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ISBN: 978-65-990822-7-6

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VI Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil
Tradição, (R)evolução, (Re)invenção: A Literatura do Século XXI
26 a 30 de outubro de 2020

ANAIS
ISBN: 978-65-990822-7-6

Organizadoras

Renata Junqueira de Souza


Berta Lúcia Tagliari Feba
Cláudia Leite Brandão
Juliane Francischeti Martins Motoyama
Marisa Oliveira Vicente
Renata Bianchi

PRESIDENTE PRUDENTE
2020

1
VI Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil
Tradição, (R)evolução, (Re)invenção: A Literatura do Século XXI
26 a 30 de outubro de 2020

COMISSÃO CIENTÍFICA:

Grupo Temático 1 : Experiências na educação básica com a escrita do


texto literário
Elisa Maria Dalla-Bona (Universidade Federal do Paraná).
Maria Zilda da Cunha (Universidade de São Paulo)
Wellington Furtado (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - Corumbá)
Rosa Maria Cuba Riche (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Leonardo Montes Lopes (Universidade de Rio Verde - UniRV)

Grupo Temático 2 : Literatura Infantil para crianças pequenas


Mônica Correia Baptista (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG)
Renata Nakano (Clube Quindin)
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto (Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho - Marília)

Grupo Temático 3 : Poesia e oralidade


Silvana Ferreira de Souza Balsan (Faculdades de Dracena)
José Hélder Pinheiro Alves (Universidade Federal de Campina Grande)
Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira (Unesp/Assis)

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Grupo Temático 4: A literatura juvenil e jovens leitores


Berta Lúcia Tagliari Feba (Faculdade de Presidente Prudente)
Rauer Ribeiro (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul)
Pedro Afonso Barth (Universidade Estadual de Maringá)

Grupo Temático 5: Literatura infantil e as relações com a imagem


Marta Passos Pinheiro (Centro Federal de Educação Tecnológica de Belo
Horizonte)
Hércules Tolêdo Corrêa (Universidade Federal de Ouro Preto)
Rogério Barbosa da Silva (Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas
Gerais)

Grupo Temático 6: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens


Fabiane Verardi Burlamaque (Universidade de Passo Fundo)
Diogenes Buenos Aires de Carvalho (Universidade Estadual do Piauí)
Gislene Aparecida da Silva Barbosa (Instituto Federal de São Paulo, IFSP -
Campus Presidente Epitácio)

Grupo Temático 7: Temas polêmicos, interdições e censura na literatura


infatil e juvenil
Rosa Maria Hessel (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Sandra Franco (Universidade Estadual de Londrina)
Edgar Roberto Kirchof (Universidade Luterana do Brasil)

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Grupo Temático 8: Literatura infantil e ensino


Daniela Segabinazi (Universidade Federal da Paraíba)
Rosana Rodrigues da Silva (Universidade do Estado do Mato Grosso)
Elizabeth da Penha Cardoso (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

Grupo Temático 9: Os espaços de leitura literária


Alcione Santos (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul)
Rovilson José da Silva (Universidade Estadual de Londrina)
Antônio Cézar Nascimento de Brito (Faculdade Projeção)

Grupo Temático 10: Educação literária, Letramento literário, formação e


mediação de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender
Eliane Santana Dias Debus (Universidade Federal de Santa Catarina)
Silvana Augusta Barbosa Carrijo (Universidade Federal de Goiás)
Adriana Lins Precioso (Universidade do Estado de Mato Grosso)
Mariana Cortêz (Universidade Federal da Integração Latino-Americana)

Grupo Temático 11: Literatura e estratégias de leitura


Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues (Universidade Federal de Mato Grosso)
Joice Ribeiro Machado da Silva (Escola de Educação Básica - Universidade
Federal de Uberlândia)
Adair de Aguiar Neitzel (Universidade do Vale do Itajaí)

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Grupo Temático 12: Literatura infantil e juvenil e outras áreas do


conhecimento
Maria Helena Hessel (Universidade Federal do Ceará)
José Carlos Debus (Unidade de Ensino de Santa Catarina)
Márcia Tavares (Universidade Federal de Campina Grande)

Grupo Temático 13: Contação de histórias, teatro e dramaturgia: A leitura


literária em outros contextos
Fabiano Tadeu Grazioli (Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões)
Ilsa do Carmo Vieira Goulart (Universidade Federal de Lavras)
Rosemary Lapa de Oliveira (Universidade Estadual da Bahia)

Grupo Temático 14: Contos de fadas, recontos e o insólito da narrativa


ficcional
Andréia de Oliveira Alencar Iguma (Centro Universitário da Grande Dourados)
Marisa Martins Gama-Khalil (Universidade Federal de Uberlândia)
Regina Michelli (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)

Grupo Temático 15: O legado de Monteiro Lobato para a cultura brasileira


Fernando Teixeira Luiz (Universidade do Oeste Paulista)
Ana Cláudia Fidelis (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Patricia Beraldo Romano (Universidade do Sul e Sudeste do Pará)
Maria Laura Pozzobon Spengler (Instituto Federal Catarinense)

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COMISSÃO ORGANIZADORA:
Comissão organizadora docente Comissão organizadora
discente
Aletéia Eleutério Alves Chevbotar Adriana Jesuino Francisco
Andréia de Oliveira Alencar Iguma Alessandra Costa
Cyntia G. Guizelim Simões Girotto Ana Paula Carneiro
Daniela Maria Segabinazi Beatriz Alves de Moura
Elianeth Dias Kanthack Hernandes Cássia Carolina Piva
Gislene Aparecida da Silva Barbosa Clara Cassiolato Junqueira
Joana D'Arc Batista Herkenhoff Cleide de Araújo Campos
Joice Ribeiro Machado da Silva Cristiane de Alcântara
Kênia A. de Aquino Modesto Silva Estela Ap. de Souza dos Santos
Leonardo Montes Lopes Eva Dacome
Marcia Tavares Gabrielly Doná
Mariana Cortêz Isabela Delli Colli Zocolaro
Ricardo Cassiolato Torquato Izabela Cruz Faccioli
Silvana Ferreira de Souza Balsan Júlia Piciula Peres
Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues Leonardo Yudi Higuti
Vânia Kelen Belão Vagula Lucas Colodo Nicodemos da Silva
Patrícia Nascimento Teixeira
Renan Moreira Ulloffo
Robson Guimarães de Faria
Sarah Gracielle Teixeira Silva
Thays de Padua Teixeira
Thiago Moessa Alves
Victor Simoes Zamberlan
Vinicius Lage

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Apresentação

O CELLIJ, da Faculdade de Ciência e Tecnologia – UNESP Presidente Prudente


– foi criado em 1995 com o objetivo principal de formar leitores a partir do texto
literário. Também tem como meta proporcionar um diálogo direto com
professores, jovens alunos, instâncias governamentais responsáveis pela
implementação de políticas públicas no campo da Educação, bem como com
discentes do curso de Pedagogia, seus docentes e com integrantes do Programa
de Pós-Graduação em Educação.
O Centro, que atende crianças e jovens da Educação Infantil até os anos finais
do Ensino Fundamental, conta em sua história. Com vários projetos financiados,
nacional e internacionalmente. Vale ressaltar, ainda, que o, CELLIJ atua com
políticas públicas de leitura, pesquisa e comparando índices de desempenho de
estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
A literatura infantil e juvenil vem passando por transformações de várias ordens
nos últimos anos. Muitas delas estão relacionadas com as novas configurações
da sociedade e culturais que emergem no cenário contemporâneo,
frequentemente matizado a partir de conceitos como sociedade pós-moderna,
sociedade da informação, resistência, modernismo tardio, entre outros.
Dentro desse cenário heterogêneo e marcado por uma grande liberdade de
criação, as obras mais recentes trazem inovações tanto no que diz respeito à
sua forma desse cenário heterogêneo e marcado por uma grande liberdade de
criação, as obras mais recentes trazem inovações tanto no que diz respeito à
sua forma quanto às temáticas e às questões abordadas. Diante desse contexto,
o Congresso do CELLIJ de 2020, em sua programação, dialoga com o tradicional
e com o novo, em meio a uma crise instaurada, seja na censura ou no
cancelamento de políticas públicas de leitura. Nesse cenário, o Congresso
pensa, principalmente na capacidade de autores, editoras e ilustradores de
reinventar a partir desse contexto político e cultural
Comissão Organizadora.

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AUTOR HOMENAGEADO: Ricardo Azevedo

O CELLIJ ganhou a arte do Congresso de 2020 de


um grande amigo, Ricardo Azevedo. Devido à
parceria estabelecida desde 2001, ele foi escolhido
para estrelar em um momento de homenagem no
Congresso.
Ricardo Azevedo é um importante escritor,
ilustrador, compositor e pesquisador paulista que há anos figura no cenário
brasileiro como um dos representantes de um estilo literário que rompe com a
pedagogização dos textos e evidencia a relevância de crianças e jovens terem
uma experiência estética com textos literários. Além de suas obras de ficção, o
autor, inspirado por seu ídolo Câmara Cascudo, desenvolve um trabalho de
excelência em pesquisar e publicar trabalhos sobre temas como discurso
popular, literatura e poesia, problemas do uso da literatura na escola, cultura
popular, música popular brasileira e questões relativas à ilustração de livros.
Devido à qualidade de suas obras, o autor recebeu várias homenagens como o
prêmio Jabuti, com os livros Alguma coisa (FTD), Maria Gomes (Scipione),
Dezenove poemas desengonçados (Ática), A outra enciclopédia canina
(Companhia das Letrinhas), Fragosas brenhas do mataréu (Ática), entre outros
como o APCA.
Pela qualidade do conjunto da obra, Ricardo é reconhecido ao redor do mundo
e já tem livros publicados em outros países como Alemanha, Portugal, México,
França e Holanda assim como textos em coletâneas publicados na Costa Rica.
A parceria do Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil
(CELLIJ) com o autor é bastante antiga. Ele esteve presente em vários cursos
de especialização realizados na UNESP e também participou duas vezes do
Congresso Internacional, além de ter ofertado oficinas para os bolsistas do
CELLIJ. Dessa maneira, em 2020 o Congresso fará uma homenagem a ele -
pela relevância de toda a sua obra e pela contribuição na formação de leitores
literários, bem como na nossa formação de pesquisadores.

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PALESTRAS

DATA E MINISTRANTES TÍTULO


HORÁRIO
Cristina Palestra de Abertura: La LIJ en
26/10/2020 Cañamares el marco de una nueva
9h Torrijos enseñanza de la literatura
(Espanha)
Lúcia Maria Palestra de
29/10/2020 Barros Encerramento: Literatura do
9h (Portugal) século XXI: Um caminho para
fazer da leitura um valor de
família

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Mesas Redondas
DATA E EIXO MESA REDONDA PALESTRANTES
HORÁRIO
26/10 - Eixo 1 - Leitura e escrita Elisa Dalla-Bonna
16h-18h Experiências na literária: desafios Maria Zilda da Cunha
educação básica para os professores Mediação: Leonardo
com a escrita do do ensino Montes Lopes
texto literário fundamental

Eixo 8 - Literatura Literatura infantil e o Daniela Segabinazi


infantil e ensino leitor do século XXI: Elizabeth Cardoso
desafios e Mediação: Estela Souza
possibilidades

Eixo 12 - Interdisciplinaridade Márcia Tavares


Literatura infantil e literatura infanto- Zeca Debus
e juvenil e outras juvenil Mediação: Renata
áreas do Junqueira
conhecimento

Eixo 9 - Os Bibliotecas: espaço Rovilson da Silva


espaços de de (trans)formação Antônio Nascimento de
leitura literária de leitores Brito
Alcione Santos
Mediação: Joana d'Arc
Batista Herkenhoff

27/10 - Eixo 2 - Literatura Entre livros, Cyntia Girotto


10h-12h Infantil para brincadeiras e Renata Junqueira
crianças narratividades: as Mediação: Juliane
pequenas crianças e o universo Motoyama
literário

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DATA E EIXO MESA REDONDA PALESTRANTES
HORÁRIO
27/10 - Eixo 5 - Literatura Literatura infantil: Marta Passos Pinheiro
10h-12h infantil e as ilustrações, projeto Hercules Toledo Corrêa
relações com a gráfico e paratextos Mediação: Vânia Belão
imagem
27/10 - Eixo 13 - Contar histórias e Rosemary de Oliveira
16h-18h Contação de formar para a Ilsa Vieira Goulart
histórias, teatro e docência: caminhos Mediação: Juliane
dramaturgia: a e percalços Motoyama
leitura literária
em outros
contextos
Eixo 7 - Temas Censura e temas Rosa Hessel
polêmicos, sensíveis: a literatura Edgar Kirchof
interdições e infantil e juvenil Mediação: Renata
censura na Junqueira
literatura
infantojuvenil
Eixo 4 - A Caminhos para a Pedro Afonso Barth
literatura juvenil e formação de jovens Berta Tagliari Feba
jovens leitores leitores: tendências Mediação: Beatriz Moura
da literatura infantil
brasileira
Eixo 11 - Estratégias de leitura Joice Ribeiro
Literatura e e formação leitora Adair Neitzel
estratégias de Sílvia Pilegi Rodrigues
leitura Mediação: Cleide Araújo

Eixo 14 - Contos Múltiplos olhares Marisa Gama-Kalil


de fadas, para os contos de Regina Michelli
recontos e o fadas Mediação: Andréia de
insólito na Oliveira Iguma
narrativa ficcional

Eixo 3 - Poesia e Poemas, ensino e a Helder Pinheiro


oralidade voz Rosilene Koscianski da
Silveira
Mediação: Silvana
Ferreira Balsan

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DATA E EIXO MESA REDONDA PALESTRANTES
HORÁRIO
27/10 - Eixo 15 - O Monteiro Lobato: um Fernando Teixeira Luiz
20h - 22h legado de homem com diversos Patrícia Beraldo Romano
Monteiro Lobato atributos Mediação: Aletéia
para a cultura Chevbotar
brasileira
28/10 - Eixo 10 - Literatura literária na Eliane Debus
10h -12h Educação infância: a mediação Mariana Cortez
literária, intercultural Mediação: Cláudia
Letramento Brandão
literário,
formação e
mediação de
leitores literários:
entre caminhos
do
saber/aprender
28/10 - Eixo 6 Literatura Literatura infantil e Fabiane Verardi
16h -18h infantil e juvenil e juvenil e as múltiplas Diógenes Buenos Aires
as múltiplas linguagens Mediação: Gislene
linguagens Barbosa

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OBSERVAÇÃO

Os conceitos emitidos nos trabalhos são de responsabilidade


exclusiva do(s) autor (es), não implicando, necessariamente, na
concordância da coordenação de publicações e/ou do conselho
editorial, comissão científica ou dos organizadores do evento.
Os autores foram responsáveis pela correção (profissional)
ortográfica e gramatical do seu artigo.

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SUMÁRIO

GRUPO TEMÁTICO 1: EXPERIÊNCIAS NA EDUCAÇÃO BÁSICA COM A


ESCRITA DO TEXTO LITERÁRIO................................................................... 31
A VIDA EM DESPROPÓSITOS: A CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA NA POÉTICA
DE MANOEL DE BARROS .............................................................................. 32
MEMÓRIAS LITERÁRIAS: A OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA E A
ESCRITA LITERÁRIA ....................................................................................... 42
A POESIA DE MÁRIO QUINTANA COMO FORMA DE LETRAMENTOS
ATRAVÉS DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA EM TURMAS DE 6º E 7º ANO DA
ESCOLA ANTONIO BRAGA E CHAVES NO MUNICÍPIO DE ITUPIRANGA-PA.
......................................................................................................................... 55
AS FACES DO POEMA “CASO DO VESTIDO”: UMA PROPOSTA DE LEITURA
E ESCRITA EM SALA DE AULA....................................................................... 65
A OFICINA DE LEITURA E DE CRIAÇÃO LITERÁRIA: DUAS ESTRATÉGIAS
DE CONSTRUÇÃO DE SABERES DOCENTES SOBRE CONTO DE
AVENTURA ...................................................................................................... 77
A REPRESENTAÇÃO DO GÊNERO FEMININO NA FICÇÃO E SUA
INFLUÊNCIA NA CRIAÇÃO NARRATIVA DE PERSONAGENS NO CONTEXTO
ESCOLAR ........................................................................................................ 89
OFICINAS DE FORMAÇÃO NO PROJETO LEUTURA E ESCRITA NA
EDUCAÇÃO INFANTIL: A BIBLIODIVERSIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE
ACERVOS DE LIVROS PARA A INFÂNCIA ................................................... 102
DO VIVIDO PARA O ESCRITO: EXPERIÊNCIA COM A ESCRITA DE CARTAS
NO ENSINO FUNDAMENTAL .........................................................................115
O GÊNERO CONTO POPULAR NA FORMAÇÃO DA ATITUDE AUTORAL.. 125

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GRUPO TEMÁTICO 2: LITERATURAINFANTIL PARA CRIANÇAS
PEQUENAS. .................................................................................................. 138
PRÁTICAS LITERÁRIAS NA CRECHE .......................................................... 139
LEITURA E LEITOR: UMA RELAÇÃO QUE ENVOLVE CURIOSIDADE,
DESPERTA PRAZER E AUXILIA NO DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM.
....................................................................................................................... 149
PIQUENIQUES LITERÁRIOS: UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA FORMAÇÃO
DE PEQUENOS LEITORES .......................................................................... 161
O QUE TEM NESTA BEBETECA? CONHECENDO E EXPLORANDO O
ACERVO DE UMA BIBLIOTECA PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA ................... 173
INTERVENÇÕES PEDAGÓGICAS HUMANIZADORAS NA EDUCAÇÃO
INFANTIL: PROPOSIÇÕES DE CECÍLIA MEIRELES.................................... 184
LITERATURA INFANTIL: POSSIBILIDADES DE ENSINO APRENDIZAGEM NA
PRIMEIRA INFÂNCIA..................................................................................... 193
O LIVRO MENINA AMARROTADA, EMOÇÕES E CONSTRUÇÃO DE
SENTIDOS ..................................................................................................... 205
POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÕES PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO
INFANTIL COM O RECURSO DIDÁTICO “DICIONÁRIO LETRAS VIVAS” ... 217
O PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA E A
LITERATURA: PROPOSTAS E PERSPECTIVAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL.
....................................................................................................................... 228
A LITERATURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: FRUIÇÃO ESTÉTICA OU
PRETEXTO? .................................................................................................. 239
FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO INFANTIL E
A LITERATURA: ESBOÇO DE UM PROJETO DE PESQUISA ..................... 250
MEDIAÇÃO DA LEITURA LITERÁRIA NAS CASAS MÃE DO NÚCLEO
EQUATORIAL EM BOA VISTA - RR ............................................................... 261
A LITERATURA COMO POSSIBILIDADE DE EXPANSÃO DE LINGUAGENS E

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PRODUÇÕES CRIATIVAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL ................................. 274
EXPERIENCIAS DE LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: QUAIS
APRENDIZAGENS PODEM SER CONSTRUÍDAS? ..................................... 287

GRUPO TEMÁTICO 3: POESIA E ORALIDADE. ......................................... 300


APESAR DO AMOR E SABICHÕES: POESIA INFANTIL CONTEMPORÂNEA
....................................................................................................................... 301
LITERATURA EM SALA DE AULA: (RE)DESCOBRINDO O POEMA............ 313
ORALIDADE E MEMÓRIA EM O PRATO AZUL-POMBINHO, DE CORA
CORALINA ..................................................................................................... 325
A PROSA QUE CANTA E ENCANTA: UMA ANÁLISE DO CONTO “EMBORA
MÍNIMA”, DE MARINA COLASANTI .............................................................. 336
BICHOS EM VERSOS E ILUSTRAÇÕES NA POESIA DE JOÃO KÖPKE E
PRESCILIANA DUARTE DE ALMEIDA .......................................................... 346

GRUPO TEMÁTICO 4: A LITERATURA JUVENIL E JOVENS LEITORES .. 360


A REPRESENTATIVIDADE DE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO CONTO A
GOTA D’ÁGUA (1999) .................................................................................... 361
NOVAS HISTÓRIAS NA LITERATURA INFANTOJUVENIL: HISTÓRIAS DA
PRETA, HISTÓRIAS DA CAZUMBINHA E O AFROFEMINISMO .................. 373
LITERATURA JUVENIL EM QUESTÃO: UMA REPRESENTAÇÃO DA
PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA EM CALEIDOSCÓPIO DE VIDAS (2019), DE
JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA .............................................................. 387
LITERATURA INFANTO-JUVENIL E FORMAÇÃO SUPERIOR DE
PROFESSORES DE ENSINO BÁSICO NA UNIVERSIDADE LICUNGO EM
MOÇAMBIQUE .............................................................................................. 400
LITERATURA E MERCADO: UMA LEITURA DE TRÊS NOVELAS JUVENIS DE
ALCIENE RIBEIRO ........................................................................................ 414
LITERATURA PARA JOVENS LEITORES: A ATUAÇÃO DO MERCADO
LIVREIRO....................................................................................................... 430

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O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DA IMAGINAÇÃO E CRIAÇÃO NA
INFÂNCIA: CONTRIBUIÇÕES DA LITERATURA INFANTIL .......................... 443
O VIÉS CRÍTICO NA LEITURA DE ANGÉLICA, DE LYGIA BOJUNGA ......... 452
UM OLHAR SOBRE O TEMPO E A MEMÓRIO NO LIVRO ILUSTRADO MANO
DESCOBRE A LIBERDADE ........................................................................... 477

GRUPO TEMÁTICO 5: LITERATURA INFANTIL E AS RELAÇÕES COM


IMAGEM......................................................................................................... 488
O POTENCIAL DIDÁTICO DO LIVRO ILUSTRADO NO ENSINO DE ARTE . 489
A RELAÇÃO ENTRE TEXTO E IMAGEM NO LIVRO SABICHÕES (2016) DE
MARTA COCCO ............................................................................................. 502
ESTUDO COMPARATIVO DOS LIVROS DIREITOS DO PEQUENO LEITOR
(PATRÍCIA AUERBACH E ODILON MORAES) E QUERO COLO! (STELLA
BARBIERI E FERNANDO VILELA): APROXIMAÇÕES EM TORNO DO
CONCEITO DE LIVRO ILUSTRADO. ............................................................ 514
LITERATURA INFANTIL ENTRE O TEXTO E A IMAGEM (OU VICE-VERSA)
....................................................................................................................... 525
O VERBAL E O NÃO VERBAL NO LIVRO LITERÁRIO INFANTIL: “ABRINDO
CAMINHO(S)” PARA A LEITURA MEDIADA .................................................. 541
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA: EXPLORAÇÃO DO ESPAÇO E SENTIMENTO
DA CULPA NO MATADOR (2008) .................................................................. 552
TEXTO, IMAGEM E NOSTALGIA: A FENOMENOLOGIA DA PAISAGEM EM A
CASA DO MEU AVÔ, DE SOLANGE ADÃO .................................................. 565
INTERAÇÕES ENTRE TEXTO VERBAL E VISUAL EM DIFERENTES
VERSÕES DE JOÃO E MARIA ...................................................................... 577
DAS NARRATIVAS VISUAIS A ATIVIDADE CONSCIENTE: O QUE ESSAS
IMAGENS SIGNIFICAM? ............................................................................... 590
O PODER E A FUNÇÃO DAS ILUSTRAÇÕES NA LITERATURA INFANTIL E A
NECESSIDADE DE FORMAÇÃO DE LEITORES DE IMAGENS .................. 603
AS RELEITURAS DE CINCO OBRAS CLÁSSICAS DE POESIA INFANTIL DO

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SÉCULO XX: OS OLHARES DOS ILUSTRADORES NA CONSTRUÇÃO DE
NOVOS TEXTOS IMAGÉTICOS NO SÉCULO XXI ....................................... 615
A LEITURA DO LIVRO ILUSTRADO NA ESCOLA: DIÁLOGO ENTRE AS
PRÁTICAS DOS PROFESSORES E AS OPERAÇÕES DE LEITURA DAS
CRIANÇAS ..................................................................................................... 627
A ESTÉTICA E A ÉTICA DA ARQUITETÔNICA DO ATO DE ILUSTRAR: VIDA E
OBRA DE RUI DE OLIVEIRA E SUA CONTRIBUIÇÃO COM AS NARRATIVAS
VISUAIS PARA A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO .............................. 640

GRUPO TEMÁTICO 6: LITERATURA INFANTIL E JUVENIL E SUAS


MÚLTIPLAS LINGUAGENS .......................................................................... 654
LIVROS COMO ESPAÇOS DE COAUTORIA INFANTIL: A CRIAÇÃO DE “O
SUMIÇO DOS GUARDA-CHUVAS” E DA COLEÇÃO “O QUE TEM?” .......... 655
LITERATURA E MÚLTIPLAS LINGUAGENS: CONTAÇÃO DE HISTÓRIA COMO
SUPORTE NUMA PERSPECTIVA INCLUSIVA PARA A FORMAÇÃO DO LEITOR
....................................................................................................................... 669
PALAVRA CANTADA, TECNOLOGIA E POÉTICA: ALCANÇANDO
INTELIGÊNCIAS E SENSIBILIDADES .......................................................... 682
DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE LÍNGUA MATERNA E LITERATURA, NO
ENSINO DE MATEMÁTICA, COM TECNOLOGIAS DIGITAIS ...................... 696
SARAMAGO EM CENA: DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA, CINEMA E
EDUCAÇÃO, EM A FLOR MÁIS GRANDE DO MUNDO ............................... 709
RETORNO DE ULISSES: UMA ODISSEIA CONTEMPORÂNEA .................. 724
AS MANIFESTAÇÕES DAQUILO QUE É SENSÍVEL: UM DIÁLOGO ENTRE A
LITERATURA INFANTIL HÍBRIDA E A PÓS-MODERNIDADE ....................... 738
O CORDEL EM QUADRINHOS E O LEITOR EM FORMAÇÃO: ENTRE A
SEDUÇÃO DOS VERSOS E O ENCANTO DA IMAGEM .............................. 749
QUEM, O QUÊ, ONDE, COMO, QUANDO E POR QUÊ? REFLEXÕES SOBRE
MEMÓRIAS DE LEITURA NO PERCURSO DO FORMADOR ...................... 762
FOTONOVELA: UMA EXPERIÊNCIA DE PRODUÇÃO TEXTUAL COM ALUNOS

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DO 7º ANO...................................................................................................... 778
GAIMAN/MATTOTI E MAJIDÍ/MALEKZAADE: RETRATOS DA CUMPLICIDADE
EM JOÃO E MARIA E FILHOS DO PARAÍSO ............................................... 790
“LAGARTA ATREVIDA, BORBOLETA E VIDA”: UM CONTO METAFÓRICO DE
ALCIENE RIBEIRO ........................................................................................ 802
LITERATURA E HISTÓRIA EM UMA LEITURA DE ‘CONTO DE ESCOLA’, DE
MACHADO DE ASSIS. ....................................................................................811
O MEME COMO MOVIMENTO ANTROPOFÁGICO DOS JOVENS
BRASILEIROS DO SÉCULO XXI ................................................................... 824
LEITURA, LITERATURA E CINEMA: INTERLOCUÇÕES EM UMA PRÁTICA DE
FORMAÇÃO CULTURAL ............................................................................... 834
VISLUMBRANDO ASPECTOS CULTURAIS A PARTIR DE CLÁSSICOS DA
LITERATURA UNIVERSAL ............................................................................ 847
A LITERATURA INFANTIL DE JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA E A OBRA
PRENDEDOR DE SONHOS (2010) ............................................................... 857

GRUPO TEMÁTICO 7: TEMAS POLÊMICOS, INTERDIÇÕES E CENSURA NA


LITERATURA INFANTIL E JUVENIL ............................................................ 870
A FEMINIZAÇÃO DA TERRA GALEGA NA LITERATURA INFANTOJUVENIL
....................................................................................................................... 871
“ISSO NÃO É ASSUNTO DE CRIANÇA”: DESMISTIFICANDO OS TEMAS
TABUS NA INFÂNCIA PELO CONTATO COM O LITERÁRIO ....................... 883
A TEMÁTICA DA MORTE NA LITERATURA INFANTIL: ANÁLISE DE DUAS
OBRAS ........................................................................................................... 893
ADOÇÃO EM FOCO: TENDÊNCIAS EMERGENTES NA LITERATURA
INFANTIL CONTEMPORÂNEA ...................................................................... 903
TEMAS POLÊMICOS NA LITERATURA INFANTIL........................................ 915
CASOS DE CENSURA NA LITERATURA INFANTIL NO BRASIL ................. 926
UM PASSEIO PELOS TEMAS DIFÍCEIS: a metáfora do ciclo da vida no livro de
Pablo Lugones e Alexandre Rampazo ........................................................... 939

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INTERDIÇÕES NA LITERATURA INFANTIL: O TRIUNFO DA INFÂNCIA PELAS
VIAS DO LITERÁRIO ..................................................................................... 948
“O MONSTRO MONSTRUOSO DA CAVERNA CAVERNOSA”:
INTERLOCUÇÕES ENTRE A LITERATURA INFANTIL E OS ARRANJOS DE
MASCULINIDADE .......................................................................................... 961
O TRABALHO INFANTIL NO BRASIL DOS ANOS 50 – O QUE CONTAM AS
HISTÓRIAS INFANTIS DA REVISTA CACIQUE ............................................ 971
O ÁUDIO LIVRO DE LITERATURA INFANTIL COM PERSONAGENS NEGROS
E SUA IMPORTÂNCIA PARA A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA DO LEITOR ..... 986
A CRIANÇA DIANTE DA MORTE: UMA POSSIBILIDADE DE TRABALHO COM
A OBRA LITERÁRIA A MULHER QUE MATOU OS PEIXES, DE CLARICE
LISPECTOR ................................................................................................... 996
AS BRUXAS CONTINUAM INCOMODANDO? REFLEXÕES SOBRE
INVESTIDAS RECENTES CONTRA O ‘MANUAL PRÁTICO DA BRUXARIA EM
11 LIÇÕES’, DE MALCOLM BIRD................................................................ 1006
MARIA CLARICE MARINHO VILLAC: A QUESTÃO ÉTNICO-RACIAL EM SEUS
LIVROS INFANTOJUVENIS ......................................................................... 1020
UMA ANÁLISE LITERÁRIA DE MAUS: A HISTÓRIA DE UM SOBREVIVENTE
(1980) ........................................................................................................... 1032

GRUPO TEMÁTICO 8: LITERATURA INFANTIL E ENSINO ...................... 1041


TODOS CONTRA DANTE: RODAS DE LEITURA E A SENSIBILIZAÇÃO PARA
QUESTÕES SOCIAIS .................................................................................. 1042
POLÍTICAS PÚBLICAS DE LEITURA: A DISTRIBUIÇÃO DA LITERATURA
PELO PNBE E PNLD LITERÁRIO ............................................................... 1051
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA LITERÁRIA COMO ELEMENTO DE
MOTIVAÇÃO PARA O TRABALHO DO ALFABETIZADOR .......................... 1062
A MATERIALIDADE DO LIVRO INFANTIL A PARTIR DA LEITURA DE O
CARTEIRO CHEGOU .................................................................................. 1074
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE PROFESSORES: POSSIBILIDADES DE

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DESENVOLVIMENTO HUMANO PELA LITERATURA INFANTIL ................ 1086
OLHOS AZUIS CORAÇÃO VERMELHO: REFLEXOS DA REJEIÇÃO QUE
CULMINA NA SENSIBILIDADE INFANTIL ....................................................1108
O TEXTO LITERÁRIO EM SALA DE AULA: UMA ALTERNATIVA PARA O
DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA SOCIOEMOCIONAL ................ 1116
HORA DA LEITURA: UM OLHAR SOBRE A MEDIAÇÃO DE LEITURA DOS
PROFESSORES ALFABETIZADORES ........................................................1128
O PROTAGONISMO DA LEITURA LITERÁRIA NO PROCESSO DE
ADAPTAÇÃO CURRICULAR: EXPERIÊNCIAS EM ESCOLAS DE ENSINO
BÁSICO .........................................................................................................1138
A LITERATURA INFANTIL ALINHADA AO TRABALHO INTERDISCIPLINAR:
HISTÓRIA DOS PINGOS E AS SEMENTES ................................................1152
O PNLD/LITERÁRIO 2018 NAS ESCOLAS DA REDE MUNICIPAL DE JOÃO
PESSOA: SELEÇÃO E DISTRIBUIÇÃO .......................................................1162
CONTRIBUIÇÕES DOS GÊNEROS LITERÁRIOS PARA A CRIAÇÃO DE
NECESSIDADES DE ESTUDO E DE CRIAÇÃO TEXTUAL NAS CRIANÇAS
......................................................................................................................1173
REPRESENTATIVIDADE NEGRA NA LITERATURA PARA A INFÂNCIA .....1184
PROTOCOLOS DE LEITURA EM PETER PAN, DE MONTEIRO LOBATO ..1194
A LITERATURA INFANTIL NO CURRÍCULO DO ENSINO BÁSICO EM
MOÇAMBIQUE: UM OLHAR SOBRE ENSINO DA LEITURA E FORMAÇÃO DO
LEITOR ........................................................................................................ 1206
CONTANDO ENCANTANDO E PRODUZINDO ........................................... 1217
A LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA PARA A FORMAÇÃO CULTURAL DAS
CRIANÇAS NA DÉCADA DE 1970 .............................................................. 1227
A PSICOPEDAGOGIA E LITERATURA INFANTIL: UM INSTRUMENTO
ESTIMULADOR DO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA COM DIFICULDADES
DE APRENDIZAGEM ................................................................................... 1238
POSSIBILIDADES E DESAFIOS DO LETRAMENTO LITERÁRIO NA ESCOLA
DO CAMPO EM RORAIMA .......................................................................... 1248

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POSSIBILIDADES DE LEITURA PARA O CONTO “A COBRA QUE ERA UMA
PRINCESA”, DE JOSÉ LINS DO REGO ...................................................... 1258
DRAMATIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: CONTO “O PATINHO FEIO”1271
TEMAS SENSÍVEIS NA SALA DE AULA: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COMO
PROPOSTA DE LEITURA LITERÁRIA ......................................................... 1280
OBRAS DE LITERATURA INFANTIL: UM OLHAR PARA A SINGULARIDADE DO
LIVRO ILUSTRADO ..................................................................................... 1292
CAMINHO PARA MEDIAR A LEITURA DO LIVRO “LAMPIÃO E LANCELOTE”
DE FERNANDO VILELA .............................................................................. 1305

GRUPO TEMÁTICO 9: OS ESPAÇOS DE LEITURA LITERÁRIA .............. 1317


BAÚ DE LEITURA: A (RE)INVENÇÃO DA LEITURA NA SALA DE AULA.... 1318
O ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO E A LITERATURA
INFANTIL EM RONDONÓPOLIS ................................................................. 1330
BIBLIOTECA PÚBLICA PARA A INFÂNCIA: UM ESTUDO TEÓRICO SOBRE O
LETRAMENTO LITERÁRIO ......................................................................... 1341
CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DE LEITURA LITERÁRIA NO CONTEXTO DA
ESCOLA DO CAMPO................................................................................... 1354
A MEDIAÇÃO DE LEITURA NA BIBLIOTECA ESCOLAR COMO UMA AÇÃO NA
PROMOÇÃO DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA ................................................. 1367
BIBLIOTECÁRIO O CAPITAL HUMANO QUE FOMENTA A LEITURA LITERÁRIA
NOS ESPAÇOS DE APRENDIZAGEM ........................................................ 1378
BIBLIOTECAS ESCOLARES E FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE:
APONTAMENTOS A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO......... 1388
A ADOLESCÊNCIA REVISITADA: UMA LEITURA DO CONTO "FREDERICO
PACIÊNCIA", DE MÁRIO DE ANDRADE ..................................................... 1398
ENTRELAÇOS DA FORMAÇÃO DOCENTE: O LEITOR DE LEITURA
LITERÁRIA COMO SEDE DE INTERESSE ................................................. 1408
LETRAMENTO LITERÁRIO EM AMBIENTE DIGITAL: INCENTIVAR O PRAZER
DE LER EM TEMPOS DE PANDEMIA ......................................................... 1420

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PALAVRAS ANDANTES DE 2002 A 2019: PROJETO DE FORMAÇÃO DE
LEITORES EM LONDRINA- PR ................................................................... 1433
FORMAÇÃO DO PROFESSOR REGENTE DE OFICINA DE BIBLIOTECA DO
PROJETO “PALAVRAS ANDANTES” DA SECRETARIA MUNICIPAL DE
EDUCAÇÃO DE LONDRINA ........................................................................ 1445
O ESTÍMULO DA LEITURA DE CONTOS NAS AULAS DE ELE A PARTIR DO
GÊNERO AUDIOVISUAL – VÍDEO .............................................................. 1457
GESTÃO ESCOLAR E DOCÊNCIA: A IMPORTÂNCIA DE SUA ATUAÇÃO
COMO MEDIADORA DE LEITURA NA BIBLIOTECA .................................. 1468
A BIBLIOTECA ESCOLAR COMO UM RECURSO ESTRATÉGICO NA ESCOLA:
AÇÕES A RESPEITO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA EM UM CURSO DE
FÉRIAS ........................................................................................................ 1480
LEITURA LITERÁRIA: TUDO É PERMITIDO PARA DISSEMINA-LA? ........ 1492
TRADIÇÃO E INOVAÇÃO NO ENSINO DE POESIA INFANTOJUVENIL .... 1503
BIBLIOTECA NA ESCOLA: UM RETRATO DAS BIBLIOTECAS ESCOLARES
DA CIDADE DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS – ALAGOAS. ............................. 1515

GRUPO TEMÁTICO 10: EDUCAÇÃO LITARÁRIA, LETRAMENTO


LITERÁRIO, FORMAÇÃO E MEDIAÇÃO DE LEITORES LITERÁRIOS ENTRE
CAMINHOS DO SABER/APRENDER ......................................................... 1528
POESIA, CIÊNCIA, PANDEMIA E SOLIDARIEDADE: A EJA NO CAMINHO DA
TECNOLOGIA EM UMA GINCANA VIRTUAL PARA ALCANÇAR O PRÓXIMO
..................................................................................................................... 1529
DIÁLOGOS DA CRIANÇA COM O TEXTO LITERÁRIO: RELAÇÕES
INTERTEXTUAIS ......................................................................................... 1537
O PROJETO MALA DE LEITURA DA UFMG: TECENDO AÇÕES DE
INCENTIVO À LEITURA LITERÁRIA E FORMAÇÃO DE MEDIADORES ... 1548
A PALAVRA ALGO: UMA PROPOSTA DE LEITURA INTERDISCIPLINAR PELO
MÉTODO RECEPCIONAL ........................................................................... 1560
FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UMA

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REFLEXÃO SOBRE OS PROJETOS PEDAGÓGICOS DO INSTITUTO DOM
BARRETO .................................................................................................... 1571
LETRAMENTO LITERÁRIO: DESENVOLVENDO AS HABILIDADES LEITORAS
DOS DISCENTES ........................................................................................ 1583
A CONCEPÇÃO DE LEITURA EVIDENCIADA POR MEIO DA LINGUAGEM DA
CRIANÇA ..................................................................................................... 1593
O IMPACTO DO PROGRAMA RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA NA FORMAÇÃO
INICIAL DO PROFESSOR DE LITERATURA: UMA PROPOSTA DE LEITURA
LITERÁRIA COM CONTOS E POEMAS AFRO-BRASILEIROS .................. 1605
UMA DISCUSSÃO ACERCA DA DESCONSTRUÇÃO DO GÊNERO POEMA EM
SALA DE AULA ............................................................................................ 1618
MEDIAÇÃO DE LEITURA: UM OLHAR SOBRE A BIBLIOTECA .................. 1627
NGUNGA: AVENTURAS DE EDUCAÇÃO, LIBERDADE E RESISTÊNCIA . 1637
A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTIL NA PRÁTICA DOCENTE E NA
FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO ......................................................... 1648
CIBERLITERATURA: A LITERATURA-SERVIÇO E OS NOVOS SENTIDOS DA
BIBLIOTECA ESCOLAR .............................................................................. 1661
VIVÊNCIAS DE LEITURAS LITERÁRIAS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E
ADULTOS: UMA EXPERIÊNCIA COM A FÁBULA “O RATINHO, O GATO E O
GALO” ......................................................................................................... 1672
LETRAMENTO LITERÁRIO NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES
..................................................................................................................... 1682
SESSÃO DE MEDIAÇÃO DE LEITURA: UMA POSSIBILIDADE PARA A
INTERLOCUÇÃO ENTRE O LIVRO ILUSTRADO E OS ELEMENTOS
PARATEXTUAIS ........................................................................................... 1694
A PALAVRA MÁGICA: LITERATURA, LEITURA E A ALFABETIZAÇÃO NA
PERSPECTIVA DE MOACYR SCLIAR. ....................................................... 1705
FRAGOSAS BRENHAS DO MATARÉU, O IRMÃO QUE TU ME DESTE E MEU
JEITO CERTO DE FAZER TUDO ERRADO NO ENSINO MÉDIO DA REDE
ESTADUAL DE SÃO PAULO ....................................................................... 1716

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O DESAFIO DE FORMAR E CONDUZIR LEITORES POR MEIO DO CORDEL
..................................................................................................................... 1727
MORTE E VIDA SEVERINA: PRÁTICA DE LEITURA LITERÁRIA EM SALA DE
AULA COM ALUNOS DO 9º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL ................ 1738
HANS STADEN EM SALA DE AULA E PROCESSO DE MEDIAÇÃO: A
IMPORTÂNCIA DO PROFESSOR MEDIADOR NO ENSINO DA LITERATURA
..................................................................................................................... 1750
O TEXTO LITERÁRIO NOS LIVROS DIDÁTICOS DO TERCEIRO AO QUINTO
ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL: O ESTUDO DA COLEÇÃO BURITI MAIS
..................................................................................................................... 1761
POSIÇÃO DO NARRADOR E (IN)VISIBILIDADE INFANTIL NOS LIVROS DE
ANA MARIA MACHADO ............................................................................... 1774
O PROFESSOR MEDIADOR DE LEITURAS NA FORMAÇÃO DE LEITORES
LITERÁRIOS ................................................................................................ 1787
AÇÕES DEMOCRÁTICAS COM A LEITURA E A ESCRITA, A PARTIR DAS
LITERATURAS DE MULHERES .................................................................. 1800
MOMENTOS DE LEITURAS: DESAFIOS E AÇÕES DE UM PROJETO DE
INCENTIVO À LEITURA NA EJA EM UMA ESCOLA DE ALAGOINHAS-BA.
..................................................................................................................... 1813
BIBLIOTECA ITINERANTE: UM ESPAÇO DE LETRAMENTO LITERÁRIO 1823
LEITURA LITERÁRIA NO SUPORTE DIGITAL: DESAFIOS NA E DA ESCOLA
..................................................................................................................... 1833
CLUBE DE LEITURA E FORMAÇÃO DO LEITOR: A SELEÇÃO DAS OBRAS
LITERÁRIAS ................................................................................................ 1843
LEITURA, LITERATURA INFANTIL E EXPERIÊNCIAS LITERÁRIAS NOS ANOS
INICIAIS EM RORAIMA ............................................................................... 1854

GRUPO TEMÁTICO 11: LITERATURA E ESTRATÉGIAS DE LEITURA ... 1863


A LEITURA DE OBRAS LITERÁRIAS E A UTILIZAÇÃO DE ESTRATÉGIAS DE
LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PARA ALÉM DAS PROPOSTAS

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PEDAGOGIZANTES .................................................................................... 1864
O DIÁRIO DE LEITURA COMO FERRAMENTA METODOLÓGICA PARA A
EDUCAÇÃO LITERÁRIA: UMA ABORDAGEM COM CONTOS E POEMAS DA
LITERATURA AFRO-BRASILEIRA NO ENSINO MÉDIO ............................. 1876
O DIALOGISMO CONSTITUINTE NO EQUILIBRIO ENTRE O FEMININO E O
FEMINISMO EM ADÉLIA PRADO: UMA LEITURA ...................................... 1888
O ENSINO DA LÍNGUA INGLESA E A LITERATURA INFANTIL .................. 1901
..................................................................................................................... 1914
ESTRATÉGIAS DE LEITURA LITERÁRIA POR MEIO DA POESIA COM OS
ALUNOS DO 7º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL ................................... 1914
ESTRATÉGIAS DE LEITURA PARA A FORMAÇÃO DO LEITOR: UMA
EXPERIÊNCIA NO 2º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL .......................... 1925
CLUBE DE LEITURA NA ESCOLA: UMA AÇÃO PARA INSPIRAR LEITORES
..................................................................................................................... 1938
A HORA DA CONVERSA ............................................................................. 1948
RODA DE LEITURA: UM ESTUDO DE CASO NO MUNICÍPIO DE SOROCABA
..................................................................................................................... 1961
O “ERA UMA VEZ” ... NUNCA MAIS SERÁ O MESMO: CONTOS CLÁSSICOS
(RE)CONTADOS POR TORERO ................................................................. 1974
FORMAS DE LEITURA: REFLEXÕES ACERCA DA EPISTEMOLOGIA
OCIDENTAL E NÃO-OCIDENTAL ................................................................ 1983
EXPERIÊNCIAS DO LER E DO CONTAR HISTÓRIAS: ESTRATÉGIAS DE
LEITURA NA PRIMEIRA INFÂNCIA ............................................................. 1996
CAIXAS LITERÁRIAS: AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA NOS ANOS INICIAIS
..................................................................................................................... 2006
LITERATURA JUVENIL NA BIBLIOTECA ESCOLAR: RELATO DE
EXPERIÊNCIA DE MEDIAÇÃO DE LEITURA EM CAPÍTULOS .................. 2019
O USO DA LITERATURA INFANTIL E CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS COMO
FRUIÇÃO ..................................................................................................... 2032
A EFETIVAÇÃO DO TRABALHO COM AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA PARA

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FORMAÇÃO DE ALUNOS LEITORES ......................................................... 2043
ENSINAR E APRENDER ESTRATÉGIAS DE LEITURA NA ESCOLA......... 2048
A OFICINA DE LEITURA LITERÁRIA: CONTO “CORISCO”, DE LUIZ VILELA E
AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA ................................................................. 2061
CAUSA PERDIDA, DE LUIZ VILELA: UMA OFICINA DE LEITURA LITERÁRIA
PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA ...................................................................... 2071
A SENSIBILIDADE NO CONTO “O MENINO QUE ESCREVIA VERSOS”, DE
MIA COUTO: UMA PROPOSTA PARA A SALA DE AULA ............................ 2084
LÊ PARA MIM? UM PROJETO DE LEITURA ENTRE CLASSES PARA ALUNOS
EM PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO ....................................................... 2094

GRUPO TEMÁTICO 12: LITERATURA INFANTIL E JUVENIL E OUTRAS


ÁREAS DO CONHECIMENTO .................................................................... 2105
JERRI QUAN E OS BEIJINHOS NA BOCA: A NOSTALGIA DA INFÂNCIA E AS
MARCAS DO COLONIALISMO NA OBRA OS DA MINHA RUA, DE ONDJAKI
..................................................................................................................... 2106
A VIDA DE JOSÉ E DE ARIANO: ASPECTOS PLÁSTICOS NA CONSTITUIÇAO
DE BIOGRAFIAS EM HQ NO PNLD .............................................................2116
CADÊ A SEMENTE DA MINA VÓ? A IMPORTÂNCIA DA ETNOCONSERVAÇÃO
DOS RECURSOS GENÉTICOS VEGETAIS ................................................ 2129
LITERATURA, CONTAÇÃO DE HISTÓRIA, MOSCAS SINANTRÓPICAS E
ENSINO DE GEOGRAFIA PARA CRIANÇAS DO SEXTO ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL ........................................................................................... 2140
INSTITUIÇÕES DE LEITURA IMAGINADAS E O DIREITO À LITERATURA:
NARRATIVAS HISTÓRICAS E JURÍDICAS ................................................. 2150
A REVOLUÇÃO DOS BICHOS: UMA LITERATURA EM PROL DA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO CRÍTICO ...................................................................... 2163
A LITERATURA INFANTIL DE RUBEM ALVES COMO FERRAMENTA
PROMOTORA DA EDUCAÇÃO DAS EMOÇÕES........................................ 2175
A VELHOTA CAMBALHOTA, DE SYLVIA ORTHOF: UM NOVO OLHAR SOBRE

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VELHICE ...................................................................................................... 2189
O TEXTO LITERÁRIO E O ENSINO DE CIÊNCIAS COM ENFOQUE CTS:
PRÁTICA INTERDISCIPLINAR NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA
EDUCAÇÃO INFANTIL E DOS ANOS INICIAIS........................................... 2200
HISTÓRIA DA TRADUÇÃO E ADAPTAÇÃO NA LITERATURA INFANTIL E
JUVENIL BRASILEIRA ................................................................................. 2209
TRADUÇÃO E ADAPTAÇÃO NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL AFRO-
BRASILEIRA: “AS TRANÇAS DE BINTOU” ................................................. 2221

GRUPO TEMÁTICO 13: CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS, TEATRO E


DRAMATURGIA: A LEITURA LITERÁRIA EM NOVOS CONTEXTOS ...... 2233
OS MODELOS DE REPRESENTAÇÃO DE FAMÍLIA: EUFÓRICO, CRÍTICO E
EMANCIPATÓRIO E SEU APROVEITAMENTO NOS ESTUDOS DA
LITERATURA INFANTIL E JUVENIL .......................................................... 2234
REFLEXÕES ACERCA DAS RUBRICAS NO TEXTO DRAMATÚRGICO
JUVENIL A CARAVANA DA ILUSÃO, DE ALCIONE ARAÚJO ..................... 2248
O PROJETO DIDÁTICO TIA CECÍLIA CONTA E O ESPETÁCULO TOM-TIM-TÓ
SOB O OLHAR DA A/R/TOGRAFIA ............................................................. 2264
CIRCO NO PROJETO HORA DO CONTO: PARA ENCANTAR E FORMAR
LEITORES LITERÁRIOS ............................................................................. 2278
OS ELEMENTOS CÊNICOS NA CONSTRUÇÃO TEXTUAL DO DRAMA: EM
CENA, A VIAGEM DE UM BARQUINHO, DE SYLVIA ORTHOF ................. 2287
“ENTRA NA RODA” A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NA FORMAÇÃO
CONTINUADA DE PROFESSORES. ........................................................... 2299
A IMPORTÂNCIA DOS RECURSOS VISUAIS PARA A CONTAÇÃO DE
HISTÓRIAS EM LIBRAS: INTRODUZINDO CRIANÇAS SURDAS NO MUNDO
DA LITERATURA...........................................................................................2311

GRUPO TEMÁTICO 14: CONTOS DE FADAS, RECONTOS E O INSÓLITO DA


NARRATIVA FICCIONAL ............................................................................ 2322

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HISTÓRIAS DA VELHA TOTÔNIA, DE JOSÉ LINS DO REGO: RECONTOS EM
CIRCULAÇÃO HÁ MAIS DE OITO DÉCADAS ............................................ 2323
DE SEREIAS A IARA – O MARAVILHOSO QUE VEM DAS ÁGUAS ............ 2336
JOÃO E MARIA (HANSEL E GRETEL) DE NEIL GAIMAN: LITERATURA E
INFÂNCIA..................................................................................................... 2347
O DESENVOLVIMENTO FEMININO EM CONTOS DE FADAS: A BELA E A
FERA E PELE DE ASNO.............................................................................. 2359
“FELIZES PARA SEMPRE?” VIOLÊNCIA DE GÊNERO E RELACIONAMENTO
ABUSIVO EM "GRISÉLIDIS" DE CHARLES PERRAULT E "A MOÇA TECELÃ"
DE MARINA COLASANTI ............................................................................ 2369
UMA ANÁLISE ESTRUTURAL DO CONTO “A MENINA QUE CARREGAVA
BOCADINHOS”, DE VALTER HUGO MÃE. ................................................. 2381
O GÊNERO NONSENSE NA SALA DE AULA ............................................. 2394
BRANCA DE NEVE: DA MULHER SUBMISSA DOS GRIMM, À MULHER
IMPETUOSA DA SÉRIE ONCE UPON A TIME ............................................ 2406
AS PRINCESAS NO DIVÃ: O PAPEL DOS CONTOS DE FADAS NA CLÍNICA
COM CRIANÇAS ......................................................................................... 2419
METAMORFOSE NOS CONTOS DE FADAS, TAMBÉM UMA QUESTÃO DE
VIDA E MORTE ............................................................................................ 2430
ENTRE MALÉVOLAS E BELAS ADORMECIDAS: CONSIDERAÇÕES SOBRE
O PROTAGONISMO DO AMOR FAMILIAR NOS CONTOS DE FADAS ..... 2441
“JOÃO E MARIA”: A FLORESTA DENSA E AS IMAGENS DO ESTRANHO 2452
O REVISIONISMO DO CONTO DA TRADIÇÃO CACHINHOS DOURADOS E
OS TRÊS URSOS NA OBRA CACHINHOS DE PRATA, DE LEO CUNHA .. 2466
NARRATIVAS FUNDADORAS DO LUGAR DA BRUXA NA LITERATURA:
FICCIONALIZAÇÃO DO IMAGINÁRIO E LEGITIMAÇÃO DE ESTEREÓTIPOS
..................................................................................................................... 2476
ESTE É O LOBO E O JOGO COM A TRADIÇÃO DOS CONTOS DE FADAS
..................................................................................................................... 2487
DE BASILE A HOLLYWOOD, FIGURAÇÕES DA VILANIA E DO MARAVILHOSO

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EM A BELA ADORMECIDA .......................................................................... 2499

GRUPO TEMÁTICO 15: O LEGADO DE MONTEIRO LOBATO PARA A


CULTURA BRASILEIRA.............................................................................. 2510
NEGRINHA ONTEM, HOJE E SEMPRE: A RELAÇÃO ENTRE ARTE LITERÁRIA
E VIDA SOCIAL .............................................................................................2511
DONA BENTA LEITORA: UM ESTUDO DAS LEITURAS DA PERSONAGEM-
AVÓ EM OBRAS INFANTIS DE MONTEIRO LOBATO ................................ 2521
DE MONTEIRO LOBATO AOS NEOLOBATIANOS: A LITERATURA
INFANTOJUVENIL DESTINADA AO ENSINO FUNDAMENTAL .................. 2533
DONA BENTA EM MOMENTOS DE MEDIAÇÃO DE LEITURA:
ILUSTRADORES EM AÇÃO ........................................................................ 2545
A CRIANÇA COMO CRIANÇA: DO PIONEIRO LOBATO À LITERATURA
INFANTIL E INFANTO-JUVENIL ATUAL ...................................................... 2559
SÍTIO DO PICAPAU AMARELO: O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO LEITOR
..................................................................................................................... 2572

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VI Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil


26 a 30 de outubro de 2020
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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
GRUPO TEMÁTICO 1:
EXPERIÊNCIAS NA EDUCAÇÃO
BÁSICA COM A ESCRITA DO
TEXTO LITERÁRIO

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VI Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil


26 a 30 de outubro de 2020
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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
A VIDA EM DESPROPÓSITOS: A CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA
NA POÉTICA DE MANOEL DE BARROS

Sonia Fátima Leal de Souza, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul


Profª Drª Kelcilene Grácia Rodrigues, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Eixo Temático: Experiências na educação básica com a escrita do texto literário

INTRODUÇÃO
Na fortuna crítica do poeta Manoel de Barros é constante os estudiosos
apontarem no fazer poético do escritor mato-grossense o tema da infância, os
“despropósitos” e as peraltices criativas e inventadas. Este trabalho tem como objetivo
verificar e interpretar, em “O Menino que carregava água na peneira”, da obra Exercícios
de ser criança (1999), de que forma tais peculiaridades são arquitetadas artisticamente
por Barros.
O problema levantado nesta pesquisa é questionar sobre: como o tratamento da
infância poetizada por Barros pode influenciar na mudança de visão dos
adultos/educadores (as), nos espaços educativos, se tornando em um fazer pedagógico
libertário, culminando em uma vida em despropósitos, propiciando à criança práticas
pedagógicas criativas, inventivas por meio do tri-protagonismo de Vigotski?
A infância, tema principal do poema, está em sintonia com a imaginação e a
liberdade de recriar. Iniciamos nossa análise a partir do estudo da manipulação das
palavras pelo poeta, que as torna belas e livres ao passearem pela liberdade de
expressar.
Concomitante ao estudo do poema em análise, revisitamos as leituras de
Philippe Ariès (1981) com o enfoque sobre a infância, bem como o surgimento da era
moderna, cujo olhar para a criança passou a ser desenhada como um ser em discussão,
pois até então, a infância não era pensada como uma etapa fundamental na construção
da vida. Esse segmento da vida, a infância, era sempre tratado com indiferença ou com
cuidados excessivos, a partir do século XIX, iniciaram – se muitas pesquisas em
diferentes áreas sobre o objeto de pesquisa, a infância.

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A partir desse interesse em massa sobre a infância, a mídia em geral
apresentava às crianças uma infinidade de brinquedos, livretos infantis, revistas,
programas de televisão dentre outros, com desenhos e ilustração bem chamativa
levando-as ao envolvimento com aindústria cultural de massa. Essa ênfase em torno do
cotidiano das crianças começou a limitar suas brincadeiras, sua imaginação, criatividade
e espontaneidade para brincar de forma livremente. Além disso, a revolução
tecnológica incluiu no cotidiano das crianças o celular e a facilidade de ter acesso aos
inúmeros jogos, brinquedos e entretenimento em geral pela tela do celular.
Considerando esta gama de artefatos infantis, percebemos que a criança ficou
engessada a cada dia mais em sua individualidade, tornando-se sem criatividade, sem
peraltices, sem liberdade de criar e imaginar as suas próprias ideias e brincadeiras.
Nesse ínterim surgiu o interesse em pesquisar nos poemas de Manoel de Barros
que apresentassem as peraltices das crianças dos seus poemas, as brincadeiras do
cotidiano sem estereótipos e normas preestabelecidas pela sociedade.
Com a teoria – Histórico - Cultural em pauta, observou-se que para a criança se
desenvolver é importante a utilização das brincadeiras, da imaginação, da criatividade
bem como de sua vivência em um ambiente rico de possibilidades, entretanto, não se
justifica o uso de brinquedos pré-fabricados com intuito de limitar as condições de
criatividade da criança.
A busca pelos poemas de Barros sobre a infância e suas peraltices se justifica
por essas “possibilidades” em que o poeta constrói em uma ambientação própria em
que as crianças são parte da terra, dos rios, das nuvens, dos pássaros se tornando em
“vivências”. Sendo assim, procuramos dialogar entre duas teorias para analisar e
interpretar a concepção de infância nos poemas de Barros, dialogando com a
historiografia do poeta e a literatura com a teoria – Histórico - Cultural embasando se
nas vivências das crianças em ambientes ricos em possibilidades de desenvolver a
criatividade, a imaginação fazendo suas peraltagens livres de regras e estereótipos
traçados pela sociedade atual.
A essência da poética de Manoel de Barros se configura em humanizar uma
criança que até há pouco tempo atrás era considerada um adulto em miniatura, um ser
sem voz e sem condições de construir algo criativo e olhar para o mundo como um ser
humano capaz de sentir os fragmentos da humanidade advindos do mundo em que
habita.
Para dar conta de responder ao problema mencionado, analisamos o poema “O
menino que carregava água na peneira” concomitantemente a teoria histórico cultural,

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permeando pela teoria sobre a vivência de Vigotski. A análise ocorreu pela linguagem
poética de Manoel de Barros, suas metáforas e a forma como o poeta “brinca” de
desfazer e refazer o universo poético, utilizando-se do recurso metalinguístico, que,
habilmente construído, possibilita ao menino ser o que quiser por meio da escrita, sendo
essa responsável pela criação de um mundo próprio, erigido, na maioria das vezes, por
elementos que envolvem a água, a terra e o ar, norteadores e transformadores do
menino.
Para amparar a presente pesquisa, utilizamos como aparato teórico as reflexões
de Antonio Candido, Vigotski e Hemingway, tendo por diretriz os estudos sobre a
literatura, a infância e a teoria do iceberg. Consideramos que “O menino que carregava
água na peneira” alcança expressão máxima na literatura infantil, construindo novos
espaços de liberdade, imaginação do irreal e reinvenção do universo, aviltando o
aprisionamento de uma tradição convencional. Isso decorre ─ a nosso ver, conforme
demonstramos no estudo ─ de uma concepção amplificada de infância que norteia o
fazer poético de Manoel de Barros.

Os fragmentos dos poemas de Barros


O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.


Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira


era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que


catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.


Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino

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gostava mais do vazio

O menino era ligado em despropósitos.


Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino


gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino


que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que escrever seria


o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu


que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.


Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.


o menino fazia prodígos.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

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Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos.

A obra em análise traz um efeito de sentido sobre a imaginação de uma criança


em uma perspectiva moderna, que transborda as barreiras da realidade, do racional
com relação ao mundo em que se vive e por meio da vivência no ambiente descrito no
poema, o imaginário infantil faz descobertas e ao mesmo tempo se descobre transforma
a realidade e está sendo transformado por ela.
Perejivanie (vivência, em português) é uma palavra relevante para a teoria
Histórico-Cultural. Há relatos (PRESTES, 2010) de que este conceito científico provocou
um embate epistemológico entre Leontiev e Vigostki. Este definiu “vivência” como:
Uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo
que se vivencia está representado - a vivência sempre se liga àquilo
que está localizado fora da pessoa - e, por outro lado, está
representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades
da personalidade e todas as particularidades do meio são
apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos
os elementos que possuem relação com dada personalidade, como
aquilo que é retirado da personalidade, todos os traços de seu caráter,
traços constitutivos que possuem relação com dado acontecimento.
Dessa forma, na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível
das particularidades da personalidade e das particularidades da
situação representada na vivência (VIGOTSKI, 1999, p. 686).

Considerando a teoria histórico cultural, o termo vivência encontra-se integrado


no fazer infantil do poeta, pois o menino que carrega água na peneira constrói
criativamente a partir de sua vivência com o meio e com o objeto, ele utiliza a peneira
que faz parte do seu meio como uma transformação do seu real significado, ao
reconstruir o seu significado ele está transformando o meio e sendo transformado
também de forma criadora e inventiva.
Nestes versos, o menino que o poeta descreve revela as condições de sua
infância vivida em um ambiente cuja educação recebida de sua mãe retrata uma
situação de total liberdade tanto para brincar, como para escrever, desenhar e criar
novas brincadeiras em seu ambiente natural de vivência. A mãe, no poema, enfatiza a
crença de que o menino ia ser poeta e ainda reforça que as pessoas vão amá-lo do jeito
que ele é. Isso se configura em uma educação humanizadora, pois esse menino que

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faz despropósitos e peraltices, a própria sociedade renega, desumaniza como fora dos
padrões estabelecidos.
Carregar água na peneira pode simbolizar a repetição de uma vida em constante
construção assim como a escrita de poesias, uma junção de palavras, imaginação e
estratégias de escritas por meio dos quais, é imprescindível o encadeamento de
sentidos intrínsecos no poema para compreendermos o ponto extrínseco.
Felizmente podemos analisar no poema de Barros, o que o escritor Ernest
Hemingway apresentou um conceito que ele chamou de “teoria da escrita do iceberg”:

“Se um escritor sabe o suficiente sobre o que está escrevendo, ele


pode omitir coisas que conhece. E se o escritor está escrevendo de
forma verdadeira, o leitor poderá sentir essas coisas de forma intensa,
como se o escritor as tivesse declarado. A beleza do movimento de um
iceberg é devido a apenas um oitavo do que está acima da água.
“(HEMINGWAY, 1942, sp)

Para o teórico acima, o escritor, precisa escrever o sentimento a partir da


verdade, assim ele encantará e envolverá o leitor em sua escrita literária.

O iceberg é construído pela cristalização de símbolos definidos pela


retomada de palavras do mesmo campo semântico (às vezes com a
repetição das mesmas palavras), gerando novos significados que
verticalizam a compreensão da realidade referenciada. Em miúdos, o
iceberg, em literatura, e na lição de Hemingway, é construir e gerar
sentidos a partir de cuidadosa seleção lexical, ordenação das palavras
e sequências narrativas que criam uma arquitetura cuja aparência de
lógica referencial esconde o universo humano e histórico que subjaz –
como visão do mundo por parte do autor – nas profundidades do texto.
(RAUER, 2020, sp)

Essa seleção lexical, ordenação de palavras e sequencias na poesia de Barros


é que embeleza a infância e dá um efeito de sentido a partir de “como” o poeta escreve.
Esta representação de como Barros escreve é que nos aponta a concepção de
infância.

A representação da infância em Manoel de Barros


Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu no Beco da Marinha, beira do Rio
Cuiabá, no Estado de Mato Grosso, em 1916. Publicou seu primeiro livro, Poemas
concebidos sem pecado, em 1937, mas o reconhecimento do público aconteceu nos
anos 80. Manoel de Barros construiu sua poética a partir de uma linguagem inovadora,
cuja estética se renova por meio de seus neologismos e, ao mesmo tempo,
apresentando a língua portuguesa em suas manifestações próprias, utilizando
metáforas para tornar sua escrita própria. Em sua poética se traduz uma infância com
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princípios de liberdade, alegria, despropósitos e peraltices baseada no cotidiano e na
vivência do fazer poético.
Essa forma artística do poeta Manoel de Barros em compor sua obra nos permite
compreender a grandeza de suas marcas humanizadoras do ser humano, pois o poeta,
manifesta sua poesia a partir do que é considerado o nada, do que é observado no fazer
poético. Consideramos que “O menino que carregava água na peneira” alcança
expressão máxima na literatura infantil, construindo novos espaços de liberdade,
imaginação do irreal e reinvenção do universo, aviltando o aprisionamento de uma
tradição convencional. Isso decorre ─ a nosso ver, conforme demonstramos no estudo
─ de uma concepção amplificada de infância que norteia o fazer poético de Manoel de
Barros. Em sala de aula, o poema produz debate sobre o viver em sociedade, sobre o
confronto entre ações de passividade e a assunção de papel pessoal e social ativo,
capaz de criar, recriar e transformar o mundo ao seu redor.
A criança, então, para Barros, não é um ser ingênuo, incompetente, mas sim
inquieto, inventivo e coberto de peraltices, capaz de criar um mundo próprio, porém
interligado num mundo maior, que, para a criança está dentro de uma normalidade, essa
capacidade da criança de estabelecer conexões entre o seu mundo e o mundo dos
adultos.
Manoel de Barros atribui significado ao que é insignificante para as pessoas, ele
escreve de forma dos deslimites da palavra, utilizando a brincadeira de ultrapassar os
limites das palavras, de envolver o leitor para um entusiasmo através da simplicidade
em transformar o seu mundo em um único lugar de viver maravilhas. Sua poesia é
considerada brinquedo por meio da sua invenção, da sua criatividade ao fazer a ordem
sintática de suas orações e da simplicidade lúdica de seus versos.
Assim como Cândido nos falou sobre a importância da literatura, percebemos
que Barros enfatiza na metalinguagem como a poesia está à margem da sociedade, as
crianças também estão, pois são consideradas como um ser menor. Partindo desse
princípio, e, por meio de seus versos, o poeta Manoel de Barros nos faz despertar para
uma nova concepção da infância, para o um movimento dialético que a poesia é
resistência e a partir dela podemos dar vozes às crianças.

A Literatura e a educação: um direito do ser humano


Na fortuna crítica de Cândido, observamos a importância da literatura nos meios
sociais com relevância no que se refere aos direitos humanos, comumente
mencionados pelo teórico que a literatura é uma primeira necessidade do ser humano

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pois além de nutrir, instrui e educa. A literatura foi comparada com a alimentação,
vestuário, saúde e segurança.
A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação (...) a
literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a
possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso, é indispensável tanto
a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e as que
nascem dos movimentos de negação do estado de coisa predominante. (CÂNDIDO,
1995, p, 177)
Sendo assim, ousamos interpretar no poema de Barros, “o menino que
carregava água na peneira” como uma condição indispensável dos despropósitos do
menino do poema como salutares no fazer poético, pois traduzimos como “a vida em
despropósitos” na infância de Barros.
Então, segundo Cândido, a literatura é um direito universal, sob pena de mutilar
a personalidade do ser humano, pois ela além de instruir e educar, ela nos organiza,
nos liberta do caos e humaniza o homem.
Assim, para Manoel de Barros, a poesia não combina com o direito, a convenção,
o que já é estabelecido, poesia combina com o avesso, com o despropósito, com o
impudico. É por meio de palavras que atenuam o avesso que o eu lírico se apropria do
que é a concepção de infância.
O poema O menino que carregava água na peneira caracteriza-se pela figuração
do sentir sem a contaminação do significar, e é justamente do esvaziamento dos
significados comuns da linguagem e da ordem convencional das coisas que a poesia
nasce, assim como nasce o olhar para a infância em Barros, de um jeito avesso ao dito
“normal”. Para se chegar à poesia de forma concomitante ao significado de ser criança
para o poeta, é necessário livrar a palavra do significado corrente, é necessário romper
com as ligações semânticas, sintáticas, morfológicas prosaicas e recriar um novo
sentido tal como “despropósitos”, como significado de criatividade, imaginação.
Observamos que o poeta brinca, no decorrer de todo os poemas, com absurdos
e despropósitos, mostrando diferentes faces dos acontecimentos; nessa direção, o leitor
é é convidado a construir uma visão de mundo a partir dessa forma de escrever, com
essa organização textual. “Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de
objeto construído; e é grande o poder humanizador dessa construção, enquanto
construção” (Candido, 1995, p. 246). Manoel de Barros aproveita disso para escrever
seus devaneios, deixando de ser pessoal possibilitando que os outros compartilhem do

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prazer obtido nesses devaneios. Além disso, o poeta mantem intacta a origem desses
devaneios.

Algumas Considerações
Pesquisar sobre os poemas de Barros envolvendo o universo infantil, suas
valiosas contribuições para a educação, trazendo á tona a concepção de infância
baseada na vida em despropósitos torna-se um passear pela história da humanidade e
perceber quão aviltada foram nossas crianças do seu real direito humano.
Abrir-se a novos olhares para o mundo e compreender o verdadeiro sentido de
ser criança envolve muito mais ter a sensibilidade, curiosidade e aprendizado como
processo de humanização do mundo que configuram a criança como um ser histórico
e social capaz de construir cultura de forma criativa, rica e humanizadora.
Além disso, as crianças são protagonistas tempo todo do que anseiam descobrir
e aprender, e precisam ser envolvidas práticas pedagógicas capazes de promover
avanços estabelecendo contatos por meio de suas vivências.
Esse fazer educativo, partindo de descobertas para o novo de forma significativa
e integrada ao meio em que vive, aproxima as crianças da linguagem poética de Manoel
de Barros, viver em despropósitos significa o reconhecimento e a valorização da
infância por meio de seus versos desprendidos de um conceito pré-moldado do
adulto.
O eu lírico traz a valorização da infância, assim como ele valoriza o que é
desimportante, o que não serve mais, o que o adulto não enxerga, que fala sobre o
mundo por meio da importância que dá aos “inutensílios” e aos “seres desimportantes”
nos faz acordar da inércia em nosso cotidiano, nos envolve em olhar mais profundo das
coisas em nossa volta, assim como o que só vemos no iceberg a parte externa, sem
imaginar que o que o sustenta está imerso, nas profundezas das águas no oceano.
O poema em análise nos faz interpretar uma criança ao avesso destas crianças
que assistimos na vida real, que não recebe um olhar afetuoso do adulto em suas
peraltices, que não é cuidada e nem sustentada em seus despropósitos.
Barros, dá vazão à riqueza da capacidade inventiva da infância e aproxima a
criança livre, criativa e cheia de imaginação, oferecendo-nos a possibilidade de
aumentar o mundo e olhar para as crianças reais, estas que temos nas instituições
de ensino como possibilidades de inovações, envoltas de falas e atitudes dentro da
sociedade.

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Referências
ARIÈS, P. História social da infância e da família. Tradução: D. Flaksman. Rio de
Janeiro: LCT, 1981.

BARROS, Manoel (1999). Exercícios de ser criança. Bordados de Antônia Zulma


Diniz, Ângela, Marilu, Martha e Sávia Dumont sobre os desenhos de Demóstenes. São
Paulo: Salamandra.

CANDIDO. Antonio (1995). Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades.

VIGOTSKI, L. S. Quarta aula: a questão do meio na pedologia. 1999. Tradução de


Márcia Pileggi Vinha e Max Welcman. Psicol. USP. São Paulo, vol.21, n.4, 2010.
Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
65642010000400003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em:12 de agosto de 2020

https://editorapangeia.com.br/blog/ . Acesso em 18 de setembro de 2020

https://www.bstorytelling.com.br/blog/teoria-do-iceberg-sua-marca-pode-dizer-mais-
com-menos/Acesso em 2 de setembro de 2020

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MEMÓRIAS LITERÁRIAS: A OLIMPÍADA DE LÍNGUA
PORTUGUESA E A ESCRITA LITERÁRIA

Joana d’Arc Batista Herkenhoff - Secretaria Municipal de Educação - Serra/ES


Renata Junqueira de Souza - UNESP/Presidente Prudente

Eixo Temático 1: Experiências na educação básica com a escrita do texto literário

Considerações iniciais
O presente artigo é um recorte da pesquisa de doutorado,1 concluída em 2017,
no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo
(Ufes), a partir da preocupação com o acesso à literatura, pelos alunos dos anos finais
do ensino fundamental (EF), da escola pública. A pesquisa teve como objeto de estudo
um dos Cadernos do Programa Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro
(OLP), programa oficial do Governo Federal, material pedagógico produzido para
orientar o trabalho dos professores da educação básica com o gênero denominado
Memórias literárias (ML). A pesquisa teve como sujeitos professores de Língua
Portuguesa da rede municipal de Serra (ES), participantes dos encontros de formação
continuada, promovidos pela Secretaria Municipal de Educação (SEDU-Serra), em 2016
e também analisou portfólio produzido por uma professora, como apropriação da
proposta pedagógica do Caderno.
Na tese, realizamos análise da proposta pedagógica da Olimpíada, enfocando
o Caderno de Memórias Literárias e a coletânea de textos memorialísticos voltados para
os alunos, na versão impressa enviada às escolas públicas inscritas. Defendemos que,
embora não se apresente como tal, esse material tem se constituído “material
pedagógico oficial para o trabalho com a literatura nas escolas públicas do ensino
fundamental, privilegiando a prática de escrita, uma vez que as categorias
contempladas pelo concurso, Poema (5º e 6º anos), Memórias literárias (7º e 8º anos),
Crônica (9º ano), são gêneros do domínio literário, incluindo a crônica, que participa
tanto da esfera literária, quanto da jornalística” (HERKENHOFF, 2017, p. 15). No

1
A escrita literária e a Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o futuro: memórias de uma
professora. Pesquisa desenvolvida com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapes) e
orientação da Professora Renata Junqueira de Souza - UNESP/Presidente Prudente.
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período em que a pesquisa foi realizada, 4.873 municípios de todo o Brasil, dentre os
5.5702 que totalizavam a federação, segundo informações na página oficial do
programa, participavam da Olimpíada e, logo, possuíam esses impressos.
A partir dessa constatação, pesquisamos, dentre outros aspectos, a concepção
de escrita que fundamenta a proposta pedagógica da Olimpíada e que textos literários
têm sido privilegiados por este material. Essa é a parte da pesquisa que apresentamos
aqui. Conduzimos a pesquisa, assumindo a concepção de literatura como um domínio
constituído por práticas culturais, dentre as quais se incluem a escrita e a leitura e assim
adotamos a expressão “escrita literária”, como a abordam Catherine Tauveron (2014) e
Elisa Dalla-Bona (2012, 2013), como escrita de “intenção artística” (TAUVERON, 2014,
p. 88), que é aquela produzida por um autor literário, que não é não apenas o escritor
experiente ou reconhecido, mas o sujeito que escreve, realizando escolhas motivadas
para gerar efeitos de sentido estéticos no texto, em busca da interlocução com seu leitor,
estabelecendo diálogos com seu repertório de leituras.
Nosso interesse incide sobre o modo como a escola da educação básica
promove o trabalho com a escrita literária, os materiais e metodologias utilizadas para
esse fim. Para o desenvolvimento da pesquisa, adotamos como referência teórica
básica, o pensamento de Roger Chartier, estudioso francês da História Cultural, que se
dedica ao estudo da cultura escrita, do livro e da leitura, a partir de sua dimensão
material, como uma prática encarnada em gestos, espaços e hábitos (CHARTIER,
1999), por permitir abordar leitura e escrita literárias em sua materialidade, como
práticas de sujeitos concretos, historicamente constituídos.
Partimos do pressuposto de que o Brasil é um país de escolarização e
imprensa tardias (GALVÃO et al., 2007, p. 11) e assim, a escola tem fundamental
importância para a inserção dos sujeitos na cultura literária, especialmente quando se
trata das crianças, adolescentes e jovens do ensino público, para quem a escola
constitui muitas vezes a única forma de acesso ao conhecimento e às práticas
relacionadas ao universo literário. Daí a necessidade de pesquisas sobre programas e
materiais oficiais como a Olimpíada de Língua Portuguesa.

A escrita literária na Olimpíada de Língua Portuguesa

2
Informações disponíveis em: <https://www.escrevendoofuturo.org.br/concurso/edicoes-
anteriores>. Acesso em: 10 out. 2017.

