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rabalho Interno é um documentário sobre a crise financeira mundial de 2008 que

concorre ao Oscar de Melhor Documentário e é, aparentemente, o favorito. Devo dizer,


logo de cara, que o filme merece os elogios que vem recebendo e, se receber o prêmio,
ele será 100% merecido.

E a razão principal não é por sua perfeição como documentário pois ele tem falhas (que
eu relevei completamente diante de suas qualidades), mas sim porque ele serve como
um balde de água gelada em todos nós, que dormimos diante de tamanha crise global.
É um choque elétrico no sistema para fazer ele voltar à vida e a funcionar com todo o
vigor. É completamente impossível assistir a esse documentário de maneira passiva já
que ele mais parece um filme de horror.

Já vi muita gente reclamar do didatismo desse filme e como ele não trata das mazelas
sofridas pelas vítimas do sistema financeiro. Para esse pessoal, com todo respeito, eu
digo: besteira!

O filme é sobre o colapso do sistema financeiro mundial. Todo mundo sabe que isso
aconteceu, alguns sabem mais ou menos o porquê mas ninguém - que não seja do
mercado financeiro ou estudioso dessa área - tem os detalhes do que ocorreu (e ainda
vem ocorrendo) e, principalmente, sabe exatamente o que significam termos como
"derivativos", "subprime" e CDO. Assim, o didatismo, que realmente é alto nesse
documentário, faz-se completamente necessário, essencial até para que o filme alcance
o maior número possível de pessoas. Se o diretor Charles Ferguson não tivesse
investido tempo trabalhando definições e usando exemplos bem simples que se repetem
ao longo da fita, o documentário seria hermético e de difícil digestão.

A boa notícia é que Ferguson consegue ser didático sem ser chato. Consegue explicar
sem nos chamar de burros. E consegue evoluir da explicação para as conseqüências. É
bem verdade que, às vezes, ele até pode exagerar, mas ele tinha um função a cumprir
e garanto que ele a cumpriu muito bem: assustar os espectadores.

Sobre as mazelas das vítimas do sistema financeiro, creio que quem diz que Ferguson
não tratou disso não viu o mesmo filme que eu vi. De fato, ele não entrevista as vítimas
mas, com isso, também não apela para os dramas pessoais, para o sentimentalismo
barato. Ele as mostra aqui e ali mas sem torná-las o foco do documentário. Na verdade,
esse documentário é um alerta e as vítimas são todos nós, espectadores, não só os que
efetivamente perderam suas casas. O festival de horrores que ele mostra ao longo de
120 minutos deixou-me com o coração disparado e uma forte azia. Se isso não é fazer
um filme eficiente, eu não sei o que é.

Ferguson pontilha seus comentários e aulas de economia fordummies com entrevistas


editadas de maneira esperta, que evitam longos discursos dos entrevistados. Ele
entrevista desde a cafetina de um bordel de luxo especializado em clientes de Wall
Street até a Ministra de Finanças da França, passando por professores de Harvard, o
mega-especulador George Soros e ex-membros do Tesouro dos Estados Unidos. Ele não
deixa ninguém escapar e, muitas vezes, ele dá uma de Michael Moore e cutuca
veementemente os entrevistados, com resultados constrangedores e incrivelmente
alarmantes. Mas fiquem tranqüilos que o estilo Moore de ser aparece poucas vezes e de
maneira muito requintada, quase que perfeitamente natural nas entrevistas. Prestem
atenção especialmente nos professores de economia que recebem dinheiro para
escrever teses dizendo que tudo está uma maravilha. São momentos imperdíveis de
tragicomédia.

Atualíssimo e narrado por Matt Damon, Trabalho Interno é um filme obrigatório para
todos nós que queremos entender um pouco do tamanho do problema ao nosso redor
para nos preparar para o que ainda está por vir. Afinal, em tese, pelo jeito que as coisas
estão andando, esse documentário terá continuação...

Mais sobre o filme: IMDB, Rotten Tomatoes, Box Office Mojo eFilmow.

Luiz Gonzaga Belluzzo

"Inside Job", documentário imperdível

O sempre instigante Eu& Fim de Semana publicado nas edições de sexta-feira do Valor, ofereceu a seus
leitores uma entrevista do economista Lawrence Summers. Summers, entre outras proezas, ficou
conhecido por declarações polêmicas. Recomendou o incentivo à deslocalização de indústrias poluidoras
para os países da periferia. Reitor de Harvard, Summers decretou a incapacidade da inteligência
feminina em lidar com as complexidades das "hard sciences".

Observei Summers no café do pavilhão onde se realizava a reunião do Fórum Mundial Davos, em 1993.
Entre um gole de café e outro, Summers iniciou um sermão aos circunstantes sobre políticas econômicas
nos países em desenvolvimento. As lições de Summers sucederam uma tertúlia sobre a economia
mexicana que, segundo os participantes da mesa, navegava de velas enfunadas rumo à prosperidade.
Não faltaram reverências e salamaleques ao então presidente Salinas de Gortari e a seu ministro da
Fazenda, Pedro Aspe.

