípio da solidariedade segundo a perspectiva civil-constitucional, impõe releitura
conforme a Constituição, do vetusto estatuto do concubinato, que aparece no Código Civil de
2002 como resíduo da regulação da união estável, em um dispositivo cuja dicção merece
críticas de vários matizes.
Tendo regulado a união estável, o codificador de 2002 sentiu-se obrigado a esclarecer se
subsistia ou não o concubinato. As leis posteriores à Constituição Federal de 1988, que
regulamentaram a matéria atinente à união estável, Lei 8.971/94 e Lei 9.278/96, não fizeram
qualquer referência ao concubinato, nem tão pouco pretenderam estabelecer o discrimen entre
este instituto e a união estável. O codificador, porém, reavivou o tema de forma contraditória.
Estatuiu: “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar,
constituem concubinato” (CC2002, art. 1.727).
A contradição vem à tona porque aqueles que são separados judicialmente ou de fato estão
impedidos de contrair casamento, mas eventual união estável por eles constituída será
reconhecida como tal, e considerada merecedora de plena tutela jurídica. Desta forma, assiste
razão a Maria Berenice Dias quando sustenta que “a norma restou incoerente e contraditória.

601
FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 67.
220

Simplesmente, parece dizer — mas não diz — que as relações paralelas não constituem união
estável.” 602
O concubinato na configuração legal é, assim, expressão inequívoca de exclusão de tutela
às relações familiares que ficam desta forma empurradas para a marginalidade, e
invisibilidade jurídica. Esta é também a percepção de Maria Berenice Dias: “Nitidamente
punitiva a postura da lei, pois condena à invisibilidade e nega proteção jurídica às relações
que desaprova, sem atentar que tal exclusão pode gerar severas injustiças, dando margem ao
enriquecimento ilícito de um dos parceiros, certamente do homem.” 603
O princípio da solidariedade tem como alvo a superação da marginalização, portanto, da
desigualdade. A marginalização secular da concubina, tida e havida como teúda manteúda604,
contada entre as posses do homem, não pode ser referendada por lei que encontra seu
significado, extensão e aplicação em si mesma. Considerado o ordenamento jurídico no qual
o Código Civil está inserido, mormente, a tábua axiológica fixada pelos princípios
constitucionais, tal marginalização há de ser necessariamente banida.
A Constituição Federal, ao estabelecer entre os objetivos da República a construção de
uma sociedade solidária e a erradicação da marginalização, não endereçou tal princípio, isto é,
o da solidariedade social, tão somente ao poder público. Constituiu-o, também, como diretriz
para as relações interprivadas. A marginalização no âmbito das relações privadas confunde-se
com o costume, com o habitus. Verifica-se uma especial “capacidade de absorção de
situações degradantes e desumanas, mas que passam, de algum modo, a ser vistas como
admissíveis ou até mesmo naturais...”605 As marginalizações que se sedimentam
culturalmente, durante longos períodos, tornam-se imperceptíveis para aqueles que as
sustentam ideologicamente.
Emblemático e revelador foi um artigo de Saulo Ramos publicado na coluna Tendências e
Debate, da Folha de São Paulo, comentando a primeira lei que regulamentou a união estável.
Fazendo uso de linguagem vulgar e por isso mesmo ainda mais significativa, o ex-ministro da

602
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 172. Segundo a
autora citada teria faltado coragem ao legislador para dizer o que efetivamente queria dizer.
603
Ibid. p. 173.
604
A expressão teúda manteúda, ainda hoje utilizada no nordeste do Brasil para designar a “concubina”, isto é, uma
referência àquela que “se tem” e “se mantém”, figurava nas Ordenações Filipinas. Sílvio RODRIGES transcreve peculiar
texto das Ordenações, Livro IV, Título 94, principium: "Fallecendo o homem casado abintestado, e não tendo parente até o
décimo gráo contado segundo o Direito Civil, que seus bens deva herdar, e ficando sua mulher viva, a qual juntamente com
elle estava e vivia em casa teúda e manteúda, como mulher com seu marido, ella será sua universal herdeira. E pela mesma
maneira será o marido herdeiro da mulher, com que estava em casa manteúda, como marido com sua mulher, se ella primeiro
fallecer sem herdeiro até o dito décimo gráo". (RODRIGUES, Sílvio. Direito civil, v. 7 direito das sucessões. 25ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2002. p. 111 – nota de rodapé).
605
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana... p. 260.
221

Justiça epigrafou seu texto com o seguinte título: A “Lei Piranha” ou o fim do casamento à
moda antiga.606 O extremo mau gosto em termos literários evidencia convicções e
preconceitos muito arraigados. O discurso é passional. Com a nova lei o Legislativo estava,
segundo Saulo Ramos, dando “bananas para as instituições protetoras da família”. A
designação já pejorativa de concubina foi agravada com o uso de metáfora de baixo calão,
exatamente porque sua tutela afronta a sagrada família, isto é, a instituída pelo casamento.
Qualifica a Lei como “leizinha imoral”, especulando, sarcasticamente, a possibilidade dos
homossexuais virem a pleitear a aplicação da mesma às suas próprias uniões. Diz ser a lei
posta contra o Direito de Família, consagrando cafetões, amancebados e barregueiros.
Apesar de ser o artigo de Saulo Ramos quase uma caricatura das concepções jurídicas
mais conservadoras, ele traz à apreciação habitus que está subjacente, de forma silenciosa,
nos institutos jurídicos de marginalização das famílias que se formam paralelamente à família
constituída pelo casamento. Ruidoso, mostra, pelo avesso e de forma retumbante, o que estava
e ainda está encoberto na letra da lei.
A marginalização da concubina referendada pelo Código Civil de 2002 contraria
frontalmente o princípio constitucional da solidariedade. Diferentemente de outros sistemas,
no Direito brasileiro, a união estável é reconhecida independentemente da celebração de um
contrato de parceria civil. A união estável é, no sistema pátrio, reconhecida a partir de uma
dada situação fática. Este reconhecimento de uma família surgida de união sem casamento e
independentemente de qualquer formalização por contrato escrito resulta da intenção clara e
inequívoca de proteger o companheiro vulnerável, sobretudo a mulher. Paulo Luiz Netto Lôbo
reconhece neste mecanismo de proteção um dos instrumentos de realização do princípio da
solidariedade familiar. 607
Quando realizado o discrimen entre união estável e o concubinato, como faz o art. 1.727
do Código Civil de 2002, legitima-se a marginalização de uniões estabelecidas paralela e

606
RAMOS, José Saulo Pereira. A “Lei piranha” ou o fim do casamento à moda antiga. In: Folha de São Paulo,
21/mar./1995. Caderno 3, p. 1. Alguns trechos por sua contundência devem ser citados: “E o que fez o Legislativo? Uma ova
para a Constituição e bananas para as instituições jurídicas protetoras da família, fato gravíssimo que elimina séculos de
conquista e de civilização. Podem esperar, essa leizinha imoral logo será invocada até pelos companheiros(as) do mesmo
sexo, pois será repulsiva a discriminação, já que se esculhambou geral, além da interpretação gramatical permitir tal
entendimento, graças ao ‘a’ grafado depois do ‘o’, consagrando a possibilidade de união entre companheiro e companheiro,
ou entre companheira e companheira, posto que ninguém é obrigado a separar o que está ou não entre parênteses, já que se
acabou com os parênteses e a redação do monstrengo permite essa leitura, que nós, complicadamente, chamamos de
hermenêutica.” E, mais adiante arremata: “uma lei como esta, horizontal e barregã, consagrando os cafetões, os amancebados
e os barregueiros, voltada contra os institutos de direito de família, compromete irremediavelmente o Legislativo, que
somente se salvará na rápida revogação.”
607
LÔBO, Paulo Luiz Netto. O princípio constitucional da solidariedade nas relações de família. In: CONRADO, Marcelo;
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Direito privado e constituição: ensaios para uma recomposição valorativa da pessoa e do
patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009. p. 337.
222

simultaneamente ao casamento. Consequentemente, faz-se pressupor hierarquia entre as


famílias formadas pelo casamento e as demais reconhecidas pela Constituição Federal.
Prioriza-se a instituição em detrimento das pessoas, em regra, daquela que é referida como a
concubina. A lei se presta à discriminação e marginalização da mulher. A subjugação
masculina exercida sobre ela ganha absolvição legal. Colocado em uma angulação de
obscuridade, o concubinato, ressuscitado pelo Código Civil de 2002, presta-se à
marginalização das famílias de fato surgidas simultaneamente ao casamento.
O princípio da solidariedade é tido como “meio de transformação social e de promoção da
pessoa humana”.608 Para as relações familiares dois aspectos devem ser considerados em
relação ao princípio da solidariedade. O primeiro diz respeito à prevalência da tutela da
pessoa e não da instituição. O segundo refere-se à responsabilidade objetiva decorrente das
relações familiares.
Considerado o princípio da dignidade humana todas as instituições merecedoras de tutela
jurídica têm caráter instrumental, isto é, estão funcionalizadas à realização das potencialidades
dos seres humanos. Estes jamais serão meios, antes, são reconhecidos como fim em si
próprios. Por esta razão, conclui Maria Celina Bodin de Moraes: “se todas as pessoas são
igualmente dignas, nenhuma instituição poderá ter o condão de sobrepor seu interesse ao dos
seus membros. A família não se acha mais fundada em rígidas hierarquizações, preocupadas
com a preservação do matrimônio do casal e do patrimônio familiar, para se revelar como o
espaço privilegiado da realização pessoal dos que a compõem”. 609
Nesta direção, não parece razoável nem tampouco conforme a Constituição que a mulher,
referida como concubina, seja excluída da tutela jurisdicional, em homenagem à instituição
casamento, concebida sob a égide do princípio da monogamia, que se converte no elemento
de fundo justificador de graves injustiças e de marginalização. O princípio da solidariedade
dirigido ao fim da transformação social e da promoção da pessoa humana não admite o
discrímen consagrado no art. 1.727 do Código Civil.
Feita a análise por outra perspectiva, parece impensável admitir que da relação dita
concubinária não surjam vínculos de responsabilidade entre os companheiros. Se, nas relações
obrigacionais, o comportamento — e não somente a declaração — faz surgir direitos e
deveres entre as partes, não é razoável que nas relações familiares, uma situação de fato,
consolidada no tempo, não produza qualquer efeito jurídico. Todavia, as relações familiares

608
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana... p. 251.
609
Ibid. p. 252.
223

não podem ser equiparadas ou modeladas tendo como parâmetro as situações jurídicas de
natureza obrigacional, sob pena de se seguir pelas trilhas de um modelo já superado. Este é o
equívoco cometido pelos que sustentam ser, ainda hoje, aplicável ao concubinato a Súmula
380610 do Supremo Tribunal Federal. Conquanto tenha representado passo significativo da
jurisprudência, na década de 1960, como bem ponderou Paulo Luiz Netto Lôbo, sua
aplicação, após a Constituição de 1988, converte o que era um avanço em incontestável
retrocesso.611
Guardadas as considerações e distinções entre as relações obrigacionais e familiares, certo
é que a noção de responsabilidade, também, se inscreve no âmbito da família, com
repercussões de natureza, também, patrimonial. A responsabilidade civil tem experimentado
verdadeira objetivação, à medida que se afasta da verificação da culpa e da identificação do
culpado e passa a ter como fundamento o compromisso com a solidariedade social. 612

4.4.2 Solidariedade e responsabilidade: o cuidado do outro como critério ético fundamental

Para a linha de argumentação esposada nesta tese as reflexões de Paul Ricoeur sobre a
responsabilidade trazem valiosa contribuição. A responsabilidade é por ele pensada a partir
das noções de fragilidade e vulnerabilidade. Pergunta: “Responsável pelo quê? [...] Pelo
frágil, estamos inclinados a responder. É verdade que esse deslocamento e essa ampliação não
são totalmente inesperados: numa época em que a vítima, os riscos de acidentes e o dano
sofrido ocupam o centro da problemática do direito da responsabilidade, não surpreende que o
vulnerável e o frágil sejam considerados no plano moral também como objeto verdadeiro da
responsabilidade.”613
Mas, para além da simples constatação, Ricoeur vê, no câmbio de perspectiva
experimentado pela responsabilidade civil, privilegiar-se a intersubjetividade e, na trilha de
Emmanuel Lévinas, considera que a injunção moral procede de outrem e não do foro íntimo.
Assim, “tornando-se fonte de moralidade, o outro é promovido à posição de objeto do
cuidado, proporcionalmente à fragilidade e à vulnerabilidade da própria fonte de injunção. O

610
Súmula 380/STF: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial,
com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.
611
Sobre o tema ver: LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus.
Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, nº 12, p. 40-55, jan./mar. 2002. p. 49 e 50.
612
Sobre o tema ver: MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. In: TEPEDINO,
Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coords). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas. Estudos em
homenagem ao professor Ricardo Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 847-881.
613
RICOEUR, Paul. O Justo 1: a justiça como regra moral e como instituição. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2008. p. 54.
224

deslocamento transforma-se então em inversão: alguém se torna responsável pelo dano


porque, de início, é responsável por outrem”. 614
Não se trata, pois, de transpor para o campo do concubinato, em termos estritos, a questão
da responsabilidade civil. O propósito não é verificar a aplicabilidade da responsabilização
civil e do consequente dever de reparar decorrente de situações jurídicas ditas concubinárias.
O que importa é a reflexão de fundo sobre a responsabilidade em razão do dever de cuidado,
considerado princípio jurídico que se fixa como uma decorrência direta do princípio da
solidariedade.
A consagração jurídica do concubinato implica o agravamento da vulnerabilidade da
mulher reduzida à condição de concubina, vez que, sendo esta família simultânea ao
casamento desconsiderada como tal pela ordem jurídica, isento de maior responsabilidade
permanece o homem que mantém famílias paralelas. Ficam, assim, criadas as condições
sociais, sancionadas pelo direito, a endossar o que Bárbara Ehrenrich descreveu como a
“irresponsabilidade, a auto-indulgência e um desligamento isolacionista das reivindicações
dos outros.”615
A ética do cuidado, agasalhada pelo principio constitucional da solidariedade, impõe um
repensar sobre a consagração do concubinato pelo Código Civil de 2002. Para formalizar uma
ética do cuidado, Leonardo Boff parte da premissa de que há um dado de base, ontológico,
isto é, que o cuidado é constitutivo do ser humano. Referenciado em Heidegger sustenta que
“sem o cuidado o ser não irrompe, a inteligência não se abre e a liberdade não se exercita.
Sem o cuidado a prática deixa de ser consciente, e por isso, humana. (...) Daí poder dizer-se
que o cuidado pertence à essência do humano. Sem ele o humano não teria aparecido. (...) É o
modo-de-ser típico do ser humano com os outros no mundo. A relação não é sujeito-objeto
mas sujeito-sujeito. Não é de intervenção, mas de comunhão.”616 Deste dado que reconhece
como ontológico propõe uma ética cujo bem a ser buscado seria o próprio cuidado,
considerado constitutivo do que é propriamente humano.
Para esta construção ética, o dado ontológico fundante do humano — o cuidado —
“precisa ser assumido conscientemente como projeto de vida e propósito da vontade de querer
cuidar e de aceitar ser cuidado. Isto implica um empenho ético, político e pedagógico de criar
e manter as condições do cuidado, para que seja predominante, possa se desenvolver e
614
RICOEUR, Paul. O Justo... p. 54.
615
Apud GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas.
São Paulo: Editora UNESP, 1993. p. 168.
616
BOFF, Leonardo. Justiça e cuidado: opostos ou complementares? In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme.
O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 7.
225

florescer.”617 Esta dimensão ética ganha expressão jurídica no princípio da solidariedade que
aponta em sentido diverso ao da marginalização resultante da consagração do concubinato no
âmbito do Direito.
As transformações que o princípio da solidariedade carrega potencialmente ainda estão
por ser exploradas e efetivadas. Com precisão registrou Maria Celina Bodin de Moares: “O
abandono da perspectiva individualista, nos termos em que era garantida pelo Código Cívil, e
a sua substituição pelo princípio da solidariedade social, previsto constitucionalmente,
acarretaram uma profunda transformação no âmago da própria lógica do direito civil — que
se faz notar nas mais recônditas minudências do sistema”. 618 Nesta direção, não há dúvida de
que o princípio da solidariedade faz arrefecer a rigidez da monogamia como critério definidor
do âmbito de tutela da conjugalidade.

4.5 O princípio da igualdade: condição feminina e a monogamia

A igualdade se põe, a princípio, como questão jurídica complexa, pois é afirmada e, ao


mesmo tempo, posta como meta. No primeiro caso, revela-se na proibição de qualquer
discriminação em razão de peculiaridades intrínsecas de cada pessoa, no segundo, como
compromisso do Estado de remover os obstáculos determinantes de efetivas desigualdades
entre as pessoas. Proclama o art. 5º da Constituição Federal que “Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza...” Por seu turno, o art. 3º da mesma Carta
Constitucional reconhece como objetivos fundamentais da República a erradicação da
pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais. Assim, alguns
fazem distinção entre a igualdade formal e a igualdade substancial, ora pela matriz cultural,
para sustentar que a primeira seria originária da concepção liberal-democrática e a segunda
expressão de valor de inspiração marxista contestatório da sociedade burguesa, ora pelo
alcance normativo, para sustentar que a igualdade substancial não constitui propriamente
norma com eficácia jurídica, reconhecendo-lhe apenas natureza programática.
O pretenso antagonismo entre igualdade formal e substancial é criticado por Pietro
Perlingieri. A dualidade reconhecida por ele como apenas aparente, também, está assentada
nos parágrafos 1 e 2 do art. 3 da Constituição italiana. 619 Defende interpretação unitária,

617
BOFF, Leonardo. Justiça e cuidado... p. 9.
618
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana... p. 258.
619
Na Constituição italiana, as igualdades formal e substancial aparecem no § 1 e no § 2 do mesmo art. 3:
§ 1 - Tutti i cittadini hanno pari dignità sociale e sono eguali davanti alla legge, senza distinzione di sesso, di razza, di lingua,
di religione, di opinioni politiche, di condizioni personali e sociali.
226

sustentando que “um e outro parágrafo estão em função de reciprocidade e ambos ditam uma
única normativa, aquela da igualdade na justiça social, testemunhando uma filosofia de vida
orientada a impedir que possa existir igualdade sem justiça social e vice-versa”.620
Critica Perlingieri a cisão categórica entre igualdade formal e material expressas nos
parágrafos 1 e 2 do art. 3 da Constituição italiana, ressaltando que tal cisão tanto é
propugnada por quem tende a atribuir natureza meramente programática ao comando da
igualdade substancial, esvaziando-o de qualquer conteúdo, como também por aqueles que têm
a pretensão de reconhecer na igualdade substancial a super-norma constitucional, autônoma e
completa em si. 621 Nesta acepção, igualdade substancial tornar-se-ia, no âmbito do Direito
Civil, sinônimo de interferência indiscriminada na defesa dos mais vulneráveis. Entende o
civilista, por meio de interpretação unitária e sistemática do preceito da igualdade, que a
norma deveria ser utilizada “pelo intérprete em um exame discricionário, não da tradicional
harmonização dos interesses que pressupõe uma homogeneidade dos mesmos, mas em uma
justaposição entre a libertação das necessidades, como valor a ser privilegiado, e a tutela do
interesse econômico, como valor a ser sacrificado.”622
A perspectiva de Perlingieri leva em consideração os perigos do igualitarismo, isto é, a
tomada do princípio da igualdade como legitimador de uma indiscriminada intervenção
judicial na organização da sociedade, sem considerar a pluralidade social, com suas
contradições e antagonismos, como elemento igualmente consagrado pela Constituição. Logo,
a interpretação da igualdade substancial somente pode ser realizada “sem aniquilar inteiros
institutos que também concorrem a caracterizar o sistema e sem a veleidade de superar
distinções sociais compatíveis com a tutela da dignidade humana”. 623 A igualdade há de ser
compatível com a diversidade, e nos sistemas constitucionais italiano e brasileiro não pode
converter-se em igualitarismo.

§ 2 - È compito della Repubblica rimuovere gli ostacoli di ordine economico e sociale, che, limitando di fatto la libertà e
l'eguaglianza dei cittadini, impediscono il pieno sviluppo della persona umana e l'effettiva partecipazione di tutti i lavora tori
all'organizzazione politica, economica e sociale del Paese.
620
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 484.
621
Ibid. p. 478. Ressalta que “estas interpretações opostas devem ser redimensionadas. Isso acaba por incidir profundamente
sobre o direito civil e sobre o seu destino: ou um direito civil exasperadamente garantidor das situações adquiridas e de toda
sorte das posições de força, insensível aos aspectos da sociabilidade como instrumento da realização da dignidade do homem;
ou um direito civil praticamente não escrito, fundado sobre a formação jurisprudencial caracterizadora do princípio da
igualdade dita substancial, remetido aos impulsos e aos contra-impulsos dos movimentos reivindicatórios, isto é, a uma
justiça não segundo a norma, mas segundo aquilo que a norma deveria ter dito exclusivamente como concretização da
igualdade substancial”. (Op. Cit., p. 479).
622
Ibid. p. 489.
623
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional... p. 489.
227

Estas ponderações sobre o preceito da igualdade substancial têm especial relevância


quando se considera a incidência do princípio no âmbito do Direito de Família. A
compatibilização entre igualdade e diversidade neste campo é reclamada com maior vigor.
Nas situações subjetivas existenciais a singularidade e, portanto, a diferença de cada ser
humano deve ser compatibilizada com a igualdade, que não só admite o diverso, mas o
prestigia até o limite que não implique afronta à dignidade da pessoa humana. Não há duvida
de que este é um campo dinâmico de permanente tensão. Não se trata de uma igualdade
estática surgida da declaração (formal), mas, por outro lado, não se cuida de um igualitarismo
(substancial) que despreza as diferenças, os conflitos de interesses, os perfis históricos de
gênero, as marcas de desejos que comungam, mas que também estabelecem situações
belicosas.
Em atenção ao propósito posto para as reflexões que ora se alinham, o princípio da
igualdade deve ser abordado por duas vertentes. A primeira diz respeito à igualdade interna à
conjugalidade, isto é, a igualdade entre o homem e a mulher, ou entre os companheiros ou
companheiras. A segunda refere-se à igualdade entre as entidades familiares, isto é, entre
aquelas surgidas da união estável, do casamento, ou das relações homoafetivas, e mesmo as
que se formam independentemente da conjugalidade, como as monoparentais, e as
estabelecidas entre irmãos ou entre pessoas sem laço consanguíneo.624 Não são estanques a
análise da igualdade interna à conjugalidade e a relativa às várias espécies de conjugalidade.
São inegáveis as múltiplas diferenças entre o homem e a mulher não somente em razão da
constituição fisiológica, mas, sobretudo, em razão da fixação cultural de papéis masculino e
feminino. Também, são visíveis as diferenças entre as múltiplas formas de constituição de
família. Logo, abordar a igualdade, em ambos os casos, implica o enfrentamento do paradoxo
da igualdade na diversidade — o direito de ser diferente e ao mesmo tempo de ser igual.
Na análise da igualdade interna à conjugalidade vem à tona a reflexão sobre gênero e nas
considerações sobre a igualdade entre os diversos tipos de conjugalidade aflora o direito à
pluralidade das formações sociais. Em que pese a segunda análise estar mais diretamente
vinculada à linha da reflexão que se vem desenvolvendo, também, parece verdade que a
desigualdade interna à conjugalidade guarde relação imediata com a desqualificação de certas

624
Sem qualquer pretensão de fazer rol exaustivo, Paulo Luiz Netto Lôbo enumera onze possíveis configurações de entidades
familiares, apenas, para demonstrar a infinita diversidade de famílias na atualidade. (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades
familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: PEREIRA. Rodrigo da Cunha. Família e cidadania – o
novo CCB e a vacatio legis (Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família). Belo Horizonte: IBDFAM/Del Rey,
2002. p. 89 – 107. p. 90 e 91)
228

conformações de entidades familiares, especialmente, aquelas que o Código Civil de 2002


designou como concubinárias.
A compreensão perlingieriana do princípio da igualdade, consagrado de maneira similar
nas constituições italiana e brasileira, fornece bases para pertinente reflexão sobre a regra da
monogamia em face do princípio constitucional da igualdade em sua incidência sobre as
relações de conjugalidade.

