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FERNANDO PESSOA – IDÉIAS ESPARSAS

IDÉIAS ESTÉTICAS/LITERÁRIAS
Descendemos de três movimentos mais antigos – o simbolismo francês, o panteísmo
transcendentalista português, e a baralhada de coisas sem sentido e contraditórias de que o
futurismo, o cubismo e outros quejandos são expressões ocasionais, embora, para sermos
exactos, descendamos mais do seu espírito do que da sua letra.

Prepara-se em Portugal uma renascença extraordinária, um res-surgimento assombroso. (...)


Tenhamos fé. Tornemos essa crença, afinal, lógica, num futuro mais glorioso do que a
imaginação o ousa conceber, a nossa alma e o nosso corpo, o quotidiano e o eterno de nós.
Dia e noite, em pensmento e acção, em sonho e vida, esteja connosco, para que nenhuma de
nossas almas falte à sua missào de hoje, de criar o supra-Portugal de amanhã.

E a nossa grande Raça partirá em busca de um Índia nova, que não existe no espaço, em
naus que são construída “daquilo de que os sonhos são feitos”.
(Trechos de A Nova Poesia Portuguesa – 1912)

OS PORTUGUESES
Há três espécies de Portugal, dentro do mesmo portugal; ou, se se preferir, há três espécies
de português. Um começou com a nacionalidade: é o português típico, que forma o fundo
da nação e de su expansão numérica, trabalhando obscura e modestamente em Portugal e
por toda a parte de todas as partes do mundo. Este português encontra-se, desde 1578,
divorciado de todos os governos e abandonado por todos. Existe porque existe, e é por isso
que a nação existe também.
Outro é o português que não o é. Começou com a invasão mental estrangeira, que data, com
verdade possível, do tempo do Marquês de Pombal. Esta invasão agravou-se com o
Constitucionalismo e tornou-se completa com a República. (...) Está completamente
divorciado do país que governa. É, por sua vontade, parisiense e moderno. Contra sua
vontade, é estúpido.
Há um terceiro português, que começou a existir quando Portugal, por alturas de El-Rei
D.Dinis, começou, de Nação, a esboçar-se Império. Esse português fez as Descobertas,
criou a civilização transoceânica moderna, e depois foi-se embora. Foi-se embora em
Alcácer Quibir, mas deixou alguns parentes, que têm estado sempre, e continuam estando, à
espera dele. ( Fragmento de As três espécies de português)

Produto de dois séculos de falsa educação fradesca e jesuítica, seguidos de um século de


pseudo-educação confusa, somos as vítimas individuais de uma prolongada servidào
colectiva. (...) Produto assim de educações dadas por criaturas cuja vida era uma perpétua
traição àquilo que diziam que eram, e às crenças ou idéias que diziam servir, tínhamos que
ser sempre dos arredores. (Trecho de Uma prolongada servidão coletiva)

Vem tudo a propósito de chegar a dizer qual é tragédia de Portugal. É a de que, tendo
vários eruditos, e muita gente inteligente, pouquïssima gente temos que seja culta. Vejam
quanta cultura, quando lhe apresentam qualquer coisa de novo, procura compreender. Um
homem culto procura sentir. Perceber envolve um esforço. Sentir envolve uma passividade
deliciosa. O efeito enérgico, violento, pouco indolente do português leva-o para a acção
precipitadamente. A ciência da inacção, a mais civilizada das ciências, pouco está
desenvolvida entre nós. A nossa tendência para agir ficou-nos, como uma maldição, da
aventura das descobertas. Expiamos a glória dos nossos maiores na doentia preocupação do
útil. (Trecho de Falta de gente culta)

Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o
seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina
social àquele ponto de excesso em que cousa nenhuma – por boa que seja – e eu não creio
que a disciplina seja boa – por força que há de ser prejudicial.
(...)
Somos incapazes de revolta e de agitação. Quando fizemos uma “revolução” foi para
implantar uma cousa igual ao que já estava. Manchámos essa revolução com a brandura
com que tratámos os vencidos. E não nos resultou uma guerra civil, que nos despertasse;
não nos resultou uma anarquia, uma perturbação das consciências. Ficamos
miserandamente os mesmos disciplinados que éramos. Foi um gesto infantil, de superfície e
fingimento.
Portugal precisa dum indisciplinador. ( Trecho de Excesso de disciplina)