Sentados na plateia, o professor Carlos Antonio Rocca e este locutor que vos fala, entre estarrecidos e
irritados, ouvíamos os julgamentos peremptórios que fluiam do debate entre os sabidos da academia e
financistas mais sabidos ainda. As opiniões iam da celebração incondicional do modelo mexicano às
referências derrisórias ao Brasil. Digo estarrecidos porque, naquele momento, o México apresentava um
déficit em transações correntes de 8% do Produto Interno Bruto (PIB), déficit fiscal elevado e a
dolarização galopante de sua dívida interna, infestestada de Tesobonos.

Em dezembro de 1994, o México quebrou vítima de uma "parada súbita" e só sobreviveu com o socorro
do Tesouro Americano e do Fundo Monetário Internacional (FMI), providência destinada a salvar os
bancos de Tio Sam. Summers, então subsecretário do Tesouro de Clinton capitaneou a operação de
salvamento.

Não havia como escapar da impressão de que Summers era encarnação mais acabada do personagem
de Molière, o "idiot savant", cheio de si, como tantos outros que se abrigam sob o manto hoje
prestigioso dos estudos da economia. (Evito a expressão ciência econômica para evitar que o ego já
inflado dos sabichões sofra um processo fatal de inchaço e implosão).

Pois Summers é um dos personagens centrais do imperdível documentário "Inside Job" de Charles
Ferguson que, na madrugada de ontem, levou o Oscar na sua categoria. O título do filme foi traduzido
para o português como "Trabalhos Internos" - é lamentável a falta de imaginação do tradutor, que
provavelmente não viu o filme. "Inside Job" é uma expressão idiomática. Um amigo, mais versado do
que eu no idioma de Shakespeare, sugeriu "Trabalhos Promíscuos".

O documentário mostra que Summers faturou uma nota preta ao ministrar palestras remuneradas pelos
senhores do Universo sobre as maravilhas da desregulamentação financeira. Entre suas idas e vindas ao
governo, dedicava-se a assessorar instituições financeiras mediante farta remuneração. Não sei se ele
está no rol de 19 economistas investigados no estudo do seu colega Gerald Epstein, da Universidade de
Massachusetts Amherst.

O estudo trata do conflito de interesses entre a atividade acadêmica, a ocupação de funções no Estado e
as atividades de consultoria, quando os personagens não advertem a opinião pública a respeito de suas
ocupações e pertinências. Essa confusão de papéis está gerando um movimento entre os economistas
americanos para a adoção de um código de ética.

Não se trata de limitar as atividades profissionais dos economistas, mas sim de tornar claro ao público
que as opiniões podem estar viciadas e deformadas pela infiltração de interesses estranhos à
independência acadêmica e à função pública.

Enquanto secretário do Tesouro de Clinton, Lawrence Summers trabalhou intensamente para a


aprovação no Congresso dos Estados Unidos do Gramm-Leach-Bliley Act. Essa lei derrotou a legislação
dos anos 1930, o Glass-Steagal Act, que separava os bancos de depósito, os bancos de investimento,
seguradoras e instituições voltadas para o financiamento imobiliário e "fundeadas" na poupança das
famílias.

Os mercados financeiros contemporâneos lograram capturar os controles da economia e do Estado,


mediante o incrível aumento do seu poder social e político. As transformações ocorridas no sistema
financeiro desataram a livre e brutal concorrência no capitalismo da grande empresa e das grandes
instituições financeiras.

A expressão grande demais para falir esconde mais do que revela. Nos últimos anos, a securitização e a
alavancagem construíram uma teia de relações de débito e crédito entre as grandes instituições
espalhadas pelo mundo. Os bancos de investimento e os demais bancos sombra aproximaram-se das
funções monetárias dos bancos comerciais, abastecendo seus passivos nos "mercados atacadistas de
dinheiro" ("wholesale money markets"), amparados nas aplicações de curto prazo de empresas e
famílias. Não por acaso, a dívida intrafinanceira como proporção do PIB americano cresceu mais
rapidamente do que o endividamento das famílias e das empresas. Esse fenômeno corresponde ao
controle da riqueza social pelas instituições privadas, o que torna impossível a omissão dos bancos
centrais quando um elo da cadeia se rompe.

O depoimento mais constrangedor, entre tantos de "Inside Job", é prestado pelo economista Frederick
Mishkin. Ex-membro do Federal Reserve, Mishkin não consegue explicar porque às vésperas do colapso
dos bancos da Islândia produziu um relatório que assegurava a estabilidade do sistema financeiro do
país, mediante o estipêndio de US$ 124 mil.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e


professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.

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