4.5.1 A igualdade na diferença: conjugalidade e a questão de gênero

Com forte incidência sobre as relações familiares, o princípio constitucional da igualdade


foi, talvez, aquele dentre os demais princípios cujos efeitos foram percebidos com maior
nitidez e contundência. Ele atingiu frontalmente as relações conjugais e a filiação. Paulo Luiz
Netto Lôbo considera que em razão do princípio da igualdade “todos os fundamentos
jurídicos da família tradicional restaram destroçados”.625 Menciona a sua repercussão na ideia
de legitimidade da filiação e na igualdade de gêneros. A virada conceitual operada pelo
princípio da igualdade foi observada, logo após a promulgação da Constituição de 1988,
também, por Lamartine de Oliveira e Francisco Muniz: “A Constituição consagra o princípio
da igualdade de direitos e deveres entre o homem e a mulher no casamento e na família. (...)
Na ordenação concreta das situações familiares, por força do conceito valorativo de igualdade
cujo termo de referência é a dignidade da pessoa humana, proíbe-se um tratamento jurídico
diferenciado para o marido e para a mulher”. 626
Quando considerado o princípio da igualdade em face da relação de gênero, no âmbito
familiar, aflora a discussão sobre a igualdade formal e a substancial. Não há dúvida de que a
igualdade perante a lei entre homem e mulher, que poderia ser referida apenas como
igualdade formal, produziu significativos efeitos que podem ser, perfeitamente, alocados no
que é concebido como igualdade material, o que faz jus à superação desta dicotomia,
conforme propõe Pietro Perlingieri. Por outro lado, os gritantes números referentes à violência
doméstica contra a mulher são a ponta de um iceberg indicativo da persistência de um modelo
patriarcal de subjugação, fundado em um suposto poder ou direito do homem sobre a mulher.
De fato, a dicotomia não tem lugar no ordenamento constitucional positivo. A igualdade
substancial não é mera norma programática. Na unidade do ordenamento jurídico, ela impõe

625
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2010. p. 58.
626
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família – direito matrimonial. Porto
Alegre: Fabris, 1990. p. 21.
229

um dever ser não só dirigido ao legislador, ao administrador, mas, também aos


jurisdicionados e, de consequência, ao julgador.
Mesmo em relação à violência, manifestação exponenciada da desigualdade, a própria
Constituição fixou norma no sentido de que “o Estado assegurará a assistência à família na
pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito
de suas relações”.627 Ainda que a Lei, conhecida pelo nome de Maria da Penha, somente tenha
sido sancionada em 2006, criando uma série de mecanismos para prevenir e coibir a violência
doméstica, evidentemente, o princípio constitucional da igualdade trazia em si implícita força
normativa que tornava defesa toda e qualquer forma de subjugação da mulher, mormente, a
que implicasse graves constrangimentos e lesões de natureza psicológica e física.
É de todo evidente que a igualdade entre homem e mulher, 628 com a decorrente igualdade
entre cônjuges ou companheiros,629 não pode ser considerada norma de natureza
programática, esvaziada de força normativa, nem tão pouco pode converter-se em um
programa de igualitarismo que desconsidere a diversidade e o direito à diferença.630
A igualdade é condição necessária à dignidade humana. Não se pode esquecer que a
família, durante milênios, singularizou-se pela desigualdade, pelo despotismo e sua contra-
face: a submissão. Hannah Arendt, ao distinguir o espaço público do privado, sublinha que “a
família era o centro da mais severa desigualdade”.631 Ainda que seu pensamento tenha sofrido
críticas por uma certa idealização da polis (espaço público), suas observações se prestam a
evidenciar que a inserção do princípio da igualdade no espaço doméstico é acontecimento
muito recente. Para ela, a polis se diferenciava da família pelo fato de que conhecia somente
iguais, enquanto a família era a expressão da desigualdade por excelência. Como a liberdade
só pode existir entre iguais, somente o chefe de família era considerado livre, porque tinha a
faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera pública onde todos eram iguais. E assim era por
uma dada razão: a liberdade situa-se no âmbito público porque a necessidade seria
prioritariamente um fenômeno pré-político, próprio do lar, da família. Justifica-se, portanto, o
emprego da força e da violência nesta esfera, porque são os meios para vencer a necessidade.
627
É o que prescreve o § 8º do art. 226 da Constituição Federal.
628
Assim dispõe o inciso I do art. 5º da Constituição Federal: “ homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição”.
629
O § 5º do art. 226 da Constituição Federal dispõe: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher”.
630
“... deve-se frisar não ser o princípio da igualdade um nivelamento sistemático. Diferenciações justas devem ocorrer entre
desiguais como meio de garantir-se a igualdade material — pois a igualdade técnica pode mostrar-se na discriminação injusta
de fato e, analogamente, a discriminação justa pode promover a igualdade de fato.” (MATOS, Ana Carla Hamartiuk. As
famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 129)
631
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 41.
230

Diferentemente de Hobbes, Arendt entende que a violência constituiria “um ato pré-político
de libertar-se das necessidades da vida para conquistar a liberdade no mundo”. 632
Tomada a referência de Hannah Arendt, poder-se-ia afirmar que a introdução do princípio
da igualdade no âmbito da família implica, por certo, uma publicização do privado. Em
alguma medida, a polis invade a oikia (casa). A dignidade dos iguais se estabelece e,
consequentemente, não há lugar para a força ou para a violência. Na polis introduzida no lar, a
ação e o discurso tornam-se centrais.
Sobre a força normativa do princípio da igualdade substancial — que não pode ser
percebida apenas como norma programática sem eficácia jurídica — dão testemunho
reflexões levadas a cabo logo após a promulgação da Constituição de 1988, quando ainda
vigente o Código de 1916, que em muitos de seus dispositivos contrariava o novo princípio
constitucional.
Dignas de registro são as reflexões de Sérgio Gischkow Pereira, João Baptista Villela e
Sigismundo Gontijo.633 O primeiro assumia o entendimento de franca e imediata aplicação do
princípio da igualdade.634 O segundo, embora admitisse não se tratar de norma meramente
programática, propugnava por sua inaplicabilidade imediata para evitar um vazio
legislativo.635 O terceiro, com postura nitidamente reacionária, sustentava o entendimento de
que a via da Constituição era inconveniente para impor a igualdade conjugal, mas, como se
tratava de norma constitucional, esta tinha força imperativa.636 Estes textos, evidentemente
datados, isto é, circunscritos em um tempo que sofreu o impacto da virada constitucional,
prestam-se a confirmar a força normativa da igualdade entre os cônjuges.

632
Ibid. p. 40.
633
Os textos foram reunidos em obra coordenada pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, intitulada Direitos da Família
e do Menor.
634
“A igualdade constitucional dos cônjuges deve ser tomada em sua plenitude e com eficácia imediata, revogados os
dispositivos legais que estabelecem superioridade para um dos consortes, inclusive os ligados à chefia da sociedade
conjugal”. (PEREIRA, Sérgio Gischkow. Algumas reflexões sobre a igualdade dos cônjuges. In: TEIXEIRA, Sálvio de
Figueiredo. Direito de família e do menor: inovações e tendências – doutrina e jurisprudência. 3. ed., Belo Horizonte: Del
Rey, 1993. p. 131).
635
“Na Lei Maior do País encontram-se não somente a foral declaração de que homens e mulheres são iguais em direitos e
deveres, senão também, previstos e organizados, os instrumentos institucionais que permitem passar do discurso à práxis.
Ignorar, porém, os instrumentos — para ir direto aos resultados; atalhar os caminhos da ordem — ainda que por amor às suas
promessas, não compadece com aquilo que a República Federativa do Brasil se diz constituir, no primeiro dos artigos de sua
lei principal: um Estado Democrático de Direito”. (VILLELA, João Baptista. Sobre a igualdade de direitos entre homens e
mulheres. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Direito de família e do menor: inovações e tendências – doutrina e
jurisprudência. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 154).
636
“Qualquer de nós que assuma um posicionamento — e esse é um dever — poderá se sentir ridículo no futuro, cotejando-
se com o que ficar definido. Consciente disso, assumo considerar inconveniente a via constitucional para a imposição da
igualdade conjugal, mas vigente como norma maior e imperativa”. (GONTIJO, Sigismundo. Igualdade conjugal. In:
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Direito de família e do menor: inovações e tendências – doutrina e jurisprudência. 3. ed.,
Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 172).
231

Neles são suscitados questionamentos sobre a repercussão do princípio da igualdade entre


homem e mulher que revelam muito mais a mentalidade do questionador, aferrada à
concepção jurídica assentada na pessoa do homem como chefe de família, do que
propriamente um problema efetivo a ser resolvido na concretude das relações familiares
contemporâneas.637 Por outro lado, as apreensões dos citados autores revelam a própria
efetividade da norma, confirmando a tese de Perlingieri de que é imprópria, no âmbito da
legalidade constitucional, a distinção entre uma igualdade formal e uma igualdade substancial.
O princípio da igualdade entre os cônjuges e companheiros ganhou e segue adquirindo tal
densidade normativa que algumas posições do passado não só perderam prestígio, perderam
sentido.638
Um paradoxo da igualdade entre homem e mulher já foi percebido desde a promulgação da
Constituição de 1988, ou seja, a igualdade de diferentes. João Battista Villela, no texto citado,
relembrando a célebre frase de Rui Barbosa, em sua Oração aos Moços,639 afirma que, embora
se apresente como paradoxal, a igualdade pressupõe o reconhecimento da diferença. Para
Villela a composição jurídica da igualdade dar-se-á pelo conjunto das disposições que ora
impõem a igualdade ora reconhecem a diferença, sendo que estas se “correspondem como
duas peças de um encaixe”. Exemplifica por meio de normas contidas na própria
Constituição, como a licença maternidade e a licença paternidade, com previsão de lapsos
temporais distintos, o que ocorre, também, em relação à aposentadoria do homem e da

637
Sigismundo Gontijo pergunta: “Qual deles deteria a legitimidade para administrar os bens? Cada qual já pode assumir,
pela sociedade conjugal, os compromissos ordinários como, no exemplo anterior, o de dar em locação imóveis comuns? (...)
E continuar negociando automóveis e veículos em geral, como terceiros que os compram como sempre o fizeram antes da
imposição constitucional da igualdade de direitos do marido e da mulher, mediante assinatura tão só do cônjuge titular? (...) E
poderão os clubes sociais continuar com o seu comportamento — agora inconstitucional — não apenas emitindo suas cotas
de sócios-proprietários em nome do marido, como dando à mulher um tratamento subordinador, de ‘dependente’?”
(GONTIJO, Sigismundo. Igualdade conjugal. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Direito de família e do menor:
inovações e tendências – doutrina e jurisprudência. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 167). Vê-se, claramente, hoje,
que nenhum dos questionamentos tem efetiva relevância. O princípio da igualdade apresenta, na atualidade, demandas muito
mais relevantes, postas no contexto das situações subjetivas existenciais e não fincadas em algumas questões de natureza
eminentemente patrimonial e negocial.
638
Confirmou-se o temor de Sigismundo Gontijo. O futuro (agora, já quase um futuro do pretérito...) encarregou-se de
enquadrar alguns posicionamentos do passado recente na zona do que é considerado ridículo. Pois, como já citado, afirmava
ele no início dos anos 90: “Qualquer de nós que assuma um posicionamento — e esse é um dever — poderá se sentir ridículo
no futuro, cotejando-se com o que ficar definido.” (GONTIJO, Sigismundo. Igualdade conjugal. In: TEIXEIRA, Sálvio de
Figueiredo. Direito de família e do menor: inovações e tendências – doutrina e jurisprudência. 3. ed., Belo Horizonte:
Del Rey, 1993. p. 172.)
639
“A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam.
Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são
desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade os iguais, ou a desiguais com igualdade, seria
desigualdade flagrante, e não igualdade real”. (BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Apud VILLELA, João Baptista. Sobre a
igualdade de direitos entre homens e mulheres. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Direito de família e do menor:
inovações e tendências – doutrina e jurisprudência. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 148.)
232

mulher.640 Nesta direção, Sergio Gischkow Pereira assumia definido entendimento: “A


plenitude de igualdade dos cônjuges não significa completo abandono de uma certa
preocupação protetiva no tocante à mulher, quando necessário, em face das desigualdades
sócio-econômicas ainda persistentes”.641 E menciona, como exemplo, a manutenção do foro
privilegiado da mulher previsto no art. 100, inciso I do Código de Processo Civil.
Esta proteção ou tratamento diferenciado em razão, fundamentalmente, da desigualdade
sócio-econômica entre o homem e a mulher traz na solução que apresenta um problema que
remete ao estágio inicial. Poder-se-ia levantar a seguinte dúvida: a própria norma protetiva da
mulher, portanto diferenciadora, não traria em si o germe da desigualdade, camuflado em uma
retórica machista? Em que pese a pertinência do questionamento, como assentou Ana Carla
Harmatiuk Matos, tais normas “justificam-se pela realidade social brasileira, acompanhada
por diversos outros países, onde as mulheres apresentam ainda uma condição de inferioridade
em comparação com os homens, tanto no âmbito familiar quanto nas demais relações
familiares, fruto de um longo processo histórico-cultural de poder masculino próprio do
patriarcalismo”. 642 Não se trata, portanto, de entendimento definitivo. O princípio
constitucional da igualdade entre os cônjuges e companheiros, na dinamicidade histórica das
transformações sociais, certamente, ganhará novas tonalidades e se amoldará às relações
familiares ao passo de suas conformações.
Da mesma forma como algumas implicações jurídicas deduzidas por juristas do princípio
da igualdade entre os cônjuges, no início dos anos de 1990, tornaram-se desprovidas de
relevância, o futuro reserva outras conseqüências ao princípio, especialmente, tendo em conta
a independência econômica da mulher e a sua afirmação em novos papéis sociais e na
construção cultural. A igualdade será diferente.
Todavia, ainda hoje, a desigualdade de tratamento dado à mulher nas relações de
conjugalidade avulta-se, quando está em questão o denominado concubinato ou mesmo a
união estável, que é constitucionalmente reconhecida como entidade familiar merecedora de
especial proteção do Estado. A falta de isonomia social imposta pela dominação masculina é
reforçada por uma legislação que desprestigia a mulher que vive em união estável, e com

640
VILLELA, João Batista. Sobre a igualdade de direitos entre homem e mulher. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo
(coord). Direitos de Família e do Menor, 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 148.
641
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Algumas reflexões sobre a igualdade dos cônjuges. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo.
Direito de família e do menor: inovações e tendências – doutrina e jurisprudência. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p.
131-132.
642
MATOS, Ana Carla Hamartiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000. p. 131.
233

muito maior contundência a que vive em concubinato denominado adulterino nos casos de
família simultânea.
A inexistência de tratamento isonômico entre as diversas formas de entidade familiar será
abordada oportunamente. Neste momento, cabe referência à discriminação implícita à mulher
na regulação das relações internas das uniões não fundadas no casamento.
No Brasil, grande parte das uniões estáveis configura-se não como uniões livres, em
resposta ou em repulsa às formalidades do casamento, mas, sim, como meio espontâneo de
conjugalidade das populações economicamente desprovidas. Nestes casos a regulamentação
da união estável é voltada, sobretudo, à proteção da mulher para lhe assegurar: (i) direito a
alimentos, (ii) meação em relação aos bens que, em os havendo, em regra, são adquiridos em
nome do provedor, portanto, do companheiro, e (iii) o direito de sucessão em relação ao
companheiro. Nas populações com menor escolaridade a dominação masculina é visivelmente
mais acentuada. Logo, não há como negar que a proteção legal conferida pelo instituto da
união estável é direcionada precipuamente à mulher. Tanto é assim que aqueles pretendentes a
estabelecer família sem casamento, tendo instrução e condições financeiras estáveis, firmam
contrato de união estável, regrando eles próprios os efeitos patrimoniais daquela relação.
O regramento legal da união estável presta-se a resguardar os vulneráveis. No caso,
especialmente, a mulher. Se correta esta premissa, não há dúvida de que a legislação
infraconstitucional contraria o princípio da igualdade, pois desprestigia totalmente a mulher
que vive em união estável, isto é, aquela que, notoriamente, encontra-se em situação de
vulnerabilidade. Exemplo disso é o regramento da sucessão do companheiro, consagrada no
art. 1.790 do Código Civil. Quando a lei deveria ser mais incisiva na proteção da mulher em
condição de vulnerabilidade social e econômica, aviltou o direito desta. A ser considerado
constitucional643 o citado dispositivo do Código Civil, a companheira pode perder a totalidade
da herança deixada pelo companheiro para parentes colaterais deste. É o que se infere da
disposição gramatical da lei. Trata-se apenas de um exemplo para apontar que, obstinado com
o modelo matrimonializado de família, o codificador desprestigiou completamente o princípio
constitucional da igualdade entre o homem e a mulher, o qual tem por escopo instaurar nova
ordem, que não mais homologa o aniquilamento da dignidade da mulher nas relações
familiares.

643
Sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, ver: NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do
cônjuge e do companheiro na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 133-184. RUZYK, Carlos
Eduardo Pianoviski & PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O direito de família na Constituição de 1988 e suas repercussões no
direito das sucessões: convergências e dissensões na senda da relação entre o Código Civil e a Constituição. In: CONRADO,
Marcelo; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Direito privado e constituição – ensaios para uma recomposição valorativa da
pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá. 2009. p. 429-455.
234

Nas situações subjetivas existenciais enquadradas como concubinárias pela norma


discriminatória do art. 1.727 do Código Civil, o princípio da igualdade que deveria amparar a
mulher em condição de vulnerabilidade é de todo desconsiderado. A lei possibilita, nessas
circunstâncias, a perfeita adequação jurídica para a pecha de concubina, que é, a olhos vistos,
discriminatória. Em homenagem ao princípio da monogamia esta mulher é reduzida de sua
condição de companheira ao status de concubina. O homem, geralmente, não sofre qualquer
perda em sua condição, porque de qualquer sorte está vinculado a uma família tida como tal,
em boa parte das vezes formada pelo casamento, ou por uma união estável anterior.
Como as famílias simultâneas no Brasil, em regra, são conformadas por núcleos
integrados por um mesmo homem, que já havia constituído uma ou mais famílias
anteriormente, a negação da existência jurídica da conjugalidade paralela discrimina
unicamente a mulher. Esta não é percebida em igual dignidade com o homem. Neste caso, ela
é a outra, a concubina. Se algum direito lhe for reconhecido será somente em razão de
serviços prestados ao companheiro e de seu trabalho pessoal para aquisição de patrimônio
comum. Mas, não é percebida pelo Direito nem como mulher nem como companheira que —
em sentido etimológico é aquela que come do mesmo pão (cum panis). Comem do mesmo
pão aqueles que são iguais. Mas a concubina não é companheira, não tem direito a alimentos,
à meação, à sucessão.
O princípio da igualdade entre homem e mulher elevado à condição de direito fundamental
pela Constituição repele a discriminação e o tratamento desigual que o Código Civil, boa
parte da doutrina e da jurisprudência dispensam à companheira acoimada de concubina. Por
certo, chegará o tempo que desta injusta discriminação se tenha vergonha como, hoje, de fato,
tem-se como vexatória a discriminação que, até bem pouco tempo, juristas de escol
impunham aos então designados filhos ilegítimos.
Parece incompatível aplicar pura e simplesmente à família contemporânea os princípios
que justificaram e legitimaram a família de modelo de inspiração patriarcal tendente, hoje, à
extinção. A emancipação da mulher ganhou expressão, também, nas normas constitucionais
que consagraram os princípios da igualdade entre homens e mulheres e na direção diárquica
da família (Constituição Federal, art. 5º, inciso I e art. 226, § 5º). A condição legal de
subalterna atribuída à concubina e as implicações de exclusão da tutela jurídica trazidas pelo
princípio da monogamia parecem reforçar o modelo patriarcal da família e desconsideram o
novo lugar em larga escala já conquistado pela mulher. Ela não pode estar enumerada entre as
posses do homem como o estatuto do concubinato pretende perpetuar.
235

As questões até aqui levantadas em torno do princípio da igualdade entre o homem e a


mulher e as injustificáveis discriminações em relação a esta ganham maior clareza e
amplitude, quando abordada a temática referente à igualdade entre as entidades familiares em
suas plúrimas manifestações. Na verdade, a igualdade interna e aquela relativa às entidades
familiares estão mutuamente imbricadas. Em todo caso, igualdade e diversidade estão
presentes em salutar paradoxo.