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Ao refletir sobre a produção e o consumo dos objetos culturais, Chartier (2002,
p. 52) adverte que a produção desses artefatos implica na constituição de
representações que nunca são idênticas às dos consumidores e que o consumo,
entendido por ele como “apropriação criativa”, “invenção”, na perspectiva de Michel de
Certeau, sempre provoca luta de representações, pois as representações não são
inócuas, elas variam de acordo com os grupos ou classes sociais que as constituem e
são constituídos por elas, carregando os valores e interesses desses grupos, não
sendo, portanto, imunes aos jogos de poder.
Assim, para analisarmos o Caderno pedagógico de Memórias literárias, faz-se
necessário considerar que, como programa oficial do governo federal, ele se insere num
contexto, como parte de um todo articulado que envolve diagnósticos, planificação,
produção de discursos oficiais, criação de mecanismos e instâncias de divulgação
desses discursos, dentre os quais se incluem políticas de formação, aquisição de
acervos e, por fim, os processos avaliativos oficiais.
A proposta pedagógica da OLP está atrelada aos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs) por isso julgamos ser interessante resgatar o movimento que deu
origem aos PCNs e que representou uma virada importante para o ensino de língua e
literatura no Brasil, entre as décadas de 1980 e 1990, com a defesa de uma prática de
ensino de língua e literatura, pautada na defesa da centralidade do texto, como
enunciado contextualizado, evidenciando seus usos sociais em situação de interação
verbal (GERALDI, 2011).
Essa perspectiva teórica denominada sociointeracionismo, desenvolvida a
partir das contribuições teóricas de Bakhtin, toma o texto como unidade básica para o
ensino, deslocando o eixo do ensino, do conteúdo para os usos sociais da língua,
privilegiando atividades discursivas de leitura, escrita e reflexão linguística, constituídas
na relação de ensino. Esse novo modelo propicia a ampliação do repertório de textos
nas escolas por valorizar as diversas variedades linguísticas e a diversidade de gêneros
em circulação na sociedade, com destaque para os textos literários (MORTATTI, 2014,
p. 8).
Geraldi (1997) chama a atenção para o fato de que na escola há muita escrita
e pouco texto, defendendo a centralidade da escrita, como “produção textual” no ensino
de língua portuguesa, como forma política “de devolução do direito à palavra às classes
desprivilegiadas, para delas ouvirmos a história, contida e não contada, da grande
maioria que hoje ocupa os bancos escolares” (GERALDI, 1997, p. 135). Para esse autor,
isso implica que a escolha das estratégias para a escrita se dá a partir do que se tem a

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dizer e das razões para dizer e para quem dizer, aspectos que contextualizam a
produção textual, chamado a atenção para a importância da participação do professor
nesse modo de trabalho com o texto.
Para análise do Caderno, consideramos necessário iniciar pela apresentação
da Olimpíada de Língua Portuguesa. Trata-se de uma ação do Programa Escrevendo o
Futuro, o qual é uma iniciativa da Fundação Itaú Social, com coordenação técnica do
Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec),
desenvolvida juntamente com o Ministério da Educação, o Conselho Nacional dos
Secretários de Educação (Copced), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de
Educação (Undime) e o Canal Futura3.
O programa estabelece como objetivo contribuir para aprimorar a prática dos
professores de Língua Portuguesa da Rede Pública em todo o Brasil, em relação ao
trabalho com leitura e escrita, para que possam preparar os alunos para interagir
socialmente, com competência, por meio de diferentes gêneros textuais em circulação
na sociedade. À época da pesquisa, disponibilizava material impresso, além de digital,
para executar suas duas ações: a formação para os professores na modalidade
presencial e on-line, por meio do Portal, nos anos pares e nos anos ímpares, a
realização da Olimpíada de Língua Portuguesa, um concurso de produção de textos
para os alunos do 5º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio.
Consideramos oportuno reiterar que para os anos finais do ensino fundamental todos
os gêneros são do domínio literário, incluindo a crônica, gênero anfíbio que participa
tanto da esfera jornalística quanto literária.
A Olimpíada foi criada em 2002, atendendo a alunos de 4ª e 5ª séries do ensino
fundamental, já com o tema “O lugar onde vivo”, que se mantém até hoje. Até 2008
quando se tornou política pública, passando a abranger toda a educação básica, passou
por várias modificações até chegar ao formato atual. Destacamos o ano 2004, quando
o gênero Reportagem deu lugar ao gênero Memórias literárias. Em 2009, as secretarias
de educação que aderiram ao programa receberam o kit para formação, denominado
Maleta do Formador e, em 2010, as escolas públicas que atendiam os anos escolares
contemplados pelo concurso passaram a receber a Coleção da Olimpíada, com os
Cadernos do professor, uma para cada gênero: poema (Poetas da escola), crônica (A
ocasião faz o escritor), Memórias literárias (Se bem me lembro...) e artigo de opinião

3
Mais informações disponíveis em: <https://www.escrevendoofuturo.org.br/programa>. Acesso em: 14
nov. 2017.

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(Pontos de vista). Em 2014, na 4ª edição d OLP, toda a coleção foi adaptada para
suporte digital, juntamente com os recursos multimídia, como áudios, textos para
projeção, vídeos e jogos.
A participação do professor está condicionada à adesão do município e à
autorização do diretor e este tem a responsabilidade de formar e coordenar a comissão
escolar para avaliação dos textos produzidos, registrar em ata e enviar os textos dos
alunos. Na recomendação para a composição da banca já se delineiam as
representações sobre escrita literária, como uma prática relacionada ao conhecimento
da língua e ao reconhecimento público, já que orientam que o(s) representante(s) da
comunidade preferencialmente, seja(m) reconhecido(s) pelo domínio da língua
portuguesa (como, repentista, contador de histórias, jornalista, escritor, poeta)”. O
domínio da Língua Portuguesa aqui é relacionado na maioria dos exemplos ao universo
literário e jornalístico, contemplando outros sujeitos envolvidos nesse campo, como o
contador de histórias. Na tese, defendemos a participação dos estudantes na
composição da banca examinadora na escola, já que o regulamento orienta que seja
composta por representantes de todos os segmentos da comunidade escolar.
De acordo com Egon de Oliveira Rangel e Ana Luiza Marcondes Garcia (2012),
a OLP se estrutura sobre três pilares, do ponto de vista teórico-metodológico: 1) a noção
de gênero, na perspectiva discursiva de Bakhtin, como “formas particulares de
organização e elaboração textual, assumindo uma forma composicional própria” (p. 12),
relacionados às diversas esferas da atividade humana e aos usos da linguagem; 2) a
sequência didática (SD), no modelo da Escola de Genebra, de Bernard Schneuwly e
Joaquim Dolz, que compreende um encadeamento de atividades sobre um
determinando gênero textual, com foco na escrita; 3) as teorias de Vigotski sobre a
aprendizagem em que os alunos são considerados “sujeitos ativos” desse processo.
A concepção teórico-metodológica é apresentada no texto intitulado, “A
Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro: uma contribuição para o
desenvolvimento da aprendizagem da escrita”, que está na parte introdutória de todos
os Cadernos pedagógicos. O texto evoca os antigos jogos olímpicos como uma festa
cultural e religiosa de grande relevância, enfatizando a competição e o treino, elementos
que ainda permanecem nos jogos olímpicos atuais, acrescidos dos ideais de igualdade
social e democratização. O texto relaciona essa representação olímpica ao contexto do
ensino de leitura e escrita no Brasil:
Os organizadores da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o
Futuro, imbuídos desses mesmos ideais desportivos, elaboraram um
programa para o enfrentamento do fracasso escolar decorrente das
dificuldades do ensino de leitura e de escrita no Brasil. Ao fazer isso,
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não imaginaram que, alguns anos depois, a cidade do Rio de Janeiro
seria eleita sede das Olimpíadas de 2016. Enquanto se espera que os
jogos olímpicos impulsionem a prática dos esportes, a Olimpíada de
Língua Portuguesa também tem objetivos ambiciosos. [...] Quais são
esses objetivos? Primeiro, busca-se uma democratização dos usos da
língua portuguesa, perseguindo reduzir o “iletrismo” e o fracasso
escolar. Segundo, procura-se contribuir para melhorar o ensino da
leitura e da escrita, fornecendo, aos professores, material e
ferramentas, como a sequência didática [...] (DOLZ, 2016, p. 9).

O recurso utilizado para exortar a participação no programa, incentiva a


competição e pode se tornar uma prática excludente, a depender do modo como isso é
encaminhado nas escolas. Por isso, consideramos importante a publicização dos textos
dos alunos participantes nas etapas escolar e municipal, em parcerias com as
secretarias de educação, independentemente de sua classificação ou não para as
etapas subsequentes.
O texto de apresentação defende que ler se aprende lendo todos os tipos de texto, assim
como escrever se aprende escrevendo, praticando a escrita, nas mais variadas
situações, como “correspondência escolar, construção de livro de contos, de relatos de
aventuras ou de intriga, convite para uma festa, troca de receitas, concurso de poesia,
jogos de correspondência administrativa, textos jornalísticos (notícias, editorial, carta ao
diretor de um jornal) etc.” (DOLZ, 2010, p. 11). Embora, em seus exemplos de prática
de escrita contemple a literatura, como comprovam nossos grifos, dentre as profissões
citadas como as que se valem da escrita, a de escritor não é mencionada:
Do ponto de vista social, a escrita permite o acesso às formas de
socialização mais complexas da vida cidadã. Mesmo que os alunos
não almejem ou não se tornem, no futuro, jornalistas, políticos,
advogados, professores ou publicitários, é muito importante que
saibam escrever em diferentes gêneros textuais, adaptando-se às
exigências de cada esfera de trabalho (DOLZ, 2016, p. 11).

A escrita é apresentada como “ferramenta de comunicação” e como recurso


indispensável para todas as aprendizagens, para o desenvolvimento dos alunos na
dimensão psicológica e social, como “auxílio para a reflexão”, “suporte para a memória”,
ajudando a estruturar as lembranças, como meio de atuação eficaz em situações de
interação social em que a escrita é necessária, levando em conta o contexto de
produção do texto. De acordo com Dolz (2016), para escrever, é importante preparar-
se, lendo, tomando notas, selecionando informações e cuidando dos aspectos
relacionados à textualidade, “mecanismos linguísticos que asseguram a arquitetura
textual: a conexão e a segmentação entre suas partes, a coesão das unidades
linguísticas que contribuem para que haja uma unidade coerente em função da situação
de comunicação” (p. 11).
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A sequência didática é a proposta apresentada para o ensino da escrita, como
um “conjunto de oficinas e de atividades escolares sobre um gênero textual, organizada
de modo a facilitar a progressão na aprendizagem da escrita” (DOLZ, 2016, p. 8), e traz
“cinco conselhos” aos professores:
1) Fazer os alunos escreverem um primeiro texto e avaliar suas
capacidades iniciais.
2) Escolher e adaptar as atividades de acordo com a situação
escolar e com as necessidades dos alunos,
3) Trabalhar com outros textos do mesmo gênero, produzidos por
adultos ou por outros alunos.
4) Trabalhar sistematicamente as dimensões verbais e as formas
de expressão em língua portuguesa.
5) Estimular progressivamente a autonomia e a escrita criativa dos
alunos. [...] pouco a pouco, os alunos devem aprender a reler, a revisar
e a melhorar os próprios textos, introduzindo, no que for possível, um
toque pessoal de criatividade (DOLZ, 2016, p. 14 -15).

Podemos observar que a especificidade da literatura não é destacada, ao que


parece, em consonância com as diretrizes teóricas adotadas, que preconizam o trabalho
com a diversidade de gêneros, sem primazia para nenhum deles em especial, sendo
que apenas o último conselho se relaciona mais diretamente à escrita literária.
O Caderno em análise é um recurso pedagógico de “orientação para produção
de textos” que se destina a formar alunos autores, “memorialistas” (2016, p. 107). Esse
material é abordado como objeto cultural, na perspectiva da História Cultural, como
“objetos produzidos e apropriados por uma sociedade historicamente identificada, cujas
formas materiais podem assinalar, enfim, projetar, as práticas de sua produção e de sua
apropriação, (CURCINO, 2006, p. 1783), assim, esse material tem potencial para
veicular e ao mesmo tempo contribuir para a produção de representações sobre a
literatura, a prática da escrita literária e sobre o gênero memorialístico.
A Coletânea de Memórias literárias (ML), que acompanha o Caderno, é um
impresso com 16 textos memorialísticos, distribuídos em 16 páginas. Junto com esse
material vem um CD-ROM, com os textos da Coletânea para utilização do professor,
além de outros materiais complementares, em versão sonora: textos lidos em voz alta
para serem ouvidos em aparelho de som ou computador compatível, o que pode
favorecer a inclusão de estudantes público-alvo da Educação Especial, com deficiência
visual. Dos 16 textos, apenas dois são textos completos, os outros 14 são fragmentos
retirados de livros, com indicação da fonte. Os textos completos são produzidos no
contexto do concurso, o primeiro foi produzido por um colaborador da Olimpíada, como
um modelo para o gênero e o segundo é texto de uma aluna da 4ª série, hoje 5º ano,
em 2006, quando o concurso ainda estava no início. Avaliamos ser essa iniciativa uma
forma de valorizar os resultados do concurso e também a produção dos alunos.
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Essa coletânea, retoma um suporte comum nas escolas para o ensino da
literatura até por volta de meados do século XX, os compêndios e as seletas literárias.
Assim como o livro didático, esse tipo de material, por não trazer os textos em sua
integralidade tende a fomentar práticas e representações de literatura focadas no texto
e na figura do autor, contribuindo para uma prática de leitura escolarizada, distanciada
dos modos de ler em outros contextos da cultura literária, por preterir o livro em favor
do gênero (ZILBERMAN, 2005). O material, entretanto, adverte o professor sobre a
necessidade de apresentar os alunos às obras completas, sugerindo que escolha um
livro de ML considerado adequado à faixa etária dos alunos, para leitura “em capítulos”
(p. 30), indicando as obras que foram distribuídas pelo distribuídas pelo extinto
Programa Nacional Biblioteca da escola (PNBE) que teve sua última edição em 2014.
São elas:

Quadro 1 - Obras distribuídas pelo PNBE

Fonte: CADERNO, 2016.


n. Texto e fonte indicada no Caderno PNBE
LAURITO, Ilka Brunhilde. A menina que fez a América. São Paulo: 2006 (EF)
FTD, 2002.
BELINKY, Tatiana. Transplante de menina. São Paulo: Moderna, 2009 (EF)
2003.
GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. Rio de Janeiro: Record, 2009 (EF)
1986.
Fernando Sabino. O menino no espelho. Rio de Janeiro: Record, 2012 (EJA)
1992.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Por parte de pai. Belo Horizonte: 2011 (EM)
RHJ, 1995.
MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia 2011 (EM)
das Letras, 1942.

Desde a primeira edição, o Caderno sofreu ligeiras modificações na seleção de


textos literários (o texto de Bartolomeu Campos de Queirós, mais lírico, por exemplo, foi
substituído pelo “Memórias de livros” de João Ubaldo Ribeiro, de tom mais humorístico),
além de alterações na editoração, na ilustração, mantendo, porém, praticamente a
mesma estrutura no que diz respeito à proposta pedagógica no modelo de sequência
didática, o que se constatou mediante a comparação entre as edições de 2008, 2010 e
2016 a que tivemos acesso na pesquisa.
O título do Caderno Se bem me lembro..., como informam as autoras Ana
Helena Altenfelder, Neide Almeida e Regina Andrade Clara, é um empréstimo da obra
homônima de Alaíde Lisboa (1904-2006), uma apresentação em prosa e verso de suas

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memórias. Por meio do diálogo com textos teóricos e literários, desde a epígrafe, o
conceito de memória vai sendo construído como um discurso que se constitui a partir
da elaboração do passado, pela mescla de lembranças e imaginação. O Caderno faz
referência à obra de Ecléa Bosi, Lembranças de velho (PNBE, 1999) e dialoga
superficialmente com a concepção de memória de Walter Benjamin, como território a
ser explorado, pelo processo de escavação:
A memória não é um instrumento para a exploração do passado; é,
antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é
o meio sutil no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem
pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir
como o homem que escava. (BENJAMIN, apud CADERNO, 2016, p.
18. Grifo das autoras).

Logo na sequência, o Caderno traz um fragmento textual do livro Memórias


inventadas: a terceira infância, de Manoel de Barros, que é também parte do acervo do
PNBE de 2009, para o ensino médio. No texto do poeta mato-grossense, a tríade
criança, mendigo e passarinho, personagens que o ajudam a compor suas memórias,
evocam os valores: criatividade, liberdade e invenção, agenciados na escrita desse livro
de “Memórias inventadas”, composto por seis pequenos contos que trazem a infância,
recriada pelo olhar o poeta.
Beatriz Gaydeczka (2012), em pesquisa de doutorado que estuda os
enunciados memorialistas da OLP, adverte que no material pedagógico de Memórias
literárias, “a noção de memórias é concebida discursivamente, porque se trata de um
discurso que pode se manifestar em diferentes enunciados, ou seja, em variados
gêneros discursivos” (2012, p. 32). Observemos o conceito do gênero Memórias
literárias no Caderno pedagógico:
Memórias Literárias geralmente são textos produzidos por escritores
que, ao rememorar o passado, integram ao vivido o imaginado. Para
tanto, recorrem a figuras de linguagem, escolhem cuidadosamente as
palavras que vão utilizar, orientados por critérios estéticos que
atribuem ao texto ritmo e conduzem o leitor por cenários e situações
reais ou imaginárias (CADERNO, 2016, p. 19).

O gênero Memórias literárias está vinculado a uma intencionalidade literária a


começar pelo nome, indicando também elementos relacionados aos aspectos
composicionais, de ordem estética, tais como o uso de “figuras de linguagem” e “ritmo”.
Além desses aspectos, o gênero é apresentado com uma peculiaridade que o
circunscreve à esfera literária, uma vez que o texto do Caderno adverte que o aspecto
mais relevante é que as narrativas memorialísticas a serem produzidas pelos alunos, as
suas Memórias literárias, são, na verdade, memórias de outrem, escritas a partir de
relatos colhidos em entrevistas com moradores mais antigos dos seus bairros. Ou seja,
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“não se trata de texto autobiográfico (...) os alunos precisarão aprender a escrever como
se fossem o próprio entrevistado” (CADERNO, 2016, p. 19).
Nessa perspectiva, o trabalho com o gênero, nos moldes da Olimpíada, poderá
levar os alunos a experimentarem e, assim, a entenderem uma das características
fundamentais da literatura, a saber, o processo de “ficcionalização do eu”, que, para
Tauveron (2014), é uma operação constitutiva do texto literário que, embora seja uma
operação complexa (não complicada, segundo ela), precisa ser ensinada aos alunos da
educação básica o quanto antes, ainda nos anos iniciais do EF.
A sequência didática no modelo proposto pela Escola de Genebra é organizada
em oficinas, inicia pelo contato inicial com o gênero a ser estudado, diagnostica os
conhecimentos prévios por meio de uma produção de texto inicial, promovendo a leitura
e outras atividades, a fim de ampliar o repertório do aluno e seu conhecimento sobre os
elementos composicionais e sobre contexto de usos, situação de produção e circulação.
Após a sistematização desses conhecimentos, realiza-se nova produção, porém
coletiva, seguida de nova produção individual que deve ser uma retomada da produção
inicial.
Um aspecto relevante a ser considerado é que nas situações de ensino em que
a mediação do professor é parte constitutiva do processo, quando se trata de escrita
literária, eles manifestam insegurança em como agir, se devem fazer intervenções
mínimas para não interferir na criação do aluno, ou se fazem uso da caneta como é
costume nas práticas de correção de textos de modo tradicional. Embora o material
pedagógico apresente propostas para o trabalho com a reescrita e revisão dos textos,
a pesquisa indica além da dificuldade dos professores e talvez até como decorrente
dessa dificuldade, a recusa dos alunos em reescrever seus textos.
Como na escola o que não educa deseduca, a prática reiterada de escrever
sem ter que refazer seus textos literários leva os alunos a aprendem que não precisam
melhorá-los, criando uma aversão ao rascunho, por entenderem a necessidade da
reescrita, da edição do texto, como um sinal de fracasso do que produziram. Atribuímos
esse impasse a uma visão da escrita literária como produto e não como processo e
consideramos que o material pedagógico tem grande contribuição a dar nesse sentido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para concluir, reforçamos a tese de que o material da Olimpíada está hoje na
escola como um recurso potencial para o ensino da literatura, mesmo que isso não seja

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colocado de forma clara, com potencial de contribuir para a formação literária dos alunos
da escola pública.
A proposta pedagógica para o gênero Memórias literárias contempla diversas
dimensões da literatura, trazendo à cena questões complexas cujo aprendizado poderia
provocar a revisão de representações sobre a escrita literária, tanto para o aluno quanto
para o professor, podendo se configurar “uma experiência estética particular”
(CADERNO, 2016, p. 81. Voltamos a questionar se isso, entretanto, será possível sem
a devida clareza para o professor da especificidade da escrita com que trabalhará, no
caso a escrita literária.
Por ser um gênero complexo, as Memórias literárias representam um desafio para os
professores, que precisarão ter segurança teórica a respeito das suas sutilezas para
orientar os alunos e habilidade para envolvê-los com uma modalidade de escrita
distante da sua vida de adolescente, considerando que as memórias normalmente são
fruto da maturidade
Nos diálogos estabelecidos com os professores na pesquisa, eles afirmaram
ser a escrita em nome de outro um dos aspectos mais complicados para desenvolver
com os alunos, considerando assim o gênero Memórias literárias o mais difícil dos
gêneros da OLP, o que demostra que esse aspecto precisaria ser mais explorado com
professores e alunos.
Na tese, consideramos que um aspecto central para a OLP, expresso no tema
do concurso “O lugar onde vivo”, o mesmo desde a primeira edição, é a proposta de
promover, no caso do gênero Memórias, o resgate da memória social como elemento
identitário, evocador do sentimento de pertença a uma comunidade, a partir da ideia de
que a memória do indivíduo está ligada à do seu grupo. Assim, investigamos que
memórias estão sendo privilegiadas pelo concurso, constando que a seleção de textos
literários valoriza a diversidade cultural do país, apresentando textos memorialísticos de
diversas regiões brasileiras e diversos falares regionais. Entretanto constatamos que
Com relação à diversidade cultural de povos que compõem o mosaico
étnico do Brasil, predominam representações da cultura europeia
(como russos, portugueses, espanhóis e, sobretudo, italianos) não há
nenhum texto que representa a cultura africana ou afro-brasileira, que
hoje configura a maioria da população brasileira.” (HERKENHOFF,
2017, p.126.)

Também não se faz representar a cultura indígena, outra cultura invisibilizada


no país, o que está sendo aprofundando em um outro estudo em desenvolvimento. De
todo modo, noticiamos que a tese está no banco acadêmico do site da Olimpíada de
Língua Portuguesa e que, embora os textos do Caderno de Memória Literárias a

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Coleção da Olimpíada não tenham ainda sofrido alteração para incluir essas culturas,
em 2019, a escritora negra Conceição Evaristo foi a escritora homenageada pela
Olimpíada de Língua Portuguesa e os site e as propostas de formação estão
contemplando a Lei 10.639/2003. Uma vitória para as lutas por representatividade da
cultura negra na escola e uma possiblidade da Olimpíada contribuir para a instituição
de vozes autorais silenciadas pelo processo histórico e, aí sim, dar uma contribuição
inestimável pra formação literária dos alunos da escola pública brasileira.

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A POESIA DE MÁRIO QUINTANA COMO FORMA DE
LETRAMENTOS ATRAVÉS DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA EM
TURMAS DE 6º E 7º ANO DA ESCOLA ANTONIO BRAGA E
CHAVES NO MUNICÍPIO DE ITUPIRANGA-PA.

Elionay Ramos Félix, UNIFESSPA (autor)


Simone Cristina Mendonça, UNIFESSPA (coautora)

Eixo Temático 1: Experiências na educação básica com a escrita do texto literário


Modalidade de Apresentação: comunicação oral.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Talvez seja senso comum esta questão: poemas muitas vezes nos deixam em
apuros. E isso faz sentido, afinal, entre todos os gêneros literários (e talvez todos os
gêneros textuais), a poesia é justamente aquele mais marcado por incertezas: as
palavras podem ter múltiplos sentidos, a materialidade da palavra (seu som, sua forma
visual, sua disposição na página) adquire tanta ou maior importância que o significado,
o ritmo do verso nem sempre coincide com a sintaxe da frase, as regras gramaticais
podem ser (intencionalmente) desrespeitadas, novas palavras são criadas, enfim, o
mundo como o conhecemos, tanto o exterior quanto o interior, é reinventado através da
linguagem. Como se isso não fosse o bastante, ainda há o fato de que os poemas,
embora se pareçam em muitas coisas, são muito diferentes entre si, uns mais solenes,
outros debochados, uns profundos, outros puro divertimento, uns reconfortantes, outros
desestabilizadores. É isso que faz a magia da poesia.

Gosto da ideia de que nosso corpo é a soma de vários outros corpos.


Ao corpo físico, somam-se um corpo-linguagem, um corpo sentimento,
um corpo imaginário, um corpo profissional e assim por diante. Somos
a mistura de todos esses corpos, e é essa mistura que nos faz
humanos. As diferenças que temos em relação aos outros devem-se à
maneira como exercitamos esses diferentes corpos. Do mesmo modo
que atrofiaremos o corpo físico se não o exercitarmos, também
atrofiaremos nossos outros corpos por falta de atividade. (COSSON,
2018, p. 15)

Com essa afirmação, levar poemas para a sala de aula, então, vira algo
desafiador para nós, dar conta desses textos que dão margem a novas (e inusitadas)

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leituras, quais deles devemos escolher, ou, indo adiante, o que podemos ensinar
quando queremos ensinar poesia?
Pensando nisso e, aliado à necessidade de trabalhar a poesia em uma turma de
6º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Antônio Braga e Chaves no
município de Itupiranga – Pará, criamos uma sequência didática que usa poemas de
Mário Quintana para trabalhar, em consonância com outros projetos da escola, algumas
características da referida turma no que se refere à interação, letramentos e a aspectos
emocionais dos alunos no ambiente escolar e/ou fora dele.
Como dito antes, a escola objeto do trabalho possui diversos projetos voltados a
atividades de letramentos sociais, escolar, interacionais, entre outros. A turma de 6º ano
“B” foi escolhida para o desenvolvimento da sequência mencionada por vir de um
ambiente em que a poesia era trabalhada de forma recorrente e por ser um processo a
longo prazo, tendo em vista que ainda permanecerão na escola durante todo o ensino
fundamental maior, o que viabiliza o estudo da turma durante esse período.
Como base para a sequência didática escolhemos aquela defendida por Cosson
(2018) em seu livro Letramento literário – teoria e prática, em que o autor nos fornece
um modelo de sequência básica que se encaixa perfeitamente nos moldes e objetivos
deste trabalho. Temos também o livro Poesia na sala de aula, de Hélder Pinheiro, que
servirá de complemento para a elaboração das sequências didáticas, visto que o autor
trata diretamente da importância desse gênero nas aulas de língua portuguesa.
Este artigo faz parte de uma dissertação de mestrado em que serão trabalhadas
cinco oficinas com poesias de Mário Quintana, divididas em temas relacionados ao
letramento escolar, mas principalmente, na possibilidade de aprimorar a interação entre
os alunos no ambiente da sala de aula e, consequentemente, no convívio social dos
mesmos.
Como primeiro tema das oficinas escolhemos a solidariedade, para tanto foi
escolhido o soneto Na minha rua há um menininho doente, de Mário Quintana, com o
objetivo de trabalhar a questão das diferenças entre a solidariedade e a caridade, bem
como o estudo do gênero e a produção poética dos alunos a partir de temas cotidianos
vivenciados por eles em todos os ambientes sociais, visando também a sensibilização
no decorrer das oficinas no processo de interação entre eles, aprimorando também a
relação entre professor-aluno.

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A IMPORTÂNCIA DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O TRABALHO COM A
POESIA EM SALA DE AULA

A sequência didática básica do letramento literário proposta por Cosson é


constituída por quatro passos: motivação, introdução, leitura e interpretação. Porém,
antes de mais nada, devemos esclarecer que entre os principais riscos,
independentemente do nível de ensino e da faixa etária dos estudantes, (no caso aqui
entre 11 e 12 anos), estão o de se cair em listas de procedimentos (figuras de
linguagem, classificação das rimas, contagem de sílabas poéticas, etc.) e o de defini-
los excessivamente, reduzindo as infinitas possibilidades temáticas e estilísticas que a
poesia oferece e tornando-a um rol de regras a serem observadas, tanto em atividades
de leitura quanto de produção. Com isso, podemos acabar tirando dos alunos a
possibilidade de vivenciarem a poesia e impossibilitando-os de alcançar os objetivos
propostos nas oficinas.
Pinheiro nos dar duas condições indispensáveis para trabalhar a poesia:

A primeira condição indispensável é que o professor seja realmente um


leitor com uma experiência significativa de leitura. [...] a segunda
condição é haver sempre uma pesquisa sobre os interesses de nossos
alunos. Quando já os conhecemos bem, esse levantamento pode ser
feito de maneira assistemática. (2018, p. 22).

Aliada a essas condições junta-se à necessidade de desenvolver aulas com


poesias que ajudem a escola a superar barreiras de interação entre os alunos, com eles
mesmos e com a própria escola, visto que se percebe um distanciamento gradual
desses alunos no convívio em ambiente escolar e até mesmo dentro da própria sala de
aula.
Nesse contexto, a sequência didática torna-se o meio mais adequado para o
trabalho com a poesia, visto que é embasada em uma pesquisa anterior de
necessidades da turma e alinhada a outros projetos desenvolvidos pela escola,
condições que seriam extremamente difíceis de se trabalhar usando uma outra técnica
pedagógica e sabendo-se que através da conhecida técnica da oficina os alunos
comprovam a máxima do aprender a fazer fazendo.
Com essas questões em mente, e muitas outras que nos estimulam, preparamos
a sequência didática objeto deste trabalho. Ela é o resultado de três aulas que
objetivaram trabalhar com poesia de forma prazerosa e estimulante. Ela não é a solução
de todos os problemas, longe disso: esperamos que ela seja um começo de conversa,
uma conversa entre nós, os alunos, o poeta e o mundo no qual estamos inseridos.
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A ESCOLA ANTONIO BRAGA E CHAVES E A TURMA 602

A escola Antônio Braga e Chaves (ABC) fica localizada no município de


Itupiranga no estado do Pará, cerca de 580 km da capital do estado. Ela fica no Bairro
12 de Outubro, periferia da cidade, possui cerca de 1.200 alunos distribuídos em 14
salas de aula que vão do 3º ao 9º ano em três turnos de funcionamento. A escola possui
um corpo de 80 funcionários dos quais 31 são professores. No que se refere ao alunado,
vale ressaltar que ela recebe alunos no bairro em que está localizada e dos bairros
circunvizinhos, além de alunos de localidades rurais próximas a cidade de Itupiranga.
Com cerca de 9 anos de existência a escola ABC até bem pouco tempo atrás
enfrentava muitos problemas relacionados à violência dentro de seus muros, casos
relacionados a conflitos entre alunos, alunos e professores, funcionários, comunidade
etc. A partir de muitas tentativas de solucionar o problema de convivência entre escola
e comunidade, muitos projetos foram e vem sendo desenvolvidos pela mesma no
sentido de aproximação entre ela e a comunidade, entre eles destacam-se o PROERD
- Programa Educacional de Resistência às Drogas, desenvolvido pela Polícia Militar do
Pará em parceria com a escola e visando reestabelecer a harmonia entre o alunado e a
PM bem como o combate ao uso de drogas pelos alunos.
São destaques positivos também os projetos desenvolvidos em parceria com o
Conselho Tutelar, Secretaria de Saúde, Promoção Social, Promotoria Pública, que vão
desde palestras, ações sociais, campanhas de saúde, de cuidados no trânsito, até
projetos culturais desenvolvidos por alunos e ex-alunos nos eventos que acontecem no
âmbito escolar. Podemos destacar também os projetos pedagógicos que são sempre
voltados para a questão da aproximação entre comunidade e escola, entre os quais
merecem destaque o Projeto Festa Junina e o Projeto de Leitura, que envolvem todo o
corpo escolar em prol de melhorias na interação do tripé escola, aluno e comunidade.
A turma de 6º ano 602 funciona no período da manhã e possui 33 alunos
matriculados inicialmente, dentre os quais 15 são mulheres e 18 homens, há apenas
um caso de desistência e uma transferência até o presente momento. A idade dos
alunos fica entre 11 e 12 anos, com apenas um aluno com 13 anos. A turma tem apenas
uma aluna que mora na zona rural do município, sendo o restante moradores do bairro
de funcionamento da escola ou dos bairros circunvizinhos. É importante ressaltar que a
602 não tem alunos repetentes, tendo todos eles vindo do 5° ano.

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A escola ABC trabalha intensamente a literatura nas turmas do fundamental
menor que atende, ou seja, do 3º ao 5º ano, fazendo com que estes alunos tenham
desde cedo um contato amplo com diversos gêneros literários, não apenas pelo fato de
estarem em um processo de alfabetização cotidiano, mas por acreditar que essa é a
melhor forma de letrar esses alunos não apenas para a convivência escolar, mas em
todos os meios de convivência em que os mesmos se inserem.
Dito isto, temos a destacar que um dos grandes problemas enfrentados pela
turma 602 é o inevitável abandono da sequência literária que vinham estudando até o
5º ano, pois há uma mudança radical na passagem do 5º ao 6º ano. Essa mudança
deve-se não apenas ao fato de trocarem de professores e metodologias, pois até então
eram assistidos por um pedagogo com uma metodologia voltada para a alfabetização e
partir daí serão direcionados por um professor de letras, no que se refere à língua
portuguesa pelo menos, com uma metodologia mais estrutural da língua e isso acaba
confundindo e atrapalhando o processo de letramento literário desses alunos.
A sequência didática, proposta deste trabalho, vem amenizar um pouco essa
questão da confusão que sofrem os alunos da 602 e de todas as turmas de 6° ano da
escola ABC na mudança de ano e, principalmente, na questão do trabalho contínuo com
a literatura nos anos seguintes da vida escolar desse alunado. Ressaltando que não
está se pedindo aqui que o trabalho com a parte estrutural da literatura seja deixado de
lado em qualquer momento do desenvolvimento da sequência didática proposta.

A POESIA DE MÁRIO QUINTANA USADA COMO FORMA DE


LETRAMENTOS

A escolha da poesia de Mário Quintana para pautar este trabalho se deu no que
já foi falado anteriormente por Pinheiro (2018), onde o autor nos fala da experiência com
a leitura literária que é condição necessária para uma boa realização da sequência
didática. Levamos em conta também todo o repertório do poeta, visto que é um autor
bastante conhecido dos jovens que utilizam suas poesias e frases nas redes sociais
cotidianamente.
Mário Quintana certamente é um dos mais queridos e populares escritores da
literatura brasileira. Poeta dos versos simples, mestre das singelezas e que, passados
mais de vinte e cinco anos de sua morte, continua presente no imaginário coletivo,
sendo um dos autores brasileiros mais citados e parafraseados na internet, sobretudo
nas redes sociais, motivos pelos quais é de grande relevância a sua escolha para o
trabalho com a turma 602 da escola ABC.

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No soneto Na minha rua há um menininho doente (QUINTANA, 2012, p.24)
escolhido para o desenvolvimento da oficina Quintana alerta nossos alunos sobre a
necessidade de sermos solidários, começando por aqueles que estão perto de nós, ao
nosso alcance, ele também deixa claro que a solidariedade costuma fazer mais bem a
quem faz do que a quem é contemplado com esse gesto tão nobre. Esse tema pode ser
trabalhado perfeitamente com alunos do 6º ano, pois trata-se da fase em que estes se
encontram, diante de dilemas e escolhas que, por mais simples que pareçam, assustam
e inibem, fazendo com que eles ajam da maneira mais fria possível diante de situações
que exigem um pouco mais de sensibilidade.

Na minha rua há um menininho doente.

Na minha rua há um menininho doente.


Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ela houve o sapateiro bater a sola.

Ouve também o carpinteiro, em frente,


Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...

Mas nesta rua há um operário triste:


Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente...


E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente...

O acervo de poemas de Quintana relacionados a temas relevantes do cotidiano


de nossos alunos é enorme, há vários livros divididos por temas, o que facilita a escolha
do assunto a ser trabalhado, os alunos conhecem frases isoladas, trechos de poesias
que permeiam as redes sociais, falta a participação dos professores no papel de
intermediadores entre a poesia e a realidade e/ou vice-versa, falta o despertar da
sensibilidade desses alunos, do olhar diferenciado para as coisas simples, falta a
transformação da realidade dura e cruel através das linhas doces da poesia de Mário
Quintana.

A SEQUÊNCIA DIDÁTICA NA PRÁTICA

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A sequência didática foi realizada em uma semana. Foram 6 aulas divididas em
3 dias com 2 aulas de 50 minutos cada dia. Para a oficina em sala de aula utilizamos
dois poemas de Mário Quintana: Canção do dia de sempre e Na minha rua tem um
menininho doente. Para estabelecer uma conexão entre os dois poemas e o tema
central da sequência foi utilizada a música Enquanto o sol brilhar da Banda Catedral,
música que é, inclusive, baseada no primeiro poema citado acima. A seguir teremos o
passo a passo da sequência realizada na 602.

1º dia (02 aulas) Motivação, Introdução, leitura e interpretação - Conversa para a


introdução do assunto e contato com o gênero poema e música através da
contextualização.

Houve uma conversa informal para sensibilizar e preparar os alunos para a aula.
Descobrimos através de uma estratégia voluntária como está o estado de espírito dos
alunos. Levamos aos alunos um breve histórico do autor, sua biografia e fatos curiosos
de sua vida. Apresentamos poemas famosos apenas para apreciação. Apresentamos
também o poema principal Canção do dia de sempre. Os alunos tiveram a audição da
música Enquanto o sol brilhar, da banda catedral, baseada no poema central.
Realizamos a leitura em voz alta com uma música baixa de fundo. Solicitamos que os
alunos refletissem por alguns instantes sobre as palavras ditas no poema e na música.
Entregamos folhas preparadas para que eles relacionassem os dois textos por escrito.
Pedimos que os alunos dissessem oralmente como entenderam o poema. Quais partes
chamaram atenção. Por que o poema tem relevância com o estado de espírito em que
eles se encontram naquele momento? Descobrimos quais palavras mais chamaram a
atenção de cada um no poema.

2º dia (02 aulas) Leitura e interpretação – Releitura do poema e produção de poema


individual com baseado no texto principal.

Retornamos ao poema central com uma leitura coletiva, realizamos também a


leitura em voz alta do segundo poema do autor, o soneto Na minha rua tem um
menininho doente. Realizamos a atividade individual para descobrir o estado de espírito
dos alunos no dia da aula. Retomamos a explicação quanto a estrutura do soneto lido;
exploramos e discutimos sobre o tema para produção do poema pelos alunos,
incentivando a participação deles de modo que tivessem um repertório para escrever o
poema. Escolhemos o tema trabalhado durante a semana em sala de aula para que

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eles produzissem seus textos. No momento da produção individual organizamos a sala
de modo a garantir silêncio e tranquilidade necessária para a realização da atividade.

3º dia (02 aulas) Leitura e interpretação – Leitura e exposição dos poemas produzidos.

Solicitamos que os alunos reescrevessem o poema já com as devidas correções


ortográficas em ficha própria para ficar organizado e pronto para montar a coletânea.
Solicitamos que alguns dos poemas fossem lidos pelos autores com música trabalhada
no primeiro dia ao fundo. Realizamos uma atividade oral em que cada aluno resumiu
seu poema em poucas palavras. Organizamos um espaço em sala para exposição dos
poemas dos alunos e informamos que, conforme o momento, as produções serão
socializadas para toda escola em momento cultural: recreio cultural, Dia D da leitura,
dentre outras atividades promovidas pela escola.
O poema a seguir serviu de base para o desenvolvimento da oficina, trata-se de
uma poesia em versos livres retirada do livro O segundo olhar (2018, p. 37).

Canção do dia de sempre


Tão bom viver dia a dia…
A vida assim, jamais cansa…
Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu…
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência… esperança…
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…

A canção a seguir serviu de elo para interligar os dois poemas de Quintana.


Ressaltando que ela foi baseada no poema acima, trata-se da música Enquanto o sol
brilhar, gravada em 2007 pela Banda Catedral.
Enquanto o sol brilhar

Dia a dia é bom viver


Jamais cansa a vida assim
Como as nuvens lá do céu
E ganhar da vida em si

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Inexperiência e esperar
Esperança de amar
Rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu
Sei que tudo se transforma
Mas o amor prevalecerá
Enquanto o sol brilhar
E o dia amanhecer
Eu sei que o meu querer
Será sempre você
Enquanto o sol brilhar
E a gente percorrer
Por essa estrada onde o medo nunca teve um lugar
Será nossa história enquanto o sol brilhar
Nosso amor vai prosseguir
Todo dia vai recomeçar
Sei que a vida é assim
Não quero lembranças
Sei, perdi tantas vezes, não tentei
O medo venceu no fim
Mas atiro em suas mãos
Distraídas uma flor
A rosa dos sonhos meus
E assim terás o meu amor
Enquanto o sol brilhar
E o dia amanhecer
Eu sei que o meu querer
Será sempre você
Enquanto o sol brilhar
E a gente percorrer
Por essa estrada onde o medo nunca teve um lugar
Será nossa história
Enquanto o sol brilhar

(Banda Catedral. Enquanto o sol brilhar. Rio de Janeiro: New, 2007)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sequência proposta aqui procurou articular atividades diversas, envolvendo


leitura de poemas, identificação de efeitos de sentido, reflexão linguística, exercícios
lúdicos, propostas de produção, sempre entrelaçados com muito diálogo, levantamento
de hipóteses, compartilhamento de experiências e sensações. Essas atividades estão
numeradas e organizadas nos anexos deste trabalho, bem como alguns textos
produzidos pelos alunos no desenvolvimento da oficina.
Lembramos que nosso primeiro objetivo foi sugerir uma atividade que
promovesse uma aproximação progressiva do texto poético com os demais projetos
desenvolvidos pela escola ABC, o que significa dizer que a discussão sobre o conteúdo
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dos poemas (seus temas e as visões de mundo presentes) foi trabalhada em total
consonância com os demais professores da turma 602. Não negamos a importância
disso, muito pelo contrário, acreditamos que pensar a poesia a partir de seu
funcionamento e de suas variações é focar naquilo que a particulariza, que a diferencia
dos demais textos.

É por possuir essa função maior de tornar o mundo compreensível


transformando sua materialidade em palavras de cores, odores,
sabores e formas intensamente humanas que a literatura tem e precisa
manter um lugar especial nas escolas. Todavia, para que a literatura
cumpra seu papel humanizador, precisamos mudar os rumos da sua
escolarização, promovendo o letramento literário. (COSSON, 2018, p.
17)

Outra questão pensada na nossa proposta é o livre arbítrio interpretativo, se


partimos da ideia de que todo poema carrega alguma dose de incerteza, algo que não
conseguimos entender em sua plenitude, é preciso que o trabalho com poesia preserve
essa característica. Isso não significa que qualquer hipótese de leitura seja válida, que
tudo o que se disser sobre um poema tenha que ser considerado correto, mas que mais
de uma hipótese de leitura pode ser válida, que algo que não tínhamos percebido no
poema também pode estar correto, e que, finalmente, avaliar essas novas hipóteses e
descobertas é, propriamente, ler um poema.
Mais do que uma sequência didática fechada, o que esperamos é que este
trabalho seja um ponto de partida para desenvolver a sensibilidade necessária nos
nossos alunos para que saibam lidar com as situações adversas do convívio social. Em
outras palavras, e tomando alguma liberdade poética, que nós, professores e alunos,
tratemos a poesia como ela nos trata: desestabilizando, questionando, estranhando,
reinventando e convidando a participar.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CATEDRAL, Banda. Enquanto o sol brilhar. Rio de Janeiro: New, 2007. Disponível
em: https://www.ouvirmusica.com.br/catedral/898175/. Acesso em 11 Out. 2019.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto. 2018.

PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. 1º ed. São Paulo: Parábola. 2018.

QUINTANA, Mário, 1906-1994. O segundo olhar: antologia / Mário Quintana: org.


João Anzananello Carrascoza. – 1ª ed. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2018.

_________. Poemas para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva., 2012.


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AS FACES DO POEMA “CASO DO VESTIDO”: UMA PROPOSTA
DE LEITURA E ESCRITA EM SALA DE AULA

Karina Torres Machado, UFSJ


Eunice Prudenciano de Souza, IFSP

Eixo temático: 1 - Experiências na educação básica com a escrita do texto literário

Introdução
Ao analisar a obra de Carlos Drummond de Andrade, mineiro, de Ituitaba,
observamos a relação entre os gêneros textuais para a confabulação do fazer literário.
Tal engenho é a vereda pela qual o poeta promove a reflexão sobre o mundo e mostra-
nos sua inquietude sobre as “coisas” da alma que habitam o universo, reveladoras de
consciência social e ética do autor.
Os contos, as crônicas e as poesias de Drummond dividem uma fronteira muito
tênue, em relação aos gêneros literários, sendo possível encontrar formas poéticas em
suas crônicas, estruturas narrativas e dramáticas em suas poesias e lirismo em seus
contos. Recursos que evidenciam o cotidiano e que buscam revelar o olhar atento sobre
a humanidade, sobre a vida, matéria de sua produção artística. Dessa maneira, seus
escritos estão acima de qualquer determinação de gênero, visto ser a aproximação com
o leitor, pelo uso de temas banais e corriqueiros, pela linguagem simples, seu intento
maior. Fatos que podem propiciar a escrita literária em sala de aula pela proximidade
de seus textos com situações vividas pelos alunos. Assim, o trabalho com o texto
literário em sala de aula deve explorar o palpável da vida diária nas ações de seus
personagens, o reconhecimento da realidade dura da vida em seus espaços e a
compreensão do tumulto da existência em suas tramas, para que o prazer de ler possa
ser verdadeiramente desfrutado pelo leitor por meio das experiências compartilhadas.
A necessidade de práticas de ensino, que se debrucem sobre a vida diária das
pessoas como forma de observar os fardos humanos para vislumbrar novas
perspectivas para a própria existência, encontra na produção artística de Carlos
Drummond de Andrade, o teor artístico capaz de promover uma experiência de leitura
e escrita prazerosas e significativas aos alunos em sala de aula.

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O reduto mnemônico: a construção do eu poético drummondiano
Como indivíduo que está inserido dentro de uma determinada ideologia e dela
compartilha, construindo sua personalidade, Drummond recria sua infância, sua
adolescência por meio de resquícios do passado. Em sua vida nada está
completamente esquecido, reduzido a pó, todas as coisas estão permanentemente em
(re)-construção, as pessoas, os lugares, os momentos, tudo está o tempo todo
transitando em sua mente, dando luz a novos meios de dissipá-las, de efetivar a mimese
da palavra “– Você deve calar urgentemente / as lembranças bobocas de menino. /–
Impossível. Eu conto o meu presente. / Com volúpias voltei a ser menino” (ANDRADE,
2002, p. 882).
Carlitos que se faz Carlos, Carlos que volta a ser Carlitos, o ontem que se (re)-
faz no hoje, eis o círculo primordial da obra de Drummond. Assim, o conjunto de sua
obra expressa a construção e a formação do menino que se torna homem e do homem
que, vivendo no hoje, volta ao passado para revelar seus anseios, suas alegrias, sua
história de vida de menino que saiu do interior da cidade de Itabira, em Minas Gerais,
para o cenário mundial.
O signo linguístico é o meio que o introduz e o conduz a tal ação, é por ele que
o autor presentifica a passagem do tempo. Por meio da palavra Carlos / Carlitos, revive
sua história, sonha, brinca, cresce. A palavra que se faz memória, memória que se faz
vida capaz de libertar o homem da fugacidade do tempo, da amargura do
aprisionamento do indivíduo no meio em que está inserido. Rememorar o tempo anterior
é o enigma descoberto pelo autor para derrotar o tempo, que é para ele “Um verme” que
rói “as sobrecasacas indiferentes”, ou ainda um “álbum de fotografias intoleráveis, / [...]
em que se debruçavam / na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca”.
(ANDRADE, 2002, p. 73)
A mimese da palavra artística é o meio utilizado por Drummond para exemplificar
sua terra natal, sua família, seus anseios, enfim, o meio social do qual fazia parte “[...]
Sou um ou outro / móbil caráter / conforme a luz / que me percorre / ou se reduz”, homem
que se constrói entre “Este pé de café, um só, na tarde fina, / [...] entre pingos vermelhos”
analisando atentamente “o mundo / abrir e reabrir o seu leque de imagens” afirmando a
riqueza de “viver no tempo e fora dele. ” (ANDRADE, 2002, p. 933)
O poeta de Itabira também não conseguiu fugir do meio social presenciado e
sofrido por ele em sua formação, de forma a criar sequelas que jamais conseguiram se
dissipar no labirinto obscuro da memória, de forma a trazer sempre em voga imagens,
sons que, mesmo habitando seu inconsciente, retornam a todo tempo, como forma de

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prendê-lo, de não libertá-lo das amarras de seu passado “Mandamento: beijar a mão do
Pai / às 7 da manhã, antes do café / a pedir a bênção / e tornar a pedir / na hora de
dormir”. (ANDRADE, 2002, p. 948)
Em seus textos, as palavras deixam de ser apenas representação gráfica e
adquirem vida própria, vida traduzida na herança genética não dos que foram, mas dos
que restaram, percebe-se apenas a estranha ideia da família viajando através da carne.
A memória que as palavras carregam traz para a vida um novo sentido, o de tempo
transformado, pelo homem que mudou, carregando dentro de si cicatrizes criadas pelo
tempo, mas que também o deixaram mais experiente, concedendo ao poeta a única
certeza que buscou durante toda sua vida e durante toda sua obra: o domínio do eu
sobre o tempo psicológico, como forma de lhe dar um pouco mais de eternidade já que
a morte é certa.
Assim, também, é sua obra, que, por meio de um estilo mesclado, eleva o
conteúdo artístico ao nível de significações universais. O homem, a família, o canto, a
história, a poesia são alguns dos cenários escolhidos por Drummond para analisar de
maneira sutil, em sua obra, a problematização da vida.
Desta maneira, Drummond quis evidenciar, nos poemas, nos contos ou nas
crônicas, que a consciência do escritor está na “capacidade de extrair seu alimento
contemporâneo mais álgido, fato que fez o poeta gauche “fazer do gosto pelo cotidiano
e da convergência entre a escrita e circunstância ou da aproximação ‘entre notícias e
não notícias’, entre o palpável e o imaginário, entre o que aconteceu e o que não
aconteceu” (SÜSSEKIND, 2003, p. 169) sua criação literária à respeito da existência
humana.

A leitura, a escrita e suas significações


A paixão pela literatura, como pontuam várias autoras (Colomer, 2017;
Cademartori, 2012), faz parte de um grupo seleto de pessoas, que podem figurar nas
mais diversas áreas profissionais. Tal paixão possibilita a inserção do texto como
reintegração com o mundo visando ao encontro com algo mais sensível em nós, que,
desta forma, deve perpassar as práticas de leitura e escrita sugeridas, uma vez que o
encontro do leitor com o livro não promove somente alterações mentais, mas também
físicas (CADEMARTORI, 2012), pois, como reitera a autora, “quando se trata do
professor como leitor, a palavra leitura não quer dizer capacidade de decifrar sinais
gráficos, mas, sim, de doar sentido ao que se lê, de ser capaz de viver, numa leitura
literária, uma experiência iniciática” (p. 24). Nesse ir e vir de experiências, o gosto pela

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leitura vai construindo sua relação entre o real e o imaginário, entre a realidade e a
ficção e, na medida em que “a leitura assume a forma de uma diferença”, é que o leitor
“ganha um traço distintivo: o do sujeito que busca no livro um modelo de construção de
sentidos, e nele encontra também um refúgio. Refúgio este capaz de transformar o
encontro com o texto em produções textuais literárias significativas, pelas aproximações
sentidas e vividas.
A intenção de propor um trabalho plural com o poema “Caso do vestido”, de
Carlos Drummond de Andrade, justifica-se tanto pela mescla de gêneros presente na
composição do poema quanto pela intertextualidade existente, dialogando com
romances, peças teatrais, contos, poemas, crônicas etc. Tal prática, quando
possibilitada em sala de aula, permite ao aluno e ao professor compartilhar títulos,
explorar histórias, ampliar o horizonte de expectativas, de forma mais aberta e relaxada
sem protocolos a cumprir, para que os livros possam figurar na vida dos alunos, como
uma maneira de observação dos problemas do mundo que estão a sua volta.
A obra literária a ser trabalhada em sala de aula precisa ser pensada, escolhida
e planejada, pelos méritos literários, mas também pelas oportunidades que oferecem
para discutir, representar, contrastar e escrever a comunicação com a realidade.
Contextos que ajudariam a transpor o desafio ainda encontrado pela escola de
promover práticas que articulem e vinculem texto e escrita, sem que objetivos
gramaticais, de dados biográficos ou de elementos contextuais sejam os mais
estreitamente almejados. Além disso, a escola deve incentivar práticas de escrita
criativas que despertem a sensibilidade dos estudantes por meio de ações prazerosas
que dão sentido à vida de cada um. A leitura do poema “Caso do vestido” pode motivar
a produção escrita dos estudantes por meio da exploração do efeito imagético das
palavras do poema, do entrecruzamento de gêneros, das expressões geradoras de
novas expectativas e percepções, uma vez que

[s]e é próprio da poesia explorar a aproximação de sons em um mesmo


verso, ou em uma mesma estrofe, gerando, pela repetição, efeitos
sonoros e sugestivos especiais, é, no entanto, da instabilidade dos
sentidos, da surpresa do arranjo e da tensão que estabelece na
linguagem, que provém o impacto que em nós causam as expressões
poéticas. Desse modo, pode-se dizer que a poesia, ao mesmo tempo,
repete e inventa; reitera e rompe, em aparente contradição”
(CADEMARTORI, 2012, p. 104).

Em “Caso do vestido”, a leitura dos versos promove um jogo de aproximações


que não se esperam, e, portanto, geram efeitos múltiplos, criado pelo jogo entre mostrar
e esconder, falar e não falar que suscita uma motivação e uma curiosidade que

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transpassam o texto e propiciam o ingresso no subjetivo da trama. Além de ressignificar
as ações e modificar a existência, que, por sua vez, “nos conduz ao conhecimento do
humano, o qual importa a todos” (TODOROV, 2010, p. 90). No entrelaçamento entre
mediador, aluno e texto provocado pela leitura, a escrita torna-se o meio de reescritura,
incorporação, tradução e inserção do sujeito no mundo. Tais ações evidenciam ao aluno
que o caráter do literário e o prazer de ler e escrever não vêm da obra em si, mas da
“experiência da leitura feita por determinado leitor, localizado em um tempo e espaço
específicos [...] durante um encontro integrador, uma compenetração, de um leitor e de
um texto” (ROSENBLAT, 1994, p. 12).
No poema “Caso do vestido”, o contato com o poema-narrativo, a associação a
outros gêneros textuais, o tom dramático atribuído à obra e as cenas cotidianas são
leituras que garantem uma experiência literária e leitora significativas, devido às formas
e às configurações dos signos linguísticos escolhidos por Drummond. A palavra – busca
constante do autor – escolhida para a composição de cada verso suscita indagações,
percepções e sentimentos que nos permitem rever tantos os valores impostos pela
sociedade quanto os do próprio leitor. Esse desafio é o grande diferencial do texto que
se diz literário, uma vez que procura sempre mostrar ao leitor meios de enfrentar tais
realidades e superá-las.
As faces do poema “O caso do vestido” e a produção escrita em sala de
aula
O poema “Caso do vestido” foi publicado em 1945, no livro A rosa do povo. É
estruturado em setenta e cinco dísticos, em redondilha maior, escritos em uma
linguagem simples, com expressões regionais em alguns momentos e narra a história
de uma mulher que, questionada pelas filhas, explica a história de uma traição,
simbolizada pela figura do vestido. O vestido é utilizado como símbolo para representar
a ordem social vigente e as paixões individuais.
O poema, pela organização que dispõe, reitera a questão do amor, do sofrimento
amoroso, da traição, da sociedade patriarcal, do poder da paixão amorosa, questões
que, pela aproximação com o cotidiano do aluno, poderiam transformar-se em
produções escritas que contemplem diversos gêneros textuais como contos, crônicas;
gêneros que em Drummond aproximam-se, visto ser a vida a matéria prima que mais
importa ao poeta.
O tom dramático e o conteúdo que o poema adquire ao longo de seus dísticos,
permite-nos compará-lo à peça teatral, publicada no mesmo ano, por Nelson Rodrigues,
Vestido de Noiva, sendo uma associação entre as duas leituras, ação pertinente ao

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contexto de sala de aula. Assim como observação da divisão em três partes do poema,
como nas peças teatrais: prólogo – as primeiras nove estrofes, em que as filhas
perguntam sobre o vestido pregado na parede –; episódio – as cinquenta e seis estrofes
seguintes, quando a mãe narra as filhas todo o processo de enamoramento sofrido pelo
pai a uma “dona de longe” e o desenrolar desta história e, por fim, o êxodo – ultimas
dez estrofes, momento em que a chegada do pai evidencia os dois planos
representativos – o do presente e o do passado.
Segundo Ryngaert, 1998, “o teatro repousa, desde sempre, sobre o jogo entre o
que está escondido e o que é mostrado, sobre o risco da obscuridade que de repente
faz sentido” (p. 05), ações que se evidenciam no poema em várias falas da mãe,
suprimidas pela possibilidade de presença do pai:

Minhas filhas, boca presa


Vosso pai já vem chegando
[...]
o vestido, nesse prego,
está morto, sossegado”
[...]
Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.
[...]
Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada. (ANDRADE, 2010, p. 206, 208, 210)

Obscuridade que ganha a cena nos últimos dísticos e mostra-se reveladora do


drama vivido pela mãe e, por toda a família, ao passar por várias intempéries causadas
pela traição do marido:

vosso pai aparecia.


Olhou para mim em silêncio,

mal reparou no vestido


e disse apenas: Mulher,

põe mais um prato na mesa.


Eu fiz, ele se assentou,
[...]
O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,


um sentimento esquisito” (ANDRADE, 2010, p. 212, 213)

O conforto, a calma, a sensação de paz “de que tudo foi um sonho”, revela, além
da subjugação pela qual passava a mulher na época em que o livro foi escrito, o sistema

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patriarcal que imperava na constituição familiar, na figura autoritária do homem que, ao
abandonar a casa, regressa a ela e ainda é recebido e respeitado sem questionamentos.
Ao misturar a dramacidade teatral e o lirismo poético, Drummond afirma seu
intento de problematizar a vida, “engendrar uma fisionomia da sociedade e expressar
as contradições sociais de uma forma mais genuína do que descrições científicas
objetivas” (DURÃO, 2012, p. 47). Tal discussão em sala de aula poderia ser o mote para
a escrita de roteiros ou de peças teatrais em que as vivências dos estudantes figurariam
como “casos/causos”, em que a palavra de cada um teria significado e representaria os
receios, as incompreensões e as memórias, quer dizer, temas literários que perfilariam
suas escritas e adentrariam o universo escolar.
A leveza e o descompromisso com que Drummond expressa os tumultos do
mundo – característicos da crônica – também podem ser vistos em vários contos como
“Conversa de velho com criança”, “A doida” ou ainda em crônicas como “Corrente da
sorte” ou até mesmo em outros poemas “Morte do leiteiro”, “Confissão de Minas”,
“Boitempo II” etc. Fatos que interligam e quebram as relações entre os gêneros literários
em sua obra e fundamenta seu método literário, não apenas sua prosa. Recurso
importante a ser discutido e observado em sala de aula para que os estudantes possam
perceber que a escrita literária, embora tenha suas regras, não é difícil e formal como
tecem, ressaltando ainda que, hoje, a escrita, o fazer literário não são mais privilégios
de algumas classes como fora outrora (LAJOLO, 2018).
As produções escritas a partir da leitura, socialização e discussão do poema
“Caso do vestido” poderiam versar ainda sobre o cordel, uma vez que outro recurso
explorado pelo poeta é a oralidade. Esta comparação está presente na estrutura do
poema – dísticos –, pelo uso da redondilha maior – versos característicos das cantigas
medievais, representativos da tradição popular; pelos primeiros versos serem
organizados em forma de perguntas e respostas “Nossa mãe, o que é aquele/ vestido,
naquele prego? [...] Passou quando, nossa mãe? Era nossa conhecida?” (ANDRADE,
2010, p. 206); pelos vocábulos e expressões de raiz popular “Era uma dona de longe
[...] se perdeu tanto de nós [...] Minhas filhas, procurei/ aquela mulher do demo [...] me
falou ela se rindo [...] tive uma febre terçã” (ANDRADE, 2010, p. 207 – 210); pela
presença e repetição dos vocativos “Nossa mãe [...] Minhas filhas [...] Dona”
(ANDRADE, 2010, p. 206-212). A reutilização de tais técnicas por Drummond, também
presentes em outros poemas como “Lira do amor romântico”, “Estória de João-Joana”,
evidenciam o caráter intertextual “constante e intenso entre o oral e o escrito, o popular
e o culto. Esse diálogo consiste na reutilização de elementos da forma de expressão e

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da forma do conteúdo de textos da tradição oral e popular, cultivados no intertexto pela
memória do sistema semiótico literário” (NOGUEIRA, 2011, p. 1). Temas e estrutura que
revelariam ao aluno formas, percepções e arsenal literário capaz de motivar a escrita
de produções textuais marcadas pela busca constante da elucidação da vida e de suas
problematizações.
Ainda sobre a exploração do cordel e do canto nordestino, Lima (1995) menciona
que “ ‘Caso do vestido’, obedece a padrões estabelecidos na tradição popular, cuja
rigidez formal procura preservar a transmissão do ‘caso’ das instabilidades próprias ao
ato da fala” (p. 85-86). Também em relação ao conteúdo podemos perceber o
entrelaçamento com a tradição oral e popular – o uso do triângulo amoroso e o caso
contado. Nesse sentido, a leitura do poema em sala de aula adquire sentidos e
contextos universais ao dialogar com tantas produções, autores e cenários sociais
diferentes, permitindo a heterogeneidade da turma ser contemplada em leituras e
produções textuais, que contemplem gêneros textuais diversos na busca pela
significação, da fabulação da vida, da existência humana, tema pertinente à literatura.
Ao familiarizar leitor e autores, o mediador de leitura proporcionaria a busca da palavra
tanto desejada por Drummond, visto que esta deixaria de ser analisada somente em
seus aspectos morfossintáticos, e passaria a revelar o ser-estar no mundo.
Outro gênero presente na estrutura do poema é o narrativo, introduzido em
versos como “Era uma dona de longe” (ANDRADE, 2010, p. 207), seguido pelo relato
da mãe dos fatos ocorridos após o surgimento da “dona de longe” – enamoramento do
pai, o desprezo da dona, o pedido do marido, o abandono da família, as situações de
desespero vividas, até a volta do pai. Nos textos narrativos, a procura pelo desconhecido
é o que impulsiona as histórias, elemento também presente na organização estrutural
do poema. O homem ao conhecer a “dona tão perversa”, “com seu vestido de renda de
colo mui devassado”, “chorou no prato de carne, / bebeu, brigou, me bateu”, “implorou”
para que “mulher do demo” ficasse com ele a ponto de “dar apólice, fazenda, carro, dava
ouro” e foi só com a intervenção da esposa que os dois ficaram juntos “Minhas filhas,
procurei/aquela mulher do demo. / E lhe roguei para que aplacasse/ de meu marido a
vontade”. (ANDRADE, 2010, p. 206–208).
Dessa forma, a leitura do poema suscita sensações, imagens, reflexões pelas
palavras escolhidas que remetem a cenários sociais, familiares, universais capazes de
nos tocar e de nos contagiar pelas aproximações sentidas. O professor, mediador do
processo educacional, baseado na leitura e na análise do poema, pode, ao fim de
analisadas as diversas nuances do poema, realizar a aplicação do plano de aula

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proposto4 aos alunos, como forma de conceber ao gênero poético um ensino-
aprendizagem significativo, com leituras, análises e produções de poemas. A poesia
alcançaria a compreensão do estado “da poesia”, que permite a criação de novos
espaços, pois

[a] percepção poética é capaz de captar sentido além daqueles da


realidade material, efeito de um modo peculiar de se relacionar com a
linguagem e com o mundo [...] Uma palavra liga-se a oura e sentidos
brotam entre elas, sem que dependam de nenhuma em particular e
dependam de todas afinal. Um poema é um pequeno mundo, às vezes
coerente, outras, nem tanto. (PFEIFFER, 1971, p. 39).

Assim, o poema escolhido representa o entrelaçamento entre texto e leitor, pelo


encontro oportunizado, que pelas vivências lidas e sentidas, transformam-se em
experiências literárias escritas e divulgadas para a unidade escolar. A inserção do
poema em sala de aula e a exploração de suas metáforas, memórias, vocábulos,
formas, implícitos e explícitos, oportuniza um momento de fruição, de ampliação da
simbologia narrativa responsável por despertar o lúdico, a fantasia e a reflexão,
permitindo aos estudantes emergirem em um contexto de escrita por meio da
ressignificação da leitura com a vida, ao mesmo tempo em que transporta o leitor para
uma jornada interior (MANGUEL, 2017).
Diante disso, ao observar as características dos diversos gêneros textuais, das
imagens elaboradas, das metáforas produzidas, dos ritmos e da melodia
desencadeados, das dramatizações e intertextualidades, dos espaços e dos tempos
rememorados, por meio da leitura do poema “Caso do vestido”, é que os estudantes
compreenderão a escrita literária como manifestação artística que busca significar a
palavra sentida e percebida em produto literário. É expondo os estudantes a um
universo de reconstrução da leitura e da escrita e, consequentemente, da palavra, que
a escola engajará seus estudantes no processo de valorização da escrita como ação de
liberdade, de apreensão e instituição de sentidos para a vida, de engajamento pessoal
e social.

Conclusão
O que pretendemos salientar neste artigo é a necessidade de o professor
mediador selecionar obras literárias que despertem, pelas associações geradas pelo
encontro entre texto e leitor, a função significativa da escrita como reflexão e ação sobre
o mundo. Produção escrita desprovida do caráter estritamente conteudístico ou

4
Anexo 1.
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servindo exclusivamente e fielmente a uma metodologia de ensino, o que o deixa
aprisionado na tentativa de formar leitores e escritores do texto literário.
Nesta concepção, o aluno deixa de ser “fazedor de redações” para assumir a
função de autor. Pensamos em uma prática em que escrever deixa de ser somente uma
atividade exigida em sala de aula, para ser um desejo do aluno de externar as suas
ideias e de se comunicar com seu leitor, contando um pouco da sua história. Ação essa
motivada pelo prazer de desenvolver o seu imaginário e de ativar o seu poder criativo e
artístico. Nesse sentido, o ensino-aprendizagem pode se tornar mais significativo e real
para o aluno, distanciando-se um pouco da concepção de produção textual como algo
superficial e preparatório de vestibulares.
Para que cada vez mais sujeitos figurem entre o grupo seleto de escritores de
literatura é preciso que os textos ganhem vida, permitindo aos indivíduos tornarem-se
protagonistas tanto de seu ensino-aprendizagem quanto de sua própria existência, por
se abrirem a um mundo de possibilidades, de fantasias, de reflexão e de conhecimento,
que os auxiliem a encarar a problemática da vida, como fez Carlos Drummond de
Andrade.
O poema “Caso do vestido” foi o ponto de partida para as produções dos alunos,
um modo de aproximá-los dos recursos utilizados pela linguagem literária, servindo
como inspiração para o seu próprio fazer literário.
Desta forma, como bem pontua Petit (2008, p.185), quando o professor
seleciona obras que oferecem um deslocamento, que trabalham metáforas, que
permitem associações, é que o leitor pode realmente ser transformado pela leitura e
transformar pela escrita produzida e “nas entrelinhas, encontrar sua fantasia inventiva,
se deixar levar pela imaginação, e pensar”.

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. 1.ed. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2002.

ANDRADE, C.D. de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2010.

CADEMARTORI, L. O professor e a leitura: para pequenos, médios e grandes. 2. ed.


Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

CAVALCANTI, J. Caminhos da literatura infantil e juvenil: dinâmicas e vivências na


ação pedagógica. São Paulo: Paulus, 2014.

COLOMER, T. Introdução à literatura infantil e juvenil atual. Trad. Laura Sandroni.


1. ed. São Paulo: Global, 2017.

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DURÃO, F.A. Modernismo e coerência: quatro capítulos de uma estética negativa.
São Paulo: Nankin, 2012.

LAJOLO, M. Literatura: ontem, hoje, amanhã. São Paulo: Unesp, 2018.

LIMA, M.L.V. Confidência mineira: o amor na poesia de Carlos Drummond de Andrade.


Campinas, SP: Pontes; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1995.

MANGUEL, A. O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça. Trad. José Geraldo
Couto. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017.

NOGUEIRA, C. Carlos Drummond de Andrade. Nau Literária: crítica e teoria da


literatura. Porto Alegre, v.07, n.01, jan-jun, 2011.

PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Trad. Celina Olga de Souza.
São Paulo: Ed.34, 2008.

PFEIFFER, J. La poesia. Hacia la comprensión de lo poético. México: Fondo de cultura


económica, 1971.

RYNGAERT, J.P. Ler teatro contemporâneo. Trad. Andréa Stahel M. da Silva. São
Paulo: Martins Fontes: 1998.

SÜSSEKIND, F. Um poeta invade a crônica. Papéis colados. Rio de Janeiro: UFRJ,


2003.

TODOROV, T. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2010.

ANEXO 1
Sequência Didática – Poesia

Conteúdo
Leitura e escrita de poema: uma prática social. Poema: “Caso do Vestido”, de Carlos
Drummond de Andrade.

Turma
Anos finais do Ensino Fundamental.

Objetivo
Proporcionar ao aluno contato com o gênero poético, para uma escrita poética mais
engajada, pelas associações geradas a partir da exploração do ritmo, das metáforas,
da linguagem, do teor imagético, dos gêneros textuais, presentes no poema.

Procedimentos didáticos
Determinação do horizonte de expectativa
O professor traz para a sala o poema “Caso do vestido” e o distribui para os alunos.
Propõe uma sessão de leitura livre. Ao término da leitura, promove um debate informal
sobre o poema. O professor sugere a observação e a análise da estrutura em forma de
dístico, da dramaticidade de algumas falas, do ritmo, das metáforas criadas pelo autor,
da oralidade e da trama narrativa, a fim de despertar o jogo de sentido presente no
gênero poético.

Formulação de hipóteses
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Para ampliar as percepções do estilo de Drummond, o professor propõe a leitura de
outros poemas, contos e crônicas do autor. Em seguida, divide-se a turma em dois
grupos; o primeiro fica encarregado de ler novamente o poema “Caso do vestido” e fazer
algumas questões para o outro grupo responder, prevendo as possíveis respostas.

Ruptura do horizonte de expectativas


Após a nova leitura do poema, a sala é dividida em grupos, encarregados de escrever
um poema-narrativo, a partir de uma cena escolhida do poema. Depois de realizada a
atividade, cada grupo lê em voz alta seu texto e a turma avalia se este corresponde a
história lida.

Ampliação do horizonte de expectativas


Depois das leituras dos textos escritos, o professor questiona-os sobre: Como a
sociedade determina o comportamento das pessoas? Como transpor as regras
veiculadas? Como construir um relacionamento com mais equidade? Perguntas que os
alunos poderão responder trazendo novos textos para exemplificá-las ou escrevendo
novos textos.

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A OFICINA DE LEITURA E DE CRIAÇÃO LITERÁRIA: DUAS
ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DE SABERES DOCENTES
SOBRE CONTO DE AVENTURA

GANDIN, Rosangela Valachinski, UFPR.


BRANCO, Veronica, UFPR.

Eixo Temático: Experiências na educação básica com a escrita do texto literário

POR QUAL RAZÃO É IMPORTANTE QUE DOCENTES DO ENSINO


FUNDAMENTAL – ANOS INICIAIS – SE APROPRIEM DE ELEMENTOS DA
TEORIA LITERÁRIA?
O presente artigo trata do assunto abordado na pesquisa5 da primeira autora e
orientada pela segunda, tem foco na construção dos saberes pedagógicos para que o
professor possa mediar a aprendizagem inicial da criação literária no 3º, 4º e 5º ano do
ensino fundamental consoante à Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2017), ao
que dispõe o artigo 2º da Lei nº 13.005 de 25/09/2014 que instituiu o Plano Nacional de
Educação – PNE, em especial destaque à meta 2 e a estratégia 2.8 que apresenta a
escola como um espaço de recepção e, também, de criação cultural. Ao direito universal
de acesso ao livro, à biblioteca, à leitura, à escrita e à literatura abordada como diretrizes
no artigo 2ª da Política Nacional de Leitura e Escrita – PNLL, Lei nº 13.696 de
12/07/2018, e os incisos VIII e X do artigo 3º que tratam dos objetivos da PNLL:

Art. 3º São objetivos da Política Nacional de Leitura e Escrita:


VIII - promover a formação profissional no âmbito das cadeias criativa
e produtiva do livro e mediadora da leitura, por meio de ações de
qualificação e capacitação sistemáticas e contínuas;
X - incentivar a expansão das capacidades de criação cultural e de
compreensão leitora, por meio do fortalecimento de ações educativas
e culturais focadas no desenvolvimento das competências de produção
e interpretação de textos. (BRASIL, PNLL, 2018).

Congruente ao que prevê a legislação nacional, a pesquisa propõe uma vivência


do comportamento de escritor para nove professores, todos regentes dos primeiros
anos do ensino fundamental, tendo a “leitura de literatura infantil” e a “produção de um

5
A tese com o nome provisório de “Professores escritores de contos de aventuras: uma possibilidade da
escola tornar-se polo de criação e da aprendizagem da escrita literária” foi aprovada em banca de
qualificação no dia 24/09/2019.
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conto de aventura” como pontos de partida, uma vez que Pondé (1985) e Cunha (2005)
afirmam ser os textos de “aventura, mistério e suspense” os preferidos das crianças,
após a alfabetização.
Esclarece a opção de se trabalhar com textos dedicados ao público infantil,
porque acredita-se que os professores não tiveram acesso a literatura infantil no
momento apropriado de estudo escolar, uma vez que não era obrigatória a presença de
“biblioteca escolar” nas instituições educacionais. Foi, somente, em 2010, por meio da
Lei 12.244 de 24/05/2010 e com um prazo de 10 anos para implantação de bibliotecas
escolares, que o país passou a contar com a exigência de livros nas escolas, sendo
obrigatoriedade efetiva a partir de 2020.
Outro aspecto que chamou a atenção são os resultados das pesquisas de Leal
e Guimarães (1999) e de Belão e Menin (2005), pois os professores participantes
apontaram como bons textos aqueles que não apresentaram erro ortográfico, sendo
eles, também, os únicos leitores da produção de texto dos seus alunos. Atividades que
envolvam as etapas do comportamento escritor não são consideradas nas práticas
pedagógicas desses professores.
E, por fim, porque é importante, manter a reflexão do ensino da leitura e da
escrita a partir do “discurso estético”, na formação de professores, conforme apontou
Perotti (1986), justamente para superar o uso da literatura como ferramenta para
moralização, a favor da leitura de fruição literária.
Face ao exposto, a construção de saberes das práticas pedagógicas aconteceu,
por meio de um curso de extensão denominado “Estratégias de ensino e de
aprendizagem da leitura e da escrita autoral”, no período de agosto a dezembro de 2018,
totalizando 60 horas de estudo sobre leitura, literatura e produção de texto literário. 6

OS SABERES NECESSÁRIOS PARA O PROFESSOR TORNAR-SE UM


MEDIADOR DA ESCRITA LITERÁRIA NO 3º, 4º E 5º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL
Os autores Becker (1993), Moretto (2003), Saviani (2003) já afirmaram que para
exercer a docência é necessário dominar três áreas de conhecimento para atuar como
mediador de aprendizagem. São elas: a primeira diz respeito em identificar o nível
psicossocial e cognitivo em que a criança se encontra, enquanto que a segunda trata
de conhecer os conteúdos específicos a serem trabalhados em sala de aula e, por fim,
a terceira, corresponde a saber aplicar os conteúdos de forma didática.

