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A EUROPA DIVIDIDA
Raízes confessionais e desdobramentos políticos das Reformas Religiosas
no século XVI
São Paulo
2021
Introdução
Este ensaio tem como objetivo analisar de forma breve quais foram os fatores que
propiciaram o desenvolvimento de diferentes reformas religiosas na Europa ao longo do
século XVI e como se deram diferentes articulações e produções de ideias em relação aos
problemas do homem da época, analisando o papel de Martinho Lutero, as consequências
da popularização de sua obra e em que contexto se deu o Concílio de Trento por parte da
Igreja Católica.
O sentimento de angústia e medo em relação à morte era uma ideia que permeava
o imaginário popular ao longo do século XV na Europa, se difundindo a crença de que
depois do Grande Cisma ocorrido no século XI nenhuma alma havia alcançado o paraíso
(DELUMEAU, 1989, p. 61). De fato, a quantidade de eventos catastróficos desenrolados
nos últimos anos como a peste negra e diversas crises e guerras serviram para alimentar
a crença de que a humanidade estava condenada por seus pecados abomináveis cometidos
e se encontrava num período de fim dos tempos e chegada de seres como o anticristo,
fomentando o anseio pela salvação pessoal desses medievais angustiados. O próprio
Lutero fez seu voto de dedicação à vida de monge numa violenta tempestade em que
suplicara à Santa Ana que o auxiliasse, tomado pelo temor de partir sem estar preparado.
Pouco tempo depois a morte viria a se transformar em tema de idealização popular em
torno da igualdade de todos os seres humanos perante o inevitável beijo da morte e
beiraria a exaltação de representações artísticas relativamente mórbidas, acabando por
influenciar inclusive a exaltação da figura do Cristo crucificado. (DELUMEAU, 1989).
Outras ideias que prepararam terreno para a publicação das 95 teses de Lutero
envolvem a ascensão da ideia do individualismo humano e como este de relacionou no
plano religioso com um misticismo no parâmetro teológico. Primeiramente, há de se
concordar que tal ideia propicia uma legitimação do Estado laico e influenciou para que
se delimitasse campos separados quando se trata do racional, terreno e científico e quando
se trata do campo do divino incognoscível à razão humana, rompendo com a tradição de
São Tomé de Aquino que via os dois campos como pertencente a algo só, deixando de se
pensar que o ser humano era de fato a imagem de semelhança de seu criador
(DELUMEAU, 1989, p. 68).
Martin Lutero, filho de pequeno dono de terra, conciliou sua vida acadêmica à
uma vivência de monge por escolha própria e se debruçou por alguns anos para refletir a
respeito das questões que o faziam divergir da Igreja romana e para formar a base do
pensamento protestante que seria continuado por outros nomes como Calvino e seu
discípulo mais moderado Melanchton. Lutero se convencera durante sua estadia no
convento que tinha sido um monge bondoso e que se atentou a observar a regra divina de
forma intensa, portanto, se algum monge tivera alcançado a salvação através da vida
monástica, Lutero também iria alcançar .Além disso, influenciado pelos escritores
místicos do século XV como Tauler e o do célebre occamista G. Biel, o espírito
protestante se apropriou dos conceitos de separação entre o domínio do terreno e humano
e o domínio divino do Deus incognoscível, tendo o segundo aspecto do Deus insondável
o influenciado mais fortemente (DELUMEAU, 1989, p. 85 - 86).
Apesar de os resultados dos estudos humanistas terem servido mais para satisfazer
o desejo da construção de uma moral por parte das elites do que para adentrar no
imaginário da fé popular, o sentimento de apreço pelos idiomas grego e hebraico instigou
Lutero para que publicasse uma versão da bíblia traduzida para um alemão de acesso
popular e que foi capaz de levar até as grandes massas suas resoluções, muito embora as
primeiras edições tinham um volume de publicação bastante limitado. A bíblia se torna
neste momento uma peça-chave para influenciar tanto o desenvolvimento da Igreja
protestante quanto o cenário da educação na Alemanha.
Vale se mencionar, conforme Febvre (2012), que Lutero não ingressara em sua
jornada procurado formar uma nova doutrina e causar tamanho impacto no século XVI,
mas sim de cuidar de suas questões individuais em relação à salvação de sua alma sendo
que “o que importa a Lutero, de 1505 a 1515, não é a reforma da Igreja. É Lutero, a alma
de Lutero, a salvação de Lutero. Apenas isso”. (FEBVRE). E este faria isso também a
partir da sua área de especialidade, a educação.
Uma vez que até mesmo Cristóvão Colombo teria dito que quem possui o ouro
tem tudo o que precisa neste mundo, até mesmo o poder de resgatar almas do purgatório
e conduzi-las ao paraíso (RALEIGH, 1910), do mesmo modo se deu os dirigentes da
Igreja Romana que, apesar de estipularem a necessidade da confissão e da comungação
para que se obtivesse as indulgências, é nítido que isso não impediu que diferentes
populações, principalmente as menos instruídas e as mais ricas, acreditassem no
pagamento em dinheiro como instrumento de compra de seu lugar no paraíso tampouco
impediu a Igreja de aceitar tais bens materiais. Muito pelo contrário, o papel das relíquias
- que são os restos mortais e apetrechos de homens e mulheres considerados santos pela
Igreja – fomentou o envolvimento material na salvação da alma e culto a relíquias mais
raras como as de Jesus e a Virgem Maria já vinham a assegurar esta salvação após a
morte, bem como destacou o papel dos espaços das Igrejas e das viagens de peregrinação
(DELUMEAU, 1989).
Para Delumeau (1989), a reforma da Igreja Católica pode ser dividida em dois
momentos, sendo estes a pré-reforma e a partir do início do Concílio de Trento (1545-
1563). Em resumo, conforme Prodi (2005), o dilema enfrentado pela Igreja nos anos que
sucederam os encontros se dá em torno de como manter o magistério e a jurisdição
universal dentro de um período em que o poder vem se deslocando cada vez mais para
dentro dos Estados modernos. Em contraposição às Igrejas protestantes que
desenvolveram um estreito relacionamento e aliança institucional e ideológica com o
Estado, a Igreja procurou por outro se focar na construção de uma soberania paralela que
pudesse ser universal mas que ficasse distante do direito positivo estatal. Num nível mais
profundo, a questão central é o controle das consciências e das almas (PRODI, 2005, p.
293). Tal articulação dos simpatizantes protestantes com o Estado é ressaltada conforme
Trevor-Roper (1972) não só na comum identificação da classe burguesa com o espírito
calvinista em especial e com a mudança de vários destes cidadãos para países em que o
Estado tinha ligações mais próximas com a ala protestante com o fim de que fornecessem
melhores condições para esta classe, sendo tal valor integrante mais tarde da chamada
ética protestante (TREVOR-ROPER, 1972).
Referências Bibliográficas