4.5.2 Famílias: igualdade e pluralidade

Não é sem razão que os compêndios de Direito de Família estão perdendo este título no
singular, consagrado há séculos, para identificarem-se no plural como Direito das Famílias.644
É o reconhecimento de que não existe mais “a” família. Atualmente, só é possível falar de
famílias. Esta nova concepção, todavia, não se instalou de um momento para outro com a
promulgação da Constituição de 1988. A superação do modelo unitário de família
matrimonializada operou-se a duras custas e com não pouca resistência, como referido no
capítulo dois. Gustavo Tepedino, em texto intitulado Novas Formas de Entidades Familiares,
dividiu em três fases a evolução do tratamento legislativo e jurisprudencial das entidades
familiares não fundadas no casamento, ressaltando que esta evolução além de conturbada
nunca foi linear. A primeira fase seria a da estigmatização pura e simples do concubinato,
atribuindo-lhe quando muito efeitos com amparo no direito obrigacional. Na segunda fase, o
concubinato já alcançaria a condição de atividade lícita desde que não adulterino, outorgando-
se ao mesmo consequências jurídicas na área assistencial, previdenciária e locatícia. E a
terceira fase corresponderia à da tutela constitucional das entidades familiares.645
A chave para se entender a razão do estabelecimento de uma pluralidade de famílias em
substituição ao modelo único encontra-se no conceito de função. Como bem reconheceu
Gustavo Tepedino, a disciplina jurídica das entidades familiares na última fase por ele
apontada terá como base os valores constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa
humana é que ditará o conteúdo para a proteção da família, isto é, a pessoa humana e o
desenvolivmento de sua personalidade. A proteção especial endereçada à família opera-se em
razão de seu papel na proteção da dignidade humana e está condicionada à realização desta
função. Consequentemente, “merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade
familiar que efetivamente promova a dignidade e a realização da personalidade de seus
644
Apenas para citar dois exemplos, Paulo Luiz Netto Lôbo intitulou, assim, sua obra: Direito Civil: Famílias. Maria
Berenice Dias identificou seu trabalho com a designação: Manual de Direito das Famílias.
645
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001. (p.327-348) p. 329
236

componentes”.646 A função constitucional atribuída à família é que abre margem à sua


concepção plural. Se não é à família surgida do matrimônio que se confere tutela especial,
mas, sim, àquela que realiza a função que lhe é atribuída pela Constituição, desmorona o
modelo único. “Nos dias de hoje, o que identifica a família não é nem a celebração do
casamento nem a diferença de sexo do par ou o envolvimento de caráter sexual. O elemento
distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo
afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando
compromissos mútuos.”647
Sobre a funcionalização da família à realização da dignidade da pessoa humana e ao
desenvolvimento da personalidade daqueles que a integram e a consequente pluralização das
entidades familiares, consignou com precisão Rose Melo Vencelau Meireles:
A funcionalização dos institutos jurídicos mostra-se de fundamental importância na metodologia do
direito civil constitucional. A partir dessa concepção, a família compreende-se como locus
instrumental ao desenvolvimento da personalidade de cada um de seus membros. Denomina-se, por
esta razão, família-instrumento. Por conseguinte, necessária a reflexão acerca da pluralidade das
entidades familiares, na medida em que a Constituição da República admite o pluralismo como valor
a ser promovido, mas algumas formações sociais ainda enfrentam óbice quanto à qualificação como
família.648

A resistência às novas formas de constituição de família deve-se à fixação de boa parte dos
juristas em um modelo que tinha como referências o matrimônio e a consanguinidade.
Conquanto a admissão jurídica do pluralismo familiar seja mais recente, há muito outras áreas
do conhecimento como a sociologia, a psicologia e a antropologia já trabalhavam com a
concreta multiplicidade das conformações familiares. Já em 1989, Paulo Luiz Netto Lôbo,
apontava — com amparo nos estudos da demografia e da estatística, realizados pelo IBGE,
por meio da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (PNAD) — que a estruturação
das relações familiares no Brasil estava bem distanciada do modelo legal. 649 Em outro texto,
que tornou-se um referencial para vários estudos que lhe seguiram, Paulo Luiz Netto Lôbo,
procura demonstrar que não existe hierarquia entre formas de constituição de família, para,
em seguida sustentar a tese de que as entidades familiares citadas na Constituição Federal
(casamento, união estável e família monoparental) não conformam rol taxativo, mas, sim,

646
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil... p. 328-329.
647
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 44.
648
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Em busca da nova família: uma família sem modelo. In: TEPEDINO, Gustavo;
FACHIN, Luiz Edson. (Orgs.) Pensamento crítico do direito civil brasileiro. Curitiba: Juruá. 2011. (415-426) p. 415.
649
LÔBO, Paulo Luiz Neto. A repersonalização das relações de família. In: BITTAR, Carlos Alberto (Coord.). O direito de
família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 53-81.
237

meramente, exemplificativo das múltiplas formas de se constituir família.650 A segunda tese,


isto é, que o rol constitucional não é taxativo, pode ser considerada, atualmente, como
vencedora. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADIn 4277 e a ADPF
132,651 reconheceu como união estável aquela formada entre pessoas do mesmo sexo. Já a
questão da igualdade entre as diversas formas de constituição de família tem-se apresentado
como tema ainda mais polêmico e controverso.
Cumpre, antes de se fazer incursão no tema da igualdade entre as diversas entidades
familiares, sublinhar que igualdade, também, neste campo, não equivale a igualitarismo.
Alguns juristas, impulsionados pelo ideal da igualdade, pretendem a equiparação da união
estável ao casamento. A união estável constitui entidade familiar diversa daquela originada do
casamento. Transferir todas as peculiaridades e efeitos do casamento para a união estável
constitui um equívoco. A união estável restaria enclausurada em uma moldura indesejável652
e, o casamento, por sua vez, restaria desprovido de sentido e espaço próprio, porque a união
estável teria sorvido para si todos os seus atributos e peculiaridades.
A inexistência de hierarquia entre as diversas formas de entidade familiar, na perspectiva
do Direito Civil-Constitucional, parece ser uma decorrência necessária da função que à
família é atribuída. Se ela não é tutelada como um valor em si, não parece razoável que uma
determinada família, em razão da valoração de sua estrutura, receba maior apreço jurídico do
que outra. Nesta direção parece indicar o pensamento de Pietro Perlingieri: “O princípio
pluralista, em conexão com o valor jurídico da pessoa incide sobre a fisionomia do modelo de
Estado, inscrevendo o papel das formações sociais no âmbito das relações entre o indivíduo e
o Estado. As formações sociais assumem a fisionomia das comunidades intermediárias,
representam o ‘local’ natural do exercício da personalidade e realizam a ligação com o
Estado, que persegue como finalidade primeira a realização do valor-pessoal.”653 No novo
tratamento dado à família, não cabe valoração em razão de sua estrutura, mas tão somente em
razão da função. Esta perspectiva está claramente explicitada no pensamento de Perlingieri,

650
Id. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.).
Família e cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. (p. 89-107).
651
No dia 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, julgando a ADPF 132 e a ADI 4277, reconheceu a união
homoafetiva – aquela formada por pessoas do mesmo sexo – como entidade familiar e sendo que dela devem decorrer todos
os direitos e deveres que emanam da união estável entre homem e mulher, consagrada no art. 226, § 3º da Constituição e no
art. 1.723 do Código Civil (Acórdão ainda não publicado).
652
A respeito bem ponderou Pietro Perlingieri: “A intervenção do legislador neste setor deve ser evitada, não somente porque
a reflexão da doutrina e da jurisprudência sobre o tema ainda não está madura, mas também porque a própria concepção da
família não fundada no casamento exige liberdade em relação a um enfoque dirigista que freqüentemente configura, para os
direitos da pessoa e para as liberdades individuais, vínculos que não são necessários para uma convivência correta, normal e
civil.” (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 990)
653
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 466.
238

pois, afirma que “não é possível estabelecer uma igualdade de valoração entre pessoa e
formação social, reconhecendo a esta última um valor em si: a formação social, reconhecendo
a esta última um valor em si: a formação social tem valor constitucional somente se atender à
função do livre desenvolvimento da pessoa.”654 Sendo assim, uma dada união estável pode
cumprir melhor sua função que um determinado casamento. Ou uma certa união homoafetiva
pode melhor se prestar ao desenvolvimento da personalidade de seus integrantes que uma
determinada relação heterossexual.
Não há, portanto, como se referir à superioridade intrínseca de uma espécie de
conformação familiar, salvo se o critério for de natureza patrimonial e esteja em questão a
segurança de negócios jurídicos realizados com terceiros. Neste caso, em razão da publicidade
e das formalidades do casamento, não há dúvida de que se presta a dar maior segurança às
relações de natureza obrigacional que cada um dos cônjuges estabelece com terceiros. Porém,
certo é que, na ordem constitucional, a família é tutelada sobretudo em razão de sua função de
espaço privilegiado para o desenvolvimento das potencialidades humanas de seus membros e
não em razão de fatores de natureza patrimonial.
Colocadas estas bases para a reflexão, cumpre, neste passo, verificar se a regra da
monogamia — como estatuto de exclusão de tutela das famílias que se formam
simultaneamente a outras já existentes — resiste à força normativa do princípio da igualdade
aplicado ao Direito de Família e, especialmente, a entidades familiares diversas, quando estas
coexistem e são integradas por uma mesma pessoa, geralmente, o homem.
Partindo da premissa de que todas as entidades familiares são iguais, inexistindo hierarquia
entre elas, impõe-se a pergunta: Se duas ou mais entidades familiares se estabelecem
paralelamente, configurando o que a doutrina denomina, ordinariamente, de concubinato
adulterino, atendendo, porém, cada qual adequadamente sua função constitucionalmente de
promover a dignidade e o desenvolvimento da personalidade daqueles que as integram, que
razão poderia ser invocada para justificar o reconhecimento jurídico de uma e a negação da
existência e efeitos jurídicos da outra?
Podem existir razões de ordem moral, religiosa, cultural baseadas na regra da monogamia
para se proceder à censura de famílias simultâneas, mas o princípio constitucional da
igualdade aplicado às entidades familiares, com parâmetro na garantia da dignidade da pessoa
humana, não admite este discrímen. A funcionalização das famílias à realização de um fim fez

654
Ibid. p. 466
239

desaparecer a hierarquização entre entidades familiares, tornando-as todas merecedoras de


especial tutela do Estado, desde que e, na medida em que, realizem sua função.
O princípio da igualdade, portanto, repele o critério de exclusão haurido da regra da
monogamia, porque tal regra é direcionada, precipuamente, não à proteção da dignidade
humana, mas, sim — como bem já sinalizaram tantos autores desde os estudos de Morgan e
de Engels — à tutela de uma instituição demarcada pela dominação masculina e que tem
como finalidade a proteção, conservação e transmissão do patrimônio para a linhagem do
homem.
Poder-se-ia arguir que a aplicação do princípio da igualdade, assim proposta, redundaria
em insegurança jurídica, pois, concedida paridade de tutela a famílias que se formam em
razão de conjugalidades simultâneas, as certezas em relação às situações subjetivas de
natureza patrimonial, típicas das famílias matrimonializadas, não teriam lugar. Não há como
negar essa consequência. Contudo, a incerteza é inerente às conformações plúrimas das
famílias contemporâneas. A título de exemplo, basta mencionar a questão das relações
paterno-filiais em tais famílias. 655 A paternidade, em inúmeros casos, tem sido estabelecida
em relação ao novo companheiro da mãe, nas famílias recompostas. A posse de estado de
filho por vezes não coincide e nem se estabelece vinculada àquele que é o genitor ou
ascendente genético da criança. O modelo matrimonializado de família repelia
veementemente esta possibilidade, tanto pela presunção pater is est, como, também, pela
regra da indissolubilidade do vínculo matrimonial. Com o advento do divórcio, o
desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida e a reconfiguração do estatuto da
adoção, tudo que era, pelo menos aparentemente sólido e estável passou a ser imprevisível,
mutante,656 e, portanto, desafiador para a disciplina jurídica da filiação. O fato de o princípio
constitucional da unicidade da filiação — com o decorrente princípio da inocência da filiação
— trazer instabilidade e incerteza ao sistema de filiação, consolidado pela codificação de
1916, não tem, por si, a força de desprestigiar o princípio em si.

655
“Pensar sobre a filiação e o estabelecimento da paternidade corresponde a refletir sobre o sistema jurídico da família e o
desenho normativo de um dos princípios fundamentais da sociedade. (...) Agora, não é mais possível negar um novo
horizonte, inquietante, interrogativo, batendo às portas cerradas do sistema clássico que ainda vigorante agoniza. O medievo
que emoldura os institutos da manutenção do status quo se mostra em pânico. O civilismo neutro se assimilou ao servilismo
burocrata doutrinário e jurisprudencial e não conseguiu disfarçar que não responde aos fatos e às situações que brotam da
realidade contemporânea. Os filhos não-matrimoniais se apresentam para reclamar seus direitos e sair do confinamento
imposto.” (FACHIN, Luiz Edson. A nova filiação – crise e superação do estabelecimento da paternidade. In: PEREIRA,
Rodrigo da Cunha. Repensando o direito de família – Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família. Repensando.
Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 123-133. p. 123).
656
“Como a filiação, a partir da Constituição de 1988, restou desvinculada de quaisquer considerações quanto à
matrimonialidade da união dos pais, hoje, pouco importa se os filhos são frutos de uma relação fundada em casamento, de
uma união estável, de uma união passageira, ou ainda de nenhuma união” (SILVA, Marcos Alves da. Do pátrio poder à
autoridade parental: repensando fundamentos jurídicos da relação entre pais e filhos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 79)
240

Assim, também, não parece razoável que uma dada perspectiva generalizante de segurança
jurídica se anteponha ao princípio da igualdade para, sob os auspícios da regra da monogamia,
tornar inexistente juridicamente uma família que como tal existe de fato. E, se existe, a ela é
assegurado por princípio constitucional o tratamento isonômico em relação à outra família
que antes dela já se havia configurado.
O princípio da igualdade, nesta mesma direção, suscita questionamento sobre a
coexistência de duas uniões estáveis, com a participação em ambas de um mesmo
companheiro — para que a hipótese fique mais rente ao que comumente ocorre. O que
configura a união estável não é uma prévia e solene declaração de vontade, trata-se antes de
uma relação de fato à qual o Direito empresta efeitos jurídicos. E não se pode desprezar o fato
bem percebido por Luiz Edson Fachin de que “difundem-se, ainda, uniões não
matrimonializadas sob o manto da injusta estrutura sócio-econômica, fomentadas em largas
faixas da população pobre, como uma expressão das condições reais nas quais não casar é
menos uma vocação de ruptura e mais uma opção tácita imposta pela dureza da vida”.657 A
causa de uniões estáveis simultâneas, especialmente nos casos de mulheres pobres, não se
ancora em uma deliberação de transgressão à regra da monogamia, assenta-se, pois, no que
Fachin denominou opção tácita imposta pela dureza da vida.
Por certo, a expressão opção é apenas metafórica. Não pode equivaler, por exemplo, à
manifestação de vontade do consumidor, que consente em relação às obrigações que lhe são
impostas em um contrato de adesão. Seria mesmo desumano e abjeto transpor para o âmbito
das situações subjetivas existenciais noções que são próprias do negócio jurídico obrigacional.
Especialmente, nas circunstâncias em que a tragédia da vida se mostra mais desumana —
levando as pessoas a se agarrarem aos poucos fios de esperança possíveis para alcançar
mínima dignidade — os desiguais, os que estão à margem, devem ser aquinhoados com o
reconhecimento de sua existência, que não se constitui apartada, mas, sim, no seio de uma
formação social, a família, que por essa mesma razão, e tão somente por ela, é merecedora de
especial proteção do Estado.
O princípio da igualdade, no Estado democrático de direito, constitui elemento sine qua
non ao objetivo posto à República: erradicar a marginalização. Em inúmeros casos apreciados
pelos tribunais, ainda que, subliminarmente, a regra da monogamia se põe como obstáculo à
realização efetiva do princípio da igualdade. A predominância da regra da monogamia tem-se

657
FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família – curso de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
p. 62.
241

prestado a intensificar a desigualdade e, fundamentalmente, a marginalização da mulher em


situação de vulnerabilidade sócio-econômica.
Se a monogamia, como regra jurídica impositiva, não se coaduna com o princípio da
igualdade, também, demonstra-se incompatível em face do principio da liberdade aplicado às
situações subjetivas existenciais.

4.6 O princípio da liberdade: autonomia privada nas situações subjetivas existenciais e


a monogamia

O princípio constitucional da liberdade ultrapassa, contemporaneamente, o sentido


marcadamente patrimonialista que lhe foi dado em sua moderna construção. Para captar sua
força emancipatória e passar a monogamia por seu crivo, necessário é reconhecer o percurso
de sua conformação jurídica e as potencialidades de sua interpretação/aplicação nas relações
privadas, 658 especialmente naquelas referentes às situações subjetivas existenciais.
Todo o arcabouço do Direito Civil moderno foi construído a partir de uma perspectiva
patrimonialista, conjugando ou vinculando a noção de liberdade ao de propriedade e o
conceito de liberdade contratual à ideia de autonomia da vontade que, por sua vez, está
enraizada na própria ênfase proprietária.

4.6.1 A liberdade: do arranjo contratualista à autonomia da vontade em Kant

Os conceitos jurídicos de liberdade, autonomia da vontade, autonomia privada, autonomia


negocial encontram sua fonte primária nas teses dos filósofos contratualistas. Para os fins
propostos, suficiente é a referência a John Locke. Para ele, a propriedade constitui noção
preliminar a explicar a própria noção de liberdade básica do ser humano em relação a si
mesmo.
Pressuposto básico da liberdade é que o homem tem propriedade sobre si mesmo. Sendo
senhor de si, o trabalho que desenvolve retira as coisas do estado comum em que a natureza as
deixou. Ao misturar-se às coisas, o labor humano agrega a elas algo que é do próprio homem.
Ao assim proceder, estaria o homem subtraindo as coisas do estado comum outorgado pela
natureza, de tal sorte que o seu trabalho, ao incidir sobre elas, lhes dá uma nova substância,

658
Sobre o tema, ver tese de Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk que propõe a superação de uma noção jurídica unívoca de
liberdade e faz crítica à concepção da autonomia privada de matriz patrimonialista, tomando a liberdade como conceito
plural, descolada da noção de autonomia privada do sujeito proprietário, para perceber a(s) liberdade(s) na dimensão
funcional do direito nas experiências de coexistenciais. ( RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Institutos
fundamentais do direito civil e liberdade(s): repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e
da família. Rio de Janeiro: GZ, 2010).
242

excluindo-as do domínio comum dos demais seres humanos e fazendo-as propriedade sua.659
Dito de forma diversa: sendo o homem senhor de si e tendo, por seu trabalho, agregado às
coisas algo de si, delas se torna proprietário.
Todavia, no estado de natureza, é ao homem impossível assegurar a propriedade que
conquistou pelo trabalho. Em tal estado, cada qual é senhor absoluto de si, logo, não haveria
como limitar a intervenção na propriedade alheia, instaurar-se-ia situação de instabilidade da
propriedade. Daí a necessidade de se passar do estado de natureza à sociedade civil. 660 Locke
dirá que a sociedade civil tem como fim principal “a preservação da propriedade”, 661 ou “o
objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidades, colocando-se
eles sob governo, é a preservação da propriedade.”662
Vê-se, pois, que no nascedouro da liberdade moderna encontra-se a noção de propriedade.
O Estado encontra sua justificativa fundamental e seu limite 663 na tutela da propriedade. A
passagem ao estado de sociedade, ao império da lei, somente é possível para homens livres,
que renunciem de bom grado a liberdade absoluta, para viver sob as regras estabelecidas por
um contrato social que visa proteger a propriedade que cada qual, por seu labor, conquistou.
A lei e seu executor (o governo) asseguram e delimitam o campo em que cada qual poderá
exercer seu direito à propriedade privada e, em última instância, garantir a própria liberdade.
A vinculação entre liberdade, Estado e propriedade é feita de forma clara por Locke. Para
ele, o objetivo da lei não é abolir ou restringir a liberdade, mas, ao contrário, potencializá-la e
ampliá-la. Sustenta que não existindo lei não existe liberdade. Isto porque não existirá
liberdade se houver ocasião para violência ou restrição perpetrada por terceiros. Desta forma,
a liberdade não é uma licença desmedida para aquele que é livre realizar o que bem lhe
aprouver. Quem seria livre se potencialmente pudesse ser submetido a capricho de terceiros?

659
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. 3 ed., (Série Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 45.
660
“Se o homem no estado de natureza é tão livre, conforme dissemos, se é senhor absoluto da sua própria pessoa e posses,
igual ao maior e a ninguém sujeito, por que abrirá ele mão dessa liberdade, por que abandonará seu império e sujeitar-se-á ao
domínio e controle de qualquer outro poder? Ao que é óbvio responder que, embora no estado de natureza tenha tal direito,
a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta à invasão de terceiros porque, sendo todos reis tanto
quanto ele, todo homem igual a ele, e na maior parte pouco observadores da equidade e da justiça, a fruição da propriedade
que possui nesse estado é muito insegura, muito arriscada. Essas circunstâncias obrigam-no a abandonar uma condição que,
embora livre, está cheia de temores e perigos constantes; e não é sem razão que procura de boa vontade juntar -se em
sociedade com outros que estão já unidos, ou pretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens a
que chamo de ‘propriedade’”. (LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. p. 82).
661
LOCKE, op. cit., p. 66.
662
LOCKE, op. cit., p. 82.
663
“...o poder supremo não pode tirar a qualquer homem parte da sua propriedade sem consentimento dele; porquanto, sendo
a preservação da propriedade o objetivo do governo e razão de entrarem os homens em sociedade, supõe e exige
necessariamente que o povo deva ter propriedade; sem o que ter-se-á que supor tenham de perder, entrando em sociedade,
aquilo que formava o objetivo para o qual a fizeram — absurdo por demais flagrante para que qualquer um o admita.”
(LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. p. 88)
243

Logo, a liberdade é a de “dispor e ordenar, conforme lhe apraz, a própria pessoa, as ações, as
posses e toda a sua propriedade, dentro da sanção das leis sob as quais vive, sem ficar sujeito
à vontade arbitrária de outrem, mas seguindo livremente a própria vontade”. 664
Há, porém, uma questão que Locke só aborda superficialmente. Como explicar a
propriedade que é conquistada e aumentada mediante trabalho escravo ou assalariado? O livre
exercício da propriedade, nesses casos, dá-se mediante a anulação (escravidão) ou limitação
(trabalho assalariado – subordinação) da liberdade de outros.665 Fato é que esta vinculação da
liberdade à propriedade ganhou expressão prática e visibilidade explícita na legislação de
várias repúblicas que se inspiraram nos ideais da Revolução Francesa. 666
Captado este fundamento primeiro da concepção moderna e contratualista da liberdade,
importa passar à análise da absorção, no discurso jurídico, das construções filosóficas acerca
da liberdade, com destaque para a concepção kantiana.
A liberdade constituiu um dos primados do Direito moderno. Desde Kant, a liberdade está
intimamente vinculada à noção de dignidade e, portanto, à autonomia (auto-regulação) da
pessoa humana. A autonomia aparece em Kant sempre vinculada à noção de moralidade.
Assim sustenta que “a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um
fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino dos fins.
Portanto, a moralidade e a humanidade, enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas
que têm dignidade.”667 Daí extrai a conhecida assertiva consignada em sua Fundamentação
da Metafísica dos Costumes: “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade.
Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente;
mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto não permite equivalente, então
tem ela dignidade.”668
A dignidade humana revela-se na moralidade que só existe se presente o livre arbítrio. E
este somente pode ser determinado pela razão pura, pois, quando prevalente o impulso
sensível, derivado de estímulos exteriores, tem-se o arbritrium brutum, isto é, animal. “O

664
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. p. 56.
665
Sobre o tema, cujo aprofundamento transborda os limites da tese, ver: COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito,
moral, religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 220 – 227.
666
Os mendigos, por exemplo, estavam excluídos do processo eleitoral, nos termos do art. 70 da Constituição brasileira de
1891. (“Art. 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei. § 1º - Não podem alistar-se
eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados: 1º) os mendigos;...”). Subjacente está a seguinte ordem de ideias :
aquele que de nada é proprietário não pode sequer instalar-se entre os que outorgam poder para a regulamentação do direito
proprietário, que é o fim principal do Estado, segundo a doutrina de Locke.
667
KANT, Immanuel. Critica da razão pura e outros textos filosóficos. (Os pensadores - v. 25) São Paulo: Abril Cultural,
1974. p 234. O texto citado encontra-se na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
668
Ibid. p 234.
244

arbítrio humano, contudo, é uma escolha que, embora possa ser realmente afetada por
impulsos, não pode ser determinada por estes, sendo, portanto de per si (à parte de uma
competência da razão) não pura, podendo, não obstante isso, ser determinada às ações pela
vontade pura”.669 Assim, para Kant, a liberdade no sentido negativo se revelaria pela
possibilidade de independência de ser determinada por impulsos sensíveis. Já o sentido
positivo da liberdade se evidencia na “capacidade da razão pura ser, por si mesma, prática”, o
que só é possível “pela sujeição da máxima de toda ação a uma lei universal”. 670 Da razão é
que emanam imperativos categóricos, como máximas de validade universal, que determinam
ou vedam as ações.
Kant, opondo as leis da liberdade às da natureza, chama as primeiras de morais. Quando
estas são dirigidas meramente a ações externas e sua conformidade com a lei são enquadradas
como leis jurídicas. Da adequação às leis jurídicas tem-se a legalidade. Já a conformidade às
leis determinadas pela razão, isto é, éticas, denomina-se moralidade.671 Daí conclui Kant que
“uma pessoa é um sujeito cujas ações lhe podem ser imputadas. A personalidade moral não é,
portanto, mais do que a liberdade de um ser racional submetido a leis morais. (...) Disto
resulta que uma pessoa não está sujeita a outras leis senão àquelas que atribui a si mesma
(isoladamente ou, ao menos, juntamente com os outros).”672 Esta noção kantiana da
personalidade como liberdade racional e centro de imputações foi absorvida pelo discurso
jurídico com vivo entusiasmo, sendo convertida em lugar comum quase inquestionável.
Da premissa da autonomia Kant extrai sua conhecida máxima: “O princípio supremo da
doutrina dos costumes é, portanto: age com base em uma máxima que pode também ter
validade como uma lei universal. Qualquer máxima que não seja assim qualificada é contrária
673
à moral”. A noção de autonomia da vontade foi trasladada para o discurso jurídico com
algumas distorções,674 para ajustar-se e justificar necessidade específica no projeto liberal.