6
O grupo de intervenção participará do mesmo curso em 2020.
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Um docente que organiza o seu trabalho, tendo como âncora a teoria
construtivista de aprendizagem, priorizará os conhecimentos prévios das crianças antes
de iniciar as atividades, portanto, realizará uma avaliação diagnóstica para verificar as
estruturas já construídas e armazenadas na memória. Durante o processo de
aprendizagem, também, considerará o instrumento de avaliação formativa como fonte
fornecedora de informações sobre a aprendizagem da criança e por último, a avaliação
somativa, para poder classificar e dimensionar a evolução da aprendizagem. Essas
considerações, os passos do método de ensino da Pedagogia Histórico-crítica e a
organização das atividades em sequências didáticas, dizem respeito a área de como
trabalhar um assunto em sala de aula.
Compreender os estágios de desenvolvimento do pensamento da criança e do
adolescente, é outra área a ser dominada pelo docente construtivista, porque de acordo
com Piaget (1964) a criança entre 2 e 6 anos idades, geralmente matriculada na
educação infantil e realizando transição para o 1º ano do ensino fundamental, encontra-
se no estágio pré-operacional, estágio caracterizado por um pensamento egocêntrico,
com presença do animismo e do sincrético.
Entretanto, a criança matriculada no ensino fundamental, cuja faixa etária
compreende entre 6 e 12 anos idade, tem o pensamento regido pela lógica do concreto.
De fato o pensamento pré-operacional vai adormecendo e cede espaço para o
surgimento do pensamento operacional-concreto. O pensamento do adolescente é
caracterizado pelo operacional formal.
Ora se a lógica do pensamento da criança matriculada nos primeiros anos do
ensino fundamental é lógica do concreto, portanto, a aprendizagem da leitura e da
escrita de qualquer gênero textual, inclusive o gênero literário, tem como ponto de
partida o “texto”, porque ele é materializado, segundo Marcuschi (2008) e Koch (2006),
permitindo ao leitor conversar com o autor, conforme apontou Bakhtin (2011). De acordo
com Coutinho (2015) trabalhar com o texto literário fornecerá à criança, a estrutura deste
gênero e os elementos de composição literária.
Contudo, para propor uma sequência didática de aprendizagem da leitura e da
escrita literária, é necessário conhecer teoria literária, conhecer os gêneros literários e
a sua classificação, elementos estruturantes do texto literário, técnicas de escrita
utilizada no discurso literário, estratégias de leitura e as etapas do comportamento do
escritor, comentados brevemente nas páginas seguintes.

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OS ELEMENTOS LITERÁRIOS COMO SABERES ESPECÍFICOS PARA
APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA DE NARRATIVAS
LITERÁRIAS
O pensamento de Pondé (1985) e de Cunha (2005) convergem ao dizer que as
crianças após a alfabetização preferem livros de aventuras, suspense, mistérios,
romances, fantasias, entre outros, porque as crianças tendem a contemplar menos o
fantástico do “conto de fadas” e cedem a vontade de agir como os heróis daqueles
subgêneros literários.
Mas o gênero literário é composto segundo Coutinho (2015) e Gancho (2010)
por textos narrativos ou épicos, dramáticos ou teatral e por lírico (poesia, poema,
música, etc). Entretanto, de acordo com Gancho (1991) o gênero narrativo literário
compreende o romance, o conto, a novela e a crônica, sendo diferenciado
qualitativamente por Moiseis (2006), isto é, o autor não diferencia novela e romance,
simplesmente, pela quantidade de páginas, mas, sim, pelas suas características. Em
outras palavras, o romance poderá ser uma obra mais fechada, porque apresenta
personagens do tipo plano e complexa. Tem digressões e usos de outras técnicas como
flashback, flashforward, alongamento, pausa, etc. A trama é reversível, quando
comparado ao conto.
O conto, por sua vez, de acordo com Moiséis (2006), poderá ser um germe da
novela ou do romance, uma vez que ele opera com o cotidiano, apresenta, apenas, um
núcleo dramático, é um texto literário objetivo e o tempo passado e futuro não é
importante, justamente porque os eventos têm duração curta. Apresenta direção
horizontal, portanto, não tem digressões e é irreversível.
Entretanto, Moiseis (2006) chega a afirmar que a novela parece ser uma série
de contos, mas configura como um texto oposto ao romance e ao conto, pois apresenta
vários núcleos dramáticos e uma trama com ritmo acelerado. Isso, porque as ações
sempre estão acontecendo, portanto, o tempo verbal presente é predominante. O tempo
passado e o tempo futuro são narrados por meio das técnicas flashback e flashforward.
Apresenta, ainda, vários protagonistas e a direção do texto não é horizontal, sendo
reversível. A crônica é um texto híbrido, opera com o cotidiano, mas não apresenta os
elementos literários da narrativa.
Os elementos de composição de acordo com Gancho (1991) são enredo,
personagens, tempo, espaço e narrador em todos os tipos de narrativas literárias,
exceção para o narrador, pois no texto dramático não é obrigatório este elemento.

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O enredo é para Mesquita (2006, p. 08) “ o corpo de uma narrativa” e para
Todorov (2006) ele tem dois episódios, sendo o primeiro apresentado um equilíbrio que
por causa de um conflito sofre um desequilíbrio. Entretanto, o segundo narra um
equilíbrio reconquistado, mas diferente do primeiro episódio. Enfim, o enredo apresenta
cinco fases. São elas: apresentação, complicação, desenvolvimento, clímax e
desenlace.
A respeito do personagem, Prop (1928) afirma que trata de um ser de linguagem.
A autora Brait (1985) contribui com este elemento trazendo uma síntese da evolução
histórica da personagem na literatura e, ainda, apresenta a classificação dos
personagens por característica (plana e redonda) de Foster e a classificação elaborada
pelos autores R. Bourneuf e R. Ouellett que tratou de analisar os tipos de personagens
pela relação deles na obra literária dos autores. Enquanto Coutinho (2015) tratou da
classificação do personagem em função do papel exercido no enredo, que são:
protagonista, o antagonista, os secundários, os figurantes e o narrador.
Nas palavras de Coutinho (2015), o protagonista é representando pelo herói ou
anti-herói e trata de um personagem superior quando comparado aos demais,
justamente, porque ele tem como função solucionar o conflito. Em relação ao
antagonista, o famoso vilão, tem como missão se por contra ao protagonista, enquanto
que os personagens secundários, cuja função é auxiliar, poderá cumprir o seu papel
ajudando tanto o herói como o vilão. Sua principal diferença com os personagens
figurantes trata-se de que o personagem secundário participa da ação, enquanto que o
figurante não. A missão dele é ilustrar a cena.
Saber a classificação dos personagens é um passo importante para ler e
escrever narrativas literárias. Mas para escrever, o autor Candido (2014) comenta
alguns recursos que auxiliam a criação de personagens. São eles: criação por
experiência direta com o modelo, criação por reconstituição de um modelo, criação por
meio de modelo real, criação com modelo como pretexto, criação a partir de um modelo
real dominante, criação a partir de fragmentos de diferentes modelos e criação com
origem de traços reais. O autor, também, afirma que compete ao escritor combinar ou
não os vários modelos para inventar o personagem literário.
O personagem “narrador” é responsável, na trama, por unir e dar coerência entre
todos os elementos que compõem uma narrativa literária, exceto no texto dramático,
onde a presença deste elemento é facultativa. O autor Friedmann (1967, citado por

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7
Leite, 2002) apresenta dois grupos de foco narrativo. O primeiro em que o narrador
está presente, tais como, narrador onisciente intruso, narrador onisciente neutro,
narrador testemunha e narrador protagonista e o segundo grupo, que tem por
característica a ausência do narrador, ou seja, foco narrativo onisciência seletiva
múltipla, onisciência seletiva, modo dramático e câmera.
Não há como comentar foco narrativo sem falar do discurso utilizado, pois ambos
estão intimamente conectados. Os autores Coutinho (2015) e Gancho (1991) afirmam
que há dois tipos de discurso, porque há fala do “narrador” e a fala do “personagem”.
Logo, o autor poderá escolher entre discurso direto que diz respeito ao diálogo entre os
personagens, o discurso indireto que se caracteriza unicamente pela voz do narrador e
o discurso indireto livre, que se situa entre a fala do personagem e do narrador.
O espaço e o meio ambiente são elementos literários conectados, porque o
primeiro é para Dimas (1994) o local físico e o segundo, Gancho (1991) afirma ser a
caracterização moral, sócio econômica ou psicológica vivida pelos personagens.
E, por fim, chegou o momento de comentar sobre o tempo. Este elemento
literário não se restringe somente ao “tempo verbal”, porque o tempo é atualizado pelo
leitor no momento da leitura. O autor Nunes (1995) apresenta cinco tipos de tempos
utilizados na literatura. São eles: tempo psicológico, tempo físico, tempo cronológico,
tempo histórico e tempo linguístico.
O tempo psicológico, por tratar das emoções vividas pelos personagens, não é
quantificável, é irreversível, impreciso, individual, subjetivo e qualitativo, pois está
relacionado à vida do personagem. Entretanto, o tempo físico por se apoiar na
causalidade é quantificável, tem direção, é objetivo, é irreversível, também, como o
psicológico. Contudo, o tempo cronológico é linear ao se tratar de direção, mas admite
o ir e vir entre o passado e futuro, é infinito e contínuo, porque trata da própria vida do
personagem e do tempo em que os eventos acontecem. Já o tempo histórico é
comprometido com os períodos da História da Humanidade e estão ligados ao texto
literário pela duração dos eventos. Mas o tempo linguístico trata do presente, do
passado e do futuro, sendo o primeiro considerado como “referente” para os demais na
obra literária, porque compete aos personagens fazer a ligação entre espaço-
tempo/tempo cronológico. Aqui, também, são utilizadas expressões adverbiais, tais
como, hoje, amanhã, depois, advérbios de oralidade como ali, aqui, daí, anáfora e
catáfora.

7
FRIEDMAN, Norman. Point of View in Fiction, the development of a critical concept. In: STEVICK,
Philip, ed. The Theory of the Novel. New York, The Free Press, 1967.

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ESTRATÉGIA DE LEITURA E ETAPAS DO COMPORTAMENTO DE
ESCRITOR COMO SABERES ESPECÍFICOS PARA APRENDIZAGEM DA
LEITURA E DA ESCRITA DE NARRATIVAS LITERÁRIAS
Não há necessidade de se prolongar muito para dizer da intimidade entre o ato
de ler e o ato de escrever, apesar de possuírem didáticas peculiares para o ensino. Mas
se tratando da aprendizagem do comportamento de escritor, a autora Calkins (1986) e
Jolibert (1994, 2006, 2008) convergem em dizer que ler e escrever caminham lado a
lado, pois o autor escreve ensaios, segue para escrita do esboço do texto literário, na
sequência revisa, portanto, lê o seu próprio escrito e, por fim, edita. O autor faz isto
inúmeras vezes antes de publicar a versão final do seu escrito literário.
Mas as estratégias de leitura estão sempre presentes, até mesmo porque, o
autor ao colocar como leitor do seu próprio texto, revisa-o, questiona-o, comportando-
se como leitor. Logo, usa estratégias de leitura, tais como: questiona o título, antecipa
hipóteses, ativa o conhecimento prévio, realiza inferências durante a leitura, integra o
conhecimento do texto com conhecimento extratexto, identifica a ideia e resume,
conforme aponta Solé (1998), Kleiman (2011) e Colomer e Camps (2004).

DUAS ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DE SABERS DOCENTES PARA


MEDIAR A APRENDIZAGEM DA ESCRITA DE CONTO DE AVENTURA
Para discutir com os nove professores participantes do grupo de intervenção os
assuntos abordados nas páginas anteriores, foi elaborado o curso de extensão
Estratégias de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita autoral, organizado com
duas oficinas, isto é, Oficina de Leitura e Oficina de Criação Literária, sendo a
primeira com 10 horas e a segunda com 30 horas de estudos. Houve 20 horas
dedicados à produção do conto de aventura e realização de atividades de avaliação.
A Oficina de Leitura teve por objetivo discutir conceitos sobre compreensão
leitora e apresentar uma metodologia de ensino da leitura. Por isso, foi abordado o
conceito de leitura, alfabetização e letramento dos autores Kleiman (2011), Oliveira e
outros (2013) e Colomer e Camps (2002); as estratégias cognitiva e metacognitivas de
leitura dos autores Kleiman (2011) e Colomer e Camps (2002); perfil de leitor de Dembo
(2000); tipos de memórias envolvidas na compreensão leitora comentados por Colomer
e Camps (2002) e Delval (1998); conceitos de compreensão responsiva, passiva e de
responsiva de efeito retardado de Bakhtin (2011); e estratégia de leitura de Solé (1998).

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Como o curso de extensão contou com “O cantinho da leitura”, foram utilizados
os textos de literatura infantil “ A joaninha diferente” de Eunice Braido e “O pequeno
fantasma” de Pedro Bandeira. Ambos têm foco narrativo onisciente intruso e discurso
indireto como predominante. O primeiro foi utilizado para ilustrar a aplicação da
estratégia de leitura pela pesquisadora, enquanto que o segundo serviu para atividade
coletiva de aplicação da estratégia de Solé. Como atividade formativa, realizada
individualmente ou em duplas, as professoras escolheram entre os textos disponíveis
no cantinho da leitura, “Lino” de André Neves, “A chuvarada” de Isabela Carpaneda e
“Soltei o Pum na escola” de Blandina Franco e José Carlos Lollo.
Destaca-se que, neste trabalho, foi adotado a transposição didática de Jolibert
(1994, 2004, 2008) para a aprendizagem da escrita do enredo. Em outras palavras, as
fases do enredo na transposição didática foram trabalhadas da seguinte maneira:
situação inicial, situação problema, desenvolvimento, solução do problema e situação
final, sendo substituído pela pesquisadora “o desenvolvimento” por “provas e
obstáculos”, justamente, porque foi adotado o “conto de aventura” no estudo.
O objetivo da Oficina de Criação Literária era propor atividades de reflexão
sobre os elementos da literatura, em especial, aos elementos que caracterizam o conto
e a vivência do comportamento do escritor, por meio de produção de conto de aventura,
cujo tema era o “meio-ambiente” e a ideia principal “salvar o meio ambiente com
antídoto”.
Para tanto, os professores participantes produziram a versão inicial do conto de
aventura antes de participar da Oficina de Criação Literária, uma segunda versão,
considerada como primeira revisão após um ciclo de atividades e uma terceira versão e
segunda revisão, após o término dos assuntos da Oficina de Criação Literária.
Durante a Oficina de Criação Literária os professores participantes viveram e
refletiram sobre comportamento de escritor apresentado por Calkins (1985) e discutiram
sobre alguns aspectos da teoria literária, ou seja: personagens a partir de Brait (1985)
e Coutinho (2015); modos de criar personagens de acordo com Candido (2014); espaço
de acordo com Dimas (1994); foco narrativo e discurso com os levantamentos de Leite
(2002), Gancho (1991) e Coutinho (2015); enredo a partir de Mesquita (2006), Coutinho
(2015) e Todorov (2006); tempo na literatura de acordo com Nunes (1995);
caracterização de conto segundo Moiseis (2006) e conceito de literatura e gênero
literário e classificação segundo o ponto de vista de Coutinho (2015) e Gancho (1991);
elementos de cadeia referencial e coesão de acordo com Koch (2006) e análise de texto
de literatura infantil. Durante toda a Oficina de Criação Literária houve reflexão de como

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se trabalhar em sala de aula a escrita literária a partir do pensamento de Jolibert (1994,
2004 e 2008) e Calkins (1985) e de proposta de um conjunto de atividades sequenciais
elaborado pelas autoras deste trabalho.

Os textos escolhidos para serem lidos durante as atividades da Oficina de Criação


Literária foram: “O pequeno fantasma” e “O pequeno bicho-papão” de Pedro Bandeira;
“Fonchito e a Lua” de Marcos Llosa, “Dia de chuva” de Ana Maria Machado e aqueles
utilizados na Oficina de Leitura, com exceção do texto “Lino” de André Neves.

Considerações Finais
As conclusões apontadas, ainda, são parciais, pois as produções de textos dos
professores encontram-se no processo de análise pelas pesquisadoras. Contudo, a
convivência durante as 60 horas de curso com os professores participantes do grupo de
intervenção e os dados obtidos durante avaliação diagnóstica com os professores
participantes do grupo controle, autorizam as pesquisadoras a afirmar que, os
participantes dos dois grupos, intervenção e controle, não haviam escrito “um conto de
aventura” e “não conheciam totalmente os elementos de composição”, tampouco a
proposta de ensino da leitura de Solé (1998), antes de terem participado das oficinas.
O grupo de intervenção envolveu-se com os assuntos tratados na Oficina de
Leitura e na Oficina de Criação Literária, gerando, inclusive, um grupo de apoio
pedagógico no aplicativo Watsapp.
Das nove professoras participantes, três delas deram continuidade ao assunto
desenvolvendo a proposta de atividades sequenciais, estudada na Oficina de Criação
Literária, com as crianças matriculadas nas turmas em que são regentes no ano de
2019, isto é, a proposta de atividades sequenciais está sendo aplicada em uma turma
do 3º ano, em duas turmas do 4º ano e uma turma do 5º ano, respectivamente. Ao todo,
as três professoras envolveram 110 crianças.
Com base em dados parciais, é possível afirmar que as duas estratégias Oficina
de Leitura e Oficina de Criação Literária permitiu ao grupo de intervenção conhecer os
assuntos tratados, analisar textos de literatura infantil e refletir sobre como propor
atividades para iniciar o desenvolvimento da escrita literária de acordo com a BNCC
(2017).

Referências
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2011.
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TODOROV, Tzvetan. As estruturas das narrativas. Tradução de PLeyla Perrone-


Moiséis. 4ª ed, 3ª reimpressão. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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A REPRESENTAÇÃO DO GÊNERO FEMININO NA FICÇÃO E
SUA INFLUÊNCIA NA CRIAÇÃO NARRATIVA DE
PERSONAGENS NO CONTEXTO ESCOLAR8

Laís Rios Berno, UFJF


Elza de Sá Nogueira, UFJF

Eixo Temático: Grupo Temático 1: Experiências na educação básica com a escrita do


texto literário

Considerações iniciais
Desenvolvido no âmbito do ProfLetras, na Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF), esta pesquisa apresenta uma proposta interventiva voltada para o ensino de
literatura no nono ano do Ensino Fundamental, cuja principal abordagem trata da
questão da representação do gênero feminino na ficção. Nesse sentido, busca-se refletir
criticamente sobre os modelos de personagem feminina – tanto aqueles planeados em
obras fílmicas e literárias, quanto os projetados pelos próprios alunos ao construírem
suas personagens – e, no processo, também ampliar o repertório dos discentes sobre
as diversas concepções da representação do feminino na sociedade. Evidencia-se,
ainda, o potencial deste projeto na compreensão da perspectiva dos alunos relacionada
à questão do gênero feminino, isto é, com base nos textos produzidos e nos modelos
de personagens que emergirão desses, poder-se-á compor a forma como se desenha
a imagem feminina em seu imaginário.
Além disso, a temática de gênero, principalmente no que se refere ao gênero
feminino, mostra-se relevante no contexto in loco, na medida em que se observou a
reprodução e a disseminação de conteúdo misógino nos banheiros públicos de uma
escola da rede estadual no município de Juiz de Fora, Minas Gerais, por parte dos seus
discentes. Tal situação problema inspirou a criação desta ação interventiva, uma vez
que, a partir do entendimento bakhtiniano de que todo texto possui intencionalidade

8
Este artigo é parte integrante da pesquisa em desenvolvimento Representações do gênero
feminino na ficção e seu impacto no repertório cultural de alunos do Ensino Fundamental II,
desenvolvida pela Profa. Laís Rios Berno e orientada pela Profa. Dra. Elza de Sá Nogueira. A
pesquisa se insere no macroprojeto intitulado A construção de repertório literário no Ensino
Fundamental II, da orientadora.

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comunicativa e da compreensão de que o espaço do banheiro público é um local
desprovido de limites sociais, por consequência do anonimato, é possível afirmar que
mesmo os grafitos do banheiro dessa escola pública possuem uma expressão
ideológica específica que pode ser relacionada ao comportamento apresentado pelos
alunos, cabendo à escola promover a reflexão sobre tais ocorrências. Assim, a escolha
pelo ensino de literatura para esta intervenção se deu principalmente por seu caráter
humanizador e transformador, como postulado por Antonio Candido (1995), ao
possibilitar assumir diferentes perspectivas em diferentes contextos.
Isto posto, como base para a construção das personagens, utilizaremos
fundamentos do RPG (Role Playing Game), relacionados aos conceitos de personagem
plana e esférica, conforme Forster (1969). O trabalho também se apoia no arcabouço
teórico que se segue: o conceito de gênero (GARCIA, 2015); letramento literário
(Cosson, 2016, 2018; Paulino e Cosson, 2009); o repertório do texto (Iser,1996); e o
sistema literário (Even-Zohar, 1990). Outrossim, a fim de estreitar a ponte entre teoria e
prática, adotamos a orientação metodológica da pesquisa-ação para esse processo
interventivo, segundo Thiollent (1986).

A situação inicial
Tomando-se a pesquisa-ação como base metodológica para a realização deste
projeto, marca-se como situação inicial a inquietação de estudantes em face da
existência de registros de cunho ofensivo direcionados, principalmente, às alunas da
escola, registrados nos banheiros masculinos e femininos dessa instituição de ensino.
Tal inquietação se mostrou presente no ambiente escolar tanto em forma de denúncias
sobre o conteúdo dos grafitos, quanto em uma intervenção no sanitário feminino
realizada por alunas do terceiro ano do Ensino Médio, que promovia a exaltação dos
variados tipos de corpos e o empoderamento feminino por meio de cartazes
motivadores. Apesar de ter sido amplamente discutida no ano de 2019, a questão da
misoginia e do preconceito não é percebida como um caso isolado, mas como algo
recorrente, que afeta diretamente na qualidade da vivência escolar.
Com intenção de analisar o conteúdo dos grafitos relatados nas denúncias das
alunas, coletamos um total de 104 registros nos banheiros da escola, sendo 51 no
sanitário masculino e 53 no feminino, posteriormente divididos nas seguintes categorias
relacionadas ao cunho do comentário produzido: sexual, ofensivo, presença, romântico,
humor e outros. É importante ressaltar que foram selecionados grafitos apenas em
linguagem verbal cabíveis de leitura. Assim, observou-se que aproximadamente 34%

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tratavam de ofensas com relação à aparência de outras alunas e 20% de conteúdo
sexual. Como apresentado na tabela 1.

Tabela 1 – Grafitos de banheiro da escola estudada


Banheiro Banheiro
Masculino Feminino
Sexual 17 4
Comentários que indicam intimidade de uma ou mais
alunas; exaltação de sensualidade feminina; comentário
pejorativo sobre partes íntimas masculinas ou femininas.
Ofensivo 14 21
Comentários cujo objetivo é desmoralizar uma aluna, tanto
no que se refere à aparência física, quanto a questões
comportamentais.
Presença 11 13
Identificações diversas, apenas nomes, sem nenhuma outra
informação.
Romântico 1 9
Inscrições que fazem declarações de amor a alguma aluna;
nomes de casais;
Humor 6 2
Piadas diversas sobre qualquer assunto, excluídos os que
se relacionam a outra pessoa de forma ofensiva.
Outros 2 4
Quaisquer outras marcações que tratem de assuntos
gerais, como esporte, religião, frustrações da vida,
informações sobre a prova etc.
Fonte: A própria autora, 2019.

A partir da análise desses dados, percebeu-se a necessidade da promoção de


ações pedagógicas que visassem à reflexão sobre os modelos de gênero feminino
reproduzidos dentro do ambiente escolar, uma vez que se destacam: a falta de
sororidade – em 21 das 104 inscrições coletadas há depreciação entre indivíduos do
gênero feminino relacionada a um comportamento supostamente inadequado ou à
aparência física destoante do padrão idealizado; e o desrespeito pelas
colegas/mulheres expressado pelas inscrições no banheiro masculino – 17 dos grafitos
faziam referências explícitas de caráter sexual relacionadas direta ou indiretamente ao
corpo feminino e 14 comentários registraram conteúdo ofensivo sobre mulheres, até
mesmo as identificando em alguns casos.

A questão do gênero feminino


O termo “gênero” se liga à ideia de identidade e deve ser compreendido,
conforme Carla Cristina Garcia (2015), como um sistema de crenças que especifica o
que é próprio para um ou outro sexo, e institui, a partir disso, os direitos, os espaços, as

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atividades e as condutas específicas para homens e mulheres. O conceito trata, desse
modo, do conjunto de “normas, obrigações, comportamentos, pensamentos,
capacidades e até mesmo o caráter que se exigiu que as mulheres tivessem por serem
biologicamente mulheres” (GARCIA, 2015, p. 19).
Sob essa perspectiva, Simone de Beauvoir inaugura o segundo volume de O
Segundo Sexo, lançado originalmente em 1949, com a afirmação: “não se nasce
mulher: torna-se mulher”. Isto é, entende-se que a ideia de feminino, ou feminilidade, foi
construída de acordo com o paradigma cultural e social em um determinado contexto
espacial e histórico. Assim, conforme o lugar, a época, a cultura e a sociedade, varia-se
o conjunto de características que constroem socialmente a identidade da mulher. O que
nos permite inferir que a imagem fabricada do gênero feminino no Brasil em 2020 é
diferente daquela da China medieval, por exemplo. Há, contudo, um aspecto em que
essas imagens convergem, que diz respeito ao sistema que as criou com um propósito
específico.
Para entender esse ponto, antes, é preciso compreender os conceitos de
androcentrismo e patriarcado. O primeiro, cunhado pelo sociólogo americano Lester F.
Ward, relaciona-se à perspectiva que considera o homem como medida para o todo. O
segundo foi definido por Dolores Reguant (1996) como uma

forma de organização política, econômica, religiosa, social baseada na


ideia de autoridade e liderança do homem, no qual se dá o predomínio
dos homens sobre as mulheres; do marido sobre as esposas, do pai
sobre a mãe, dos velhos sobre os jovens, e da linhagem paterna sobre
a materna. O patriarcado surgiu da tomada de poder histórico por parte
dos homens que se apropriaram da sexualidade e reprodução das
mulheres e seus produtos: os filhos, criando ao mesmo tempo uma
ordem simbólica por meio dos mitos e da religião que o perpetuam
como única estrutura possível (REGUANT apud GARCIA, 2015, p. 16-
17).

Em seu discurso na TEDGlobal, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie


(2009) define o poder como “a capacidade de contar a história de outra pessoa,
tornando-a na história definitiva dessa pessoa”, isto é, passa-se a perceber a realidade
de acordo com uma perspectiva apenas, que atenderá ao interesse de um grupo
específico, impossibilitando outras visões ou possibilidades.
Nessa linha de pensamento, concebe-se que o patriarcado levou à falsa crença
de que os papéis são determinados por um suposto sexto biológico, sendo, por isso,
imutáveis. Isso resultou em uma sistematização do silenciamento feminino, um
processo construído ao longo da história da humanidade, alicerçado em discursos que
legitimaram a desigualdade entre homens e mulheres. Dentre esses discursos, destaco

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aquele que prega que um gênero, no caso o masculino, é superior a outro, o feminino.
Tal crença é denominada machismo e estabeleceu um discurso de desigualdade e
opressão que se sustenta ainda nos dias atuais. Fato que pode ser percebido nos
comentários jocosos e ofensivos direcionados às mulheres registrados nas paredes dos
sanitários da escola analisada ou, de maneira mais abrangente, em vídeos
protagonizados por políticos e personalidades da TV.
Assim, se existe um sistema, o patriarcado, cuja perspectiva machista se mostra
tão eficaz que é capaz de interferir na cultura, na sociedade, na religião e no
comportamento humano de uma maneira geral, é possível afirmar que a forma como as
mulheres são representadas na história da humanidade está profundamente enraizada
na estrutura androcêntrica, de maneira que o que se relaciona culturalmente ao gênero
feminino não é uma construção do próprio ser feminino, mas do olhar masculino sobre
o sexo feminino, e a ficção não está desligada dessa estrutura.

O gênero feminino na ficção


Nos termos de Iser, a ficção não reproduz a realidade, mas a transforma em algo
diferente por meio do imaginário, que é livre e aberto às invenções de novas ordens. Já
esse imaginário é então traduzido para um espaço “real”, com leis e determinações
próprias, para que possa ser concebido pelo público. “É necessário, portanto,
compreender a relação entre ficção e realidade não mais como relação entre seres, mas
sim em termos de comunicação[...]: em vez de ser polo oposto à realidade, a ficção nos
comunica algo sobre ela” (ISER, 1996b, p. 102).
Logo, no que tange à importância da ficção na formação de uma identidade
coletiva, a representação do gênero feminino concebida no imaginário de obras de
ficção não deve ser interpretada apenas como um espelho comportamental de uma
determinada sociedade em um contexto temporal específico, mas antes como uma
forma de comunicação capaz de modelar padrões socioculturais aceitáveis ou não para
uma dada comunidade e de questionar a validade de modelos pressupostos.
Atualmente, contudo, há uma falsa ideia de equidade sobre a representação dos
gêneros masculino e feminino no que concerne à representação de gênero na ficção.
Mais especificamente no cinema, sucessos da última década, como Moana, por
exemplo, levam a crer que modelos femininos, como da personagem Moana, são o
artigo mais presente nas telas. Contudo, os dados da pesquisa It’s a Man’s World: On-
Screen Representations of Female Characters in the Top 100 Films of 2014 revelam
que apenas 12% dos 100 filmes mais vistos do ano de 2014 foram protagonizados por

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mulheres e que elas representam apenas 30% de todos os personagens com fala dos
filmes analisados.
Nesse contexto, pode-se afirmar ainda que os filmes podem ser mais sexistas
que a sociedade. Coletando dados dos créditos finais sobre as carreiras das
personagens, o escritor Walt Hickey pôde compará-los às estatísticas de carreira reais
disponibilizadas pelo governo americano e concluiu que há uma significativa diferença
na porcentagem entre as mulheres no mercado de trabalho na vida real e naquela
representada no cinema. Para fins comparativos, em 2015, 32% dos médicos, 33% dos
advogados, 14% dos engenheiros e 16% do exército nos Estados Unidos eram
formados por mulheres, já na ficção, os números sofreram uma vertiginosa queda para
10%, 11%, 5% e 3%, respectivamente.
Ademais, as mulheres ainda carregam determinados estigmas na maneira como
a sua imagem é construída. Isso ocorre porque, como explica Laura Mulvey (1983, p.
444), em um

mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi


dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino. O olhar masculino
determinante projeta sua fantasia na figura feminina, estilizada de
acordo com essa fantasia. (MULVEY, 1983, p. 444)

O que leva à inevitável constatação de que o cinema, como uma expressão


cultural, também se estabelece sobre uma perspectiva androcêntrica e dissemina
discursos de opressão: “o homem controla a fantasia do cinema e também surge como
o representante do poder num sentido maior: como o dono do olhar do espectador”
(MULVEY, 1983, p. 444- 445).
O teórico alemão Wolfgang Iser (1996) postula que o repertório do leitor pode
ser definido como a bagagem de leitura que se constrói ao longo de sua formação.
Relevando-se que o chamado letramento literário é concebido como “o processo de
apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (PAULINO &
COSSON, 2009, p. 67), é possível interpretar a aquisição do repertório como uma
consequência desse movimento, que se molda singularmente a depender da
experiência individual daquele lê e de fatores externos à própria leitura, como contexto
social, histórico e cultural que compõem o plano de fundo do texto.
Isto posto, o modo como os alunos experimentam o contato com o ficcional e,
consequentemente, constroem seu repertório literário pode se dar das mais
diversificadas maneiras, do formato mais tradicional de códice, em romances como
Harry Potter, ao mesmo livro adaptado para um jogo no celular, por exemplo.

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Portanto, faz-se necessário situar o lugar que esses formatos ocupam enquanto
modelos de comunicação humana. Para isso, é preciso compreender o que postula
Itamar Even-Zohar, em sua Teoria dos Polissistemas, quando afirma que os fenômenos
semióticos, tais como literatura, cultura e sociedade, podem ser melhor interpretados
quando concebidos como sistemas que interagem entre si (EVEN-ZOHAR, 2013).
Ainda segundo o autor, todo sistema em si é um polissistema, que, por sua vez,
é formado por vários sistemas. Além disso, esses sistemas são dinâmicos, uma vez que
seu funcionamento está diretamente ligado à sociedade e, desse modo, também ao seu
contexto histórico. Exemplo disso são as obras shakespearianas, que, originalmente,
possuíam forte apelo popular, enquanto hoje usufruem de extremo prestígio cultural.
Além disso, um sistema semiótico pode ser compreendido como múltiplo na medida que
é heterogêneo e aberto, ainda que funcione de forma estruturada. Justamente por essa
natureza múltipla dos sistemas semióticos, Even-Zohar (2013) considera a ideia de
polissistemas.
Nessa perspectiva, todos os sistemas devem ser considerados, sejam eles
valorizados socialmente ou não. Contudo, histórias em quadrinhos, seriados de TV, ou
filmes e livros ilustrados, como aqueles que serão tratados na proposta de intervenção,
comumente ocupam as margens no chamado “sistema literário”, privilegiando-se, dessa
forma, um determinado segmento central, dito cânone, em detrimento de obras
“marginalizadas” ou de caráter popular. Reitera-se, por isso, o fato de que esses
sistemas são dinâmicos, de modo que não é cabível ranqueá-los em níveis de
importância, nem selecioná-los pelo critério de gosto.
Considerando que o aluno adquiriu, ao longo de sua vivência leitora, um
determinado repertório literário quando exposto a variadas obras ficcionais das margens
ao centro do sistema literário, questiona-se aqui, a partir desse arcabouço, como se
estruturariam os modelos femininos em seu imaginário, isto é, se confirmaríamos a
hipótese de que esses modelos estariam de alguma forma relacionados aos grafitos
coletados na situação inicial.

A construção das personagens


Para que esses modelos femininos imaginados pelos discentes possam emergir
em suas produções textuais, elaboramos uma ficha de personagem (apêndice A)
inspirada nas fichas de personagem de jogos de RPG (Role Playing Game). O formato
foi adaptado de maneira a extrair o maior número de informação possível sobre variados
aspectos (físicos, psicológicos e comportamentais) das personagens.

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Indica-se que o professor divida os alunos em duplas e entregue o modelo de
ficha de personagem sugerido no apêndice A. Então, deve-se pedir aos alunos que
criem, a partir da ficha, um personagem do gênero masculino e um do gênero feminino.
É importante salientar a necessidade de que essa aplicação ocorra sem que haja
explicações prévias ou exemplificações sobre modelos de personagens, de maneira que
não se sugestione qualquer ideia e, consequentemente, prejudique as respostas
espontâneas dos estudantes ao exercício de criação de personagem. Essa primeira
produção deverá ser coletada e digitalizada antes de ser retornada aos estudantes.
Segue-se, assim, para a fase de discussão com os alunos sobre estereótipos
observados em personagens femininos dos filmes da Disney, a partir de aula expositiva
com análise de trechos dos filmes Branca de Neve e Os Sete Anões (1937), passando
por Cinderela (1950), A Pequena Sereia (1989), A Bela e a Fera (1991), Pocahontas
(1995), Mulan (1998), A Princesa e o Sapo (2009), Valente (2012), Frozen (2014), e
culminando, finalmente, em Moana, de 2017.
A escolha pelas obras da Disney, dentre várias outras possibilidades de
produtoras de filmes infantis, se ancorou principalmente no histórico da empresa, uma
das mais antigas na indústria do entretenimento, tendo atingido o marco de lançar o
primeiro longa-metragem de animação colorido da história do cinema, Snow White and
the Seven Dwarfs, em 1937. Tal longevidade proporcionou que várias gerações
entrassem em contato com suas produções fílmicas e que, concomitante a isso, essas
produções também estivessem suscetíveis a diferentes contextos sócio-político-
culturais. Exemplo dessa dicotomia pode ser observada quando se compara as
personagens Branca de Neve, de 1937, e Moana, de 2016.
Ao se analisarem as ações de Branca de Neve, percebe-se que ela é levada
pela história, de forma que não toma as decisões que impulsionarão sua narrativa: ora
é salva pela misericórdia do caçador, ora é permitida a sua permanência na casa pelos
anões, ora lhe é oferecida a maçã envenenada pela Rainha Má, levando-a a um estado
inanimado que só será revertido a partir da intromissão do Príncipe.
Se comparada ao texto dos irmãos Grimm, a adaptação cinematográfica da
Disney da Branca de Neve ainda agrava o ponto da sujeição da personagem principal
feminina, uma vez que, no filme, a intromissão do príncipe implica em um ato não
consensual sob o pretexto de que a princesa acordaria após “o beijo de amor
verdadeiro”, enquanto, no conto, é o evento de expelir o pedaço de maçã envenenada,
quando carregada pelos servos do príncipe, que desencadeará o despertar de Branca
de Neve, como pode ser lido no seguinte trecho:

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O príncipe ordenou a seus criados que pusessem o ataúde sobre os
ombros e o transportassem. Mas aconteceu que eles tropeçaram num
arbusto e o solavanco soltou o pedaço de maçã envenenado que
estava entalado na garganta de Branca de Neve. Ela voltou à vida e
exclamou: “Céus, onde estou?” (GRIMM, J. & GRIMM, W, 2010, p.
123).

O longa Moana, por outro lado, explora a trajetória de autoconhecimento da


personagem título, Moana, da ilha de Motu Nui, na Polinésia. A presença feminina no
filme também é marcada pela avó e mentora da personagem, Tala, representando outro
contraponto ao filme de Branca de Neve, já que a Rainha Má apenas reitera a ideia de
competição feminina. Tala, por outro lado, apresenta Moana à história escondida e
consequentemente esquecida de seu povo, antes marcada pelas navegações, e a
encoraja a buscar seu destino além da ilha e da superproteção de seu pai.
Ademais, Moana é uma personagem complexa, esférica, que duvida de si
mesma e chega a desistir de sua jornada em um dado momento de desesperança.
Trata-se de uma heroína Disney que verdadeiramente expõe suas falhas e se dispõe a
aprender com seus erros; mais que isso, uma heroína que nega a si mesma a definição
de “princesa” quando responde à provocação de Maui e diz ser apenas “a filha do chefe”.
Isto posto, nessa etapa, também será realizada a leitura mediada do livro
ilustrado A Bela e a Adormecida, de Neil Gaiman, que realiza uma desconstrução de
modelos de princesas estabelecidos, principalmente, pelos filmes clássicos da Disney.
Um exemplo dessa desconstrução pode ser notada na própria concepção de casamento
nas narrativas: enquanto em grande parte dos filmes de “princesas” da Disney a
cerimônia de casamento representa a expressão máxima do final feliz, “e viveram felizes
para sempre”, na obra de Gaiman, a personagem principal, a Rainha, relaciona a ideia
do casamento ao fim de sua vida, referindo-se à liberdade de escolhas. Para ela, uma
vez consumada a cerimônia, todos os aspectos de sua vivência já estariam pré-
determinados, restando-lhe esperar pela morte.
É interessante que os alunos consigam comparar as representações propostas
pelas princesas da Disney e pelo autor Neil Gaiman, assim como fazer,
preferencialmente de maneira autônoma, inferências sobre as variadas referências dos
contos de fadas presentes nessas obras, promovendo, dessa maneira, uma intensa
discussão sobre as diversas representações do gênero feminino em diferentes
contextos, culturais e históricos, e como isso pode ser refletido na sociedade.
O que nos leva, enfim, à etapa de análise, quando o professor deve instigar a
reflexão e posterior análise sobre os modelos criados pelos próprios alunos sobre o

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gênero feminino em suas fichas de personagem, possibilitando, inclusive, que eles
comentem as alterações que fariam em aspectos que considerarem importantes em
suas produções de texto originais. A fim de que haja um aprofundamento dessas
informações, é interessante que os alunos sejam apresentados aos conceitos de
personagens planas e esféricas, explorados por Forster em Aspectos do Romance.
Na concepção de Forster (2005), as personagens podem ser classificadas como
planas e esféricas. De maneira simplificada, as planas, em “sua forma mais pura, são
construídas ao redor de uma ideia ou qualidade simples”, alheias à evolução, podendo
ser subdivididas em tipos, quando “alcançam o auge da peculiaridade sem atingir a
deformação” (BRAIT, 2017, p. 42), e em caricaturas, no momento em que “a qualidade
ou ideia única é levada ao extremo, provocando uma distorção propositada, geralmente
a serviço da sátira” (IDEM). As personagens esféricas, por outro lado, são as que
possuem mais de uma ideia ou tendência, reconhecidas pela sua complexidade,
capazes, por isso, de surpreender o público. Enquanto a plana pode ser um excelente
agente para o humor, por sua simplicidade, a redonda responde melhor ao drama, pois
“só as pessoas redondas foram feitas para atuar tragicamente por qualquer extensão
de tempo, e só elas podem despertar em nós quaisquer sentimentos que não sejam o
de humor e o de adequação” (FORSTER, 2005, p. 96). Com a apropriação desses
conceitos, espera-se que o aluno possa, inclusive, entender de maneira mais densa sua
própria criação (personagem) e como ela se posiciona em seu universo: se ela tende
para um tipo plano ou esférico, como isso implicaria nas ações da personagem e a quais
gêneros de narrativa ela mais se adequaria, por exemplo.

Considerações Finais
Assim, pretendeu-se desenvolver uma proposta pedagógica que proporcione o
exercício de autoria criativa a alunos do nono ano de uma escola pública, dirigida à
construção de personagens femininas intermediada pela ampliação de repertório
literário e cultural concernente à questão, com a finalidade de conscientizar os discentes
sobre os papeis sociais da mulher e sua representação na ficção.
Nessa perspectiva, esta proposta interventiva compreende ainda que, a partir da
produção do texto ficcional, poder-se-á emergir o modelo de representação feminina
que se configura no imaginário dos alunos acionados a partir de seu repertório, tanto
aquele construído por intermédio das convenções sociais da atualidade nas quais se
inserem, quanto do conhecimento advindo do contato com obras ficcionais diversas.
Mais do que isso, intenciona-se proporcionar a discussão de questões relevantes sobre

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os diferentes modelos de representação feminina presentes na ficção relacionadas,
ainda, ao contexto histórico.
Além disso, admite-se que o leitor sofre as influências estéticas do texto,
possibilitando, com isso, ampliar seu repertório e evidenciar, assim, o caráter
transformador da literatura. Consequentemente, o leitor assume um local de visibilidade
e seu repertório passa a ser compreendido como essencial no seu processo de
letramento literário.

Referências
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2019.

BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2019.

BRAIT, B. A Personagem. São Paulo: Contexto, 2017.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários Escritos. 5 ed. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul/ São Paulo: Duas Cidades, 2011.

COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2016.

EVEN-ZOHAR, I. Teoria dos polissistemas. Revista Translatio. Tradução de Luis


Fernando Marozo, Carlos Rizzon e YannaKarlla Cunha. Porto Alegre, v. 5, pp. 7-13.
2013.

FORSTER, E. M. Aspectos do Romance. Organização Oliver Stallybrass; tradução


Sergio Alcides; prefácio Luiz Ruffato. – 4. ed. rev. – São Paulo: Globo, 2005.

GAIMAN, N. A Bela e a Adormecida. 1. ed. São Paulo: Rocco Jovens Leitores, 2015.

GRIMM, J. & GRIMM, W. Branca de Neve. In: TATAR, M. & BORGES, M. L. X.


(tradução). Contos de fadas: edição comentada e ilustrada. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editora, 2010.

GARCIA, C. C. Breve História do feminismo. 3. ed. São Paulo: Claridade Ltda., 2015.

HICKEY, W. Government Data Agrees: Hollywood Is Even More Sexist Than The Real
Workforce. Disponível em: <https://fivethirtyeight.com/features/government-jobs-data-
agrees-hollywood-is-even-more-sexist-than-the-real-workforce/>. Acesso em: 05 mai.
2020.

ISER, W. O repertório do texto. In O ato da Leitura. Uma teoria do efeito estético. Vol
1. São Paulo Ed. 34, 1996, p. 101-157

LAUZEN, M. M. It’s a Man’s (Celluloid) World: On-Screen Representations of Female


Characters in the Top 100 Films of 2014. Disponível em:
https://womenintvfilm.sdsu.edu/files/2014_Its_a_Mans_World_Report.pdf. Acesso em:
05 mai. 2020.

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MULVEY, L. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, I. A experiência do cinema:
antologia. Rio de Janeiro: Graal; Embrafilme, 1983. p. 437-453.

PAULINO, G.; COSSON, R. Letramento literário: para viver a literatura dentro e fora da
escola. In: ZILBERMAN, Regina; RÖSING, Tania (Org). Escola e leitura: velha crise,
novas alternativas. São Paulo: Global, 2009, p. 61-79.

REGUANT, D. La Mujer no Existe. Bilbao: Maite Canal, 1996. In: SAL, Victoria.
Diccionario Ideológico feminista, vol. II, Barcelona: Icaria, 2001.

THIOLLENT, M. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez, 1986.

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Apêndice A

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OFICINAS DE FORMAÇÃO NO PROJETO LEUTURA E ESCRITA
NA EDUCAÇÃO INFANTIL: A BIBLIODIVERSIDADE NA
CONSTITUIÇÃO DE ACERVOS DE LIVROS PARA A INFÂNCIA

Alessandra Latalisa de Sá, Universidade FUMEC.


Mariana Parreira Lara do Amaral, UFMG.

Eixo Temático: Experiências na educação básica com a escrita literária

Considerações iniciais

Entre fevereiro de 2018 e julho de 2019, foi realizado o curso de formação


“Leitura e Escrita na Primeira Infância – LEPI/BH”, destinado ao corpo técnico-
administrativo da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte e às
coordenadoras pedagógicas de Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEI). O
curso teve carga horária presencial de 120 horas realizadas na Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG - e em espaços culturais da cidade de
Belo Horizonte.
O objetivo principal foi capacitar essas profissionais para atuarem como
orientadoras de estudo junto às professoras de turmas de crianças de zero a cinco anos
da rede pública municipal e da rede de creches parceiras do município. Essa formação
se propôs coerente aos princípios que geraram o material que subsidiou o curso: a
coleção Leitura e Escrita na Educação Infantil.
Fundamentada na trilogia Ciência-Arte-Vida, a coleção Leitura e Escrita na
Educação Infantil é fruto do projeto de mesmo nome desenvolvido entre os anos de
2014 a 2016, sob a coordenação de três universidades brasileiras – UFMG, UFRJ e
UNIRIO, a partir de demanda feita pela Coordenação Geral da Educação Infantil –
COEDI, do Ministério da Educação. A coleção é composta por nove cadernos e um
encarte que abordam temas como a docência na Educação Infantil, o que significa ser
criança desta etapa educativa, os bebês e as crianças pequenas como leitoras e
autoras, o currículo, a avaliação, a literatura e formação de acervos literários para a
primeira infância, a relação com as famílias e o papel dos adultos como mediadores de
leitura das crianças. O material foi constituído como uma importante referência para a
formação das professoras da Educação Infantil de todo o Brasil, principalmente por

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abordar temas atuais e imprescindíveis à prática pedagógica que vise o respeito e
compromisso com a primeira infância.
O curso realizado em Belo Horizonte foi a primeira experiência no Brasil de
formação presencial com a coleção “Leitura e Escrita na Educação Infantil”. Dentre as
ações desse curso, foram articuladas as oficinas sobre bibliodiversidade que
compuseram as discussões sobre “Livros Infantis: acervos, espaços e mediações”.
Essas oficinas são o objeto deste relato de experiência e foram norteadas,
principalmente, pelas discussões sobre literatura, formação leitora e qualidade em
literatura infantil, a partir das perspectivas de Antonio Cândido (1995); Aparecida Paiva
(2016); Cláudia Pimentel (2016).
Foram desenvolvidas três oficinas9 de formação, com duração de duas horas
cada, a partir dos conteúdos trabalhado no Caderno 7, cujas temáticas abordadas eram
complementares entre si: (I) O livro como objeto cultural; (II) O que ler para bebês e
crianças pequenas; (III) Tipologia do livro para a infância. Cada uma das oficinas foi
conduzida por duas formadoras do LEPI, priorizando o diálogo e debate entre as
cursistas. Em todas elas, foram disponibilizados livros de qualidade para manuseio e
análise das cursistas, além de serem importantes recursos para ilustrar o que se
discutia. Os livros também contribuíram para a ampliação do repertório de livros para a
infância das cursistas.
Ao final das oficinas, as cursistas preencheram o “Roteiro de avaliação de livros
de literatura ou informativos” (PIMENTEL, 2016, p. 92-96), disponível no Caderno 7 da
coleção, como uma forma de auxiliar as professoras na leitura prévia e na seleção dos
livros para a infância.

Referencial Teórico
Ter a literatura como tema para formação de professoras10 da Educação Infantil
significa considerá-la objeto relevante para essa prática profissional. Recorrentemente
observa-se seu uso com fins estritamente didáticos e moralizantes, para ensinar boas
maneiras, valores ou conteúdos curriculares diversos às crianças. É possível identificar
a utilização da literatura sob uma perspectiva pragmatista que está voltada para o

9
Elas aconteceram em sistema de rodízio: as cursistas foram separadas em três grupos com
cerca de 23 participantes em cada, com cronograma que permitiu a todas frequentarem as três
oficinas
10
Opta-se por utilizar o termo no gênero feminino, uma vez que as mulheres compõem a maioria
avassaladora de profissionais que atuam no campo da Pedagogia.
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alcance de determinados objetivos definidos previamente ao momento da sua
discussão.
A literatura na escola tem sido marcada por experiências que, muitas vezes,
descaracterizam-na como arte, como possibilidade de fruição estética e emocional,
como necessária à condição humana. Reyes (2012, p. 19) explica que:

[...] os diversos tipos de escritos produzidos pelos alunos são


testemunhas do divórcio entre literatura e vida: de um lado, os diários
íntimos, as notas e os bilhetes com mensagens de amizade ou de amor
trocadas pelos jovens, as letras das canções da moda, os papeizinhos
que circulam clandestinamente durante as aulas e aos quais agora se
unem outros, que vão à velocidade do Messenger. De outro,
indiferente, segue fluindo o jargão oficial: o resumo do livro, a redação
insossa sobre as férias, as análises literárias e até os contos escritos
a pedido do professor, que raras vezes conseguem se afastar do
estereótipo e ir em busca de uma voz interior para expressar emoções
verdadeiras. A máscara da linguagem escolar serve quase sempre
para nos encobrirmos e quase nunca para nos revelarmos, a nós
mesmos e aos outros.

Não é nessa perspectiva que concebemos a presença da literatura na escola,


cuja presença nas experiências escolares das crianças de zero a cinco anos é
fundamental por se constituir um direito inalienável do ser humano. Cândido (1995)
aponta a literatura como um dos bens que não podem ser negados a ninguém - como a
alimentação, moradia e segurança -, por assegurar o equilíbrio e integridade espiritual
humana.
A literatura é um direito das crianças não porque elas ampliarão seu vocabulário,
aprenderão regras morais, ou se tornarão pessoas eruditas, mas porque a literatura lhes
possibilitará entrarem em contato com os maiores dilemas, tensões, alegrias e prazeres
que a vida os pode apresentar. A literatura possibilita a conexão com sentimentos que,
frequentemente, não são compreendidos pelas vias da razão. Envolvidos por um
determinado personagem e suas aventuras, o leitor pode identificar temores, tristezas,
desejos que, muitas vezes, nega ou não se permite sentir com suas faces desnudas.
Cândido (1995, p. 244) aponta que a literatura “[…] humaniza em sentido profundo,
porque faz viver.”
A fim de enriquecer ao máximo a experiência da criança pequena com o livro,
“os pais, professores e outros leitores desempenham um papel decisivo, pois nessa
faixa etária a liberdade de viver as palavras e de aprender a lê-las depende do olhar de
um sujeito mais experiente” (BAPTISTA; NORONHA; CRUZ, 2013, p.17). Esse
processo pode ser denominado de mediação de leitura literária, no qual o adulto

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mediador pode valer-se de todas as ferramentas para oportunizar a vivência da criança
com a literatura, além de disponibilizar-se a todos os seus possíveis desdobramentos.
Garantir a presença da literatura na Educação Infantil e a formação das crianças
como leitoras de literatura prescinde do acolhimento aos pontos de vista, aos
pensamentos divergentes, aos afetos e desafetos por uma determinada história. Não
há um único modo de compreender uma história, nem de senti-la. O que importa é a
experiência de cada criança diante de um livro, e para isso, não há certo ou errado.
Partindo da compreensão de que o livro é um artefato cultural e que a cultura é
composta de sentidos construídos pelos sujeitos que compartilham modos de ser e de
pensar, organizando-se em grupos, justifica-se a importância e necessidade de que as
crianças conversem e exponham seus pensamentos enquanto ouvem a leitura de uma
história. Muitas vezes, o que parece uma interrupção na leitura pode contribuir bastante
para que elas ampliem as possibilidades de sentidos que estejam construindo sobre a
obra. Isso revela o motivo pelo qual pedem para ouvir a mesma história repetidamente:
para que possam elaborar os múltiplos sentidos que este objeto multimodal11 pode lhes
suscitar.
No contexto da Educação Infantil, é importante que as professoras conheçam as
obras previamente e que a seleção de livros passe por uma análise crítica da qualidade
textual, temática, gráfica e editorial. Garantir espaços acessível destinados aos livros
para as crianças pequenas, nas bibliotecas ou mesmo nas salas de aula, é essencial
para assegurarmos o direito delas à literatura.

Objetivos
No decorrer do estudo do caderno 7 da coleção “Leitura e Escrita na Educação
Infantil” (BRASIL, 2016) intitulado “Livros infantis: acervos, espaços e mediações”, uma
das estratégias adotadas foi a realização das oficinas voltadas para a discussão sobre
bibliodiversidade. O estudo inicial contou com discussões sobre o conceito de literatura,
o seu lugar no processo de constituição dos seres humanos, os aspectos da mediação
literária para bebês e crianças pequenas, o Programa Nacional Bibliotecas Escolares –
PNBE12 - e critérios para seleção destes acervos.

11
O termo multimodalidade é usado para designar os diversos modos de representação e
comunicação, que se relacionam na construção do sentido. No caso dos livros de literatura,
refere-se à articulação entre texto verbal, ilustrações e o próprio objeto livro (suporte)
(PIMENTEL, 2016, p.57).
12
O PNBE – Programa Nacional Biblioteca da Escola, vigente de 1997 à 2014 no Brasil, teve
como objetivo principal “democratizar o acesso a obras de literatura infantis e juvenis, brasileiras
e estrangeiras, e a materiais de pesquisa e de referência a professores e alunos das escolas
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A realização das oficinas veio completar este estudo, privilegiando uma
metodologia ativa em que as participantes pudessem se envolver na reflexão e estudo
sobre três aspectos principais para a seleção e constituição dos acervos literários
pessoais e institucionais: a qualidade gráfica; a qualidade textual e temática; e a
diversidade tipológica.
Levando sempre em conta os aspectos textual, temático e gráfico na qualidade
de uma obra literária, e a sua diversidade tipológica, os objetivos das oficinas foram:
apresentar os critérios da coleção “Leitura e Escrita na Educação Infantil” que
caracterizam obras literárias de boa qualidade; criar oportunidade de reflexão do que se
constitui como qualidade, subsidiada pelos critérios apontados na coleção; oportunizar
às cursistas o contato com amplo acervo de livros de literatura infantil considerados de
boa qualidade; e problematizar os critérios de escolhas das cursistas das obras literárias
oferecidas às crianças da Educação Infantil.

Desenvolvimento
A estruturação das oficinas teve como eixo central o conceito de
bibliodiversidade. O termo bibliodiversidade indica pensar a constituição de acervo que
garanta a seus leitores o acesso à diversidade de livro, com grande variedade de tipos
e gêneros, formato, materialidade, autoria, técnicas de ilustração, estilos literários,
época e graus de complexidade. A bibliodiversidade está relacionada também à
variação temática, tais como culturais, étnicas, raciais e de gênero. Segundo Carrasco
(2014, p. 40), “[...] para que os leitores desfrutem desses materiais e ponham neles sua
atenção e sua emoção, devemos assegurar que esses livros sejam de qualidade.
Bibliodiversidade e qualidade são os dois requisitos básicos na construção de
bibliotecas para a primeira infância”.
A construção dos acervos envolve compreender que escolher um livro passa
também pelo gosto pessoal, pelos sentimentos que são despertados em cada um. Ao
propor o debate em torno do termo “qualidade literária”, as oficinas de formação
objetivaram levantar possibilidades de critérios de análise das obras. Um importante
critério é com relação à forma como aquela obra pensa a criança: ela aposta em uma
criança potente que suporta desafios e complexidades, ou é uma visão subestimada da

públicas brasileiras” (PAIVA, 2016, p.21). Ao longo dos anos de sua vigência, foram realizadas
diferentes ações de distribuição de livros de literatura para escolas de todo o país. O programa
lançava editais anuais, elencando critérios e categorias para inscrição e seleção. Os livros
inscritos passavam por um rigoroso processo de análise, para então, serem selecionados
aqueles que seriam distribuídos pelo programa no ano de referência. O PNBE para a Educação
Infantil aconteceu nos anos de 2008, 2010, 2012 e 2014.
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infância, que utiliza linguagem infantilizada e textos dotados de explicações e
modulações de comportamento?
Outro importante critério de análise sobre a qualidade se refere aos aspectos
gráficos e estéticos das ilustrações e do próprio objeto livro. As crianças têm direito ao
acesso de imagens desafiadoras, que não sejam padronizadas e estereotipadas, mas
sim “originais, sugestivas, significativas, complexas. São essas imagens que deixam
espaço para a criança pensar, empreender reflexões, estabelecer conexões, divagar,
imaginar e, com isso, transcender as próprias imagens que tem diante de seus olhos”
(BORBA; MATTOS, 2011, p.216).
É importante considerar ainda que, na composição dos acervos, haja livros
relacionados ao projeto de leitura que se tem ou que se pretende desenvolver com as
crianças. A elaboração desse projeto deve levar em conta a constituição de uma
biblioteca pensada para e com as crianças, que sustente toda a diversidade e
complexidade que a literatura oferece e às quais elas têm direito. Ou seja, montar um
acervo bibliodiverso não é tarefa simples, uma vez que é preciso conhecer bem os livros
e selecioná-los a partir de critérios adequados, visando contribuir com a formação dos
pequenos leitores.
Diante disso, para a estruturação das oficinas foi utilizada como referência a obra
da editora Banco del Libro (2011), da Venezuela: Muchos libros para niños: un guía para
reconocerlos y nombralos13. A partir desse manual, foi elaborado um organograma que
elenca algumas classificações descritas na publicação. Ressalta-se que essa
organização se deu por meio de uma tradução livre e acrescida de outros estudos de
pesquisadores, tais como Maria da Glória Bordini (1986), que classifica a poesia infantil;
e Graça Ramos (2011), que estuda a ilustração.

13
Tradução nossa: “Muitos livros para crianças: um guia para reconhecê-los e nomeá-los”.
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Figura 1 - Organograma de estruturação das oficinas.

Oficina 1: O livro como objeto cultural


Atualmente, a maioria dos livros infantis são considerados como objetos
multimodais, abrangendo uma diversidade significativa de modos de comunicação,
como a escrita verbal, a visual (imagens, fotografias e outros) e a plástica (formatos,
tamanhos, tipos de papel, diferentes materiais e outros). Um livro de literatura infantil
resulta, portanto, de uma construção híbrida em que se misturam elementos diferentes
para formar suas partes e contribuir na construção de sentido pelo leitor. As ilustrações,
o projeto gráfico e o texto verbal conjugam-se para compor cada livro, ampliando as
possibilidades interpretativas dos leitores e convidando-os a participarem ativamente
com suas percepções sobre os detalhes e os “não-ditos” da narrativa.
A partir do conceito de livro como um objeto multimodal, a oficina “O livro como
objeto cultural” discutiu elementos relativos ao projeto gráfico da obra, levando em conta
os aspectos materiais do objeto livro (tamanho, formato, material, elementos
paratextuais). Por ser o livro infantil considerado um objeto que extrapola o uso da
linguagem verbal, as ilustrações também foram abordadas nas oficinas como texto
fundamental à leitura da obra.
Segundo Moraes (2008, p. 49), o projeto gráfico materializa diversas escolhas
das pessoas envolvidas na elaboração de um livro, que concretizam tanto os aspectos

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físicos, que ela chama de corpo, e um suposto “jeito de ser”, que ele chama de alma 14.
Cada informação e detalhe são cuidadosamente pensados de modo a encontrar a
maneira mais interessante de construir esse artefato. Os ilustradores, por seu papel na
construção da narrativa visual do livro, são também autores da obra. Os editores, muitas
vezes, também participam desse processo. Assim, para a formação do leitor de
literatura deve-se compreender que a escolha desses elementos não ocorre ao acaso,
mas sim de forma cuidadosa para se articularem à narrativa.
Para além dos elementos paratextuais, a oficina também discutiu as ilustrações
e a relevância dessas na composição do livro. A linguagem visual nos livros ilustrados
usa da composição, para dar pistas acerca de elementos da narrativa, e de outros
elementos gráficos, que ajudam a dar ritmo, forma e corpo às ilustrações (linhas, cores,
volumes, margens, superfície e luz). É exatamente a composição de todos esses
elementos articulados na dimensão espacial e temporal que pode conferir narratividade
a uma imagem.
Apreciar imagens e realizar interpretações, relacionando-as ao texto verbal, são
processos extremamente complexos, desenvolvidos por meio de aprendizagens e das
experiências das crianças. Como asseverou Pimentel (2016, p.77), “podemos dizer que
fomos iniciados na leitura de imagens e de representações, que não são óbvias desde
o primeiro contato com elas.” Por isso, as múltiplas formas das crianças atribuírem
sentido às ilustrações e relacionarem-nas com o texto verbal para construírem sua
compreensão da narrativa devem ser objeto de mediação na Educação Infantil. Os livros
ilustrados constituem uma categoria particularmente importante a esse segmento, pois
a relação entre texto verbal e texto imagético possibilita a ação autônoma das crianças
sobre a história como leitoras ativas que interpretam as ilustrações e as relacionam ao
texto verbal lido pelo adulto. O mediador de leitura é fundamental para fomentar e
estimular o interesse das crianças pela expressão e leitura de imagens. Esse processo
permite à elas experimentarem a criatividade e a autoria dos pensamentos, em meio a
observações e fruições estéticas: “o olhar [que apreende] as formas e cores em sua
ocupação espacial, sua matéria plástica, gráfica e [...] sua forma de apresentação, seus

14
Decidir a maneira mais interessante de compor um livro e sua narrativa envolve escolhas
relacionadas ao tipo da letra, seu tamanho, cor, a distribuição do texto pelas páginas; a utilização
de páginas simples ou páginas duplas; a utilização de ilustrações e a sua conjugação com o
texto verbal; o tipo de papel; tamanho e formato do livro; se ele terá algum corte especial; a
organização da capa e da contracapa; a utilização das folhas de guarda; se terá orelhas ou não;
informações dadas na sinopse; informações sobre o autor e ilustrador; sumário; paginação.

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modos de expressar sentimentos ou apresentar lugares, situações e ideias”
(FITTIPALDI, 2008, p.94).
Uma vez que as professoras são importantes mediadoras de leitura, a oficina
destacou os elementos acima citados, instigando as cursistas a pensarem sobre como
interferem e se relacionam com a narrativa. Além disso, como abordariam tais questões
com as crianças? No processo de mediação literária, evidenciou-se a necessidade de
se apresentar a capa, título, nome do autor e ilustrador, ler a sinopse do livro e conversar
sobre as hipóteses e impressões que suscitam. Observar atentamente as ilustrações da
capa e se essa tem continuidade da contra capa, explorar as folhas de guarda. Todo
esse percurso é importante na compreensão e valorização do objeto livro, além de
serem elementos que auxiliam a construção da narrativa.

OFICINA 2: O que ler para bebês e crianças pequenas?


Na segunda oficina foram apresentados aspectos relacionados à qualidade
literária dos livros de literatura para a infância, se atendo especificamente à qualidade
textual e a temática. Além de ampliar os critérios para a avaliação de obras literárias,
objetivou-se contribuir para a composição diversificada dos acervos pessoais e
institucionais.
É importante ressaltar que um livro de literatura infantil se classifica como tal por
constituir uma forma de comunicação que prevê a faixa etária do possível leitor, atende
aos seus interesses e respeita as suas possibilidades. A estrutura e o estilo das
linguagens verbais e visuais procuram adequar-se às experiências da criança. Os temas
são apresentados de modo a corresponder às expectativas dos pequenos e, ao mesmo
tempo, superá-las, mostrando algo novo. A literatura infantil apresenta diversas
modalidades de processos verbais e visuais. Discutir a qualidade para tal envolve
compreender que esse conceito é resultado de construções históricas e sociais, além
de ser atravessado por valores e ideologias. Para além disso, pensar sobre qualidade
em literatura exige a reflexão: bons livros para quem? Nessa oficina, discutiu-se então,
critérios para a análise das obras e constituição dos acervos, considerando como obras
de qualidade aquelas que, primeiramente, respeitam seu público, permitindo ao leitor
infantil possibilidades amplas de dar sentido ao que lê.

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Sobre a qualidade textual, Paiva (2016) ressalta os aspectos éticos, estéticos e
literários15; na estruturação da narrativa, poética ou imagética; e em uma escolha
vocabular que não só respeite, mas também amplie o repertório linguístico de crianças
na faixa etária correspondente à EI. Já a qualidade temática manifesta-se na
diversidade e no tratamento dado ao tema, no atendimento aos interesses das crianças,
aos diferentes contextos sociais e culturais em que vivem e ao nível dos conhecimentos
prévios que possuem.
A partir de uma análise dos aspectos temáticos e textuais de uma obra, é
possível observar a originalidade da mesma e sua adequação às crianças; seu potencial
de ampliação das referências do universo infantil; a maneira lúdica e estética com que
o texto é elaborado. É importante observar, também, se o texto propicia uma experiência
significativa de leitura autônoma ou mediada pela professora e se oferece elementos
ricos para análise das imagens e sua relação com o texto escrito. O grau de abertura
que convide à participação criativa da criança na leitura é outro fator essencial. Somado
a isso, o tratamento dado aos diferentes contextos socioeconômicos, culturais,
ambientais e históricos que constituem a sociedade humana e a possibilidade de
ampliar as referências estéticas, culturais e éticas das crianças, a fim de contribuir para
a reflexão sobre a realidade, sobre si mesmo e sobre o outro.
A qualidade de livros para a infância pode ser entendida como uma articulação
dos diversos elementos acima citados, que, em síntese, fundem-se no caráter artístico
da literatura. Pensar a literatura como possibilidade de desenvolvimento da
sensibilidade e da fruição estética, a caracteriza como artefato humanizador. A
constituição dos acervos deve ser pensada a partir de obras que contribuam para que
seus leitores ampliem o olhar sobre o mundo, podendo fazê-lo a partir de sua ótica e
encontrando com outras perspectivas.

Oficina 3: Tipologia do livro para a infância


A terceira oficina proposta no curso de formação do LEPI teve como tema central
os critérios de classificação tipológica dos livros literários. Estudar sobre a tipologia do
livro para a infância é fundamental no processo de conhecer bem os livros que são lidos
em voz alta para as crianças e que estão disponíveis para suas próprias leituras e
manuseio.

15
Em seu texto “Livros infantis: critérios de seleção – as contribuições do PNBE”, Paiva (2016)
apresenta critérios de qualidades textual e temática para livros infantis, a partir dos quais foram
selecionados os acervos do PNBE.

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De acordo com a publicação Muchos libros para niños: un guía para
reconocerlos y nombralos (2011), são considerados dois tipos de livros infantis: livros
de literatura e livros de informação. Os livros de informação ou livros informativos são
instrumentos importantes para satisfazer às necessidades de informação que se
apresentam para as crianças, desde os primeiros meses de vida, e que as
acompanharão ao longo de sua trajetória como leitoras. Eles contemplam desde
aqueles que tratam de temas relacionados ao cotidiano dos bebês e das demais
crianças pequenas, até as obras que analisam métodos de investigação, aprofundam
determinados conteúdos científicos, apresentam e discutem dados e conclusões de
investigações, permitindo aos leitores ampliar seu conhecimento sobre determinada
área ou temática16.
Dentre os livros informativos estão os chamados livros de primeiros conceitos,
aqueles destinados aos bebês, por possuírem vocabulário básico do seu cotidiano. Eles
apresentam imagens de objetos típicos do cotidiano infantil, podendo ou não ser
acompanhadas por substantivos que as nomeiam. As ilustrações, as fotografias e as
imagens presentes nesses livros não necessitam ser pueris nem exclusivamente
modelares (GALVÃO, 2016). A simplicidade das imagens, que em geral caracteriza
essas produções, não se confunde com ausência de criatividade, mas quando se trata
de obras de qualidade demonstram preocupação estética nos elementos que
evidenciam a marca autoral.
Os livros de literatura, por sua vez, considerados pela presença intensa da ficção
e fantasia, podem ser divididos em três grandes gêneros: narrativa, poesia17 e teatro.
Essas três grandes divisões no campo da literatura estão postas desde Aristóteles e se
aplicam aos livros para crianças. Acrescentam-se a essa divisão clássica os livros de
imagem, aqueles cuja narrativa é exclusivamente visual, sem presença do texto verbal.
Diante dessas possibilidades de classificação discutidas na oficina, levantou-se
o desafio com relação às especificidades dos livros informativos. Esses livros, muitas
vezes, são confundidos com livros de literatura, por terem ilustrações e tratamento
gráfico semelhantes. Ambas as categorias podem contar com livros de pano, plástico,

16
São exemplos os livros de conceitos iniciais, enciclopédias, dicionários, numerários,
alfabetários, livros históricos, biografias, os que abordam conteúdo das ciências naturais.

17
Vale ressaltar que, no grupo das poesias, incluem-se todos os textos que apresentam um
trabalho com a linguagem, como rimas, brincadeiras com os significantes e formas específicas
em verso e ritmo. São exemplos: poemas, poema concreto, cordel, trava-línguas, parlendas,
prosas rimadas, adivinhas, contos cumulativos, brincos, cantigas de roda e acalantos.

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cartonados, e, em casos de maior investimento na forma, livros-brinquedos, que
investem em projetos gráficos com abas a serem levantadas, com dobraduras ou outros
recursos que pretendem tornar a leitura mais atrativa. Para garantir a distinção entre
livros informativos e literários, a primeira observação a fazer é sobre a natureza do texto
e sua função. Ou seja, embora se pareçam com livros literários, neles há relevância no
tratamento de conceitos e a presença da intenção informativa.
O fato de priorizarem a veiculação de conceitos e conteúdos não significa que,
nos livros informativos, deva-se renunciar à qualidade estética. Muito pelo contrário, a
escolha de um bom livro informativo, além de averiguar a justeza e a fidelidade das
informações disponibilizadas, deve ser rigorosa também em relação à qualidade dos
aspectos gráficos, tais como as ilustrações, a relação das imagens com os conteúdos,
as fontes, o material e o formato do livro, entre outras.

Conclusão
As oficinas de formação no Projeto Leitura e Escrita na Primeira Infância foram
importantes recursos propulsores na formação continuada das cursistas. O debate em
torno dos conceitos, critérios para seleção e demais elementos fundamentais à
concepção do livro para a infância possibilitou a ampliação e ressignificação dos
saberes das cursistas. A metodologia usada favoreceu o diálogo em pequenos grupos,
e possibilitou o manuseio de diversos livros para a infância, fundamental para a
articulação concreta das temáticas em debate.
Ao longo das oficinas, o retorno oral das cursistas foi positivo. Consideraram de
grande relevância as discussões propostas e a importância desses e outros espaços de
formação. Foi observada uma mobilização para descobrir e conhecer novos livros, e
consequentemente, repensar a constituição dos acervos e as possibilidades de
mediação literária, inclusive relativas à valorização dos elementos paratextuais e das
ilustrações.
Como parte do curso de formação Leitura e Escrita na Primeira Infância em Belo
Horizonte, um dos grandes desafios consiste em pensar metodologias e arranjos para
que essas discussões aconteçam e se perpetuem nas instituições da Rede Municipal
de Educação da cidade. Para além disso, sabe-se que essas oficinas não esgotam os
debates relativos à literatura. Portanto, há sempre o convite às cursistas, professoras e
demais profissionais envolvidos com a infância a participarem dos eventos promovidos
pela FaE/UFMG, em especial os de responsabilidade da Bebeteca, Ceale (Centro de
Alfabetização e Letramento) e Gpell (Grupo de Pesquisa do Letramento Literário).

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Referências
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nombrarlos. Caracas: Banco del Libro, 2001.

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Maria Caligiorne. Letramento Literário na Primeira Infância. In: Anais do CENA, volume
1, n. 1. Uberlândia: EDUFU, 2013.

BORBA, Ângela Meyer; MATTOS, Margareth Silva de. A leitura do livro de imagem com
crianças de 0 a 6 anos: um convite à narrativa e à imaginação. In: GONÇALVES Adair
Vieira; PINHEIRO, Alexandra Santos. (Org.). Nas trilhas do letramento: entre teoria,
prática e formação docente. 1. ed. Campinas, Mercado de Letras, 2011, p. 205-225.

BORDINI, Maria da Glória. Poesia infantil. São Paulo: Ática, 1986.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Coleção Leitura e


Escrita na Educação Infantil. Brasília, SEB/MEC, 2016.

CÂNDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CÂNDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed.
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Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
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MORAES, Odilon. O projeto gráfico do livro infantil e juvenil. In: OLIVEIRA, Ieda de. (org)
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DCL, 2008. p. 49-59.

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BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Coleção Leitura e
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PIMENTEL, Cláudia. E os livros do PNBE chegaram… situações, projetos e atividades


de leitura. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica.
Coleção Leitura e Escrita na Educação Infantil. Caderno 7. 2016.
RAMOS, Graça. A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual.
Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

REYES, Yolanda. Ler e brincar, tecer e cantar. Literatura, escrita e educação.


Tradução: Rodrigo Petrônio. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.

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DO VIVIDO PARA O ESCRITO: EXPERIÊNCIA COM A ESCRITA
DE CARTAS NO ENSINO FUNDAMENTAL

Alison Azevedo Souza, Escola Municipal Vereador Weld de Souza Maia.


Lilian Cláudia Pereira da Silva, Escola Municipal Carlos Drummond de Andrade
Ludimila Corrêa Bastos, Escola Municipal Vereador Weld de Souza Maia.

Eixo Temático: Grupo Temático 1 - Experiências na educação básica com a escrita do


texto literário.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Prezados professores,
Não, não! Assim parece demasiado formal. Talvez fosse melhor...
Queridas professoras!
Será que..., não..., parece íntimo de mais... e nem todos os professores são mulheres!
De qualquer maneira, uma coisa é certa: começando assim, o que se espera é que o
texto que venha a seguir TRATE SOBRE CARTAS. (SOTO, 2002)
As inúmeras inovações tecnológicas e a intensa produção de mercado do século
XXI nos emergiram em uma gama de conquistas e de avanços nunca vistos na história
da humanidade e que modificaram, além do nosso estilo de vida, o nosso modo de
comunicação. Hoje, mensagens instantâneas feitas pelo Telegram, Whatsapp,
Messenger18 e tantos outros chamados aplicativos de comunicação permeiam a vida de
milhões de brasileiros que possuem acesso à internet, mas nem sempre foi assim. No
século passado, a comunicação era fortemente marcada pela oralidade e organizada
pelo registro e trocas das cartas, sendo estas, o foco deste trabalho. É importante
salientar que trataremos aqui, sempre, de cartas pessoais.
Sendo assim, diante da necessidade de estudos sobre diversos gêneros textuais
em duas turmas de segundo ano do primeiro ciclo, e pelo fato de as cartas
representarem um suporte textual adequado ao nosso propósito, além de sua produção
permitir a exposição de como os sujeitos pensam, agem e se organizam em relação à
escrita é que foi proposto o estudo do gênero cartas e, consequentemente, a
organização de um projeto de correspondências.

18
Aplicativos de comunicação instantânea usados em aparelhos celulares.
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Para elucidar como se deu o desenvolvimento do projeto nestas turmas, faz-se
necessário trazer primeiro as discussões feitas por Quintiliano (2002) sobre gêneros
textuais. Posteriormente, faremos uma breve discussão sobre o gênero cartas e o
contexto literário à luz de Ionta (2011), Bakhtin (1992) e Quintiliano (2002). Por fim, mas
não menos importante, relataremos como se deu a experiência em sala de aula com
este gênero.
Ademais, é precisar antecipar que este texto traduz como se configurou a prática
de ensino de gêneros textuais na educação básica e compartilha como o gênero cartas
pode contribuir para que o processo de escrita de estudantes em fase de alfabetização
seja mais prazeroso e criativo, já que a escrita é um processo primordial nas relações
humanas. Dessa forma, o presente trabalho não traz conclusões e nem tem a pretensão
de apresentar métodos de ensino, mas pretende compartir o vivido nas salas de aula,
com a intenção de que tal vivência possa inspirar e/ou encorajar outras práticas que
envolvam a escrita criativa e a elaboração de sentidos nas práticas escolares.