O português é capaz de tudo, logo que não lhe exijam que o seja. Somos um grande povo
de heróis adiados. Partimos a cara a todos os ausentes, conquistamos de graça todas as
mulhere sonhadas, e acordamos alegres, de manhã tarde, com a recordação dolorida dos
grandes feitos a cumprir. Cada um de nós tem um Quinto Império no bairro, e um auto-
D.Sebastião em série fotográfica no Grandela.
Smos hoje um pingo de tinta seca da mão que escreveu Império da esquerda à direita da
geografia. É difícil distinguir se o nosso passado é que é o nosso futuro, ou seo nosso futuro
é que é o nosso passado. Catamos o fado a sério no intervalo indefinido. O lirismo, diz-se, é
a qualidade máxima da raça. Cada vez cantamos mais um fado.
O Atlântico continua no seu lugar, até simbolicamente. E há sempre Império desde que haja
Imperador. (Um grande povo de heróis adiados)

A PÁTRIA PORTUGUESA
No seu sentido superior e profundo, a desvalorização internacional da nação portuguesa
deriva de três factores conjugados (da acção conjugada de três fatores) – a incultura, geral
como profissional, do indivíduo português e sobretudo do indivíduo das classes médias; a
deficiência de propaganda de Portugal no estrangeiro; e a ausência de consciência superior
da nacionalidade. (Trecho de A Nação e o problema nacional)

PESSOA VISIONÁRIO
O verdadeiro patrono do nosso País é esse sapateiro Bandarra. Abandonemos Fátima por
Trancoso.Esse humilde sapateiro de Trancoso é um dos mestres da nossa alma nacional,
uma das razões de ser da nossa independência, um dos impulsionadores do nosso
sentimento imperial.
Esse Bandarra é a voz do povo português, gritando, por cima da defecção dos nobres e dos
clérigos, por cima da indiferença dos cautos e dos incautos, a existência sagrada de
Portugal.
(...)
Ë Bandarra um nome colectivo, e designa, não um só homem, o primeiro português que
teve a visão profética dos destinos do país, senão também aqueles outros, que se lhe
seguiram, e que, servindo-se do seu tipo de visão e da sua forma literária, buscaram
legitimamente o anonimato designando as suas trovas como sendo do Bandarra também.

De todos os povos da Europa somos aquele em que é menor o ódio a outras raças ou a
outras nações. É sabido de todos, e de muitos censurado, o pouco que nos afastamos das
raças de cor diferente quando [...]
Nunca tivemos uma ânsia verdadeira de conquista. Nossa posição geográfica, de uma parte,
nossa pequenez, de outra, no-lo inibiam. Frutos dessas condições mésicas, somos assim. O
que de ódio nasceu em nós contra castelhanos, contra franceses, contra ingleses (contra
alemães nunca verdadeiramente chegamos a ter ódio, tão pouco somos ddos a isso),
derivou de justas causas, de agressòes, de perigos e de explorações de que temos sido
vítimas.
Os índios da ïndia inglesa dizem que são índios, os da Índia portuguesa que são
portugueses. Nisto, que não provém de qualquer cálculo nosso, está a chave de nosso
prossível domínio futuro. Porque a essência do grande imperialismo é converter os outros
em nossa substância, o converter os outros em nós mesmos. Assim nos aumentamos, ao
passo que o imperialismo de conquista só aumenta os nossos terrenos, e o de expansão o
número de os imperialismos da Besta da cabala e de Apocalipse.
(Fragmentos do “livro” inacabado Comentário maior às profecias do Bandarra)

O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi


português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma
colectividade é cada um dos indivíudos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é
cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser
indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é
cosmopolita – como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de
uma Renascença nova – o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só
portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar.
(...)
O Quinto Império [é o futuro da raça portuguesa]. O futuro de Portugal – que não calculo,
mas sei – está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas
quadras de Nostradamo. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a
estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português
verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estética do catolicismo, quando fora dele
há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos
mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo superior? Não queiramos que
fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar:
resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os
Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser
tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma cousa!
Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos
os deuses, só os deuses todos são verdade.
(Trechos de entrevista concedida a António Alves Martins, publicada na Revista
Portuguesa, n.23/24, de 13/10/1923)
EXTRAÍDO DO VOLUME OBRA EM PROSA DE FERNANDO PESSOA: PORTUGAL,
SEBASTIANISMO E QUINTO IMPÉRIO. Pref., introd., notas e org. de António Quadros.
Mem Martins: Europa-América, 1986. (Livros de Bolso, 472)

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