669
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. 2. ed., Bauru: Edipro, 2008. p. 63.
670
Ibid. p. 63.
671
Fez Kant distinção entre ética e direito. Entre as distinções por ele estabelecidas está a de que a “legislação que faz de uma
ação um dever, e também faz deste dever o motivo , é ética. Porém, a legislação que não inclui o motivo do dever na lei e,
assim, admite um motivo distinto da ideia do próprio dever, é jurídica.” (KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes...
77).
672
KANT, op. cit., 562, p. 66.
673
KANT, op. cit., 562, p. 68.
674
Ao tratar da construção jurídica oitocentista do que se denominou autonomia da vontade, Judith Martis-Costa indica que
para o sucesso de tal formulação “foram adotados e distorcidos alguns postulados kantianos atinentes à ‘liberdade
individual’, liberdade natural e moral de querer ou de determinar-se de tal ou qual modo, identificando-se a busca do
fundamento do poder objetivamente reconhecido aos sujeitos, pelo ordenamento, de criar normas jurídicas (poder negocial,
como a vontade real ou psicológica dos sujeitos para criar normas jurídicas, vontade que, nesta acepção, seria a raiz ou causa
dos efeitos jurídicos).” (MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e solidariedade social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas
245

Captou-se o invólucro, pois, de fato, Kant sustentava que “autonomia da vontade é aquela sua
propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos
objetos do querer).” Mas esclarece em seguida: “O princípio da autonomia é, portanto: não
escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no
querer mesmo, como lei universal.”675 Vê-se, pois, que enquanto a reflexão kantiana reporta-
se ao fundamento da razão prática, a captação jurídica de seu conceito de autonomia da
vontade fazia referência à vontade real ou psicológica dos sujeitos criarem normas, pela
manifestação desta vontade. Tratam, a olhos vistos, de coisas completamente diversas. Fato
incontestável é que houve uma apropriação jurídica da concepção originalmente filosófica.

4.6.2 O conceito jurídico de autonomia privada: sua ressignificação contemporânea

Como já referido, a noção jurídica de autonomia privada, no Direito Civil moderno, foi
construída a partir da perspectiva liberal. Pressupõe que a função precípua do Estado é
assegurar a liberdade individual, porque o livre exercício dos interesses econômicos
individuais garantiria, espontaneamente, a racionalização do processo produtivo.676 Nesta
ordem de ideias, o interesse público fica reduzido à garantia “das melhores condições para o
exercício e expansão dos interesses privados”. 677
A autonomia privada está assim, umbilicalmente, vinculada à noção de propriedade
privada e o poder de disposição sobre os bens, isto é, o negócio jurídico. 678 O direito de

relações de consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: RT, 2002. (p.
611-661) p. 614 e 615).
675
KANT, Immanuel. Critica da razão pura e outros textos filosóficos. (Os pensadores - v. 25) São Paulo: Abril Cultural,
1974. p 238.
676
Judith Martins-Costa, retomando ilações de Ascarelli e Natalino Irti, afirma que infiltrou-se num determinado senso
comum, por ignorância ou clandestinidade, a concepção naturalista do mercado e, por assim dizer, artificial da
normatividade. Nesta concepção naturalista do mercado, este se rege por leis assemelhadas às da natureza. “Seria o mercado
o regime natural das relações econômicas”. (MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e solidariedade social entre cosmos e
taxis: a boa-fé nas relações de consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A reconstrução do direito privado. São
Paulo: RT, 2002. (p. 611-661) p. 614). A autora sublinha que para a concepção liberal o mercado estaria na ordem do
cosmos, porque, na ficção liberal, seria uma ordem espontânea, e não seria taxis, que é a ordem resultante de imposição
exógena. Daí resulta o reforço das dicotomias: economia e política, sociedade civil e Estado.
677
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982. P. 28.
678
Rosalice Fidalgo Pinheiro refere-se à estática e à dinâmica da autonomia privada. Assim, na “perspectiva estática, a
autonomia privada encontra no direito de propriedade o mais ilimitado dos direitos subjetivos”. Como não existe propriedade
sem a liberdade de transferi-la, a autonomia privada ganha sua dimensão dinâmica nos contratos: “Ao delinear o negócio
jurídico como declaração de vontade destinada a produzir efeitos jurídicos, a civilística clássica elevou a vontade a elemento-
chave de sua definição. Por trás das vontades estão os indivíduos, abstraídos de suas desigualdades substanciais, o que fez do
negócio jurídico ‘um formidável instrumento ideológico’ à satisfação dos interesses da burguesia oitocentista. Em última
instância, isso significa que o negócio jurídico revela-se como instrumento da autonomia privada e a afirmação da liberdade
individual”. (PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Autonomia privada e estado democrático de direito. In: CLEVÉ, Clérmerson
Merlin, SARLET, Ingo Wolfgang & PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro:
Forense, 2007. (p. 481-506) p. 494 e 495.
246

propriedade e a autonomia negocial são exercidos por um sujeito de direito, pressuposto livre.
A noção de autonomia privada é conditio sine qua non para a passagem do feudalismo ao
capitalismo. Superadas a vinculação à terra e aos estamentos feudais, todos passam
necessariamente à condição de potenciais proprietários e o serão ou dos meios de produção ou
da força de trabalho. A liberdade econômica é apresentada como necessária à ordem
capitalista.
Neste sentido mais restrito, a autonomia privada corresponde à liberdade negocial e ganha
expressão “no poder reconhecido pela ordem jurídica ao homem, prévia e necessariamente
qualificado como sujeito jurídico, de juridicizar a sua atividade (designadamente, a sua
atividade econômica), realizando livremente negócios jurídicos e determinando os respectivos
efeitos.”679
Por outro lado, na perspectiva liberal, a lei e o Estado funcionam apenas como
moderadores da autonomia da vontade. Na verdade, são instituídos para assegurar o exercício
da propriedade e, consequentemente, da autonomia e da liberdade dos indivíduos, convertidos
em sujeitos de direito. A liberdade que desta acepção decorre é a liberdade negativa
insculpida no princípio jurídico consagrado em todas as legislações modernas: “Ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. 680
Da autonomia privada — e a ela intimamente ligado — decorre o conceito jurídico de
autonomia negocial. A autonomia privada seria a expressão da liberdade jurídica que se
viabiliza e se efetiva por intermédio do negócio jurídico. O negócio jurídico é, portanto, por
excelência, o instrumento de concretização da autonomia privada. 681 Sob a égide do Estado
liberal, confere-se à vontade o papel de auto-regular os interesse privados, da forma mais livre
possível de ingerência estatal. A partir desta concepção, por mínima que fosse a intervenção
do Estado no domínio econômico, em última ratio, haveria violação da liberdade do
indivíduo, pois a autonomia privada tinha sua maior expressão na liberdade negocial,
assentada no individualismo proprietário.
Por diversas razões — das quais, neste espaço, não comportam referência detalhada — o
mito da ordem natural do mercado, forjado pela ideologia liberal, veio por terra. Tornou-se
evidente que não existe mercado a não ser como resultado de decisões políticas e de
definições legislativas de uma dada sociedade. Ao contrário do que o modelo naturalista

679
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada... p. 11.
680
Este princípio encontra-se consignado no inciso II do art. 5º da CF. Ele consagra explicitamente o princípio da legalidade
e implicitamente o principio da liberdade (negativa).
681
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 69.
247

queria fazer crer, o mercado nada mais é que “‘o regime normativo da atividade econômica’,
ou, mais amplamente, o estatuto jurídico das relações econômicas”. 682
O fracasso do estado liberal suscitou a legitimidade do Estado. Não é ele mais o simples
garantidor da ordem resultante da “mão invisível” que conjuga e harmoniza os contraditórios
interesses egoísticos. O Estado social apresenta-se não como mero espectador. Toma a si
função substantiva e teleológica de viabilizar a distribuição dos recursos econômicos e a
renda, dirigindo a sociedade à realização de determinados fins eleitos pelo estatuto
constitutivo da República. Esta alteração tem implicações para a superação das dicotomias
estritas entre Direito Público e Direito Privado, ordem econômica e ordem política.
O princípio da solidariedade social é apontado por Judith Martins-Costa como o fator
fundamental para a alteração da perspectiva. 683 Se o Estado liberal se moldou a partir do
primado da autonomia da vontade, o Estado democrático de direito estrutura-se, tendo como
base os direitos fundamentais.684 Este câmbio radical, que, no Brasil, tem como referência
legislativa a Constituição Federal de 1988, não implica, todavia, a supressão da autonomia
privada. Ocorre que agora ela — a autonomia privada — encontra seu fundamento não mais
no individualismo proprietário, na igualdade formal fixada por meio da abstração de um
sujeito de direito universalizado e fictício. Na nova ordem constitucional, a autonomia privada
tem sua razão de ser no princípio da dignidade da pessoa humana.
A Constituição Federal tutela a autonomia privada, posto que assegura a livre iniciativa
(art. 1º, inciso IV) e o livre exercício das atividades econômicas a todos (art. 170). Ela o faz,
todavia, funcionalizando tal autonomia à dignidade da pessoa humana, à preservação do meio
ambiente, à defesa do consumidor, à redução das desigualdades sociais. A autonomia privada
não desaparece. Ao contrário, é ressignificada e reforçada. Segundo Rosalice Fidalgo
Pinheiro, funcionalizar a autonomia privada “implica, em última instância, conformá-la à
dignidade da pessoa humana, repersonalizando, ou ainda, despatrimonializando aquele

682
MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e solidariedade social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de consumo. In:
MARTINS-COSTA, Judith (org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: RT, 2002. (p. 611-661) p. 617.
683
“Há, portanto, uma relação íntima entre mercado e solidariedade social. Esta é norma conformadora daquele, tanto quanto
a valorização da iniciativa privada e do trabalho, dissolvendo-se, nesta perspectiva, a antinomia entre a valorização do
trabalho e da livre iniciativa, pois ambas se devem conjugar em atenção ao fim comum que as polariza, qual seja a construção
de uma sociedade solidária.” (MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e solidariedade social entre cosmos e taxis... p. 620).
684
Como registrou Rosalice Fidalgo Pinheiro, “A ‘hipertrofia da autonomia da vontade’, delineada no Estado de Direito
liberal como tradução da liberdade individual tão somente econômica, cede lugar diante de outra ‘hipertrofia’, constituída
pelos direitos fundamentais, no Estado Democrático de Direito. Trata-se de tornar evidentes os contornos de uma ordem
objetiva de valores, atribuída a esses direitos, como fundamento de todo o ordenamento jurídico.” (PINHEIRO, Rosalice
Fidalgo. Autonomia privada e estado democrático de direito... p. 503).
248

princípio.”685 Na conjugação dos princípios da igualdade substancial, da solidariedade e do


pluralismo democrático, a liberdade liberta-se das amarras do individualismo proprietário, seu
berço moderno, para encontrar razão de ser na própria dignidade da pessoa humana.
Em lugar de desaparecer, a autonomia privada instala-se com novos e mais profundos
sentidos e alcance no ordenamento jurídico de índole constitucional. 686 Em razão da nova
feição adquirida nesta virada denominada copernicana, a autonomia privada deixou de ser
pensada apenas da perspectiva patrimonialista. As situações subjetivas existenciais são
visualizadas como locus privilegiado do exercício de tal autonomia. “A autonomia privada se
apresenta, assim, para as situações existenciais, como verdadeiro instrumento de promoção da
personalidade.”687
O controle de licitude das manifestações da autonomia privada, mormente no que se refere
às situações existenciais subjetivas, não pode restringir-se à mera adequação legal, ou à
observância de ditames de ordem pública, da moral e dos bons costumes. Os conceitos de
moral e bons costumes são demasiado amplos e extremamente variáveis, quando considerado
o pluralismo cultural da sociedade contemporânea. Uma situação subjetiva existencial
decorrente do exercício da autonomia privada não pode ser considerada ilícita, simplesmente
porque contrária ao que é tido como aceitável por uma dada maioria.
Como percebeu Rose Melo Vencelau Meireles, se a autonomia privada passou a ser
conceito promocional de valores, a sua conformação não pode ser alcançada por limites que
lhe sejam externos, como a lei, a ordem pública, a moral e os bons costumes. Na perspectiva
do Direito Civil-constitucional, é imprescindível que a autonomia privada promova os valores
inscritos no projeto constitucional, especialmente a igualdade, a solidariedade, a dignidade e a
justiça social. 688

4.6.3 A autonomia privada nas situações subjetivas existenciais e a monogamia

685
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Autonomia privada e estado democrático de direito. In: CLÈVE, Clèmerson Merli;
SARLET, Ingo Wolfgang; PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Direitos humanos e democracia. Forense: Rio de Janeiro:
Forense, 2007. p. 503.
686
“Se a autonomia privada, efetivamente, não pode ser aniquilada, sob pena da construção de um direito totalitário — e,
como tal, avesso ao princípio democrático e aos direitos fundamentais — cabe ao Direito Civil construir um novo lugar para
essa expressão de liberdade...” PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Ensaio sobre a autonomia privada e o sujeito de direito nas
codificações civis, ou “a aspiração fáustica e o pacto de mefisto”. In: CLÈVE, Clèmerson Merli; SARLET, Ingo Wolfgang;
PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Direitos humanos e democracia. Forense: Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 193.
687
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 87 e 88.
688
Ibid. p. 90.
249

A noção de autonomia privada é redimensionada no âmbito do Direito Civil-


Constitucional. Haverá nítida distinção entre o exercício da autonomia da vontade se incidente
no âmbito das relações patrimoniais ou se referir-se ao campo das relações não-patrimoniais.
A autonomia privada exercida no campo das situações subjetivas existenciais deve ser
exponencial. Segundo Maria Celina Bodin de Moraes, assim deve ser porque “a vida, para
ser digna (CF, art. Iº ,II), precisa, intrinsecamente, da mais ampla liberdade possível no que
toca às relações não patrimoniais”. 689 A autonomia privada é agora revalorizada na medida
que se revela como condição inerente à própria dignidade humana.
Ao se potencializar a liberdade em relação às situações não patrimoniais se sinaliza que
“as ações humanas que envolvem escolhas de caráter existencial são protegidas de modo mais
intenso pela ordem constitucional.” 690 Esta distinção se opera porque nas relações jurídicas
patrimoniais, além da função individual, deve ser observada a função social. Assim é, por
exemplo, em relação à propriedade e ao contrato. A propriedade não é mais concebida como o
direito subjetivo por excelência, um direito absoluto que reúna as faculdades de usar, gozar e
dispor.691 Já na tutela da dimensão existencial do ser humano não há que se cogitar de função
social, pois, o ser humano jamais será meio para a obtenção de um determinado fim. Em razão
da dignidade humana, portanto, é que a autonomia privada nas situações subjetivas 692
existenciais torna-se merecedora de tutela maximizada.693
Observa Pietro Perlingieri que “as situações subjetivas encontram a sua justificação e o
seu ponto de confluência na relação jurídica”. 694 Quando se faz referência às situações

689
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p. 190.
690
Ibid. p. 190.
691
A função social da propriedade não constitui elemento externo ao direito proprietário atuando como seu limitador. O
próprio direito proprietário só é tutelado à medida que cumpra sua função social. Inerentes ao direito de propriedade existem
interesses não proprietários. Todavia, necessário recordar que “a função social modificar-se-á de estatuto para estatuto,
sempre em conformidade com os preceitos constitucionais e com a concreta regulamentação dos interesses em jogo”.
(TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 280 e281).
692
Adota-se aqui o entendimento de que situação subjetiva “constitui uma norma de conduta que pode significar a atribuição
ao sujeito — no interesse próprio e/ou de terceiros, no interesse individual e/ou social — do poder às vezes de realizar, outras
de não realizar determinados atos ou atividades.” Ressalvando que “Na maior parte das hipóteses o interesse dá lugar
portanto a uma situação subjetiva complexa, composta tanto de poderes quanto de deveres, obrigações, ônus. A
complexidade das situações subjetivas — pela qual em cada situação estão presentes momentos de poder e de dever, de
maneira que a distinção entre situações ativas e passivas não deve ser entendida em sentido absoluto — exprime a
configuração solidarista do nosso ordenamento constitucional.” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução
ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 107).
693
“A liberdade constitucional do art. 5º tem conteúdo negativo, insuficiente para abraçar a tutela positiva das situações
existenciais. Por isso, o fundamento constitucional da autonomia privada nas situações jurídicas subjetivas existenciais se
encontra na própria dignidade humana que tem como um dos seus postulados a liberdade no sentido positivo e negativo.”
(MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. p. 106.)
694
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
p. 113.
250

subjetivas existenciais, em um primeiro momento, sobressaem-se aquelas correspondentes aos


direitos de personalidade, como direito à integridade psicofísica, direito à saúde, à imagem, à
privacidade, à intimidade, à liberdade de pensamento e expressão, à educação, à moradia, etc.
Todavia é certo que nas relações jurídicas de natureza familiar avultam-se manifestações de
situações subjetivas existenciais. Os seres humanos se fazem como tais por meio das relações
que estabelecem, e as relações familiares se apresentam como locus privilegiado e
problematizante das situações subjetivas existenciais. Certo é, porém, ao menos da
perspectiva do Direito Civil-Constitucional, que os integrantes da família não estão
funcionalizados à realização do projeto familiar. Desta forma, a família não constitui um
núcleo de interesse distinto do de seus membros. Ela jamais poderá ser concebida como
pessoa jurídica ou como centro detentor de direitos autônomos. “Ela é formação social, lugar-
comunidade tendente à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus
participantes; de maneira que exprime uma função instrumental para melhor realização dos
interesses afetivos e existenciais de seus componentes. As ‘razões de família’ não têm
autonomia em relação às razões individuais”. 695
Potencializar a autonomia privada nas situações subjetivas existenciais corresponde ao
atendimento normativo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da
liberdade. Quanto maior a ingerência do Estado na regulação das relações conjugais, mais
significativos os indícios de uma inversão de valores. As pessoas que integram a relação
conjugal ficam vinculadas a um modelo de família que atende interesses fixados de forma
uniforme pelo próprio Estado. Este é arquétipo das codificações oitocentistas com pretensão
de regular cada quadrante por mais íntimo que fosse da vida privada.
Nesta linha de idéias, Silvana Maria Carbonera, indica que é com a não-intervenção que
se viabiliza a real tutela da dignidade, “que se traduz numa reserva de intimidade,
representada por um espaço não legislado, de modo que a plena realização da personalidade e
o desenvolvimento individual sejam possíveis num espaço relacional.” 696 Nas relações de
conjugalidade, no que se refere às situações subjetivas existenciais, a autonomia privada e o
direito de auto regulação e auto determinação devem ser privilegiados.
É possível verificar-se duas tendências em relação ao tratamento jurídico da autonomia
privada nas situações subjetivas existenciais manifestadas em relações conjugais. 697 Numa, a

695
Ibid. p. 179.
696
CARBONERA, Silvana Maria. Reserva de intimidade: uma possível tutela da dignidade no espaço relacional da
conjugalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 242.
697
SARACENO, Chiara; NALDINI, Manuela. Sociologia da família. 2. ed., Lisboa: Estampa, 2003. p. 299 e ss..
251

família é concebida como sujeita a imperativos sociais e institucionais, que conferem ao


Direito uma ampla área de imperatividade, regulando exaustivamente os deveres decorrentes
da conjugalidade, tornando inderrogáveis certas regras, como era o caso da indissolubilidade
do vínculo matrimonial, no Brasil, até meados da década de 1970. Neste modelo, a liberdade e
a autonomia da vontade são tolhidas de tal forma que nem mesmo pode ser exercida a
liberdade de não permanecer casado — como no referido caso do regime da indissolubilidade
do vínculo conjugal. Neste modelo, assiste-se uma invasão e controle da autonomia e da
regulação da vida familiar pelo Estado. A outra tendência evidencia um crescente campo de
autonomia, no qual as pessoas encontram-se livres para autodeterminar a conformação e o
modelo de família que querem instituir, estabelecendo estratégias e um pacto interno, sempre
móvel definidor do modus vivendi do agrupamento familiar.
As famílias — e, em especial, as conjugalidades— conformadas às diretrizes e
principiologia constitucionais não admitem no ordenamento jurídico brasileiro o cerceamento
da autonomia privada nas situações subjetivas existenciais, configuradas no âmbito das
relações familiares. A primeira tendência acima descrita corresponde à tutela de um modelo
de família transpessoal, valorada como instituição que tem em si mesma sua razão de ser.
Nesse quadro, caberia a intromissão do Estado. Ingressar numa relação de conjugalidade
corresponderia como que firmar um tipo de contrato de adesão, com todas as cláusulas já
previamente fixadas pelo Estado. Não é esta, todavia, a concepção de família ou de
conjugalidade que se projeta a partir do texto constitucional. Ao contrário, os princípios e
diretrizes constitucionais somente se realizarão se a autonomia privada nas situações
subjetivas existenciais for privilegiada.
Neste contexto, impõe-se questionamento sobre a regra da monogamia. Não há dúvida de
que a forma da conjugalidade, a escolha do parceiro ou dos parceiros, a estruturação da vida
familiar, a distribuição de papéis, atribuições e responsabilidades dizem respeito ao exercício
da autonomia privada no campo mais sensível e íntimo da condição humana: a vida familiar.
Sustenta Maria Celina Bodin de Moraes que, ao contrário das relações de natureza
patrimonial, nas quais a autonomia privada sofre significativas restrições, “tais restrições não
se aplicam à liberdade no que diz respeito aos aspectos existenciais, no tocante às escolhas
que permitem a construção da própria identidade da pessoa e, portanto, da sua individualizada
dignidade”. 698 A civilista relembra manifestação de Paolo Barile, segundo a qual se reconhece
uma regra constitucional implícita que estabelece a “presunção da máxima expansão das

698
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p. 190.
252

liberdades constitucionais”. Decorre de tal regra que as normas atribuidoras de liberdade


comportam interpretação extensiva ou expandida e, por outro lado, as normas limitadoras da
liberdade somente admitem interpretação restritiva.699 Tomada tal premissa como verdadeira,
não se apresenta justificativa plausível para que o Estado impute a todos a conjugalidade
monogâmica como única possibilidade.
Em boa parte da reflexão levada a cabo, o grande mote para a refutação da monogamia
como princípio estruturante do estatuto jurídico da família tem sido a dominação masculina,
legitimada pela construção de lugares de não-direito. Ou, dito de outro modo, é a exclusão de
tutela à mulher referida como concubina — colocada à margem de um sistema que protege
uma dada instituição familiar em detrimento das pessoas que integram o núcleo ou núcleos
familiares simultâneos — que interpela a legitimidade de tal concepção, ainda sedimentada no
imaginário dos operadores do Direito.700 Não é este o caso, quando se está diante do princípio
constitucional da liberdade. Tendo-o como parâmetro, a monogamia é refutada como
princípio jurídico porque se revela intromissão indevida do Estado em um âmbito que a
autonomia privada deve ter sua máxima expressão, e isso, em prestígio ao próprio princípio
da dignidade humana, que se tornaria inócuo se não houver pleno exercício de liberdade na
esfera existencial.
Neste aspecto, a monogamia não é criticada propriamente como estatuto de exclusão, mas,
sim, como regra de cerceamento inconstitucional da autonomia privada em situações
subjetivas existências. Ninguém além dos próprios cônjuges ou companheiros tem o direito de
imiscuir-se no âmbito da intimidade da vida familiar para ditar regras sobre a forma como
deve ser constituída e estruturada a conjugalidade. Essa decisão relativa ao exercício de
liberdade no âmbito do que é propriamente constitutivo da condição humana não pode ser
subtraída das pessoas e conferida ao Estado. Se no exercício de sua liberdade há aqueles que
desejam estabelecer projeto de conjugalidade que não se enquadra no padrão estatal da
monogamia, tal exercício há de lhes ser assegurado, sob pena de ofensa ao próprio princípio
constitucional da liberdade.
Esta perspectiva pode ser haurida do próprio art. 1.513 do Código Civil, que preconiza: “É
defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida

699
Ibid. p. 190.
700
O estabelecimento de espaços de “não-direito” pelo sistema jurídico tem sido apontado por aqueles que operam na
perspectiva da construção de uma teoria crítica do Direito Civil. Sobre a questão pondera Luiz Edson Fachin: “Foi o que
ocorreu dentro do âmbito do direito brasileiro, com o concubinato. No contexto da família, a concepção matrimonializada
forma um espaço de ‘não-direito’, mas a produção de relações sociais neste espaço acabou gerando uma certa imposição, e o
que estava na ‘dobra’ do Direito passou, gradativamente, a ocupar parte do núcleo do modelo plural de família.” (FACHIN,
Luiz Edson. Teoria crítica do direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar. 2000. p. 201.)
253

instituída pela família”. Silvana Maria Carbonera enxerga em tal dispositivo o que poderia ser
denominado de cláusula geral de reserva da intimidade.701 E não é o caso de se supor uma
deslegalização do Direito de Família. 702 Significa, sim, libertar a família de ataduras e
repressões impostas pelo Estado, consagrando-a como espaço de liberdade para as pessoas
que a integram. Carbonera fala em graus de intervenção diferenciados, sendo que, na esfera
das situações subjetivas existenciais, tal ingerência deve ser reduzida, de maneira que “a não
intervenção legal ordinária traduza efetiva tutela dos cônjuges e de suas personalidades.” 703
Na mesma direção, Ana Carolina Brochardo Teixeira e Renata de Lima Rodrigues, ao
tratarem da tensão entre ordem pública e autonomia privada no Direito de Família
contemporâneo, registram que “na atualidade, os membros das famílias possuem a liberdade
para se relacionar e para por fim a esse relacionamento; para construir a família segundo a
forma que melhor lhes convier e lhe conferir o conteúdo que melhor reflita seus anseios e
aspirações pessoais. Contudo, a família contemporânea também significa um espaço dinâmico
de engajamento pela realização existencial da pessoa humana, de compromisso com a própria
felicidade e com a felicidade do outro.”704
As ponderações sobre a autonomia privada nas situações subjetivas existenciais, como
foram aqui propostas, também, põem em questão os deveres conjugais pré-definidos pelo
Estado e para os objetivos em foco toma especial relevo o dever de fidelidade.