CARTAS: GÊNERO TEXTUAL


Os gêneros são formas textuais que mudam ao longo do tempo e se
reconfiguram conforme as necessidades de comunicação do seu povo e do seu tempo,
à medida que a língua falada e escrita se faz e se refaz. Sendo assim, tomando por
base uma concepção sociointeracionista, compreendemos que a linguagem como
atividade social é dialógica e que são os eventos comunicativos que toda sociedade
institui que proporcionam trocas e construções em uma língua viva e ativa.
A língua, então, assume mudanças e estabilidades. Sendo os gêneros
produções sociais de linguagem, eles atendem e acompanham as mudanças sociais,
na medida que os sujeitos falantes se apropriam e modificam o uso da linguagem e
internalizam os discursos existentes, transformando-os em gêneros textuais diferentes.
Para Quintiliano (2002), todo gênero estruturado e sistematizado é basicamente
fruto de uma prática sociocomunitiva bem-intencionada, verbalizada e popularizada
pelos falantes da língua. Ou seja, o gênero textual linguisticamente organizado é
nascido de uma prática popular que permite que o locutor transmita seu recado e o
interlocutor entenda a transmissão.
As cartas são assim: desejam transmitir seu recado de forma clara e imprimem
a imagem e a marca de determinado povo e/ou tempo. Nas histórias das práticas
comunicativas, as cartas foram um dos primeiros gêneros textuais que viabilizaram a
construção de vínculos e relações à distância. Elas traduziam uma nova forma de

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experimentação social, que não era baseada no aqui e no agora, mas que exigiram uma
complexa reorganização dos padrões de comunicação. Pessoa (2002) aponta que as
cartas na antiguidade clássica — séculos XVI a XVIII — funcionavam como jornais,
como cartas públicas que eram passadas de mão em mão para trazer notícias e
comunicados e este modelo perdurou por anos a fio.
A partir do século XIV, a troca de cartas entre os religiosos e místicos, que
compartilhavam experiências espirituais íntimas, contribuiu para que este gênero se
popularizasse de forma individual e assumissem um caráter privativo de troca de dados
e informações.
Santos e Barbosa et al (2018), configuram que as cartas se popularizaram no
Brasil no século XX, pelo menos nas áreas onde os aparatos tecnológicos demoraram
a chegar. Em alguns municípios baianos, lavradores trocavam escritas para mandar
notícias e solicitar favores, o que permitiu que tivéssemos um arcabouço de material
para análise e estudos sobre este gênero19.
Hoje, as cartas sobrevivem e resistem basicamente como a “carta do leitor”,
presente nos editoriais de revistas que circulam periodicamente para trazer elogios,
dúvidas e sugestões pertinentes à temática da própria revista. Mas, com a LDB — Lei
de Diretrizes e Bases da Educação — e com a BNCC — Base Nacional Comum
Curricular — o trabalho com a Língua Portuguesa na educação básica deixa de ser
focado somente no tradicional estudo gramatical, para ser trabalhado em situações reais
de uso da língua, usando como ponto de partida os textos.
Neste sentido, o ensino da língua passou a ser pensado como modelo de
interação e aí surgem as cartas como gêneros textuais, pois como aponta Marcuschi
(2008)

os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida


diária e que apresentam padrões sociocomunicativos característicos
definidos por composições funcionais, objetivos, enunciativos e estilos
concretamente realizados na integração de forças históricas, sociais,
institucionais e técnicas. [...]Como tal, os gêneros são formas textuais
escritas ou orais bastante estáveis, histórica e socialmente situadas.
(MARCUSCHI, 2008, p. 155).

Então, a língua, trabalhada a partir da oralidade e estruturada pelos gêneros,


cria um pano de fundo para que a língua seja trabalhada de forma que ela tenha

19
Para estudos aprofundados ver Hugo da Silva Santiago em Um estudo do português popular
brasileiro em cartas pessoais de “mãos cândidas” do sertão baiano. 2012. Dissertação
(Mestrado em Estudos Linguísticos) – Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de
Santana, 2012.
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significado e permita aos estudantes uma apropriação de saberes que vão para além
dos linguísticos e gramaticais.

CARTAS: GÊNERO LITERÁRIO


Para Bakhtin, os gêneros apresentam um grau de instabilidade, devido a isso, o
autor os definiu como “tipos de textos relativamente estáveis”. É essa estabilidade
presente nos gêneros que nos permite diferenciar uma notícia de uma reportagem, uma
receita de um anúncio. É ela também que nos ajuda a identificar os gêneros como
literários ou não.
Além disso, a imensa heterogeneidade presente nos gêneros fez com que
Bakhtin classificasse-os em primários e secundários. Os primários aludem a situações
comunicativas cotidianas, espontâneas, não elaboradas, informais, que sugerem uma
comunicação imediata. As cartas são exemplos de gêneros primários. Ainda à luz do
autor

os gêneros primários, ao se transformarem componentes dos gêneros


secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma
característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade
existente e com a realidade dos enunciados alheios – por exemplo,
inseridos num romance, a réplica do diálogo do cotidiano ou a carta,
conversando sua forma e seu significado cotidiano apenas no plano do
conteúdo do romance, só se integram à realidade existente através do
romance concebido como fenômeno da vida literário-artística e não da
vida cotidiana. O romance em seu todo é um enunciado, da mesma
forma que a réplica do diálogo cotidiano ou carta pessoal (são
fenômenos da mesma natureza); o que diferencia o romance é ser um
enunciado secundário (complexo). (Bakhtin, 1992, p. 281)

Dessa forma, percebemos a fluidez das cartas pessoais, que também remontam
em gêneros literários epistolares.
A carta pessoal está presente no âmbito dos gêneros literários, que são
categorias dos textos literários, classificados de acordo com a forma e o conteúdo. Essa
definição foi feita por Aristóteles, em sua Arte Poética. Uma das classificações feitas por
Aristóteles foi a do gênero épico ou narrativo, em que há a presença de um narrador,
responsável por contar uma história na qual as personagens atuam em um determinado
espaço e tempo.
Diversos exemplos podem ilustrar a carta como gênero literário. O mais comum
é a Carta de Pero Vaz de Caminha, que foi um documento escrito pelo escrivão
português Pero Vaz de Caminha em 1º de maio de 1500, em Porto Seguro, Bahia. Nela,
o autor narra aquilo que presenciou ao desembarcar em terras desconhecidas. O
documento foi enviado ao rei Dom Manoel e contava sobre o achamento do Brasil. Tão
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importante esta carta tornou-se que é considerada o primeiro documento redigido no
Brasil, sendo o marco literário do País. A epístola faz parte da primeira manifestação
literária pertencente ao movimento do Quinhentismo.
Além da carta escrita pelo português Pero Vaz de Caminha, outros exemplos
colocam o gênero pertencente, também, à esfera literária, como os documentos
epistolares escritos por Paulo às comunidades religiosas que se formavam no século I
e as cartas enviadas e recebidas por Clarice Lispector, retratadas na obra
“Correspondências: Clarice Lispector”.
Portanto, é importante destacar que a constituição de um gênero literário
epistolar retrata a dinâmica de práticas comunicativas das cartas, cultivadas num dado
contexto de uma sociedade, como um fenômeno social e literário, variável no tempo e
no espaço.
Assim, nesta explanação sobre a constituição do gênero cartas e a sua
constituição como gênero literário, relataremos a experiência do trabalho desenvolvido
na educação básica utilizando o gênero carta como ferramenta e estratégia para
desenvolvimento da leitura e da escrita.

DO ESCRITO PARA O VIVIDO: A EXPERIÊNCIA

Alfabetização por meio de cartas

O “Projeto Cartas”, que originou este artigo, nasceu da necessidade de


desenvolver e possibilitar aos alunos do 2º ano do ensino fundamental a ampliação da
comunicação, da leitura e da escrita, além de proporcionar uma troca de saberes,
ampliação da capacidade de compreensão, de interpretação e de reflexão de modos de
vida e cultura.
O seu público alvo foram duas turmas de 2º ano do 1º ciclo do ensino
fundamental de dois municípios da região metropolitana de Belo Horizonte: Mário
Campos e Contagem.
O município de Mário Campos está localizado a aproximadamente 40 km do
centro de Belo Horizonte e possui atualmente cerca de 14.988 habitantes, conforme
estimativa do IBGE20. Trata-se de um município relativamente novo, emancipado em

20
Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/mario-campos/panorama, acesso em
15/08/2020, às 10h12min.
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1995, portanto, ainda em fase de crescimento. Sua principal fonte de economia é a
agricultura, com destaque para a plantação de hortaliças.
O município de Contagem, criado em 1916, também pertence à Região
Metropolitana de Belo Horizonte. Porém, é o terceiro município mais populoso do
estado, reunindo 668.949 habitantes segundo estimativa do IBGE de 2020 21 e com a
economia diversificada, contendo indústrias e um comércio amplo.
Em Mário Campos, está localizada a Escola Municipal Vereador Weld de Souza
Maia, que atende cerca de 600 crianças de 3 a 11 anos de idade, em média, em turmas
da Educação Infantil ao 5º ano do Ensino Fundamental.
Grande parte dos pais dos estudantes desta instituição não é alfabetizada, o que
gera a necessidade de que a escola busque diversas estratégias de comunicação com
essas famílias. Constata-se que são crianças, em sua maioria, com pouco acesso ao
lazer, devido às condições do município onde residem (não há cinema, parque,
shopping, etc.) e pela pouca vivência fora dele.
A Escola Municipal Carlos Drummond de Andrade, mais popularmente
conhecida como CAIC, localizada em Contagem, possui cerca de 1.000 alunos, de 4 a
14 anos, cursando do 1º período ao 9º ano do Ensino Fundamental. Os estudantes
dessa instituição de ensino possuem um poder aquisitivo diversificado, mas nitidamente
com mais acesso a opções de lazer e cultura, devido ao tamanho do município em que
a escola se encontra.
Após muito diálogo e diversas reflexões, os docentes das duas instituições de
ensino estruturaram as bases do projeto, definiram seus objetivos, conforme explicitado
acima, e alinharam quais as habilidades seriam trabalhadas nas duas escolas, distantes
uma da outra por 30 km e por tantas diferenças econômicas e culturais.
Em sala de aula, apresentou-se o gênero carta, introduzindo-o de forma
contextualizada, através de leitura e análise dos elementos que compõem esse gênero
textual. Durante as aulas, buscou-se evidenciar a importância desse meio de
comunicação e a valorizar a leitura e a escrita.
Durante cinco meses (agosto a dezembro de 2018), estudantes das duas
instituições realizaram a troca de cartas. As duplas que se corresponderiam foram
definidas através de sorteio realizado pelos docentes.
Inicialmente, houveram desafios, uma vez que os estudantes não tinham o
habito de escrever cartas e estavam em processo de amadurecimento da escrita. Assim,

21
Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/contagem/panorama, acesso em
17/08/2020, às 8h10min.
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foi levado para a sala de aula um meio de comunicação antigo, porém novo para os
estudantes das duas escolas, pois não eram familiarizados com ele, afim de que ele
fosse suporte para o desenvolvimento da leitura e da escrita.
A primeira carta produzida foi uma produção coletiva de ambas as turmas,
relatando um pouco sobre as respectivas escolas e turmas. Fomos, professores e
alunos, a uma agência dos Correios de cada cidade para postagem das cartas, com o
objetivo de apresentar aos discentes todo o processo, desde a selagem da carta, até a
chegada ao destinatário.
Os alunos da escola localizada no município de Contagem foram a pé até a
agência dos Correios, pois a distância era pouca. Já os estudantes de Mário Campos,
foram de ônibus até o centro da cidade para postagem da carta, uma vez que a escola
é localizada em uma área distante da região central.
A partir da segunda carta produzida, a escrita foi individual e nela, os estudantes
tiveram autonomia para escrever e iniciar o processo de estreitamento de laços entre
eles. As cartas foram pessoais, relatando um pouco da vida de cada criança, seus
sentimentos e vivências.
Nesse processo, os professores tiveram papel de grande relevância para
orientação e estímulo. Em todas as aulas em que o objetivo era o “Projeto Cartas”, foi
organizado um momento espontâneo de leitura compartilhada dos textos produzidos
individualmente, o que evidenciou um momento literário riquíssimo.
Vale ressaltar que com o projeto foi possível trabalhar a inclusão de crianças
com necessidades educacionais especiais, uma vez que uma das crianças possuía
Síndrome de Down. Devido as suas especificidades, a criança em questão não possuía
condições de produzir uma carta escrita, porém, com o auxílio dos professores, a
criança se correspondia através de desenhos. Por sua vez, a outra criança a responder
as cartas, apesar de já estar alfabetizada, fez suas castas também através de desenhos
e pinturas, proporcionando uma experiência ímpar no processo de inclusão escolar.
Durante cinco meses de correspondência, as crianças conheceram seus sonhos
e anseios, apenas por cartas. Somente na culminância do projeto se viram pela primeira
vez. Isso fez com que se criasse muita expectativa para esse momento.
Após cinco meses trabalhando esse gênero textual de forma empírica, era o
momento das crianças se conhecerem pessoalmente. Com a ajuda de parceiros foi
alugado um ônibus e em um primeiro momento, os estudantes da Escola Municipal
Vereador Weld de Souza Maia, de Mário Campos, realizaram uma visita à Escola Carlos
Drummond de Andrade, em Contagem.

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Nesse momento, foi quando os estudantes de ambas as escolas se conheceram
pessoalmente após meses de conversa por cartas. Para se identificarem, buscaram
associar as características físicas descritas nas cartas trocadas. Após esse momento
de identificação, conheceram cada espaço da escola visitada, tiveram um momento de
lazer na quadra e um lanche.
No segundo encontro, os estudantes da Escola Municipal Carlos Drummond de
Andrade foram até Mário Campos. Também conheceram o espaço físico da escola,
participaram de uma gincana entre as escolas e de um lanche de confraternização.
Os estudantes da escola de Mário Campos encantaram-se com a quantidade de
prédios, surpreenderam-se com o trânsito e contexto local tão diferente de onde
residem. Por sua vez, os estudantes de Contagem deslumbraram-se com as inúmeras
plantações de hortaliças, animais, como pequenos bois pela rua, e com a proximidade
com a Serra dos Três Irmãos.
Com isso, percebeu-se que apesar de a distância física entre as duas escolas
não ser muito grande e ambas estarem localizadas na região metropolitana de Belo
Horizonte, há uma distância grande entre o contexto cultural, econômico e social em
que ambas as escolas estão inseridas.

Considerações Finais
Como viu-se, as inúmeras inovações tecnológicas alteraram o modo de
comunicação entre as pessoas. As mensagens instantâneas e as novas tecnologias
fizeram com que meios de comunicação, como as cartas, fossem menos usados,
principalmente pelos mais jovens.
Diante disso, dentro de um estudo sobre Gêneros textuais, foi desenvolvido o
“Projeto Cartas” por docentes de duas escolas de municípios distintos da região
metropolitana de Belo Horizonte.
Tal projeto nasceu da necessidade de desenvolver e possibilitar a alunos do 2º
ano do ensino fundamental a ampliação da comunicação, da leitura, da escrita, além de
proporcionar uma troca saberes, ampliação da capacidade de compreensão, de
interpretação e de reflexão.
Constatou-se que o projeto, além de trabalhar a leitura e a escrita com os
estudantes do 2º ano, permitiu que fosse trabalhado o respeito à diversidade e
importância da inclusão, uma vez que nenhum estudante, independentemente de
qualquer especificidade, deixou de participar.

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Verificou-se que o maior desafio enfrentado, inicialmente, foi o de as crianças
não possuírem o hábito de lidar com a leitura e escrita de cartas em seus contextos
familiares. Diante disso, viu-se como os professores possuem papel de grande
relevância para orientação e estímulo.
Concluiu-se que é possível, por meio da escrita e leitura de cartas em sala de
aula, desenvolver as habilidades de comunicação, leitura, escrita, troca de saberes e
vivências, ampliação da capacidade de compreensão, interpretação, reflexão, além de
intercâmbio cultural entre estudantes de municípios distintos, ressignificando o gênero
textual cartas. Assim, pactuamos com Calkins (1989) ao afirmar que inspirar a escrita é
ajudar os estudantes a descobrirem que suas trajetórias são significativas e valem a
pena serem passadas para o papel, e que se o ajudarmos a selecionar seus tópicos,
seu gênero e sua audiência, podemos dar ênfase à escrita: as cartas revelaram esta
possibilidade.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília,


MEC/CONSED/UNDIME, 2017.

BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. LDB - Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro


de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996.

CALKINS, Lucy Mccormick. A arte de ensinar a escrever: o desenvolvimento do


discurso escrito. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 1989.

HOUAISS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva,


2001.

IONTA, Marilda. As cores da amizade: cartas de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga,


Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007.

MARCUSCHI, L. A.. A Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 3. ed.


São Paulo: Parábola, 2008.

PESSOA, Marlos de Barros. Da carta a outros gêneros textuais. In: DUARTE, Maria
EugênciaLamoglia; CALLOU, Dinan (Org.). Para a história do português brasileiro:
notícias de corpora e outros estudos. v.4. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da
UFRJ/FAPERJ, 2002.

QUINTILIANO, Jane Guimarães Silva. Um estudo sobre o gênero carta pessoal: das
práticas comunicativas aos indícios de interatividade na escrita dos textos. Belo
Horizonte, Faculdade de Letras da UFMG, 2002.

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Santos, E. S., Barbosa, G. M. O., Brito, R. C., Carneiro, Z. O. N., & Lacerda, M. F.O.
(2018). Gênero textual carta e ensino: considerações sobre a tradição epistolar.
Revista A cor das Letras, 19 (2), 189- 200. Doi: http://dx.doi.org/
10.13102/cl.v19i3.2043

SOTO, Ucy. Trabalhando com cartas. Boletim do Programa Salto Para o Futuro Série
Varal de textos, 2002.

Sites visitados:

http://docplayer.com.br/32858810-Um-ponto-de-partida-pode-ser-a-delimitacao-da-
nocao-de-genero.html, acesso em 18/06/2020, às 14h32min.

https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/mario-campos/panorama, acesso em 15/08/2020,


às 10h12min.

https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/contagem/panorama, acesso em 17/08/2020, às


8h10min.

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O GÊNERO CONTO POPULAR NA FORMAÇÃO DA ATITUDE
AUTORAL22

Angela Machado de Paula, UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de


Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências Câmpus de Marília, Agência de
fomento: CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

Eixo Temático: Experiências na educação básica com a escrita do texto literário

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente trabalho apresenta os resultados parciais de uma pesquisa de
doutorado, cuja investigação centrou-se no desenvolvimento da formação da atitude
autoral de alunos entre 9 e 10 anos, numa escola pública no município de Frutal/MG.
Portanto, nas funções de professora e de pesquisadora tenho direcionado minhas
pesquisas para a formação autora e leitora dos alunos nos anos iniciais do Ensino
Fundamental.
Sob este enfoque, esta pesquisa justifica-se pela necessidade de estudos
científicos que possam descobrir na prática como se formam e se desenvolvem a
constituição leitora e autora da criança no contexto escolar. Muitas têm sido as
investigações sobre como os alunos se apropriam da língua escrita utilizando os
gêneros discursivos, sobretudo como uma tarefa escolar desprovida de sentido e sem
relação com a vida. Esse modo de lidar com os gêneros revela uma concepção de
linguagem e de escrita desvinculada da vida e das relações sociais.
Dessa forma, esta pesquisa tem a finalidade de investigar como a autoria pode
ser desenvolvida em alunos na faixa etária entre 9 e 10 anos, por meio de atividades de
leitura e escrita de contos populares. Diante deste desafio, delimitei a problemática a
ser respondida por este estudo: como a escrita, na elaboração do conto popular, pode
provocar nos alunos o desenvolvimento como sujeito-autor?
Sabe-se pelas avaliações oficiais, bem como por estudos publicados sobre a
leitura e a escrita, que os alunos chegam ao final do 5º ano do Ensino Fundamental com

22
O gênero conto popular na formação da atitude autoral de alunos do 5º ano do ensino fundamental.
Professor e Orientador Dagoberto Buim Arena
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dificuldades para ler e escrever bem. O ensino da leitura e da escrita, a partir da
concepção de língua escrita como objeto vivo no processo de enunciação, considerado
como objeto cultural historicamente criado pelo homem de geração em geração, requer
do professor uma concepção clara de linguagem e fundamentos teórico-metodológicos
para planejar suas atividades pedagógicas. Se a escola ainda não dimensiona o papel
da leitura e da criação textual no desenvolvimento das crianças, particularmente no
desenvolvimento da escrita, é necessário realizar pesquisas que investiguem o que se
vem fazendo nos contextos escolares e o que as pesquisas de intervenção didática
podem fazer para contribuir para o ensino da língua materna na educação básica.
Esta pesquisa fundamenta-se nas contribuições de Vigotski (2000, 2001, 2010a,
2010b), que abordam o processo de apropriação da linguagem e da escrita por meio de
instrumentos e signos no desenvolvimento infantil, e pesquisadores da chamada escola
de Vigotski, entre os quais Leontiev (1988), que contribuirá com a teoria da atividade e
com o conceito de cultura. Tive ainda como referência os fundamentos de filosofia da
linguagem postos por Volóchinov (2017) e Bakhtin (2003, 2016) que subsidiam a
conceituação de enunciado e de gêneros discursivos. O conceito de conto será
desenvolvido de acordo com os estudos de Propp (1981) e as características de conto
popular serão discutidas com Cascudo (2001).
Trata-se de uma pesquisa, de caráter qualitativo, tendo no materialismo
histórico-dialético o caminho teórico-metodológico, isto é, o método criado por Vigotski
(2000) para a elaboração da psicologia histórico-cultural, é a nossa referência. O autor
apresenta alguns princípios à investigação dos fenômenos humanos: análise do
processo e não somente análise do objeto; análise que procura explicar e não apenas
descrever o fenômeno, e, por fim, uma análise do desenvolvimento que procura
reconstruir e retornar ao ponto de partida do desenvolvimento do fenômeno em estudo.
Nas palavras de Kosik: “Compreender o fenômeno é atingir a essência. Sem o
fenômeno, sem a sua manifestação e revelação, a essência seria inatingível. [...] A
realidade é a unidade do fenômeno e da essência”. (KOSIK, 2002, p. 16). Por isso, é
tão importante a atividade do pensamento teórico para atingirmos a concretude do real,
a totalidade, a coisa em si. O propósito fundamental do método materialista histórico-
dialético é que os fenômenos não podem ser tomados em sua imediaticidade, em sua
aparência.

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AUTOR E AUTORIA
Todos os campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem.
Segundo Bakhtin (2003), os enunciados refletem as condições específicas e as
finalidades de cada um desses campos. Todo enunciado é individual e por esse motivo
reflete a individualidade do falante (autor). O gênero mais favorável à expressão da
individualidade é o literário, ou seja, é na esfera literária que Bakhtin inicia a elaboração
de seu conceito de autoria. Na visão bakhtiniana, o autor não pode ser percebido como
uma pessoa física, mas como uma representação dela. Desse modo, considera
imprescindível atentar para a distinção entre o autor-criador e o autor-pessoa. O “autor-
criador, elemento da obra, [...] o autor-pessoa, elemento do acontecimento ético e social
da vida”. (BAKHTIN, 2003, p. 09). O autor-criador segundo Bakhtin, enxerga para além
do mundo representado, a partir de seu excedente de visão.
Nesse sentido, Bakhtin (2003) afirma que o autor-criador dialoga com outros
dizeres estabelecendo um contato entre o mundo real e o representado. Portanto, o
conceito de autoria, na visão bakhtiniana está baseado nas “relações entre os
enunciados e [...] dos enunciados com a realidade e com a pessoa falante (o autor)”.
(BAKHTIN, 2003, p. 324).
Tauveron (2014) também discute o conceito de autoria. Para ela,

O aluno não é possivelmente autor de fato, somente se ele souber que


a sua intenção artística vai provocar na classe uma atenção estética,
no professor e entre os seus pares. Somente se ele souber, [...] que
seu texto, fruto de uma liberdade criativa, vai ser objeto de uma leitura
semelhante àquela à qual se deve aos autores, uma leitura literária
atenta à fabricação do texto, ao grão e ao jogo de palavras, aos
espaços livres, à polissemia potencial, à novidade da descoberta
narrativa, à emoção suscitada pela narração ou pelo comportamento
de tal e tal personagem... e não somente aos erros de ortografia ou de
sintaxe. (TAUVERON, 2014, p. 90)

Essa estudiosa, de acordo com a citação, vê limitações no entendimento de que


um aluno possa ser plenamente um autor. Na verdade, a escola insere o aluno no longo
percurso da construção da autoria. Para Bakhtin (2003), ser autor pleno também é um
trabalho bem elaborado, porque se trata de dar acabamento ao texto, que só é possível
a partir de uma posição exotópica, com a qual instituirá um excedente de visão e, assim,
poder ver o todo da obra e firmar seu posicionamento, seu estilo, desempenhando uma
atividade estética.
Tauveron, (2014) de seu lado, cautelosa, afirma que:

Em nossa sociedade, em nossa escola, um homem (uma criança) que


pega pincéis e pinta um rosto sobre uma tela está pintando, um homem
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(uma criança) que pega sua flauta e compõe um trecho, ele faz música,
seja qual for sua habilidade artística ou a qualidade final do produto.
Mas, um homem (uma criança) que pega sua caneta para escrever
uma história não faz literatura. Gérard Genette, em A obra de arte, A
relação estética (1997) que é nossa referência central, afirma, ao
inverso, que toda ficção narrativa é constitutivamente literatura (o que
não prejudica em nada o valor dessa literatura, determinada pelas
esferas autorizadas: editores, críticos literários, universitários...),
porque ela deriva, como a tentativa do pintor ou do músico aspirante,
de uma intenção artística. (TAUVERON, 2014, p. 88)

Para essa pesquisadora, esta visão sobre a autoria tem o mérito de permitir se
pensar nela como um continuum e de a construir didaticamente, progressivamente:

Nós chamamos, então, aqui ‘autor’ o aluno que produz um texto


narrativo com uma intenção artística e o distinguimos do ‘escritor’, que
é um autor cuja intenção e o valor ou ‘mérito’ estético foram
reconhecidos em um contexto social e histórico dado e que detém
status oficializado (por exemplo, consta em um catálogo de editor).
(TAUVERON, 2014, p. 88).

Portanto, autorar é instaurar um momento de criação de um minucioso e


exaustivo acabamento de ideias, valores e ideologias. Por meio da autoria, o criador de
textos evidencia cada particularidade de suas vivências, ideais, e estilo próprio. O autor-
criador registra eventos da vida concreta de maneira refratada, reorganizada
esteticamente demonstrando que tudo que sabe foi mediado pelo contexto social e
histórico em que está inserido.

O EXPERIMENTO PEDAGÓGICO
Para atender ao objetivo de estudo dessa investigação me apoiei nos
procedimentos metodológicos utilizados por Vigotski e seus sucessores,
especificamente o experimento pedagógico, já aqui citado, para gerar dados e
promover, ao mesmo tempo, a aprendizagem dos alunos. A organização do
experimento pedagógico fundamenta-se no modelo de experimento pedagógico
proposto por Mukhina (1996), “destinado a comprovar a eficácia dos novos programas
e métodos do ensino e da educação”. (MUKHINA, 1996, p. 21). Vigotski (2000, 2010),
em suas investigações, empregou o “método genético causal”, também chamado de
experimento formativo.
De acordo Mukhina (1996), o experimento formativo era amplamente empregado
pelos psicólogos soviéticos, particularmente “[...] utilizado para estudar os processos e
qualidades psíquicos [e] é ao mesmo tempo um ensinamento, destinado a formar ou
aperfeiçoar essas qualidades e processos psíquicos”. (MUKHINA, 1996, p. 21).
Ela faz uma distinção entre o experimento formativo e o pedagógico:
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O experimento formativo na pesquisa psicológica não deve ser
confundido com o experimento pedagógico, destinado a comprovar a
eficácia dos novos programas e métodos do ensino e da educação.
Externamente são parecidos; nos dois casos ensina-se às crianças
algo novo e o resultado positivo do ensino confirma suposições
prévias. A diferença consiste no caráter das suposições; o psicólogo
faz suposições sobre os processos, qualidades e traços psíquicos da
personalidade no processo de desenvolvimento da criança; ao
pedagogo interessam os caminhos para obter bons resultados no
ensino e na educação de crianças. (MUKHINA, 1996, p. 21-22).

Meu propósito são as atividades pedagógicas, portanto, trata-se de um


experimento de natureza pedagógica, centrado na forma de organizar e desenvolver a
atividade de criação textual para promover o desenvolvimento de autoria.
Para Mukhina (1996), o estudo dos resultados tem como foco o:

[...] produto da atividade das crianças: seus desenhos, esculturas,


colagens, construções, trabalhos manuais, histórias e versos que
inventam. Nem todos têm o mesmo valor para o pesquisador. O que a
criança faz segundo as instruções diretas dos mais velhos permite
conhecer sua capacidade para entender e cumprir essas instruções,
seu grau de atenção, sua escrupulosidade etc. Muito mais importantes
são os resultados da atividade criadora, sobretudo os desenhos [ou
histórias] que a criança faz seguindo sua própria ideia. (MUKHINA,
1996, p. 22).

De acordo com Mukhina (1996), os desenhos [ou histórias] refletem as


particularidades da percepção da criança e [...] permitem, até certo ponto, determinar o
nível de desenvolvimento intelectual de seu autor. [..] O desenho [ou história] infantil
reflete claramente a atitude da criança em relação ao que a cerca. O ambiente influi na
escolha do tema e no modo de execução. (MUKHINA, 1996, p. 23).
A sua aplicação provocou o fenômeno a ser estudado em suas particularidades,
contradições e dinamicidade histórica. A proposta de atividades se organizou a partir da
realidade concreta e da criação das necessidades e motivos de escrita pelas crianças,
com foco nos atos de leitura de contos populares mineiros e atos de escrita de contos
populares frutalenses. No final de cada encontro, as crianças criaram seus contos
populares com o uso de notebooks e de tablets, 33 no total, que comporiam um livro de
contos populares a ser impresso em editora comercial, como realmente ocorreu. Geraldi
(2002) explica que quando as crianças sabem o objetivo de suas criações, quando
enxergam suas criações como uma atividade de linguagem, sabendo para quem
escrevem, criam as condições propícias para o desenvolvimento da formação da atitude
autoral.

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AS MARCAS DE AUTORIA NA CRIAÇÃO DOS CONTOS
Neste tópico, trato de apresentar a análise de uma das criações literárias
evidenciando os indícios de autoria materializadas no processo de escrita dos contos
de uma das alunas. Essas marcas me auxiliaram na compreensão do processo de
desenvolvimento da atitude de autoria a partir das múltiplas relações dialógicas
explicitadas nos contos populares.
Passo a apresentar a análise de um dos contos populares de Alice intitulado Dois
animais diferentes. Elege como personagens do conto dois animais, um cachorro e uma
galinha. A seguir apresento parte do nosso diálogo:

P: Sobre o que você quer escrever?


Alice: Ontem fiquei em casa pensando uma coisa.
P: O quê?
Alice: Meu outro avô, não é o que conta histórias para mim, não. É o outro, pai do meu pai. Ele
mora num sítio e vamos para lá quase todo final de semana.
P: Sei e aí?
Alice: Aí fiquei pensando se eu posso escrever um conto diferente, sem ser sobre um tombo?
P: Claro que pode.
Alice: Mas pode ser sobre animais?
P: Você pode escrever sobre o que você gostar e quiser.
Alice: É que lá no sítio do meu avô eu tenho um cachorro.
P: Ah é!
Alice: Sim. Eu posso criar uma história com meu animal de estimação?
P: Sim, pode!
Alice: Oba! (Diálogo 02/04/2018).

Alice parece não acreditar que tem liberdade para escrever sobre o que tem
vontade, porque sempre que vai escrever um conto novo, ela repete a pergunta e fica
admirada de poder escrever sobre sua vida, sua família e agora sobre seu animal de
estimação.
Analisamos agora a primeira versão do conto criado por ela.

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Figura 1: Primeira versão do conto Dois animais diferentes.

Dois animais diferentes

Era uma vez um cachorro, esse cachorro era bravo e nunca se apaixonou por ninguém.
Ele morava numa bela fazenda cheia de animais, ela se chama trovão o cachorro mais
bravo da fazenda toda, todos os animais fêmeas queriam ele, mais ele não queria
nenhuma delas.
Um dia chegou uma nova galinha na fazenda do Nando.
Trovão logo se apaixonou pela galinha, e foi falar com ela e logo disse:
_____Ola! sou Trovão o animal mais bravo e bonito da fazenda do Nando, Qual e seu
nome linda e bela senhorita?
_____É é, oi é mesmo sou linda, bom onde fica o salão de beleza aqui,isso éo parque
de diversão?me chamo linda por que sou linda.
______não bela senhorita, aqui não tem nada disso que a senhorita declamou!
_______então o que eu estou fazendo aqui?
Trovão começou a rir dela,e estava completamente apaixonado por ela.
Um dia Nando viu que a galinha tava gorda e cabia direitinho dentro da panela.
Nando foi para buscar ela.
Nando pegou ela com tudo,e falou:
_______você ta bem gordinha em!
Trovão ouviu e correndo mordeu Nando em sua perna e logo disse:
_______corra linda vá embora fuja vá vá logo!
Linda percebeu que ele gostava dela e logo disse:
______não Trovão nunca vou sem você agora que percebi que te amo só vo se você
for junto!
Nando chutou trovão longe e foi atrás de linda, mais não conseguiu pegar ela.
Trovão e linda fugiram sozinhos para longe e viveram felizes para sempre.

Fonte: A própria autora, 2018.

Quanto ao esquema quinário, percebemos que especificamente nesse conto se


confunde em relação ao momento (tempo) em que o episódio acontece. No terceiro
parágrafo ela escreve “Um dia chegou uma nova galinha na fazenda do Nando” e no
décimo parágrafo, “Um dia Nando viu que a galinha tava gorda e cabia direitinho dentro
da panela”. A seguir apresento o diálogo que tive com ela sobre essa questão.

P: Para criar seu primeiro conto sua mãe teve que puxar um fio da história da Maria Coberta,
lembra? Um fio só, o dia do incêndio e como foi a tragédia de ter seu filho queimado e tudo que
aconteceu naquele dia. Não foi?
Alice: Foi.
P: Então, temos sempre que puxar um fio, um único episódio para escrever o conto. Já expliquei
isso, lembra?
Alice: Lembro.
P: Você tem que decidir quando tudo acontece, se é no dia que a galinha chega ou se é no dia
que Nando resolve matar a galinha. Um único dia, é o que permitirá que o leitor possa se situar
sobre o momento em que aconteceu o desenrolar dos fatos, das ações dos personagens.
Alice: Ah tá. É no dia que a galinha chega. Aí no mesmo dia, Trovão se apaixona por Linda,
porque foi amor à primeira vista e Nando quer fazer a galinhada.
P: Tá, então explica que ela já chegou gordinha, para ficar coerente com o fato do fazendeiro
querer matá-la.
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Alice: Entendi.
P: Sobre se apaixonar você já escreveu, então já está coerente.
Alice: Sim. E aí vou deixar “Um dia” só no terceiro parágrafo.
P: Tá bem.
Alice: Vou arrumar. Reescrever tudo. Já aprendi que um autor reescreve o texto várias vezes
até ficar bom.
P: Isso mesmo. (Diálogo 04/04/2018).

Nesse diálogo, lembrei a Alice de quando sua mãe narrou um episódio sobre a
Maria Coberta. E retomei com ela a questão da narrativa acontecer a partir de um único
episódio. Isto é, que o tempo é um elemento de construção da narrativa e ela precisava
saber que o autor tem todo o domínio sobre o tempo presente no conto. Isso faz toda a
diferença para que o autor consiga desencadear os fatos da sua história. Expliquei que
a construção da narrativa precisa de um contexto temporal definido. É o que permitirá
que o leitor possa se situar sobre o momento em que os fatos aconteceram. E que isso
a ajudaria construir sua história de forma mais completa e clara para o leitor.
No final do diálogo, a sua fala denota que considera que a tarefa de escrita
demanda reescrita. Todo o tempo a autora demonstra motivação para arrumar o texto.
É papel da escola ensinar as crianças que:

[...] os autores não são “inspirados”, que seus textos não saem todos
prontos de suas cabeças antes de colocar as palavras no papel, mas
são fruto de um trabalho de escrita/reescrita longo e por vezes tedioso,
por onde o que é finalmente escrito, se descobre escrevendo [...]
(TAUVERON, 2014, p. 92).

Ou seja, criar relações que possibilitam à criança se posicionar e tomar suas


próprias decisões frente ao trabalho de escrita, como fez ao decidir quando a história
aconteceria.
Ainda na primeira versão do conto, podemos verificar que a autora utiliza para
começar a história, aquele famoso início e final dos contos de fadas: Era uma vez e
viveram felizes para sempre. No diálogo a seguir apresento como a orientei sobre isso.

P: Por que eles fugiram para longe?


Alice: Porque em Minas Gerais a vida de galinha é muito arriscada.
P: É? Por quê?
Alice: Uai todo mundo quer matar a galinha para fazer galinhada.
P: Entendi. E por que você colocou e viveram felizes para sempre?
Alice: Porque as histórias sempre terminam assim.
P: Que histórias?
Alice: As que eu conheço.
P: Geralmente você lê contos de fadas, né?
Alice: Sim, eu adoro ler os contos de fadas, sou uma leitora assídua da biblioteca, é meu
passatempo preferido, mas eu não conhecia conto popular.
P: Sempre nos contos de fadas aparece no final e viveram felizes para sempre, né?
Alice: Sim.
P: E como geralmente começa os contos de fadas?
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Alice: Era uma vez.
P: Certo. Então, você começa o conto popular com “Era uma vez” e termina com “e viveram
felizes para sempre”. Agora vamos ver como começa e como terminam os dois contos populares
que eu trouxe para vocês? (Nesse momento li com Alice a situação inicial e final dos contos João
Preguiça e Se Deus quiser).
Alice: Já sei como vou reescrever a situação inicial e a final.
P: Que bom, reescreve e me mostra.
Alice: Tá. (Rindo) (Diálogo 04/04/2018).

Quanto ao estilo de linguagem, Alice se revela cada vez mais na medida em que
certas escolhas lexicais, fraseológicas e gramaticais se apresentam. No decurso do seu
processo de criação dos contos populares, traz, além de personagens como vimos em
contos anteriores, outros elementos dos contos de fadas. Percebemos, nessa primeira
versão do conto a presença reveladora das formas canônicas de início e finalização dos
contos de fadas constituindo-se, assim, como marcas enunciativas do estilo de Alice.
Além disso, sabemos que os animais falantes são personagens tipicamente dos contos
de fadas.
Como se trata de uma leitora assídua da biblioteca da escola, ela própria assume
isso: “Eu adoro ler os contos de fadas, sou uma leitora assídua da biblioteca, é meu
passatempo preferido mas eu não conhecia conto popular”. Aqui cabe destacar que a
literatura é vista por Alice como uma distração, um lazer, uma atividade recreativa e não
“uma função vital necessária”. (VIGOTSKI, 2010a, p. 20). A mãe, por sua vez, não
reconhece a literatura infantil como instrumento importante para o desenvolvimento de
sua filha, já que exigia que ajudasse nas atividades domésticas proibindo a leitura.
Segundo Coelho (2000), literatura infantil é arte e “[...] fenômeno de criatividade
que representa o mundo, o homem, a vida, através da palavra”. (COELHO 2000, p. 27)
Nesse sentido, o trabalho desenvolvido com a literatura infantil “[...] transcende
intenções singelas de ‘dar asas à imaginação e provocar prazer’, para assumir a função
de formação integral do homem e de suas funções consideradas superiores e criativas
em todas as áreas do conhecimento”. (ARENA, 2010, p. 32).
Assim, podemos afirmar que por isso seu estilo de linguagem identifica-se com
os padrões estabelecidos pelos contos de fadas. Logo, observamos as nuances na
construção estilística dos enunciados da autora a fim de estabelecer relações dialógicas
com o campo do discurso, com o uso efetivo da palavra e com o seu próprio estilo como
autora e principalmente como leitora dos contos de fadas.
Vejamos, agora, como esse conto foi publicado, ou seja, sua versão final.

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Figura 2: Versão final do conto Dois animais diferentes.

Dois animais diferentes

Nando era um fazendeiro muito rico. Na sua bela fazenda tinha muitos animais, inclusive
um cachorro. Esse cachorro era bravo e nunca havia se apaixonado por ninguém. O
nome dele era Trovão, o cachorro mais bravo da fazenda toda. Todos os animais
fêmeas queriam namorar com Trovão, mas ele não queria nenhuma delas.
Um dia chegou uma nova galinha na fazenda do Nando. Ela era a gordinha mais
elegante que ele tinha visto em toda sua vida.
Trovão logo se apaixonou pela galinha e foi falar com ela:
- Olá! Sou Trovão, o animal mais bravo e bonito da fazenda do Nando. Qual é seu nome
linda e bela senhorita?
- Oi! É mesmo? Meu chamo é Linda, porque sou linda mesmo. Não acha?
- Sim.
- Bom, onde fica o salão de beleza por aqui?
- Não, bela senhorita, aqui não tem nada disso que a senhorita está procurando.
- Então o que eu estou fazendo aqui?
Trovão começou a rir dela, e estava completamente apaixonado.
De repente, Nando apareceu no quintal. Estava procurando uma galinha, a mais gorda,
porque naquela noite era dia de galinha no jantar, afinal mineiro come galinhada toda
semana.
Nando bateu o olho na Linda e viu que ela estava gorda e cabia direitinho dentro da
panela. Correu atrás da galinha. Quando conseguiu pegá-la, Trovão viu e foi logo
mordendo sua perna. Nando soltou a galinha e Trovão disse:
- Corra, Linda, vai embora. Fuja, vai logo!
Linda percebeu que Trovão gostava mesmo dela, foi amor à primeira vista.
- Não, Trovão, não vou sem você. Agora que percebi que te amo, só se você for junto!
Nando chutou Trovão e foi atrás de Linda, mais não conseguiu pegá-la.
Trovão e Linda fugiram juntinhos para outro estado, porque vida de galinha em Minas
Gerias é muito arriscada.

Fonte: A própria autora, 2018.

Na versão final, podemos notar que o tema é relatado por meio de dezessete
parágrafos. Percebemos que Alice compõe um texto maior, em número de parágrafos
e mais rico comparado aos contos anteriores, pois apresenta, além de mais diálogos,
mais períodos compostos.
Analisando o conteúdo temático e suas relações dialógicas observamos como
deixa emergir as vozes alheias no desenvolvimento de seu conto. Nesse sentido,
podemos constatar construções que remetem a um discurso que faz muito sentido aos
mineiros: vida de galinha em Minas Gerias é muito arriscada. Quando escolhe a galinha
e cachorro como personagens do conto, a autora não faz isso de forma aleatória, mas
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a partir do conhecimento de que a figura da galinha irá ajudar a enunciar o seu dizer.
Ao usar a expressão acima citada e escolher de maneira consciente a galinha como
personagem, denota seu conhecimento do mundo que a cerca e confirma que para o
frutalense, assim como para todo mineiro, a galinhada é o prato mais tradicional de
nossa cultura.
A galinha caipira é muito consumida pelos mineiros e a partir disso, Alice teve
uma sacada brilhante, demonstrando toda sua criatividade. A autora revela indícios de
autoria ao criar um desfecho surpreendente para a história, trazendo seu conhecimento
e entendimento quando escreve que vida de galinha é muito arriscada em Minas Gerais.
Isso só foi possível porque faz parte da vida concreta da autora, da sua cultura É da sua
vivência comer galinhada todo domingo com a família.
Para Bakhtin (2003), o estilo está relacionado à forma de escrever de cada autor
e a eleição dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais. Focalizamos algumas
opções estilísticas no texto em análise como: “galinha”, “fazenda”, “minas”, “quintal”,
“galinhada”, “fazendeiro”, “mineiro”, “panela”.
Segundo Bakhtin (2003), o estilo está relacionado com os componentes do
mundo concreto. Isso comprova que as crianças podem escrever textos com marcas
delas se criarmos situações adequadas para isso. Alice realiza escolhas dentre as
alternativas que o ambiente e seu conhecimento cultural, social, e histórico lhe
oferecem, cria e recria, imprimindo suas marcas de autoria.

RESULTADOS PARCIAIS
Os dados apontaram que do ponto de vista discursivo, o gênero conto popular
constituiu-se, segundo o sentido bakhtiniano e volochinoviano, em uma atividade de
leitura e de escrita concreta e histórica, com características relativamente estáveis,
vinculadas a uma situação típica da comunicação social, e com traços temáticos,
estilísticos e composicionais concernentes a enunciados individuais ligados à atividade
humana.
Ao observar as análises realizadas, nota-se que o estilo de uma pequena autora
se evidenciava na medida em que certas escolhas lexicais, fraseológicas e gramaticais
se apresentavam, como por exemplo, elementos e personagens dos contos de fadas.
Percebemos, também a presença reveladora das formas canônicas de início e
finalização desses contos. Essas escolhas constituem-se como marcas enunciativas do
seu estilo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessas condições, constamos que ao desenvolver um trabalho com o gênero
discursivo conto popular, permitimos às crianças compreenderem que, inseridas em
situações de criações de seus próprios textos, estamos garantindo que possam
expressar suas ideias, sentimentos, escolhas, valores, opiniões e entender que a língua
se manifesta por meio de diferentes processos de interação. Portanto, esse gênero
discursivo, mostrou-se fundamental, constituindo-se uma ferramenta indispensável para
que as crianças refletissem sobre os atos de leitura e escrita e sentissem vontade e
necessidade de escrever os contos, porque sabiam que o resultado de sua criação
comporia a obra prima final, o livro Contos Populares Frutalenses, que retrata uma vida
social viva, na qual os sujeitos históricos que dela participam podem ler textos e escrevê-
los a partir de uma situação concreta de vida.

REFERÊNCIAS
ARENA, Dagoberto B. O ensino da ação de ler e suas contradições. In: Ensino Em-
Revista, Uberlândia, v.17, n.1, jan/jun.2010, p. 237-247.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2016.

CASCUDO, Luís da C. Contos tradicionais do Brasil. 9ª ed. São Paulo: Global, 2001.

COELHO, Nelly N. Literatura infantil: Teoria, análise e didática. São Paulo: Moderna,
2000.

GERALDI, João W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação.


Campinas, SP: Mercado de Letras - ALB, 2002.

KOSIK, Karel. A dialética do concreto. 7ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

LEONTIEV, Alex N. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In:


VIGOTSKI, L. S.; A. R. LURIA & A. N. LEONTIEV. Linguagem, desenvolvimento e
aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1988.

MUKHINA, Valeria. Psicologia da Idade Pré-escolar. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 1984.

TAUVERON, Catherine. A escrita “literária” da narrativa na escola: condições e


obstáculos. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 52, p. 85-101, abr./jun. Editora
UFPR100, 2014.

VIGOTSKI, Lev S. A Formação Social da Mente. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
136

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VIGOTSKI, Lev S. Obras Escogidas III. Madrid: Visor Distribuiciones, S.A. 2001.

VIGOTSKI, Lev S. Imaginação e criação na infância. 6ª ed. São Paulo: Editora Ática,
2010a.

VIGOTSKI. Lev S. A Construção do pensamento e da linguagem. 2 ed. São Paulo:


Martins Fontes, 2010b.

VOLÓCHINOV, Valentin N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1ª ed. São Paulo:
Editora 34, 2017.

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GRUPO TEMÁTICO 2:
LITERATURAINFANTIL PARA
CRIANÇAS PEQUENAS.

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PRÁTICAS LITERÁRIAS NA CRECHE

Gabrielly Doná, FCT/Unesp


Cristiane de Alcântara, FCT/Unesp

Eixo Temático 2: Literatura Infantil para crianças pequenas

Considerações iniciais
Este trabalho trata-se de um relato de experiências desenvolvidas na disciplina
de Estágio da Educação Infantil do curso de Pedagogia da FCT Unesp, campus de
Presidente Prudente – SP, no ano de 2019.
Sabe-se que o período de observação e desenvolvimento de atividades na
prática é de fundamental importância na vida acadêmica dos graduandos, levando ao
aluno experiências para desenvolver habilidades e competências para a profissão
docente, colocando em prática o que lhe foi ensinado. Nesse sentido, a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional n° 9.394/96 no Art. 61, parágrafo único, inciso II, aponta
como um dos fundamentos da formação dos profissionais da educação “a associação
entre teorias e práticas, mediante estágios supervisionados e capacitação em serviço”
(BRASIL, 1996). Portanto, essa atividade é fundamental na formação do pedagogo para
que este possa, por meio de regências em sala de aula, realizar uma análise crítica e
reflexiva sobre a prática educativa.
Um dos estágios aconteceu em uma creche municipal na cidade de Presidente
Prudente, na sala do berçário com 16 alunos entre 1,7 anos e 2 anos de idade, esta
aluna será retratada aqui como Estagiária 1. Já o outro estágio se deu em um colégio
privado de Presidente Prudente, em uma sala de maternal I com 12 alunos entre 1,5 e
2,5 anos de idade, esta aluna será retratada como sendo Estagiária 2. Ambos obtiveram
a carga horária de 75 horas entre o período de 07/10/2019 a 29/11/2019.
Como componente curricular obrigatório era necessário realizar, após a
observação na sala de aula, uma intervenção. A intervenção escolhida foi a realização
de contações de histórias para as crianças da turma em que o estágio foi efetuado.
Relataremos parte das experiências das intervenções feitas em duas creches do interior
do oeste paulista. O objetivo principal dessas práticas foi propiciar uma experiência
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leitora significativa para as crianças, além de instigar o ouvir e o interagir nos momentos
de leitura partindo dos gestos embrionários de leitura (MODESTO-SILVA, 2019).
Ademais, as contações foram organizadas a partir das estratégias de leitura, “antes,
durante e depois” (SOLÉ, 1998; SOUZA, 2019a). Os livros selecionados para as
intervenções foram Chapeuzinho Vermelho (GRIMM; GRIMM, 2004), Chapeuzinho
Amarelo (BUARQUE, 2011) e O que tem dentro da sua fralda? (GENECHTEN, 2012).
Considerando a importância de as crianças experimentarem desde bebês o
objeto cultural, que é o livro, e lê-lo a seu modo para construir significados do que está
a sua volta, ressalta-se que a leitura só se efetiva se o livro estiver aberto (MODESTO-
SILVA, 2019).
Portanto, vale ressaltar a importância da literatura na creche, pois as propostas
pedagógicas de Educação Infantil, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil, devem visar os princípios estéticos “da sensibilidade, da criatividade,
da ludicidade e da liberdade de expressão nas diferentes manifestações artísticas e
culturais” (BRASIL, 2010, p. 16).

Constatada a importância da história como fonte de prazer para a


criança e a contribuição que oferece ao seu desenvolvimento, não se
pode correr o risco de improvisar. O sucesso da narrativa depende de
vários fatores que se interligam, sendo fundamental a elaboração de
um plano, um roteiro no sentido de organizar o desempenho do
narrador [...] (SILVA, 2002, p. 13).

Assim, a literatura é de fundamental importância na educação infantil, por isso


deve ser trabalhada de forma adequada, de acordo com as diretrizes curriculares
nacionais. Também levando em consideração a escolha do livro, a prática a ser utilizada
e o contexto em que as crianças vivem, para ser uma experiência significativa para elas,
bem como assegurar o bom preparo do contador, no caso de contação de histórias.
Dessa forma, de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil,

a proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve ter


como objetivo garantir à criança acesso a processos de apropriação,
renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de
diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à
liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à
convivência e à interação com outras crianças (BRASIL, 2010, p. 18).

De acordo com Nunes (1990), ao se tratar a linguagem como arte, a literatura


abarca as dimensões ética e estética da língua, sendo importante na formação do
sujeito, além de também introduzir as crianças no mundo da escrita. Quanto antes forem
inseridas as histórias escritas e orais no cotidiano da criança, maior a possibilidade de
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se desenvolver o prazer pela leitura; ressaltando-se a importância do professor ser o
mediador habituando o leitor que ainda não adquiriu autonomia com o texto literário.
Segundo Zilberman,

os critérios que permitem o discernimento entre o bom e o mau texto


para as crianças não destoam daqueles que distinguem a qualidade de
qualquer outra modalidade de criação literária. Seu aspecto inovador
merece destaque na medida em que é o ponto de partida para a
revelação de uma visão original da realidade atraindo seu beneficiário
para o mundo com o qual convivia diariamente, mas que desconhecia.
Nesse sentido, o índice de renovação de uma obra ficcional está na
razão direta de sua oferta de conhecimento de uma circunstância da
qual, de algum modo o leitor faz parte (ZILBERMAN, 2003, p. 26).

Desta forma, ressalta-se aqui a sensibilidade do mediador para conhecer o


contexto e a realidade do aluno para buscar histórias que se tornem significativas para
a vida dele.

Trabalhando com Estratégias de leitura


As estratégias de leitura são mecanismos usados para o leitor compreender
melhor o que está lendo, desenvolvendo-se ao longo de sua vida (ALVEZ; SOUZA;
GARCIA, 2011). Além disso, as estratégias de compreensão leitora, de acordo com Solé
(1998), não são exclusivas a apenas um tipo de conteúdo, ou seja, não são estáteis em
um formato de texto, mas sim são adaptáveis.
Com o uso das estratégias o leitor especialista sabe se realmente compreendeu
o que leu ou quando não entendeu completamente, isso se dá pelos componentes
metacognitivos de compreensão leitora (SOLÉ, 1998).
Com base nisso, as estratégias de leitura podem dialogar com as contações de
histórias aqui propostas, pois, sabendo que há, segundo Souza (2019a), sete
estratégias, sendo elas: conhecimento prévio, conexão, visualização, questionamento,
inferência, sumarização e síntese. Assim, antes, durante e após as histórias
desenvolvemos algumas dessas estratégias para construirmos significados junto com
os alunos e suas vivências singulares.

Gestos embrionários de leitura na contação de histórias


Não é possível ensinar um bebê a ler, mas sim ensinar “a capacidade humana
de ler, ou seja, instruímos o ato de ler e os pequenos aprendem essa capacidade
mediante o acesso autônomo e direto do objeto cultural livro [...]. As mediações criadas

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pelo educador contribuem para o aprendizado e para o desenvolvimento da capacidade
leitora [...]” (SOUZA, 2019b, p. 6).
Ainda, Modesto-Silva (2019) defende que,

[...] se a leitura é construção de sentidos e se todo diálogo é uma


interlocução, o pequeno, mesmo que ainda nem fale, já é capaz de
aprender e desenvolver gestos e ações embrionários do ato de ler,
pode reproduzir para si o embrião dos modos de ser leitor a partir do
conhecimento básico do quê, onde, quando e como ler, além de
aprender o “ler” para o outro ou mesmo escolher que narrativa partilhar
com outra pessoa ou consigo mesmo, afinal também já é capaz de
interagir por elementos extra verbais como gestos, balbucios, sorrisos,
movimentos de braços e pernas (MODESTO-SILVA, 2019, p. 43-44).

Isso influencia na formação leitora, podendo desde a mais tenra idade ser
aprendido. Além de que contar histórias, disponibilizar livros despertam a necessidade
silenciosa de ler da criança pequena e do bebê. “Em outras palavras, o prazer do
encontro passa a criar necessidade de escuta, de ver, de pegar, de construir sentidos
para o texto verbal, o visual ou ambos” (MODESTO-SILVA, 2019, p. 44).
Ao analisar as intervenções nas creches, podemos notar os gestos das crianças
ao participarem de uma contação de histórias, na qual elas querem pegar o livro, folhear,
contar a seu modo, imitar ações que foram vistas no conto. Assim, segundo Rosa
(2017), o bebê está no processo de alfabetização literária:

O reconhecimento e a descrição de “atos embrionários de leitura”,


evidenciados quando uma criança reclama e interfere se lhe tiram das
mãos um livro, por exemplo, e de atitudes de imitação, quando, já
sentada sozinha, abre o livro, folheia, balbucia, fecha, troca por outro
e reinicia a leitura, entre outros são indícios de que um bebê está sendo
alfabetizado literariamente (ROSA, 2017, p. 233).

Vale ressaltar que, segundo Souza (2019b, p. 6), “quando planejamos atividades
de leitura para a primeiríssima e primeira infância (0 – 5 anos) sob uma perspectiva
vigotskiana, destacamos os gestos embrionários de leitura em quatro dimensões: 1)
espaço-temporal, 2) objetal, 3) modal e 4) relacional”.
De modo geral, observamos e relatamos ao longo deste trabalho momentos em
que os gestos embrionários de leitura foram evidenciados, sendo apreciados na
contação de histórias pelas crianças e, posteriormente, ao manusear e ler a seu modo
o livro.

Relato 1: O que tem dentro da sua fralda?


Durante a experiência de estágio da Estagiária 1, pôde-se perceber que apesar
de a leitura de livros fazer parte da rotina das crianças na sala do berçário II, ela não
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estava sendo trabalhada de uma forma que encantasse as crianças e as transportassem
para o mundo da imaginação, mas sim, apenas para preencher o tempo entre uma
atividade e outra ou cumprir a rotina sem se preocupar com a escolha dos livros. As
crianças se mostravam dispersas, sem interesse em acompanhar tal prática.
Assim, surgiu a ideia de realizar o trabalho com a literatura infantil de uma forma
diferente; com o fim de visar o gosto pela leitura, a humanização do sujeito e a formação
dessas crianças de uma forma lúdica e prazerosa.
As crianças sentavam-se em rodas e tudo foi pensado a partir de algumas
estratégias de leitura (SOUZA, 2019a). Antes de iniciar as contações trabalhou-se com
a antecipação do conteúdo do texto e o levantamento de conhecimentos prévios pelo
título, pela capa do livro, pelas ilustrações. Também pôde-se despertar nos alunos a
estratégia de leitura “conexão”, na qual é possível conectar elementos do livro com
outros livros, com fatos de sua vida ou com situações do mundo. Utilizou-se um recurso
confeccionado, um baú de histórias, do qual era tirado um objeto (fralda, animais etc.)
que fazia inferência ao que iria ser contado, perguntando se conheciam o objeto e o que
sabiam sobre ele, averiguando, assim, os conhecimentos prévios já existentes.
A escolha feita foi O que tem dentro da sua fralda? do autor Guido Van
Genechten (2012). Este livro foi escolhido pela fase de desfralde em que as crianças
estavam, para que elas se identificassem com as personagens da obra. O livro é grande,
de capa dura, escrito em caixa alta, tem texto e ilustrações envolventes; possui abas
para as crianças interagirem com a história:

Figura 1: Capa do livro O que tem dentro da sua fralda?

Fonte: Genechten (2012).

Durante a contação estavam presentes 11 crianças, sentadas em roda, antes de


iniciar a contação foi mostrada uma fralda para elas, foi perguntado se sabiam o que
era, uma criança verbalizou dizendo ser uma fralda, e outra foi logo fazendo a repetição
da palavra. Foi mostrada a capa do livro, descrevendo a ilustração para eles, todos

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ficaram atentos no desenrolar da história; interagiram e ficaram surpresos quando cada
bichinho mostrava o que tinha dentro de sua fralda, e, principalmente, com o final, onde
o ratinho revelou sua fralda sem nada, sinalizando o uso do banheiro.
Durante a história, algumas crianças repetiam o que se falava e contavam juntos
os cocôs das fraldas dos animais; ao final da contação de histórias elas queriam pegar
o livro, folheá-lo e recontá-lo a seu modo, sinalizando, assim, os gestos embrionários
de leitura (MODESTO-SILVA, 2019). Um dia após, duas crianças que não estavam
acostumadas a pedir para usar o banheiro pediram para levá-las, durante uma atividade
no parque. Isso demonstra o significado que o livro representou no cotidiano delas.

Relato 2: Chapeuzinhos
Já nas práticas da Estagiária 2, foram contadas duas histórias que se
complementam e se fizeram significativas dado o contexto dos alunos, sendo 10
participantes. Foi percebido no dia-a-dia que as crianças tinham medo do lobo mau,
devido ao fato de um dia uma menina ter fingido ser o lobo e um aluno começou a
chorar, e em outros momentos as crianças correrem assustadas. Portanto, foi pensado
em fazer como intervenção contações sobre Chapeuzinho, com o fito delas não terem
mais tanto medo dessa personagem. No primeiro dia foi contado a história original
Chapeuzinho Vermelho (GRIMM; GRIMM, 2004) para elas poderem fazer a conexão
texto-texto, posteriormente, com a história da Chapeuzinho Amarelo (BUARQUE, 2011),
que foi contada no segundo dia.

Figura 2: Capa do livro Chapeuzinho Vermelho

Fonte: Grimm e Grimm (2004).

Nessa primeira história, que foi contada com a simples narrativa, as crianças
ficaram atentas e participaram bastante, mostraram já saber sobre o conto e contavam
algumas partes junto com a contadora. Logo em seguida, o aluno L recontou a história
e deu um subjetivo significado para o personagem. Além disso, a aluna C fingiu ser o
lobo durante o momento de contação, foi uma das crianças que mais interagiu. Depois

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disso, foi cantada a música tradicional "Pela estrada a fora eu vou bem sozinha, levar
esses doces para a vovozinha, ela mora longe e o caminho é deserto, e o lobo mau
passeia aqui por perto [...]"23. E havia um menino que cantou o restante da continuação
da música, mostrando haver conhecimentos prévios sobre o tema trabalhado.
No outro dia, como elas já tinham conhecimento sobre a história original da
Chapeuzinho Vermelho (GRIMM; GRIMM, 2004), foi contado Chapeuzinho Amarelo
(CHICO BUARQUE, 2011).

Figura 3: Capa do livro Chapeuzinho Amarelo

Fonte: Buarque (2011).

Iniciou-se a contação com a música “pela estrada a fora tenho medo de ir


sozinha, eu me assusto com qualquer coisinha” 24, foi cantada uma vez para elas
aprenderem, e na próxima elas cantaram junto. Algumas já sabiam essa história, mas
conforme se foi contando e fazendo suspense para virar a página, elas ficavam ansiosas
para saber o que viria em seguida.
Em um momento, a aluna B foi na frente do livro e começou a rir, devido a
caricatura engraçada do lobo. É importante ressaltar que nessa segunda história a
chapeuzinho quando o vê não sente medo dele, na verdade, o acha até engraçado.
Além disso, durante a contação, a aluna C começou a andar entre os amigos imitando
o lobo.
Outra relação observada foi que em uma parte da história Chapeuzinho fala o
nome “lobo” várias vezes, até ir se transformando em “bolo”. Então, ao finalizar a
narrativa, o aluno A pediu para contar a história, pegou o livro e falou “Lobo, lobo, lobo,

23
Música Pela estrada a fora, produzida por Braguinha. Disponível em:
https://www.letras.mus.br/braguinha/pela-estrada-a-fora/
24
Música cantada no programa Quintal da Cultura por Zenaide Paludo e Jamil Giorges. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=N6063q-YecY
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lobo... Bolo, bolo, bolo...”, mostrando que entendeu a transformação do personagem, e
o motivo da protagonista não ter mais medo do referido personagem.
Após isso, foi pedido se elas ainda tinham medo do lobo. O aluno M disse que
sim, e foi perguntado o porquê, ele respondeu: "porque ele assopra as casinhas", ou
seja, ele fez uma conexão com outra história, sendo a dos Três Porquinhos, e não da
Chapeuzinho Vermelho. O restante dos alunos falou que não, não tinha mais medo. E
no decorrer do dia, não houve mais falas delas sobre o lobo ser mau, apenas que ele
havia virado um bolo. Nos outros dias do estágio as crianças brincaram de lobo mau,
de se esconder, mas não se percebia mais medo e pavor da personagem pegar elas ou
lhes fazer mal. Além de as crianças conseguirem se identificar com as histórias, como
diz Bettelheim (2007), por meio dos contos de fadas as crianças conseguem resolver
conflitos internos, que conscientemente não conseguiriam ser aliviados.

Considerações finais
Com essa experiência com as contações, podemos notar a importância de se
escolher boa literatura infantil para se trabalhar na escola, pois, assim, poderemos
atingir um dos anseios de tal instituição em instigar o gosto pela leitura e em se formar
novos leitores. Dessa forma, aponta-se a necessidade de o mediador ter uma visão
contextualizada dos alunos para trazer histórias significativas para eles, bem como
relacionar sua realidade com as etapas das estratégias de leitura: buscando os
conhecimentos prévios, observando as conexões feitas etc.
Além do mais, observamos a atenção das crianças no momento da contação,
todas instigadas pelas histórias, ressignificando e apropriando-se do que lhe era falado,
a seu próprio modo; proporcionando, assim, um desenvolvimento integral, não de forma
moralizante. Além de explicitarem os gestos embrionários de leitura em suas ações, tais
como balbuciar palavras, imitarem personagens, folhear os livros apresentados etc.
Após as práticas de contação as crianças quiseram manusear o livro, olhar as
ilustrações, recontar as histórias etc., o que mostra como a contação de histórias pode
aproximar as pessoas do objeto livro. Como diz Abramovich (2009), é importante as
crianças ouvirem histórias para sua formação, pois essa ação é o começo da
aprendizagem para ser leitor.
Portanto, revela-se a importância da literatura ser trabalhada de forma adequada
na educação infantil, tendo como base as diretrizes curriculares nacionais e,
principalmente, o livro e a prática/técnica a serem escolhidos. Assim, será possível

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formar o bebê para ser um futuro leitor, sendo permitido e ensinado a ele desde pequeno
como virar a página de um livro e ler a seu próprio modo.
Assim, pode-se perceber a importância de contar histórias que façam sentido e
sejam significativas para as crianças. Outro ponto relevante é em relação ao preparo do
contador que deve ser feito antes do início da história, trazendo preparo e mais
confiança a ele. Além de uma boa preparação e uma cuidadosa escolha da qualidade
do livro, devendo este ser uma boa obra de literatura infantil.

Referências
ABRAMOVICH, Fanny. Gostosuras e bobices. 5. ed. São Paulo: Scipione, 2009.

ALVEZ, José Hélder Pinheiro; SOUZA, Renata Junqueira de; GARCIA, Yara Maria
Rocha. Lendo e brincando com sextilhas e outros versos. In: SOUZA, Renata
Junqueira de; FEBA, Berta Lúcia Tagliari (Orgs). Leitura literária na escola: reflexões
e propostas na perspectiva do letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2011.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 23 ed. São Paulo: Paz e
terra, 2007.

BRASIL. Senado Federal. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: nº


9394/96. Brasília: 1996.

BRASIL. Ministério da educação e do desporto. Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação Infantil. Brasília: MEC, 2010.

BUARQUE, Chico. Chapeuzinho amarelo. 27 ed. Rio de Janeiro: Jose Olympio,


2011.

GENECHTEN, Guido van. O que tem Dentro da sua Fralda? São Paulo: Brinque Book,
2010.

GRIMM, Wilhelm; GRIMM, Jacob. Chapeuzinho Vermelho. Ilustrações: Suzanne


Janssen. São Paulo: Cosac e Naify, 2004.

MODESTO-SILVA, Kenia Adriana de Aquino. O nascimento do pequeno leitor:


mediação, estratégias e leitura na primeiríssima infância. Tese de doutorado
(FCT/Unesp), Presidente Prudente, 2019.

NUNES, Lygia Bojunga. Um encontro com Lygia Bojunga. Rio de Janeiro: Agir,
1990.

ROSA, Cristina Maria. Alfabetização literária de bebês: olhar, escutar, folhear, ler.
Anais do 7. Seminário de Literatura Infantil e Juvenil. Florianópolis: UFSC;
UNISUL, 2017. Disponível em:
http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/eventos/silij/7-SLIJ-2016-
Anais.pdf. Acesso em: 19 maio 2020.

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SILVA, Maria Betty Coelho. Contar histórias: uma arte sem idade. 10 ed. São Paulo:
Editora Ática, 2002.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6.ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

SOUZA, Renata Junqueira de. Ler e Ensinar: estratégias de leitura. Tubarão, SC:
Copiart, 2019a.

SOUZA, Renata Junqueira de Souza. Ler e ensinar: gestos de leitura na educação


infantil. Tubarão, SC: Copiart, 2019b.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11. ed. Revista atualizada e


ampliada. São Paulo: Global, 2003.

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LEITURA E LEITOR: UMA RELAÇÃO QUE ENVOLVE
CURIOSIDADE, DESPERTA PRAZER E AUXILIA NO
DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM.

Maria Divoneide Ferreira

Eixo Temático: Grupo temático 2: Literatura Infantil para crianças pequenas.

Introdução
As narrativas fazem parte da vida dos seres humanos, desde quando bebês,
quando ainda no ventre da mãe, esses passam a identificar/reconhecer a voz da sua
mãe. Bastando apenas ouvi-la após nascimento, para cessar o choro, quando está lhe
é dirigida com perguntas, acalantos ou canções de ninar, para melhor apreciá-la
estabelecendo desta forma uma leitura por meio da escuta. Freire (1998) fundamenta
quando diz que a leitura não tem fronteiras, compreendendo todo processo de
aprendizagem, e que o princípio inicia-se no instante do nosso nascimento.
A presença da literatura na vida da criança cumpre uma função humanizadora
insubstituível e indispensável para o desenvolvimento integral de sua personalidade,
pois é por meio dela que a criança se apropria da realidade concreta e da fantasia. E é
nas escolas de educação infantil, que o educar torna-se o papel socializador, priorizando
o desenvolvimento da criança e sua construção de identidade com momentos de
intervenção, envolvendo e proporcionando situações de cuidados, brincadeiras e
aprendizagens orientadas de forma integrada, possibilitando e contribuindo para o
desenvolvimento das capacidades das relações interpessoais destes sujeitos. Tais
ações são necessárias para impregnar de sentido a escuta do bebê, como também, a
importância de valorizar toda e qualquer palavra enunciada por ele, para estabelecer os
elos entre uma palavra e outra e, dessa forma, apoiar e estimular o diálogo para a
construção de sua subjetividade. Jobim e Souza afirmam que,

[...] ao retornar para si o olhar e as palavras impregnadas de sentindo


que o outro lhe transmite, a criança acaba por construir sua
subjetividade a partir dos conteúdos sociais e afetivos que esse olhar
e essas palavras lhe revelam. (JOBIM; SOUZA, 1994, p. 66).

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Neste espaço de aprendizagem, considera-se, prioritariamente, o direito de
brincar, a forma de expressão do pensamento, da interação da criança com as outras
crianças e com o meio, o que torna este espaço muito apropriado, também, para
incentivar a leitura, acreditando na construção que as crianças que frequentam a
educação infantil podem vivenciar os estágios que a leitura oferece, até se tornarem
letradas e leitores críticos, pois, como Theodoro (1995, p. 23), fala o cidadão é como
uma planta que, desde a forma de semente, precisa ser cuidada para que cresça forte
e bonita. Assim é a leitura. Para se fazer leitores é necessário cultivar os atos de ler e
entender.
Por ser a escola este espaço privilegiado no incentivo na formação de leitores,
buscou-se, com esse trabalho, semear e despertar o interesse, primeiramente nos
profissionais que atuam com as crianças, para que estas práticas refletissem na rotina
da sala, e envolvessem pais e comunidade. Para isso, realizou-se, em uma das escolas
entrevistadas, a construção destas práticas pedagógicas junto aos professores, com
possibilidade de ensino por meio da literatura infantil, do balbucio para as primeiras
palavras enunciadas e sua construção frasal, a partir dos estímulos cognitivos, motor,
sensorial e afetivo. Partindo do pressuposto do que já existe no sistema de
aprendizagem da criança antes do ingresso na escola, baseada na teoria vigotskiana,
que ele denomina conceitos espontâneos.
Sendo as crianças ativas e perceptíveis, o professor precisa estar muito atento
aos cuidados em geral, no ambiente das salas e aos sinais emitidos pelas crianças na
relação professor/aluno, pois é com este olhar além do pedagógico e com muita
interação, que se transpassa da necessidade do educar/cuidar/mediar/, para que as
crianças identifiquem e reconheçam a si, ao meio e ao outro. Sendo assim, uma
variedade de experiências de vida é necessária para que as crianças possam ir
construindo a sua concepção de mundo. Nesse sentido, por meio da literatura infantil
expositiva, dramatizada e gesticulada, expressada pela fala e expressões corporais
utilizadas na educação infantil, às crianças conseguem comunicar suas necessidades,
vontades e sentimentos, pois

[...] A arte, e, portanto, a literatura, é uma transposição do real para o


ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem, que propõe
um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos.
Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou
social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua
configuração, e implicando em uma atitude de gratuidade. (CANDIDO,
1989. p. 53).

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Certamente, essa demanda exige uma rotina que as crianças possam se
constituir como sujeito, sendo esta percebida em suas diferentes formas de
comunicação existente no universo, principalmente, na dos berçários, onde a linguagem
tão comum a todos, encontra-se em processo de aquisição e desenvolvimento.
Desta forma, pretende-se, também, atingir uma profunda compreensão do
desenvolvimento infantil com ênfase na aquisição e desenvolvimento linguístico a partir
da literatura infantil, com o objetivo de fornecer indicações que possam orientar a prática
educativa com as crianças, enfatizando a importância de ler para elas, e oferecer a estes
momentos onde o contato com os livros torne-se uma relação de prazer mediada pelo
afeto e encantamento, ampliando o que eles já apresentam, mesmo ainda, não tendo
adquirido a capacidade de ler textos escritos, que é o encantamento, desejo e interesse
pelas imagens dos livros e dos recursos nos mais variados dispositivos que estão
disponíveis na atualidade. Acreditando que seja estabelecido deste modo, um ponto de
partida para a ativação de uma inicial e positiva relação com o livro.

A literatura e sua importância na formação de leitores


As obras literárias permitem viajar, sonhar, relacionar vivências e modificar
práticas, encontrando possibilidades em suas múltiplas relações, onde, gradativamente,
o leitor passa a observar, analisar, selecionar, relacionar, sintetizando, criticamente,
internalizando e apropriando-se de uma aprendizagem, não apenas no que diz respeito
à seleção de informações pertinentes, mas, também, na busca de soluções adequadas
para cada momento vivido, sonhado e imaginado pelo ser humano, como a magia que
encanta, despertando a imaginação e a criatividade no leitor, pois, por meio dela e com
ela, busca-se estabelecer vínculos entre o sujeito e seu entorno, relacionando-os às
suas experiências e percebendo, por meio dos personagens, seus próprios sentimentos
e descobertas. Como diz ECO: A leitura das obras literárias nos obriga a um exercício
de fidelidade e de respeito na liberdade de interpretação. (ECO, p.12, 2013).
Toda construção gerada do sujeito com o meio, sediada pelas conclusões e
interpretação que este tem com o mundo, propõe, ao mesmo, um crescimento
intelectual e uma capacidade peculiar, que o transforma, tornando-o crítico, ativo e
consciente dos seus direitos e deveres.
Candido relaciona a literatura com os direitos humanos dizendo que:

[...] A literatura corresponde à necessidade universal, e se não


satisfeita, mutila a personalidade, porque ela dá forma aos sentimentos
e a visão de mundo e humaniza. E negar a fruição da literatura é mutilar
nossa humanidade (Candido, 2012, p. 256).

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Na visão do autor, a literatura é indispensável a todos, pois da mesma forma que
a humanidade necessita sanar suas necessidades básicas, tendo isso defendida pela
Constituição Federal como alimentar-se, ter onde morar, a mesma precisa ter acesso à
“fruição da literatura” presente nas fontes literárias, pois ela é um “bem incompreensível
a que todos têm direito”, é alimento que nutri a alma, que humaniza o ser humano,
tornando-o um sujeito cognoscente de si e do seu entorno.
Candido, também, relata que o ser humano não ultrapassa vinte quatro horas
sem dispor de um momento em que sua mente navegue no mundo da fabulação e que
negar o contato a exploração da literatura preconiza um crime

[...] Vista deste modo a literatura aparece claramente como


manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não
há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a
possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação.
Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar
as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao
universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença
indispensável deste universo, independente da nossa vontade.
(Candido, p.174)

A literatura propõe, instiga, desafia, desestabiliza. Da mesma forma, organiza,


constrói, modifica, atualiza, surpreende e, ao mesmo tempo, instiga e provoca o senso
de justiça, desenvolve a aptidão para imaginar a vida na pele de outros, podendo ser
estes humanos ou não, desperta a curiosidade e sua função é tão abrangente quanto
sua necessidade,

[...] Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar
no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido
amplo parece corresponder a uma universidade universal, que precisa
ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. (Candido, p. 175).

Com possibilidades de reinventar a vida, a literatura proporciona ao ser humano


ver o mundo de diversas formas e diversifica o olhar. E é no ouvir de palavras
encantadas que aprende-se novas palavras para ressignificar a vida, e forma-se leitores
sensíveis, atentos, cheio de criatividade, pensantes e aptos a ler o mundo a sua volta,
percebendo-se como parte deste, modificando-se com este, como nos diz Eco, as obras
literárias nos convidam à liberdade da interpretação, pois propõem um discurso com
muitos planos de leitura e nos colocam diante das ambiguidades, da linguagem da vida.
E, nessa revelação, dentro de um complexo cenário de um mundo para além do
real, a escrita literária liberta e provoca sensações, levando o leitor para lugares
imaginários distantes, entrelaçando suas emoções e pensamentos, convidando-o a
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adentrar dentro de si e recordar-se do vivido, como também o convida a experimentar o
desconhecido. Neste convite, o leitor não é só um receptor de informações, pois o texto
literário possibilita-o a ler e dá sentido ao mundo.
Para Eliana Yunes (2002),

[...] O movimento que a literatura desencadeia, de natureza catártica,


mobiliza os afetos, a percepção e a razão convocados a responder às
“impressões” deixadas pelo discurso, cujo único compromisso é o de
co-mover o leitor, de tirá-lo do seu lugar habitual de ver as coisas, de
fazê-lo dobrar-se sobre si mesmo e descobrir-se um sujeito particular
(YUNES, 2002, p. 27).

Assim, o bebê é visto como um sujeito que se constitui como ser humano em
uma complexa rede de sentidos e significações, trazendo em suas origens as mais
diversas ramificações, que se ampliam com interferências, tanto dos espaços quanto do
tempo. Por isso, são fundamentais os cuidados iniciais com os bebês, porém, cuidar
somente não é o suficiente. Além dos cuidados iniciais, também é importante responder
as suas necessidades básicas, para que eles se desenvolvam saudáveis, sendo
necessário ocupar-se deles, atribuindo significados a tudo que chame sua atenção,
observando suas ações e reações, para situá-los na cultura da qual eles fazem parte.