4.6.4 Deveres conjugais: normas cogentes inderrogáveis?

A liberdade nas construções teóricas e legais das revoluções burguesas acabou cativa da
propriedade. Porém, a crítica que se aplica à noção de liberdade ancorada no individualismo
proprietário não pode ser transposta, pura e simplesmente, para a liberdade relativa aos
aspectos existenciais, concernentes à própria identidade, à intimidade e à vida privada. 705
A partir da Constituição de 1988, um amplo trabalho de reformulação do conceito jurídico
de liberdade e, portanto, de autonomia privada, está em andamento. Fala-se inclusive em

701
CARBONERA, Silvana Maria. Reserva de intimidade: uma possível tutela da dignidade no espaço relacional da
conjugalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 268.
702
DIEZ-PICAZO. Familia y derecho. In: Familia y derecho. Madrid: Civitas, 1984. p. 27.
703
CARBONERA, op. cit., p. 272.
704
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias entre a norma e a
realidade. São Paulo: Atlas, 2010. p. 97.
705
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p. 189.
254

termos de amadurecimento ético-jurídico do conceito de liberdade. Pronuncia-se, assim,


Maria Celina Bodin de Moraes:

No âmbito do direito civil, especialmente no tocante às relações existenciais e aos direitos da


personalidade, quase se pode dizer que houve uma revolução. O amadurecimento ético-jurídico tem
mostrado que existem matérias em relação às quais o Estado não é o melhor juiz e que não pode haver
substituto para a consciência individual. O custo, no caso contrário, significa a desresponsabilização e
a infantilização dos indivíduos, reduzindo-se, na mesma proporção, o nível de liberdade na
706
sociedade.

No marco da legalidade constitucional, colhe-se perfeita distinção em relação ao sentido,


significado e alcance da autonomia privada no que concerne às relações patrimoniais e na
dimensão das relações pessoais de natureza não-patrimonial, porque é condição para a própria
dignidade da pessoa o reconhecimento ao livre gozo da vida privada, do direito de consciência
e expressão, de liberdade de crença e religião, de associação e, também, de constituição de
família.
As pessoas têm o direito de livremente estabelecer, constituir e estruturar sua família.
Neste sentido, andou bem o legislador ao estabelecer, no art. 1.513 do Código Civil, que “é
defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida
instituída pela família”. A forma que as pessoas dão às suas relações familiares não é questão
afeta ao Estado, sendo, antes, de foro íntimo dos indivíduos.
Cabe ao Estado, legislando ou exercendo a jurisdição, intervir tão somente para assegurar
direito dos membros da comunidade familiar, especialmente, o direito dos que se encontram
em situação de vulnerabilidade. 707 Portanto, em relação às famílias contemporâneas, o Estado
ganha relevância para resguardar os direitos de seus membros em situação de fragilidade,
fundamentalmente, a criança, o adolescente, a mulher e o idoso, e não como regulador
implacável de suas relações. “É apenas nessas hipóteses que se justifica a atuação do Estado,
pois ele não deve interferir nas relações pessoais sob o falso argumento de proteger, sob pena
de suprimir as subjetividades dos componentes da entidade familiar, em atitude
flagrantemente paternalista” 708, ponderam Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima
Rodrigues.

706
Ibid. p. 189.
707
Da intervenção legislativa são exemplos: o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, a Lei Maria da
Penha, apenas para citar os mais destacados estatutos legais de proteção a vulneráveis em situação familiar ou outras.
708
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias entre a norma e a
realidade. São Paulo: Atlas, 2010. p. 107. No trecho citado, as autoras acrescentam: “Afinal, fazem parte da esfera privada
da pessoa humana as decisões sobre seus aspectos de maior intimidade, para que cada um possa se construir de forma
coerente com o próprio projeto de vida, o que justifica, enfim, a intervenção apenas residual do Estado.”
255

Nesta direção, impõe-se análise a respeito da imposição estatal dos chamados deveres
conjugais. Que razões justificam a ingerência do Estado, no âmbito da intimidade, para fixar
os deveres conjugais no casamento e na união estável? Qual o sentido e quais os reais efeitos
jurídicos da fixação de tais deveres?
Consagrou-se, na doutrina, o dogma de que as normas de Direito de Família são em regra
normas de interesse e ordem pública, isto é, não podem ser afastadas ou modificadas pela
vontade dos particulares. Trata-se assim de ius cogens não sujeito a modificações, adaptações
e ressalvas decorrentes da autonomia das pessoas participantes das relações jurídicas por este
reguladas. Necessário notar que são consideradas cogentes, de interesse e de ordem pública as
normas que regulam a conjugalidade em relação às situações subjetivas existenciais. Já no que
se refere às relações patrimoniais é prevalecente o princípio da autonomia privada. 709 Neste
caso, os cônjuges podem dispor como lhes aprouver sobre o regime matrimonial de bens (art.
1.639 do CC/2002).
Não há dúvidas que algumas normas relativas às situações subjetivas existenciais são
cogentes e inderrogáveis, como a impossibilidade de sujeitar o reconhecimento de filho a
termo ou condição (art. 1.613 do CC/2002) ou alterar o conteúdo do poder familiar (art. 1.634
do CC/2002). Todavia, não parece possível estender a natureza dessas normas, isto é, sua
inderrogabilidade e cogência, para os deveres conjugais.
Ao tratar a matéria, Silvana Maria Carbonera propõe como solução a distinção entre a
categoria de direitos/deveres absolutamente indisponíveis e a dos direitos/deveres
relativamente indisponíveis.710 Para a autora, os deveres pessoais dos cônjuges seriam, assim,
direitos relativamente indisponíveis. 711 Constrói seu argumento, partindo de uma constatação:
tivessem os deveres conjugais cogência absoluta, anulada estaria a vontade dos cônjuges em
qualquer situação, de forma que tal cogência levaria à indissolubilidade do vínculo
matrimonial, o que não tem mais lugar no sistema jurídico brasileiro.

709
Esta peculiaridade é reconhecida por José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco Muniz: “No âmbito das relações
patrimoniais entre os cônjuges vigora, de regra, o princípio da autonomia privada (por exemplo, regimes matrimoniais de
bens).” (OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de & MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família – direito matrimonial.
Porto Alegre: Fabris, 1990. p.18).
710
CARBONERA, Silvana Maria. Reserva de intimidade: uma possível tutela da dignidade no espaço relacional da
conjugalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 203-215.
711
“... é possível, dentro da categoria dos direitos indisponíveis, encontrar duas espécies, os absolutamente e os relativamente
indisponíveis. Os primeiros respondem à totalidade das características, como, por exemplo, casos de guarda, de modo que
não são passíveis da incidência de qualquer vontade do titular que possa produzir efeitos jurídicos e, por tal motivo, estão
agastados da incidência da revelia no plano processual, sendo necessária instrução processual. Já os relativamente
indisponíveis têm característica temperada na medida em que, para determinadas situações, já reconhece uma parcela de
disponibilidade, como é o caso dos deveres conjugais.” (CARBONERA, Silvana Maria. Reserva de intimidade... p. 205-
206).
256

Para sua linha de argumentação é paradigmático o caso hipotético do pedido de separação


litigiosa, no qual a parte autora imputa ao cônjuge grave falta em relação aos deveres do
casamento. Citado o réu, este não responde à demanda. Por se tratar de direito indisponível, o
juiz de primeiro grau não reconhece a revelia e determina a instrução processual para que
fosse provada a culpa do réu. Justificou sua decisão na regra do Código de Processo Civil
segundo a qual a revelia não produz a presunção de veracidade dos fatos alegados na inicial se
a demanda tratar de direito indisponível. Silvana Maria Carbonera cita decisão do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais que, por unanimidade de votos, reformou decisão de primeira
instância ao argumento de que “os direitos indisponíveis são gênero que se biparte em duas
espécies, os absolutamente e os relativamente indisponíveis”.712 Os deveres conjugais se
encaixariam na segunda espécie, isto é, a dos direitos relativamente indisponíveis.
Apesar do esforço da Corte para dar solução razoável ao caso concreto, parece arbitrária a
distinção entre direitos absolutamente indisponíveis e direitos relativamente indisponíveis. Os
direitos são ou não indisponíveis. Se algo é relativamente indisponível conclui-se que é
disponível.
Considerando que as relações de conjugalidade — mormente sob o influxo da tábua
axiológica constitucional — são, primeiro e fundamentalmente, relações existenciais, os
denominados deveres conjugais fixados ainda sob as diretrizes que orientaram as codificações
oitocentistas estão a exigir novas ponderações.
Na quadra histórica atual, vincular indistintamente os deveres conjugais a direitos
indisponíveis, de interesse e de ordem pública e, por isso mesmo, tê-los como cogentes
implica ofensa ao princípio constitucional da liberdade, da privacidade e da intimidade.
O Código Civil de 2002 repetiu o elenco de deveres comuns aos cônjuges já consagrado
pelo Código Civil de 1916, 713 a saber, fidelidade recíproca; vida em comum, no domicílio
conjugal; mútua assistência; sustento, guarda e educação dos filhos; e acrescentou um quarto

712
Em relação a tal distinção, Silvana Maria Carbonera vale-se da argumentação vertida no próprio acórdão: “é necessário
reconhecer a diferença inclusive no plano processual, para que se possa ter a produção da revelia pois ‘somente nos litígios
que versem sobre direitos absolutamente indisponíveis é que se opera a inaplicabilidade dos mencionados efeitos da revelia.
(...) por exemplo, nas demandas que envolvem guarda de menores, destituição de pátrio poder e outras, nas quais a
vinculação do direito ao sujeito é de tal ordem que este não pode dispor livremente daquele’. Já nos casos em que a
indisponibilidade é dita relativa, ‘tem perfeita aplicabilidade o instituto da revelia, com todos os seus efeitos, o que vale dizer,
na ausência de contestação, o juiz poderá presumir à conta de verdadeiros os fatos articulados pelo autor e, em decorrência,
até mesmo dispensar a instrução e julgar antecipadamente a lide’.” Referência da Autora: Apelação Cível nº 000.210.747 -
2/00, Comarca de Belo Horizonte, Apelante: E de O. X. P. Apelado F. S X. P. Relator: Des. Hyparco Immesi. 18.10.2001.
Publ. 14.11.2001. TJMG). (CARBONERA, Silvana Maria. Reserva de intimidade... p. 205-206).
713
O Código Civil de 1916 enumerava os deveres comuns aos cônjuges no art. 231. No Código Civil de 2002, eles estão
reproduzidos no art. 1.566, que assim dispõe: “São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em
comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e
considerações mútuos”.
257

dever: respeito e considerações mútuos. O Código Civil em seu afã regulador foi além; fixou
os deveres para situação de fato, isto é, união estável. Assim, são, também, alcançados pela
intromissão legisladora do Estado aqueles que procuraram fugir da imposição minuciosa do
regramento matrimonial.
Ao propósito da tese, reveste-se especial interesse análise do dever de fidelidade. Antes
de abordá-lo de forma especial, o conjunto de deveres impostos pelo Código Civil aos
cônjuges e companheiros deve ser objeto de algumas considerações.
Ao tempo em que a família era tutelada em razão de suas funções econômicas, políticas,
religiosas e procriacional, 714 parece razoável que deveres de interesse e ordem pública fossem
impostos aos que pelo casamento constituíam a única forma de família merecedora de
reconhecimento e tutela estatal. Como o vínculo matrimonial era indissolúvel, a família, um
núcleo econômico, a procriação, um objetivo para a produção de mão-de-obra, a hierarquia,
marca distintiva desta organização, também, os deveres conjugais correspondiam a interesses
externos aos indivíduos partícipes da conjugalidade. Interesses gerais e de ordem pública.
Com a repersonalização do Direito Civil, o interesse a ser tutelado deixou de ser o grupo
organizado como tal. Em outras palavras, “a família e o casamento passaram a existir para o
desenvolvimento da pessoa — para a realização de seus interesses afetivos existenciais”.
Nesta direção, a família se consagra antes de tudo como uma “comunidade de afeto e
entreajuda.”715 A pessoa revelada na sua dignidade ínsita não mais poderia ser meio para um
fim maior: a realização da família, com características que atendiam a interesses do Estado,
ou melhor, econômicos.
Um dos deveres do casamento diz respeito à vida em comum no mesmo domicílio. Na
prática contemporânea, em não poucos casos, a vida em comum no domicílio conjugal torna-
se impraticável, ao menos por determinados lapsos temporais, em razão do desenvolvimento
de atividades profissionais de um dos cônjuges. Não é raro que os casais ajustem entre si a
fixação de residência e domicílio em cidades distintas e, às vezes, até distantes. Todavia,
ainda que tal circunstância não resultasse de força compulsória de compromissos
profissionais, mas, sim, da pura vontade dos cônjuges, mesmo assim, seria totalmente
impertinente qualquer imposição do Estado em relação a um suposto dever de vida sob o
mesmo teto.

714
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2010. p. 27.
715
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família – direito matrimonial. Porto
Alegre: Fabris, 1990. p. 11.
258

A superação do cumprimento de papéis restritos pelo marido como provedor e pela esposa
como administradora do lar e a inserção cada vez mais regular da mulher no mercado de
trabalho apontam para a superação deste dever. Com maior razão sua superação se impõe
quando se recorda que a doutrina, ao fazer referência ao dever de coabitação, usualmente, o
correlaciona ao debitum conjugale.716 Merecida repulsa tem recebido esta compreensão. Tal
dever só fazia sentido em uma sociedade marcada pelo patriarcalismo. 717 Como pode o Estado
fixar um dever desta natureza, pois, a relação sexual é um ato absolutamente voluntário, livre,
espontâneo ou o contrário implicaria aviltamento e afronta à dignidade da pessoa. Jamais
poderá ser um dever.
O sustento, guarda e educação dos filhos embora sejam, reconhecidamente, deveres dos
pais, não são a rigor deveres conjugais. Independente de serem entre si casados os pais têm
estes mesmos deveres em relação aos filhos, ainda que desfeito o casamento ou a união
estável. Também, da mesma forma, mesmo que jamais tenha havido casamento ou união
estável tais deveres surgem para os pais em razão da relação jurídica paterno-filial. Por outro
lado, como pode haver casamento sem prole, tais deveres não podem ser enunciados como
essencialmente conjugais.
Respeito e considerações mútuos todos os seres humanos têm como dever em relação
àqueles com quem convivem em qualquer associação, agremiação, sociedade, relação de
trabalho ou de outra natureza. Logo, é evidente que todos — e inclusive os que são entre si
casados — devem aos demais respeito e considerações mútuos. São deveres inerentes à
sociabilidade humana. Logo, não são propriamente conjugais.

716
Sobre o tema assim se pronuncia Maria Helena Diniz, fazendo coro com aqueles que quase equiparam este “dever”
àqueles típicos das relações obrigacionais: “A coabitação é o estado de pessoas de sexo diferente que vivem juntas na mesma
casa, convivendo sexualmente”. Com arrimo em Lopez Herrera, Antônio Chaves distingue, “no dever de coabitação, dois
aspectos fundamentais: o imperativo de viverem juntos os consortes e o de prestarem mutuamente o débito conjugal,
entendido esse como o ‘direito-dever do marido e de sua mulher de realizarem entre si o ato sexual’. Um cônjuge tem o
direito sobre o corpo do outro e vice-versa, daí os correspondentes deveres de ambos, de cederem seu corpo ao normal
atendimento das relações íntimas, não podendo, portanto, inexistir o exercício sexual, sob pena de restar inatendida essa
necessidade fisiológica primária, comprometendo seriamente a estabilidade da família.” E acrescenta: “Sendo recíproco o
dever de coabitação, ambos são devedores dessa prestação, podendo exigir do outro seu cumprimento. Cada consorte é
devedor da coabitação e credor do outro. Daí sentir-se, mais, nesse direito-dever o caráter ético, extrapatrimonial e absoluto,
sendo, assim, intransponível, irrenunciável, imprescritível”. (Grifamos) (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil
brasileiro: direito de família (5º vol.) 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008. p. 132)
717
Em 1976, Álvaro Villaça de Azevedo publicou livro com o título Dever de Coabitação: inadimplemento. Àquele tempo
cogitar desta matéria poderia até ser admissível. Surpreende, porém, que o autor lançou, em 2009, segunda edição atualizada
do livro, para continuar sustentando o seguinte conceito de dever de coabitação: “é a imposição legal, de ordem pública, aos
cônjuges de seu relacionamento fisiológico, sexual, recíproco, enquanto durar a convivência no lar conjugal. No caso de
união estável esse dever está implícito na convivência dos companheiros (art. 1.723, caput).” (AZEVEDO, Álvaro Villaça.
Dever de coabitação: inadimplemento. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2009. p. 119). Salta aos olhos que tal compreensão está em
absoluta desconexão com o princípio da liberdade e da maximização da autonomia privada nas situações subjetivas
existenciais. Como pode o Estado estabelecer imposição de ordem pública no sentido de que os cônjuges encontram-se
mutuamente obrigados a manter relacionamento fisiológico sexual enquanto durar a convivência? O que causa espécie é que
se diga ser esta norma de ordem pública.
259

Possivelmente, o único dever conjugal que subsista como dever jurídico propriamente dito
seja o de mútua assistência. Ele tem uma dimensão moral que se refere ao cuidado e atenção
que devem ser dispensados à pessoa do outro cônjuge e tem, igualmente, uma dimensão
material que se refere ao socorro ou provisão de meios para atendimento das necessidades da
família. No descumprimento da dimensão material deste dever é que se pode vislumbrar
efeitos jurídicos. O descumprimento do dever de assistência material pode ensejar o direito a
alimentos pelo cônjuge que deles necessitar. Esta é a única exceção no elenco dos deveres
conjugais.
Fato é que todos os deveres jurídicos devem produzir efeitos jurídicos. Contrário senso o
descumprimento de tais deveres, também, produz efeitos de natureza jurídica. O
descumprimento dos deveres conjugais estava diretamente vinculado aos requisitos
autorizadores do desquite, quando não havia ainda, no ordenamento jurídico brasileiro, espaço
para dissolução do vínculo matrimonial. A ação de desquite só podia ter como fundamento
um dos seguintes motivos: adultério, tentativa de morte (na verdade tentativa de homicídio);
sevícia ou injúria grave ou ainda abandono voluntário do lar conjugal durante dois anos
contínuos.718
A esse tempo, os deveres eram de fato cogentes, de ordem e de interesse públicos. Ainda
que marido e mulher, tendo constatado a falência do casamento, estivessem plenamente em
concordância quanto à vontade de por fim à sociedade conjugal pelo desquite — não ao
casamento posto que impossível — não podiam fazê-lo, se não houvesse sido caracterizada
grave falta em relação a um dos deveres conjugais enumerados no Código Civil.
Sendo o casamento indissolúvel, o desquite, isto é, o desfazimento da sociedade conjugal,
não do matrimônio, somente teria lugar em razão de comportamento causador de dano injusto
ao parceiro. Logo, presentes e inafastáveis a ideia de culpa e a identificação do cônjuge
culpado. Como resultado da identificação do cônjuge culpado, este sofria em sua esfera
jurídica uma série de consequências, como a perda da guarda dos filhos, a perda do nome de
família do marido, a imputação de pagamento de alimentos ao cônjuge inocente que deles
necessitasse, e a perda do direito aos alimentos por parte do culpado.
Com a Lei do Divórcio, introduzida pela Emenda Constitucional nº 9 e pela Lei
6.515/1977, os deveres conjugais ainda apresentavam certa relevância, tendo em vista uma
das formas de separação que a doutrina consagrou pelo nome de separação-sanção. Esta era
admitida quando um dos cônjuges imputava ao outro grave falta em relação aos deveres do

718
Era o que dispunha o Código Civil de 1916 em seu art. 317.
260

casamento.719 Mesmo tendo representado um significativo marco na percepção jurídica da


conjugalidade, a Lei do Divórcio, neste aspecto, manteve em grande relevo a culpa como
fator importante e requisito autorizador da separação judicial.
Este tipo de separação, a separação- sanção, mereceu da melhor doutrina permanente
crítica ao longo dos anos.720 Atualmente, a culpa para a dissolução do vínculo matrimonial
perdeu relevância. Com a Emenda 66 que alterou o § 6º do art. 226 da Constituição Federal de
1988,721 o divórcio converteu-se em um direito potestativo desvencilhado de quaisquer
requisitos autorizadores. Depois de longos anos, o fim do casamento foi aliviado da
sobrecarga da culpa. 722 Com esta alteração constitucional a separação-sanção perdeu
totalmente o sentido e, em consequência, houve um esvaziamento jurídico dos deveres do
casamento. Tornaram-se, na verdade, enunciados morais não jurídicos, posto que o seu
descumprimento não tem a força de provocar efeitos jurídicos.
Certamente o mesmo pode ser referido, e talvez com maior acerto, em relação aos deveres
que o Código Civil fixou para os companheiros na união estável. 723 Que efeitos podem surtir
do desatendimento do dever de lealdade na união estável? O dever fixado pelo Código Civil
não passa de um conselho. Seu cumprimento ou não constitui fato de absoluta irrelevância
jurídica. Para requerer a dissolução da união estável, jamais se cogitou a necessidade de
comprovação da inobservância de qualquer dever jurídico. Basta a vontade soberana da
pessoa de não permanecer na companhia do outro. A rigor, é totalmente desnecessária a
intervenção estatal para o desfazimento da união estável. A tutela jurisdicional far-se-á
necessária, eventualmente, apenas para regular direitos decorrentes da ruptura, como meação,

719
O art. 5 da Lei 6.515/1977 dispunha: “A separação judicial pode ser pedida por um só dos cônjuges quando imputar ao
outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e tornem insuportável a
vida em comum”. (Grifamos)
720
A respeito ver: “O papel da culpa na separação e no divórcio”. Texto apresentado por Gustavo Tepedino no primeiro
Congresso Brasileiro de Direito de Família, organizado pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Minas Gerais, em
Belo Horizonte, no período de 22 a 25 de outubro de 1997. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed., Rio de
Janeiro: Renovar, 2001. Orlando Gomes, em seu Direito de Família, já fazia referência à separação tendo como causa tão
somente a perturbação objetiva do casamento, consagrada pelo direito germânico. Diz o civilista: “A perturbação objetiva é
uma causa de separação que não pressupõe culpa de qualquer dos cônjuges, não tendo, sequer relevância, seus motivos. Para
autorizar a separação judicial litigiosa, basta ao cônjuge requerente provar a ruptura da vida em comum e a impossibilidade
de sua reconstituição. Conta somente ‘o fato objetivo da perturbação insanável’.” (GOMES, Orlando. Direito de família. 12.
Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 248)
721
A simplicidade do texto constitucional diz muito, pois, agora, simplesmente enuncia: “O casamento civil pode ser
dissolvido pelo divórcio”.
722
Quando a Emenda Constitucional ainda era a PEC 28/2009, Maria Berenice Dias escreveu: “Com o fim da separação e da
identificação de culpados, previstos na PEC 28/09, os deveres conjugais irão perder ainda mais o significado”. (DIAS, Maria
Berenice. Manual de direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 264).
723
Prescreve o art. 1.725 do CC/2002 que “As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade,
respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.”
261

alimentos, direitos sucessórios, regulação de guarda. Por esta razão, parece despropositado
que a lei estabeleça deveres recíprocos aos companheiros.
Da análise realizada constata-se que do Estado procede regulação exaustiva do casamento,
invadindo espaço que deveria estar reservado à autonomia privada. A liberdade deve ser
consagrada com muito mais contundência em relação às situações jurídicas subjetivas
existenciais do que em relação àquelas meramente patrimoniais. 724 No presente momento
histórico, não parece razoável que o Estado venha, de forma totalizante, estabelecer
rigidamente os deveres conjugais, de tal sorte que ao se casar os nubentes estejam a assinar
um contrato de adesão,725 com as cláusulas pré-formatadas pelo Estado em relação ao âmbito
da vida que lhes é mais sensível, a saber, o da liberdade nas situações subjetivas existenciais.
Se no modelo do casamento sacramentalizado, recepcionado pelos códigos oitocentistas o
Estado chegou a normatizar o chamado debitum conjugale, como se a intimidade fosse tema
de ordem pública, atualmente, o princípio da autonomia privada no âmbito das situações
subjetivas existenciais não admite tal ingerência.
Realizada verificação de espectro mais amplo sobre os deveres conjugais e a ausência de
sentido e aplicabilidade para eles no âmbito da constitucionalização do Direito Civil, importa
passar às considerações específicas sobre o mencionado dever de fidelidade recíproca que
guarda relação direta e necessária com o princípio da monogamia.
O dever de fidelidade é a expressão jurídica do princípio da monogamia. Como referido
em capítulos anteriores, a noção de fidelidade, isto é, exclusividade nas relações sexuais está
diretamente vinculada à presunção da paternidade e, portanto, à legitimidade da prole. Assim,
percebeu Maria Berenice Dias que “para dar sustentação a essa verdade ficta, sente-se o
Estado autorizado a impor regras a serem respeitadas pelos cônjuges, inclusive durante a
vigência do casamento. Como forma de garantir a legitimidade da prole, acaba por obrigar a
fidelidade. A preocupação, nitidamente, é de ordem patrimonial: assegurar a transmissão do
patrimônio familiar aos seus ‘legítimos sucessores’”. 726
A ênfase no dever de fidelidade, historicamente, recaiu sobre a mulher. Em relação ao
homem sempre houve certa tolerância. Observa Paulo Luiz Netto Lôbo que este dever,
724
Com precisão anotou Silvana Maria Carbonera que “não será por força de lei que o respeito, a mútua assistência, a
fidelidade, a coabitação, a igualdade serão realidades numa relação, senão pela vontade e pactos internos do casal, que devem
ser respeitados e tutelados pelo Estado, posto que se trata de espaço íntimo, exclusivo.” (CARBONERA, Silvana Maria.
Reserva de intimidade: uma possível tutela da dignidade no espaço relacional da conjugalidade. Rio de Janeiro: Renovar,
2008. p. 239).
725
SILVA, Paulo Lins e. O casamento como contrato de adesão e o regime legal da separação de bens. In: PEREIRA,
Rodrigo da Cunha (Coord). Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e cidadania. O novo CCB e
a vacatio legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 353-363.
726
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 260.
262

“historicamente, voltava-se em grande medida ao controle da sexualidade feminina, para


proteger a paz doméstica e evitar a turbatio sanguinis. Nesse sentido estrito (e, por certo,
insustentável na atualidade), sempre se manifestaram a doutrina e a jurisprudência.” 727
Pelo menos por duas razões o dever de fidelidade, atualmente, não se sustenta como tal.
Primeiramente, porque dizendo respeito à área tão restrita da intimidade, apenas a pessoa e
tão somente ela tem o poder de estabelecer regras desta natureza, como a fidelidade ou a
limitação de suas relações sexuais. Se regras autolimitativas das relações sexuais forem
estabelecidas tácita ou expressamente entre duas pessoas, por exemplo, elas o são no restrito
âmbito nuclear de uma situação subjetiva existencial. Não existe, neste caso, a mínima nuança
de interesse ou ordem pública e nem tampouco de direito indisponível.
Extrair do dever de fidelidade, por sua contraface, direito cogente, de ordem e interesse
públicos, constitui aviltamento à dignidade humana. Como apreendeu Paulo Luiz Netto Lôbo:
“O dever de fidelidade apenas pode ser judicialmente verificável com sacrifício da intimidade
e da privacidade das pessoas.”728 A simples perquirição judicial sobre o descumprimento do
dever de fidelidade constitui devassa em um âmbito da intimidade da pessoa humana, só
admissível em casos especialíssimos, quando em jogo a tutela de um bem jurídico de primeira
ordem. Mediante juízo de ponderação, o direito fundamental à privacidade e à intimidade
poderá sofrer algum contingenciamento circunstancial. Poder-se-ia cogitar de hipótese da
instrução de processo criminal, em que um caso de infidelidade tivesse que vir a público.
Além dessas circunstâncias específicas, observados os marcos do Direito Civil-
Constitucional, o dever de fidelidade, juridicamente, inexiste.
Esta reflexão se alinha ao pensamento dos doutrinadores que perceberam nova carga
jurídica dada à autonomia privada com a virada constitucional. Ensina Maria Celina Bodin de
Moraes que “na legalidade constitucional a noção de autonomia privada sofre uma profunda e
marcante transformação conforme a sua incidência ocorra no âmbito de uma relação
patrimonial ou de uma relação pessoal não-patrimonial. Assim é justamente porque o
legislador democrático, também no Brasil, tem perfeita noção de que a vida, para ser digna
(CF, art. 1º, II), precisa, intrinsecamente, da mais ampla liberdade possível no que toca às
relações não patrimoniais.” 729

727
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2010. p. 136.
728
Ibid. p. 136.
729
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p. 190.
263

Ao estabelecer e garantir a inviolabilidade da vida privada e da intimidade, 730 a


Constituição Federal erigiu para todas as pessoas um espaço de liberdade, como possibilidade
de realizar tudo o que não é proibido, mas também como exigência de não intervenção e como
possibilidade de autodeterminação.731
Nesta nova fronteira alcançada pelo Direito Civil contemporâneo não há espaço para o
dever de fidelidade que se prestava bem à composição do sistema patrimonialista que
orientava as codificações oitocentistas. Ao acentuar a dignidade da pessoa humana, e,
consequentemente, a tutela da autonomia privada nas situações subjetivas existenciais, como
locus privilegiado, a nova ordem constitucional fez inexistente o dever de fidelidade e com
isso arrefeceu a monogamia como princípio estruturante do estatuo jurídico da família.
Se os limites ao exercício e gozo da sexualidade não constituem questão de ordem pública
e muito menos de interesse público, se o dever de fidelidade recíproca não tem relevância
jurídica e só encontra justificativa no quadrante da autorregulação da intimidade de cada
pessoa, sendo este espaço inexpugnável quer para particulares quer para o Poder Público,
impõe-se a conclusão de que as configurações dos diversos tipos de conjugalidade não mais
estão submetidas ao princípio da monogamia. Desta forma, o Estado não poderia negar tutela
jurisdicional a determinada(s) entidade(s) familiar(es) simplesmente porque não se regem
pelo princípio da monogamia ou porque subsistem paralela ou simultaneamente. Esta
percepção representa uma guinada no conceito e no tratamento jurídico da conjugalidade. A
liberdade que foi levantada como bandeira nas revoluções políticas (públicas) deve reverberar
seus efeitos emancipatórios nos espaços íntimos (privados), ainda confinados metafórica ou
explicitamente ao Ancien Régime.

4.7 O princípio da democracia: Direito, Estado e Sociedade – a monogamia em questão

Vinculado diretamente à noção de igualdade e à questão da liberdade e da autonomia


privada no âmbito das situações subjetivas existenciais está o tema da democracia. O pós-
guerra, com a derrocada do nazismo e do fascismo, consagrou do Ocidente ao Oriente o ideal
da democracia. Rediviva do rescaldo da Guerra, a democracia na America Latina ainda
padeceu em razão do recrudescimento de ditaduras militares nascidas das tensões mundiais
decorrentes da guerra fria. Esse lapso de tempo de governo de exceção, porém, não estancou a

730
CF/1988, art. 5º inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
731
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana... 190.
264

força do projeto democrático que brotara dos escombros e das marcas letais deixadas na
humanidade pelo totalitarismo.
Desde os gregos, a democracia foi concebida no e para o espaço público. A família,
âmbito privado por excelência na antiguidade mas, também, até bem pouco tempo, era
marcada pela autocracia titularizada pela figura masculina, representada nos papéis de pai e
marido. A redemocratização do espaço público e o estabelecimento do ideal democrático nele
concebido não corresponderam a uma simultânea e imediata democratização das relações
familiares. Assim, “a democracia no espaço público podia conviver com a autocracia no
espaço privado, concedendo a legislação de então completo aval para o exercício, pelo marido
e pai, de um poder verdadeiramente totalitário, embora exercido em nome do bem-estar da
instituição.”732 A superação da dicotomia estrita entre os espaços público e privado tem a ver
com a mudança do papel cumprido pela mulher nas relações conjugais, seu vigoroso ingresso
no mercado de trabalho, o controle da concepção, o movimento feminista, entre outros. Estas
mudanças ofuscaram a importância do papel de provedor exclusivo que o homem
desempenhava.
A perda do controle econômico abriu espaços para a divisão do poder entre homens e
mulheres. Este e outros fatores também favoreceram a quebra do autoritarismo nas relações
paterno-filiais. 733 A democracia no espaço familiar, todavia, não é uma instituição, constitui,
antes, um processo. A família pressupõe um exercício relacional de liberdade. Não se cuida de
ser livre nas decisões sobre si mesmo, como nos casos de ingerir ou utilizar determinadas
substâncias ou alimentos sabidamente nocivos à saúde. A liberdade, na coexistência familiar,
manifesta-se fundamentalmente como democracia. E não há como pensar a democracia sem a
articulação de três fatores decisivos: a sociedade, o Estado, e a normatividade.
A regra da monogamia admitida e proclamada abstratamente como tal desafia reflexão
sobre as interfaces da democracia com o Direito, o Estado e a sociedade. A ressignificação do
princípio da democracia nas constituições instauradoras do Estado democrático de direito 734 é,

732
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p. 211
733
“A democratização das relações paterno-filiais encontra seu fundamento no princípio constitucional que imputa à família,
à sociedade e ao Estado o dever de assegurar à criança e ao adolescente, entre outros, o direito à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária.” (SILVA, Marcos Alves da. Do pátrio poder à autoridade parental:
repensando fundamentos jurídicos da relação entre pais e filhos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 184). Sobre o direito
do infante e a autonomia privada da criança e do adolescente nas situações subjetivas existenciais, ver o capítulo terceiro,
intitulado: Relevância da autonomia privada das crianças e adolescentes: há o direito infantil à autodeterminação? na obra:
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. & RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias entre a norma e a
realidade. São Paulo: Atlas, 2010. p. 45-66.
734
“A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade
livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou
por representantes eleitos (art. 1º parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no
265

neste paço tomada como pano de fundo. A premissa é de que a regra da monogamia como
preceito geral e instransponível só é admissível em uma dada compreensão do Direito que
atribui ao Estado, como centro de poder, a exclusividade na produção normativa e que,
consequentemente, percebe a sociedade na mera condição de passividade, a sofrer os influxos
da norma estatal como sua destinatária. O enunciado da premissa é indicativo da perspectiva
crítica735 a partir da qual é produzida a reflexão.

4.7.1 Da mítica vontade geral à pluralidade social: possibilidades para a democracia


contemporânea

Necessário é, portanto, de início, sublinhar alguns elementos da concepção cristalizada e


mitificada736 do Direito ainda prevalecente e determinante na atividade de grande parte dos
juristas. Este modelo, que já dura mais de duzentos anos, encontrava e ainda encontra-se
absolutizado no imaginário coletivo de boa parte dos agentes do campo jurídico.
Desta concepção do Direito, que não é uma escola, porque perpassa várias delas com
nuanças diferenciadas, alguns traços são nítidos. Ela tem como grande referência a própria
democracia em oposição e superação à ordem política estamental do Antigo Regime. A nova
ordem democrática exprime a vontade geral da nação pelo parlamento. A lei, portanto, se
identifica com a vontade geral e converte-se no pressuposto básico da democracia moderna. A
conformidade com a lei torna-se a exigência natural. O enunciado do Estado moderno
democrático é perfeito como um teorema 737 explicável por silogismo retilíneo. Todavia as
mitologias jurídicas que engendraram o modelo já foram expostas.
O racionalismo iluminista, a pretexto de superação de uma sociedade estratificada sob o
manto da vontade geral fixada pela lei, escamoteou o Estado apossado pela classe burguesa
que fixou enormes filtros entre a sociedade e o poder. Para tanto, com a participação de
filósofos, políticos e juristas, construiu-se uma “fortaleza inexpugnável de uma persuasiva
mitologia político-jurídica, inexpugnável porque, em respeito a essa se impunha, mais do que

processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e
pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de
organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de libertação da pessoa humana das formas de
opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas
especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.” (SILVA, José Afonso
da. Curso de direito constitucional positivo. 23ª ed., São Paulo: Melheiros, 2004. p. 119)
735
A reflexão que enfeixa este capítulo é desenvolvida por meio de um “diálogo” com o pensamento de autores que,
certamente, estão entre marcos teóricos referenciais da problematização que se constituiu como mola propulsora das
considerações sobre a superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da família.
736
Colhe-se a expressão de GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
737
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2.ed. São Paulo: Boiteux, 2007. p. 61.
266

um conhecimento, uma crença”. 738 A mítica vontade geral cristalizada na lei apresenta-se em
seguida como manifestação do poder. Direito e poder são percebidos como indissociáveis. E a
suposta vontade geral mostra-se autoritariamente ao homem comum como algo que lhe é
totalmente estranho,739 provindo das autoridades encasteladas nos órgãos públicos e revestidas
de certa sacralidade leiga.
A percepção do Direito pelo povo de cuja vontade ele supostamente emanaria dá-se pela
via patológica na convivência social. Assim, o Direito se revela na violação da ordem
constituída, com sua face sancionadora, mormente, como Direito Penal. A aguda análise
histórica levada a efeito por Paolo Grossi, ao final, revela-se forçosamente propositiva, no
sentido de desafiar a redescoberta do Direito como uma dimensão da vida social, como
experiência, antes de ser concebido como poder, norma e sistema formal. Grossi fala em
tomada de “consciência da sociabilidade do direito”.740 Ao se vincular o Direito à sociedade
este é redescoberto em sua complexidade. Sendo espelho da sociedade refletirá sua estrutura
variada, estratificada, múltipla. A percepção da sociabilidade inerente ao Direito quebra a
compreensão simplificadora que lhe foi imposta.741 Este deixa de ser uma realidade simples e
unívoca proclamada pelo Estado e é redescoberto em sua complexidade como speculum da
sociedade multifacetada. Trata-se de uma refundação da idéia de democracia antes cooptada
pelo ideário liberal burguês.
Na idealização liberal, o jurista é concebido como mero agente cognoscitivo que tem
como única tarefa interpretar o texto legal, que expressa o comando de quem tem o poder de
dizer o direito: o legislador. Este comando que nutre a pretensão de perpetuidade é fixado no
texto que, pela sua rigidez, fica isento das vicissitudes e instabilidades da experiência. E o
texto mais acabado é o Código Civil, com sua pretensão de abranger cada espaço da vida
privada por mais recôndito que seja. O liberalismo econômico se viabiliza pelo “absolutismo
jurídico” do regramento da propriedade, do contrato e da família. “O Código almejava a

738
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade.... p. 62.
739
“Não está errado o homem do povo, mesmo em nossos dias, que traz em si ainda frescos cromossomos do proletariado da
idade burguesa quando desconfiava do direito: o percebe como alguma coisa que lhe é completamente estranha, que cai do
alto sobre sua cabeça, como uma telha do telhado, confeccionando nos misteriosos palácios do poder e evocando sempre os
aspectos desagradáveis da autoridade sancionadora, ou o juiz ou o funcionário de polícia”. (GROSSI, Paolo. Mitologias
jurídicas da modernidade.... p. 64)
740
GROSSI, op. cit., p. 62.
741
“Numa sociedade de identidades múltiplas, da fragmentação do corpo no limite entre o sujeito e o objeto, o
reconhecimento da complexidade se abre para a ideia de reforma como processo incessante de construção e reconstrução. O
presente plural, exemplificado na ausência de modelo jurídico único para as relações familiares, se coaduna com o respeito à
diversidade e não se fecha em torno da visão monolítica da unidade. (FACHIN, Luiz Edson. O código da indiferença. Folha
de S. Paulo, 16 de maio de 1998. Apud: FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar.
2000. p. 8, nota de rodapé).
267

completude, que justamente o deveria distinguir, no sentido de ser destinado a regular, através
de situações-tipo os possíveis centros de interesse jurídico de que o sujeito privado viesse a
ser titular.”742 O sistema é, assim, fechado exatamente em razão de sua pretensão de proteger
os institutos vitais ao modelo burguês.
Com as constituições do pós-guerra, que abriram espaço para o controle de
constitucionalidade das leis, o castelo inexpugnável do legislador foi abalado. Constatou
Paolo Grossi, “aquele controle fazia precipitar terra baixo do seu Olimpo o legislador, todo
legislador, e tornava tudo discutível, em outras palavras, o dessacralizava”. 743 O desvelamento
da mitologia desta concepção do Direito evidencia, como indica Grossi, sua artificialidade e
ao mesmo tempo seu estranhamento em relação à dinâmica social em seu constante devir.
Este desmascaramento do Direito Civil oitocentista, com suas projeções ainda mitificadas
no século XX, foi percebido de diversas formas. Sua artificialidade não poderia ser mantida,
porque a concretude social demandava reposicionamento. Orlando de Carvalho falou em
repersonalização do Direito Civil, como a
“valorização do poder jurisgênico do homem comum — sensível quando, como no direito dos negócios, a sua
vontade faz lei, mas ainda quando, como no direito das pessoas, a sua personalidade se defende, ou quando,
como no direito das associações, sua sociabilidade se reconhece, ou quando, como no direito de família, a sua
afetividade se estrutura, ou quando, como no direito das coisas e no direito sucessório, a sua dominialidade e
responsabilidade se potencializam —, é esta centralização do regime em torno do homem e dos seus
imediatos interesses que faz do Direito Civil o foyer da pessoa, do cidadão puro e simples”.744

O Direito que se reduz à regra constitui “obra passível de crítica porque suprime a idéia
mais ampla de direito e a existência de um sujeito que não é criado e não se contém na
previsão normativa. O sujeito extrapola e precede a previsão normativa”. 745 Esta percepção
tem como decorrência o desafio de desenclausurar o Direito da estatalidade legal para
recolocá-lo na sociedade. Diferentemente da simplificação promovida pelo Estado liberal,
assentado na sociedade que “é estruturalmente plural e complexa, o direito que lhe é especular
não poderá deixar de registrar essa qualidade, não poderá se propor senão como plural e
complexo”.746 Esta dimensão da sociabilidade do Direito é, a um só tempo, a de sua
historicidade. 747 A secção absoluta entre direito e fato, portanto, não mais se sustenta.

742
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 3.
743
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 98.
744
CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites. 2. ed., Coimbra: Centelha, 1981. p.
92.
745
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar. 2000. p. 101.
746
GROSSI, op. cit., p. 100.
747
A relação entre a noção de ordenamento e sociedade é claramente exposta por Pietro Perlingieri: “Preliminarmente, é
importante esclarecer que faz parte do ordenamento jurídico tudo aquilo que concorre para ordenar, isto é, para regulamentar
os fenômenos que caracterizam uma comunidade organizada de pessoas segundo uma concepção e um estilo de vida
268

Os que advogam o primado da lei, ao argumento de que esta resulta da vontade geral
manifestada pelos representantes do povo — portanto, expressão da democracia — militam
sob o manto de uma mitologia jurídica, forjada no cadinho do projeto iluminista, que se
prestou como uma luva ao intento da construção de um Estado funcionalizado à realização do
desiderato de uma única classe, a burguesa. Resulta daí um Direito monolítico que não
expressa a pluralidade e a complexidade da sociedade. A democracia formal é pressuposta,
enquanto, a democracia substancial é negada à medida que a complexidade social é
simplificada, reduzida a standards jurídicos tipificados ou não pela modelagem abstrata da
relação jurídica748 no campo das interrelações privadas.
A virada epistemológica que o Direito Civil-Constitucional promove está diretamente
vinculada à ressignificação da própria democracia. Se o Direito for reduzido à legalidade
estatal, a democracia formal pode até ser justificada, todavia, a democracia substancial exige
um Direito que como uma esponja se encharque da experiência da vida social. Paolo Grossi
sustenta que este câmbio epistemológico operou-se pela tomada “de consciência do caráter
ordenamental do direito”. Ele explica o sentido radical desta mudança: “a noção de
ordenamento tem quase o sentido de uma revolução copernicana (....) porque significa abdicar
de uma visão verticalista do direito centrada sobre a vontade do produtor da norma e sobre
seu ato de produção para valorizar a realidade objetiva que a norma pretende ordenar e que
pode eficazmente ordenar somente se levar em conta as exigências e instância provenientes
que vêm debaixo, pois embaixo são circulantes.”749 Esta noção de ordenamento liberta o
Direito de sua clausura em um sistema fechado. A consciência científica da unidade do
ordenamento permitiu, segundo Pietro Perlingieri, a superação da perspectiva do Direito Civil
essencialmente patrimonialista “e indicou novos caminhos, em parte ainda por percorrer, na
direção da democratização e eficiência do aparato do Estado e dos entes públicos”. 750 A
democratização opera-se porque a norma não é um prius autoritário, já presente no preceito

compartilhados e ou impostos. Sob este perfil é verdade que não há societas sem ius, mas também é verdade que o ius é parte
da societas, que o ius depende do tipo de societas, e vice-versa. Disso derivam alguns corolários, propedêuticos para o
desenvolvimento da investigação: a) a historicidade da societas e a historicidade do ius são um todo único; b) o ius coincide
com a societas sem exaurir-se na pura normatividade; c) o ius, que justamente pode-se definir totalidade da experiência
jurídica, é, como qualquer totalidade, necessariamente complexidade; d) a complexidade do ius exige que a sua análise não
perca a sua necessária unidade; e) tal unidade conceitual é síntese individual somente na efetividade da sua aplicação.”
(PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 194).
748
“A relação jurídica exprime menos um meio técnico para desenhar uma exposição e mais uma ordenação conceitual para
dar conta de um modo de ver a vida e sua circunstância. Sob suas vestes está menos o direito em movimento, coletivamente
considerado, e mais um direito que se afirma no confronto e na negação do outro. É um conceito superado por sua própria
insuficiência, denunciada pela tentativa de captar, atemporalmente, pessoas, nexos e liames”. (FACHIN, Luiz Edson. Teoria
crítica do direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar. 2000. p. 26.)
749
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios... p. 104.
750
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p. 148-149.
269

legal, mas, sim, um posterius que emerge de um processo unitário e indivisível de


interpretação da lei e do fato, em que o problema concreto é considerado tendo em vista o
ordenamento como um todo, ao mesmo tempo em que toda e qualquer lei é sempre
interpretada em conformidade com a Constituição.751
Nesta visão, o texto legal apenas traz em si, potencialmente, uma normatividade à espera
de completar-se e entrelaçar-se com os fatos da complexa experiência vivida pelos
destinatários últimos da norma. 752 A ressignificação do princípio da democracia se verifica
justamente porque essa perspectiva ordenamental do Direito “consente um tumultuado
irromper da pluralidade dos fatos”.753 Ainda que imponha trabalhosa ação interpretativa —
que vai muito além da exegese de um texto legal e sua aplicação por procedimento silogístico
subsuntivo — constitui conditio sine qua non ao respeito pela diversidade e pluralidade.
Elementos indispensáveis à efetivação da democracia.
Além de complexo, este projeto para o Direito pode ser qualificado, também, como
ousado, porque em última instância desloca-o de seu encastelamento na legislação estatal e o
espraia em uma sociedade, heterogênea, contraditória, plural, classista, na qual a máxima das
revoluções burguesas não faz qualquer sentido, pois, não existem iguais. Sobressaem, antes,
as diferenças e, mais que isso, as desigualdades. O Direito não encontra mais o sujeito de
direito, por ele mesmo abstratamente concebido, na idealização de todos os iguais perante a
lei. Depara-se, antes, com uma pluralidade de rostos, formações sociais, concepções de vida,
interesses, sujeições, poderes que interagem e conformam uma complexa variedade de
relações sociais. Entre as diversas formações sociais, encontram-se as famílias, não só aquela
conformada em uma dada fattispecie legal, a do casamento, mas, sim as famílias em suas
multiformes possibilidades de organização do afeto e de projetos de vida comum —
comunidades nucleares de convivência e afeição.