Incentivando e despertando o interesse pela leitura por meio do professor


As narrativas tendem a ser apenas um texto para as crianças tomado como
pretexto, ou seja, como recurso didático nas atividades da educação infantil, de caráter
instrumental e utilitário, para os ensinamentos e mediações. Deixando de lado o mundo
encantado das histórias, dos contos, dos clássicos, das poesias e todas as fantasias
que envolvem e são apresentadas nos livros de literatura infantil, não atraindo e
envolvendo, desta forma, a atenção e curiosidade das crianças, podendo, assim,
desmotivá-la ao invés de incentivá-la sem despertar o prazer que a leitura proporciona.
Pois, sendo a literatura tão importante neste universo infantil, para que as
crianças se tornem adultos leitores, o papel do adulto/professor, nesta mediação, é
indispensável. Nesse processo, Saraiva (2001) afirma que a atuação do professor é de
vital importância, uma vez que dele depende a instauração de nova mentalidade frente
ao texto literário que vise à exploração de seu caráter formativo e estético.
Neste sentindo, realizou-se contação de histórias na biblioteca, onde os
professores foram convidados a apreciar. Em um primeiro momento, a realização foi
com recursos e “acessórios encantados”, seguido de debate. Depois, num segundo
momento, a apresentação foi de maneira lida, utilizando apenas o livro e suas imagens

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seguido de uma atividade criadora a partir da história e finalizada com debate. Outras
atividades de leituras diferenciadas foram oferecidas na biblioteca seguidas de debates.
Os professores puderam perceber/sentir/vivenciar as possibilidades e diferenças na
exploração do encantamento que se pode despertar e proporcionar por meio da
literatura.
A partir disso, ficou o convite para libertar a criança interior da cada uma, para
realizar em suas salas com as crianças, momentos de encantamento que despertasse
o desejo e a vontade de buscar nos livros/imagens/natureza o prazer que é oferecido, e
que esta oferta, fosse, também, estendida aos pais, com propostas dinâmicas que
houvesse a possibilidades de trocas e oportunidades para que estes, também,
apresentassem experiências literárias, podendo ser estas pensadas a partir da proposta
oferecida pela escola ou não, objetivando envolver e estabelecer relações afetivas com
a literatura/livro e toda relação de prazer por ela proporcionada, pois como TODOROV
afirma

[...] a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras


maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que os
outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles
que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de
interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela
nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se
tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples
entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela
permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano
(TODOROV, 2009, pp. 23-24).

Desta forma, o texto literário é instrumento essencial para o professor


oportunizar aos discentes, já na educação infantil, uma educação estética motivada pelo
universo da linguagem com seus mais variados ritmos, signos e musicalidades. E fazer
uso das bibliotecas escolares para fomentar e despertar o interesse pela leitura e
envolvimento com a literatura. Deste modo, viabilizou-se que a oferta se estende aos
pais com retirada e empréstimos de livros e artigos diversos, como também, o convite
especial: a cada quinze dias, por meio do aluno, um convite encantado era produzido,
para que o desfrute deste espaço fosse estendido a parentes e interessados, com a
proposta de hora do conto, varal poético, apreciação artística dos alunos e pais entre
outras, semeando, desta maneira, a inserção destes ao mundo mágico/literário, pois a
leitura, conforme nos fala T. S. Eliot, é em si uma experiência de vida e somos feitos
tanto daquilo que vivemos como daquilo que lemos.
Sendo neste semear, compartilhando livros, leituras, encantamentos das
palavras contidas nas poesias que o educador cumpri o seu papel de despertar o prazer

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de ler, pois, ao ter pais e professores leitores, como exemplo, nossos discentes terão
uma influência muito positiva em sua formação, na aquisição de conhecimentos,
linguagem e vocabulário, desta forma, atinge-se as massas e previne-se como fala
ZILBERMAN,

[...] valorizar o gênero em pauta representa, portanto, não apenas


discutir uma espécie possível dentre o leque de manifestações
artísticas com a palavra, mas – e principalmente- oferecer condições,
propostas e soluções para impedir o avanço irrefreável da cultura de
massas. Atribuindo-se à literatura esta função protetora, é-lhe
concedida uma validação suplementar, proveniente, todavia, dos
efeitos que pode despertar: uma defesa segura contra a invasão e os
malefícios da indústria cultural; e a consolidação de saudáveis hábitos
intelectuais, como o de leitura. (ZILBERMAN, 1990, P. 94-95)

Assim, assumir-se como leitor e tornar o livro parte da rotina escolar das
crianças desde os berçários são atitudes a serem consideradas pelo professor, que
pode atuar como exemplo de leitor mais experiente, um leitor que sente prazer em ler
ou ouvir histórias.

As contribuições para a qualidade do ensino por meio das formações


Pode-se inferir que o ser humano, quando busca uma qualificação, não só
aprimora suas metodologias e práticas, mas amplia suas interpretações o que incidirá
em sua práxis. A prática docente permeada por uma boa metodologia fundamentada na
didática é necessária para obter bons resultados. A forma como se ensina é muito
importante, tendo como responsabilidade enquanto professor/leitor, mostrar à criança
como o mundo letrado faz parte do cotidiano, podem ser explorados/manipulados,
possibilitando, desta forma, que o discente compreenda seus sentidos, e seus
questionamentos, pois a compreensão destes significados permite a criança vivenciar e
compartilhar o mundo.
MORAIS (2000) destaca que essa nova forma de educar imprime também
formas de

[...] Aprender a lidar com essas situações presente no dia-a-dia de cada


um. O educador tem que constatar que não pode ficar indiferente a
esta situação, pois ela está presente em toda a parte e em todas as
áreas, podendo contribuir e muito para o ensino tanto dentro como fora
da sala de aula (MORAIS, 2000).

Um fato que merece destaque são as diferenças encontradas entre os


professores que permanecem estudando em comparação aos que finalizaram seus
estudos na área específica de sua atuação. A formação continuada não apenas qualifica

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o docente, mas, também, oportuniza ao professor estratégias diferenciadas que
qualifiquem o seu trabalho, possibilitando o descortinar de toda complexidade que
envolve o desenvolvimento, como também, a aquisição da leitura e subsequente da
escrita, sendo a escola, na educação infantil, o melhor local para se formar leitores.
Como diz Morais, (1991, p. 98), é nesse sentido que o espaço concretiza a história do
grupo na medida em que ele agiliza muitas formas de conhecimento refletido. Em
contrapartida, MUNHOZ (2002) enfatiza que o saber não é estático, uma vez que está
sempre em constante modificação.
Estar atualizado e buscar por novas fontes de informação e qualificação
configuram, nos tempos atuais, um processo continuo e necessário para todos, uma vez
que estas necessidades são ainda mais exigidas no campo profissional. Quando a área
de atuação é a educação, essa exigência é ainda maior, uma vez que é o professor a
referência que os alunos têm em sala de aula.
Com isso, a formação continuada para docentes, nos dias atuais, deixou de ser
interesse pessoal ou só profissional e passou a ser uma obrigação como consta no
decreto do Projeto de Lei da Câmara nº 280, de 2009 (nº 5.395, de 2009, na Casa de
origem), que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a formação de docentes
para atuar na educação básica, e dá outras providências. Com isso, a busca pela
formação continuada sofreu alterações de interesse. O que antes era desejo tornou-se
obrigatório e necessário para permanecer atuando.

[...] O professor precisa de continuidade nos estudos, não só para se


manter atualizado quanto ás modificações da área do conhecimento
da disciplina que leciona. Há uma razão muito mais preemente e mais
profunda, que se refere à própria natureza do fazer pedagógico.
(BARBIERI CARVALHO E ULHE, 1995, p. 32)

Os autores explicitam a importância da formação continuada para os


professores, ressaltando que a busca por essa formação não é apenas para adquirir e
ampliar seus conhecimentos específicos, mas, também, para adquirir embasamento
teórico para a sua prática pedagógica.
Somente a formação continuada não é capaz de transformar a prática
pedagógica, para que haja mudanças faz-se necessário uma ruptura na forma de
atuação docente por meio de um processo de transformação interna. Uma nova postura
profissional faz-se necessário para que o uso da literatura e toda sua abrangência torne-
se algo efetivo, eficaz que valorize a formação humana na educação infantil, com
estratégias, dinâmicas, sistematização e associação que proporcione as crianças

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situações de aprendizagem e prazer, cabe citar Paulo Freire (1979, p. 58), quando ele
pontua que para ocorrer uma mudança de postura é necessário que haja compromisso
em querer mudar. Se o professor não sente prazer, gosto e hábito pela leitura,
dificilmente, despertará no discente tal sentimento.
Morais (2000, p. 132) destaca que

[...] Não é suficiente adquirir televisão, videocassetes, computadores,


sem que haja uma mudança básica na postura do educador. É preciso
mais. A comunicação precisa ser instaurada, desejada, conquistada. É
necessário entender o educando como ser histórico ativo e como tal, a
atenção não pode centra-se apenas no instrumento e na técnica. [...]
Deve-se necessariamente considerar a influência das imagens do
cotidiano do educando. E mais, deve-se observar o reflexo dessa
influência de compreender a realidade na sua forma perceptiva,
sensorial e cognitiva [...] multidimensional.

A formação continuada, mesmo sendo indispensável e necessária, torna-se,


também, uma realização pessoal/profissional. Já, Pinto (1989, p.29) enfatiza que a
educação é o processo pelo qual a sociedade forma seus membros a sua imagem e em
função dos seus interesses. Diante do exposto, pode-se afirmar que, na atuação
docente, esbarra-se em sujeitos com diferentes formações, portadores de uma cultura
diferenciada, possuidores de conhecimentos já elaborados que determinam áreas
distintas dentro do processo da aprendizagem.
Em outras palavras, envolver-se em pesquisas e estudos científicos acerca dos
problemas e processos da aprendizagem, se aperfeiçoar, se aprimorar é de
fundamental importância no trabalho do professor, tornando-se essencial em sua vida
profissional, pois são por meio de novos enfoques que poderão ser alcançadas
importantes considerações a respeito da aprendizagem oferecida aos alunos.
Esta qualificação deve permear o fazer pedagógico do docente e os resultados
devem ser percebidos por meio do efetivo desenvolvimento cultural do aluno, para que
se torne efetiva a formação/transformação.

Considerações finais
O primeiro contato das crianças com a literatura ocorre quando estes, ainda na
barriga, começam a ouvir, quando os adultos leem histórias para elas, cantam canções,
conversam dando-lhes significados para as ações, situações e movimentos que estão
acontecendo ao seu redor. E, todas as histórias/contos/canções de ninar têm o poder
de estimular o imaginário, que o pequeno receptor, ao ouvi-las, é tocado por pequenas
e grandes emoções que lhes provocam, estimulando-os desabrochar, e expressar-se
como rir, demasiadamente alto ou chorar, sentir medo, raiva, sendo esse emaranhado
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de sentimentos o eminente que estabelece a construção de novos saberes e contribui
com o desenvolvimento cognitivo, motor, emocional e social das crianças.
Por meio deste singelo estudo, evidenciou-se que seria importante apresentar e
oferecer a literatura nas formações de professores de educação infantil, não de forma
exigida, com espera de resultados, mas como deleite, despertando o desejo, a fruição
que é própria da literatura, para que este contagie-se e após embevecido possa
contagiar seus alunos, pois como Girotto e Junqueira

[...] É preciso diversificação não apenas de textos e objetos dados a


ler, mas, sobretudo, das práticas leitoras que são por eles viabilizadas
ou contrafeitas, pois é preciso que a memória física, emocional,
psíquica e linguística de ouvinte e leitor sejam nutridas, abastecida,
formada, construída. GIROTTO/JUNQUEIRA (2016. P. 9)

Logo, levar em conta os estágios do desenvolvimento infantil pode contribuir


para identificar como a leitura pode ser ofertada na primeira infância e de que modo isso
contribui para o desenvolvimento humano. Considerando as bibliografias já referidas,
as respectivas pesquisas desenvolvidas sobre a importância da literatura nos berçários
e sobre o efeito que ela proporciona quando oferecida aos bebês, reporto-me para as
especificidades do desenvolvimento infantil e para seus estágios, buscando averiguar
as dimensões das ações/reações literárias para os bebês.
Referências
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algumas considerações. In: COLLARES, Cecília & MOYSÉS, Maria Aparecida (org.).
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janeiro de 2017.

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Brasília, DF, Senado, 1998. Disponível em:
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________. Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional. LDBEN, nº 9.394.


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FREIRE, Paulo. Educação e mudança. São Paulo: Paz e Terra, 1979 ______. Sem
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______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São


Paulo: Paz e Terra, 1996.

GIROTTO, Cyntia Graziella G. Simões; SOUZA, Renata Junqueira de. Literatura e


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Juracy Assmann. Literatura e Alfabetização: do Plano do Choro ao Plano da Ação.


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Disponível em:
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ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1990.

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PIQUENIQUES LITERÁRIOS: UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA
FORMAÇÃO DE PEQUENOS LEITORES25

Caroline Machado (NDI/UFSC)26


Lilane Maria de Moura Chagas (MEN/UFSC)27

Eixo Temático: Literatura infantil para crianças pequenas.

Considerações iniciais
Desde 2011, desenvolvemos o Projeto de Extensão Infância e Literatura:
experiência estética e formação de pequenos leitores28 no Núcleo de Desenvolvimento
Infantil (NDI), vinculado ao Centro de Ciências da Educação (CED), da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC).
Como instituição federal reconhecida como colégio de aplicação, o NDI tem por
princípio assegurar a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e o projeto
supracitado se coloca nessa mesma direção, fomentando estudos e práticas
pedagógicas que têm como foco a relação entre os temas da infância e da literatura,
com ênfase nas práticas de mediação de leitura literária e nos processos de formação
de pequenos leitores.

25
Agradecemos as relevantes contribuições da professora Lígia Mara Santos (NDI/UFSC),
integrante do projeto por vários anos, na concepção e coordenação de várias ações articuladas
ao projeto e nas colaborações que culminam nesse texto.
26
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do
Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI/CED/UFSC). Membro do Núcleo de Estudos e
Pesquisas, Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC). Membro do Grupo de
Pesquisa sobre literatura infantil e juvenil (LITERALISE/UFSC). Coordenadora do Grupo de
Estudos Infância, Estética e Educação (GEIEE). Email: carolmachadom@yahoo.com.br.
27
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade de
São Paulo (USP). Professora do Departamento de Metodologia da Universidade Federal de
Santa Catarina (MEN/CED/UFSC). Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Alfabetização
e Ensino da Língua Portuguesa (NEPALP) e do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ontologia
Crítica (GEPOC) e do Grupo de Pesquisa sobre Literatura Infantil e Juvenil (LITERALISE).
Membro do Grupo de Estudos Infância, Estética e Educação (GEIEE). Email:
lilanemoura@gmail.com.
28
Atualmente a equipe é composta por quatro professoras do Núcleo de Desenvolvimento
Infantil: Dra. Caroline Machado, Dra. Juliete Schneider, Ms. Letícia Cunha da Silva e Ms. Rúbia
Vanessa Vicente Demétrio; uma professora do Departamento de Metodologia de Ensino – Dra.
Lilane Maria de Moura Chagas; e uma doutoranda em Estudos da Criança (UMinho/ Portugal) –
Rosiane Pinto Machado.
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Além de buscar se constituir como um espaço de produção e socialização de
conhecimentos interdisciplinares sobre os temas que envolvem a relação da infância
com a literatura, promovendo cursos de formação continuada, o projeto realiza
diferentes ações almejando construir uma comunidade de leitores e mediadores de
leitura cuja finalidade é a experiência estética com a literatura como prática cultural que
tome como ponto essencial o desenvolvimento e a potencialização da capacidade
imaginativa e o exercício de criação.
Nessa direção, temos como foco duas principais frentes: a formação de
pequenos leitores e a formação de professores e mediadores de leitura. Dentre as ações
realizadas, como seminários, palestras e oficinas, saraus literários, narração de
histórias, elaboração de materiais didático-pedagógicos, participação em eventos,
dentre outras, destacamos a realização dos Piqueniques Literários.
Enquanto ação vinculada ao projeto de extensão mencionado, os Piqueniques
Literários aspiram articular, como veremos mais adiante, as atividades de ensino em
desenvolvimento na instituição com atividades de pesquisa e extensão, almejando
formar uma comunidade de leitores pelo envolvimento das famílias e dos profissionais
que atuam diretamente com crianças pequenas.
Em atividades realizadas aos sábados, no interior da instituição, os Piqueniques
Literários reuniram, em oito edições com temáticas distintas, a comunidade interna
(crianças, famílias, professores, estagiários, técnicos administrativos em educação) e
externa (estudantes dos cursos de graduação, com destaque para o curso de
Pedagogia da UFSC, e professores das redes municipais de ensino da Grande
Florianópolis e outras regiões) em aprazíveis encontros com a literatura. Estes
encontros, inicialmente semestrais, foram assim denominados: Um encontro mágico
com os livros e com as histórias (2014.1), Poemas (2014.2), Uma viagem pelo curioso
mundo dos contos de Hans C. Andersen (2015.1), No País das Maravilhas com Alice
(2015.2), Mitos e Lendas daqui e de lá I (2016.1), Mitos e Lendas daqui e de lá II
(2016.2), Sobrevoos (2017), e Por um fio (2019)29.
Nesse percurso, algumas questões têm mobilizado nossas discussões e
impulsionado as ações realizadas: Quais conhecimentos devem mobilizar os

29
É importante salientar que as temáticas eleitas para os encontros derivam do trabalho
pedagógico realizado em grupos do NDI, coordenados prioritariamente pelas integrantes do
projeto. Destaca-se também a articulação com outros projetos institucionais, como o Projeto de
Extensão Sobras de Arte: laboratório interdisciplinar para formação estética docente e pelo
projeto Educação Ambiental no NDI/CED/UFSC. Convém relatar a conexão com o Projeto de
extensão vinculado ao Departamento de Metodologia de Ensino (MEN/CED/UFSC), coordenado
pela professora Dra. Lilane Maria de Moura Chagas, intitulado Ler, brincar e contar: espaços de
mediação de leitura com crianças.
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mediadores de leitura que atuam com crianças tão pequenas? Que critérios de seleção
podem usar os mediadores para compor um acervo literário pensado para essas
crianças? Quais experiências de mediação podem ser propostas? Como estruturar os
lugares e tempos para a realização de experiências de mediação de leitura literária?
Recorremos a diferentes estudos que oferecem suporte teórico às práticas de
mediação de leitura literária e à formação do pequeno leitor. Destacamos, dentre esses,
dois importantes teóricos modernos e conceitos fundamentais de suas obras: Lev S.
Vygotski com o par conceitual imaginação-criação e Walter Benjamin, com o par
conceitual narração-experiência.
Após compartilharmos, na sequência, algumas referências que têm embasado
nossas discussões e nossas ações, apresentamos, em diferentes sessões, reflexões
que temos empreendido impulsionadas pelas proposições que temos realizado nesses
dez anos de projeto. Dentre essas, elegemos três edições dos Piqueniques Literários
para empreender uma análise crítico-reflexiva, destacando questões relevantes para se
pensar as práticas de mediação de leitura literária em contextos educativos.

Considerações sobre mediação de leitura literária e formação de pequenos


leitores
Tomamos como pressuposto primordial que a literatura nos humaniza: propicia
o exercício da capacidade imaginativa, permite a experiência da alteridade e possibilita
a apropriação crítica e ativa da cultura na qual estamos inseridos (CÂNDIDO, 1995).
A mediação de leitura pode ser compreendida como processo de inserção na
cultura, que pressupõe pessoas capazes de construir tramas que colocam em diálogo
diferentes contextos culturais e experiências por meio da literatura, numa interface com
outras linguagens artísticas e suportes de leitura. Implica do mediador, um encontro com
os livros, pela leitura e apreciação, e um encontro com os leitores, pela investigação de
seus desejos, curiosidades, perguntas. Só então, pode estabelecer entre eles, livros e
leitores, um encontro, uma relação, um encantamento. (REYES, 2010).
Nesse sentido, entendemos que a leitura literária é uma prática cultural de
natureza artística que tem como objeto primordial a fruição do texto ou da narrativa pela
dimensão imaginária, desviando de critérios utilitários. Ainda que outros objetivos
possam coexistir, o foco está na interação prazerosa com os livros. (PAULINO, 2005).
Para Teresa Colomer (2007), a educação literária é mais abrangente que a
antiga concepção de ensino de literatura. Podemos considerá-la como um ato político:
por meio dos livros acessamos e nos apropriamos de diferentes representações sociais.

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Acontece, portanto, um compartilhamento de referências, formando uma comunidade
leitora.
Maria Antonieta Antunes Cunha (s/d) estabelece um verbete no Glossário
CEALE para entendermos a experiência estética literária “como a soma da
percepção/apreensão inicial de uma criação literária e das muitas reações (emocionais,
intelectuais ou outras) que esta suscita, em função das características específicas
postas em jogo pelo autor na sua produção.” Essas marcas e indicações deixadas pelo
autor, no encontro com a fruição singular de cada leitor ou ouvinte, constituem uma
experiência única de criação.
Vigotski (2000) destaca-se nos estudos que apontam para a importância dos
processos de leitura e de escrita, enfatizando sua relevância para a constituição da
linguagem e do pensamento. Para o bielo-russo, a linguagem é constituída socialmente
e possui uma estreita relação com o pensamento, uma vez que possibilita a apropriação
e significação da cultura na qual a criança está inserida. Ambos passam por várias
mudanças no curso de desenvolvimento das crianças e a linguagem exerce diferentes
funções, colocando em destaque a importância de enfatizar variadas experiências em
que as crianças se expressem, incluindo as relativas à leitura e à escrita. Isto porque,
como bem destaca o autor, esse processo de constituição do pensamento e da
linguagem culmina na constituição da consciência: “a palavra consciente é o
microcosmo da consciência humana” (VIGOTSKI, 2000, p. 486).
É na experiência de leitura, bem como na brincadeira infantil, que a capacidade
imaginativa aparece na criança pequena e pode ser potencializada pela atuação e
mediação dos pares mais experientes, especialmente dos professores.
De acordo com Vigotski (2009) a criação é condição necessária da existência
humana e os processos de criação manifestam-se com toda a sua força desde a mais
tenra infância. Entretanto, é preciso salientar que a imaginação se constrói sempre de
elementos tomados da realidade e presentes na experiência anterior da pessoa.

Já na primeira infância identificamos nas crianças processos de


criação que se expressam melhor em suas brincadeiras. [...]. A
brincadeira da criança não é uma simples recordação do que
vivenciou, mas uma reelaboração criativa de impressões vivenciadas.
É uma combinação dessas impressões e, baseada nelas, a construção
de uma realidade nova que responde às aspirações e aos anseios da
criança. [...]. É essa capacidade de fazer uma construção de
elementos, de combinar o velho de novas maneiras, que constitui a
base da criação. (VIGOTSKI, 2009, p. 16-17).

Assim, na relação com a literatura, partimos da concepção do livro como


brinquedo: objeto social que desencadeia processos imaginativos e é material para
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criação, ou seja, suporte para a memória e para os roteiros construídos a partir desta,
pois como afirma Vigotski (2009, p. 22):

A atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e


da diversidade da experiência anterior da pessoa, porque essa
experiência constitui o material com que se criam as construções da
fantasia. Quanto mais rica a experiência da pessoa, mais material
disponível para a imaginação dela.

Algo semelhante encontraremos na obra do filósofo alemão Walter Benjamin


(2002), ao elaborar uma história materialista da cultura, que toma os livros (e
brinquedos) infantis como importantes artefatos de apropriação da cultura por meio das
experiências infantis com os outros e com o mundo que as rodeia. Segundo o autor, o
livro, como objeto cultural, conta uma história e insere o leitor na História, possibilita a
renovação do mundo comum num incessante diálogo com a tradição.
A leitura permite ao leitor uma experiência mimética/lúdica: tendo a imaginação
como recurso, ele mergulha na história, relaciona-se com os personagens, torna-se um
deles, experimenta situações e sentimentos diversos, num importante exercício de
progressiva constituição da autonomia. Como mundos permeáveis, os livros se
apresentam como lugares onde o eu pode se refugiar, se perder, mas também, se
encontrar e ter acesso ao outro (MOMM, 2006).
É, por conseguinte, o contato com uma multiplicidade de narrativas, no diálogo
entre gerações distantes no tempo e no espaço, que permitirá às crianças a construção
de um acervo, de uma memória, de uma coleção de imagens que permitirá a elaboração
de roteiros, a criação e representação de histórias, a renovação de conhecimentos. É
nessa direção que Benjamin recorre ao exemplo dos contos de fadas como narrativas
que permitem sempre novas interpretações ao serem contadas, ouvidas, recontadas,
pois, pelo intercâmbio de experiências, fundam uma cadeia narrativa baseada na trama
entre memória individual e história coletiva.
Entende-se que para o campo da educação infantil, a importância do livro como
objeto cultural e a ideia da literatura como prática de inserção e diálogo com a cultura
estão relativamente bem estabelecidas. No entanto, nossos estudos indicam a
possibilidade de que a literatura encontre lugar de destaque como importante eixo
norteador do trabalho pedagógico. Para além disso, por ações de mediação de leitura,
almeja-se que a fruição de obras literárias se torne uma experiência reiterada, e não
casual, nos espaços formais de aprendizagem, mas também para além destes. É nessa
direção que organizamos encontros como os Piqueniques Literários, que conservam um
caráter de aproximação afetiva, sensorial e estética com os livros e histórias.

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Poemas. Ou, sobre a inutilidade da arte e a literatura como possibilidade
de questionar o mundo
O Piquenique Literário Poemas, realizado no segundo semestre de 2014, foi a
primeira edição temática dos nossos encontros. Estávamos desenvolvendo um trabalho
de aproximação das crianças pequenas com a palavra poética, com destaque para a
obra de Manoel de Barros, e avaliamos que, de alguma forma, precisávamos dar maior
amplitude para ele apresentando as possibilidades experimentadas (e acrescentando
outras) nos grupos de crianças que coordenávamos com outros grupo de crianças,
outros professores e outras famílias. Decidimos articular o trabalho pedagógico em
desenvolvimento às ações do projeto de extensão e realizamos um sarau e o
Piquenique Literário.
Pensamos coletivamente o trabalho com a palavra poética com as crianças
nesta atividade, qual seja, o poema na sua própria fruição poética, na sua “inutilidade
de ser”, como afirmam os poetas CRUZ (2016), BARROS, (2000), SIMEON (2007). É
a inutilidade, ou a finalidade em si mesma, que caracteriza a brincadeira e a arte
desviando-as dos propósitos moralizantes ou pedagogizantes, aproximando-se da real
função da arte literária e da brincadeira: de fruição estética.
Objetivou-se nesta proposta provocar a aproximação das crianças com a poesia
como um convite para um grande deleite de obras poéticas de autores brasileiros. Nos
diversos espaços do NDI, em diferentes suportes estavam os poemas de José Paulo
Paes, Manoel de Barros, Arnaldo Antunes, Paulo Leminski, Vinicius de Moraes, Adriana
Calcanhoto, entre outros. Com vozes distintas, os poemas foram lidos, falados,
cantados e dançados. A proposta era acolher, embalar as crianças e as famílias que
chegavam para o piquenique. A ideia era também incluir as famílias, os demais
professores da instituição, os estudantes do Curso de Pedagogia 30 como responsáveis
pela promoção da leitura, com seus olhares, vozes, gestos de acolhimento às crianças
e de aproximação delas à arte da palavra. A indagação central que atravessou este
piquenique foi: Como possibilitar às crianças o acesso a arte literária, provocando-lhes
a apropriação, o acesso a palavra poética e aos seus múltiplos sentidos? Sabemos que

no poeta sobrevive esse ímpeto das crianças, de transgredir a ordem


das coisas e das palavras. Enquanto a criança o faz, entretanto, em
um movimento de reconhecimento e apropriação do mundo, de

30
Estudantes da disciplina Linguagem escrita e criança (MEN7130), ministrada pela professora
Dra. Lilane Maria de Moura Chagas, que promove essa articulação com as atividades de ensino
e extensão desenvolvidas no Núcleo de Desenvolvimento Infantil.
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exercícios da capacidade imaginativa, de constituição de um acervo
memorialístico, o poeta o faz de outro lugar. Brinca porque já conhece
os significados das palavras e possui um vasto repertório que permite,
intencionalmente, com o uso de diferentes técnicas, transformá-las,
transgredindo a linguagem, o instituído, ou alcançando novos sentidos
para compor a palavra em sua multiplicidade e inteireza (MACHADO;
CHAGAS, 2018, p. 47-48).

A proposta às crianças foi a de convidá-las a brincar com as palavras. E nessa


brincadeira e movimento, novos sentidos foram produzidos. Elas eram convidadas a
encontrar os poemas em diferentes ângulos, encontrar significados múltiplos, percebê-
los em sua totalidade. Era o aprendizado da experiência estética com a palavra. A
própria poesia ensinando a ver o mundo e suas coisas. E nesse ver estava a
possibilidade de indagá-lo, perceber o seu avesso.
Desse modo, concebemos a brincadeira e a arte literária (nas suas diferentes
materialidade e expressões) como constitutivas da formação humana, e, portanto, o
acesso a elas nas instituições educativas não pode reduzi-las a instrumentos didático-
pedagógicos para ensinar um conteúdo específico, sobretudo se consideramos as
instituições de educação infantil, pois esse se constitui num elemento limitador das
potencialidades dessas duas atividades humanas.

No País das Maravilhas com Alice. Ou, indagações sobre literatura


nonsense para a infância.
O piquenique de 2015 abordou a narrativa de Alice no País das Maravilhas. Esta
temática teve como motivo disparador das ações, a comemoração dos 150 anos da
publicação da primeira edição de Alice. Segundo Amarante (2015, s/p), “Alice no País
das Maravilhas é um daqueles livros que, como toda grande literatura, estica e encolhe
muito facilmente conforme os interesses, as habilidades e a idade do leitor”. Segundo
Chagas (2016, p. 311), “A narrativa de Alice ultrapassou seu próprio tempo e espaço”.
A história foi apresentada às crianças do NDI por meio de diferentes versões publicadas,
imagens da obra expressada por diversos artistas, filmes e documentários.
O convite feito às crianças foi o de “entrar na toca e ir atrás da Alice, que corria
atrás do Coelho”, um convite a “cair” em sua jornada, em sua aventura, contrariando o
pensamento de que essa história, por ser uma narrativa nonsense demais para as
crianças pequenas, não “serve”. Mas, não pode o nonsense, a fantasia despertar a
curiosidade no ser humano? Não é o nonsense próximo ao pensamento sincrético,
característico nesse período da infância?

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Desse modo, o piquenique foi realizado apostando que as crianças pequenas,
poderiam produzir seus sentidos e suas leituras mediante a obra Alice no País das
Maravilhas, por ser ela uma narrativa potente e repleta de figuras de linguagem tão
fundamentais nos processos de desenvolvimento humano. Também essa obra foi
pensada como temática dessa edição no intuito de possibilitar às crianças o acesso a
um bem cultural produzido pela humanidade, considerando-a como obra literária e
abandonando a categorização enrijecida de indicação de literatura específica para
determinada faixa-etária.
Indagamos: pode a voz de Alice revelar a voz das crianças que muitas vezes
não compreendemos?

Alice é uma criança insubmissa, num mundo povoado por criaturas


autoritárias, tiranas, ou inclementes. [...] quem é a criança com a qual
trabalhamos todos os dias na escola? O que conhecemos delas?
Como vivem? Que saberes nós produzimos sobre elas? E para elas?
Como a escola olha para a criança que recebe? [...] (CHAGAS, 2016,
p. 312).

A história de Alice suscitou e continua suscitando muitas questões. O estudo, a


discussão coletiva, as pesquisas, as trocas, e a literatura nos auxiliam e podem nos dar
pistas significativas para avançarmos. Os clássicos são leituras necessárias e
importantes para crianças de todas as idades. “Quanto às crianças, talvez elas não
façam nem essas nem outras reflexões. Elas simplesmente terão o direito ao prazer ou
não de ler e se divertir com Alice e as criaturas que ela encontrou quando caiu na toca
do Coelho” (AMARANTE apud CHAGAS, 2016, p. 322).
A experiência com a obra de Lewis Carrol, nos provocou a indagarmos:
encontraremos a chave de portas grandes e pequenas para rompermos com o
estabelecido e propormos uma pedagogia que possa ir ao encontro de toda a
potencialidade contida nos processos de aprendizagem e desenvolvimento das
crianças?

Mitos e lendas: daqui e de lá. Ou, algumas reflexões sobre a potência desse
gênero literário.
No ano de 2016, as histórias tiveram como foco o tema mitos e lendas, de modo a se
apresentar e ampliar as referências literárias dos participantes a partir das explicações
mágicas de culturas distantes no espaço e no tempo. A ideia foi transitar entre histórias
de diferentes tribos indígenas brasileiras, com destaque para as contadas pelos próprios
povos indígenas, lendas açorianas/catarinenses registradas pelo folclorista Franklin

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Cascaes, mitologias greco-romanas, lendas latinas, lendas africanas, indianas, dentre
outras.
Foram apresentadas histórias de contextos locais, mais próximas
geograficamente das crianças, e histórias de lugares muito distantes espaço-
temporalmente para que as crianças pudessem realizar essa experiência, por meio da
literatura, de se aproximar de modos de existência próximos e distintos dos seus.

Nesta perspectiva, o trabalho realizado junto às crianças pequenas


acolhe as diferenças como algo constitutivo do outro e de nós mesmos,
ou seja, compreende que as crianças possuem características que as
constituem enquanto sujeitos que pertencem a mesma categoria
etária, mas que diferenciam-se por traços corpóreos, afetivos, étnicos,
culturais e econômicos diversos (MACHADO; SANTOS; PIMENTEL,
2017, p. 04).

A compreensão da diversidade como princípio educativo contribui para demarcar


que as experiências entre as crianças impulsionam o alargamento dos seus padrões de
referência, na medida em que se tenha assegurado o diálogo e o reconhecimento das
diferenças.
Para tanto, encontramos na literatura dos mitos e lendas de diferentes tempos e
lugares uma possibilidade de garantir uma aproximação efetiva da criança com outras
referências, orientadas a partir do rompimento de relações de dominação etária,
socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa.
Como bem assinala Clarice Lispector,

As lendas são uma potência. Elas procuram nos transmitir alguma


coisa importante que se passa na zona penumbrosa e criativa popular.
E o que não existe passa a existir por força mesmo de seu encantatório
enredo (2014, p. 05-06).

Assim como os contos de fadas, os mitos e lendas conservam uma potência de


relação com conhecimentos ancestrais que não se perdem no tempo porque conservam
sua capacidade de aconselhamento para diferentes gerações.

Considerações finais
Desde o primeiro piquenique organizado pela equipe do projeto, tínhamos a
pretensão, a exemplo do trabalho pedagógico realizado por um coletivo de professoras
com os bebês e as crianças bem pequenas no Núcleo de Desenvolvimento Infantil, de
ultrapassar as indicações editoriais destinadas aos mais pequeninos, sobretudo, a
literatura oferecida às crianças de 0 a 3 anos.

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Com o necessário desejo de ampliar o repertório linguístico, textual e imagético
das crianças, subvertemos os sistemas de classificação etária e buscamos apresentar
para as crianças bem pequenas ilustrações e textos que rompessem com uma estética
padronizada, empobrecida e estereotipada para o público infantil, pois entendemos que
o livro, como objeto social, permite uma inserção crítica e ativa na cultura.
O processo cuidadoso de escolha destas literaturas precede não apenas um
olhar atento ao conteúdo escrito, mas a qualidade desse objeto em sua materialidade,
suas formas e texturas, suas imagens, cores e tons, a organização do seu texto escrito
e imagético, a qualidade das adaptações e traduções. Assim, nos Piqueniques Literários
realizados, buscamos apresentar o livro em suas diversas possibilidades: com texto,
sem texto, com imagens, com textos curtos, textos longos, poesias, parlendas, textos
informativos, biográficos, literários, cartas, bilhetes, trava-línguas.
Outra questão fundamental que consideramos ao organizar os encontros com
as histórias e livros foi a construção de uma temporalidade diferenciada do tempo
cronológico que costumamos experimentar no contexto escolar. Uma temporalidade
mais alargada, de parada no tempo, como diria Benjamin (1985). Uma temporalidade
permeada de pausas e silêncios que constroem um ritmo que permite ao leitor/ouvinte
se inserir na história ativamente, se apropriar dela e narrá-la.
E nesse jogo de contar, narrar, recontar e ler, a leitura literária configura-se como
uma experiência que oferece às crianças muitas respostas, mas provoca também
inúmeras perguntas, abrindo possibilidades para a imaginação, a criação e a autoria.
A literatura (e a poesia exerce muito proficuamente esse papel) tem que
deslocar, desconfortar, propiciar uma leitura crítica de mundo, fazer uma revolução
interior. Fundamental para isso é o professor/mediador que escolhe obras literárias
capazes de oferecer essa experiência ao leitor/ouvinte. É esse, que no processo de
apropriação da cultura, problematiza o que lhe está sendo apresentado, afinal, um livro
é resultado de um conjunto de negociações que se amplia pela leitura/escuta.
Assim, busca-se pensar um trabalho coletivo, articulado e que promova o
desenvolvimento e aprendizado da criança em suas múltiplas dimensões, tendo como
finalidade a qualidade das experiências e das relações estabelecidas, sendo o produto
final uma consequência dessa experiência.
Trata-se, em outras palavras, de criar condições para o desenvolvimento da
identidade, autonomia e percepção de si e do outro, transformando o espaço da
Educação Infantil em um lugar de encontros com contextos próximos e distantes no
tempo e no espaço. A educação, nesse contexto, se coloca exatamente na fronteira

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entre o velho e o novo, no diálogo entre a conservação e a renovação, aspirando
ultrapassar os processos de imitação e reprodução, alcançando uma relação de
interpretação, representação e renovação do mundo, mediadas pela literatura.

Referências
AMARANTE, D. W. Qual é a Moral de Alice. Palestra proferida no evento: 150 Anos de
Alice. CED, UFSC, 2015 (mimeo).

BARROS, M. Livro sobre Nada. Ilustrações de Wega Nery. Rio de Janeiro: Record,
2000.

BENJAMIN, W. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. 4. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1985. 253p.

BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo:


Duas Cidades, 2002. 173p.

CANDIDO, A. Vários escritos. 3ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades,
1995.

CHAGAS, L. A Jornada de Alice no País das Maravilhas: indagações sobre a criança e


a avaliação escolar. Alfabetização na perspectiva do letramento: letras e números nas
práticas sociais / Organizadores, Everaldo Silveira... [et al.]. – Florianópolis:
UFSC/CED/NUP, 2016. p 309 – 322. [Impresso] Disponível em:
https://pnaic.ufsc.br/files/2016/06/Alfabetiza%C3%A7%C3%A3o-na-perspectiva-do-
letramento-letras-e-n%C3%BAmeros-nas-pr%C3%A1ticas-sociais.pdf

COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007.

CRUZ, A. Vamos comprar um poeta. Portugal: Editorial Caminho, 2016.

CUNHA, M. A. A. Experiência estética literária. Glossário CEALE - termos de


Alfabetização, Leitura e Escrita para educadores. Disponível em:
www.glossarioceale.com.br. Acesso em 08/04/2017.

LISPECTOR, C. Doze lendas brasileiras: como nasceram as estrelas. Ilustrações de


Suryara. Rio de Janeiro: Rocco Pequenos Leitores, 2014.

MACHADO, C. CHAGAS, L. Poesia e Infância: a experiência de brincar com as


palavras. POÉSIS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação –
Mestrado – Unisul, Tubarão. v 12, n. Especial, p. 45 – 61. Jun/dez, 2018.

MACHADO, C.; SANTOS, L. M.; PIMENTEL, M. E. C. Mitos e lendas daqui e de lá:


imaginário e diversidade cultural na formação de pequenos leitores. 2017. Disponível
em:
http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/files/uploads/xii%20jogo%20do%20livro/AN
AIS%20parte%201/MITOS%20E%20LENDAS%20DAQUI%20E%20DE%20L%C3%81
.pdf

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MOMM, C. M. Entre memória e história: estudos sobre a infância em Walter Benjamin.
2006. 116 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Ciências da Educação,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.

PAULINO, G. Algumas especificidades da leitura literária. In: PAIVA, A. et al. (orgs.).


Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

REYES, Y. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância. São Paulo:


Global. 2010.

SIMEÓN, J. P. Isto é um poema que cura os peixes. Ilustração Olivier Tallec. Tradução
Ruy Proença. São Paulo: Comboio de Corda, 2007.

VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins


Fontes, 2000.

VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009.

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O QUE TEM NESTA BEBETECA? CONHECENDO E
EXPLORANDO O ACERVO DE UMA BIBLIOTECA PARA A
PRIMEIRA INFÂNCIA

Mônica Correia Baptista, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas


Gerais, Professora associada
Camila Souza Petrovitch, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas
Gerais, estudante de graduação em Pedagogia
Júlia Viégas Borges, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas
Gerais, estudante de graduação em Pedagogia
Laís Villela Penna, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais,
estudante de graduação em Pedagogia

Eixo Temático: Literatura infantil para crianças pequenas.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este artigo apresenta o projeto “O que tem nesta Bebeteca?”, uma das ações
desenvolvidas no âmbito do programa de extensão, com interface entre ensino e
pesquisa, denominado “Bebeteca: uma biblioteca para a primeira infância”. Este
programa é desenvolvido por professoras e alunas que integram o Grupo de Pesquisa
Leitura e Escrita na Primeira Infância (LEPI), do Centro de Alfabetização, Leitura e
Escrita (CEALE) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil
(NEPEI), ambos da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais
(FaE/UFMG).
É importante destacar que o projeto compreende as crianças como sujeitos
capazes, em processo constante de descobertas e transformações. Entendendo a
infância como uma fase fundamental da formação e constituição dos sujeitos, afirma-se
o papel central que a literatura, como chave da relação entre sujeito e mundo, cumpre
na formação das subjetividades infantis.
Nesse sentido, dentro dos aspectos trabalhados no projeto “O que tem nesta
bebeteca?” e também no programa Bebeteca, compreende-se a literatura como um
direito de todas as crianças. Neste artigo, defende-se o compromisso com esses
sujeitos por meio do acesso à literatura de qualidade, com vistas a ampliar as

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oportunidades de acesso, discussão, reflexão e formação da e sobre a literatura,
ampliando seu alcance e suas potencialidades para as infâncias.
Este artigo abordará, em primeiro lugar, os momentos de leitura com crianças
de zero a seis anos de idade como processos de construção do pensamento infantil e
da leitura de mundo. Em seguida, será abordada a organização dos espaços, a
construção do acervo, os critérios de escolhas de livros e a relação entre mediador, livro
e criança. Finalmente, apresentaremos um dos projetos do programa, buscando
ressaltar suas contribuições para a formação de mediadores de leitura na primeira
infância.

A importância da literatura infantil para a primeira infância


Desde que nascem, as crianças iniciam seu processo de produção de cultura. A
linguagem é a ferramenta fundamental por meio da qual elas se constituem como
sujeitos que significam, compartilham e subjetivam suas experiências. Segundo Gouvêa
(2011), a humanidade se constituiu como tal por meio da linguagem, ao sermos capazes
de produzir e partilhar signos, ultrapassamos o domínio da natureza e nos tornarmos
produtores de cultura.
Quando pequenas, as crianças operam esforços significativos para
compreender o mundo e para com ele interagir. Para isso, enfrentam o desafio de
compreender os signos, os símbolos e os complexos sistemas de representação que
circulam socialmente, numa constante busca de dar sentido a eles, e deles se apropriar.
Por meio da linguagem nos apropriamos de vários sistemas simbólicos da cultura;
música, dança, desenhos, mapas, tecnologia, matemática, etc.
Quanto à apropriação da linguagem escrita, esta se dá à medida que as crianças
pensam sobre o significado dos traços que veem desenhados no papel, ao se
perguntarem sobre as diferentes funções que o texto escrito assume na vida cotidiana,
ao desejarem compreender e se apropriar desse objeto do conhecimento. Desse modo,
elas incorporam novas maneiras de agir e de pensar e, consequentemente, vão
modificando sua forma de estar no mundo e de interagir com ele.
O sistema de escrita constitui umas das principais ferramentas de organização
das sociedades contemporâneas, e o contato das crianças com os elementos próprios
dessa cultura antecede sua entrada em instituições educativas. A apropriação da
linguagem escrita envolve a compreensão de diferentes práticas sociais, visto que ler é
compreender, mesmo que a criança ainda não saiba decodificar. A linguagem escrita
representa papel central na construção do pensamento infantil e é na sua forma artística,

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ou seja, a literária, que se expressa uma maneira particular de interação das crianças
com o mundo.
Queirós (2012) descreve e analisa alguns dos elementos que aproximam
infância e literatura:

[...] Liberdade, espontaneidade, afetividade e fantasia são elementos


que fundam a infância. Tais substâncias são também pertinentes à
construção literária. Daí, a literatura ser próxima da criança. Possibilitar
aos mais jovens acesso ao texto literário é garantir a presença de tais
elementos, que inauguram a vida, como essenciais ao seu
crescimento. Nesse sentido, é indispensável a presença da literatura
em todos os espaços por onde circula a infância (QUEIRÓS, 2012, p.
27).

As afinidades das crianças com as artes, em especial com a literatura,


evidenciam-se quando compreendemos que elas, frequentemente, ao experimentarem
a linguagem, ultrapassam suas funções meramente representativas, de interação ou de
comunicação, transformando a própria linguagem em um objeto lúdico e criativo para
nomear o mundo.
Baptista (2017) defende que a literatura como arte se instala como capacidade
de captar e apresentar o mais que real, visto que a apreensão da totalidade do real é
algo que nos escapa. Nas páginas dos livros, os bebês encontram não a realidade, mas
uma representação do real, organizado pelas linguagens verbal e visual e isso
caracteriza a grande descoberta nessa fase de vida: a de que o mundo pode ser
representado. O acesso do bebê ao texto literário pode significar um fértil caminho para
a inclusão das crianças no universo da cultura. Para a autora, a literatura oral é a porta
de acesso para o mundo da linguagem e, mais especificamente, para o mundo da
linguagem escrita. Cantar, recitar poesias, parlendas, brincar com rimas, entonações,
repetições são brincadeiras que abrem infinitas possibilidades para o contato dos bebês
com o mundo dos signos e da construção de sentidos. A autora ainda conceitua como
“fragmentos comunicativos”, essa interação repleta de signos e de sentidos, que se
estabelece entre o recém-nascido, sua mãe ou alguém que lhe cuida, que por sua vez,
irão possibilitar a apropriação da linguagem.
Ao pensar essa interação, López (2016) defende que os primeiros cuidados têm
uma profunda relação com a aprendizagem da leitura, tanto a leitura da vida, do mundo,
de si mesmo, quanto a leitura de livros. A autora defende ainda que os livros, como
objetos culturais, cumprem um papel importante na aproximação dos bebês à literatura.
Assim, cultura, linguagem e literatura compõem a essência da descoberta de mundo na

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primeira infância, e é no entrelaço entre elas que os bebês e demais crianças pequenas
vão se constituindo enquanto sujeitos e se relacionando com seu universo.
Yolanda Reyes (2010) afirma que a leitura tem suas raízes na complexa
atividade interpretativa que o ser humano desenvolve desde o seu ingresso no mundo
simbólico, e que as aventuras dos sujeitos neste mundo se iniciam muito antes do
ingresso na alfabetização formal. Para a autora, nestas experiências de leitura, muito
antes da leitura alfabética, estão as bases da vida emocional e cognitiva, assim como
estão também as bases do desejo de ler. Além do conteúdo da narrativa, as histórias e
a voz são o pretexto para manter os seres queridos literalmente envolvidos nessa trama
de palavras que participa da nossa busca pela construção de sentido.
Essas autoras nos ajudam a responder às perguntas: por que ler para crianças?
Qual a importância de um mediador literário? Baptista (2017) também defende que a
capacidade de construir e atribuir sentidos requer a interação com o Outro que
apresenta um mundo de signos. Nessa perspectiva, ler para bebês significa
compreender o ato de leitura como um processo de construção de sentidos sempre
partilhado. Os bebês e as crianças pequenas precisam de um adulto mediador que se
disponibilize a apresentar os livros que irão compor o seu acervo de construção de
sentido.
A emoção de decifrar o sentido de uma imagem, a alegria de ouvir a voz de quem
conta uma história, a satisfação de imitar os sons que ouve e de pronunciar a própria
palavra são algumas possibilidades que os bebês experimentam nas atividades de
leitura mediada. Para alcançar tais possibilidades, a mediação de qualidade requer um
trabalho pedagógico sistemático e cuidadoso, para que seja capaz de formar um leitor
que saiba:
[...] escolher suas leituras, que aprecie construções e significações
estéticas, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres. Esse leitor
tem de saber usar estratégias de leitura adequadas aos textos
literários, aceitando o pacto ficcional proposto, com reconhecimento de
marcas linguísticas de subjetividade, intertextualidade,
interdiscursividade, recuperando a criação de linguagem realizada, em
aspectos fonológicos, sintáticos, semânticos e situando
adequadamente o texto em seu momento histórico de produção.
(PAULINO, 2004, p. 56).

Assim se traduz a importância da literatura infantil para a primeira infância. É na


interação com o Outro que são apresentadas possibilidades para inserção do sujeito na
cultura, por meio do rico universo de fantasia que são os livros. Para Lima (2017) ler
para uma criança é agir no campo da micropolítica da infância. Para a autora, essa ação
é de resistência, promoção, rompimento; é apostar no que pode uma criança, não para

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transformá-las em algo distinto do que são, mas para promover as potencialidades da
vida infantil. Assim, acreditamos que uma formação leitora de qualidade é um dos
caminhos para uma formação humana plena.

A bebeteca da faculdade de educação da UFMG


Segundo Baptista (2012), o termo Bébéthèque, usado pela primeira vez em
1987 em uma palestra na Salamanca, deu origem a este conceito de um espaço de
literatura voltado para a primeira infância. Porém, a ideia deste espaço constituído como
um local de leitura para bebês e demais crianças pequenas só foi colocada em prática
três anos depois em uma biblioteca, na Espanha.
Compreende-se uma bebeteca como um local especializado no atendimento à
primeira infância - crianças de zero meses a seis anos de idade. Além de um espaço e
de um acervo dedicados às necessidades das crianças menores e de seus pais, inclui
o empréstimo desses livros, palestras periódicas sobre seu uso e sobre textos,
assessoria e uma atenção constante por toda parte dos profissionais a seus usuários
(BAPTISTA, 2012).
No Brasil, ainda hoje, existem poucas bebetecas como espaços voltados para a
promoção e mediação literária para a primeira infância, sendo a Bebeteca da Faculdade
de Educação da UFMG um desses espaços. Essa Bebeteca foi inaugurada em outubro
de 2011, durante a realização do IX Jogo do Livro e do III Fórum Ibero-Americano de
Letramentos e Aprendizagens, eventos organizados pelo Centro de Alfabetização
Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da UFMG (CEALE/FAE/UFMG). Ainda que
apresente muitas das características anteriormente destacadas, a Bebeteca da
FaE/UFMG possui algumas especificidades determinadas por seu vínculo institucional.
Uma das principais características que tornam a Bebeteca da FaE única é seu
espaço físico, constituído dentro da biblioteca da Faculdade de Educação. Assim, por
se tratar de um espaço instalado na biblioteca de uma faculdade responsável pela
formação de professores, seu objetivo principal é potencializar a formação de docentes
ou de profissionais que atuam ou atuarão como mediadores e promotores de leitura
junto a crianças de zero a seis anos de idade. Considerando tal objetivo e as
especificidades dele decorrentes, os projetos desenvolvidos no âmbito da Bebeteca da
FaE/UFMG, sejam eles de pesquisa, ensino ou extensão, terão sempre como principais
interlocutores e destinatários esses profissionais.
Vale destacar também que a existência desta Bebeteca dentro da biblioteca da
Faculdade de Educação é um reflexo da importância ao que se atribui ao direito da

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criança pequena de frequentar espaços do livro e da leitura. O intuito é legitimar esta
ocupação, pelas crianças, com o valor democrático que este direito reconhece. Para
tanto, esse local, que muitas vezes é pensado somente para o adulto, deve se tornar
um espaço que pensa e valoriza as especificidades da infância, por isso, para além de
um local de formação dos mediadores de leitura, a Bebeteca da FaE também se
transforma em um espaço com características que melhor dialogam com ações de
promoção e mediação de leitura com as crianças de zero a seis anos.
O Programa Bebeteca é formado por diferentes projetos que promovem a
formação de promotores e mediadores de leitura e também o contato e a relação das
crianças com os livros. Assim os projetos “Tertúlia Literária”, “Oficina de Formação de
Mediadores e Promotores de Leitura” e “O que tem nesta bebeteca?” atendem aos
professores e mediadores de leitura, enquanto os projetos “Hora da história na FaE”,
“Nana nenêm: entre livros, histórias e canções”, “A Hora da História na FaE” e
“Tertulinha literária” têm como foco a participação das crianças.
Hoje a Bebeteca da FaE possui em seu acervo cerca de 2.000 títulos e a escolha
desses livros se baseia na qualidade e na bibliodiversidade, que segundo Carrasco
(2015, p. 40), “são os dois requisitos básicos na construção de bibliotecas para a
primeira infância”. Os critérios dizem respeito à qualidade textual, temática e gráfica. Já
a bibliodiversidade, é pautada na variedade das obras em relação aos tipos textuais, a
materialidade, as temáticas, as ilustrações, a autoria etc.. Tais critérios são os mesmos
sistematizados pelo extinto Programa Nacional Biblioteca da Escola - PNBE31, que
considerava a bibliodiversidade estabelecida pelos conceitos tipologia (ficção e não
ficção), qualidade (seja ela temática ou textual) e projeto gráfico (considerando
ilustrações e aspectos materiais).
Em síntese, a Bebeteca da Faculdade de Educação tem como objetivo ser um
espaço voltado para a difusão da literatura infantil, através da promoção e da mediação
literária para a primeira infância. Como um programa universitário ele é sustentado pelo
tripé ensino, pesquisa e extensão, tendo como objetivo viabilizar, através das ações
realizadas nesse espaço, as oportunidades de acesso à literatura, de formação de
mediadores e a pesquisa efetivada através do exercício do pensamento crítico e
reflexivo. O projeto “O que tem nessa bebeteca?” é uma das ações que torna possível

31
Programa que distribuiu, entre 2008 e 2014, obras literárias para creches e pré-escolas
públicas, tinha o objetivo democratizar o acesso a obras de literatura infantis e juvenis, brasileiras
e estrangeiras, e a materiais de pesquisa e de referência a professores e alunos das escolas
públicas brasileiras. (PAIVA, 2016)

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alcançar esta ampliação do alcance da literatura infantil, potencializando a rica
experiência que a literatura pode oferecer para as crianças e adultos.

Projeto “O que tem nesta bebetecas?”


“O que tem nesta bebeteca?” surgiu em 2019 com o objetivo de explorar os livros
que compõem o acervo da Bebeteca da FaE. A equipe da bebeteca e do grupo de
pesquisa LEPI perceberam que tinham em mãos uma diversidade de títulos, autores,
editoras, temáticas, gêneros, materiais que nem sempre eram compartilhados com os
participantes dos projetos de formação ou com as crianças nas ações de mediação. Por
isso, tornou-se necessário conhecer mais detalhadamente esse acervo e compartilhar
os interesses, conhecimentos e descobertas entre a equipe e também com outros
participantes do projeto.
A cada mês eram selecionados três livros dentro de uma temática proposta,
como por exemplo, livros para bebês, livros com temáticas delicadas, livros de imagem,
livros ilustrados, entre outros e, a partir dessas escolhas, cada livro era resenhado por
participantes da equipe do projeto. Tais resenhas foram elaboradas considerando três
partes: Cabeçalho – contendo informações básicas sobre a obra - título, autor,
ilustrador, editora, ano de lançamento e foto da capa; Corpo de texto - formado por uma
estrutura narrativa que dialoga com a criança; e Indicação de leitura - voltada para o
mediador literário com sugestões de como ler e para quem ler, porém nunca como uma
orientação determinante ou limitada à faixa etária.
As resenhas eram apresentadas e discutidas em encontros mensais, tendo
como público alvo professoras e mediadoras de leitura, com o objetivo de compartilhar
o acervo da Bebeteca. O espaço era preparado com livros à disposição sobre a
temática, e o encontro se iniciava com uma leitura mediada de um livro que introduziria
a relação entre o tema, o livro e a mediação de leitura. Posteriormente, as resenhas dos
livros selecionados eram apresentadas, acompanhadas pela leitura do livro
correspondente. Em seguida discussões eram promovidas nas quais as participantes
apresentavam críticas, impressões e observações sobre as resenhas e sua adequação
com o livro.
Vale destacar que a escolha do uso da resenha como forma de apresentação
dos livros e difusão do acervo se deu sob dois aspectos: o primeiro, como uma forma
de instigar o desejo de ler e descobrir a obra. O segundo aspecto, como uma ferramenta
de auxílio dos mediadores para escolha e composição de seus acervos. Quanto à
linguagem textual, se propôs uma brincadeira com as palavras, garantido um diálogo

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entre a resenha e o livro, destacando aspectos que despertam o desejo de ler. A
linguagem era voltada à criança, ainda que o leitor da resenha fosse o mediador, porque
entendemos a criança como destinatário principal. A indicação de leitura tem como foco
uma orientação para o adulto mediador, com aspectos para explorar no livro,
brincadeiras para serem feitas durante a leitura, referência relacionadas a outros livros,
músicas, cantigas, parlendas etc.
Como já destacado acima, o projeto nasceu para explorar o acervo da Bebeteca
da FaE, porém, i nos momentos de apresentação dos livros para o público participante
das oficinas, a equipe do LEPI realmente atestava suas resenhas. No contato direto
com o destinatário mediador, se estabeleciam momentos ricos de feedback sobre as
resenhas. Todas as sugestões, críticas e observações foram anotadas e discutidas com
o intuito de adaptá-las.
A realização desse projeto dentro da Faculdade de Educação da UFMG
evidenciou a importância da formação de professores e mediadores de leitura, além de
estudos específicos sobre literatura infantil na primeira infância. Por mais que o foco
fosse a apresentação do acervo, os debates que ocorreram acerca de temas teóricos
do universo da infância e da literatura potencializaram os encontros. A participação do
público inscrito e o surgimento e desenvolvimento das discussões são pontos relevantes
do projeto, uma vez que a Bebeteca é um espaço de formação.
Ao final de cada encontro, foi disponibilizado um questionário anônimo para ser
respondido. Este revelou as impressões e apontamentos das participantes, além de ser
por meio do questionário que eram sugeridas as temáticas para os próximos encontros.
Esses questionários demonstraram a importância dos encontros para o público como
um meio para se conhecer novos livros e aumentar o repertório; aprimorar as mediações
de leitura; ampliar a segurança na escolha dos livros a partir da compreensão de
critérios de seleção de livros de qualidade; e também a importância como um espaço
relevante para troca de experiências entre as participantes.
Ao longo do ano de 2019, foram realizadas cinco sessões abordando os
seguintes temas: contos clássicos, livros para bebês (abordado em dois encontros
consecutivos e relacionados), livros ilustrados e temas delicados. A média de
participantes por encontro foi de 25 pessoas, e, ao todo, foram lidos 18 livros e
apresentadas 12 resenhas. Durante os encontros os participantes exploraram os livros
resenhados, assim como os outros livros oferecidos para aprofundamento da temática.
Além desses, o acervo literário da Bebeteca estava também à disposição.

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Diversificar as temáticas abordadas, assim como disponibilizar o acervo,
incluindo outros livros além dos resenhados, visava ampliar as experiências dos
participantes e afirmar o compromisso com a defesa da bibliodiversidade. Essa
abordagem permitiu fomentar os debates quanto aos diversos assuntos que perpassam
a infância, visto que interpretar o mundo é também elaborar os próprios sentimentos.
Assim, a literatura amplia o repertório das crianças, ajudando-as a compreenderem o
mundo, que se constitui de beleza e felicidade, mas também de angústia, medo e perda.
O contato com acervo diversificado auxiliava os participantes da oficina a compreender
que criança pode construir um rico universo de referência simbólica, por meio de
práticas de leitura literária que que levem em conta as especificidades da primeira
infância.
O projeto “O que tem nesta bebeteca?” é uma experiência enriquecedora para
os envolvidos, isso porque entre os momentos de trocas, participação, críticas e
sugestões há uma ampliação do olhar dos presentes para as obras apresentadas. Os
encontros do projeto possibilitaram a compreensão de que o livro infantil é muito mais
do que o texto verbal e imagético, mas a relação desses dois aspectos, entre si e com
o leitor, que fortalecem as experiências literárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo teve como objetivo apresentar o projeto “O que tem nesta
Bebeteca?”, uma das ações desenvolvidas na “Bebeteca: uma biblioteca para a primeira
infância”, da Faculdade de Educação da UFMG. Tendo em vista a Bebeteca como um
espaço essencial para formação de mediadores, defendeu-se a relevância do projeto
como ação para conhecer o espaço e o acervo, além de ampliar importantes discussões
sobre critérios de escolhas, através das trocas de experiências e do exercício do debate
para construção de pensamento crítico e reflexivo acerca da literatura.
Essas perspectivas foram pautadas na compreensão das crianças como sujeitos
com potencial, na infância como fase fundamental de constituição humana e na
literatura como um dos caminhos para sua inserção na cultura. Além disso, a literatura
foi compreendida como um direito de todas as crianças e os momentos de leitura com
crianças de zero a seis anos de idade como processo de construção do pensamento
infantil e da leitura de mundo.
Ler, desde os primeiros meses de vida, desenvolve o gosto pela leitura e
contribui para apreciação estética, amplia o vocabulário, familiariza a criança com o
estilo formal da linguagem escrita e contribui para sua formação humana, ampliando

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suas experiências. A discussão proposta no artigo suscitou questões que precisam ser
levadas em consideração: por que ler para crianças? Qual a importância de um
mediador literário? Defendemos a importância de um adulto que, na interação,
possibilita a construção de sentidos partilhados, oferecendo um acervo literário para
elaborações simbólicas, e também para a formação de crianças leitoras. Por isso, é
importante viabilizar a formação de profissionais capacitados que tenham um olhar
sensível sobre a literatura infantil.
O projeto “O que tem nessa bebeteca?” reforça a relevância do mediador como
uma ponte entre o livro e a criança. É na relação das crianças com o mediador, e destes
com o livro, que se constitui as interações necessárias para a efetivação da leitura
literária na primeira infância.
O Projeto “O que tem nesta Bebeteca?”, juntamente com outras ações
desenvolvidas na a Bebeteca FaE/UFMG se constituem em espaços importantes para
instrumentalizar adultos para a desafiadora tarefa de selecionar livros infantis de
qualidade, organizar acervos, preparar medições e realizar leituras em voz alta. Investir
na formação de promotores e mediadores de leitura é essencial para que a educação
literária se torne uma chave da relação entre crianças e mundo.

Referências
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LOPES, R. (org) As crianças e os livros. Fundação Municipal de Cultura, Belo Horizonte:
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LÓPEZ, M. E. Os Bebês, as professoras e a literatura: um triângulo amoroso. In: Bebês


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Brasília: MEC/SEB, 2016.

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PAIVA, A. Livros infantis: critérios de seleção - as contribuições do PNBE. In: Livros
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PAULINO, G. e PINHEIRO, M. P. Ler e entender: entre a alfabetização e o letramento.


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QUEIRÓS, B. C. Manifesto por um Brasil Literário. In: Revista Palavra: SESC Literatura
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Global, 2010.

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INTERVENÇÕES PEDAGÓGICAS HUMANIZADORAS NA
EDUCAÇÃO INFANTIL: PROPOSIÇÕES DE CECÍLIA MEIRELES

Marta Chaves, Universidade Estadual de Maringá (UEM) Gizeli Aparecida Ribeiro


Alencar, Universidade Estadual de Maringá (UEM) Eduarda Pereira de Souza,
Universidade Estadual de Maringá (UEM) Cristiane Aparecida da Silva Pastre,
Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Eixo Temático: Literatura Infantil para crianças pequenas

Considerações iniciais
No presente artigo, tratamos da Literatura Infantil e das proposições de Cecília
Meireles (1901-1964) para a educação, como referência para refletirmos sobre as
possibilidades de intervenções pedagógicas humanizadoras na educação infantil que
contribuam para o desenvolvimento das crianças pequenas. Amparamo- nos nos
princípios teórico-metodológicos da Teoria Histórico-Cultural, cujo enlace se apresenta
na defesa da essencialidade da educação, o desenvolvimento máximo de todos os
homens por meio da apropriação das riquezas culturais produzidas pela humanidade
ao longo da história.
Segundo o intelectual soviético, Leontiev (1978), a relação entre
desenvolvimento, ensino e aprendizagem, relaciona-se com a organização do bom
ensino, qual, por sua vez, é essencial para o processo de desenvolvimento intelectual
do indivíduo. Leontiev, em seu texto “O Homem e a Cultura”, presente no livro “O
desenvolvimento do psiquismo”, defende que o desenvolvimento humano “[...] está
submetido não às leis biológicas, mas às leis sócio-históricas” (1978, p. 262), sendo as
características especificamente humanas não transmitidas biologicamente, mas
adquiridas mediante o processo de apropriação cultural.
O desenvolvimento das funções psicológicas superiores depende, portanto, da
apropriação dos bens culturais criados pelas gerações anteriores, das condições
históricas, econômicas e socioculturais, isto é, das condições concretas da vida em que
a criança é inserida, uma vez que nem todas as crianças têm acesso aos
conhecimentos mais elaborados, os quais devem ser apresentados e ivenciados por

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elas, para então serem apropriados. A humanização é compreendida nessa perspectiva
como um processo que ocorre por meio das relações sociais:

Cada geração começa, portanto, a sua vida num mundo de objetos e


de fenômenos criado pelas gerações precedentes. Ela apropria-se das
riquezas deste mundo participando no trabalho, na produção e nas
diversas formas de atividade social e desenvolvendo assim as aptidões
especificamente humanas que se cristalizaram, encarnaram nesse
mundo. Com efeito, mesmo a aptidão para usar a linguagem articulada
só se forma, em cada geração, pela aprendizagem da
língua.(LEONTIEV, 1978, p.265).

Dessa forma, compreendemos que cada ser humano é incluído pela família,
comunidade, e escola no processo de humanização, em um movimento inter e
intramental, contínuo, mediatizado e mediatizado. As instituições escolares constituem
o espaço privilegiado de aprendizagem dos bens culturais pelas novas gerações,
mediante um ensino sistematizado e intencional.
Nesse contexto, propomos que as práticas pedagógicas proporcionem o máximo
desenvolvimento das crianças, que sejam humanizadoras, como explica Chaves (2011,
p. 98):

Práticas pedagógicas humanizadoras poderiam ser caracterizadas


como aquelas em que os encaminhamentos teórico-metodológicos
expressem a ideia de capacidade plena das crianças no processo de
ensino-aprendizagem. Assim, se firmaria a ideia de potencial para
aprender e nesse processo não haveria dependência de
condicionantes biológicos, por exemplo. Outro aspecto que marca uma
educação humanizadora é a organização do tempo e do espaço. Com
isto, queremos pontuar que todas as ações das crianças seriam
organizadas levando em consideração as máximas elaborações
humanas, independentemente de sua idade, em se tratando de centros
de Educação Infantil ou de escolas de Ensino Fundamental.

Nesse sentido, faz-se necessário oferecermos o que há de mais elaborado, os


clássicos, como defende Saviani (2013), nas intervenções pedagógicas afetas à
Literatura Infantil, pois são os critérios de escolha tanto do conteúdo quanto das
mediações que potencializarão o desenvolvimento das funções psíquicas superiores
como memória, atenção, concentração, raciocínio lógico, entre outras.

Literatura Infantil: Possibilidades de desenvolvimento

As contribuições da Literatura Infantil para o desenvolvimento das crianças


pequenas são linegáveis, quando as obras a elas apresentadas são “as mais belas,
mais ricas, mais completas e espirituais que o mundo possui” (MEIRELES, 2001, p.
120). Cecília Meireles, em seu livro “Problemas da Literatura Infantil”, levanta algumas
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questões a respeito desse tema: “A Literatura Infantil faz parte da Literatura geral?”. A
essa pergunta acrescenta essas: “Existe uma Literatura Infantil?” “Como Caracterizá-
la?” (MEIRELES, 1984, p.20). A autora, responde esses questionamentos afirmando
que “Evidentemente, tudo é uma literatura só. A dificuldade está em delimitar o que se
considera como especialmente do âmbito infantil. São as crianças, na verdade, que o
delimitam com sua preferência” (MEIRELES, 1984, p.20).
Cecília Meireles escreveu de 1930 a 1933 uma coluna diária para a Página da
Educação do Diário de Notícias32, em uma publicação intitulada “Livro para crianças (I)”.
Ali, discutiu duas condições a serem consideradas na escrita de livros para crianças, a
primeira, a ciência:

Escrever para crianças tem de ser uma ciência, porque é necessário


conhecer as intimas condições dessas pequenas vidas, o seu
financiamente, as características, as suas possibilidades – e todo o
infinito que essas palavras comportam – para escolher, distribuir,
graduar, apresentar o assunto.(MEIRELES, 2001, p.121).

E a segunda condição, a arte:

Tem de ser uma arte porque, ainda quando atendendo a tudo isso, se
não estivermos diante de alguém que tenha o dom de fazer de uma
pequena e delicada coisa uma completa obra de arte, não possuiremos
o livro adequado ao leitor a que se destina. (MEIRELES, 2001, p. 121).

A autora defende as condições essenciais de um livro que se pretende qualificar


como Literatura Infantil. Demonstra respeito pela criança, por sua capacidade e
potencialidade. Em consonância com esse posicionamento, Nelly Novaes Coelho
(2000), em seu livro Literatura Infantil – teoria, análise e didática, traz a seguinte
definição de Literatura Infantil:

A literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte:


fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, e a vida,
através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o
real, os ideais e sua possível/impossível realização (COELHO, 2000,
p. 27).

Alguns livros escritos, para atender à demanda do capital, priorizam a


quantidade em detrimento da qualidade e das características imprescindíveis à
Literatura Infantil, como a arte e a ciência, “[...] não possuem, na verdade, atributos
literários, a não ser os de simplesmente estarem escritos. O equilíbrio provém de que
se a arte literária é feita de palavras, não basta juntar palavras para realizar obra

32
Importante jornal carioca fundado em 1930 por Orlando Ribeiro Dantas, saiu de circulação em
1974.
186

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literária” (MEIRELES, 1984, p. 20-21). Em harmonia com a defesa de Meireles e Coelho,
destacamos nossa compreensão sobre a Literatura Infantil, corroborada nas palavras
de Chaves (2011, p. 98):

[...] é primordial vencer a ideia inicial que se tem de literatura infantil,


de que ela estivesse limitada às histórias; para nós, é essencial lembrar
que músicas, poesias, histórias e as mais diversas formas de
expressão e registro popular – como advinhas, parlendas e os
brinquedos cantados – compõem o que chamamos de literatura infantil.
Desta forma, aquilo que se sustenta em diferentes regiões e em
diferentes épocas – como as parlendas, as histórias infantis clássicas,
as contemporâneas de inquestionável qualidade e de reconhecimento
acadêmico --, seriam excelentes conteúdos, estratégias e ao mesmo
tempo recursos para assentarmos às crianças as máximas
elaborações humanas.

Compreendemos a Literatura infantil como produção literária, a linguagem, arte,


e ciência (MEIRELES, p.198, 2001), pois uma obra literária de qualidade preserva as
mais elevadas elaborações humanas, expressões do trabalho criador, transformador e
criativo da humanidade.
Nessa direção a Literatura infantil, é capaz de demonstrar o desenvolvimento, a
complexificação, ampliação e aprofundamento do conhecimento nas mais diversas
áreas, como Abramovich (1997, p.17) assinala,

“É ficar sabendo história, geografia, filosofia, política, sociologia, sem


precisar saber o nome de tudo e muito menos achar que tem cara de
aula...” Esta relação com os diversos saberes proporciona o
desenvolvimento de noções essenciais, como também o pensamento
crítico.

Assim, o contato com do indivíduo com os objetos e fenômenos culturais, em


especial a Literatura Infantil, é social e se realiza na e pela linguagem, ou seja, não
basta ser humano, é preciso “aprender a ser homem” (LEONTIEV, 1978, p.6). O
processo de humanização, de apropriação trata-se de criar no indivíduo novas aptidões,
novas funções psíquicas, “por meio da reprodução, nas propriedades do indivíduo, das
propriedades e aptidões historicamente formadas da espécie humana” (LEONTIEV,
1978, p.6).
Tal processo em nossa sociedade inicia-se desde muito cedo, para muitas
crianças, não mais única e exclusivamente pela família, mas principalmente pela escola.
A Literatura Infantil é um recurso valioso, pois guarda em si as diversas experiências
humanas ocorridas ao longo da história, narrativas que carregam características
socioculturais, econômicas de diferentes povos, épocas e lugares, e permite ao leitor

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imaginar os acontecimentos narrados. Do Chá com o Chapeleiro Maluco 33 à viagem do
Pequeno Príncipe34 pelo universo, de carona em uma revoada de pássaros selvagens;
os personagens mais interessantes, como Emília35, a boneca de pano recheada de
macela que anda e fala, ou o jovem e corajoso cavaleiro Xisto 36, com a peninha que
cresce entre seus cabelos sempre a lembrá-lo da época
em que foi transformado em passarinho; e os mais belos e sensíveis poemas de
Cecília Meireles.
Vigotski sinaliza que, no início do processo de construção da imaginação, a
percepção serve de base para a experiência criativa,. Em suas palavras, “Os primeiros
pontos de apoio que a criança encontra para sua futura criação advêm do que ela vê e
ouve, acumulando materiais que usará para construir sua fantasia” (VIGOTSKI, 2006,
p.31).
Nesse sentido, firmamos a defesa de que a Literatura Infantil possibilita, por meio
de suas narrativas e personagens, emoções tipicamente humanas nas crianças,
surpresa, alegria, interesse, compaixão, tristeza, medo, tédio, entre outras. Portanto,
configura-se como recurso essencial, que permite ao professor realizar o trabalho
pedagógico respeitando a criança em sua totalidade, porque abrange as dimensões
afetivas e cognitivas do psiquismo humano, como assevera Abramovich (1997, p.17):

É ouvindo histórias que se pode sentir (também) emoções importantes


como a tristeza, a raiva, a irritação, o bem-estar, o medo, a alegria, o
pavor, a insegurança, a tranquilidade e tantas outras mais, e viver
profundamente tudo o que as narrativas provocam em quem as ouve.

É necessário deixarmos de secundarizar o recurso e pensá-lo como conteúdo,


estratégia e recurso (CHAVES 2011). É fundamental uma organização do ambiente, ter
critérios na escolha dos recursos, ter um contato com livro, conforme declara
Abramovich:

“[...] Quando se vai ler uma história – seja qual for – para a criança, não
se pode fazer isso de qualquer jeito, pegando o primeiro volume que

33
Narrativa presente no livro Aventuras de Alice no País das Maravilhas escrito por Lewis Carroll,
pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), criado em 1862 em um passeio pelo
Rio Tâmisa para entreter as filhas de Henry George Liddel, Loriny, Edith e Alice, foi publicada
em 1865.
34
O pequeno Princípe livro de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), foi publicado em 1943 nos
Estados Unidos, onde o autor ficou exilado após a França ser invadida por Hitler e assinar o
armistício.
35
Personagem criada por Monteiro Lobato (1882-1948) em 1920, presente no livro A menina do
narizinho arrebitado, reeditada em 1931 como o primeiro capítulo de Reinações de Narizinho.
36
Personagem protagonista de uma trilogia (Aventuras de Xisto (1957), Xisto no Espaço (1967)
e Xisto e o Saca-Rolha (1974), cujo título foi modificado para Xisto e o Pássaro Cósmico (1983))
escrita por Lucia Machado de Almeida (1910-2005).
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se vê na estante... E aí, no decorrer da leitura, demonstrar que não
está familiarizado com uma ou outra palavra (ou com várias), empacar
ao pronunciar o nome de um determinando personagem ou lugar,
mostrar que não percebeu o jeito como o autor construiu suas frases e
ir dando as pausas nos lugares errados, fragmentando um parágrafo,
porque perdeu o fôlego ou fazendo ponto final quando aquela ideia
continuava, deslizante, na página ao lado...” (ABRAMOVICH, 1997,
p.18-20).iante disso, é crucial refletir sobre as vivências das crianças
pequenas com a Literatura na Educação Infantil e as intervenções
pedagógicas para que os momentos de contação de histórias sejam
propulsores do desenvolvimento humano.