4.7.2 Por uma ressignificação do princípio democrático: democracia e intimidade

No Estado democrático de direito, a democracia ganha significado diverso daquele que lhe
emprestou o Estado democrático liberal. Em relação à família, a ressignificação da
democracia tem reflexos em duas dimensões. A primeira refere-se ao reconhecimento da

751
PERLINGIERI, Pietro. A doutrina do Direito Civil na legalidade constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito
civil contemporâneo – novos problemas à luz da legalidade constitucional: anais do Congresso Internacional de Direito
Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Atlas, 2008. p. 3.
752
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios... p. 105.
753
Ibid. p. 106.
270

diversidade de conformações familiares e a segunda à democratização da própria


intimidade.754 Enquanto a primeira vincula-se à pluralidade de formações sociais que podem
ser identificadas como entidades familiares, a segunda aponta para o espaço interior de cada
uma das famílias. As duas dimensões têm implicações para a abordagem da questão da
monogamia.
Se a normatização da família não é mais aquela equalizada e plasmada na abstração do
texto legal, mas resulta da atividade hermenêutica, orientada à realização dos princípios
constitucionais, se não é possível, em abstrato e a priori, dizer que determinada formação
social é ou não uma família, presente está o princípio da democracia que, segundo assenta
Pietro Perlingieri, “revoluciona a noção tradicional de comunidade familiar.” 755 Não é mais à
estrutura familiar que a tutela constitucional se direciona, porém, à função que a família
desempenha. 756 No exercício de sua função é que a família é reconhecida como tal. Logo, o
que faz a família não é a adequação desta à estrutura legal pré-definida, mas, a realização de
uma função constitucional. Com precisão registrou Maria Celina Bodin de Moraes, ao
escrever sobre a família democrática, “o que se deseja ressaltar é que a relação estará
protegida não em decorrência de possuir esta ou aquela forma, mesmo se e quando prevista
constitucionalmente, mas em virtude da função que desempenha — isto é, como espaço de
companheirismo e convivência afetiva entre pessoas humanas, quer sejam do mesmo sexo,
quer sejam de sexos diferentes”, 757 referindo-se, obviamente, às famílias homoafetivas.
A funcionalização da família tem vinculação direta com o princípio da democracia, com
assento na premissa da diversidade e não na da homogeneidade. Por esta razão, conclui Maria
Celina Bodin de Moraes que “além das uniões estáveis, das chamadas famílias recompostas e
das famílias monoparentais, devem usufruir de proteção formas alternativas, tais como as
famílias concubinas, as famílias homoafetivas, a adoção de adultos, entre outras”. 758 Decorre
do princípio da democracia a tutela das famílias que ela denominou concubinas e que, nesta

754
Giddens refere-se à intimidade como democracia e à democratização da vida pessoal. GIDDENS, Anthony. A
transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora UNESP, 1993.
p. 205.
755
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar,
1999. p. 40.
756
“O constituinte de 1988, todavia, além dos dispositivos acima enunciados, consagrou no art. 1º, III, entre os princípios
fundamentais da República, que antecedem todo o texto maior, a dignidade da pessoa humana, impedindo assim que se
pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de
instituições com status constitucional, como é o caso da empresa, da propriedade e da família.” (TEPEDINO, Gustavo.
Temas de direito civil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 352)
757
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p. 223.
758
Ibid. p. 221.
271

tese, têm sido referidas como simultâneas ou paralelas. O princípio da democracia põe por
terra a monogamia, como princípio estruturante do estatuto jurídico da família, porque a
monogamia é estritamente vocacionada à proteção da estrutura e não à tutela da função
instrumental que tem a família contemporânea. Como salientou Gustavo Tepedino, “a família
embora tenha ampliado, com a Carta de 1988, o seu prestigio constitucional, deixa de ter
valor intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de existir,
passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na medida em que — e somente na
exata medida em que — se constitua em um núcleo intermediário de desenvolvimento da
personalidade dos filhos e de produção da dignidade de seus integrantes”. 759
Esta compreensão guarda perfeita coerência com a análise de Paolo Grossi, quando afirma
que “é o Estado que impõe fronteira, que vive de fronteiras; a sociedade, realidade complexa e
aberta, sem identificações potestativas, tem confins que não se transformam nunca em
fronteiras. Alforriar o direito do vínculo necessário com o Estado constitui alforria dos
empobrecimentos causados pela miúda política”. 760 O princípio da democracia, como já antes
referido, no contexto do Direito Civil-Constitucional, ao tomar como referência a sociedade
— e não apenas o Estado — como partícipe na produção normativa, produz uma nova
compreensão do Direito de Família.
As sociedades, certamente, não têm fronteiras. O Estado, sim. 761 Especialmente em razão
do fabuloso processo migratório experimentado, na atualidade, não há como pensar
democracia sem considerar a diversidade cultural. Como poderia o Estado, a título de uma
pré-formatação de estrutura familiar fixada em suas leis, negar reconhecimento a determinada
família estrangeira que, para a sua constituição como tal, não encontrou óbice na regra da
monogamia, em seu país de origem. Trata-se, por exemplo, do caso de famílias de origem
árabe que migraram para o Brasil. 762 O outro — o diferente, o estrangeiro — traz consigo

759
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil... p. 352
760
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios... p. 118.
761
Lembra Zygmunt Bauman: “Durante os dois séculos da história moderna, as pessoas que não conseguiam transformar-se
em cidadãos — os refugiados, os migrantes voluntários e involuntários, os “deslocados” tout court — foram naturalmente
assumidos como um problema do país hospedeiro e tratados como tal”. (BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido – sobre a
fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p.160).
762
Sobre o tema deve ser referido valioso estudo: TRUZZI, Oswaldo. Sociabilidades e valores: um olhar sobre a família
árabe muçulmana em São Paulo. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 51, n. 1, 2008, pp. 37 a 74.
O autor demonstra, por exemplo, que os critérios para sucessão causa mortis são diferentes daqueles adotados pelas leis
brasileiras, com notáveis benefícios paras os filhos em detrimento das filhas. Ao homem cabe duas vezes o que couber à
mulher. A adoção de crianças — que constitui, atualmente, um valor para o Direito de Família brasileiro — é vetada pelas
leis islâmicas. As regras religiosas para os muçulmanos têm maior efetividade do que para os cristãos ocidentais, que
experimentaram um longo processo de secularização. Desta forma, “a religião tem, para os muçulmanos, uma influência ao
mesmo tempo profunda e abrangente sobre suas atitudes e condutas. Para os muçulmanos, todos os atos necessários à vida
humana encerram um sentido e um significado religioso, contido na chari’a, conjunto de preceitos religiosos islâmicos. A
chari’a estabelece regras para as práticas religiosas, para as famílias e os casamentos, para a conduta e interação social, para a
272

indagação e questionamento para a própria cultura considerada nacional. Esta, também, não é
uniforme. Não existe uma cultura brasileira, salvo por força do exercício da soberania do
Estado que elimina os que não se enquadrarem nos limites que impõe. “Sendo a soberania o
poder de definir os limites da humanidade, as vidas dos seres humanos que caíram ou foram
jogados para fora desses limites não valem a pena,”763 como pondera Zygmunt Bauman. A
noção de vidas que não valem a pena, no extremo dos Estados totalitários, explica o
extermínio do diferente.
O conceito de democracia — que foi erigido de forma estreitamente vinculada à própria
noção de soberania e de Estado, resultante este último da vontade geral que o instala — na
atualidade, põe em questão a própria ideia de soberania estatal. Os refugiados são
demonstração escancarada da insuficiência ou mesmo da falência do Estado democrático.
“Eles são expulsos à força ou afugentados de seus países nativos, mas sua entrada é recusada
em todos os outros. Não mudam de lugar — perdem seu lugar na terra, catapultados para
lugar algum...”764 As restrições e a suspeição não incidem apenas sobre os chamados
migrantes econômicos, mas mesmo aqueles que em outros tempos seriam tidos como pessoas
no exercício de seus direitos humanos, buscando asilo, acabam também postos sob suspeita e
estranhamento. Fala-se em outsiders.
Viabiliza-se a democracia somente se o humano não for convertido ou reduzido ao
nacional, portanto, ao idêntico. Por mais que várias repúblicas tenham proclamado que se
fundam sobre o princípio da dignidade humana, com o Brasil, por mais que esse ideal
encontre amparo na perspectiva segundo a qual a comunidade humana e a liberdade
individual são faces de uma mesma tarefa, a democracia somente se instaura onde e quando
houver espaço para o outro.
Se parece certo que — considerado o princípio da democracia na acepção que hoje dele é
demandada — deve ser respeitada a família árabe que se instala no Brasil, conformada
segundo os ditames culturais marcadamente religiosos, no seio dos quais a poligamia se
apresenta como uma possibilidade, por que não deveria ser igualmente respeitada e acolhida

ingestão de alimentos e para o próprio asseio pessoal.” (TRUZZI, Oswaldo. Sociabilidades e valores: um olhar sobre a
família árabe muçulmana em São Paulo. p. 44) Relata, ainda, o autor que das entrevistas por ele realizadas com a comunidade
árabe muçulmana de São Paulo, sobre o tema sensível da opressão da mulher no mundo islâmico, “o discurso dominante dos
entrevistados é que a religião muçulmana, ao contrário, confere um papel de destaque às mulheres no ambiente familiar, ao
valorizá-las por seu caráter e virtude, e não por sua beleza e juventude, protegendo-as assim muito mais que na cultura
ocidental, na qual uma monogamia imposta e hipócrita apenas acoberta traições e exime os homens de suas responsabilidades
no tocante a relacionamentos extraconjugais”. (TRUZZI, Oswaldo. Sociabilidades e valores: um olhar sobre a família árabe
muçulmana em São Paulo. p. 64)
763
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p.158.
764
Ibid. p.164.
273

como família aquela conformada de maneira semelhante por brasileiros?765 A sociedade não
conhece fronteiras. O tema da diversidade não pode ser colocado no campo do exótico. O
outro não é tão somente o estrangeiro. O outro é o próximo, o vizinho, o conterrâneo.
Especialmente, no Brasil, com suas dimensões continentais, a uniformização da estruturação
das famílias só pode ser levada adiante por um projeto autoritário. O princípio da democracia
não admite um fora do mundo em seu próprio mundo e não deve admitir, também, estar fora
do mundo — ainda que seja a nação — qualquer um que integre a comunidade humana. Este
princípio implica um território no qual caibam todos e cada qual com suas idiossincrasias,
peculiaridades, modo de ser e de viver e, sobretudo, com liberdade e autonomia para gerir o
projeto de sua própria vida em coexistência com os demais.
Logo, face ao respeito à pluralidade, como exigência e pressuposto da democracia, parece
não haver lugar para a imposição da monogamia como princípio ditado pelo Estado a toda
sociedade. Ao se impor tal princípio de forma generalizante criam-se espaços para
desclassificados, para outsiders.
A democracia, no âmbito da família, deve pressupor também que as decisões resultem da
formação de consensos ou de procedimentos democráticos típicos. Porém, mais que nos
cenários públicos, a democracia nos pequenos grupos e, especialmente, na família inclui “a
liberdade de decidir o curso da própria vida e o direito de protagonizar um papel ao forjar um
destino comum. Abriga ainda as noções de pluralismo e de diversidade cultural, vinculando
solidariamente os membros de grupos diversos. Ela se refere, enfim, a um amplo espectro de
perspectivas e de estilo de vida, interligando os diferentes grupos sociais em direção à
coexistência pacífica e uma respeitosa integração.”766
Ao tratar sobre a democratização da intimidade, Anthony Giddens fala do “envolvimento
dos indivíduos na determinação das condições de sua associação”.767 Para ele, este
envolvimento evidencia a diferença radical entre o casamento tradicional e as relações de
conjugalidade atuais, para as quais abrem-se possibilidades democratizantes e de efetiva
transformação da intimidade. Ele cogita de um contrato móvel,768 isto é, um instrumento

765
O portal de notícias da Rede Globo trouxe reportagem, no dia 19 de setembro de 2011, sobre aposentado de 90 anos que
vive com três esposas, no sertão de Campo Grande, Rio Grande do Norte. Fora os 17 filhos de um primeiro casamento, com
as três esposas atuais teve mais 45. O caso é obviamente caricato, mas constitui amostra de circunstância q ue não é de todo
incomum. (http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/09/aposentado-de-90-anos-tem-tres-mulheres-69-filhos-e-100-netos-no-
rn.html - Consulta: 25/09/2011).
766
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana... p. 211.
767
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. São
Paulo: Editora UNESP, 1993. p. 207.
768
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade... p. 207.
274

constitutivo do relacionamento, que dá base para permanente discussão aberta sobre a


natureza e condições de tal conjugalidade, de qualquer sorte, sempre passível de
renegociações. Para Giddens “um contrato móvel não lida com absolutos éticos. (...) O
imperativo da comunicação livre e aberta é o sine qua non do relacionamento puro; o
relacionamento é o seu próprio fórum.”769
Nesta perspectiva da democratização da intimidade que pressupõe a efetiva superação da
mitologia da democracia moderna, criticada por Grossi, parece não haver lugar para o
acolhimento da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico da família, pois,
não compete ao Estado impor regras quanto à estrutura familiar. A democratização da
intimidade abre largos espaços para o exercício da autonomia privada no âmbito das situações
subjetivas existenciais. A conformação das conjugalidades ou, para usar a expressão de
Giddens, a determinação das condições de associação [familiar] deslocou-se da esfera do
regramento estatal para o campo da normatização social, isto é, para o âmbito da
democratização da intimidade.
Neste âmbito, questão que se apresenta diz respeito às imbricações entre sexualidade e
democracia. Para Giddens não se trata da adoção de um pluralismo radical. Nenhum limite é
colocado, a priori, à sexualidade, “salvo aqueles ocasionados pela generalização do princípio
da autonomia e pelas normas negociadas do relacionamento puro”.770 Desta forma, não
compete ao Estado estabelecer regra para disciplinar a sexualidade. O limite está posto na
garantia da autonomia privada e na dignidade da pessoa humana. Não se convertendo a
sexualidade em meio de dominação ou expressão de uma compulsão que avilte o outro, esta
deve ser regulada tão somente pelo pacto estabelecido entre os consortes.
Certo é que da mesma forma como a igualdade (capacidade de recursos econômicos,
culturais e operativos) é requisito para a democratização política, também o é para a
democratização da intimidade. Ainda que não seja a equiparação ou a total isonomia, só
haverá democracia efetiva se garantidas as condições essenciais para a democratização dos
relacionamentos pessoais. Logo, da mesma forma que a democracia, no campo público, não
se estabelece por decreto, mas constitui-se em complexo processo de emancipação social,
também, o mesmo se passa na democratização da conjugalidade. 771 Este fator contribui para

769
Ibid. p. 211.
770
Ibid. p. 212.
771
Giddens sublinha que “a democratização no terreno público, não somente em relação ao Estado-nação, promove as
condições essenciais para a democratização dos relacionamentos pessoais. Mas o inverso também se aplica. O avanço da
autonomia própria no contexto dos relacionamentos puros é cheio de implicações para a prática da democracia na
comunidade mais ampla.” (GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade... p. 213). Não é sem razão que a
275

alterar o papel do Estado no que se refere à sua intervenção nas relações familiares. Não lhe
cabe mais regular impositivamente as relações conjugais. Se não se abstiver, contribuirá para
limitar a autonomia indispensável ao exercício democrático. Sua atividade restringe-se cada
vez mais à tutela daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade. Em outras
palavras, o Estado entra em cena tão somente quando, em razão da desigualdade ou da
vulnerabilidade de uma das partes (cônjuge/companheiro), seus direitos são desrespeitados.
Não é incomum que a sexualidade esteja relacionada à violência. Em geral, violência de
homens dirigida às mulheres ou às crianças, portanto, um exercício abusivo e repulsivo do
poder. Logo, será o próprio ideário emancipatório da democracia, na esfera familiar, que
chamará o Estado a intervir nessas relações para afastar o despotismo. Todavia, o Estado não
deve intervir a priori e em demasia nas relações conjugais. Sem autonomia não existe
possibilidade democrática. A monogamia poderá ser — e em grande parte dos
relacionamentos conjugais é — norma declarada ou no mínimo pressuposta na autoregulação
estabelecida pela autonomia dos integrantes de uma dada conjugalidade. Não pode, todavia,
constituir-se regra estatal imposta, genericamente, a todos e muito menos princípio
estruturante do estatuto jurídico da família contemporânea. O princípio constitucional da
democracia aplicado às situações subjetivas existenciais e, mormente, às relações conjugais
levanta significativos óbices à concepção da monogamia como princípio jurídico.

democratização das relações familiares, no Brasil, decorre em grande medida do processo de democratização do País, ao
passo que, em estados autoritários, o despotismo também tem sua expressão doméstica.
276

5 CONCLUSÃO

A tese da superação da monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico das


famílias contemporâneas não tem neste espaço compromisso com uma dada afirmação
ontológica como se pretendesse a exposição de uma verdade captada da análise jurídica da
regulação das relações familiares. Insere-se e se reconhece em âmbito muito mais modesto e,
paradoxalmente, mais verdadeiro, isto é, o do Direito como argumento ou retórica.
Admitir-se nesse locus epistemológico significa dizer que não se tem a pretensão de
excluir da ciência — lato sensu — o juízo de valor, nem tão pouco a motivação de uma
mobilização político-intelectual, mas, por outro lado, também, não implica a redução ou a
submissão do discurso acadêmico a um projeto de militância por mais que este possa
representar altos e louváveis ideais.
O que se afirma não é o desvelamento de uma verdade como se o discurso fosse o
instrumento de sua dicção. O enunciado da superação da monogamia como princípio insere-se
no campo da argumentação. Percebem-se significativas fissuras na antiga e monolítica
regulação estatal das relações familiares. As rédeas da regulação visivelmente escapam às
mãos do Estado.
Durante o lapso de tempo em que se produziu este texto, significativas alterações
ocorreram no Direito de Família brasileiro. A Emenda Constitucional nº 66 não trouxe apenas
alterações relativas ao divórcio. A simples supressão que operou no texto constitucional terá
ainda significativas reverberações na concepção jurídica do casamento. A interpretação
conforme a Constituição assumida pelo Supremo Tribunal Federal consagrou o
reconhecimento jurídico da união estável entre pessoas do mesmo sexo. O Superior Tribunal
de Justiça julgou recurso especial, fixando precedente de reconhecimento do direito ao
casamento civil a casais homoafetivos. Neste tempo e lugar sensíveis às mudanças é que se
inscrevem as reflexões aqui desenvolvidas.
Se a Igreja nos séculos XII ao XVII e depois o Estado a partir do século XVIII, mas,
sobretudo, a partir do século XIX, encerraram a conjugalidade no âmbito das instituições
fundamentais da cultura escrita e no espaço público, onde permaneceu até o último quadrante
do século XX, tudo está a indicar que forças centrífugas impulsionam atualmente a
conjugalidade para “o domínio não propriamente privado, mas da intimidade, da
277

espontaneidade pura.”772 Se esta é a tendência — como se buscou demonstrar — não há mais


lugar para o rígido controle da conjugalidade por parte do Estado, e conseqüentemente, para a
monogamia como princípio estruturante do estatuto jurídico das famílias.
As condições para este câmbio lento, mas significativo, estabeleceram-se por força de um
processo de democratização da intimidade, pelo qual os indivíduos autônomos e capazes de
administrar seus relacionamentos não dependem mais tão decisivamente de elementos
normativos heterônomos para manter ou dissolver tais relações. Não será o domínio coercitivo
da lei do Estado ou da dominação masculina que manterá os relacionamentos. Neste sentido,
os movimentos emancipatórios das mulheres também foram fundamentais. Por outro lado, o
pluralismo cultural experimentado pelas sociedades ocidentais quebrou a rigidez e o
monopólio do modelo de conjugalidade imposto primeiramente pela Igreja e depois pelo
Estado. Não menos decisivo foi o processo de laicização que o Direito já vem sofrendo deste
as revoluções burguesas, mas, que ganhou nova feição depois da segunda metade do século
XX. Todo este conjunto de fatores ocasionou ambiente propício para significativas mudanças
nas relações de família.
Ainda que se possa opor teses em defesa da monogamia, considerado o sistema
constitucional vigente, não há dúvida de que a força argumentativa dos que advogam a
subsistência do princípio perdeu pujança. Sob os princípios constitucionais da dignidade
humana, da solidariedade, da igualdade, da liberdade e da democracia, uma nova concepção
jurídica da família está em construção. O secular modelo sofreu tão notórias alterações, que
propalar simplesmente como vigente o princípio da monogamia que consolidou e manteve tal
modelo evidencia-se como postura anacrônica. Mas não se trata de mero anacronismo. O
núcleo fundamental da reflexão levada a efeito teve como objetivo maior evidenciar que a
afirmação da monogamia como princípio implica a exclusão de direitos fundamentais
especialmente de determinadas mulheres e, também, intromissão indevida e indesejável do
Estado na esfera da liberdade e da intimidade.
Ao colocar em questão a monogamia não se tem em vista, todavia, a mera defesa de um
postulado. De forma subjacente, presente está intenção mais ampla, qual seja a de repensar os
fundamentos jurídicos da conjugalidade contemporânea. A empreitada está em pleno
andamento. Trata-se daquele tipo de reforma que se faz sem que os moradores deixem a casa.
Entre o permanente e o efêmero, entre o que é de longa duração e o transitório, as famílias

772
Esta suspeita é, entre outros, compartilhada por Philippe Ariès. Sobre o tema conferir especialmente: ARIÈS, Philippe. O
casamento indissolúvel. In: ARIÈS, Philippe e BÉJIN, André. Sexualidades Ocidentais – Contribuições para a história e
para a sociologia da sexualidade. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 182.
278

vão-se remodelando. Não se pode, todavia, fechar os olhos ao que gradativamente ganha
evidência discursiva no consenso possível e nos provisórios acordos semânticos.
A conjugalidade, no Brasil, tem suas peculiaridades, por isso, ao colocar em questão a
monogamia, buscou-se referenciar a reflexão na herança colonial de modelos que tornaram
exponenciais os efeitos do patriarcalismo com repercussões até o presente. O concubinato
evidenciou-se como subproduto do princípio da monogamia. Este princípio constituiu
instrumento adequado à proteção patrimonial da família matrimonializada, mas também,
colateralmente, funcionou como instalador de um estatuto de exclusão da mulher referida
sempre de forma pejorativa como concubina. Evidenciar a construção desses lugares de não-
direito, em contrariedade aos princípios constitucionais, constituiu por certo o objetivo
nuclear da pesquisa efetivada.
Sem necessariamente apontar rupturas no sistema, intentou-se evidenciar que o princípio
da monogamia como norma estatal não cumpre, na atualidade, o papel estruturante do estatuto
jurídico da família que desempenhou em passado não muito distante. Se a monogamia
subsiste como norma, verifica-se significativa tendência de que esta resulte tão somente do
exercício da liberdade daqueles que entre si estabelecem relação coexistencial, e não mais da
imposição de uma regulação estatal da conjugalidade. Por certo, as interrogações e
inquietações que provocaram o desenvolvimento desta tese foram formuladas no olho do
furacão das mudanças que se vêm operando. O futuro que faz o pretérito mais sereno
confirmará suspeitas ou mesmo evidenciará equívocos. Nem os mais cautelosos ao fazer
ciência evitaram ou evitarão esta contingência formidavelmente humana, o risco.
279

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional: sobre a tolerância, direitos


humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009.