Práticas humanizadoras

As vivências de estudos desenvolvidas no Grupo de Pesquisa e Estudos em


Educação Infantil (GEEI) nos permitiram refletir sobre as práticas pedagógicas
realizadas nas instituições de Educação Infantil. Nesse contexto, observamos a
dificuldade em se realizar intervenções efetivamente educativas com a Literatura
Infantil, dificuldades na organização do espaço e da rotina que contribuíssem para o
desenvolvimento dos bebês e das crianças pequenas.
Destacamos, as fragilidades que, por vezes, se apresentam nas instituições
escolares, como salas pequenas e lotadas, carteiras enfileiradas, descuido na escolha
dos livros, músicas e poesias, improvisos, privilégio de práticas espontaneístas em
detrimento do planejamento, escassez de recursos, etc. Descuidos esses, que
obstaculizam as práticas educativas na Educação Infantil, especialmente os momentos
de leitura e contação de histórias, privando as crianças de um momento afetivo e
acolhedor, capaz de aprimorar o desenvolvimento por meio desse recurso tão valioso
que é a Literatura Infantil. Entendemos que situações como essas se repetem em
instituições de educação infantil por todo o Brasil, e compreendemos que podem estar
relacionadas à frágil formação docente, tanto na formação inicial dos cursos de
graduação como das propostas de formação contínua. Consideramos que a formação
enriquecida do professor possibilita o desenvolvimento de seu aluno, pois o docente
precisa conhecer para possibilitar, segundo Chaves (2011, p. 101):

[...] Á formação consistente do educador, cuja ação sistematizada e


intencional pode possibilitar ás crianças a apropriação dos bens
culturais da humanidade; mas antes disso, ele próprio (o educador)
precisa ter acesso ás grandezas da arte, da literatura e das ciências
(por hora) é o estudo, o fortalecimento de sua própria formação.

Em consonância com Chaves (2014), afirmamos que as poucas ofertas de


formação continuada de professores, não possibilitam a sequência no processo de
formação, privando-os de aprofundar seus estudos e consequentemente suas reflexões,

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que são importantes para repensar as práticas pedagógicas.
Nesse âmbito, acreditamos que as proposições de Cecília Meireles contribuem
para pensarmos em intervenções pedagógicas humanizadoras com vistas ao máximo
desenvolvimento infantil e também para a formação docente. Ressaltamos o
envolvimento da criança na aprendizagem como sujeito social ativo, conforme declara
Meireles (2017, p. 141):

A criança não é um boneco, cujas habilidades ou inabilidades se


exploram. É uma criatura humana, com todas as forças e fraquezas,
todas as possibilidades de evolução e involução inerentes à condição
humana. Por isso mesmo, são condenáveis todas as atitudes que a
rebaixem, ou que lhe estorvem o seu normal desenvolvimento.

Diante disso, entendemos ser responsabilidade da escola propor vivências com


a Literatura Infantil repletas de sentido e significado para as crianças, compromissada
com o máximo desenvolvimento de cada uma delas, o que torna o planejamento parte
essencial da prática pedagógica, que antecede o momento de leitura e contação de
histórias. Assim, salientamos a relevância do zelo e da mobilização dos professores na
realização do planejamento, particularmente para a contação de histórias, como
acentua Chaves (2001, p. 99):

Ter rigor e critério para planejar significa assinalar a definição de


conteúdo e a escolha dos materiais devem estar amparadas em uma
harmonia educativa afeta à literatura infantil e, fundamentalmente, no
pressuposto teórico-metodológico que sustenta o fazer do professor,
[...] A tomada de decisão do que cantar e ou ler requer o mesmo
requinte e cuidado de quando vamos ensinar fração.

Tais cuidados devem considerar o valor educativo, estético e científico que o


livro a ser apresentado às crianças pode conter, como defendia Meireles em sua
militância pela Educação. Obras de reconhecido valor literário, tais como os clássicos
de expoentes da Literatura Infantil Ruth Rocha37, Ana Maria Machado38, Vinícius de

37
Ruth Machado Lousada Rocha, nasceu em 1931 em São Paulo, importante escritora brasileira
de Literatura Infantil, tem mais de 150 obras publicadas, recebeu vários prêmios em
reconhecimento de suas obras e atualmente ocupa a cadeira número 38 da Academia Paulista
de Letras.
38
Ana Maria Machado, nasceu em 1941 no Rio de Janeiro, foi pintora, jornalista e professora
universitária antes de se tornar escritora, publicou mais de 120 livros, escreveu obras para todas
as idades. Atualmente ocupa cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras.
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Moraes39, José Paulo Paes40, Cecília Meireles41, entre outros, o que implica
intencionalidade desde a escolha das músicas, poemas, lendas do folclore brasileiro,
histórias até a elaboração dos recursos, das atividades, a organização do espaço em
que a leitura ou contação de histórias vai acontecer.
Desenvolver um trabalho pedagógico intencional e sistematizado com a
Literatura Infantil, utilizando-a como estratégia, conteúdo e recurso, exige estudos a
respeito das histórias, seus escritores, dos recursos mais adequados e de como utilizá-
los, de técnicas de contação de histórias, do desenvolvimento infantil, pois contar
história não é mera distração ou passatempo, e portanto não deve ser realizado tão
somente nos momentos finais ou inicias da aula.

Considerações Finais:

Contar histórias em uma perspectiva humanizadora é descortinar o mundo,


tornando acessíveis as riquezas culturais concentradas nas mãos daqueles que
também concentram as riquezas materiais; é não se contentar com as migalhas que a
sociedade capitalista oferece (CHAVES, 2011), mas combater a estratificação cultural,
possibilitando o desenvolvimento integral das crianças.

Referências
ABRAMOVICH,F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione,1997.

CHAVES, M. Enlaces da Teoria Histórico-Cultural com a Literatura Infantil: In: . (Org.)


Práticas Pedagógicas e Literatura Infantil. Maringá, Eduem, 2011, p.97-106. LEONTIEV,
Alexis. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte, 1978.
MEIRELES, C. Problemas da literatura infantil. 3º.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984.

MEIRELES, Cecília. Crônicas de educação. Volume 1. São Paulo: Global, 2017.

MEIRELES, C. Crônicas de educação 4: Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


2001

39 8 Marcos Vinícius de Moraes (1913-1980), nasceu no Rio de Janeiro, foi jornalista, dramaturgo,
diplomata, cantor, poeta e compositor brasileiro. Foi um dos fundadores do movimento musical
Bossa Nova e importante poeta da Segunda Fase do Modernismo.
40 9
José Paulo Paes (1926-1998), nasceu em Taquaritinga, São Paulo, foi jornalista, tradutor,
professor
universitário, ensaísta, critico literário e poeta brasileiro. Seu livro “Poemas para brincar”
publicado em 1990 ganhou o prêmio Jabuti/1991 de Melhor Livro Infantil.
41
Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964), nasceu na cidade de Rio comprido, Rio
de Janeiro, foi professora, jornalista, pintora, escritora e poeta premiada e reconhecida, é
considerada a primeira mulher de grande expressão na Literatura Brasileira.

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SAVIANI, D. S. Pedagogia Histórico-Crítica. 11º ed. Campinas: Autores Associados,
2013. VIGOTSKI, L. S. La imaginación y el arte en la infancia. 6ª ed. Madri: Akal, 2006

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LITERATURA INFANTIL: POSSIBILIDADES DE ENSINO
APRENDIZAGEM NA PRIMEIRA INFÂNCIA

Marta Chaves, Universidade Estadual de Maringá Kalyandra Khadyne Imai Gonçalves,


Universidade Estadual de Maringá Rubiana Brasilio Santa Bárbara, Universidade
Estadual de Maringá Patrícia Laís de Souza, Universidade Estadual de Maringá

Eixo Temático: Literatura Infantil para crianças pequenas

Considerações iniciais
Neste estudo apresentamos algumas contribuições da Literatura Infantil e
possibilidades de ensino e aprendizagem na primeira infância, bem como uma reflexão
sobre o desenvolvimento das crianças com trabalhos literários que proporcionarão
práticas humanizadoras e educativas tendo como base a literatura infantil.
Destacaremos alguns expoentes da Literatura Infantil cuja reflexão nos leva a diferentes
possibilidades de intervenções educativas para melhor desenvolver as crianças
pequenas no ambiente escolar. Estes estudos estão amparados na perspectiva da
Teoria Histórico-Cultural, por apresentar uma organização da prática educativa de
maneira estruturada pela humanidade. Temos o privilégio por meio deste trabalho de
apreciar a defesa dos conteúdos de maneira clara e organizada. As pesquisas estão
presentes nos escritos de autores clássicos como Leontiev (1979) e Vigostski (2009), e
também nos estudos de pesquisadores contemporâneos como Chaves (2010; 2011a;
2011b); Duarte (2004); Lima (2005), Mukhina (1995) e outros.
Pensamos que é possível, por meio das ações educativas, compreender a
sociedade que tem o homem e a educação na teoria citada, ainda que em estudos
iniciais possamos compreender as condições de máximo desenvolvimento humano por
meio dos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural.

A Literatura Infantil como uma possibilidade educativa de humanização para as


crianças
Os nossos estudos se fundamentaram nos pressupostos da Teoria Histórico-
Cultural, destacamos que este referencial teórico assume a perspectiva de que não
nascemos humanos e sim, nos tornamos humanos, ao passo que nos apropriamos dos
conhecimentos e experiências acumulados ao longo da história da humanidade ou seja,
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é por meio da relação com os mais experientes que nos apropriamos de
comportamentos essencialmente humanos.
Diante de tal afirmação, acreditamos na importância de proporcionar aos
escolares as máximas elaborações humanas, construídas e desenvolvidas no decorrer
da história, visando o pleno desenvolvimento dos educandos, como destaca Chaves
(2011b, p.98) que assim “atenderíamos a um dos preceitos da Teoria Histórico-Cultural
e firmaríamos, em essência, uma educação plena para quem ensina e para quem
precisa aprender”.
No mesmo texto, Chaves (2011b) pontua que o trabalho pedagógico, de acordo
com a Teoria Histórico-Cultural, poderá potencializar as funções psicológicas
superiores, tais como: memória, atenção, linguagem, entre outras habilidades
essencialmente humanas. Destaca ainda, que quando apresentados como conteúdos,
estratégias didáticas e recursos de ensino, possibilitam o desenvolvimento da memória,
atenção, curiosidade, entre muitas outras. Diante do exposto, consideramos a Literatura
Infantil fundamental no processo educativo humanizador das crianças.
Destacamos a relevância em proporcionar o acesso dos pequenos à Literatura
Infantil, seja por meio da arte, música, poemas, poesias ou em contos e histórias, porém,
ressaltamos que este trabalho deverá ser intencional e planejado pelos professores com
o intuito de desenvolver as habilidades humanas, bem como a promoção intelectual,
emocional e afetiva dos educandos.
Atribuímos que é dever da escola, caracterizada aqui como todo o corpo docente
envolvido no processo de ensino e aprendizagem, proporcionar às crianças o que há de
conhecimento mais avançado e elaborado historicamente pelos homens, bem como
potencializar as funções psíquicas superiores por meio de conteúdos, estratégias e
recursos de ensino adequados, especialmente por meio da Literatura Infantil, desse
modo destacamos que para Chaves (2011b, p.98) “é essencial lembrar que as músicas,
as poesias, as histórias e as mais diversas formas de expressão e registro popular –
como adivinhas, parlendas e os brinquedos cantados – compõem o que chamamos de
literatura infantil”. Tal afirmação nos permite alegar que Literatura Infantil é muito mais
que livros de
histórias para crianças, mas pode se constituir de um rico acervo com possibilidades de
encantamento e aprendizagem a todas as crianças.
No tocante a estas questões, sustentamos que não basta propiciar às crianças
o acesso à Literatura Infantil, se faz necessário que a escolha do material seja também
intencional (CHAVES, STEIN, SILVA, 2014). Salientamos o quão enriquecedoras

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podem ser as experiências infantis com as histórias e poemas de Tatiana Belinky (2003;
2004; 2007; 2008); passear pela rua do Marcelo e se encantar com outras histórias de
Ruth Rocha (2013; 2010; 2012a; 2012b); mergulhar na “Aquarela” e em outras canções
de Toquinho; conhecer animais e a composição surpreendente dos poemas e canções
do carioca Vinicius de Moraes (1996); dançar com a “Ciranda da Bailarina” de Chico
Buarque de Holanda; se regozijar com as rimas e sonoridades dos poetas José Paulo
Paes (2005), Cecília Meireles (2012), Olavo Bilac (1929) e outros que fazem de suas
produções obras aprimoradas e expressivas.
Assentados nos argumentos formulados acima, trataremos brevemente da
definição de Literatura, que consideramos ser peculiar à época em que é produzida,
pois de acordo com Coelho (2000), cada período da história produziu a sua Literatura,
a seu próprio modo, e conhecê-los nos leva a compreender a singularidade de cada
momento do desenvolvimento humano; tanto que conhecer historicamente a Literatura
propicia o conhecimento dos ideais e valores que as diferentes sociedades se
fundamentaram e se fundamentam.
Neste texto, em específico, não nos estenderemos muito a este respeito, mas tal
consideração inicial se faz necessária para lembrarmos que a produção literária, seja
para o público infantil ou para os demais públicos, é uma produção humana e histórica,
pois os seus autores se amparam em tudo aquilo que a humanidade já elaborou no
decorrer do tempo e da história para compor seus escritos. Com esta afirmação, cabe
exemplificar que provavelmente não seria possível ao homem primitivo imaginar que o
homem chegaria à lua e tentaria uma aproximação com outros planetas utilizando naves
espaciais e outros recursos tecnológicos elaborados nos últimos séculos, portanto,
argumentos e citações desse nível não poderiam estar presentes em suas narrativas
orais.
Em se tratando mais especificamente da conceituação de Literatura Infantil, podemos
nos pautar no argumento de que se faz necessário haver a concepção de criança para
que se pense em uma Literatura voltada para esse público, como escreve Carvalho
(1982, p. 75):

Para haver Literatura Infantil é necessário que haja Criança e Escola.


Sem Escola não há livros ao alcance de todas as classes. E, por isso,
ambas,Criança e Escola, começaram a dar seus primeiros passos no
século XVII, quando se inicia a Literatura da criança, embora esta só
viesse encontrar o seu verdadeiro lugar com o advento da burguesia,
entre os bem-nascidos, nos fins do século XVIII e início do século XIX.
Se, para que haja Literatura escrita, são necessárias duas condições
básicas: livro e Escola; para que haja Literatura Infantil, acrescenta-se
mais uma: o apelo da criança. E é nesse fato que se baseia a história

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da Literatura Infantil, para assinalar seu início no século XVII [...].

A respeito da afirmação supracitada, podemos compreender que aquilo que a


autora caracteriza como “o apelo da criança” seria especificamente a compreensão da
necessidade em se produzir literaturas com termos, linguagem e temáticas acessíveis
ao entendimento infantil e que chamassem a atenção e interesse desse público.
A referida autora registra ainda que mesmo com a possibilidade de ter a
Literatura escrita, as histórias se repetiam na tradição oral, com os contos de fadas, o
folclore, as cantigas populares, adivinhas e outras manifestações, sendo estas as
primeiras expressões da Literatura Infantil. À medida que se rompe a tradição oral de
as pessoas se reunirem em grupos para contar histórias, se estabelece o hábito de
leitura; a família assume o costume de ler para as crianças, abolindo o hábito da
sociabilidade. “Mas, infelizmente, isso é um privilégio das crianças bem-nascidas, [...]
as pobres crianças malnascidas exibiam a sua miséria, como limpador ou faxineiro, nos
empregos que lhes eram impostos” (CARVALHO, 1982, p. 87).
Feitas as breves considerações anteriores a respeito da trajetória do
desenvolvimento da Literatura e da Literatura Infantil em aspectos gerais, faremos
algumas ponderações sobre a trajetória da Literatura Infantil no Brasil, visto que não
poderia ter acontecido em nosso país a mesma correspondência entre a cronologia
mundial desse desenvolvimento pelo fato de sua própria constituição ser mais tardia em
relação aos países da Europa que tiveram destaque como sendo o berço da Literatura
Infantil mundial (SILVA, 2012).
O século XIX, no Brasil, oferece um panorama variado de leituras infantis. Mas
o mesmo não se pode dizer dos séculos anteriores. A incipiente instrução dos tempos
coloniais era impedimento natural ao uso de livros, principalmente os infantis, pelo
menos do seu uso generalizado. A leitura não era uma conquista popular (MEIRELES,
1984, p. 37). A História pode nos provar que, diferentemente do Brasil, na mesma época
a Europa já possuía livros que só mais tarde viríamos a conhecer. Os escritos de
Andersen, por exemplo, eram fabulosos, como indica Cecília Meireles (1984), mas só
tinham acesso a eles aqueles que faziam parte de uma cultura letrada, o que não era o
caso do Brasil à época.
Com a chegada da família real houve várias mudanças no contexto político,
econômico e cultural da colônia. A partir de 1808, criam-se Colégios em todo o país,
bem como se cuida
da instrução pública, e a Constituição de 1824 declarava a gratuidade da instrução
primária; a partir de 1811 temos a primeira tipografia, seguida pela criação do primeiro
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jornal infanto- juvenil em 1831, em Salvador, e assim se seguem outros progressos de
mesma natureza.
Podemos conferir nos relatos de Carvalho (1982, p. 126) que “a Literatura
Infantil, no Brasil, é antecedida por uma intensa atividade representada pelo jornalismo
e por traduções, o que nos permite admiti-la como a primeira fase da Literatura Infantil,
num período preparatório, de amadurecimento”.
Enfatizamos que a arte de escrever para a criança é complexa e difícil, pois as
crianças são muito exigentes. “A imaginação, a extratemporalidade, as metamorfoses,
o maravilhoso, a intenção recreativa por excelência e, sobretudo, a dramaticidade são
caracteres literários que mais agradam às crianças” (CARVALHO, 1982, p. 127), e
conseguir transportar para os livros, em palavras e imagens, tais requisitos que atendam
a estas necessidades da criança não tarefa fácil para os escritores, portanto, afirmamos
que escrever uma obra de Literatura Infantil é tão trabalhoso, complexo e ilustre quanto
a produção literária em outras áreas.
Coelho (2000, p.27) nos ajuda na compreensão da Literatura Infantil, a definindo
como “antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade que
representa o mundo, o homem, e a vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida
prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível realização”. E para
complementar esta definição, encontramos nos escritos de Meireles (1984), a alegação
que existem livros para crianças, e o trabalho árduo reside em classificá-los como livros
infantis devido à forma como alguns estão escritos. Em suas próprias palavras, “[...]
evidentemente, tudo é uma Literatura só. A dificuldade está em delimitar o que se
considera como especialmente do âmbito infantil. São as crianças, na verdade, que o
delimitam, com a sua preferência” (MEIRELES, 1984, p. 20).
E, talvez, devido à delicadeza do assunto e não havendo grande preocupação
dirigida realmente à educação e à cultura infanto-juvenil, a Literatura Infantil no Brasil
só começou a se esboçar nos fins do século passado, quando a preocupação
educacional se tornou uma realidade. Ressaltamos aqui, com as palavras de Coelho
(2000, p.138), que “foi Monteiro Lobato que abriu caminho para que as inovações que
começavam a se processar no âmbito da literatura adulta (com o Modernismo)
atingissem também a infantil”. Ao contrário dos clássicos estrangeiros, Lobato não
recriou seus contos de outros, e sim os criou; embora se utilizasse do rico acervo da
Literatura Clássica Infantil de todo o mundo, a inspiração maior e básica de Lobato foi a
própria criança, os motivos e os ingredientes de sua vivência.
Podemos constatar, com as mencionadas afirmações e posicionamentos, que

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independentemente do local em que se dá a produção da Literatura, seja na Europa ou
em âmbito nacional, é composta em consonância com o contexto histórico, social,
político e econômico vivenciado pelos homens (SILVA, 2012). Reafirmamos que a
Literatura é uma ocorrência originada pelo homem, e, portanto, dinâmica como a própria
humanidade, se remodelando de acordo com o período histórico e a sociedade em que
é concebida.
Em se tratando da essência da Literatura, Cecília Meireles (1984) escreve que
esta precede o alfabeto, cada povo, mesmo os primitivos, possui a sua forma de
memória dos fatos, que primeiramente eram narrados de boca em boca. Essa literatura
oral é considerada folclórica. Nos fundamentando nesta afirmação, podemos
depreender que aí está uma das justificativas em se utilizar do recurso da Literatura
Infantil nos anos iniciais de escolarização, pois mesmo sem ter ainda o domínio do
código alfabético e da sistematização da escrita as crianças em processo de
alfabetização podem se beneficiar dos recursos lúdicos e agradáveis que a Literatura
Infantil é capaz de oferecer, e assim acumular experiências necessárias para um melhor
aproveitamento do processo de ensino da alfabetização.
A respeito dos educandos que estão em séries posteriores ao período de
alfabetização, aqueles que estão consolidando os conhecimentos a respeito da língua,
da escrita e dos demais conteúdos escolares, esses também encontrarão na Literatura
Infantil algumas respostas para seus anseios de criança, ideias para formular melhor a
consolidação de seus conhecimentos, contato com diferentes formulações da língua
escrita, ampliação lexical, possibilidades para a imaginação e criação, além de tê-la
como uma possibilidade lúdica e agradável em meio a conhecimentos científicos mais
densos.
Afirmamos ainda que a Literatura, com seus elementos, propicia a aquisição das
percepções do mundo, nova ordenação das experiências existenciais da criança, além
da formação de novos padrões e aprimoramento do senso crítico. Nesse sentido,
defendemos a importância em proporcionar às crianças o contato com materiais que
possibilitem tais experiências, que agucem e promovam seu desenvolvimento
autônomo, crítico e reflexivo. Percebemos assim a contribuição de todos os elementos
da Literatura Infantil para o desenvolvimento da criança na música, nos poemas e
poesias, nas histórias e na arte. Pois trabalhar o encanto da imaginação, a criatividade,
a sensibilidade, a memória, os conceitos científicos e familiares, as relações afetivas,
sua constituição como atuante na sociedade influencia o processo de formação
humanizadora da criança (CORRÊA, 2012).

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Realizada esta parcela do trabalho, trataremos a seguir dos recursos e
estratégias didáticas aliadas à Literatura Infantil. De acordo com o referencial teórico
que nos embasamos, a Teoria Histórico-Cultural, é por meio das relações e experiências
humanas que nos apropriamos dos conhecimentos humanos. Diante disso, acreditamos
que quanto mais constantes forem as vivências educativas com as crianças, maior será
o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, tais como: a memória, percepção,
atenção, linguagem, pensamento, imaginação, as emoções, entre outras capacidades
intrinsicamente humanas. Segundo Vigotski,

Quanto mais a criança viu, ouviu e vivenciou, mais ela sabe e


assimilou; quando maior a quantidade de elementos da realidade de
que ela dispõe em sua experiência – sendo as demais circunstâncias
as mesmas –, mais significativa e produtiva será a atividade de sua
imaginação (VIGOTSKI, 2009, p. 23).

Diante de tal afirmação, acreditamos essencial pensarmos em estratégias


didáticas, tendo como referência a Teoria Histórico-Cultural, o qual possibilitará o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores dos educandos. Para tanto,
apresentaremos algumas propostas de recursos didáticos, tais como o dicionário Letras
vivas, Caixa de Encantos e Vida e Caixas que contam histórias.
O dicionário Letras Vivas constitui-se em um recurso didático, desenvolvido pela
Dra. Marta Chaves, o qual poderá ser trabalhado durante o ano letivo com a participação
coletiva dos educandos:

A escolha das palavras que comporão o dicionário é realizada a partir


de histórias, poemas, músicas, passeios, termos que os educandos
manifestam interesse em conhecer ou, ainda, uma palavra que o
professor tenha desafiado a sala a aprender o significado. Inicialmente,
a palavra é registrada, o professor apresenta a definição extraída de
um dicionário de uso didático na instituição; as crianças ouvem, leem
ou registram por meio da escrita ou desenhos o significado do termo;
em momento posterior, devidamente planejado e organizado pelo
professor, as crianças atribuem coletivamente significado à palavra
escolhida, tendo como ponto de partida a conceituação do dicionário.
Esse recurso didático objetiva mobilizar a criança a ampliar seu
vocabulário” (CHAVES, 2011a, p.54).

Diante disso, consideramos que o recurso intitulado dicionário Letras Vivas,


potencializará o desenvolvimento do vocabulário da criança, bem como o
aprimoramento da aquisição lexical, além de outras contribuições para o
desenvolvimento do educando. Para isso, os alunos poderão ouvir a definição
apresentada no dicionário de língua portuguesa e em seguida, desenvolveriam
coletivamente um excerto para definir determinadas palavras. Nesse sentido, citamos

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também outra estratégia didática que poderá auxiliar neste aprimoramento, a Caixa de
Encantos e Vida, idealizado pela Dra. Marta Chaves:

O recurso didático denominado Caixas de Encantos e Vida é elaborado


coletivamente, o grupo realiza a escolha de um expoente da literatura,
da poesia, da música ou das artes plásticas a ser estudado. A Caixa
contempla os “encantos” que, em geral, é representado por cinco
temáticas, quais sejam: infância, amigos, obra, viagens e realizações
que dizem respeito ao reconhecimento ou premiações que tenha
obtido ao longo de sua trajetória profissional. O objetivo é representar
a “vida” de um determinado expoente a partir de material escrito, fotos
e objetos que caracterizem os diferentes momentos de sua história
(CHAVES, 2011a, p.55).

O recurso mencionado é uma das inúmeras possibilidades de intervenções que


favorecem o desenvolvimento dos escolares, por meio do contato com a biografia dos
autores e suas elaborações literárias. Acreditamos que possibilitar o acesso das
crianças aos recursos citados neste estudo, enriquecerá suas experiências, como
destaca Vigotski (2009, p. 22): “[...] quanto mais rica a experiência da pessoa, mais
material está disponível para a imaginação dela. Eis por que a imaginação da criança é
mais pobre que a do adulto, o que se explica pela maior pobreza de sua experiência”.
Este é um dos recursos que oferece a possibilidade de contribuições para
aprendizagens e encantos para todas as crianças, além de outros como as Caixas que
contam histórias, que podem ser definidas como:

uma alternativa metodológica para que a criança seja efetivamente


envolvida nessa atividade e, sobretudo, por buscar mobilizar o uso de
capacidades mentais essenciais ao seu desenvolvimento cultural: a
memória, a atenção e a percepção voluntárias, a imaginação, a
linguagem oral, o pensamento, as emoções, a função simbólica da
consciência, a vontade. Vale mencionar que a “Caixa que conta
Histórias” caracteriza-se por materiais reciclados [...] contendo
histórias que as crianças gostam, objetos e imagens que retratem o
texto escolhido ou mesmo fantoches e “dedoches”. Além disso, pode
contemplar as histórias produzidas pelas crianças, cantigas preferidas
e cantadas com o uso da caixa. Em suma, na “caixa” cabe a
imaginação, a criação, a reciclagem, a arte manual, as palavras
registradas nos livros (agora recontadas) dos adultos e das crianças e
permite a mediação e a criação de mediações pedagógicas primordiais
à educação potenciadora da humanização na infância (LIMA;
GIROTTO, 2007, p.7).

Imaginemos como serão enriquecedoras as experiências das crianças com a


utilização deste recurso, quão apurada será a sua imaginação e quanto a criança poderá
aprimorar seu desenvolvimento por meio da diversão proporcionada por um momento
de contação de histórias aliado ao recurso mencionado acima.
Com isso, acreditamos que a experiência precedente da criança poderá ser
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ampliada no contato com as máximas elaborações humanas, dentre elas destacamos
os recursos didáticos, como os supracitados ou outros que poderão ser desenvolvidos,
os quais apresentem possibilidades para um pleno desenvolvimento das crianças.
Assim defendemos que:

se for propiciado às crianças desde a mais tenra idade esse contato


amplo e cheio de encantos com a literatura e com as expressões da
arte enquanto elaborações humanas, sua aprendizagem poderá ser
ampliada, de modo a capacitá-las com experiências precedentes
suficientes para outras aprendizagens cada vez mais significativas
(SILVA, 2012, p. 49).

Diante do exposto, podemos inferir que nos espaços educativos é importante


que haja formação dos profissionais da educação que atuam diretamente com o ensino
nos anos iniciais, de modo que estes reconheçam a Literatura Infantil como
possibilidade de encantos e desenvolvimento a serem proporcionados aos educandos.
Acreditamos que a utilização de recursos didáticos como os nomeados neste estudo
potencializarão as contribuições da Literatura para a humanização das crianças.

Considerações Finais
Em suma, consideramos que a Literatura Infantil e as possibilidades de
aprendizagem na primeira infância, com base nos pressupostos da Teoria-Histórico
Cultural, é um resultado humano que por meio de estudos, pesquisas e elaborações
pedagógicas resultaram hoje como contexto histórico e social dos autores citados acima
e entre outros. Diante disso, pode-se compreender que é parte do conhecimento que foi
construído historicamente por meio das experiências acumulados ao passar dos anos
pelos homens e se mostra como expressões da arte.
Nesse contexto, pode-se enfatizar a importância em proporcionar o acesso dos
educandos como excelência máxima das elaborações humanas, com a intenção de
acreditar no potencial e nas capacidades e funções psicológicas superiores, tais como
a criatividade, imaginação bem como a estética, ampliação do vocabulário, entre outras.
Esta afirmação é com base na teoria, que tais funções não são natas, mas sim precisam
ser desenvolvidas e intensificadas em cada ser para que realmente se humanize.
O acesso referido e mencionado referente às máximas elaborações humanas
mencionadas acima, se referem a prática da literatura infantil desenvolvida de acordo
com o comprometimento dos autores mencionados, por meio de obras que tem por
prioridade a beleza, relevância em seus personagens, a riqueza e a temática escolhida,
bem como o
comprometimento voltado ao público infantil por meio dos estudos, pesquisas
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para atender as necessidades da criança.
Assim destacamos que, ao realizar a escolha de recursos da Literatura Infantil
para apresentar as crianças, seja um livro, uma história, um personagem, uma música
ou poesia, a escolha precisa ser sistematizada com a intenção de contribuir para o
desenvolvimento das características intrinsecamente humanas.
Acreditamos em um processo educativo que por meio de diversos recursos e
estratégias didáticas, podemos assumir um posicionamento que precisa ser planejado
por meio de bases teóricas, e que acreditamos é que as crianças somente alcançarão
os conhecimentos adequados e elaborados pela sociedade se os profissionais da
educação disponibilizarem o que há de mais belo, sistematizado e pleno, no tocante aos
clássicos da arte, música, literatura e da ciência para que assim haja a utilização de
recursos didáticos como os nomeados neste estudo potencializarão as contribuições da
Literatura para a humanização das crianças.

Referências
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O LIVRO MENINA AMARROTADA, EMOÇÕES E CONSTRUÇÃO
DE SENTIDOS

Ana Dionízia de Souza Aquino, SEMED/Rondonópolis-MT


Kenia Adriana de Aquino Modesto-Silva, UFJ/Jataí-GO

Eixo Temático: Grupo Temático 2 – Literatura infantil para crianças pequenas

Considerações iniciais
Para responder à questão problema: como trabalhar a literatura na Educação
Infantil sem que isso antecipe o processo de alfabetização? partimos de uma mediação
de leitura literária com a obra Menina Amarrotada, de Aline Abreu, publicada pela
Editora Jujuba em 2013.
Tal questionamento é relevante, pois investigações mais recentes demonstram
que a escuta de histórias é fundamental para o desenvolvimento cognitivo, emocional e
social das crianças, sobretudo nos primeiros anos de vida, período correspondente ao
nível da educação infantil.
Sendo assim, o presente artigo registra a experiência de uma professora com
crianças de quatro anos de uma escola municipal de Rondonópolis, no interior do Mato
Grosso, a partir de uma obra sensível e que permitiu o diálogo aberto e franco sobre
sentimentos como a solidão e a saudade.
A mediação aconteceu por meio de conversa inicial, seguida de leitura em voz
alta realizada pela professora com apoio do livro, depois as crianças manusearam a
obra, conversaram sobre a narrativa e produziram um desenho que, posteriormente, foi
amarrotado assim como as ilustrações de Menina Amarrotada.
Fundamentam a análise da experiência aqui relatada autores como: Bakhtin
(2003) por assegurar que a linguagem é o lugar de encontro dentre os sujeitos (crianças,
mediadora, autora do livro) e de construção de sentidos (no caso, propiciados pela
linguagem verbal e visual repleta de significações e poesia); Cândido (2011) por
defender a literatura como direito humano/infantil intransferível desde que se nasce;
Reyes (2017) por sustentar que a leitura e seus sentidos se efetivam por meio de um
trabalho de parceria tripartida entre adulto que medeia, o livro e a criança; e Solé (1998)
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por propor uma mediação de leitura que garanta planejamento intencional antes da
leitura, durante e depois dela; entre outros.
Na sequência, apresentamos a importância da leitura na Educação Infantil,
relatamos a mediação, analisamos os resultados e tecemos as considerações finais.

A leitura literária na Educação Infantil


Quando mencionamos a leitura literária no primeiro nível da Educação Básica,
não pensamos, obviamente, na antecipação do processo de aquisição da escrita, a
alfabetização, pois

Os pequenos leitores de literatura infantil se formam como leitores


porque aprendem a ler, não porque pronunciam as palavras, nem
porque as veem, mas porque estabelecem ligações entre o conjunto
de sentido por elas formado e o conjunto de sentidos que constituem
suas experiências de vida (ARENA, 2010, p. 41)

Dito de outra forma, a educação literária das crianças da Educação Infantil se


efetiva a partir dos sentidos construídos a partir das relações que estabelecem entre a
narrativa sua própria vida, suas vivências.
Atividades com o uso da literatura infantil, no século XXI, têm sido consideradas
como fundamentais para o desenvolvimento das crianças. No entanto, apesar de
estudos científicos e as práticas docentes comprovarem sua relevância cultural, a
literatura para infância ainda pode ter um cunho utilitário e pedagógico, fazendo do texto
literário objeto mais da educação do que da literatura. Por isso, é fácil observar obras
que oferecem regras linguísticas, comportamentais, modelos e estereótipos sociais.
A literatura, todavia, diferente de um texto didático ou pedagógico, tem o poder
de relacionar o mundo real ao mundo da fantasia e vice-versa, sobretudo nos primeiros
anos de vida. A leitura literária auxilia a estimular o desenvolvimento da inteligência das
crianças e suas funções psicológicas superiores, ou seja, aquelas funções psíquicas
que determinam o comportamento consciente dos seres humanos como atenção
voluntária, autodomínio da conduta, percepção, memória, pensamento, consciência,
fala, formação de emoções e conceitos. Esse desenvolvimento das funções
psicológicas superiores propicia as capacidades linguísticas, a percepção estética e a
apropriação cultural do mundo ao seu redor.
Além disso, sendo expressão de arte, é veículo de fruição e de sentimentos
diversos. De maneira que, conforme vivencia os textos literários, a criança passa a sentir
necessidade de leitura e de literatura, o que pode funcionar como matéria-prima às
necessidades psíquicas (PRADES, 2012). Segundo Reyes (2017), a essência oculta

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das histórias é conseguir, por meio das palavras, dar nome aos sentimentos que podem
ocasionar incertezas, pois tratam de mistérios como a vida, o amor, a morte. Por isso,
de acordo com a colombiana Yolanda Reyes, a experiência com o texto literário revela
mais coisas do que os olhos e a razão podem ver, pois lemos também com a coração e
o desejo, leitura que se efetiva num triângulo que ela chama de amoroso: criança, livro
e adulto.
“Sem esse mediador que faz a ponte entre o livro e a criança, as páginas de um
livro não são nada” (REYES, 2010, p. 47). Assim, o professor de Educação Infantil é um
dos adultos responsáveis por propiciar vivências literárias e contribuir para a formação
leitora das crianças, estimulando nelas a necessidade pela leitura e, ao mesmo tempo,
dando acesso a esse direito humano: o de aproximação da literatura (CANDIDO, 2011),
pois a literatura exerce papel humanizador e humanização consiste no:

[...] processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos


essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa
disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a
capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a
percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do amor.
A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em
que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a
sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 2011, p. 1801)

Em outras palavras, acreditamos que toda pessoa, desde sua infância, tem
direito aos textos literários, independentemente de idade, sexo, classe social, raça ou
qualquer classificação, pois a literatura possibilita o acesso às palavras, a conceitos
diversos, a sentimentos, ao mundo, à vida.
Como assegura Cosson (2011), a experiência do outro que está presente no
texto literário permite que a vivenciemos como se fosse nossa. Por meio da palavra e
da narrativa do outro (o autor/escritor), podemos ver a expressão daquilo que sentimos
e queremos. O que significa que a cultura humana apropriada a partir da literatura,
sobretudo a infantil – tema deste texto, pode nos mostrar formas de dizer o que
pensamos e de viver.
Queirós (2012, p. 87) ratifica essa percepção humanizadora da literatura quando
defende que “diante do texto literário, todo leitor tem o que dizer. Ao tomar da palavra,
o leitor se faz mais sujeito, em vez de apenas sujeitar-se”, ou seja, o texto literário
transcende o simples deleite ou prazer de ouvir/ler, bem como os “ensinamentos”, pois,
por meio da palavra, a literatura permite que o leitor se constitua como sujeito e humano.
Porém, não basta, por exemplo, que crianças da Educação Infantil tenham
acesso a livros de literatura nas creches e escolas. A mediação faz-se importante nesse

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processo de apropriação da cultura escrita, da literatura e da humanização, isto é,
propiciar às crianças o convívio com o texto literário é, na instituição educacional, função
do(a) professor(a).
Entretanto, além da mediação de um leitor mais experiente, em geral o adulto, é
preciso pensar na qualidade das obras mediadas. A partir dos escritos de Hunt (2010)
identificamos que existem dois padrões de qualidade para o texto literário infantil: o livro
fechado e o aberto. No primeiro, a interpretação é conseguida mais pelo trabalho do
escritor/autor do que pelo leitor, visto que há devido a limitações de sentido, os textos
costumam ser previsíveis. Já nos livros infantis considerados abertos, o leitor (mesmo
que seja uma criança pequena) precisa preencher lacunas do texto e inferir a partir de
seu repertório de leitura e de mundo, ou seja, o trabalho de interpretação é deixado para
o leitor, sendo assim, possibilita interações em vários níveis e permite diferentes leituras.
Nas vivências de leitura literária na Educação Infantil, são possíveis diversas
temáticas e tem sido cada vez mais comum nas obras contemporâneas assuntos
considerados difíceis como abuso sexual, bullying, morte, entre outros.
O livro literário Menina Amarrotada é um desses livros. De maneira muito sutil e
poética, Aline Abreu retrata angústia, melancolia, solidão, saudade por meio das
palavras, das cores e dos efeitos proporcionados pelas ilustrações.
Julgamos importante enfatizar que quando pensamos em leitura literária na
Educação Infantil, pensamos no processo de humanização e sensibilização das
crianças relacionado e não no processo de alfabetização em si.
Tendo discutido brevemente sobre a importância da leitura na educação infantil,
passamos ao relato da experiência de leitura literária com o livro de Abreu (2013).

A obra, o relato de experiência e uma breve análise


O livro Menina Amarrotada tem texto e ilustrações de Aline Abreu trata-se de
uma obra que possui linguagem poética, artística e lúdica tanto no texto verbal como no
visual. Fala sobre a relação entre um pai e uma filha ao retratar os sentimentos que
emanam dela: amor, angústia da separação, saudade, pois o pai da menina costumava
viajar muito, mas sempre voltava. Até que um certo dia, não retornou para casa.

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Figura 1: Capa do livro

Fonte: www.jujubaeditora.com.br

A capa é amarela com uma janela que mostra um dia chuvoso e uma criança a
observar esse dia cinzento com um chapéu ao seu lado. A obra se abre na horizontal e
para cima, oferendo uma outra forma de manusear o objeto livro. Esse aspecto da
materialidade se faz importante porque, de acordo com Reyes (2018), o protagonismo
da criança se efetiva no contato direto com o suporte da história, o livro. Primeiro por
sua apresentação física e expressão artística, depois caminhando em direção à
linguagem e à literariedade das palavras.
Desenhado com lápis de cor, inicia-se, no verso da capa e na guarda, com o
registro de um dia ensolarado e uma menina a se balançar alegremente, clima fornecido
pela utilização das cores. Ao virar a página, o clima agradável é substituído por um
ambiente sombrio indicado por uma tempestade com ventania que foi revelada também
a partir do colorido com tons mais escuros e fechados. Um trabalho de expressão
artística primoroso que revela muito sem dizer nada, como pode ser observado nas
figuras a seguir.

Figuras 2 e 3: Cenas iniciais da história

Fonte: ABREU (2013)

O texto verbal, iniciado na página 3, expõe que a menina morava do lado de lá


onde, às vezes, chovia ou fazia sol, mas que era um lugar bom, pois ela tinha as coisas

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que existem em todos os lugares. Mas também tinha coisas que outros desejavam como
um balanço pendurado em árvore.
Na sequência, o texto revela que o pai da menina sempre viajava, mas eram
rápidas as viagens, já que ele “ia num pé e voltava no outro” (ABREU, 2013, p. 11).
Porém, um dia, ele viajou para bem longe. Tendo vontade de dar mais um abraço, a
menina correu atrás do pai, mas não conseguiu alcançá-lo. Então, ela percebeu que lá
fora o dia estava de um jeito que ela não conhecia: uma imensa nuvem com um “vento
de amarrotar”. Isso fez a garota pensar na possibilidade de o pai nunca mais retornar
para ela. “E foi assim que, pela primeira vez, ela amarrotou” (ABREU, 2013, p. 17).
Ela não sabia explicar o que sentia: não era braveza, nem tristeza, nem raiva.
Havia um buraco dentro dela. Amarrotava-se cada vez mais, se esticava para ver o que
tinha do lado de lá e chorou muito. Assim, no meio de sua tempestade, a menina
percebeu um sopro colorido de uma voz amiga que provocou um quentinho dentro dela.
Nesse momento, surge uma mulher que a abraça.
A garota se estica e perde o medo de voltar a se amarrotar e a última cena do
livro traz um alento e cor a seu coração. Mesmo sem saber se aquilo foi trazido pelo
vento, por sua imaginação ou suas memórias, a menina parece se desamarrotar.
Numa linda metáfora da vida e suas nuances, seguindo uma tendência de livros
contemporâneos para infância, o livro aborda sobre encontros e desencontros, os
sentimentos e as emoções. Afinal, segundo a própria autora, “todo muito fica um pouco
amarrotado às vezes” (ABREU, 2013, 47).
O aspecto metafórico é importante para a construção de sentidos da obra, pois

[...] os elementos estéticos de organização das palavras na linguagem


literária, [...] vão instaurando-se como realidades outras com as quais
as crianças também podem operar, reelaborar e produzir sentidos. [...]
Entram em jogo os componentes do universo literário, os quais, por
meio da leitura, pela performance da professora, leitora mais
experiente, as crianças entram e saem; podem fazer sua imersão, por
meio das brincadeiras com as palavras, [...] os sons [...] escutados.
(MATTOS, 2013, p. 13).

Isso foi observável durante a narração da professora que por meio das
ilustrações e das palavras da obra, foi costurando as realidades das crianças à realidade
de menina do conto, permitindo que elas, a partir da conexão entre textos e
leitores/ouvintes, fossem elaborando e construindo sentidos que fizessem sentido a
elas.
Para apresentar essa preciosidade à turma, a professora deste relato criou
suspense ao mostrar a capa, questionando as crianças sobre o que a história falaria.

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Elas não sabiam o que significava a palavra “amarrotada”, mas a acharam engraçada.
Antes de ler, então, a mediadora explicou que era o mesmo que amassado ou como
uma roupa sem passar.
No entanto, em consonância com os escritos de Arena (2015), o foco não recaiu
sobre as palavras isoladas, como essa do título, mas na narrativa e na beleza estética
ofertada pelo arranjo das palavras (e suas ilustrações). O objetivo da mediação, em
nenhum momento foi a identificação de palavras isoladas, mas a compreensão da
história como um todo: sua narrativa verbal e visual.
Durante a leitura, a professora mostrou as ilustrações enquanto estavam todos
sentados no chão em semicírculo. As sutilezas de sentidos vão sendo construídas
esteticamente não apenas pela linguagem literária e sensível de Abreu (2013), mas
entram em jogo também pela performance da mediadora.
Depois da leitura, todas as crianças tiveram a oportunidade de explorar a obra e
elas mesmas manusearam-na. Após o término da leitura compartilhada, um dos garotos
da turma disse que, na história, não era a roupa que estava amarrotada, mas a menina
quando ela viu o pai sair. Esse comentário revela que ele começa a construir sentidos
e se apropriar da linguagem simbólica, aparentemente, aliando o amarrotar-se com o
se entristecer.
Por meio de metáforas como dia cinza e papel amassado refletidas nas palavras
e nas ilustrações, as crianças foram percebendo os afetos e desafetos retratados no
livro. Durante o diálogo, elas foram relacionando aqueles que saem de suas casas para
viajar ou trabalhar como a mãe, a avó, o avô ao pai da menina da história.
Uma delas comentou que o pai é caminhoneiro e demora chegar em casa,
demonstrando compartilhar o sentimento de saudade que a protagonista manifesta.
Outra associou o “Nunca... Nunca...” ao sopro do vento e a um sentimento de tristeza.
Então, fizeram os próprios desenhos com predominância do lápis de cor preto,
não se sabe se por escolha ou se porque é a cor predominante também nas ilustrações
do livro.

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Figuras 4, 5 e 6: Desenhos das crianças sobre suas famílias

Fonte: Arquivo pessoal das autoras

Interessante observar que, além de desenharem a si e seus familiares,


praticamente todas as crianças acrescentaram a nuvem pesada, ilustrada por Aline
Abreu nas páginas 14, 18 e 36.

Figuras 7 e 8: Ilustrações das páginas 14 e 36

Fonte: ABREU (2013)

A construção dos sentidos pelas crianças foi perceptível também quando


algumas não quiseram amassar seus desenhos, pois, segundo elas, não estavam
amarrotadas já que ninguém que conheciam tinha ido embora.
A mediação mostrou que é importante falar sobre emoções com as crianças
porque elas também estão sujeitas ao turbilhão de sentimentos provocados pelas

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situações cotidianas e pelas pessoas a sua volta. Prova é que algumas crianças
disseram que ou não iam amassar o próprio desenho porque não estavam tristes ou
que amarrotariam só um pouquinho porque estavam chateados “só um tiquinho”.

Figura 9: Desenho da criança que não se sentia amarrotada

Fonte: Arquivo pessoal das autoras

Segundo os escritos de Silva e Arena (2012, p. 3), a leitura se estabelece quando


o leitor, mesmo que pequeno, se relaciona com o texto e seu autor, “numa atitude
responsiva que o torna capaz de refutar, refletir e reavaliar o que leu”. Se não houver
uma atitude responsiva, ou seja, se o leitor não conseguir pensar sobre o que leu e
emitir, segundo Bakhtin (2003), uma contrapalavra, não houve leitura, visto que
concebemos a língua numa concepção discursiva, que existe na relação com o outro
(BAKHTIN, 2003).
Partindo desse princípio, é possível constatar como a leitura foi sendo construída
para as crianças, respondendo ao texto a partir de suas experiências de vida e seus
próprio sentimentos no diálogo com o texto do livro Menina Amarrotada, oportunizada
pela mediadora.
Com base na ideia de que a leitura consiste em um diálogo entre leitor e autor,
apoiadas em Bakhtin (2014) entendemos que a leitura consiste também em um diálogo
entre as crianças ouvintes/leitoras e a professora mediadora da narrativa.
Afinal, a leitura literária oportuniza relações dialógicas a partir do próprio
conhecimento prévio das crianças com o conhecimento artístico, cultural, estético e
social da literatura expresso por meio de diferentes gêneros. Bakhtin (2003) defende
ainda que a leitura literária colabora para o conhecimento de si, pois para o autor:

Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do


mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha
mãe, etc.), com a sua entonação em sua tonalidade valorativo-
emocional. A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros:
deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação
da primeira noção de mim mesmo (BAKHTIN, 2003, p. 373-374).

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Tomamos nossa autoconsciência por meio daqueles que convivem conosco e
suas palavras, sejam orais ou escritas, literárias ou não. Tal processo de diálogo e
autoconhecimento é possível porque a palavra é emitida por uma pessoa (por exemplo,
o escritor ou mediador) para outro alguém (por exemplo, o leitor ou a criança).
Assim, foi possível, por meio da mediação aqui relatada, observar que as
crianças tomaram consciência de si, dos membros de sua família e das emoções que
sentiam quando algum deles se afasta por trabalho ou viagem como a saudade e a
tristeza. Ou mesmo aqueles que sabiam que voltariam para casa e nada os
“amarrotava”.
Além disso, é uma das funções da escola, desde a Educação Infantil, auxiliar na
construção de sentidos a partir das diferentes linguagens com as quais acessamos em
nosso cotidiano. Desse modo, a leitura literária, sobretudo dessa obra em especial –
Menina Amarrotada, consistiu numa oportunidade de alargamento de vivências para
aquelas crianças. Nesse sentido, apoiamo-nos nas palavras de Vygotski (2018), quando
afirma quanto mais as crianças veem, escutam e vivenciam, mais elas podem aprender
e assimilar, mais repertório elas têm, sendo, portanto, um momento significativo e
produtivo para imaginação infantil, sua apropriação do mundo e construção de sentidos.
Após apresentamos o relato da mediação de leitura e realizarmos uma breve
análise, passamos às últimas considerações deste texto.

Considerações finais
A partir da leitura compartilhada em voz alta e do acesso ao objeto livro da obra
Menina Amarrotada, de Aline Abreu (2013, Ed. Jujuba), a crianças de quatro anos em
uma escola municipal do interior de Mato Grosso, Rondonópolis, foi possível conversar
sobre emoções e construir sentidos para a história a partir do diálogo.
A experiência oportunizou experiência afetiva e cognitiva por meio da leitura e
ainda, tendo o texto literário como característica a abstração, também foi possível
perceber que as crianças construíram momentos iniciais de abstração ao
compreenderem, por exemplo, a metáfora do “amarrotar-se”.
A palavra (nesse caso a escrita literária) é objeto do diálogo e produto de
interação, sendo a palavra literária e a da conversa uma espécie de ponte que liga o
locutor e seu ouvinte/leitor. Assim, foi possível favorecer o desenvolvimento psíquico
das crianças envolvidas por meio da leitura, visto que a mediadora buscou guiar a
mediação da leitura literária para a compreensão da história, procurando observar e
sentir a beleza estética e artística do texto verbal e do texto visual.

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Constatamos, então, que sse tipo de mediação é bem-vindo na Educação Infantil
porque nesse período, as crianças estão em processo contínuo de aprendizagem,
desenvolvimento e transformação cognitiva e emocional.

Referências
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instrumento de iniciação da criança no mundo da cultura escrita. In: MENIN, A.
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literatura infantojuvenil e outras histórias. 16 abr. 2018. Entrevista concedida a Bruno
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ler-para-bebes-leia-entrevista-com-a-colombiana-yolanda-reyes/?loggedpaywall
Acesso em: 03 mai. 2018

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POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÕES PEDAGÓGICAS NA
EDUCAÇÃO INFANTIL COM O RECURSO DIDÁTICO
“DICIONÁRIO LETRAS VIVAS”

Marta Chaves, Universidade Estadual de Maringá Janaína Pereira Duarte Bezerra,


Universidade Estadual de Maringá Mariane Elizabeth da Silva, Universidade Estadual
de Maringá Poliana Hreczynski Ribeiro, Universidade Estadual de Maringá

Eixo Temático: Literatura para crianças pequenas

Considerações iniciais
Objetivamos apresentar, neste artigo, algumas reflexões inicias afetas às
possibilidades de intervenções pedagógicas na Educação Infantil, especificamente com
o recurso didático intitulado Dicionários Letras Vivas, idealizado pela Profa. Dra. Marta
Chaves e sistematizado no ano de 2011 em seu trabalho de pós-doutoramento
(CHAVES, 2011a). Para tanto, utilizamos uma metodologia bibliográfica que, de acordo
com Lakatos e Marconi (2009), possibilita conhecermos os escritos já realizados sobre
esse tema de estudo.
Nossos estudos e pesquisa encontram-se amparados pela Teoria Histórico-
Cultural, referencial teórico-metodológico para o qual o ensino deve ser enriquecedor a
todas as crianças. Para isso, precisamos apresentar a elas práticas educativas que
favoreçam o máximo desenvolvimento das potencialidades humanas (CHAVES,
2011a).
Assumimos a elaboração da Teoria Histórico-Cultural para fundamentar este
trabalho, por salientar a ação do professor no processo de ensino e aprendizagem dos
escolares. Entendemos que por meio da organização intencional do ensino o professor
pode possibilitar condições para uma educação humanizadora, que possibilite às
crianças a apropriação do conhecimento científico e do apreço à Arte.
Desse modo, fazemos seguintes questionamentos: Há recursos didáticos que
podem instrumentalizar as intervenções pedagógicas dos professores na Educação
Infantil? Quais recursos podem favorecer o desenvolvimento intelectual das crianças na
Educação Infantil? Há recursos didáticos que favorecem o desenvolvimento das

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crianças em= uma perspectiva de educação humanizadora? Destacamos que não
pretendemos responder pontualmente às questões elencadas, mas apresentar
reflexões e possibilidades humanizadoras capazes de instrumentalizar as intervenções
pedagógicas dos professores.
Diante dessas questões levantadas, amparamo-nos nas elaborações de autores
clássicos e contemporâneos da Teoria Histórico-Cultural para a realização deste estudo,
como: Vigotski (2009); Leontiev (1978) e Chaves (2011a, 2011b, 2014, 2017).
Entendemos que estes autores e intelectuais contribuem para as reflexões relativas às
intervenções pedagógicas e suas possibilidades para o desenvolvimento humano
quando planejadas de maneira intencional pelo professor, de modo que oportunize
diferentes recursos didáticos como, por exemplo, no caso deste estudo, o “Dicionário
Letras Vivas”, que se bem trabalhado proporciona o máximo desenvolvimento das
crianças na Educação Infantil.
O Dicionário Letras Vivas constitui-se em um recurso didático a ser elaborado
pelas crianças com a intervenção e condução do professor. Esse recurso pode contribuir
para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores como a memória, a
linguagem, a atenção e a concentração dos escolares (CHAVES, 2017). Para a
composição do Dicionário Letras Vivas são eleitas palavras que fazem parte das
experiências e vivências literárias das crianças no trabalho com a leitura, seja de
poemas, histórias, canção, aspectos bibliográficos de expoentes da Arte e da Literatura,
bem como palavras destacadas em passeios ou em vivências especiais nas instituições
escolares. Assim, consideramos que utilizar o referido recurso didático nas ações
didáticas dos professores torna o trabalho repleto de sentido e significado no processo
de aprendizagem das crianças.

Dicionário Letras Vivas: possiblidades de intervenções pedagógica


humanizadoras

As instituições escolares, em nossa concepção, têm a função de apresentar às


crianças o que há de mais elaborado na humanidade. Segundo co Chaves (2014, p.
85), “as máximas elaborações humanas devem definir o ponto de partida e meta final
quando pensamos na organização do ensino”. Os escritos da autora se harmonizam
com as elaborações de Leontiev (1978) quando destaca a necessidade do contato e
das mediações com o conhecimento já elaborado pelas gerações precedentes, pois em
sua lógica é por meio dessa relação que se desenvolvem as características humanas.

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Nas palavras do autor,

As aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não


são simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da
cultura material e espiritual que os encarnam, mas são aí apenas
postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas
aptidões, “os órgãos da sua individualidade”, a criança, o ser humano,
deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante
através doutros homens, isto é, num processo de comunicação com
eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua função,
este processo é, portanto, um processo de educação (LEONTIEV,
1978, p. 290-291, grifos do autor).

A partir desse excerto podemos refletir sobre os recursos disponibilizados às


crianças nas instituições escolares, a essencialidade do professor e a intencionalidade
de seu trabalho em permitir, por meio da educação escolar, que as crianças
desenvolvam suas aptidões humanas. Entendemos que o meio em que a criança está
inserida e as intervenções pedagógicas realizadas pelos professores podem favorecer
o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como enuncia Vigotski (2010,
p. 697):

[...] o meio desempenha, com relação ao desenvolvimento das


propriedades específicas superiores do homem e das formas de
ação, o papel de fonte de desenvolvimento, ou seja, a interação com
o meio é justamente a fonte a partir da qual essas propriedades surgem
na criança. E se essa interação com o meio for rompida, só por força
das inclinações encerradas na criança as propriedades
correspondentes nunca surgirão por conta própria (grifos do autor).

Em consonância com Vigotski (2010), a criança precisa estar em interação com


o meio, com o mais experiente, ou seja, necessita de um modelo para tomar como
referência para o seu desenvolvimento integral. Complementa o autor que “[...] no meio
existem essas formas ideais desenvolvidas, elaboradas pela humanidade, aquelas que
deverão surgir ao final do desenvolvimento” (VIGOTSKI, 2010, p. 698). Defendemos
que nas instituições de Educação Infantil cabe aos profissionais da Educação, em
especial o professor, planejar um ensino com ações intencionais e sistematizadas que
promovam o aprimoramento das potencialidades das crianças.
Desse modo, salientamos que as práticas pedagógicas intencionais e
sistematizadas dos professores potencializam a aprendizagem e o desenvolvimento das
crianças em um processo humanizador. Realçamos o pensamento de Chaves (2011b,
p. 98) quando propala que as práticas pedagógicas humanizadoras:

[…] poderiam ser caracterizadas como aquelas em que os


encaminhamentos teórico-metodológicos expressem a ideia de
capacidade plena das crianças no processo de ensino aprendizagem.
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Assim, se firmaria a ideia de potencial para aprender e nesse processo
não haveria dependência de condicionantes biológicos.

Ao considerarmos os escritos desta autora, entendemos que as práticas


pedagógicas humanizadoras são as ações realizadas nas instituições escolares que
visam à formação e ao desenvolvimento integral das crianças sem qualquer relação
com as condições biológicas. A fim de ilustrarmos essas possibilidades de intervenções,
apresentamos uma proposta didática intitulada Dicionário Letras Vivas enquanto
recurso que favorece uma Educação humanizadora. Esse recurso trata-se de um
dicionário que se assemelha aos já conhecidos. Na acepção de Chaves (2017, p. 530):

Esse recurso didático guarda semelhanças com os dicionários


convencionais em alguns aspectos, como por exemplo: capa,
contracapa, ficha catalográfica, paginação e ordem alfabética das
palavras. Constitui-se em recurso didático possível de ser elaborado
pelo professor em conjunto com as crianças, podendo contribuir para
o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como o
pensamento e a linguagem; a isto se soma um relevante trabalho que
podemos realizar com o desenvolvimento da memória, atenção e
concentração.

Esse recurso é um material composto coletivamente por professores e


estudantes de diferentes idades. Sua elaboração é realizada no seguinte processo:

As palavras que farão parte deste belo recurso didático resultarão da


rotina vivenciada pelas crianças, seja no processo de leitura,
apresentação de um poema, na condução de um trabalho com
histórias ou canções; ou ainda quando atribuímos atenção especial aos
aspectos biográficos de expoentes da arte ou literatura, as
experiências em situações de organização ou realização de passeios
e outras vivências nas instituições escolares. Com isto a criança, com
a atuação efetiva do professor, compõe o Dicionário, individual ou
coletivo, de tal forma que o trabalho seja tomado de sentido e
significado; razões pelas quais o nominamos “Letras Vivas” (CHAVES,
2017, p. 530).

Conforme exposto por Chaves (2017), as palavras registradas no dicionário são


escolhidas a partir das vivências e experiências das crianças na instituição escolar, em
especial as relacionadas com a Literatura e a Arte. No excerto apresentado, a autora
destaca os termos “Letras Vivas” presentes no título do recurso, dada a riqueza de
sentido e significado desse trabalho para a criança.
Em nossa análise, possibilitar o acesso das crianças com as produções
escolares enriquece sua experiência precedente. Sobre essa questão, salienta Vigotski
(2009, p. 23),

A conclusão pedagógica que se pode chegar com base nisso consiste

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na afirmação da necessidade de ampliar a experiência da criança, caso
se queira criar bases suficientemente sólidas para sua atividade de
criação. Quanto mais a criança viu, ouviu e vivenciou, mais ela sabe e
assimilou, quanto maior a quantidade de elementos que ela dispõe em
sua experiência - sendo as demais circunstâncias as mesmas – mais
significativas e produtiva será a atividade de sua imaginação [...].

As elaborações de Vigotski (2009) reafirmam a necessidade de a criança ter um


amplo repertório de experiências. Sua importância para a aprendizagem significativa
nos remete à ideia de que a experiência precedente da criança deve ser ampliada no
contexto escolar, por meio de recursos didáticos tais como o Dicionário Letras Vivas,
pois os conceitos e as definições das palavras que a criança conhecer possibilitarão o
enriquecimento de suas criações. Com base nos escritos deste autor, Chaves (2014, p.
89) expõe que “quanto mais ricos e enriquecedores forem os recursos e materiais
disponibilizados às crianças, maiores são as possibilidades de potencializar suas
capacidades no tocante à memória, atenção, percepção e criatividade”.
Dessa forma, seguimos com as orientações afetas à elaboração do recurso: para
realização desse trabalho é essencial que sejam disponibilizados em sala de aula
diferentes dicionários para as crianças manusearem e conhecerem. A cada mês o
professor elegerá três a quatro palavras para estudos com os escolares.
Ao iniciar o trabalho professor deve organizar um bloco de folhas cujas medidas
aproximadas sejam 60cm x 40cm, e juntamente com as crianças escolher um local para
afixar esse bloco, que se revela a primeira versão do Dicionário Letras Vivas.
Recomenda- se que seja na parede da sala de aula.
Indica-se que cada folha tenha quatro divisões: as três primeiras devem ser
ocupadas com os escritos da professora e a última com as ilustrações das crianças.
Nesse caso, para cada folha um determinado grupo de crianças ficará responsável pela
ilustração, após o estudo da palavra escolhida. Essa primeira versão pode contemplar
uma folha inicial representando a capa, elaborada, se possível, de forma primorosa e
contendo o escrito: “DICIONÁRIO LETRAS VIVAS”. Chaves (2011ª, p. 54) explica que:

Inicialmente, a palavra é registrada, o professor apresenta a definição


extraída de um dicionário de uso didático na instituição; as crianças
ouvem,leem ou registram por meio da escrita ou desenhos o
significado do termo; em momento posterior, devidamente planejado e
organizado pelo professor, as crianças atribuem coletivamente
significado à palavra escolhida, tendo como ponto de partida a
conceituação o dicionário.

No processo de elaboração do recurso deve-se apresentar três definições: a


primeira realizada na condução da rotina, ao ser escolhida ou definida dada palavra,
que no decorrer da elaboração das hipóteses das crianças deverá ser registrada. Nessa
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circunstância, as crianças apresentam as hipóteses e a partir daí se efetiva o estudo
coletivamente. A primeira definição é atentamente ouvida por todos e a professora
escreve em material afixado (bloco de folhas) na sala, previamente preparado. Esse
registro deverá preservar o conhecimento inicial das crianças, e três ou quatro hipóteses
deverão ser registradas.
A segunda definição deve ser elaborada em dias próximos à primeira definição;
a professora retoma a circunstância em que a palavra foi destacada, faz a leitura das
hipóteses escritas, todos relembram as outras hipóteses e a professora segue atribuindo
relevância à necessidade de se estudar e conhecer o significado das palavras. Elege-
se determinado dicionário e a professora efetua a leitura do conceito sobre a referida
palavra constante do dicionário, por exemplo – Dicionário Aurélio. Essa definição
também é escrita imediatamente abaixo às hipóteses elaboradas pelas crianças. A
professora escreve no máximo três definições contidas no dicionário. É importante frisar
que deve haver uma linha que separe as definições.
A terceira definição deve ser realizada em dias próximos à elaboração da
primeira definição e imediatamente próximos ao estudo (leitura e escrita) da definição
científica (existente no dicionário convencional) e preferencialmente na mesma semana,
pois as crianças voltam a dialogar sobre o significado da palavra em estudo. Mais uma
vez, a professora deve retomar os processos anteriores, relembrar as hipóteses iniciais
e principalmente atribuir relevância ao conceito extraído do dicionário convencional. É
fundamental retomar o dicionário e reler com ênfase a definição do dicionário e que está
escrita no bloco de folhas. Em seguida, as crianças devem elaborar novas hipóteses
que serão escritas pela professora. É importante que os termos e as elaborações das
crianças sejam preservados.
No mesmo dia em que for empreendida a terceira definição, as crianças devem
realizar uma ilustração correspondente à terceira definição. Essa terceira definição, que
será ilustrada, é uma síntese efetuada pela criança, resultante da primeira hipótese, dos
estudos, pesquisa e leituras com a professora. Importante destacar a importância de se
utilizar recursos e técnicas distintas para compor a ilustração. O recurso Dicionário
Letras Vivas dever ser nominado com participação ativa das crianças, tomando-se
decisões coletivas; por exemplo, se as crianças decidirem que os dicionários terão seus
sobrenomes, cada dicionário receberá o sobrenome da criança, como
apresentamos na Imagem 01.

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Imagem 01 – Capa do Dicionário Letras Vivas nominado “Dicionário Santos”

Fonte: Arquivo do Grupo de Pesquisa e Estudos em Educação Infantil – GEEI.

Conforme observamos na Imagem 01, nessa ocasião as crianças optaram por


nominar os dicionários com seus sobrenomes, assim o referido exemplo recebeu o
nome de “Dicionário Santos”. Caso decidam por uma nominação geral, todos os
dicionários receberão a mesma nominação, como no exemplo a seguir, em que as
crianças decidiram que o dicionário da turma seria “Visconde de Sabugosa” (Imagem
02) e assim ocorreu, todos os dicionários tiverem a mesma nominação.

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Imagem 02: Capa do Dicionário Letras Vivas nominado “Dicionário Visconde de Sabugosa”

Fonte: Arquivo do Grupo de Pesquisa e Estudos em Educação Infantil - GEEI

A Imagem 02 expõe a possibilidade de nominação em que as crianças optaram


pela escolha de um nome geral, e todos os materiais receberam o mesmo nome, por
isso a importância das decisões serem tomadas coletivamente, com a participação
efetiva das crianças. Conforme observamos nas imagens (01 e 02) apresentadas, o
recurso permite formatos distintos Assim, indica-se que a folha que servirá de base à
composição do Dicionário Letras Vivas corresponda à metade de uma folha de papel
tamanho A4. Porém, o formato final do Dicionário será extraído a partir de um dos
conceitos estudados com as crianças e que tenha motivado sua atenção. Por exemplo,
em uma hipótese em que a palavra relevante para as crianças tenha sido “lupa”, o
formato dos dicionários poderá ser de uma “lupa”. O formato também é comum a todos
os dicionários; assim, todosecessariamente possuirão um formato padrão, em síntese,
se for uma lupa, todos representarão esse objeto.
Conforme Chaves (2011a), o Dicionário Letras Vivas deve ser organizado em
ordem alfabética e apresentar uma ficha catalográfica. As palavras estudadas não
precisam seguir a ordem alfabética, porém ao se organizar a finalização do dicionário
as páginas devem considerar a ordem alfabética.
No que se refere à ficha catalográfica, esta deve conter as informações
bibliográficas necessárias para identificar e localizar um livro ou outro documento no
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acervo de uma biblioteca. É importante sua elaboração no Dicionário Letras Vivas, para
que este adquira contornos de produção bibliográfica das crianças; se mencionado em
uma pesquisa ou artigo acadêmico poderá ser devidamente referenciado . É necessário
dialogar com as crianças sobre a ficha catalográfica, assim terão a oportunidade de
compreender que estas, assim como outros expoentes, são capazes de compor “belos
e importantes dicionários”.
Segundo Chaves (2011a, p. 54), “esse recurso didático objetiva mobilizar a
criança a ampliar seu vocabulário” ao apresentar definições e conceitos científico às
palavras sistematizadas, favorecendo a superação de conhecimentos espontâneos
obtidos pela criança no decorrer dos anos. Sobre a apropriação da linguagem, Vigotski
(2001, p. 320) afirma que:

[...] a criança domina certas habilidades no campo da linguagem, mas


não sabe que as domina. Essas operações são inconscientes. Isso se
manifesta no fato de que ela domina tais operações espontaneamente,
em determinadas situações, automaticamente, isto é, domina quando
a situação, em grandes estruturas, a criança não consegue fazer de
forma arbitrária, consciente e intencional o que faz de modo não
arbitrário. Logo, ela está limitada, é limitada para aplicar suas
habilidades.

Com base nos escritos deste autor, salientamos a relevância das intervenções
didáticas e dos recursos utilizados pelo professor para o processo de aquisição do
conhecimento científico das crianças. Nesse sentido, pontuamos o entendimento de
Chaves e Nabas (2012, p. 165-166) quando afirmam que:

[...] o trabalho com os Dicionários Letras Vivas pode ser considerado


como uma ferramenta para o desenvolvimento intelectual da criança
porque ao confrontar seus conhecimentos, até então puramente
empíricos e espontâneos, encontrará o subsídio necessário para
ultrapassar os conceitos imediatos, transformando os conhecimentos
adquiridos no cotidiano familiar, igreja e outras instituições que tenham
frequentados ou no contato social com vizinhos e amigos, em saberes
científicos elaborados.

Nesse âmbito, cabe às instituições escolares a responsabilidade de transforar o


conhecimento espontâneo adquirido nos meios de convivência da criança em
conhecimento científico. Com esses argumentos reafirmamos a importância da
elaboração do recurso Dicionário Letras Vivas para o desenvolvimento e formação dos
professores e escolares, oportunizando que “ultrapassem o senso comum” e tinham
“contato com o saber e conceitos cientificamente estruturados” (CHAVES; NABAS,
2012, p. 166). As autoras argumentam ainda que

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A capacidade criadora das crianças depende do ambiente escolar e do
que lhes é ofertado; não podemos ter um ensino de excelência
oferecendo qualquer tipo de material pedagógico, isto representa um
não desenvolvimento pleno da intelectualidade das crianças. A
recondução das condutas pedagógicas junto às crianças, no sentido
de oferta o que a humanidade produziu de mais elaborado ao longo da
História é condição elementar para o desenvolvimento de agentes
históricos, rompendo a condição de meros expectadores do processo
histórico (CHAVES; NABAS, 2012, p. 166).

Compreendemos, assim, que com esse recurso firma-se a defesa de apresentar


e ensinar às crianças as máximas elaborações humanas, proposição fundamental da
Teoria Histórico-Cultural. Finalizamos este estudo com o excerto de Chaves e Nabas
(2012, p. 168), o qual destaca que:

[...] o trabalho educativo pode contribuir no processo de humanização


por meio de intervenções pedagógicas voltadas para uma
aprendizagem significativa e na construa de um saber elaborado, que
ultrapassa a realidade objetiva das crianças no sentido de promover
seu desenvolvimento intelectual, afetivo, cognitivo e social.

Conforme o exposto, as proposições realizadas nas instituições educativas,


como o recurso destacado neste estudo, o Dicionário Letras Vivas, pode se constituir
em uma possibilidade humanizadora e repleta de sentido e significado no processo da
apropriação do conhecimento científico das crianças, em especial as mencionadas
neste texto, as da Educação Infantil.

Considerações Finais
Finalizamos as questões aqui apresentadas com a defesa que as instituições de
Educação Infantil podem se apresentar como espaços de educação por excelência, sob
o entendimento que o ensino humanizador é possível quando organizado de maneira
intencional pelos profissionais da Educação. Corroborando Chaves e Nabas (2012, p.
169), os profissionais da educação têm o compromisso de “oportunizar às crianças
vivências que jamais teria em outro espaço de convívio”.
Desse modo, assinalamos que as instituições precisam ser tomadas pelo que há
de mais elaborado e avançado que a humanidade construiu e a História disponibiliza,
uma vez que as crianças e todos nós ficamos na condição de herdeiros de todas as
riquezas humanas. Defendemos, com isso, que o trabalho com as crianças na
Educação Infantil precisa ser repletos de sentido e significado, em uma Educação que
viabilize recursos didáticos em uma perspectiva humanizadora, e no caso deste estudo,
por meio do Dicionário Letras Vivas.

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O PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE
CERTA E A LITERATURA: PROPOSTAS E PERSPECTIVAS NA
EDUCAÇÃO INFANTIL.
Eva Dacome, PPGE UNESP de Presidente Prudente.
Elianeth Dias Kanthack Hernandes, PPGE UNESP de Presidente Prudente.

Eixo Temático: 2 – Literatura Infantil para crianças pequenas.

Considerações iniciais.
Temos cotidianamente vivenciado situações que demonstram a falta de
consenso existente entre os conhecimentos teóricos acumulados, as ações políticas
adotadas, e as diretrizes propostas pelos órgãos oficiais, que têm orientado a educação
formal brasileira nas últimas décadas. No entanto, é preciso reconhecer que
a alfabetização tem sido considerada em discursos oriundos dos mais diferentes
setores, como sendo a base da vida escolar. A centralidade desta opção é a convicção
de que o domínio da leitura e da escrita é essencial para garantir aos indivíduos, a
possibilidade de exercer plenamente a cidadania. Além disso, segundo Foucambert
(1997) é preciso situar a aprendizagem da língua escrita entre os instrumentos e as
ferramentas de pensamento que possibilitam operações intelectuais que só são
possíveis com a aquisição desse conhecimento.
Segundo Girotto e Souza (2010) as atividades de leitura necessitam ser
significativas e corresponder aos interesses infantis e dessa forma, nos colocamos ao
lado daqueles que defendem que o trabalho com a literatura infantil é uma ferramenta
essencial para o processo de humanização (CANDIDO 2011) das crianças, contribuindo
de forma significativa para a ampliação do repertório linguístico, para a formação do
leitor experiente e para o desenvolvimento pleno dos indivíduos.
Para que isso ocorra, de maneira dinâmica e contextualizada, nas instituições
infantis é necessário que os professores tenham formação, tanto inicial como
continuada, que possibilite um tipo de atuação que seja coerente com essa expectativa.
Uma das formações proposta pelo MEC é o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa – PNAIC. O PNAIC foi proposto no final de 2012 e iniciado em 2013 para o Ensino

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Fundamental com a proposta de alfabetizar todas as crianças até os oito anos de idade,
ao fim do 3º ano do Ensino Fundamental e em 2017 sob a Portaria nº 826, de 7 de julho
de 2017 (BRASIL, 2017a) inclui a Educação Infantil com o escopo de “qualificar
educadores infantis para planejar e executar ações pedagógicas fundamentais nas
concepções atuais dessa etapa da educação básica” (BRASIL, 2017b, p. 22).
Entendemos que a interação e o desenvolvimento intelectual e social dos
sujeitos acontecem com a sua relação com o mundo e com os conhecimentos
construídos culturalmente pela humanidade, ao longo de sua história. A linguagem é um
exemplo disso, seja ela verbal ou não verbal, apresenta um papel humanizador “[...] pois
a linguagem é um instrumento essencial na vida de todo e qualquer sujeito e é somente
por meio dela que as relações sociais se estabelecem” (GIROTTO, NETO E SOUZA,
2016, p. 195). É preciso reconhecer também que, as crianças ao ingressarem na
Educação infantil, já trazem consigo conhecimentos adquiridos na vida cotidiana. Esses
conhecimentos são maiores ou menores de acordo com o contexto que a criança vive,
dessa forma cabe à escola ampliar esses conhecimentos e experiências.
O escopo dessa comunicação tem como respaldo identificar as propostas e
perspectivas do trabalho com a literatura infantil constante no material do PNAIC
destinado à Educação Infantil. Para isso, buscamos nos pautar pelas orientações
conceituais e metodológicas da pesquisa bibliográfica e documental, utilizando
procedimentos relativos à análise de conteúdo do material pedagógico de formação do
Pacto para a Educação Infantil, disponibilizados em 2017. Os cadernos foram
analisados a partir dos referenciais de Solé (1998), Cosson (2018), Lerner (2002),
Girotto e Souza (2010), Lajolo e Zilberman (1985) e Coelho (2000).
A relevância do trabalho investigativo, que nos propusemos a realizar, tem
respaldo na amplitude desta política governamental, em que sua implementação
contempla todo o território nacional. Outro fator que indica a importância da realização
deste estudo é a atualidade desta política, pois o PNAIC foi firmado recentemente, em
2012, e apenas em 2016 passa a ter um material de formação com direcionamento para
a Educação Infantil. Esse material é composto por uma coleção de 1 caderno de
apresentação, 1 encarte às famílias e 8 cadernos de formação, com três textos cada,
escritos por autores diferentes, que buscam estabelecer um diálogo entre a teoria e a
prática, sempre defendendo o pressuposto que o trabalho com a leitura e a linguagem
em crianças pequenas é essencial na formação de leitores.
Para viabilizar a proposta deste trabalho faremos uma breve discussão sobre o
PNAIC na Educação Infantil, a importância do trabalho da literatura com as crianças

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com o foco principal no papel da literatura nos cadernos de formação do PNAIC na
Educação Infantil.

PNAIC e a Educação Infantil.


O PNAIC foi instituído pela portaria nº 867 de 4 de julho de 2012 (BRASIL, 2012),
em nível macro para atender a meta 5 do PNE. Ao longo desses anos esse Pacto foi
capacitando professores e dando ênfase em formação no ensino de Linguagem,
Matemática, Gestão escolar, Currículo, Alfabetização que envolve a leitura e a escrita.
Em 2016, a Educação Infantil passa a fazer parte do PNAIC, a partir da
elaboração do material pautado no “Projeto Leitura e Escrita na Educação Infantil”, que
trazia a composição de 1 caderno de apresentação, 1 encarte às famílias e 8 cadernos
de formação. Somente em 2017, o MEC através da Portaria nº 826, de 7 de julho de
2017 (BRASIL, 2017a) elabora também um Documento Orientador (BRASIL, 2017b)
ajustando a formação a quem ele se destina. É importante ressaltar que o material
destinado a formação dos professores da Educação Infantil, foi elaborado para a
formação desde da Creche à Pré-escola, no entanto o MEC direcionou essa formação
somente para os professores da Pré-escola. As ações do PNAIC ficaram, assim,
destinadas aos

estudantes da pré-escola e do ensino fundamental, cabendo aos


professores, coordenadores pedagógicos, gestores escolares e
gestores públicos uma responsabilidade compartilhada no alcance do
direto da criança de escrever, ler com fluência e dominar os
fundamentos da Matemática no nível recomendável para sua idade.
(BRASIL, 2017a, p. 20)

No que se refere à formação de educadores, houve um direcionamento voltado


para aos atores locais, que deveriam estar comprometidos com os processos
formativos, de monitoramento, avaliação e intervenção pedagógica. A Educação Infantil
passa a conviver com um novo movimento demandado por sua inserção no PNAIC, que
oportunizaria a ampliação do diálogo formativo entre a sua função sociopolítica e
pedagógica e papel exercido pelo currículo, na garantia dos direitos de aprendizagens
das crianças. É importante registrar que esses direitos de aprendizagem relativos à
Educação Infantil são pautados e garantidos pela Constituição Federal e pelos
seguintes normatizadores legais: Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil
(RCNEI), Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) e Base
Nacional Curricular – Educação Infantil (BNCC).

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A Literatura e o material do PNAIC para a Educação Infantil.
É sabido que o desenvolvimento da oralidade e da escrita da criança, bem como
seu processo de apropriação da cultura humana, influencia de forma definitiva a sua
capacidade de pensar e de se expressar (MUKHINA, 1995), pois é a partir os atos de
leitura e interação com ‘o outro’, sujeito mais experiente, que a criança realiza o
processo de internalização de novos saberes. Sendo assim, a escolha do tema da
Literatura como eixo de análise do material pesquisado se deve ao fato de que
entendemos que esse gênero possui o potencial de desenvolver o senso crítico, nos
tornando mais atentos aos usos das linguagens e de suas armadilhas, que estão sempre
presentes nos múltiplos discursos sociais.
De acordo com Girotto, Neto e Souza (2016, p. 196) “[...] a literatura tem poder
emancipatório, pois liberta o leitor de seu mundo real, levando-o a uma dimensão
ficcional capaz de transformar o próprio real.” Pensando na importância de ampliar a
capacidade de entender o mundo, acreditamos que o trabalho com a literatura com as
crianças, desde pequenas, é um grande aliado no processo de garantir uma
aprendizagem plena. Sendo assim, com o intuito de averiguar como a literatura infantil
se faz presente no material pedagógico do PNAIC passamos a analisar a sua
composição.
Os cadernos oferecidos as redes de formação da Educação Infantil foi baseada
no material do “Projeto Leitura e Escrita na Educação Infantil” produzido pela
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG em parceria com a DICEI/SEB/MEC.
Esse projeto, que deu origem à Coleção do PNAIC em 2017, traz explícita a convicção
de que é necessário estabelecer parâmetros e diretrizes que possam orientar o trabalho
com a leitura e a escrita na Educação Infantil, Creche e Pré-escola, sempre com o
objetivo de capacitar os docentes que ali atuam, a partir da perspectiva das
contribuições dos teóricos que têm sido referência nessa área. A coleção foi elaborada
sob as ideias e estudos de 38 autores e 25 leitores críticos, além de um projeto gráfico
sob a responsabilidade de artistas consagrados da literatura infantil como Graça Lima 42,

42
Graça Lima - ilustradora e escritora carioca, formada em Comunicação Visual pela Escola de
Belas Artes da UFRJ, com mestrado em Design na PUC-RJ. Já ganhou vários prêmios com seu
trabalho de ilustração.
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Mariana Massarani43 e Roger Mello44, na tentativa de garantir assim, a articulação entre
a forma e o conteúdo.
O caderno de apresentação denominado de Caderno 0 (BRASIL, 2016a) traz em
sua composição, de forma bem resumida, a estrutura do material, elencando as
temáticas dos 8 cadernos de formação, propondo a articulação entre os conhecimentos
teóricos-científicos e as manifestações artísticos-culturais no cotidiano das instituições
infantis. A seguir no Quadro 1, apresentaremos os títulos de cada caderno e as
unidades que os compõem:

Quadro 1 – Composição dos oito cadernos do PNAIC.


Número Título dos cadernos Título das Unidades
do
caderno
1 Ser docente na Educação 1-Docência e formação cultural.
infantil: entre ensinar e o 2-Docência na Educação Infantil:
aprender. contextos e práticas.
3-Leitura literária entre professoras e
crianças

2 Ser criança na Educação 1-Infância e linguagem.


Infantil: infância e linguagem. 2-Infância e cultura.
3-Desenvolvimento cultural da criança.

3 Linguagem oral e linguagem 1-Criança e cultura escrita.


escrita na Educação Infantil: 2-Linguagem oral e linguagem escrita:
práticas e interações. concepções e inter-relações;
3-Criança, linguagem oral e linguagem
escrita: modos de apropriação

4 Bebês como leitores e 1-Os bebês, as professoras e a


autores. literatura: um triângulo amoroso.

43
Mariana Medeiros Massarani é uma premiada ilustradora e escritora. Já ilustrou mais de
duzentos livros, a maioria de literatura infanto-juvenil. Esta ilustradora é sócia da empresa Capa
Dura em Cingapura, junto com outros dois importantes ilustradores brasileiros, sendo estes
Graça Lima e Roger Mello
44
Roger Mello é um escritor e ilustrador brasileiro. Nasceu em Brasília, em 1965. Vencedor do
Prêmio Internacional Hans Christian Andersen 2014, na Categoria Ilustrador. o Prêmio é
concedido pelo International Board on Books for Young People, considerado o Prêmio Nobel da
Literatura Infantil e Juvenil.
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2- Bebês: interações e linguagem.
3- Brincar, cantar, narrar: os bebês
como autores.

5 Crianças como leitoras e 1-Leitura e escrita na Educação Infantil:


autoras. concepções e suas implicações
pedagógicas.
2-As crianças e as práticas de leitura e
escrita na Educação infantil.
3- As crianças e os livros.

6 Currículo e linguagem na 1-Currículo e Educação Infantil.


Educação Infantil. 2-Observação, documentação,
planejamento e organização do
trabalho coletivo na Educação Infantil.
3-Avaliação e Educação infantil.

7 Livros infantis: acervos, 1-Livros infantis: critérios e seleção – as


espaços e mediações. contribuições do PNBE.
2-E os livros do PNBE chegaram...:
situações, projetos e atividades de
leitura.
3-Os espaços do livro nas instituições
de Educação Infantil.

8 Diálogo com as famílias: a 1-Aprender a ler e a escrever: as


leitura dentro e fora da escola. expectativas das famílias e da escola.
2- Literatura e famílias: interações
possíveis na Educação Infantil.
3- Leitura e escrita: conquistas e
desafios para a formação continuada.

Fonte: Elaborado pela pesquisadora a partir dos dados coletados no Caderno 0 (BRASIL, 2016a)

Na coleção é possível notar que os títulos dos cadernos têm a intenção de ser
fonte inspiradora para um trabalho significativo de leitura e escrita com as crianças
pequenas. O material traz ideias das teorias vinculadas a Vygotsky, quando aborda a
compreensão da importância do papel dos adultos na construção e desenvolvimento da
linguagem; de Bakhtin quando traz o pressuposto da importância do papel dos adultos
na construção da subjetividade da criança; de Soares com as ideias de alfabetização e
letramento abordando um trabalho significativo com a linguagem escrita; e de Ferreiro
ao abordar a compreensão e apropriação do sistema de escrita pela criança. Em vários
locais do material do PNAIC para a Educação Infantil, essas teorias vão estabelecendo
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diálogo com práticas trazidas pelos seus colaboradores, que descrevem seus
procedimentos didáticos com a literatura infantil na sala de aula, com vista à formação
do leitor literário.
O caderno 1 traz: 1) a Literatura como Arte da Palavra; 2) a formação do
professor no trabalho com as crianças; 3) a ampliação das experiências humanas.
Coelho (2000) aponta que a literatura nada mais é que a arte: “fenômeno da criatividade
que representa o Mundo, o Homem, a Vida, através da palavra. Funde os sonhos e a
vida prática; o imaginário e o real; os ideais e sua possível/impossível realização...”
(p.24), ou seja, a literatura é uma linguagem especifica que representa as experiências
humanas e a cultura. De acordo com as autoras Baptista, Barreto, Corsino et al (p.90,
2016) a literatura necessita estar presente nas atividades da sala de aula, tendo “[...] um
espaço irrefutável, pois é nessa forma de leitura que o sujeito leitor tem seu lugar
destacado.” As vivências com a literatura devem ter início desde os primórdios da
infância e não devem ser diminuídas e muito menos abandonadas ao longo da sua vida
pessoal e escolar.
No caderno 2, a ênfase é dada na construção da linguagem pela criança,
colocando em destaque a relação da literatura com os aspectos culturais, atraindo as
crianças para as experiências culturais próprias dessa faixa etária, por meio de histórias
conhecidas e clássicos da literatura infantil, que traz características socioculturais de
uma determinada época. Benjamin (2002 apud PEREIRA, p. 59, 2016) “nos oferece um
importante ponto de vista, não apenas para mostrar o caráter ativo da criança na cultura,
mas também para asseverar que uma história que for contada sem incluir o ponto de
vista das crianças será sempre uma história incompleta.”. A importância dos aspectos
culturais na formação do leitor fica evidenciada na fala de Arena (2010, p. 17) quando
declara que “[...] o leitor pequeno não terá boas chances de atribuição de sentido a uma
obra se não estabelecer com ela e com outros eventos culturais, de hoje e de ontem,
relações contextuais de natureza cultural.” As atividades de reflexão e ação presentes
nessa unidade enfocam os critérios para a escolha do livro, com o olhar voltado para os
paratextos, para as ilustrações e a textura. Esse caderno traz também um alerta contra
a utilização das obras como pretexto para ensinar determinados conteúdos.
O caderno 3 destaca as experiências de leitura diária na rotina escolar com relato
de professoras que contam histórias todos os dias para as suas crianças, utilizando
vários recursos e estratégias, como forma de permitir a imaginação, fruição estética e o
brincar com as palavras. Coelho (2000, p.16) corrobora que as instituições escolares
necessitam ser um

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[...] espaço privilegiado em que deverão ser lançadas as bases para a
formação do indivíduo. E, nesse espaço, privilegiamos os estudos
literários, pois, de maneira abrangente do que quaisquer outros,
significações; a consciência do eu em relação ao outro; a leitura do
mundo em seus vários níveis e, principalmente, dinamizam o estudo e
conhecimento da língua, da expressão verbal significativa e consciente
– condição sine qua nom para a plena realidade do ser.

Os caderno 4 e 5 apresentam os bebês (referindo a Creche) e as crianças (Pré-


escola) como leitores e autores, enfatizando assim um trabalho com leitura significativa
que deve priorizar os conhecimentos prévios das crianças, a troca de experiências e a
preocupação na formação da criança como leitora,
O caderno 6 menciona as práticas de leitura em consonância com as DCNEI e
BNCC na construção do currículo, em que todas as crianças devem ter acesso a
diferentes gêneros textuais, afirmando de acordo com Barbosa, Oliveira (p. 33, 2016)
“com base em distintos argumentos, todos consideram a leitura e a fruição de histórias
uma importante experiência social e pessoal, portanto de indispensável presença no
currículo.”
No caderno 7, a dinâmica da elaboração do material diz respeito à necessidade
do professor ser um conhecedor dos livros infantis distribuídos pelo PNBE, abordando
assim, questões pertinentes e reflexivas na formação da criança leitora como: será que
as crianças têm acesso aos livros? (aqueles distribuídos pelo PNBE); os professores
conhecem os objetivos e as estratégias do programa PNBE? as práticas de leitura estão
presentes na Educação Infantil?; essas práticas estão contribuindo na formação de
leitores? Observa que, são indagações que merecem reflexões e revisão de prática de
professores e das escolas, porque afinal, muitas vezes o livro está presente nas escolas,
mas não na vida escolar da criança.
No caderno 8, fica em destaque a formação do leitor fora dos muros das escolas
- a literatura e a família -, focando a preocupação para que os pais entendam a
importância da literatura na formação de seus filhos, e que os professores de Educação
Infantil dialogue com essas famílias, inserindo-as em um “processo como agentes de
construção de um caminho profícuo e constante de leitura para seus filhos e suas filhas
ultrapasse os muros da escola.” (BELMIRO, GALVÃO, p. 51, 2016)
Essa discussão trazida no caderno 8 é complementada pelo encarte produzido
pelos organizadores como um instrumento facilitador no trabalho com as famílias e
literatura como podemos ver no Quadro 2.

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Quadro 2 – Capa do Encarte Conta de novo? As famílias e a formação literária do pequeno
leitor.
Encarte Conta de novo? As famílias e a
formação literária do pequeno leitor.

Fonte: Disponível em:


http://www.projetoleituraescrita.com.br/wpontent/uploads/2017/08/Encarte.pdf.
Acesso em 10/06/2020.

Observa-se que o encarte tem um visual e um título provocativo que aguça


nossos olhos leitores, “Conta de novo? As famílias e a formação literária do pequeno
leitor” (BRASIL, 2016b) apresentando uma linguagem bem direcionada às famílias com
o propósito de incentivá-las a perceber a importância que a literatura infantil tem na vida
e na formação das crianças de 0 a 5 anos. Esse posicionamento fica explicitado na
abordagem realizada pelos organizadores do material quando declaram: “oferecer a
literatura às crianças, desde os primeiros meses de vida, contribui para que cada uma
delas possa exercer, em condições de igualdade, seu direito de se transformar e de
transformar o mundo por meio do pensamento, da imaginação e da criação.” (Ibid, p.6)
Após realizarmos a análise do material, com base nos referenciais de Solé
(1998), Cosson (2018), Lerner (2002), Girotto e Souza (2010), Lajolo e Zilberman (1985)
e Coelho (2000) é possível concluir que a coleção do material pedagógico do PNAIC de
2017 destinado à Educação Infantil: a) preocupa-se em abordar a literatura como uma
fonte de possibilidades na formação da criança leitora; b) apresenta certa complexidade
teórica que procura ser compensada por uma abordagem que visa o diálogo com o leitor
presumido (professores de Educação Infantil); c) dialoga com as políticas públicas
relativas ao livro e a leitura, especialmente o PNBE, nos processos de seleção de obras
literárias destinados à Educação Infantil; d) destaca a formação da criança leitora por
meio das práticas sociais de leitura dentro e fora da escola, ou seja, no contexto familiar.
No entanto é preciso considerar que a formação leitora das crianças consolida-
se, não só pela elaboração e distribuição de materiais orientadores de práticas
docentes, mas também por meio de investimentos e esforços na formação dos que irão
realizar essa tarefa.

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Considerações Finais.
Tomamos como princípio a concepção que compreende o papel humanizador
da literatura (CANDIDO, 2011), destacando que o ensino de literatura na Educação
Infantil, assim como, a formação dos professores tem o potencial de contemplar uma
abordagem humanista. Daí a necessidade de oferecer uma formação docente que
prepare o futuro professor para realizar um trabalho que realmente consiga explorar ao
máximo o potencial dos textos literários, com mais tempo, espaço dedicados a esses
atos de leitura e assim formar novos leitores. Consideramos que, mesmo com o avanço
tecnológico ocorrido nos últimos tempos, a leitura literária ainda é o meio mais eficaz
para nos fazer enxergar o mundo sob novas perspectivas.
Os textos que compõem os 8 cadernos que analisamos trazem a preocupação
com o desenvolvimento da linguagem e o trabalho com a literatura com as crianças
pequenas no sentido de formar leitores, compartilhar, trocar experiências, ativar os
conhecimentos prévios e a imaginação. Dessa forma, esse material oferecido pelo
PNAIC, em 2016, oferece condições plenas de servir como um referencial aos
professores no trabalho com a Literatura com as crianças, desde a primeira infância.

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iniciação da criança no mundo da cultura escrita. In: SOUZA (et. al) Ler e compreender:
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Ministério da Educação, Secretária de Educação Básica. 1.ed. Brasília: MEC/SEB,
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Secretária de Educação Básica. 1. ed. Brasília: MEC/SEB, 2017b.

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BRASIL. Leitura e escrita na Educação Infantil. Caderno de apresentação. Ministério
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SOUZA, R. J.; NETO, I. A. M.; GIROTTO, C. G. S. Caminhos para o ensino da leitura


literária na Educação Infantil. In: GIROTTO, C. G. S. SOUZA, R. J. (Org). Literatura e
Educação Infantil: para ler, contar e encantar. Campinas: Mercado das Letras, 2016.

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A LITERATURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: FRUIÇÃO
ESTÉTICA OU PRETEXTO?

Eva Dacome, PPGE UNESP de Presidente Prudente.


Elianeth Dias Kanthack Hernandes, PPGE UNESP de Presidente Prudente.

Eixo Temático: 2 – Literatura Infantil para crianças pequenas.

Considerações iniciais.
Nossos estudos partem do pressuposto que o desenvolvimento integral de um
indivíduo só é possível por meio das suas relações e interações com o outro e com o
mundo. Sabemos que essas interações devem ser significativas para que o homem seja
capaz de se desenvolver socialmente, intelectual e psicologicamente. Assumimos
também que as interações significativas devem ocorrer desde a mais tenra idade em
uma relação recíproca entre o adulto e a criança, compreendendo assim que a criança
é um sujeito pensante, capaz de recriar esse mundo real dentro de um mundo
imaginário. Para que haja esse processo de humanização é necessário o uso da
linguagem, seja ela verbal ou não. Nesse processo de interação mediada pela
linguagem em que Bakhtin (1992) caracterizou como uma linguagem dialógica, o sujeito
constrói seu pensamento, a partir do pensamento do outro em uma interação de caráter
social.
Entendendo as situações de interação como sendo ‘acontecimentos’
(FOUCAULT, 2008), uma vez que são sempre realizadas em contextos de mediação -
com o outro e com o mundo -, fica ainda mais evidente o que afirma Candido (2011),
quando esclarece que a literatura tem o papel humanizador e que o ensino da literatura,
na Educação Infantil e na formação de professores, tem grande potencial de completar
uma abordagem humanista.
Destarte, a pesquisa que originou este texto teve o propósito de investigar a
literatura na Educação Infantil: fruição estética ou pretexto, permeada por alguns
questionamentos que têm sido recorrentes quando essa temática é revisitada por
estudiosos do assunto quando procuram analisar as práticas realizadas pelos
professores. Esses questionamentos dizem respeito principalmente aos seguintes

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aspectos: 1) Como a literatura tem circulado nos espaços infantis? 2) Como os
professores têm apresentado a literatura para as crianças?; 3) A literatura tem sido vista
como fruição estética ou como pretexto?
Na busca por respostas a essas indagações partimos de uma metodologia
centrada na pesquisa bibliográfica com respaldo nas ideias de autores que fomentam
essa temática como Lerner (2002), Geraldi (2006), Freire (2011), Meireles (1984),
Girotto e Souza (2010) e Faria (2004), e realizamos um cotejamento dessas teorias com
as práticas de professores atuantes em uma escola municipal de Educação Infantil do
interior Paulista a partir das observações durante o planejamento coletivo dos
agrupamentos na HTPC45.

A literatura na Educação Infantil: uma proposta humanista


Como já mencionado anteriormente, para que o ser humano se desenvolva
integramente é necessário a sua relação com o outro e com o meio no qual está inserido.
Dessa forma, concordamos com Girotto, Neto e Souza (2016) quando afirmam que a
interação pela linguagem, seja ela verbal ou não verbal, é fundamental no processo de
humanização, “[...] pois a linguagem é um instrumento essencial na vida de todo e
qualquer sujeito e é somente por meio dela que as relações sociais se estabelecem,”
(Ibid, p. 195)
Pensando na necessidade de oportunizar a ampliação do repertório linguístico
para as crianças, no que diz respeito à linguagem escrita ou à oralidade, como também
nas demais linguagens - visual, a simbólica e entre outras -, buscamos enfatizar que o
trabalho com a literatura infantil tem grande relevância na formação do leitor, na
ampliação do seu repertório e do seu vocabulário, oportunizando vivências leitoras e
qualificando os sentimentos e a sensibilidade estética em relação ao mundo que o cerca.
A literatura infantil tem o poder de preencher os vazios que as crianças ainda não
entendem, ou seja, a literatura auxilia a criança na compreensão do mundo real: “[...] a
literatura tem poder emancipatório, pois liberta o leitor de seu mundo real, levando-o a
uma dimensão ficcional capaz de transformar o próprio real.” (GIROTTO, NETO,
SOUZA, 2016, p. 196).
Para Colomer (2007, p. 62) “a literatura oferece então a ocasião de exercitar-se
nessa experiência e aumenta a capacidade de entender o mundo. Tal recompensa é o
que justifica o esforço de ler.” Já para Abramovich (2008, p. 17) “ler [...] sempre significou

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Hora de Trabalho Pedagógico Coletivo.
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abrir todas as portas para entender o mundo através dos olhos dos autores e da vivência
das personagens [...]”
A literatura que perpetua nos dias de hoje abrange diferentes gêneros textuais,
cada um com seu estilo composicional e suas escolhas semânticas, que vão desde os
mais tradicionais até os mais contemporâneos. Os tradicionais que mais encantam as
crianças são os contos, sejam elas de fadas ou contos maravilhosos. Esses tipos de
literatura representam um elo na formação da criança, pois trazem consigo a cultura e
a linguagem, além das dimensões simbólicas e imaginárias. De acordo com Meireles
(1984, p. 32) “a literatura não é, como tantos supõem, um passatempo. É uma nutrição.”
Sendo assim, na Educação Infantil, é importante que os professores ofereçam
as crianças esse contato com a literatura infantil, ainda que elas não sejam capazes de
ler. Sobre essa ampliação do conceito de leitura, Freire (2011, p. 19 e 20) já nos
esclarecia “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior da leitura
desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.” Daí é possível inferir
que ao ouvir histórias, manusear livros e o contato com o mundo literário ajuda a criança
a despertar o gosto e a necessidade da leitura desse gênero textual. Isso possibilita ao
sujeito, desde a infância, obter uma visão ampla de um mundo talvez ainda
desconhecido. Abramovich (2008, p. 24) afirma que “ouvir histórias é viver um momento
de gostosura, de prazer, de divertimento dos melhores [...] é encantamento,
maravilhamento, sedução [...]”
Segundo Lerner (2002, p. 73) “ler é entrar em outros mundos possíveis. É
indagar a realidade para compreendê-la melhor, é se distanciar do texto e assumir uma
postura crítica frente ao que se diz e ao que se quer dizer, é tirar carta de cidadania no
mundo da cultura escrita...”
É com a percepção da importância desse acontecimento que as histórias devem
ser lidas ou contadas para as crianças, pois as histórias não acabam quando chegam
ao final da leitura, elas permanecem na mente das crianças, ou seja, elas são
internalizadas como se fosse um alimento para a imaginação e criatividade desses
sujeitos. Recuperar essa prática nas escolas é o mesmo que oferecer o combustível
necessário para a formação do leitor literário. Sobre isso, Lerner (2002) enfatiza que
essa é principalmente uma responsabilidade das instituições escolares, que devem
cumprir seu papel ao apresentar e oferecer a leitura como prática social. Ao proporcionar
oportunidades e momentos significantes de atos de leitura para a criança, o professor,
permite que ela estabeleça a relação de “leitor para leitor.” (p.95)

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Ao analisarmos o trabalho com a leitura literária oferecida nas instituições
infantis, é preciso considerar que muitas vezes a atividade é realizada na forma de
pretexto para a aprendizagem de conteúdos diversos do objetivo literário, distanciando
a criança da fruição e da construção de conhecimentos humanísticos e da formação do
leitor literário. A seguir vamos analisar como as atividades de leitura literária têm
ocorrido em ambientes escolares infantis.

As práticas de leitura na Educação Infantil: Fruição e Pretexto.


Para compreendermos a título desse artigo partimos dos estudos realizados por
Geraldi (2006) sobre as práticas de leitura na escola, fazendo um recorte apenas das
duas últimas experiências leitoras: a leitura como pretexto e como fruição. De acordo
com seus estudos existem quatro possíveis posturas de experiências leitoras na escola:
a leitura para a busca de informações; a leitura como estudo do texto; a leitura do texto
como pretexto e a leitura como fruição do texto.
Diante de qualquer texto, qualquer uma dessas relações de
interlocução com texto/autor é possível. Mais do que o texto definir
suas leituras possíveis, são os múltiplos tipos de relações que com eles
nós, leitores, mantivemos e mantemos, que o definem (GERALDI,
2006, p. 93).

De acordo com Geraldi (2006) é preciso refletir quando nos referimos ao termo
pretexto, se este pretexto se refere ao aluno ou ao professor. “Pretexto” envolve uma
rede muito grande de questões. Pretexto para o aluno (aquele que, sendo o aprendiz,
deveria dirigir sua aprendizagem); pretexto para o professor” (GERALDI, 2006, p. 96).
Segundo o autor, a leitura usada como pretexto pode envolver múltiplas formas de usar
este pretexto como forma de definir a interlocução entre leitor-texto-autor.
A leitura como fruição do texto pressupõe um olhar voltado para as práticas
sociais da leitura e da escrita, estabelecendo um vínculo entre autor – leitor. De acordo
com Domingues, Juliano, Debus (2010, p. 22) “é no prazer do texto, nas experiências
sensoriais da leitura, que irá garantir um leitor – sensível, autônomo e crítico – vida
afora; apto, inclusive, ao uso da linguagem nas suas funções mais pragmáticas do
cotidiano.”
Geraldi (2006) aponta que em uma sociedade capitalista em que a atividade dá
importância ao produto, “a fruição, o prazer, estão excluídos [...] a escola, reproduzindo
o sistema e preparando para ele, exclui qualquer atividade ‘não-rendosa’” (p.97).
Segundo o autor é necessário que as escolas recuperem essa experiência de “ler por
ler, gratuitamente. E o gratuitamente aqui não quer dizer que tal leitura não tenha um

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resultado. O que define esse tipo de interlocução é o “desinteresse” pelo controle do
resultado” (GERALDI, 2006, p. 98)
Dessa forma se buscamos desenvolver o gosto pela leitura e a formação do leitor
literário devemos reservar espaços na escola com atividades de fruição sem o
compromisso de impor leituras, mas que a leitura por prazer possa ser vivenciada pelas
crianças e passam a ser rotineiras nas suas vivencias. “Recuperar na escola e trazer
para dentro dela o que dela se exclui por princípio – o prazer – me parece o ponto básico
para o sucesso de qualquer esforço honesto de ‘incentivo à leitura’” (GERALDI, 2006,
p. 98).
Considerando a importância que a literatura tem na vida e na formação do
indivíduo, é necessário que na escola, os professores - nos seus planejamentos -
destinem tempos e espaços para que as crianças possam ler livremente, observando
as ilustrações, a capa, o título, como cada obra foi tecida, as palavras, as formas das
letras distribuídas pela história, ou seja, este contato físico do leitor com a obra
impulsiona a formação do leitor literário, já que este momento ajuda a aguçar o desejo
de conhecer o que está entre as páginas.
Segundo Held (1980) para que as crianças sejam receptivas à literatura é
necessário que elas sejam participantes e não estranhas, no papel de meras
expectadoras. É preciso que elas sintam e vivam a linguagem presente nas obras
literárias.
Uma prática muito comum que ocorre nas escolas e isso deve ser levado em
consideração quando estamos falando em leitura para fruição e para a formação do
leitor, é o manuseio de livros, de obras literárias. No início podem ocorrer intempéries
como rasgar, amassar e até ignorá-los, mas cabe ao professor, que é o mediador dessa
situação, orientar este processo e ensinar atitudes e procedimentos de como utilizá-los,
ou seja, o comportamento leitor.
É comum observarmos que nas práticas sociais de leitura literária os professores
recorrem aos meios ou estratégias que resultam em fruição ou em pretexto. Há alguns
meios mais utilizados por estes professores nas salas de aula como: as rodas de
conversa, reconto de histórias, cantinhos de leitura, manuseio de livros, mostras
literárias, contação de histórias, mala literária, dramatizações, desenhos, ilustrações,
entre outros.

Como a literatura tem circulado nos espaços infantis: fruição estética ou


pretexto?

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A escola municipal que serviu como base de observação para a escrita dessa
comunicação, pertence a um bairro da periferia de um município do interior Paulista,
que atende a Educação Infantil, de Creche e Pré-escola. Essa instituição foi fundada
em 1996 e pela demanda de crianças do bairro e bairros circunvizinhos, sua estrutura
ficou comprometida para o atendimento de crianças, porque ficou sem espaço para uma
biblioteca ou sala de leitura. Por esse motivo, os livros ficam dispostos em armários na
sala de recurso em que apenas o professor tem acesso para realizar os empréstimos.
A equipe gestora da escola montou caixas com livros separados por faixa etária que
circulam em forma de rodízio, pelas salas de aula da escola. Esses recipientes,
chamados de “caixas literárias” ficam aproximadamente quinze dias em cada sala de
aula e depois o próprio professor faz a troca, obedecendo a uma planilha organizada
pela equipe gestora, com as datas e o destino da troca. Quando determinada caixa faz
o rodízio por todos os agrupamentos, a orientadora pedagógica realiza a troca desses
livros por outros, que estavam arquivados em um armário.
A forma como ocorre a circulação dos livros nessa instituição nos permite inferir
que a escola considera de grande importância que os livros infantis cheguem até seus
destinatários, as crianças, já que não há espaço para uma biblioteca, a equipe escolar
procurou uma solução possível para minimizar os efeitos do distanciamento das
crianças com os livros. Outro fator que demonstra essa preocupação de garantir a leitura
às crianças foi a organização dos livros divididos por faixa etária. Essa foi a forma
possível que os gestores encontraram para que um número considerável de livros
chegassem até as crianças. É preciso considerar também o fato de que nas caixas não
é possível colocar uma quantidade muito grande de livros, sendo assim, ficou sobre a
responsabilidade dos professores a busca por outros exemplares, sejam aqueles que
estão em outras caixas de outros agrupamentos ou nos armários onde estão os outros
livros guardados. Essa possibilidade de ampliação dos acervos dos livros a serem
emprestados é incentivada pelos gestores da escola. Sendo assim, o professor tem
autonomia para selecionar outras obras que não estão na caixa literária da sua sala de
aula.
Cientes desse trabalho realizado na unidade escolar, fomos suscitadas a
responder aos seguintes questionamentos: 1) se os livros estão chegando às crianças,
como está sendo realizada a circulação do acervo no espaço das salas de aulas?; 2)
como isso tem chegado até as crianças?; 3) Como esse acervo tem sido utilizado nas
salas de aula?. Para responder essas questões, fizemos a observação de três
professoras da Pré-escola nos momentos destinados ao planejamento das atividades

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de leitura, nas HTPC, no ano de 2019, em um período de um mês, ou seja, durante
quatro encontros de HTPC. Esse momento concedido para o planejamento coletivo
acontece nos momentos finais da HTPC em que os gestores da escola oportunizam aos
professores que se agrupem para que possam trocar informações, discutir e planejar
juntos.
Foi possível observar que no momento do planejamento coletivo, as professoras
se preocuparam em organizar momentos da rotina diária da sala de aula, com a oferta
de atividades como a “hora da história”, para o trabalho com a literatura infantil. Na
observação desses momentos de planejamento ficou nítida a preocupação dos
professores em trazer os textos de literatura infantil para o contexto da sala de aula. Isso
ocorria com relação aos livros que estavam, tanto na “caixa literária” da sala de aula,
como nos armários da escola, ou mesmo do acervo pessoal dos professores. Em
algumas ocasiões foi possível notar que ao planejar o trabalho com uma história literária
para as crianças, algumas professoras declaravam o objetivo de usar a obra como
pretexto para ensinar aos alunos algum conteúdo ou valor, como por exemplo: higiene
pessoal, questões ambientais, as letras do alfabeto, letra inicial das palavras, números,
valores morais, hábitos de saúde, alimentação, ou ainda, usar a leitura como suporte
para dramatizações ou produções de desenhos, etc. Para Geraldi (2006) não há
problema de que um texto ou uma história possa ser usado como pretexto, desde que
o pretexto seja compatível com as finalidades da leitura:

(para dramatizações, ilustrações, desenhos, produção de outros


textos, etc.). Antes pelo contrário: é preciso retirar os textos dos
sacrários, dessacralizando-os com nossas leituras, ainda que venham
marcadas por pretexto. Prefiro discordar do pretexto e não do fato de
o texto ter sido pretexto. (p. 97)

Cabe ressaltar, que ao usar a literatura infantil como pretexto na sala de aula, é
preciso que os professores utilizem essa estratégia com cuidado e cautela, para que
não se torne algo fora da realidade e do contexto da criança. Esse cuidado diz respeito
a necessidade de se evitar a formação de um leitor alienado, passivo, simplório e
reducionista. É preciso garantir que a criança não seja afastada do conhecimento
pertinente (MORIN, 2000), conhecimento este, que irá mediar sua relação com o mundo
e com o seu desenvolvimento cognitivo. Se, ao invés disso, a ênfase nas atividades de
leitura literária for dada ao ‘pretexto’, a criança passará a entender que toda vez que for
incentivada a ler uma história, significará ter outras tarefas a serem realizadas a seguir,
podendo diminuir ou até mesmo eliminar completamente o prazer, a curiosidade, a

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imaginação e tantos outras contribuições que o ato de ler pode oferecer a quem o
realiza.
É importante ressaltar que as histórias ou textos literários usados por essas
professoras não são como ‘meros pretextos’ para ‘preenchimento de tempo’ ou de um
‘não saber o que fazer’, mas está implicado em uma concepção que para ensinar algo
há a necessidade de um suporte, e este suporte na maioria das vezes são os livros
literários.

Daí a grande importância de o professor ter uma formação literária


básica para saber analisar os livros infantis, selecionar o que pode
interessar às crianças num momento dado e decidir sobre os
elementos literários que sejam úteis para ampliar o conhecimento
espontâneo que a criança já traz de sua pequena experiência de vida.
(FARIA, 2004, p. 21)

Foi possível notar também que a leitura por fruição também apareceu, mas de
modo muito tímido no planejamento dessas professoras. Elas planejavam essa
atividade como um momento de prazer em que a criança, mesmo quando não soubesse
ler convencionalmente, pudesse manusear os livros e criar suas próprias histórias a
partir das imagens expressa nas obras. Em outros momentos, as professoras
preparavam uma atividade que denominam de “leitura deleite” em que visavam apenas
a fruição do texto.
Levando em consideração as práticas observadas e relatadas, observamos que
o trabalho com a literatura na sala de aula exige do professor um planejamento
adequado para cada faixa etária das crianças, levando em consideração os
conhecimentos prévios, a formação do leitor literário crítico e a formação humanista. É
interessante que o professor leia primeiro a obra como um “[...] leitor comum, deixando-
se levar espontaneamente pelo texto, sem pensar ainda na sua utilização em sala de
aula.” (FARIA, 2004, p. 14) Além disso, o professor necessita ser antes de tudo um leitor,
para que a criança veja como um exemplo.
É preciso que no momento da leitura literária para as crianças, as ilustrações e
o texto escrito – a forma da escrita, a fonte - precisam ser apreciados pelo leitor
experiente e pelas crianças, pois ambos apresentam contribuições significativas na
leitura integral e na interpretação da história. As imagens precisam ser lidas como parte
essencial da história, suas cores, formas, tamanhos e a disposição na página. “A
ilustração conta com importantes elementos descritivos que, se fossem explicitados
integralmente no texto escrito, o tornariam longo e pesado - e mesmo ilegível.” (FARIA,

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2004, p. 42) Desse modo, cabe ao professor conhecer bem a articulação entre o texto
e a imagem, antes de trabalhar a história com as crianças.
Segundo Faria (2004), na apreciação estética de uma história é preciso aguçar
o nosso olhar, pois as ilustrações podem ser maiores que o texto escrito e nesse
momento esses textos não verbais representam um papel importante na estrutura da
narrativa, que precisam ser analisadas cuidadosamente, pelos detalhes das cenas e
das sequencias. Pode ocorrer que os textos escritos tenham extensão média e as
ilustrações fiquem em segundo plano, colaborando, ainda assim, de forma significativa
com a interpretação da narrativa. Por último a autora informa que há casos em que o
texto escrito tem extensão maior que a ilustração e, aí, esta passa a desempenhar o
seu papel principal que é o de ilustrar algum momento chave da narrativa.
Há uma variedade de atividades a serem realizadas com relação à apreciação
estética, uma delas é a de procurar estimular sempre a curiosidade das crianças em
relação aos paratextos, ampliando o seu arsenal de ‘ferramentas’ e de instrumentos de
leitura “[...] refletir como o autor e o ilustrador compuseram seu livro” (FARIA, 2004, p.
18). A leitura de fruição é uma das alternativas para as crianças fazerem suas escolhas
ao pensar em si, no mundo, nas suas interações/relações com os outros e objetivar
suas percepções.

Considerações finais
Verificamos que a literatura infantil representa o fio condutor na prática cotidiana
dessas professoras seja ela como uma atividade de fruição estética, pensando na
formação do leitor literário que seja capaz de questionar e decidir pelo o que é mais
relevante nas suas escolhas literárias ou como um pretexto usado para ensinar algo,
ainda que o conteúdo a ser aprendido seja alheio ao universo literário. Na investigação
não foram observadas práticas destinadas apenas ao preenchimento do tempo escolar
dos alunos.
Concordamos com Colomer (2007, p.69) quando baliza que “é necessário que
os docentes saibam analisar e avaliar os livros que oferecem outras formas de fruição
para que possam levar as crianças a descobrir prazeres que exigem maior elaboração”,
e também com Lajolo (2009, p.105) quando declara “que as experiências de leitura que
a escola deve patrocinar precisam ter como objetivo capacitar os alunos para que, fora
da escola, lidem competentemente com a imprevisibilidade das situações de leitura [...]
exigidas pela vida social.”

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Para finalizar nossas considerações concordamos com as palavras de Lerner
(2002) ao enfatizar que o desafio da escola e dos profissionais que ali atuam é formar
indivíduos desejosos pela leitura, assumindo uma postura crítica em relação ao mundo,
ao seu contexto e a sua realidade. Para isso, é necessário, e urgente, que o
tradicionalismo, as atividades mecânicas que estão por traz de cada história lida, a
busca e o controle de resultados sejam abandonadas e deem lugar para a leitura que
busque a formação do leitor literário.

Referências
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2008.
Alegre: Artmed, 2002.

BAKHTIN, M. Gêneros do Discurso. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.CANDIDO, A. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo/Rio de
Janeiro: Duas Cidades/ Ouro sobre azul, 2004, 4ª edição.

CANDIDO, A. Vários escritos. 5.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.

COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global,
2007.

FARIA, M. A. Como usar a literatura infantil na sala de aula. São Paulo: Contexto,
2004.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos se completam. São Paulo:


Cortez, 2011.

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compreender o que lêem. In: SOUZA, R. J. (Org). Ler e compreender: estratégias de
leitura. Campinas: Mercado das Letras. 2010.

HELD, J. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São Paulo:


Summus, 1980.

LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto: será que não é mesmo? In: ZILBERMAN, R.;
RÖSING, T. (Org.). Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo:
Global, 2009. p. 17-40.

LERNER, D. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto

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MEIRELES, C. Problemas da literatura infantil. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984.

MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo/Brasília:


Cortez/Unesco, 2000.

SOUZA, R. J.; NETO, I. A. M.; GIROTTO, C. G. S. Caminhos para o ensino da leitura


literária na Educação Infantil. In: GIROTTO, C. G. S. SOUZA, R. J. (Org). Literatura e
Educação Infantil: para ler, contar e encantar. Campinas: Mercado das Letras, 2016.

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FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO
INFANTIL E A LITERATURA: ESBOÇO DE UM PROJETO DE
PESQUISA

Aline Janell de Andrade Barroso Moraes, Universidade Federal do Amazonas, CAPES


Michelle de Freitas Bissoli, Universidade Federal do Amazonas, FAPEAM

Eixo temático: Literatura infantil para crianças pequenas

A necessidade da apropriação da literatura infantil e a formação continuada


de professores da Educação Infantil
A pesquisa de doutorado em andamento46 a que nos referimos neste trabalho
tem como temática a formação continuada de professores da Educação Infantil, com
foco na literatura infantil.
A problemática de nossa investigação origina-se do movimento de alguns
elementos que reconhecemos como fundamentais quando se trata da pesquisa que
envolve a formação de professores da infância e a literatura.
O primeiro elemento ao qual nos remetemos, por acreditarmos numa concepção
desenvolvente de formação continuada de professores, é que ela precisa ser um
processo humanizador para os seus participantes: professores/as e formadores/as
(BISSOLI; BOTH,2016; FRANCO, 2019). Uma formação que não seja protocolar, sem
significados e sentidos suficientes para desencadear mudanças nos/nas envolvidos/as;
mas que possibilite a humanização de cada um/uma pela
renovação/ampliação/ressignificação do conhecimento, pelas relações de parceria e
troca nela criadas e, principalmente, por atender as necessidades mais diretas dos
sujeitos.
Como segundo aspecto, destacamos a necessidade de ampliação do contato de
professores com o conhecimento em relação à literatura infantil. De acordo com o
mapeamento realizado por Saldanha e Amarilha (2018) sobre o ensino de literatura nos

46
A pesquisa a que se refere este manuscrito é intitulada Formação continuada de professores
da Educação Infantil: literatura infantil e teoria histórico-cultural, orientada pela Dra. Michelle de
Freitas Bissoli.
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cursos de pedagogia de 27 universidades federais brasileiras, em 41% delas há uma
disciplina obrigatória que trata sobre o literário, com cargas horárias bem diversas; em
52% das universidades a disciplina de literatura é optativa e em 7% delas não existe
nenhuma disciplina que trate sobre a literatura.
Como terceiro elemento dessa problemática, salientamos que as crianças têm o
direito humano de encontrarem-se com a literatura, como concerne a todas as pessoas
(CÂNDIDO, 2017), desde a Educação Infantil, sendo a escola um dos espaços
responsáveis por esse encontro. Sabemos que, para muitas crianças, a escola, muitas
vezes, será a única oportunidade de acesso aos livros literários e a mediações
intencionais com esse gênero, por meio de seus/suas professores/as.
Conjugado a esses fatores, trazemos algo que para nós é muito caro: é
fundamental que os/as professores/as se aproximem e se relacionem com a literatura
primeiramente como leitores, que a apreciem e que tenham ricas vivências literárias,
que usufruam desse direito humano, assim como as crianças. No entanto,
compreendemos que muitos de nós professores/as, como grande parte da população
brasileira, não tivemos uma experiência pessoal com a literatura na escola, nem fora
dela. Se “não podemos dar aquilo que não temos”, a ausência de experiências
significativas com a literatura pode significar a permanência da privação do direito das
crianças, já que é preciso ser leitor literário para contribuir para a formação de outros
leitores. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (INSTITUTO PRÓ-LIVRO, 2016) indica
que 54% dos entrevistados não lê literatura, e isso nos faz questionar o quanto a escola
pode ter influência nesses resultados.
Tais elementos aqui apresentados resumidamente nos fizeram refletir sobre a
relevância de desenvolver uma pesquisa em que possamos vivenciar, juntamente com
as professoras da Educação Infantil, um processo formativo continuado, dentro da
escola, cujo foco de estudos, discussões e vivências seja a literatura para a infância
(que toca também a adultos), com o objetivo primário de analisar as especificidades
deste processo, para percebermos suas potencialidades e desafios. Os encontros
formativos, os registros escritos das professoras e os diálogos que caracterizam tais
encontros serão o material empírico sobre o qual as análises incidirão e, para registrá-
los, utilizaremos caderno de campo e gravações em áudio e vídeo. Buscaremos
empreender a análise microgenética (GÓES, 2000) dos dados produzidos com e pelos
sujeitos, buscando os indícios a partir dos quais é possível perceber o movimento de
constituição de significados e sentidos ao literário pelos sujeitos, bem como as possíveis
reverberações do processo formativo na prática de leitura literária com as crianças.

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Para a produção e análise de dados nos fundamentaremos: (1) na Teoria
Histórico-Cultural, considerando seu arcabouço sobre a literatura como experiência
estética humanizadora (VIGOTSKI, 1999; 2003); (2) no entrelaçamento entre os
conceitos de vivência, significado e sentido, como categorias de base em relação à
apropriação da leitura literária, em Vygotski (2012; 2018) e Leontiev (2014); (3) na
Filosofia da Linguagem, a partir de Volochinov (2014) e Medviédev (2019), como aporte
tanto para a compreensão de enunciados envolvidos na pesquisa, compreendendo o
diálogo como fundamento das interações estabelecidas entre a formadora e os sujeitos
da pesquisa, quanto para os estudos sobre a literatura; (4) nas produções sobre
formação continuada de professores (GATTI, BARRETO, ANDRÉ; 2011; IMBERNÓN,
2009; NÓVOA, 2009; TARDIF, 2002); (5) nas relações entre pesquisa e formação
(FONSECA, 2017; LUCENA, 2018; LONGAREZI, 2013; PRINTES, 2018); (7) nas
relações entre os conceitos de Educação literária e Educação Infantil (GIROTTO;
SOUZA, 2016a; 2016b); (8) e, também, no acervo de obras literárias do PNBE Educação
Infantil de 2014 e do PNLD Literário para a Educação Infantil de 2018.

O panorama da investigação e o lócus de pesquisa


Diante das inquietações geradas em nós, argumentamos que, ao promover junto
aos professores uma formação que possa gerar conhecimentos sobre literatura infantil
(seus aspectos estéticos, fruição e deleite, além de suas especificidades, ampliando
seus repertórios literários), é possível que se crie/amplie neles a necessidade em
relação a esse conhecimento e isso pode mobilizá-los a darem novos significados e
sentidos aos processos de formação e autoformação, reverberando na sua prática com
o texto literário junto às crianças. Nesse sentido, objetivamos (1) Identificar que
significados e sentidos são atribuídos, pelas professoras, à leitura literária no processo
formativo; (2) Conhecer diversos aspectos e características constituintes do texto
literário; (3) Refletir sobre a construção de um processo formativo continuado
considerando suas potencialidades, desafios e limitações.
Para o desenvolvimento da pesquisa, escolhemos um Centro Municipal de
Educação Infantil de Manaus - CMEI, da zona sul de Manaus, que atende crianças de
2 anos e 11 meses a 5 anos e 11 meses, nos dois turnos, possuindo 12 (doze) salas de
referência para as turmas de Maternal III, 1° período e 2° período.
A escolha deste CMEI se deveu, em grande parte, a já termos vínculos anteriores
com o grupo de professoras. Percebemos, no grupo, a necessidade de maior
aproximação com o literário, tanto no aspecto pessoal – por conta do que presenciamos

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a partir de formações realizadas com elas na Divisão de Desenvolvimento Profissional
do Magistério da SEMED – Manaus, onde atuamos como formadora da Educação
Infantil – quanto no aspecto institucional, a partir de observações informais feitas
anteriormente, no tempo de convivência neste CMEI. Outro fator que impactou a
escolha foi o fato de a escola possuir uma biblioteca que tem seu acervo formado, em
grande parte, por obras do Programa Nacional Biblioteca na Escola - PNBE (2008 -
2014) e pela presença do primeiro montante de livros do PNLD 2018 nas salas de
referência, ainda que muitas vezes os livros sejam subutilizados, por diferentes razões
que a pesquisa buscará elucidar.
Definido o locus, fizemos nosso primeiro contato com a gestão da escola para
apresentação do projeto de pesquisa e, em setembro de 2019, o apresentarmos ao
grupo de professoras. Entregamos a elas um convite cujo tom reflexivo perpassava pela
ideia de que as práticas com a literatura junto às crianças demandam uma experiência
de apreciação pessoal desse gênero pelas próprias professoras. O grupo, no momento,
estava composto por vinte e quatro pessoas, sendo vinte professoras, duas pedagogas
(uma de cada turno) e duas professoras que atuavam na sala de recursos da escola. O
convite foi feito para todas elas e aguardamos alguns dias para que pudessem decidir
aderir ou não à pesquisa.
Ao retornarmos à escola, recebemos o aceite de vinte pessoas. Dessas,
dezessete são professoras, uma pedagoga e duas professoras da sala de recursos.
Todas assinaram o Termo Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), confirmando sua
decisão. Essa seria a primeira experiência em realizar juntas uma formação dentro da
escola, já que na escola não há essa prática de formações que busquem atender a
realidade local de forma específica. Esporadicamente, a gestão convida algum
profissional para palestras para as professoras no início do ano, geralmente na jornada
pedagógica. Na maior parte das vezes, as professoras são atendidas em formações
coletivas para toda a rede municipal que atua na Educação Infantil, na Divisão
Profissional de Desenvolvimento do Magistério – DDPM, geralmente em encontros que
acontecem quatro ou cinco vezes ao ano.
Após a leitura e assinatura do TCLE, fizemos um momento de apreciação
literária, a partir da obra literária “Como começa”, de autoria de Silvana Tavano (2009)
com ilustrações de Elma, da Editora Callis, que trata poeticamente sobre os diversos
começos de situações da vida humana, da natureza, das emoções, como segue:

Como começa?

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Cada coisa tem um jeito de começar. Todo mundo sabe: as frases começam
com as palavras, e as palavras, com letras. Muitas histórias começam com “era uma
vez”. Na escola tem o primeiro dia de aula e o primeiro dia de férias. Todo começo de
mês é dia 1° e os anos sempre começam em janeiro. Será que o mundo começou num
dia 1° de janeiro? Cócegas, piada, palhaço de circo e amigo engraçado: tudo isso faz a
risada começar! O primeiro bocejo avisa que o sono está chegando. Mas também pode
ser só o começo de um monte de bocejos! Certas coisas nem sempre começam sendo
o que são: O pintinho começa sendo ovo, o sapo, sendo girino, e a borboleta, sendo
lagarta. E tem os começos que não aparecem: a árvore começa debaixo da terra e as
nuvens encobrem o começo do céu. Mas e o mar? Começa ou acaba na areia? O vento
também é um mistério: às vezes, começa antes da chuva, e de vez em quando começa
por nada. É só vontade de ventar. O que parece complicado quase sempre começa
simples: o quadro vai surgindo depois do primeiro traço. A sinfonia, depois do primeiro
acorde; a invenção, depois do sonho. Tem muitas coisas que começam só por causa
de uma vontade: um segredo começa quando a gente não conta nada. Uma amizade,
quando a gente quer contar tudo. Para saber onde as coisas vão dar, só tem um jeito:
COMEÇAR!
Após lermos a obra, conversamos com as professoras sobre esse começo de
pesquisa. Dialogamos, ainda, sobre o fato de que embora venhamos planejando nosso
percurso com dedicação, é apenas ao começá-lo efetivamente que temos a real
dimensão a respeito do com que iremos nos deparar durante o processo. Sabemos
como ele se inicia, mas não como termina, porque assim é a própria vida, e não seria
diferente com a pesquisa. Conversamos, também, sobre a necessidade de a pesquisa
ser um processo permeado por trocas e colaboração para que se torne singular na
realidade do CMEI e apresente, possivelmente, resultados relevantes. Discutimos,
também, o que almejamos com o decorrer do processo que, como afirmam Baptista,
Neves e Galvão (2018, p.113), é favorecer

[...] entre os professores participantes, maior domínio de


conhecimentos relativos à seleção de livros, organização de espaços
e estratégias de mediação de leitura. Além disso, ratificou-se a
necessidade de as instituições responsáveis pela formação de
professores da Educação Infantil assumir, como importante
componente da formação inicial e continuada, a discussão acerca da
organização dos espaços do livro e da leitura, bem como o
planejamento e o desenvolvimento de estratégias pedagógicas para a
formação de leitores.

Nessa perspectiva, acreditamos que, para que os resultados tragam


desenvolvimento pessoal e profissional aos/as professores/as, certamente as
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formações devem partir das situações e necessidades reais dos/as professores/as,
entendendo com Imbernón (2009, p.10) que “[...] o contexto condicionará as práticas
formativas e sua repercussão no professorado, e é claro, a inovação e a mudança”.
Com base nesse ponto de vista, nos colocamos na condição de auxiliar as
professoras a perceberem e nomearem as suas necessidades, promovendo
oportunidades de superarem as análises empíricas das situações do cotidiano na
direção da construção do pensamento conceitual (VYGOTSKI, 2014) a respeito de seu
trabalho, especialmente com a leitura literária.

Início do levantamento das necessidades formativas no tocante à literatura


Iniciamos o processo de levantamento das necessidades formativas das
professoras em relação à literatura infantil fazendo observações dos momentos de
leitura/contação de histórias. Tal procedimento nos daria a oportunidade de nos
aproximarmos, minimamente, da prática das professoras, percebendo algumas de suas
potencialidades, acertos e dificuldades em relação às mediações nos momentos de roda
de leitura/contação. Entregamos a cada professora uma folha em que dizíamos o dia e
horário em que faríamos as observações. E assim o fizemos, nos meses de outubro a
dezembro de 2019, sendo três observações de rodas de leitura/contação em cada
turma. Após cada observação, a professora recebia uma folha com três perguntas: (1)
Por que você escolheu esse livro?; (2) Você teve alguma intenção pedagógica na
escolha desse livro? Qual foi?; (3) Você acha necessário desenvolver alguma atividade
após a leitura desse livro? Que tipo de atividade?; e ainda deixamos um espaço
opcional caso a professora quisesse manifestar-se em relação a mais algum aspecto.
Para nos orientar nas observações, elaboramos um roteiro, constituído por duas
partes. A primeira parte era composta por dados objetivos como: o nome da professora;
turma; turno, data; número de crianças presentes; tempo utilizado para a
leitura/contação; obra selecionada; autoria/ilustração/tradução/editora; e se a obra era
da professora ou da escola ou de outra procedência. A segunda parte do roteiro trazia
vinte questões sobre a mediação realizada pela professora, considerando a execução
e os aspectos específicos da atividade: apresentação da obra; recursos; organização
do espaço-tempo; envolvimento das crianças; técnica utilizada; conversas sobre a
leitura/contação; manuseio do livro etc.
Para nos acompanhar nas observações, levamos um gato de tecido (um
mascote) chamado Maguila, para que pudéssemos nos aproximar e interagir com as
crianças de forma mais pessoal, já que elas não nos conheciam. Chegávamos na sala

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e saudávamos as crianças e a professora e dizíamos que estávamos ali porque
gostávamos muito de ouvir histórias, nós e o Maguila, então nos sentávamos e o
sentávamos ao nosso lado para que ele também apreciasse a história. Foi interessante
ver que muitas crianças “embarcaram” na ideia de que ele ouvia as histórias e muitas
delas o abraçavam no final e/ou conversavam com ele, ou pediam para que fosse para
a roda com elas para ouvir melhor as histórias. Essa foi a maneira que encontramos de
sermos um pouco menos invasivas nas observações e de tentarmos criar vínculo com
as crianças.
Após finalizarmos o ciclo de observações e lermos as respostas das professoras,
destacamos alguns pontos que ficaram mais evidentes sobre suas necessidades, mas
tínhamos consciência de que também precisávamos ouví-las, pois não bastaria a nossa
visão, nem seria coerente com a proposta formativa que defendemos. Sendo assim, nos
reunimos com as professoras para que apresentássemos o resultado do que tínhamos
observado e pudéssemos discutir e tornar mais nítidos quais seriam os temas que
abordaríamos nos encontros formativos a partir da relação entre o visto e o ouvido.
Iniciamos esse momento com a proferição da história “O coração e a garrafa” de Oliver
Jeffers (2012), da Editora Salamandra, considerando que a apreciação literária estaria
presente sempre no início de todas as atividades de pesquisa.
Ao encerrarmos o momento da apreciação literária, iniciamos um diálogo sobre
o que as professoras queriam compreender/estudar/discutir na formação em relação à
leitura literária e, para disparar essa conversa, fomos apresentando os dados que
produzimos nas observações, para que a partir daí pudéssemos elencar as
necessidades em conjunto. Sintetizamos cinco aspectos a partir dos dados produzidos
nas observações em confronto com as respostas das perguntas feitas às professoras
ao final de cada observação: (1) a escolha dos livros que foram usados pelas
professoras, em sua maioria, se baseava nas possibilidades de o livro ensinar algum
conteúdo escolarizado (letras, numerais, higiene etc.), na sua relação com datas
comemorativas ou, ainda, para ensinar valores e condutas almejadas para as crianças
e não por sua qualidade e potência literária; (2) a escolha também se baseava em temas
dos livros que supostamente as crianças gostam (animais, alimentos, cores, natureza,
ilustrações coloridas, etc); (3) a escolha tinha por base o que o livro poderia desenvolver
nas crianças (imaginação, socialização, interação, criatividade, vocabulário); (4) o livro
foi escolhido por ser divertido e prazeroso; (5) para promover a cultura escrita, a
formação de leitores, o letramento; (6) para deleite e fruição. Destacamos que 70% das
respostas sobre as escolhas se baseavam nos itens 1, 2 e 3, confirmando o que já vem

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sendo dito há muito tempo sobre o uso utilitário que a escola geralmente faz da literatura
(PERROTTI,1990).
Além dos pontos levantados em relação à escolha do livros, verificamos também
que: o desenho foi a principal “atividade” feita após a leitura/contação; houve pouca
diversidade de gêneros literários; poucos recursos materiais foram agregados aos
momentos de leitura/contação; houve pouca presença de livros na sala de referência
para o manuseio das crianças; houve ausência de registro sobre esse momento; a
abertura e fechamento do momento não foram realizados; houve pouca preocupação
com a organização do espaço e com as conversas literárias. Tais dados, inicialmente,
nos revelam explícita e implicitamente as concepções e finalidades dadas ao literário
pelas professoras e como a mediação é realizada.
Ao pedirmos que elas se manifestassem em relação a esses dados
apresentados, para que formulassem suas dúvidas ou indicassem os temas para as
formações, ouvimos as seguintes formulações: Como mediar os poemas? Que livros
escolher para as crianças? Como saber se o livro está de acordo com a idade das
crianças e se elas vão entender? Qual a diferença entre um literário e didático? O que
é literatura? O que fazer depois da história? Como mediar o livro-imagem? Como lidar
com crianças atípicas nas rodas de leitura/contação? Como contar histórias? Ler é
diferente de contar? É errado escolher as obras a partir dos temas do planejamento?
Tem que fazer registro?
A partir das indicações das professoras, formos mediando o diálogo para tentar
ajudá-las a nomearem de maneira mais ampliada o que queriam, pois percebíamos que
implicitamente na fala delas havia dúvidas ou desconhecimento de base conceitual que
as impediam de formular com mais clareza e profundidade suas necessidades, estando
tudo muito ligado ao “como fazer”. Fomos nos ajudando para que as necessidades
formativas fossem nomeadas para além da aparência para que pudéssemos chegar à
essência de tais necessidades e para que pudéssemos planejar os temas dos
encontros.
Ao encerramos esse momento, ficou combinado que iríamos iniciar os encontros
formativos: um encontro por mês – de março a dezembro de 2020, finalizando o último
encontro com um piquenique literário, totalizando dez encontros47. De maneira geral, os
encontros se iniciam com um momento de apreciação literária, como modelagem do
que deve feito com as crianças; discussões dos textos de base, previamento lidos pelas

47
Houve necessidade de readequação da organização dos encontros por conta da pandemia por
COVID19 e do isolamento social dela decorrente e os mesmos estão sendo realizados sob a
forma de encontros síncronos, via Google Meeting, desde agosto.
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professoras, fazendo relação com a prática e identificando possíveis desafios individuais
e coletivos a partir das trocas; registros de conceitos, obras, autores e outras indicações
ao longo do encontro e autorreflexão que deveria ser entregue no encontro posterior.
Diante dessa fase preliminar concluída, nos debruçamos sobre as possíveis
temáticas dos encontros, que, inicialmente, se configuram da seguinte maneira: (1) O
que é literatura?; (2) Especificidades do ler e contar histórias; (3) Estratégias de leitura
literária; (4) Gêneros literários; (5) Acervo da escola e o PNBE e PNLD, que seriam
distribuídos ao longo do total de encontros. Tais temas podem ser alterados caso outras
necessidades se apresentem ao longo do processo.

Considerações finais
Como afirmou Pennac (1993, p.13), “O verbo ler não suporta o imperativo” e a
leitura literária, certamente, se compulsória, se descaracteriza.
No processo formativo que estamos empreendendo com as professoras e ao
qual dedicaremos nossas análises para a construção da tese, desejamos que a leitura
literária se torne, para as professoras, uma necessidade, um desejo que não se esgote,
mas que se amplie à medida que dela se apropriem. Pensamos que, além de
procurarmos fazer a relação entre as situações-problema e as dúvidas das professoras
nas formações e além de garantirmos a elas espaço de escuta e diálogo em todo o
processo, a apreciação literária precisa ser o fundamento para a criação ou
aprofundamento dessa necessidade.
Entendemos que, muitas vezes, a necessidade não se desenvolve não porque
faltam livros – que, no caso da escola em destaque, estão à disposição –, mas pela
frágil relação estabelecida entre professoras e literatura, vislumbrada pelo prisma
meramente didático e impessoal. É preciso que as professoras se relacionem com os
livros como um objeto artístico repleto de potencialidades humanizadores para todos
que com ele se encontram verdadeiramente. Somente dessa forma poderão mediar o
contato humanizador entre crianças e literatura.

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MEDIAÇÃO DA LEITURA LITERÁRIA NAS CASAS MÃE DO
NÚCLEO EQUATORIAL EM BOA VISTA - RR

Saiuri Totta Tarragó, Universidade Estadual de Roraima


Leuda Evangelista de Oliveira, Universidade Federal de Roraima

Eixo Temático: Literatura Infantil para Crianças Pequenas

Considerações Iniciais
A leitura é uma habilidade linguística do ser humano que se desenvolve desde
antes mesmo da alfabetização, quando dos primeiros contatos com a linguagem não
verbal dos símbolos sociais compartilhados culturalmente pela criança. A partir da pré-
escola, esta habilidade tende a se desenvolver cada vez mais por toda a vida. A
formação do sujeito-leitor é, portanto, um processo que se inicia na mais tenra infância,
esta é mediada pelas primeiras experiências literárias no seio familiar e no ambiente
escolar.
Concomitantemente, a literatura contribui para a formação do sujeito social, que
passa a adquirir, juntamente com outras experiências cotidianas, valores que serão
necessários para a futura vida adulta. Deste modo, parte do repertório de experiências
de socialização decorre dos primeiros ambientes em que ocorre algum tipo de interação
literária mediada. Neste sentido, a contação de histórias é também um canal de
interação social e assimilação de valores culturalmente compartilhados, realizado de
forma regular em ambiente pré-escolar com emprego da literatura infantil.
Ainda que o ambiente familiar possa e deva ser o espaço social em que ocorram
as primeiras experiências literárias, em grande medida é na pré-escola que a criança
sistematicamente é levada a imergir neste universo. Decorre principalmente deste fato,
a importância em se discutir este tema no campo da educação, em particular no contexto
da educação infantil, que abrange um período do desenvolvimento humano em que tais
experiências, se não conduzidas adequadamente, podem comprometer não apenas o
gosto e a admiração pelo ato de ler, mas suas habilidades sociais e domínio linguístico
de que necessitará por toda a vida.

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Neste contexto, este artigo se insere no tema da mediação da leitura literária em
educação infantil e se propõe a apresentar e discutir os resultados de minha pesquisa48,
na condição de trabalho de conclusão de curso de graduação em pedagogia, realizada
em 2018, cujo objetivos foram: identificar a concepção de mediação de leitura literária
que embasa as ações das professoras e cuidadoras; e descrever o processo de
mediação da leitura literária.
Para a realização da pesquisa foi necessário utilizar o caderno de campo, nele
pude anotar as observações das mediações em leitura literária desenvolvidas pelas
educadoras, o que permitiu-me descrever em que contexto as mediações ocorrem, se
adotaram algum tipo de método, recursos utilizados, ações e reações percebidas das
crianças e das educadoras nos momentos de mediação, bem como minhas reflexões
durante a pesquisa.
Este trabalho pretende assim contribuir com discussões sobre a prática e a
importância da mediação da leitura literária em educação Infantil, a partir da realidade e
contexto educacional da sociedade local pertencente a região Amazônica.

A mediação de leitura literária por meio da contação de histórias infantis

O termo “mediação” refere-se ao ato ou efeito de mediar, isto é, servir de


intermediário. No contexto de leitura literária, refere-se às diferentes práticas de
importância fundamental no processo de formação de leitores, pois envolve suas
primeiras aproximações com os livros e seus conteúdos literários e sociais. A mediação
de leitura literária é, portanto, mais do que uma ação pedagógica: é uma ação
psicossocial, dado que envolve uma relação entre aquele que lê, o material literário em
si, o conteúdo dos textos e as crianças. A mediação de leitura literária envolve, então,
não apenas a imersão das crianças na experiência estética do texto literário, mas a
aprendizagem e o compartilhamento de experiências sociais (OLIVEIRA, 2002). Com
base no Glossário CEALI, mediação literária na educação infantil se define em:

[...] mediação é um termo difícil de definir, uma vez que, para além de
seu significado estrito, nos referimos a uma prática. Mediar significa
estar entre duas coisas; no caso específico da mediação literária na
Educação Infantil, entre o livro de literatura infantil e a criança. No
entanto, efetivamente, o que faz a diferença é o tipo de ação propiciada
ao mediar o acesso ao objeto livro. Se entendermos o termo sob essa
conotação, abre-se um leque de aspectos a serem considerados nesta
relação: desde o estabelecimento de critérios para a seleção do texto,

48
A pesquisa foi realizada com prévia autorização da Secretaria Municipal de Educação de Boa
Vista – SMEC e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa - CEP da Universidade Federal de
Roraima, sob Parecer nº 2.897.067.
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até a ênfase, a intencionalidade de cada leitura e seus
desdobramentos para além da leitura em si (CARDOSO, 2014, s.n.).

É importante destacar que, em dada cultura, os primeiros acessos aos


elementos simbólicos se fazem por intermédio de outros sujeitos. Em geral, no caso da
leitura literária, esse outro sujeito é personagem fundamental na mediação, pois auxilia
na construção de sentidos por meio de suas experiências literária e pedagógica. Em
ambiente pré-escolar é, portanto, ideal para se observar e avaliar como se dá a
mediação em leitura literária, pois as crianças estão em uma faixa etária de pré-
alfabetização formal, além de muitas delas terem, neste ambiente, a única oportunidade
de contato com a literatura.
Abramovich (2006) enfatiza que é importante para a formação de qualquer
criança ouvir muitas histórias, pois ao escutá-las dá-se o início da aprendizagem para
se tornar leitor e, a partir daí ter um caminho absolutamente infinito de descobertas e de
compreensão do mundo”. A Humanidade utiliza, por meio das histórias, uma forma de
dividir suas experiências, mas que no cotidiano de nossa realidade dividimos de forma
menos significativa. A contação de histórias contribui para a prática de comunicação,
onde podemos compartilhar cultura, estética, costumes, tradição e valores que
estimulem a formação dos futuros cidadãos.

[...] é através duma história que se podem descobrir outros lugares,


outros tempos, outros jeitos de agir e de ser, outra ética, outra ótica [...]
é ficar sabendo História, Geografia, Filosofia, Política, Sociologia, sem
precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem cara
de aula... porque, se tiver, deixa de ser literatura, deixa de ser prazer e
passa a ser didática, que é outro departamento (não tão preocupado
em abrir as portas do mundo) (ABRAMOVICH, 2006, p. 17).

A mediação de leitura literária permite estimular a formação do cidadão-leitor e


contribuir para seu desenvolvimento intelectual, social e emocional. Ademais, o texto
literário na educação Infantil pode favorecer o desenvolvimento de habilidades
linguísticas, despertar a imaginação, bem como proporcionar momentos de deleite para
a criança (FRANTZ, 2011). Vale aqui ressaltar que o educador ao contar história
contribui com o desenvolvimento da criança, uma vez que o RCNEI (1998) destaca que

[...] é importante que o professor saiba, ao ler uma história para as


crianças, que está trabalhando não só a leitura, mas também, a fala, a
escuta, e a escrita; ou, quando organiza uma atividade de percurso,
que está trabalhando tanto a percepção do espaço, como o equilíbrio
e a coordenação da criança. Esses conhecimentos ajudam o professor
a dirigir sua ação de forma mais consciente, ampliando as suas
possibilidades de trabalho (BRASIL, 1998, p.53).

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Assim como a preparação do ambiente em que será contada a história, este
precisa oferecer ludicidade para a realização das atividades, permitindo que a mediação
de leitura literária ocorra de forma prazerosa e intelectualmente estimulante. Corsino
(2010) ressalta que “a mediação entre livro e o leitor começa no ambiente, sua
organização, seu clima e as interações que a favorecerão” (CORSINO, 2010, p.201).

As Casas Mãe do núcleo equatorial de Boa Vista


As três Casas Mãe são assim identificadas: Tia Neide, Luz do Sol e Vovó Rosa.
Em conjunto, elas compõem o Núcleo Equatorial e estão localizadas na Travessa dos
Macuxis, 2715. As primeiras Casas Mãe foram implantadas pela Prefeitura de Boa Vista
no ano de 2001. Os primeiros núcleos de Casas Mãe foram estabelecidos na periferia
da cidade, mas nos últimos anos a prefeitura vem inaugurando novos núcleos, no
sentido de oferecer maior número de vagas. As Casas Mãe Tia Neide e Vovó Rosa
tiveram sua reforma concluída em abril de 2016, quando foram entregues juntamente
com mais uma, nomeada de Luz do Sol. As três casas possuem semelhante
estrutura interna e externa, são bem decoradas, ricamente coloridas, com desenhos
divertidos nas paredes e com boa acessibilidade. Dentro das Casas Mãe, há caixas de
brinquedos e caminhas de plástico de fácil montagem, para repouso das crianças após
o almoço, sua estrutura física é a de uma grande cômodo, bem iluminado e cortinas no
meio do cômodo, para fechar na hora do descanso das crianças. Todas as casas têm
uma grande mesa em forma de meia lua rodeada por cadeirinhas, bem como colchas
para acomodação no chão durante algumas atividades, tais como a contação de
histórias. Há também armários para a colocação dos objetos pessoais das crianças e
utensílios de higiene, bem como dois banheiros adaptados para o tamanho delas. Na
frente de cada Casa Mãe há também uma área coberta com brinquedos de plástico,
como o escorregador, o balanço de cavalinho, e a casinha de brincar para as crianças
se divertirem nos intervalos.
Cada casa acolhe trinta crianças, sendo que ao todo, o Núcleo Equatorial atende
noventa crianças, em período integral, oriundas preferencialmente do Programa Família
que Acolhe (FQA). O FQA tem como um de seus objetivos promover o fortalecimento
do vínculo afetivo familiar e estimular o hábito da leitura desde cedo, para o saudável
desenvolvimento psicossocial da criança. Quem faz parte do FQA já tem vaga
assegurada em alguma das Casas Mãe e, quando sobram vagas, há sorteio entre os
interessados da comunidade, com divulgação por meios de comunicação de amplo
alcance.

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Nas Casas Mãe, as crianças em idade pré-escolar têm a oportunidade de serem
inseridas no universo da literatura infantil, a partir do trabalho de mediação de leitura
literária proposto pela prefeitura, e realizado pelas educadoras. Esta experiência não se
limita à relação educador-criança, mas também se estende para as relações entre as
crianças e seus familiares, uma vez que a contação de histórias também se dá por meio
da mediação de leitura literária em seus lares.

As práticas de mediação de leitura literária no Núcleo Equatorial

As casas se organizam com uma professora responsável pela condução das


atividades a serem executadas, conforme o cronograma do planejamento de aula antes
elaborado com a coordenadora do Núcleo. Cada professora tem uma equipe de até três
cuidadoras por turno, para auxiliar na rotina e nas atividades com as crianças. As
professoras trabalham até o meio dia e a partir desse horário as crianças ficam sob a
responsabilidade das cuidadoras. As atividades são conduzidas de forma dinâmica e
flexível, com o intuito de desenvolver o cuidado, o ensino e as necessidades específicas
das crianças. A flexibilidade nas rotinas diárias é importante para servir de ambiente de
estímulo cognitivo às crianças, e motivador às educadoras, conforme destaca o RCNEI
(1998):

A rotina na educação infantil pode ser facilitadora ou cerceadora dos


processos de desenvolvimento e aprendizagem. Rotinas rígidas e
inflexíveis desconsideram a criança, que precisa adaptar-se a ela e não
o contrário, como deveria ser; desconsideram também o adulto,
tornando seu trabalho monótono, repetitivo e pouco participativo.
(BRASIL, 1998, p.72).

Os livros infantis constituem-se no principal instrumento de fonte para a contação


de histórias para crianças. Entretanto, ao longo do tempo, o contínuo uso do mesmo
livro, da mesma história, tende a provocar desgaste físico do livro, além de suas histórias
tornarem-se pouco atrativas com demasiada repetição. Os livros precisam ser
renovados, pois ao oferecer às crianças maior acervo literário, elas serão oportunizadas
a vivenciar novas aventuras literárias, bem como desenvolver sua imaginação e
criatividade. Vale destacar que as crianças precisam ter seu contato com os livros
facilitado, pois, “[...]os livros precisam ser arrumados de maneira a serem vistos,
manipulados, consultados, lidos, relido, apreciados [...] (CORSINO, 2010, p. 201).
Nas Casas Mãe observou-se que, o estado de conservação dos livros revelava
sua falta de renovação, justificada pelo fim do contrato da prefeitura com o Instituto Alfa

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e Beto (IAB)49, em janeiro de 2018. Os livros apresentavam-se visivelmente
desgastados pelo uso diário das educadoras e das crianças, já que permaneciam em
uma pequena caixa no chão ao alcance das crianças a todo momento, além do uso
contínuo dos empréstimos no final de semana. Algo muito positivo, pois também
revelava a facilidade de contato com os livros que tinham as crianças.
Com relação a rotina diária das Casas Mãe, logo pela manhã, após as crianças
chegarem no Núcleo Equatorial e irem para suas casas, as crianças são conduzidas a
sentarem-se no chão com as educadoras, na forma de um grande círculo. A educadora
inicia sua fala expondo o que aconteceu com ela depois que saiu da “escola”, no dia
anterior. Após relatar seu percurso com certos detalhes ao chegar em casa, ver sua
família, jantar, tomar banho, dormir, acordar e ir para a escola, ela pergunta para as
crianças o que também aconteceu com elas ao deixarem a “escola” no dia anterior.
Algumas crianças puderam visualizar, de forma imaginária, a educadora durante sua
narração, o que lhes deu elementos para logo levantarem suas mãos e começarem a
relatar sobre si, enquanto outras ainda que tímidas, demonstravam estar atentas as
histórias reveladas. Esta é uma atividade que não só prepara um ambiente de contação
de histórias, mas também contribui para a socialização entre as crianças, para trocarem
suas vivências e se perceberem parte do meio em que vivem, onde se pode compartilhar
experiências. Conforme previsto no RCNEI (1998):

Todas as atividades permanentes do grupo contribuem, de forma direta


ou indireta, para a construção da identidade e o desenvolvimento da
autonomia, uma vez que são competências que perpassam todas as
vivências das crianças. Algumas delas, como a roda de conversas e o
faz-de-conta, porém, constituem-se em situações privilegiadas para a
explicitação das características pessoais, para a expressão dos
sentimentos, emoções, conhecimentos, dúvidas e hipóteses quando as
crianças conversam entre si e assumem diferentes personagens nas
brincadeiras (BRASIL, 1998, p. 62).

As educadoras relataram que a maioria das crianças não falavam muito ao iniciar
esta atividade, mas que com o passar do tempo, por meio do que denomino
“ambientação das emoções”, as crianças tendem a se manifestar gradativamente.

49
O Instituto Alfa e Beto chegou em Boa Vista, por meio de contratação da prefeitura, em 2013
com o objetivo de compensar a deficiência dos alunos da Rede Pública de Ensino. Esse
Programa dispõe, de um conjunto variado de materiais elaborados de acordo com os princípios
do ensino estruturado. O Programa abrange todas as áreas do desenvolvimento infantil. São
mais de 250 habilidades específicas trabalhadas ao longo do Pré I e II, que englobam as áreas
Pessoal e Social; Matemática e Lógica; Ciências; Artes; Linguagem, Leitura e Redação; Estudos
Sociais; e Desenvolvimento Motor. Todavia as crianças atendidas pela creche utilizam apenas
os livros de literatura infantil (PMBV, 2015).
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Trata-se de um momento em que elas próprias passam a ser “contadoras de suas
próprias histórias pessoais” entre seus pares, sob a mediação das educadoras.
Esta é uma atividade muito importante para o desenvolvimento cognitivo da
criança, porque oferece condições para o exercício do uso e domínio da linguagem,
além de habituar a criança ao universo das narrativas, que é a base da literatura infantil.
Assim que terminam de socializar suas histórias, as crianças são conduzidas para
outras atividades prevista no planejamento, dentre elas: brincadeiras de pula-pula,
equilíbrio na corda, morto-vivo. Enquanto as crianças participavam das brincadeiras, as
educadoras me contavam da importância das atividades que estimulam a coordenação
motora e os reflexos das crianças.
As brincadeiras eram frequentes durante a observação, uma vez que as
educadoras em grande parte do tempo usam a ludicidade para permear o processo de
ensino e aprendizagem. Todavia convém explicitar que essas atividades de brincadeiras
precisam estar contempladas no planejamento diário de forma organizada, planejada e
com objetivos, pois:

[o] trabalho de cuidar e de educar é um fazer pedagógico único e


indispensável na Educação infantil. Uma visão abrangente e complexa
do desenvolvimento infantil, bem como a observação da diversidade,
da realidade e do tempo da infância exige uma ação pedagógica não
compartilhada: cuida-se educando e se educa cuidando, já que a
relação pedagógica possibilita tanto vivências afetivas como
desenvolvimento e conhecimento (ADAS & MUSA, 2012, p.3).