ALBUQUERQUE FILHO, Carlos Cavalcanti. Famílias simultâneas e concubinato adulterino.


In: PEREIRA. Rodrigo da Cunha. Família e cidadania – o novo CCB e a vacatio legis
(Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família). Belo Horizonte: IBDFAM/Del
Rey, 2002 (p. 143 – 161).

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

ALMEIDA, Angela Maria Mendes de. Família e modernidade - O pensamento jurídico


brasileiro no século XIX. São Paulo: Porto Calendário, 1999.

______. O gosto do pecado - Casamento e sexualidade nos manuais de confessores dos


séculos XVI e XVII. 2. ed., Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

ALMEIDA, Cândido Mendes de (Org). Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de


Portugal. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomathico, 1870. Texto original
digitalizado disponível em <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm>.
Acessado em <26 de agosto de 2011>.

AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Racionalidade e sistema no direito civil brasileiro.
Separata de: O Direito, Rio de Janeiro, a. 126, v. 1-2, p. 63-81, 1994.

ARANTES, Antonio Augusto [et alli]. Colcha de retalhos – estudos sobre a família no
Brasil. 3. ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1994. p. 15-42.

ARAUJO, Glaúcio. Aposentado de 90 anos tem três mulheres, 69 filhos e 100 netos no RN. O
Globo. Disponivel em: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/09/aposentado-de-90-anos-
tem-tres-mulheres-69-filhos-e-100-netos-no-rn.html>. Acessado em: <25/09/2011>.

ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2001.

ARIÈS, Philippe. O casamento indissolúvel. In: ARIÈS, Philippe e BÉJIN, André.


Sexualidades Ocidentais – Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade.
3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
280

ARIÈS, Philippe. História Social da criança e da família. 2. ed., Rio de Janeiro: Guanabara,
1981.

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. 3 ed.. São Paulo: Atlas, 2011.

______. Dever de coabitação: inadimplemento. 2. ed., São Paulo: Atlas, 2009.

BARASH, David; LIPTON, Judith Eve. O mito da monogamia. Rio de Janeiro: Record,
2007.

BARBOZA, Heloísa Helena Gomes. Perspectivas do direito civil brasileiro para o próximo
século. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, nº 6/7, p. 27-39,
1998,1999.

BARBOZA, Heloísa Helena. Novas tendências do direito de família. Revisa da Faculdade


de Direito da UERJ. Rio de Janeiro, v. 2, p. 227-232, 1994.

BARCELLONA, Pietro. Diritto privato e società moderna. Napoli: Jovène, 1996.

______. El individualismo propietario. Madrid: Trotta, 1996.

BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação


constitucional. In: BARROSO, Luiz Roberto. A nova interpretação constitucional:
ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.
55.

BARROSO, Luis Roberto. Constitucionalização do direito e do direito civil. In: TEPEDINO,


Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo – novos problemas à luz da legalidade
constitucional: anais do Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do
Rio de Janeiro. São Paulo: Atlas, 2008. p. 256.

BARROSO, Luiz Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova
interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In; SILVA, Virgílio
Afonso da. (Org.) Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007.

BARRETTO, Vicente de Paulo. Multiculturalismo e direitos humanos: um conflito insolúvel?


In: BALDI, César Augusto (Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004. p. 279-308.
281

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido – sobre a fragilidade dos lações humanos. Rio de
Janeiro: Zahar, 2004, p.70.

BÉJIN, André. O casamento extraconjugal dos dias de hoje. In: ARIÈS, Philippe e BÉJIN,
André. Sexualidades Ocidentais – Contribuições para a história e para a sociologia da
sexualidade. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido.


Petrópolis: Vozes, 2004.

BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1956. v. 2.

______. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943.

______. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956.

BITTENCOURT, Edgard de Moura. O concubinato no direito. Rio de Janeiro: Alba, 1961.


2 v.

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone,
1995. p. 66.

BOFF, Leonardo. Justiça e cuidado: opostos ou complementares? In: PEREIRA, Tânia da


Silva; OLIVEIRA, Guilherme. O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense,
2008.

BOLOGNE, Jean-Claude. História do casamento no ocidente. Lisboa: Temas e Debates,


1999.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

______. La domination masculine. In: Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 84,
septembre 1990. pp. 2-31.

______. Novas reflexões sobre a dominação masculina. In: LOPES,M. J.M. et all (org.)
Gênero e saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

______. O poder simbólico. 6. ed., Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2003.


282

BOURDIEU, Pierre. O mercado de bens simbólicos. In: MICELI, Sergio (Org.), A economia
das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

CAETANO, Marcelo. Recepção e Execução dos Decretos do Concílio de Trento em Portugal.


Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 19, p. 5-87, Lisboa,
1965, p.8.

CALVINO, Juan. Institución de la religión cristina. v. II Rijswijk: Stichting Uitgave


Reformatorisch Boeken,1967. p. 1167

CANARIS, Claus-Wilheim. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na


Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e
direito privado. 2. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

______. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2. ed. Lisboa:


Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In:
FACHIN, Luiz Edson (Coord.) Repensando fundamentos do direito civil brasileiro
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

______. Reserva de intimidade: uma possível tutela da dignidade no espaço relacional da


conjugalidade. Rio de Janeio: Renovar, 2008.

______. Maria Silvana. Laicidade e família: um diálogo necessário a partir do olhar de


Stefano Rodotà. In: TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson. Diálogos sobre direito
civil. Vol. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.

CARBONNIER, Jean. Flessibile diritto: per uma sociologia del diritto senza rigore. Milano:
Dott. A. Giuffrè, 1997.

CARVALHO, Orlando de. A teoria da relação jurídica: seu sentido e limites. 2. ed.
Coimbra: Centelha, 1981.

CERCEAU NETTO, Rangel. A família ao avesso: “o viver de portas adentro” na comarca do


rio das velhas no século XVIII. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Jul/ Ago/ Set
– 2008, Vol. 5, Ano V, nº 3. Disponível em:
<http://www.revistafenix.pro.br/PDF16/ARTIGO_12_RANGEL_CERCEAU_NETTO_FENI
X_JUL_AGO_SET_2008.pdf>. Acessado em <08/08/2011>
283

CHAVES, Antônio. Lições de direito civil: direito de família. Vol. 3. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1975.

CHAUI, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. 12. ed., São Paulo:
Brasiliense, 1991.

COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral, religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1977.

CORRÊA, Mariza. Repensando a família patriarcal brasileira: notas para o estudo das formas
de organização familiar no Brasil. In: ARANTES, Antonio Augusto [et alli]. Colcha de
retalhos – estudos sobre a família no Brasil. 3. ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1994.
p. 15-42.

CORREAS, Oscar. Crítica da ideología jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1995.

______. Introducción a la crítica del derecho moderno. 2. ed. Puebla: Universidad


Autónoma de Puebla, 1986.

DAMASIO, Celuy Roberta Hundzinski. Luta contra a excisão. In: Revista Espaço
Acadêmico, ano I, n 3, ago/2001 - http://www.espacoacademico.com.br/003/03col_celuy.htm
- consulta em 20/11/2011)

DANTAS, San Tiago. Direito de família e das sucessões. Rio de Janeiro: Forense: 1991.

DIAMOND, Jared M. Por que o sexo é divertido: a evolução da sexualidade humana. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999.

DIAS, Maria Berenice. A estatização das relações afetivas e a imposição de direitos e deveres
no casamento e na união estável. In: PEREIRA. Rodrigo da Cunha. Família e cidadania – o
novo CCB e a vacatio legis (Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família).
Belo Horizonte: IBDFAM/Del Rey, 2002. p. 301 – 308.

______. Manual de direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

DIEZ-PICAZO. Familia y derecho. In: Familia y derecho. Madrid: Civitas, 1984.


284

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 23. ed., São
Paulo: Saraiva, 2008. v. 5.

DUSSEL, Henrique. Ética da libertação – na idade da globalização e da exclusão. 2. ed.,


Petrópolis: Vozes, 2002.

DUSSEL, Henrique. Para uma ética da libertação latino-america. v. II, São Paulo: Loyola,
s.d., 149.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 2. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007.

EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria
marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador – uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar,
1994. v. 1.

ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 1988.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 12. ed.,


Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.

FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade
da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang
(Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed., Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2006. p. 89 – 106.

FACHIN, Luiz Edson. A nova filiação – crise e superação do estabelecimento da paternidade.


In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Repensando o direito de família – Anais do I Congresso
Brasileiro de direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 123-133.

______. Elementos críticos do direito de família: curso de direito civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999.

______. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar. 2000.

______. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar. 2001.


285

______. Virada de Copérnico: um convite à reflexão sobre o direito civil brasileiro


contemporâneo. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.) Repensando fundamentos do direito
civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

FEBVRE, Lucien. Martín Lutero: un destino. México: Fondo de Cultura Económica, 1956.
p. 113 e 114

FERRY, Luc. O homem deus ou o sentido da vida. Rio de Janeiro: Difel, 2007.

FERNANDES, Maria de Lurdes Correia. Espelhos, cartas e guias – casamento e


espiritualidade na Península Ibérica (1450-1700). Porto: Instituto de Cultura Portuguesa,
1995.

FERREIRA, Luiz Pinto. Investigação de paternidade, concubinato e alimentos. São Paulo:


Saraiva, 1980.

FLAQUER, Lluís. La estrella menguante del padre. Barcelona: Ariel. 1999.

FOUCAULT, Miche. A história da sexualidade – O cuidado de si. 7. ed., Rio de Janeiro:


Graal, 2002.

FOX, Robin. As condições da evolução sexual. In: ARIÈS, Philippe e BÉJIN, André.
Sexualidades Ocidentais – Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade.
3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

______. A história da sexualidade – O uso dos prazeres. 9. ed., Rio de Janeiro: Graal, 2001.

______. A história da sexualidade – A vontade de saber. 14. ed., Rio de Janeiro: Graal,
2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

FREITAS, Augusto Teixeira. Esboço do Código Civil. Brasília: Fundação Universidade de


Brasília, 1983.

FREITAS, Juarez. A melhor interpretação constitucional versus a única resposta correta.


Revista latino-americana de estudos constitucionais, Belo Horizonte, n. 2, p. 279-316,
jul./dez. 2003. p. 283.
286

______. A interpretação sistemática do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sobre o regime da
economia patriarcal. 47. ed., São Paulo: Global, 2003.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo – uma espécie de família. 2 ed.
São Paulo: RT, 2001.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas


sociedades modernas. São Paulo: Editora UNESP, 1993.

GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 2001.

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

______. Direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

______. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família. São Paulo:
Saraiva, 2005. v.6

GONTIJO, Sigismundo. Igualdade conjugal. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Direito de


família e do menor: inovações e tendências – doutrina e jurisprudência. 3. ed., Belo
Horizonte: Del Rey, 1993. p. 172.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed.,


São Paulo: Malheiros, 2009.

GRINBERG, Keila. Código civil e cidadania. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 37 e 38.

GROSSI, Paulo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2.ed. São Paulo: Boiteux, 2007.

______. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.


287

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e validade. Vol. I. Rio de


Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 297.

HESPANHA, António Manuel. Imbecillitas: a linguagem da desigualdade e da


discriminação no discurso jurídico de antigo regime. São Paulo: Annablume, 2010.

HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.

HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. (Edição Comemorativa – 70


anos) São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2008.

______. Critica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
(Os pensadores v. 25)

KOLODY, Helena. Helena de Curitiba: poemas selecionados de Helena Kolody.


Coordenação Grupo de Marketing do Grupo Positivo. Curitiba: Positivo, 2005.

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de


Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras. 1988.

LARENZ, Karl. O estabelecimento de relações obrigacionais por meio de comportamento


social típico. Revista Direito GV. v. 2, n. 1, p. 055 – 064, jan/jun 2006.

______. Metodologia da ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,


1997.

LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do


casamento. Curitiba: Juruá, 1991.

LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo


Brasileiro, 1993.

______. As estruturas elementares do parentesco. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.


288

LOBÔ, Paulo Luiz Neto. A repersonalizaçaõ das relações de família. In: BITTAR, Carlos
Alberto (Coord.). O direito de família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989.
p. 53-81.

______. Constitucionalização do direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília,


a. 36, nº 141, p. 99-109, jan./mar. 1999.

LOBÔ, Paulo Luiz Neto. Entidade familiares constitucionalizadas: para além do numerus
clausus. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, nº 12, p. 40-55,
jan./mar. 2002.

______. O princípio constitucional da solidariedade nas relações de família. In: CONRADO,


Marcelo; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Direito privado e constituição: ensaios para uma
recomposição valorativa da pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009.

______. Direito civil: famílias. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2010.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. 3. ed., (Série Os Pensadores). São Paulo:
Abril Cultural, 1983.

LOYOLA, Maria Andréa. Sexo e sexualidade na antropologia. In: LOYOLA, Maria Andréa
(org.). Sexualidade nas ciências humanas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.

LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação: paradigmas da filosofia,
filosofia da libertação e direito alternativo. Florianópolis: Contexto. 2006.

LUTERO, Martin. Lutero ao Landgrave Filipe – 24 de julho de 1540. In: LUTERO, Martin.
Obras selecionadas. v. 5 – fundamentos, oração, sexualidade, educação, economia. São
Leopoldo: Sinodal, 1995. p. 293.

______. Do cativeiro babilônico da igreja. São Paulo: Martin Claret, 2011

MACFARLANE, Alan. História do casamento e do amor: Inglaterra: 1300-1840. São


Paulo: Companhia das Letras, 1990.

MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 83

MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e costume na sociedade selvagem. 2. ed. Brasília: UNB,


2008. p. 10
289

MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e sistema constitucional – a decisão judicial


entre o sentido da estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008.

MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e solidariedade social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas
relações de consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A reconstrução do direito
privado. São Paulo: RT, 2002. (p. 611-661) p. 617.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 1999.

MATOS, Ana Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição


feminina. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

MAXIMILIANO, Caros. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed., Rio de Janeiro:


Forense, 2002. p. 83.

MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de


Janeiro: Renovar, 2009.

______. Em busca da nova família: uma família sem modelo. In: TEPEDINO, Gustavo;
FACHIN, Luiz Edson. (Orgs.) Pensamento crítico do direito civil brasileiro. Curitiba:
Juruá. 2011. (415-426) p. 415.

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 13. ed., São
Paulo: Saraiva. 2007.

______. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

MIALLE, Michel. Introdução crítica ao direito. Lisboa: Estampa, 1994.

MICHEL, Andrée. Sociologia da família e do casamento. Porto [Portugal]: Res, 1983.

MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito de família. 3. ed. São
Paulo: Max Limond, 1947.

______. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. Tomo II.

______. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. Tomo VIII.
290

MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro:
Borsoi, 1956. Tomo VII.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito de família. 33. ed., São
Paulo: Saraiva, 1996.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Família democrática. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha.
Família e dignidade humana. V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB
Thomson, 2006.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. In:
TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coords). O direito e o tempo: embates
jurídico e utopias contemporâneas. Estudos em homenagem ao professor Ricardo Lira.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 847-881.

MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: 1986. p. 17

MORGAN, L. H. A família antiga. In: CANEVACCI, Massimo (Org.). Dialética da família.


2. ed., São Paulo: Brasiliense. 1982. (p. 54 – 70)

MOUFFE, Chantal. Teoria política, direitos e democracia. In: FONSECA, Ricardo Marcelo
(Org). Repensando a teoria do estado. Belo Horizonte: Fórum, 2004.

NAMUR, Samir. A desconstrução da preponderância do discurso jurídico do casamento


no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

NAMUR, Samir e KLEIN Vinicius. A boa-fé objetiva e as relações familiares. In:


TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson. Diálogos sobre direito civil. Vol. III. Rio de
Janeiro: Renovar, 2012.

NEVARES, Ana Luiza Maia. Entidades familiares na Constituição: críticas à concepção


hierarquizada. In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira. et. all (Org.) Diálogos sobre direito
civil: construindo a racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 291 –
315.
291

OLIVEIRA José Lamartine Corrêa; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família:
direito matrimonial. Porto Alegre: Fabris, 1990.

PRIORE, Mary del. História do amor no Brasil. 2. ed., São Paulo: Contexto, 2006.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Concubinato: sua moderna conceituação. Revista Forense,
v. 190, a. 57, jul/ago 1960. (p. 13-17)

______. Concubinato: sua moderna conceituação. Revista Forense: comemorativa - 100


anos. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 151-160, v. 4.

______. Instituições de direito civil. Vol. V. 11. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família.


Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Comentários ao novo código civil. Vol. XX: da união
estável, da tutela, da curatela. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

PEREIRA, Sérgio Gischkow. Algumas reflexões sobre a igualdade dos cônjuges. In:
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Direito de família e do menor: inovações e tendências –
doutrina e jurisprudência. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1993.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3.


ed., Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

______. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2008.

PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Famílias simultâneas e monogamia. In: PEREIRA, Rodrigo da


Cunha.: Família e dignidade humana. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de
Família. São Paulo: IOB Thompson, 2006. (p. 193-221).

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Autonomia privada e estado democrático de direito. In:


CLÈVE, Clèmerson Merli; SARLET, Ingo Wolfgang; PAGLIARINI, Alexandre Coutinho.
Direitos humanos e democracia. Forense: Rio de Janeiro: Forense, 2007.

PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo:


Brasiliense; Publifolha, 2000. p. 363.
292

PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982.

PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no


Brasil colônia. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2009.

RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade


sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. (Coord.) Repensando fundamentos do direito
civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

______. Família constitucionalizada e pluralismo jurídico. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha.


Direito de Família: a família na travessia do milênio. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.

RAMOS, José Saulo Pereira. A “Lei piranha” ou o fim do casamento à moda antiga. In:
Folha de São Paulo, 21 mar. 1995. Caderno 3, p. 1.

RIBEIRO, Luiz Felipe C. Sexualidade cristã primitiva nos catálogos de vícios - história e
arqueologia de uma interdição. Oracula, São Bernardo do Campo, n. 6 a. 3, 2007. p. 150-160,

RICOEUR, Paul. O Justo 1: a justiça como regra moral e como instituição. São Paulo: WFM
Martins Fontes, 2008.

RODOTA, Stefano. El terrible derecho: esdudios sobre la propriedad privida. Madrid:


Civitas, 1986.

______. Perché laico. Bari: Laterza & Fighi, 2009.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: Direito de família. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v.
6.

______. Direito civil: Direito das sucessões. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v.7.

RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1957. v. 2.

RUZYK, Carlos Eduardo Pianoviski; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O direito de família na


Constituição de 1988 e suas repercussões no direito das sucessões: convergências e dissensões
na senda da relação entre o Código Civil e a Constituição. In: CONRADO, Marcelo;
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Direito privado e constituição – ensaios para uma
recomposição valorativa da pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá. 2009. p. 429-455.
293

RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias simultâneas: da unidade codificada à


pluralidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

______. Famílias simultâneas e monogamia. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família e


dignidade humana. V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB Thomson,
2006. p. 193 – 221.

______. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s): repensando a dimensão


funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ, 2010.

SARACENO, Chiara; NALDINI, Manuela. Sociologia da família. 2. ed., Lisboa: Estampa,


2003.

SARACENO, Chiara. Sociologia della famiglia. Bologna: Mulino, 1988

SARLET, Ingo. Breves notas sobre a contribuição dos princípios para a renovação da
jurisprudência brasileira. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo –
novos problemas à luz da legalidade constitucional: anais do Congresso Internacional de
Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Atlas, 2008.

SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição


Federal de 1988. 3. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2004.

SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2.


ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SARMENTO, Daniel. Ubiqüidade constitucional: os dois lados da moeda. In: SOUZA


NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do direito:
fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2007.

______. Interpretação constitucional, pré-compreensão e capacidades institucionais do


interprete. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira; SARMENTO, Daniel e BINENBOJM,
Gustavo. Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008.

SCHREIBER, Anderson. O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. In: PEREIRA,


Rodrigo da Cunha. Família e dignidade humana: Anais do V Congresso Brasileiro de
Direito de Família. São Paulo: IOB Thompson, 2006. p. 193-221.

SILVA, Amélia Maria Polónia da. Recepção do Concílio de Trento em Portugal: as normas
enviadas por D. Henrique aos bispos do Reino, em 1553. Revista da Faculdade de Letras –
História. II Série, Vol. II, Porto, 1990.
294

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed., São Paulo:
Melheiros, 2004.

SILVA, Marcos Alves da. Do pátrio poder à autoridade parental: repensando


fundamentos jurídicos da relação entre pais e filhos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

______. O caso da mulher invisível – a refundação dohumano como tarefa política do direito
civil contemporâneo: uma análise de acórdão do STF – RE 397.762. Revista Trimestral de
Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 47, p. 151-162, jul/set. 2011.

SILVA, Paulo Lins e. O casamento como contrato de adesão e o regime legal da separação de
bens. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord). Anais do III Congresso Brasileiro de
Direito de Família. Família e cidadania. O novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte:
Del Rey, 2002, p. 353-363.

SILVA FILHO, José Carlos Moreira. Filosofia jurídica da alteridade. Curitiba: Juruá. 1999.

SILVEIRA, Alípio. Do concubinato e seus efeitos jurídicos. In: Archivo Judiciario.


Suplemento, v. 61, p. 63-74, jan. 1942.

The Canons and Decrees of the Council of Trent. Disponivel em:


<http://www.ccel.org/ccel/schaff/ creeds2.v.i.i.xi.html>. Acessado em: <09.01.2010>

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias
entre a norma e a realidade. São Paulo: Atlas, 2010.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

______. Editorial: Unidade do ordenamento e teoria da interpretação. In: Revista Trimestral


de Direito Civil, v. 30, Rio de Janeiro: Padma, abr.-jun. 2007, p. iii-iv.

______. Editorial: Itinerário para um imprescindível debate metodológico. In: Revista


Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro: Padma v. 35, jul.-set. 2008. iii-v.

______. A disciplina civil constitucional das relações familiares. In: TEPEDINO, Gustavo.
Temas de direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro: 2001.
295

______. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In:


TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro: 2001.

TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do


Consumidor e no novo Código Civil. Revista da EMERJ, n. 23, Rio de Janeiro, v. 6, 2003.
p. 139-151.

TEPEDINO, Maria Celina Bondin de Morais. A caminho de um direito civil constitucional.


Revista de Direito Civil, São Paulo, n. 65, p. 21-33, 1993.

TORRES-LODONÕ, Fernando. A outra família – concubinato, igreja e escândalo na


colônia. São Paulo: Loyola, 1999.

TRUZZI, Oswaldo. Sociabilidades e valores: um olhar sobre a família árabe muçulmana em


São Paulo. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 51, n. 1, 2008,
pp. 37 a 74.

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

VANCE, Carole. A antropologia redescobre a sexualidade: um comentário teórico. Physis:


Revista de Saúde Pública, Rio de Janeiro, UERJ, v. 5, nº 1, p. 7-31. 1995.p. 10

VELOSO, Zeno. Código civil comentado: direito de família, alimentos, bem de família,
união estável, tutela e curatela: arts. 1.694 a 1.783, vol. XVII. São Paulo: Atlas, 2003.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 10. ed., São Paulo: Atlas, 2010.

VEYNE, Paul et. all (Org.). História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras,
1989 -1991. (5 volumes).

VILLELA, João Batista. Sobre a igualdade de direitos de direitos entre homem e mulher. In:
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord). Direitos de Família e do Menor, 3. ed., Belo
Horizonte: Del Rey, 1993. p. 148.

ZAMBERLAM, Cristina de Oliveira. Os novos paradigmas da família contemporânea –


uma perspectiva interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

ZAMORA, Maria Helena. A burca: notas para a compreensão do estupro. In: Revista
Vivência. UFRN/CCHLA. n.32, p. 311-320. Natal, 2007. p. 312.

Você também pode gostar