No turno da tarde as educadoras fazem atividades semelhantes com as crianças,


conforme o planejamento pedagógico e, se pela manhã não houve contação de história,
elas terão essa atividade no período da tarde. Percebia-se diálogo entre as educadoras
para que pudessem executar as atividades com o cuidado necessário.
Na Casa Mãe Luz do Sol, uma das educadoras anunciou que contaria a história
“Chapeuzinho Vermelho”, mas não utilizou o livro. Pediu que se sentassem na colcha
que estava no chão, para ouvi-la. Mostraram um cartaz elaborado com o cenário da
história e apresentaram os personagens feitos com palitos de picolé e EVA 50. Conforme
a história era contada, sua voz mudava para diferenciar os personagens. Percebia-se
que fazia perguntas para as crianças, com o propósito de estingar a capacidade de
percepção e compreensão. As perguntas eram: “Vocês sabem o que vai acontecer?”;
“Será que a chapeuzinho vai conseguir fugir?”; “Quem acha que o lobo mau consegue
fugir do caçador?”.

50
EVA é sigla para Ethylene Vinyl Acetate ou, em português, etileno acetato de vinila.
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As crianças, atentas à história, participavam respondendo à educadora;
enquanto outras contavam o que ia acontecer aos personagens. Após a história ter sido
contada, a educadora fazia mais perguntas para as crianças: “Gostaram da história?”,
“O que vocês mais gostaram?”, “Quem eram os personagens dessa história?”, “Vocês
sabem o porquê aconteceu isso com Chapeuzinho?”, “Ela desobedeceu a sua
mãezinha... a mamãe pediu para ela ir por um caminho e ela foi por outro!”. Logo depois,
as educadoras pediram para que as crianças desenhassem o personagem que mais
haviam gostado.
Percebeu-se que a educadora buscava contar a história de forma criativa, com
domínio cênico e de entonação de voz, e que as crianças se mantinham interessadas e
gostavam como a educadora representava os personagens. O teor de moralidade
também era presente após a contação. Neste exemplo, a educadora trouxe o tema da
desobediência parental ao enfatizar que Chapeuzinho desobedeceu sua mãe, muito
comum em fábulas.
Para este recurso passei a denominar de “diálogo horizontal”, onde as crianças
após a contação de história dialogam com as educadoras sobre a história recentemente
contada. Para sua efetivação, é necessário que haja ambiente democraticamente
favorável a participação de todos, em que a educadora está mediando sobre a
mensagem que a história quer passar e oportunizar as crianças a exporem de que forma
se sentem e compreendem a história contada. Além disso, é importante que a criança,
em seu processo de desenvolvimento e aprendizagem, tenha acesso a todos os
gêneros textuais, em bom equilíbrio, lembrando que as fábulas compõem uma dessas
possiblidades, mas como os demais gêneros, não devem ser a de maior prevalência de
uso.

[...] o texto literário configura-se como um importante instrumento para


a Educação Moral à medida que sensibiliza a criança para os dilemas
morais vividos pelos personagens e suscita, num ambiente escolar
democrático, a reflexão sobre os valores e sentimentos inerentes as
suas condutas (RAMOS; CAMPOS; FREITAS, 2012, p. 149).

Assim, para evitarmos a imposição pelo adulto-educador, e para que as crianças


possam ter participação no processo de absorção desses valores, o ambiente pré-
escolar necessita estar preparado para que as crianças possam expor suas próprias
impressões e experiências. Este é o caminho para uma educadora se tornar mediadora,
não apenas da leitura literária, mas também na formação de um futuro cidadão. Assim,
por meio deste recurso, as crianças, desenvolvem reflexões participativas “ao mesmo
tempo em que trabalham seus sentimentos e emoções, valorizando suas ideias e as

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dos colegas, favorecendo o escutar e o argumentar, calcado no respeito mútuo,
estimulando o desenvolvimento da autonomia” (OLIVEIRA 2007, p.109).
Na Casa Mãe Tia Neide, certa vez, a história contada foi “Menina bonita do laço
de fita”. A educadora utilizou o livro desta história, colocou uma grande colcha no chão
e pediu para que as crianças sentassem para ouvi-la: ela apresentou a capa do livro
sinalizando a personagem principal e iniciou a história. Conforme ia contando, a
educadora mostrava as figuras para as crianças acompanharem a contação e fazia
perguntas sobre a história, para aumentar sua compreensão. Em alguns momentos, eu
percebia a educadora se distrair com as perguntas das crianças, e então ao retornar à
história, ela pulava alguns refrãos. Ela mostrava as figuras enquanto contava a história,
para que as crianças percebessem a articulação entre as imagens e o que era contado,
com o intuito de favorecer a percepção e a observação. Ao terminar de contar a história,
as crianças foram conduzidas para desenhar e pintar o coelho, um dos personagens
principais desta história.
Visto que toda história deve ser contada de forma estimulante, o que faz da
mediação uma atividade desafiadora para educadores, Abramovich (2006) alerta que a
escolha da história a ser contada deve ser contextualizada: conhecer previamente a
história, familiarizar-se com as narrativas e relacioná-la com a realidade social das
crianças. Para tanto, a história deve ser lida com antecedência e de forma reflexiva,
para que possa não só conseguir transmitir as emoções que a narrativa exige, como
também para pensar nos materiais auxiliares que possam ser utilizados como apoio, na
forma de abordar as mensagens e nas possíveis perguntas e respostas das crianças.
O mediador precisa trabalhar as emoções e a cognição das crianças, o que exige
segurança em sua narrativa e habilidade para conduzir entonação de voz, sons
diversos, pausas planejadas e expressão corporal para despertar o imaginário das
crianças.
Em outro exemplo, na Casa Mãe Vovó Rosa, uma das educadoras se fantasiou
de Emília para as crianças, para contar uma história adaptada de Monteiro Lobato.
Quando as crianças entraram na Casa, foram imediatamente conduzidas para o
universo literário: se depararam com a menina Emília do Sítio do Pica-pau Amarelo. Ela
pulava e falava rapidamente cumprimentando todas as crianças. Suas roupas, o cabelo
colorido e a entonação da voz remetiam a uma menina traquina, o que chamou a
atenção das crianças fixando seus olhares para ela. Este recurso auxiliar de contação
de histórias passei então a identifica-lo como “estratégia de apoio cênica” à mediação
de leitura. Foi quando ela começou a contar uma história que pareceu ser interessante,

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mas que foi se perdendo no meio do enredo. As crianças começaram a se dispersar e
a educadora vestida de Emília já não conseguia terminar a história.
No contexto desta contação, a ludicidade destacou-se da mediação. Observou-
se a falta de familiaridade com a história por parte da educadora, bem como falhas no
planejamento, o que prejudicou um momento que poderia ter sido uma mediação
marcada pela criatividade, e proporcionado viajar na imaginação, tornou-se em um
momento de descontração com a presença da Emília. Com este último momento de
contação de história vale compreender que:

[...] planejar é essa atitude de traçar, projetar, programar, elaborar um


roteiro para empreender uma viagem do conhecimento, de interação,
de experiências múltiplas e significativas para/com o grupo de
crianças. Planejamento pedagógico é a atitude do educador diante de
seu trabalho docente (OSTETTO, 2000, p.177).

E esta atitude é o que torna o educador capaz de proporcionar o diferente, o algo


mais para as crianças sobre os cuidados de profissionais da educação, para não serem
comparados/as apenas a/o tia/o da creche, mas a alguém capaz de transformar esses
momentos em momentos de conhecimento, de despertar para o mundo.
Como também é necessário que o educador se posicione de forma ativa e
reflexiva, para que possa atuar a partir de uma práxis social intencionada, por um sujeito
histórico e consciente de seus determinantes sociais e evitar que seja pensada de forma
desarticulada e aleatória (PIMENTA, 2000).
Além das experiências com as contações de histórias nas Casas Mãe, as
crianças têm a oportunidade de levar um livro por semana para sua casa. Este é um
projeto executado em todas as Casas Mãe, nomeado de “Projeto Livro Viajante”, uma
continuação do “Programa Leitura desde o Berço”, no qual toda mãe, desde a gestação,
desenvolve o hábito de ler livros de história infantil para seu bebê, livros estes fornecidos
pelo FQA. Este projeto leva a contação de história infantil para o seio familiar, com o
intuito de vincular a mediação entre as crianças, a instituição pré-escolar e a família.
O livro escolhido pela criança é colocado em uma sacola customizada. Dentro
da sacola tem um estojo com uma borracha, doze lápis-de-cor, um apontador, e um
caderno de desenho. A proposta é desenhar o que mais chamou sua atenção após a
contação de história, realizada por um de seus familiares. Ainda neste caderno de
desenho, há um espaço para as observações anotadas pelos pais e educadoras, onde
possam compartilhar reações que a criança teve com a contação da história. Como
destaca o RCNEI, a contação de histórias faz parte de um dos diversos meios, em que

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a família pode estar presente no percurso de aprendizagem que a criança está
desenvolvendo, pois:

Elas começam a aprender a partir de informações provenientes de


diversos tipos de intercâmbios sociais e a partir das próprias ações, por
exemplo, quando presenciam diferentes atos de leitura e escrita por
parte de seus familiares, como ler jornais, fazer uma lista de compras,
anotar um recado telefônico, seguir uma receita culinária, buscar
informações em um catálogo, escrever uma carta para um parente
distante, ler um livro de histórias etc (BRASIL, 1998, p.122).

Esta constatação converge com a hipótese de que a contação de histórias,


quando realizada já no ambiente familiar, antes do ingresso na pré-escola ou escola,
promove muito maior afinidade da criança com a leitura além de fortalecer os laços
familiares. Neste sentido, Abramovich (2006) destaca que:

[...] o primeiro contato da criança com um texto é feito oralmente,


através da voz da mãe, do pai ou dos avós, contando contos de fada,
trechos da Bíblia, histórias inventadas (tendo a criança ou os pais como
personagens), livros atuais e curtinhos, poemas sonoros e outros
mais... contados durante o dia – numa tarde de chuva, ou estando
todos soltos na grama, num feriado ou domingo – ou num momento de
aconchego, à noite, antes de dormir, a criança se preparando para um
sono gostoso e reparador, e para um sonho rico, embalado por uma
voz amada (ABRAMOVICH, 2006, p.16).

Ademais, o próprio ato de envolver a família ou, pelo menos um dos integrantes
do ambiente familiar, intensifica a familiaridade com livros e desperta o gosto não
apenas pela leitura, mas como pelos estudos em geral, o que pode facilitar no
desempenho escolar global por toda a vida.

Considerações finais
Este artigo buscou discutir aspectos fundamentais para o tema da mediação da
leitura literária em educação infantil, com o propósito de identificar que durante as
práticas de mediação das educadoras foram utilizadas estratégias pedagógicas
pertinentes para a realização da mediação de leitura literária. Há uma preocupação para
que a contação de história ocorra diariamente com o uso de diversos recursos lúdicos
e cênicos, com o emprego de materiais auxiliares, bem como a utilização adequada da
entonação da voz de suas educadoras, de acordo com cada história a ser contada.
O ambiente organizado e acolhedor fazia com que as crianças se sentissem à vontade
e confiantes. O Projeto Livro Viajante proporciona a criança não somente a extensão do
processo de desenvolvimento da leitura literária em seus lares, mas fortalece os laços
afetivos com seus familiares e a participação ativa no desenvolvimento de seus filhos.

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Percebeu-se durante algumas mediações de leitura literária dificuldades em
envolver as crianças nas histórias contadas, como despertar na criança o sentido da
história que está sendo contada. Algumas educadoras deixaram em dúvida quais
objetivos pretendiam alcançar com a mediação de literatura infantil escolhida e o que
determinada história tinha a oferecer para as crianças. Essas lacunas foram percebidas
porque muitas das professoras não tiveram na sua formação inicial o contato ou a
formação para a mediação da leitura literária.
Conhecer a realidade social das crianças poderá mostrar um caminho a ser
traçado na escolha da mediação de histórias e assim possibilitar a construção de
sentidos para as crianças. Neste contexto, a busca permanente da educação
continuada é algo necessário para profissionais da educação infantil. Oferecer novos
caminhos para a criança que ainda não sabe ler, mas que está aberta para um mundo
diverso de sentidos, imagens e emoções, e assim conduzi-la a um mundo de
possibilidades.

Referências
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Scipione, 2006.

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A LITERATURA COMO POSSIBILIDADE DE EXPANSÃO DE
LINGUAGENS E PRODUÇÕES CRIATIVAS NA EDUCAÇÃO
INFANTIL51

52
Simone de Cássia Soares Silva /Membro do grupo de pesquisa ALFALE
(Alfabetização e Letramento Escolar) UFR/ CUR.

Eixo Temático: 2- Literatura Infantil para crianças pequenas

Introdução
Pensar na formação integral da criança na Educação Infantil leva-nos a afirmar
a literatura como produtora de experiências que despertam criatividade, cultura e
encantamento. O contato da criança com a literatura possibilita inúmeras
aprendizagens, (re) significar vivências e ter novas percepções do mundo à sua volta.
Nesse aspecto, a literatura como experiências estético-estésico-literário cria condições
de desenvolvimento da criança de forma significativa, pois produz sentidos que
dialogam intimamente na aparição das linguagens, produzem múltiplos letramentos e
expressam a subjetividade do ser no conhecimento de si e de sua realidade vivida
(GIROTTO e SOUZA, 2016; BAPTISTA, BELMIRO e GALVÃO, 2016; SILVA, 2019).
A experiência literária precisa ser pensada na Educação Infantil como prática
patrocinadora de estética e estesia, mas também é produtora de aprendizagens
significativas, pois como nos afirma Baptista, Belmiro e Galvão (2016), ela possibilita ao
leitor, desde a mais terna idade, experimentar emoções e sensações, além das
reflexões sobre a linguagem que a ajuda a categorizar e organizar o mundo à sua volta

51
O presente artigo é parte da pesquisa de Mestrado em Educação da Universidade Federal do
Mato Grosso; Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em
Educação do campus de Rondonópolis, autoria de Simone de Cássia Soares da Silva, cujo o
título original é: A Dimensão Estética da Experiência na Educação Infantil : uma proposta
de instalação artística, defendida em 19/07/2019 na cidade de Rondonópolis, MT. A pesquisa
foi orientada pelo Prof. Dr. Marlon Dantas Trevisan, Professor Adjunto do Deptº de Educação e
do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEdu) – Instituto de Ciências Humanas e
Sociais (ICHS) da Universidade Federal de Rondonópolis, MT.
52
Pedagoga, mestre em educação pela Universidade Federal do Mato Grosso. Professora
efetiva do Sistema Municipal de Educação de Primavera do Leste, MT. Email:
simonedecassia2@hotmail.com
274

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de maneira a introduzi-lo no universo simbólico. Nos diálogos sobre Educação Infantil e
literatura, é comum nos depararmos com os questionamentos: “qual o papel da
educação infantil na formação de leitores?” “Qual a qualidade da interação dos
pequenos com a leitura no espaço da creche?” As respostas para essas questões
podem emergir do princípio de que a cultura infantil é caracterizada por dois processos:
brincar e interagir. O texto literário nesse contexto, cumpre seu papel instigador de
interações da criança com a linguagem, com suas emoções e com um mundo real e
simbólico a desvendar e explorar, quando mediado de forma motivadora à criança
(SOUZA, NETO e GIROTTO, 2016).
Nesse prisma, o presente artigo traz um recorte de uma experiência colhida
durante uma vivência de campo na pesquisa de mestrado em educação da UFMT/CUR,
que ocorreu na Escola Ercolino Costa em Primavera do Leste - MT, com uma turma de
maternal I (2 anos), cujo objetivo primário era a “reflexão sobre a experiência estética
de bebês e crianças bem-pequenas, a partir do contato destes com uma instalação
artística e lúdica, formada por 21 sólidos geométricos (poliedros, caixas de compensado
de grande dimensão)” (SILVA, 2019.p.8). Os efeitos da literatura surgiram no ambiente
de forma espontânea como propulsora de criatividade na produção de espaços, formas,
enredos, mimeses, personagens, dramatizações e ampliação da linguagem verbal e
simbólica dos pequenos. A pesquisa configurou-se como qualitativa de cunho
fenomenológico, cujo a observação foi participativa e o no decorrer do processo foi se
caracterizando como pesquisa intervenção, devido ao envolvimento das professoras e
as devolutivas teóricas que com elas era compartilhadas no decorrer da investigação.
Em algumas cenas colhidas em campo, foi possível elencar episódios que
demonstravam o quanto o hábito desenvolvido pela professora regente da sala, de
patrocinar o contato direto das crianças com livros e histórias infantis, produziu leitores
competentes com possibilidades de representar e ampliar os repertórios verbal,
linguístico, corporal e semiótico, atuando como produtora de letramentos e construtores
artísticos de espaços, com os blocos utilizados na pesquisa.
O texto a seguir traz a narrativa de três episódios que traduzem a importância
que a literatura produziu na maneira de ver e significar o mundo de pequenos leitores
com competências adquiridas por meio dos clássicos que lhes foram apresentados e
como passaram a interagir e a produzir espaços, enredos... Num misto de identificação,
aproximação-evitação (CORSARO, 2011) com os personagens que marcaram suas
emoções e trouxeram significações simbólicas às suas experiências de vida.

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Desenvolvimento
Uma das características principais das manifestações simbólicas partilhadas no
cotidiano das crianças são os mitos e lendas de fadas, Coelhinho da Páscoa, Bruxas,
etc., ou os personagens retirados da literatura infantil e da mídia, que habitam o
imaginário das crianças, entre as quais citamos: lobos, monstros e super-heróis,etc.
(CORSARO, 2011).
Em consonância com essa afirmação, os episódios que serão apresentados,
trazem riqueza de linguagens, emoções, encantamentos e movimentos adquiridos por
meio da literatura e seus personagens enigmáticos, ocorridos na turma de maternal I (2
anos) da EMEI Ercolino Costa. Não entraremos aqui na discussão sobre a qualidade
das obras oferecidas às crianças, por termos em vista apenas explicitar a
espontaneidade em que as cenas foram colhidas e as marcas profícuas da literatura,
registradas no brincar espontâneo das crianças durante a pesquisa. Por mais simples
que possa ter sido a escolha dos enredos ou as obras literárias apresentadas às
crianças pela professora mediadora de leitura, foi possível perceber, que o ato de ler foi
de extrema significância aos pequenos, que apresentavam competências leitoras,
interesse pelos livros e a expansão de muitas linguagens adquiridas por meio dos
mesmos. Isso também nos leva a pensar, no compromisso que o educador infantil deve
assumir perante a construção de pequenos leitores e a mediação entre a criança e as
obras literárias ricas em enredos e linguagens que estimulem a apreciação e às
dimensões estéticas oportunizadas pela literatura.
Essas afirmações nos fazem lembrar de que, quando falamos em literatura para
os pequenos, precisamos nos atentar a essa fase extremamente sensória, na qual ler
significa também tatear, apreciar, encantar-se com o poético, com o literário e com a
possibilidade de significar suas emoções por meio do livro literário. Sobre isso, Barbosa
e Horn (2001) acrescentam:

Tornar o livro parte integrante do dia-a-dia das nossas crianças é o


primeiro passo para iniciarmos o processo de sua formação como
leitores. Cabe destacar, ainda, que estou me referindo a leitores como
sendo pessoas que leiam, com fluência e frequência, mas também por
prazer, por alegria, por desejo próprio. É igualmente importante frisar
que, construção de sentidos, que não se reduz apenas ao domínio da
palavra escrita, mas que, fundamentalmente, abrange as diversas
linguagens (gráfico-plástica, musical, corporal, imagética, etc.) que
fazem parte (ou deveriam fazer) do dia-a-dia da Educação Infantil
(KAECHER, 2001.p.83).

Embora o livro literário também seja um suporte valioso para a introdução da


linguagem oral, escrita, potencializador da criatividade, de expressões plásticas e

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dramáticas, construtor da dialética e um suporte valioso na humanização do sujeito
(SOUZA, NETO e GIROTTO, 2016), não podemos perder de vista, que a literatura traz
sua importância em si mesma, como um bem cultural que a criança desde o berço tem
direito ao acesso.
Baptista, Belmiro e Galvão (2016) afirma que, o bebê ao ter contato com o livro,
está significando o mundo e em contrapartida, participando de um evento de letramento
(porque já participou de outros, como o de ouvir uma historinha antes de dormir);
também está aprendendo uma prática discursiva letrada e, portanto, essa criança pode
ser considerada letrada, mesmo que ainda não saiba ler e escrever (KLEIMAN, 1995,
p.18). Essa afirmação, nos permite inferir que a literatura é essencial no processo de
aquisição de linguagens da criança, desde o nascimento.

Uma “geloteca” no espaço


Em uma tarde de pesquisa de campo, com a referida turma do maternal I,
enquanto exploravam o espaço e conheciam a instalação artística dos poliedros (formas
geométricas tridimensionais), cujo a finalidade primeira era de possibilitar às crianças
53
mover e criar brincadeiras, brinquedos e interações com o objeto, Teteus (29 meses)
saiu do ambiente em que estávamos e encontrou logo mais adiante, no espaço externo
da escola, construído para patrocinar a leitura de crianças e familiares, a Geloteca
(geladeira biblioteca). Pegou um livro e foi sentar-se no poliedro (no cubo menor), para
folhear com habilidade o livro. Isso provocou o interesse dos demais, que passaram a
trazer mais livros para os espaços em que brincavam. Acreditei por um momento que
acabariam as interações com os blocos artísticos, já que segundo relatos da professora
regente da sala, as crianças amavam livros, por fazer parte do cotidiano da turma as
leituras e contações de histórias.

53
Todos os pseudônimos dos participantes da pesquisa aqui citados são fictícios.
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Figura 1 – O Cantinho da leitura no espaço externo da escola;

Fonte: SILVA, 2019.p. 28

Permaneci observando de perto cada reação dos pequenos frente aos livros,
enredos e as ilustrações das histórias que demonstravam já conhecer. O meu interesse
se deu, pelo fato da pesquisa visar a promoção das manifestações estéticas na
Educação Infantil e a literatura é uma das grandes patrocinadoras de tais experiências.
As crianças folheavam os livros com muita atenção, faziam a leitura das imagens, alguns
recontavam a história com entonação de voz, demonstrando conhecer bem as cenas
revisitadas. A maioria das crianças apresentavam intimidade ao manusearem os
materiais, com a prática de ‘leitores competentes’, já que, embora os livros fossem todos
de papel, manipulavam-nos sem rasgá-los.
Para minha surpresa, a literatura as impulsionou a criar e a reproduzir enredos
já conhecidos por elas, Totor (36 meses completos no momento da vivência) passou a
arrastar alguns poliedros, deixando espaços entre os cubos que estavam em cima de
outro bloco maior e que servia de base para a construção. Desse modo, a criação
assemelhava-se a uma torre de um castelo da Era Medieval. Totor dizia: “Meu catelo!”.
Junto dele, Nico (32 meses) e Nando (30 meses) pareciam concordar com a construção
de um castelo que se assemelhava muito às imagens de castelo contidas nos clássicos
mais comerciais da literatura infantil. Totor também explorava o espaço de forma a
subir... colocava um poliedro sobre o outro, os escalavam, sentava-se e, ao sentir-se no
alto, expressava: “Sô gande! Meu catelo...” (SILVA, 2019, p.118).
Em outros momentos, expressava: “O lobo” (relembrando a história do Lobo
Mau), escondia-se no castelo e demonstrava estar fazendo uma conexão entre esse
ambiente construído por ele e os colegas, com as histórias da literatura. Em alguns
momentos, também demonstrava representar as falas de personagens de desenhos e
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filmes de ação, de modo a reproduzi-las em momentos considerados oportunos,
apropriando-se de um repertório de palavras e frases para significar suas ações.
Quando parecia ter acabado o repertório de brincadeiras e reproduções
interpretativas que fazia (CORSARO, 2011), Totor pegava alguns livros e lia as histórias
por meio das imagens; parecia estar vivenciando os feitos de alguns personagens
conhecidos por ele. Olhava as páginas ilustradas com muita atenção, depois corria,
subia, brincava sozinho com os poliedros, vivenciando cenas, supostamente como um
personagem vivo de uma história criada ou dramatizada por ele, sem se preocupar com
seus pares. Quando percebia a minha presença observando-o, por vezes, chamava-me
a olhar com ele as cenas do livro, pronunciava algumas palavras que eu nem sempre
entendia, e por fim, convidava-me a brincar. Porém, sempre como espectadora de seus
feitos! (SILVA, 2019, p. 116).

Figura 2: ilustra a formação estética do “castelo”;

Fonte: SILVA, 2019, p. 116.

Quando analisamos a cena em que Totor (36 meses) utiliza-se do contexto


literário de maneira a envolver-se intelectual, corporal, sensorial, emotiva e linguística
com as cenas do livro, reconhecemos a importância do mediador de leitura, patrocinar
boas obras e incentivar desde a mais terna idade a leitura literária aos pequenos na
Educação Infantil (DALVI, QUADROS e SILVA, 2016). Embora seja, a literatura um
desabrochar de experiências estéticas, com objetivo primário de produzir deleite ao
apreciador, a riqueza de linguagens estabelece uma conexão tácita do leitor com a
aprendizagem e o transforma em consumidor e ao mesmo tempo produtor de cultura.
Essa experiência aqui narrada, afirma a nós pesquisadores e leitores, que
segundo DCNEI (2010) a interação é constitutiva do ser criança, assim como brincar é
a sua expressão mais forte. Desse modo, enquanto brincava, percebemos na interação
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da criança com a literatura, que os livros como suporte textual de enredos, com suas
narrativas e riquezas semióticas, fez com que o menino passasse a inserir as vivências
do mundo literário às suas experiências cotidianas e as expressavam por meio de
linguagens corporais, da oralidade e da plasticidade, construindo letramentos e
adquirindo experiências significativas para sua constituição enquanto pessoa e leitor.
Isso nos permite reafirmar com os autores, que os pequenos leitores são capazes de
interpretar e recontar suas experiências com o livro (BAPTISTA, 2016; SILVA, 2019),
por meio do brincar espontâneo e de muitas outras linguagens que são potencializadas
pelos livros.

Cenas e personagens: a empatia X o medo


A literatura já conhecida pelas crianças, sobretudo os clássicos, que eram mais
vistos pela turma, desfilavam pelo ambiente nas formações estéticas produzidas e
representadas, impulsionavam a dramatização e a representação da história com a
construção dos espaços. As mais lembradas eram aquelas que traziam a temida figura
do Lobo Mal, que travestia os medos pueris e os ajudavam a extravasar no jogo
aproximação-evitação (CORSARO, 2011). Não raro, durante as brincadeiras
espontâneas ouvíamos: 54
“Essa é a casa dos porquinhos”; “Esse aqui é meu castelo”,
ou ainda: “O Lobo Mau não entra!”; Minha casa é de tijolo, não cai!” (SILVA, 2019, p.117
-118)
Observei que Sofi (28 meses) pegou alguns livros e sentou-se sobre o poliedro
para ler histórias, Vivi (30 meses) sentada ao lado dela, folheava um livro de uma
coleção de dinossauros e mostrava as imagens à colega impostando a voz de forma a
causar medo: “Um Di - no - sa- ro!” Levantava a mão, fazia um biquinho com a boca
e gritava: “huuullllll!!!” tentando provocar medo. Depois, passou a mostrar aos colegas
no livro a figura do Dinossauro, como se estivesse convidando-os à fantasiar com ela...
um dos colegas ao prestar a atenção na imagem, soltou um gritinho de medo que mais
parecia fazer parte de uma emoção já contida em sua memória sobre o personagem do
Dinossauro, do que um real medo da figura apresentada, já que mal olhou para o livro,
apenas ouviu a colega, gritou e voltou os olhos ao que estava fazendo antes. Para
Corsaro (2011) o jogo consiste num convite para reviver a brincadeira de aproximação-
evitação comum entre crianças pequenas. O autor nos diz que “esses dados
transculturais demonstram como as crianças lidam com medos reais incorporando-os a
rotinas de pares que produzem e controlam” (CORSARO, 1988 apud CORSARO,

54
Fala infantil adaptada pela autora.
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2011.p.179). Aqui destacamos, o quanto os personagens ‘temidos’ na literatura
desenvolvem um papel também importante na significação que a criança faz de si o do
mundo, como forma de despertar seus sentidos e visitar medos e tensões.
Nesses jogos infantis, o que a maioria dos adultos pode ver como “distrações
inúteis ou produto da imaturidade” (CORSARO, 2011 p.146), são considerados atributos
importantes da cultura infantil e essa fertilidade da imaginação apresenta-se como
potencial de apropriação de linguagens e aprendizagens, bem como um controle de
suas emoções por meio de visitas ao imaginário, já que durante o brincar, o pavor que
um personagem lhe causa, pode ser controlado no instante em que a brincadeira
termina. Essas visitações entre o real e o imaginário, patrocinado pela literatura, ajuda
a criança a controlar e entender suas emoções (CORSARO, 2011).
Em relação aos contos de fada, Kaercher (2001) ainda nos lembra que além das
possibilidades de empatia que eles possibilitam, podem suscitar reflexões que requerem
outros conhecimentos com o mundo, como também, ativam conhecimentos prévios
importantes para que a criança relacione a leitura com o processo de compreensão do
que se lê (SOUZA, NETO e GIROTTO, 2016). Nesse árduo processo de significar a
leitura, as crianças criam uma supra realidade, reproduzem as cenas mais conhecidas
de seu universo literário e as relacionam com o seu cotidiano, de forma a significar esse
mundo, ora real, ora ficcional (SOUZA, NETO e GIROTTO, 2016) e incrementar novas
experiências ao seu repertório linguageiro.

“Pode vim Lobo... a casa é forte, você é fraquinho!”


Após momentos de leitura e visitação às cenas dos livros que mais chamavam
a atenção, as crianças deixaram os livros espalhados pelo chão e voltaram a brincar
com os poliedros (instalação artística). Contudo, enquanto brincavam com os blocos,
percebi que as histórias passaram a ser dramatizadas nos espaços que construíam,
num misto de apropriação entre realidade e fantasia, representações miméticas e
reproduções interpretativas da literatura e do seu cotidiano. Arrisquei uma aproximação
para entrar num jogo em que Manu (34 meses) e Nando (30 meses) estavam e perguntei
a eles: O que vocês estão fazendo? Se abaixaram escondendo a cabeça atrás do bloco,
gritaram expressando: “- É o Lobo!” Entendi o convite a brincadeira e respondi: não
sou o lobo! Pensei e perguntei: Vocês querem brincar de Lobo Mau? Os dois
responderam em coro: - “Simmm!” E começaram a gritar: - “Pode vim lobo, a casa é
forte... você é fraquinho, não derruba!” Nando com a oralidade pouco menos
desenvolvida dizia: “-Tijolo”! Uma afirmativa de que a casa não cairia.

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Brinquei por alguns instantes interpretando o personagem do Lobo. As crianças
gritavam, escondiam a cabeça e Nando chegou até a tentar uma aproximação-evitação
por meio de uns belos tapas na cabeça do ‘suposto Lobo’. Logo percebi que
dispersaram da brincadeira, o que é comum na idade em que se encontram
(GOLDSCHIMIED e JACKSON, 2006), mudaram o foco e passaram a construir outro
ambiente para brincar. Ao recomeçarem a construção do novo espaço, convidaram-me
para o jogo, dizendo: “- Vem pode entrar! Bati novamente na porta e anunciei: Não é o
lobo! Sou eu, a vizinha... vim te visitar! Nando prontamente respondeu: “Enta!” (SILVA,
2019, p.118).
Nesse episódio ousei mudar o jogo, por considerar no momento, que a estética
dada aos blocos havia mudado. A construção dava a impressão de uma casa um pouco
mais aberta, não utilizaram os blocos mais altos para esconderem o rosto no processo
simbólico de evitação com a figura temida do lobo, como faziam anteriormente. Isso me
fez supor que o jogo dramatizado do clássico havia terminado. No entanto, é possível
pensar também, que eles poderiam estar representando a casa de palha, cujo a
segurança do espaço era menor. Mas não é possível fazer tal afirmação com certeza,
já que se trata de crianças na faixa etária de 2 anos, cujo tempo de concentração em
um mesmo jogo, costuma ser menor (GODSCHIMIED e JACKSON, 2006).

Figura 3 – os espaços construídos para a vivência das cenas descritas acima;

Fonte: SILVA, 2019, p. 119.

Na última cena descrita, percebemos mais uma vez, que as crianças


reproduziram o clássico da Literatura Infantil: “Os Três Porquinhos” e demonstravam
interesse e apreço por esse enredo. Representavam e vivenciavam o drama dos

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porquinhos, ao mesmo tempo que recontavam a história, revisitando as cenas que
marcaram a tentativa mal sucedida do Lobo, de tentar entrar na casa de Tijolos. Essa
dramatização refletia na construção espacial que faziam com os poliedros, para que
sugerisse a formação estética da casinha de tijolos e buscavam deixá-la ‘tão segura’
quanto a da história real, de modo a garantir que o Lobo não pudesse entrar. Essa
produção artística do cenário, compunha o faz de conta das crianças e dialogava
intimamente com as semioses contidas no livro literário (TREVISAN, 2018).
No decorrer dos dias com a pesquisa, percebemos que a primeira inferência que
as crianças faziam às construções estéticas dos poliedros, eram as formações de
“casinha”. A partir delas surgiam as conexões com a leitura literária dos clássicos já
conhecidos por elas e as vivências cotidianas. Os espaços das casinhas que faziam
muitas vezes eram “dos Porquinhos” ou “a casa do Lobo Mau”, mesmo que na história
a qual conheciam, não tivesse havido menção de que o Lobo Mau possuísse casa. No
entanto, tal representação, por meio da construção com os blocos, foi mencionada no
ambiente por mais de uma vez em vários dias de pesquisa, o que sinalizava para a
importância do personagem no processo de construção da identidade das crianças e as
conexões e significação com o mundo real.
Torna-se possível fazer tal inferência se considerarmos que para a lógica infantil,
‘todos’ tem uma casa para morar, pensar na casa do Lobo Mau, pode ser considerado
um despertar da consciência leitora e da criatividade infantil, com a ativação de
conhecimentos prévios e conexões entre a leitura literária e o mundo real, em que as
crianças trafegavam entre a fantasia e a significação com seu próprio mundo (GIROTTO
e SOUZA, 2012; SOUZA, NETO e GIROTTO, 2016 ). Assim, elas acrescentavam
expressões e contextos às suas próprias experiências e cenas de seu cotidiano, no
exercício espontâneo de significar o texto literário e o mundo a sua volta (CORSARO,
2012).
Corsaro (2011) nos diz que na brincadeira de monstro, fantasmas e bichos que
causam terror, às crianças experimentam nas rotinas um jogo de excitação que, para
ele, “o jogo de aproximação-evitação na cultura de pares infantil personifica uma figura
temida, mas fascinante” (CORSARO, 2011. p. 178). Essa afirmativa nos possibilita
pensar que, a criança transforma algo que lhe provoca medo (porém, permite trazer ao
personagem uma supra realidade imediata, que pode ser facilmente controlada) em um
jogo de dominação, por saber que é uma brincadeira. O personagem temido é sempre
representado por alguém próximo a ela (amigos, colegas, etc.) que, embora enfrente
tensões no jogo, quando a brincadeira acabar, nada terá lhe acontecido, assim como,

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ela pode parar de brincar quando quiser. Essa personificação permite que ela crie as
situações, viva as tensões e as emoções ao mesmo tempo em que pode manter o
controle da situação. Embora as crianças em fuga pareçam ter medo, esse medo é
claramente artificial, porque o faz de conta pode se dissolver ao término da brincadeira
ou ao toque de parar (CORSARO, 2011, p. 178-179).
Contudo, concluímos que, quando a criança se apresenta no jogo
sóciodramático, a aproximação e a negação da figura temida na explosão eufórica de
correr, se esconder e gritar, mas ao mesmo tempo demonstra querer vivenciar esse
“jogo” e as emoções advindas dele, está no exercício de enfrentar vários sentimentos e
construir no roteiro lúdico a significação das experiências oportunizadas tanto pela
literatura, quanto por sua vivencia social. Nesse jogo sociodramático, elas
simultaneamente usam, refinam e expandem uma ampla variedade de habilidades
comunicativas (CORSARO, 2011, p.175) de forma natural, significativa e dialética entre
as linguagens, o que torna imprescindível as vivencias patrocinadas pela literatura na
Educação Infantil.

Considerações Finais
Na abordagem estético-estésico-literário, a pesquisa revelou que proporcionar à
criança desde os primeiros anos de vida interações com a literatura, possibilita a ela
atribuir sentido às palavras, emoções e proporcionar experiências ímpares, que dará a
ela sentido social às linguagens proporcionadas pelo livro literário ou contação, o que
facilitará sua conexão com o mundo, caracterizando-se como um letramento oral,
semiótico, escrito, dramático, entre outros, como também nos afirma Baptista, Belmiro
e Galvão (2016).
Ao analisarmos os episódios descritos nesse texto, percebemos de forma
técnica que a literatura cumpre com a função patrocinadora de manifestações
expressivas no campo da emoção, do movimento, da fala, da escrita e da
representação, assegurando uma relação orgânica entre as linguagens, de forma a
comprovar uma simbiose entre elas. Essa democratização das linguagens, tão natural
nessa etapa de creche, patrocina uma nova perspectiva de educação na primeiríssima
infância e legitima a integralidade do processo de desenvolvimento infantil, tão caro aos
defensores da educação na primeira infância.
É possível afirmar também, que a prática de ler gêneros textuais literários para
crianças estimulam-nas a compreender o uso social de múltiplas linguagens e aos
poucos, associar aqueles símbolos (letras) à representação do que está sendo lido. Na

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significação do texto literário a intepretação do enredo liga a criança às suas emoções;
a oralização de palavras amplia o seu vocabulário; a linguagem semiótica possibilita a
plasticidade e o desenvolvimento corporal, patrocina a criatividade e permite conexões
tradutoras de significados em suas vidas.
No entanto, embora as mimeses e dramatizações analisadas no texto,
promovidas pelo texto literário possam esboçar os ganhos de compreensão e
letramento das crianças, que aos poucos transformam esse mundo mágico da literatura
em conhecimentos prévios que as constituem em leitores cada vez mais competentes
e capazes de decodificar e interpretar textos, experiências sociais e cotidianas,
consideramos aqui que, o que tange a grande importância do texto literário no processo
da vida infantil, seja a priori, a oportunidade da criança se desenvolver por meio de
experiências estéticas, cujo o alcance desse processo é imensurável e ultrapassa a
lógica escolarizante. É por meio das interações com os textos literários, que acontecem
a promoção de linguagens e aprendizados prazerosos, que não roubam a expressão
mais terna da criança de brincar, apreciar, ter encanto e espanto... e sim, permite a ela
se constituir, crescer e aprimorar experiências, enquanto ‘lê’.

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EXPERIENCIAS DE LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: QUAIS
APRENDIZAGENS PODEM SER CONSTRUÍDAS?

Profa. Dra. Andrea Rodrigues Dalcin, Faculdade de Educação/UNICAMP.

Eixo Temático: Literatura Infantil para crianças pequenas.

Considerações iniciais

[...] as pesquisas consagradas a uma psicolinguística da compreensão


distinguem, na leitura, “o ato léxico” do “ato escriturístico”. Mostram que
a criança escolarizada aprende a ler paralelamente a sua
aprendizagem da decifração e não graças a ela: ler o sentido e decifrar
as letras correspondem a duas atividades diversas, mesmo que se
cruzem. (CERTEAU, 2007, p. 263)

Estamos imersos em uma sociedade letrada e, portanto, o ato de ler e escrever


se faz presente em todas as etapas de ensino desde a mais tenra idade. Partindo desse
pressuposto, cabe à escola ensinar as crianças a ler o sentido, construir seus próprios
sentidos, compreender o lido e decifrar as letras, pois nas palavras de Certeau (2007),
tais aprendizagens, anunciadas em pesquisas psicolinguísticas, são distintas, ainda que
se cruzem. Ao longo das últimas décadas, políticas públicas de acesso ao livro,
literatura, biblioteca, leitura55 e alfabetização56 vem sendo implementadas e muitos
esforços realizados para que os programas de formação cheguem até seu destinatário
principal: o professor. No entanto, nos parece que não basta ter programas de formação
de professores, materiais didáticos estruturados e políticas públicas definidas que
busquem uma formação leitora e escritora consistentes se o principal aspecto não for

55
Sem a pretensão de discutir as características, objetivos, metas e ações das políticas públicas
de fomento ao livro, literatura, biblioteca e leitura faremos a citação daquelas que consideramos
como principais: PNLD Literário (Programa Nacional do Livro Didático). Ano de vigência: 2018;
PNLE (Política Nacional de Leitura e Escrita). Ano de vigência: 2018; PNLL (Programa Nacional
do Livro e Leitura). Ano de vigência: 2006; PNLD (Programa Nacional do Livro Didático); PNBE
(Programa Nacional da Biblioteca Escolar). Ano de criação: 1997.
56
Com relação à alfabetização destacamos: PROFA (Programa de Formação de Professores
Alfabetizadores). Ano de lançamento: 2000; PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa). Ano de lançamento: 2012; PNA (Política Nacional de Alfabetização). Ano de lançamento:
2019.
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trabalhado na e pela escola: “para quem” a experiência leitora será realizada. Aqui,
estamos falando do lugar que a intervenção do professor ocupa junto às aprendizagens
das crianças.
Atualmente, temos a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)57 que manteve
como Eixos Estruturantes da educação infantil o Brincar e as Interações. Articulados
aos eixos, passamos a ter um arranjo curricular com seis Direitos de Aprendizagem 58
organizados em cinco Campos de Experiências59 que, por sua vez, possuem seus
respectivos objetivos de desenvolvimento e aprendizagem definidos.
Considerando esse arranjo curricular, a pesquisa aqui realizada traz como ponto
focal a intervenção do professor nas experiências de leitura e escrita sem a pretensão
de abordar se elas (as intervenções) estão certas ou erradas, se são boas ou más, pois
não intencionamos o julgamento das práticas, mas a discussão sobre as aprendizagens
na leitura e, em decorrência disso, na escrita. Aqui, não entraremos na discussão se é
papel da educação infantil alfabetizar ou não, pois partimos do princípio de que não é
papel da educação infantil impedir que a alfabetização aconteça. Nessa direção,
conhecer as experiências de leitura realizadas por uma escola pública que atende 210
crianças de 4 e 5 anos pode potencializar as discussões sobre as aprendizagens
construídas e conquistadas na bricolagem com as operações nas maneiras de intervir
das professoras tanto em relação ao sujeito quanto em relação ao espaço e objeto.
Nessa perspectiva, acrescentamos aos itens discutidos nos processos
formativos e intitulados “o que”, “como” e “para que” se trabalha determinada
experiência, um quarto elemento: “para quem”. A pesquisa explicitou que parecem ser
as intervenções do professor – independente do material didático utilizado ou da
prescrição dada em formação continuada –, as responsáveis por promover as
aprendizagens na leitura e escrita.
Orientadas pelas contribuições advindas de Chartier (2001), Certeau (2007),
Petit (2009) essa pesquisa visa contribuir para o campo das experiências de leitura e
escrita na educação infantil, bem como com a formação continuada de professores.
Para tanto, organizamos este artigo considerando três aspectos: perspectiva da

57
Em 20 dez./2017, a BNCC da educação infantil e do ensino fundamental foi homologada pelo
Ministro da Educação Mendonça Filho.
58
De acordo com a BNCC os seis Direitos de Aprendizagem são: Conviver, Brincar, Participar,
Explorar, Expressar e Conhecer-se.
59
De acordo com a BNCC os cinco Campos de Experiências são: O Eu, o Outro e o Nós; Escuta,
Fala, Pensamento e Imaginação; Corpo, Gestos e Movimentos; Traços, Sons, Cores e Formas;
Espaços, Tempos, Quantidades, Relações e Transformações.
288

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pesquisa, as experiências de leitura e escrita vividas pelas crianças; intervenções das
professoras e aprendizagens das crianças.

Perspectiva das práticas cotidianas: as “artes de fazer” diante da


identidade de um grupo de professoras

Como professor, meu ofício consistia, ao lado das crianças, em sonhar


um mundo, sem esquecer que as diferenças promovem os avanços e
que o sujeito não deve apenas se sujeitar ao estabelecido. Fazer o que
já está feito não nos tornava sujeitos, mas apenas cúmplices. Tornar-
se sujeito demanda coragem e trabalho. (QUEIRÓS, 2007, p. 53)

Considerando a perspectiva da História Cultural, temos como princípio que o


aprendizado da leitura parece ser um processo particular de cada leitor, mesmo nas
instituições escolares em que a coletividade ocupa grande parte da rotina. Nas palavras
de Chartier (2001, p. 13), “[...] as apropriações dos textos pelo leitor implicam sempre a
consciência de que a possibilidade de leitura efetua-se por um processo de aprendizado
particular, de que resultam competências muito diferentes”. Nesse ínterim, quem são
essas crianças? Qual é sua biblioteca vivida? Quais experiências leitoras possuem?
Quais aprendizagens foram conquistadas? Que tipo de intervenção é necessária para
que avancem em suas aprendizagens? Como essas aprendizagens e intervenções
impactam no aprendizado da escrita?
Para tentar responder essas interrogações, realizamos uma pesquisa, ao longo
de 2019, de natureza qualitativa tendo como fonte oito professoras e suas maneiras de
fazer. O corpus foi constituído pela documentação pedagógica que delineou as
operações de pesquisa envolvendo a análise do planejamento e registros que abordam
“o que”, “como” e “para que” a experiência foi realizada; observações e análises das
experiências de leitura e escrita realizadas na escola; análise de filmagens que tiveram
como ponto focal “para quem” a experiência foi realizada; diálogo formativo com as
professoras sobre o planejado, o vivido e o realizado; acompanhamento das
aprendizagens conquistadas pelas crianças ao longo do ano.
Ao pensar “para quem” as experiências leitoras e escritoras serão realizadas
torna-se necessário qualificar as intervenções de forma a dialogar com os saberes já
construídos pelo coletivo da classe, pelos pequenos grupos e por cada criança de forma
que o seu aprendizado se transforme a cada experiência diante dos desafios possíveis
de serem superados na interação com o outro, cuja intervenção ora pode ser feita para
ampliar, ora para aprofundar, ora para apreciar, ora para sistematizar a leitura e a escrita
potencializando seus diferentes sentidos e usos.
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Muitas experiências de leitura e escrita que serão aqui discutidas fazem parte do
cotidiano de várias escolas, porém o estabelecido pode ser revisitado, ampliado ou até
mesmo ter novos olhares sobre o dito e o feito. Temos acompanhado o quão é complexo
os dados de aprendizagem na leitura e na escrita em nosso país que, em 2017, obteve
um IDEB de 5,660 nos anos iniciais do ensino fundamental. No entanto, muitas escolas
atingiram um patamar maior que o índice brasileiro e, geralmente, são selecionadas
para visitas e análises detalhadas das práticas e estratégias utilizadas como forma de
contribuição para melhoria das aprendizagens.
Com isso, trazemos para este cenário um complemento ao acompanhamento
das práticas e estratégias que parece ser importante: as intervenções das professoras
para que as crianças aprendam. Isso porque, como mencionamos anteriormente, se as
práticas aqui pesquisadas existem em muitas escolas, por que continuamos com dados
de aprendizagens inferiores as metas estabelecidas? Quando partimos do princípio de
que todas as crianças são capazes de aprender, independente de sua condição social,
parece que não são apenas as práticas e estratégias utilizadas que fomentam as
aprendizagens, mas a relação dessas com as intervenções do professor.
Nessa direção, olhar para o micro do trabalho em sala de aula, pode nos ajudar
a compreender como as aprendizagens são potencializadas diante de tantas
perspectivas de trabalho como, por exemplo, a construtivista, a sociointeracionista, a
baseada em evidências científicas. Todas elas têm em comum a melhoria dos
indicadores educacionais e a garantia da qualidade na educação para todos. No
entanto, dentro da sala de aula existem práticas que dialogam com as diferentes
perspectivas, cada uma em sua singularidade, ao ponto de se constituírem como outra
perspectiva a ser analisada voltada as “artes de fazer” como Certeau (2007), nos
apresenta. Para nós, essa perspectiva direciona o olhar do pesquisador diante das
operações realizadas pelas professoras e seus usos individuais, suas ligações e
trajetórias, a fim de apreendermos as maneiras do fazer para que, a cada ano, as
crianças não deixem de aprender.
Com isso, deslocamos “[...] a atenção do consumo supostamente passivo dos
produtos recebidos para a criação anônima, nascida da prática do desvio no uso desses
produtos” (CERTEAU, 2007, p. 13). Intencionamos, assim como Certeau, mas sem a
pretensão de atingir tal sofisticação, abordar uma perspectiva das práticas cotidianas

60
Fonte: QEdu. Disponível em:
https://www.qedu.org.br/brasil/ideb?gclid=Cj0KCQjwp4j6BRCRARIsAGq4yMFo0duLO5OC4wV
k63jvTWxTRNT2AzDuaAeG2Qd6tq95d6TOAYlDajUaAnSeEALw_wcB. Acesso em: 23/08/2020.
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para “[...] extrair do seu ruído as maneiras de fazer” (CERTEAU, 2007, p. 17) e, assim,
fazer a teoria das práticas.
As professoras que foram nossas interlocutoras e parceiras nesta pesquisa
trabalham na escola a cerca de dezessete anos, exceto uma que ingressou em 2019.
Todas são efetivas no cargo, assíduas e experientes na educação infantil. Professoras
que possuem entre vinte e dois a vinte e cinco anos de magistério. Nos diálogos
realizados com foco no processo de formação vivido por este grupo, os dados gerados
mostraram que 90% das professoras já passaram por várias formações continuadas
oferecidas pela rede municipal e/ou realizadas por gosto e interesse próprios. Dentre
elas podemos citar, nos anos 1990, as formações em áreas de conhecimento como
Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Arte, Educação Física com foco em
conteúdos e estratégias de ensino. Avançando um pouco no tempo, mas ainda na
década de 1990, este grupo se deparou com o RCNEI 61 e as aulas passaram a ser
planejadas considerando a Natureza e Sociedade, Matemática, Linguagem Oral e
Escrita, Movimento, Artes Visuais, Cuidar e Educar. Nesse período, documentos e
discursos oficiais passaram por processos de transformação. Mas, e quanto às
práticas? Seguiram o mesmo fluxo?
Anos 2000: época do PROFA62 e as professoras começaram a discutir: devemos
alfabetizar ou não na educação infantil? De 2010 a 2017, as professoras passaram por
formações sobre o Projeto Trilhas63 com foco na didática das ações de leitura, escrita e
oralidade, sendo que, a formação realizada em 2017, estabeleceu diálogos com as
discussões advindas do processo de construção da BNCC. Atualmente, a escola conta
com professoras que durante anos planejou um trabalho por área de conhecimento e,

61
Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil.
62
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores.
63
O Programa Crer para Ver, criado em 1995, é uma das iniciativas que traduzem o compromisso
da Natura com a construção de uma sociedade mais justa objetivando a contribuição para a
melhoria da qualidade na educação das escolas públicas brasileiras. A partir de 2010, o
Programa Crer para Ver passou a ser gerenciado pelo Instituto Natura. Com o patrocínio deste
programa, o Instituto Natura desenvolveu, em parceria com Comunidade Educativa CEDAC, o
projeto Trilhas que consistem em um conjunto de materiais que visa orientar e instrumentalizar
os professores e diretores de escolas para o trabalho com foco no desenvolvimento de
competências e habilidades de leitura e escrita. Com isso, o MEC, desejando implementar uma
política pública, concluiu que a metodologia e a estratégia desenvolvidas pelo projeto Trilhas,
são compatíveis com as diretrizes estabelecidas e, a partir de 2012, passou a distribuir um
conjunto de materiais para 2008 municípios brasileiros. Para que os professores possam utilizá-
lo da melhor forma possível foi organizada uma Rede de Ancoragem Trilhas cuja principal ação
é desencadear encontros com a intenção de disseminar a concepção adotada, organizados em
encontros nacionais, estaduais, municipais e locais. (Caderno de Apoio: Formadores Escolares,
s/d, quarta-capa).
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agora, passou a pensar suas intervenções voltadas as experiências. O que muda na
prática, além dos discursos?

Experiências de leitura em uma escola pública de educação infantil: o que


as professoras têm a nos dizer?

[...] diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada,


espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente
diverso, qualificada como “consumo”, que tem como característica
suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões,
suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em
suma, uma quase invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por
produtos próprios (onde teria o seu lugar?), mas por uma arte de utilizar
aqueles que lhe são impostos. (CERTEAU, 2007, p. 94)

Ao realizarmos a leitura e a análise dos planejamentos das professoras, bem


como os acompanhamentos das práticas em sala de aula, encontramos algumas
situações didáticas contempladas na rotina que envolve diferentes focos em relação ao
trabalho com a leitura e a escrita.
Primeiro foco: capacidade de ler, ainda que de forma não convencional, e buscar
na leitura os sentidos, a compreensão, a apreciação e o pensar a partir do que se lê.
Para este foco encontramos as seguintes situações didáticas: roda de leitura (leitura em
voz alta, a leitura compartilhada e a leitura interrompida); reconto de histórias; vídeo de
contos de fadas na relação com a história lida; vitrine de livros; acervo de livros na sala
de aula para leitura e manuseio; empréstimo de livros; visita à biblioteca.
Nas práticas acompanhadas, a leitura seguia alguns protocolos estabelecidos
diante de processos formativos, tais como a leitura do título da história, seguida de
algumas intervenções, leitura do nome do autor, ilustrador e editora. Chegando ao
primeiro parágrafo, a leitura da história, propriamente dita, era realizada com
“interrupções” e questionamentos acerca do que será que determinado personagem irá
fazer ou o que será que irá acontecer. Tais interrupções intencionavam que a estratégia
de leitura de antecipação e, posteriormente, a checagem fosse acionada. No entanto,
observamos que a criança não sabia o que correspondia à leitura do livro e ao diálogo
sobre o trecho da história realizado devido a uma interrupção.
Esse é um exemplo de situação didática que parece ocorrer em 90% das classes
de educação infantil, porém observamos que as crianças pequenas que acessam o
objeto livro e buscam compreender sua organização, ainda desconhecem a separação
entre o que está sendo narrado no livro – pela palavra e pela imagem – e o que está

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sendo dialogado sobre o livro. Para a criança pequena tudo faz parte e está “[...] dentro
do livro” (MATHEUS, 2019).
Outro aspecto importante diz respeito à forma que se lê o livro: 100% das
professoras focam a leitura do texto escrito e, consequentemente, as intervenções estão
voltadas para essa finalidade. Os diálogos formativos realizados após cada
acompanhamento evidenciaram que podemos ter outras e diversas aprendizagens a
depender do objeto livro. Para tanto, o que muda não é estratégia da roda de leitura ou
o tipo de leitura (em voz alta, compartilhada, interrompida), mas as intervenções
capazes de gerar aprendizagens e, com isso, construir novos conhecimentos. Livro com
ilustração, livro-imagem, livro ilustrado, livro pop-up, livro digital, entre outros, fazem
parte do acervo da escola e, por isso, a singularidade de cada um precisa constituir o
processo de formação do professor para que suas intervenções sejam planejadas de
maneira a potencializar as aprendizagens envolvidas no foco: “capacidade de ler”.
Conhecer o livro como um objeto e realizar a leitura considerando o texto, a
imagem e o suporte, a partir de uma concepção de que tanto a palavra quanto à
ilustração narram a história, altera o tipo de intervenção do professor pelo jogo que se
estabelece em todo projeto gráfico, no qual, muitas vezes, a história não se inicia no
primeiro parágrafo, mas na guarda ou até na quarta-capa do livro.
Com isso, planejar as intervenções de acordo com a singularidade do livro requer
que o professor não seja apenas leitor, mas pesquisador do livro a ser lido. Nessa
perspectiva, as intervenções começam a ser planejadas pensando no contexto da
história e na construção de sentidos tendo como premissas, por exemplo, que a
ilustração consegue situar o leitor de onde se passa a história sem que o texto escrito o
diga; que não há certo ou errado, mas atribuição de sentidos e uma infinita gama de
possibilidades diante de histórias sem um final previsto, mas idealizado por cada leitor;
que há livros em que o texto escrito se opõe ao texto imagético ou o complementa; que
se a leitura for apenas da palavra os sentidos do livro ficam comprometidos; que a leitura
não é apenas linear.
Enfim, esses são alguns pontos que parecem alterar a intervenção do professor
nas situações didáticas de leitura do livro de literatura infantil, pois a depender do livro
utilizado, as crianças deduzem, descrevem, constroem hipóteses, analisam, identificam
relações, estabelecem conexões entre diferentes páginas, observam, comparam,
decifram pistas, realizam sucessão e retorno durante a leitura, criam pontes e
preenchem vazios.

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Compreender esse processo torna o professor astuto em sua arte de fazer, pois
as intervenções são direcionadas para o livro enquanto objeto ao invés de pensar em
questionamentos direcionados apenas ao texto escrito. Para tanto, cada professor
necessita conceber-se como um agente potencializador das aprendizagens de leitura e
escrita. Silva (2003, p.40), observa que “a maneira pela qual o professor concebe o
processo de leitura orienta todas as suas ações de ensino em sala de aula”.
As situações didáticas que, além da construção de sentidos e compreensão,
envolvem também o manuseio, a leitura individual e a apreciação do livro passam a ter
outras intervenções do professor. Aqui, não estamos falando apenas sobre as
intervenções quanto ao sujeito, mas também sobre a organização de materiais e
espaços para potencializar as situações didáticas que envolvem a vitrine de livros, o uso
do acervo de livros na sala de aula, o empréstimo de livros e a visita à biblioteca. Nessas
situações, as crianças escolhem, manuseiam o livro, recontam as histórias,
compartilham o livro que mais gostaram ou o trecho da história que mais chamou a
atenção. Geralmente, a capa do livro é disposta virada para frente a fim de que as
crianças escolham como se estivessem em uma livraria. Nos ambientes citados, ter
livros lidos ou não lidos qualifica a escolha da criança e, o professor, nesse momento,
não pode ser considerado apenas uma presença ausente mas, além disso, precisa
garantir que os critérios de escolha estejam claros, assim como a maneira de manusear
o livro, a relação com o objeto e com as crianças junto ao objeto. A cada momento o
professor pode escolher um grupo ou uma criança e ler para ela ou escolher um livro e
ler para si, a fim de que a criança o observe. Isso é ensinado a partir das experiências
de leitura com intervenções diretas do professor.
Segundo foco: processo de reflexão sobre o sistema de escrita. Os objetivos são
distintos, mas complementares ao trabalho de construção de sentidos e compreensão
leitora. Neste foco encontramos o trabalho com a estabilidade do próprio nome para
escrita de outras palavras, reconhecimento e memorização do alfabeto, leitura
marcada64 e jogos.
Um destaque a ser dado se refere ao trabalho com jogos considerando os
diferentes aspectos da linguagem. Para tanto, subdividimos as intervenções quanto ao

64
Denominamos “leitura marcada” aquela em que o professor indica e marca na lousa, na folha
ou no caderno a parte da palavra que está sendo lida com as crianças. Geralmente, essa prática
aparece com frequência na leitura de uma quadrinha, parlenda, poema, lista ou, ainda, no
preenchimento de uma cruzadinha e textos lacunados. Após as situações didáticas que
envolvem o brincar, a recitação, a leitura, a construção de sentidos, a compreensão, entre outros,
há essa prática para ler e evidenciar para e junto com as crianças a grafia, o som e o nome das
letras. Nessa prática, as crianças começam a pensar sobre as partes menores das palavras e
que as letras possuem sons e nomes.
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sujeito tendo clareza de que há jogos selecionados que priorizam aspectos sonoros para
que a criança compreenda que as palavras são sequências de sons representados
graficamente; outros jogos que abordam os aspectos gráficos e alfabéticos de forma a
favorecer a relação entre o oral e o escrito, bem como sobre os elementos iguais e
diferentes das palavras; as intervenções também são potencializadas em jogos que
priorizam o vocabulário e o significado favorecendo a análise da língua a partir do
significado das palavras e expressões que trazem; por fim, há o investimento em jogos
que priorizam a estrutura da palavra relacionada ao seu significado.
No entanto, não é suficiente disponibilizar o jogo para a criança. Sua
complexidade está justamente nas intervenções que serão feitas pelas professoras de
forma de traçar um caminho considerando três aspectos essenciais para que a
aprendizagem aconteça: (1) clareza da principal aprendizagem do jogo; (2) atenção ao
que a criança diz no momento em que o jogo acontece, pois nesta situação didática, a
intervenção só faz sentido a partir do que a criança traz; (3) “pensar sobre” ao invés de
ter a atenção voltada ao “acerto ou erro”.
Terceiro foco: Projeto Trilhas. Consiste em um material estruturado no qual o
professor pode escolher a “trilha” que seguirá e construir seu próprio caminho na
elaboração do percurso didático nos eixos da oralidade, leitura e escrita qualificando as
intervenções quanto ao sujeito de forma com que as crianças possam viver as
experiências com diferentes gêneros textuais: acumulação, repetição, contos, fábulas,
poemas, cartas, engano, entre outros. Com isso, um material estruturado considera a
singularidade da turma e da criança, pois as intervenções são distintas dentro daquilo
que é homogêneo.
Nesse foco a formação continuada do professor é condição para compreender o
fio que conduz a homogeneidade das atividades propostas no material e a
heterogeneidade das experiências vividas pelas crianças, pois apenas seguir um
material estruturado não qualifica a aprendizagem e não é suficiente quando lidamos
com o outro que, neste caso, é a criança. Encontramos também um desafio nas
intervenções das professoras que é o de trabalhar com um material elaborado
considerando o foco nas situações didáticas e potencializá-las para que as crianças
vivam as experiências de leitura e escrita dado o período em que o material foi
construído. Considerar essa questão altera a forma de intervenção e,
consequentemente, as aprendizagens das crianças.

Considerações Finais

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As observações e análises realizadas evidenciaram que promover experiências,
potencializar a escuta de histórias, a leitura de literatura infantil na relação entre texto,
imagem e suporte, a interação e exploração do e com o objeto livro, o diálogo sobre o
lido e, além disso, sistematizar, analisar e promover reflexões sobre o sistema de escrita
garantem processos e resultados de aprendizagem voltados à leitura e alfabetização
sem desconsiderar a singularidade da infância e a forma de aprender da criança por
meio das interações e brincadeiras que circunscrevem o espaço escolar.
Nessa direção, as culturas escritas presentes na educação infantil são
potencializadas pelas intervenções das professoras que se estruturam de forma a
contemplar a construção de sentido e compreensão da leitura, análise e reflexão sobre
o sistema de escrita, comunicação oral e produção de texto escrito.
As intervenções das professoras junto às crianças trouxeram à tona a
importância de uma escuta atenta diante do que dizem os pequenos, como pensam e
como constroem conhecimento. Os acompanhamentos e os diálogos formativos
mostraram que essa construção se dá pelo estudo e concretização das intervenções
quanto ao sujeito da aprendizagem que, na educação infantil, vive suas experiências
coletivas e, ao mesmo tempo, singulares. Os diálogos formativos também evidenciaram
que as decisões pedagógicas da escola sempre foram tomadas para atender
determinações e prescrições, mas nunca por sentidos. Quando a escola possui essa
autonomia e decide que nenhuma criança pode ficar para trás em suas aprendizagens,
que não podem sair como chegaram e que à educação infantil não cabe impedir o
processo de alfabetização, o olhar para a singularidade da criança se faz presente e,
com ele, o processo de intervenção.
Certeau, em suas palavras, define bem esse momento vivido por esta escola:

Dançar sobre a corda é de momento em momento manter um


equilíbrio, recriando-o a cada passo graças a novas intervenções;
significa conservar uma relação nunca de todo adquirida e que por uma
incessante invenção se renova com a aparência de “conservá-la”. A
arte de fazer fica assim admiravelmente definida, ainda mais que
efetivamente o próprio praticante faz parte do equilíbrio que ele
modifica sem comprometê-lo. Por essa capacidade de fazer um
conjunto novo a partir de um acordo preexistente e de manter uma
relação formal [...]. (CERTEAU, 2007, p. 146)

Com isso, podemos dizer que só levar os livros de literatura infantil ou jogos para
sala de aula e dar acesso às crianças a esses materiais, não basta! Parece ser
necessário construir sentidos no uso e isso pode ser possível pelas intervenções
pontuais, direcionadas e sistematizadas. No momento em que os professores têm
clareza dos focos estabelecidos em cada experiência e das intervenções necessárias
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para se trabalhar a leitura, as situações de comunicação oral, de produção escrita e de
reflexão sobre o sistema de escrita, as crianças avançam em suas aprendizagens como
podemos ver na Figura 1:

Figura 1: Conjunto de produção escrita da aluna Isadora, 1º ao 4º Bimestres/2019.

Fonte: Documentação Pedagógica da escola.

As produções de Isadora (5 anos) mostram o processo de análise e reflexão


sobre o sistema de escrita ao longo do ano fruto do trabalho focado nas intervenções
quanto ao sujeito da aprendizagem considerando os processos de leitura e escrita em
suas diferentes naturezas. Vale ressaltar que esta produção é representativa de muitas
outras que, no 1º bimestre, apresentavam uma escrita ancorada no uso de letras
aleatórias, mas sem relacioná-las ao som ou a grafia. A partir do trabalho desenvolvido,
ao final do ano, essas mesmas crianças passaram a escrever listas, falas de
personagens das histórias lidas e textos de memória apresentando uma escrita
alfabética, ainda que com questões ortográficas a serem construídas. O avanço na
aprendizagem se deu pelo cruzamento das intervenções voltadas às práticas de leitura
(sentido, compreensão e decifração), produção textual e análise e reflexão sobre a
língua.
Nos Gráficos 1 e 2 podemos observar a representatividade da escrita de Isadora
nas demais crianças da escola, pois 1% estava alfabetizada até junho de 2019 e 56%
utilizavam letras aleatórias em suas produções.

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Gráfico 1: Percentual de crianças em cada hipótese de escrita65.

Sistema de Escrita - 2º Bimestre/2019


Fase V
100%
1% 9% 26% 9% 56%
100%

Percentual de alunos
0%

Níveis de Escrita

Fonte: Mapeamento apresentado no Conselho de Classe, 4º bimestre/2019.

Ao final do ano, a escola alcançou um percentual de 32% de alfabetização,


somados a 20% de crianças que escreviam ora uma letra por sílaba ora sílaba completa
em uma mesma palavra, seguida por uma leitura marcada que indicava o conhecimento
da criança sobre as partes menores da palavra, o que demonstrou avanço significativo
nesse tipo de aprendizagem.

Gráfico 2: Percentual de crianças em cada hipótese de escrita


Sistema de Escrita - 4º Bimestre/2019
100%
Fase V
100%
Percentual de
alunos

50% 32%
20% 21% 20%
7%
0%
ALF. S.A. Níveis
S.C.V.de Escrita
S.S.V. P.S. TOTAL
Fonte: Mapeamento apresentado no Conselho de Classe/4º bimestre/2019.

No entanto, a escola manteve 20% das crianças que utilizam letras em suas
produções ainda sem ter descoberto o que a escrita representa. Esse resultado parece
confirmar a hipótese levantada nesta pesquisa de que as intervenções na educação
infantil precisam potencializar a tríade: aprendizagens de leitura, reflexões sobre o
sistema de escrita e produção textual, pois as classes que não investiram neste
cruzamento registraram maior índice de crianças que utilizam letras aleatórias em suas

65
Legenda: Alf.: Alfabético; S.A.: Silábico-Alfabético; SCV: Silábico com valor sonoro; SSV:
Silábico sem valor sonoro; P.S.: Pré-silábico.

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produções escritas. Com isso, queremos dizer que a educação infantil é um campo de
experiência, descoberta e vivência de uma criança potente e singular em suas maneiras
de pensar que, quando têm na intencionalidade do professor intervenções que
mobilizam o seu pensar sobre diferentes objetos de estudo que se complementam, os
sentidos são construídos e, com isso, a aprendizagem ocorre de forma mais intensa e
qualitativa.

Referências
ABREU. Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/Secretaria de Educação


Básica, 2018.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 13. ed. Petrópolis:
Vozes, 2007.

CHARTIER, Roger. Práticas da Leitura. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual.


São Paulo: Global, 2003.

PETIT, Michele. A arte de ler ou como resistir à adversidade. São Paulo: Ed. 34,
2009.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Balanço. In: PRADO, Jason; DINIZ, Júlio (orgs.).
Vivências de Leitura: quem são e o que dizem as pessoas que estão escrevendo a
história da leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Leia Brasil, 2007, (p. 52-55).

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Unidades de Leitura. Campinas: Autores Associados,


2003.

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GRUPO TEMÁTICO 3: POESIA E
ORALIDADE.

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APESAR DO AMOR E SABICHÕES: POESIA INFANTIL
CONTEMPORÂNEA

Sandra Maria Alves de Souza, Universidade do Estado de Mato Grosso


Dirlei Zafonato, Universidade do Estado de Mato Grosso
Giselli Liliani Martins, Universidade do Estado de Mato Grosso
Orientadora: Adriana Lins Precioso, Universidade do Estado de Mato Grosso

Eixo Temático: Grupo 3: Poesia e oralidade

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O fazer poético pode se relacionar pela forma e pelo conteúdo escolhido no ato
da escrita, ou seja, a maneira como os artistas combinam as palavras dentro do texto
para produzir um efeito no leitor. Cada poeta tem seu estilo próprio de criar; enquanto
uns buscam retratar o estilo clássico, com estrutura fixa e uma linguagem rebuscada,
outros preferem um estilo mais moderno, sem preocupação com métrica, rima,
versificação, buscando compor poemas com versos livres e temáticas voltadas a
realidade social.
Nesse sentido, as poetas Marta Cocco e Marli Walker merecem destaque, tendo
em vista o estilo de cada uma e os temas contemporâneos presentes em suas
produções. Sabichões (2016), de Marta Helena Cocco e Apesar do amor (2016), de
Marli Terezinha Walker, são obras voltadas ao público infantil e juvenil e foram
publicadas em 2016 pela editora Tanta Tinta de Cuiabá, logo, pode-se afirmar que
integram a literatura brasileira produzida em Mato Grosso.
Sabichões (2016) é um livro de poemas curtos, compostos por uma estrofe de
três versos e conhecidos como haicais em razão de sua estrutura. A obra contém 14
haicais com versos livres que revelam as ações dos animais do bioma brasileiro mato-
grossense, retratando suas atividades desde o período matutino até o período noturno,
com ilustrações que interagem com o texto e mexem com a imaginação do leitor. São
poemas divertidos que podem servir de aliados para despertar a criatividade,
imaginação e criticidade na criança.

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Apesar do amor (2016) é o título da obra de Marli Walker e contém 50 poemas
curtos, enunciando um ser humano à margem da vida que germina nos campos. Seus
versos retratam a história de um menino que sobrevive alheio à realidade dos grandes
latifúndios. As sementes, a terra, a mãe, o menino, a fome e seus destinos incertos são
descritos em imagens de desalento e fome, apesar do amor. É um chamado à
sensibilidade e à reflexão acerca dos contrastes brasileiros.
Com exímia capacidade de síntese, a autora convida o leitor a refletir sobre esses
contrastes que coexistem no Brasil, em especial, no Mato Grosso ou lugares de grandes
lavouras, propiciando aos estudantes uma leitura crítica do lugar onde vivem e da realidade
sob a perspectiva do outro.
As obras e as autoras mencionadas aqui, passaram por uma rigorosa seleção e
foram as primeiras escritoras mato-grossenses selecionadas em 2018 pelo Programa
Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), tendo seus livros recomendados para
o ensino fundamental, com sugestão de inclusão no catálogo escolar de qualquer
instituição de ensino do país. Uma grande vitória para a produção local, evidenciando
sua qualidade e redimensionando o acesso das obras para o âmbito nacional.
Sendo assim, o objetivo deste trabalho consiste em realizar uma breve reflexão
sobre a literatura infantil e a importância de utilizar poesia na prática em sala de aula,
bem como analisar os componentes estruturais, conteúdo e forma dos poemas,
observar como eles se apresentam na contemporaneidade e divulgar a arte produzida
em Mato Grosso nos grandes centros de estudo e pesquisa do país. A base teórica para
esta pesquisa está nos textos de Zilberman (1998), Zilberman e Lajolo (1984), e Coelho
(2000), entre outros que contribuíram para esta reflexão.

A literatura infantil e a importância da poesia


Foi no século XVII que a literatura infantil saiu do nível da oralidade e passou
para a fase escrita com os contos de fada e as narrativas folclóricas registradas
primeiramente pelo francês Charles Perrault. Esses contos eram transmitidos
oralmente, levando os conhecimentos e valores culturais dos povos de geração a
geração. Perrault, publicando em livros de contos as histórias que fizeram parte de sua
infância, retratava a sociedade da sua época, por isso se tornou um ícone da literatura
infantil, especialmente com os contos “Chapeuzinho vermelho”, “A Bela adormecida”,
“O pequeno polegar”, entre outros.
No Brasil, a literatura infantil e juvenil iniciou-se com o processo de urbanização
no final do século XIX e início do século XX. A partir desse momento, de acordo com

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Lajolo e Zilberman (1984) surge um grande número de consumidores dessa literatura e
essa produção passa a ser importante para a nova sociedade.
Percebe-se uma grande mudança no processo histórico da literatura destinada
ao público infantil, esse importante recurso que auxilia no desenvolvimento cognitivo de
habilidades e capacidades, criatividade, percepção visual, diferentes linguagens, entre
outros fatores que articulam o conhecimento e a aprendizagem das crianças quando o
conteúdo é poesia. Com isso, filia-se ao pensamento freudiano no sentido de que a
atividade poética deve fazer parte da infância, uma vez que para a criança o brincar é
fundamental, pois, “toda criança que brinca se porta como um poeta, uma vez que ela
cria para si seu próprio mundo [...] transpõe as coisas do seu mundo para uma nova
ordem, que lhe agrada” (FREUD, 2014, p. 80).
De acordo com Otavio Paz (1972) desde muito cedo a criança deve ter contato
com a poesia e que esse contato ocorre quase de forma natural, pois a poesia se
encontra presente nas canções de ninar, mitos, brincadeiras e, também, nas histórias.
Nesse sentido, a leitura de poesias ou poemas desperta na criança a sensibilidade e,
pela leitura ritmada e prazerosa, ela suscita emoções, experiências, sensações e
momentos únicos. Assim, a sala de aula pode ser um espaço propício a garantir o
acesso a esse tipo de texto com objetivo de desenvolver habilidades próprias que só a
literatura pode proporcionar. Com esse olhar, Coelho (2000, p. 16) expõe que:

A escola é, hoje, o espaço privilegiado, em que deverão ser lançadas


as bases para a formação do indivíduo. E, nesse espaço, privilegiamos
os estudos literários, pois, de maneira mais abrangente do que
quaisquer outros, eles estimulam o exercício da mente; a percepção
do real em suas múltiplas significações; a consciência do eu em
relação ao outro; a leitura do mundo em seus vários níveis e,
principalmente, dinamizam o estudo e conhecimento da língua, da
expressão verbal significativa e consciente - condição sine qua non
para a plena realidade do ser.

A poesia deve ser estimulada desde a infância, pois é uma forma de expressão
e contribui com a oralidade da criança, uma vez que o texto poético é lido de maneira
peculiar, exigindo mais cuidado quanto á pontuação e o significado das palavras, além
do ritmo. Isso faz com que a criança exercite sua mente e enriqueça seu vocabulário.
Todavia, sua leitura deve conter experiências do cotidiano e aliar-se aos conhecimentos
que já possui, de modo que isso se torne mais significativo para ela. Com as leituras de
textos poéticos, a criança amplia seu universo de palavras, possibilitando interpretações
variadas. Assim, quanto mais cedo tiver acesso a esse tipo de texto, melhores serão as
possibilidades de se comunicar e se expressar.

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Nesse sentido, Mauricio Silva, em seu artigo “Brincando com as palavras”,
destaca a importância do ensino da literatura infantil. O autor discute sobre o efeito
didático que contribui com o desenvolvimento da criança, permitindo interação entre o
lúdico e o pedagógico. O estudioso cita três aspectos que influenciam diretamente no
desenvolvimento infantil a partir da abordagem literária:

O primeiro aspecto é o psicofísico, no sentido de que a literatura infantil


atua como estímulo às funções motoras e intelectuais das crianças; o
segundo aspecto é de natureza social, já que por meio dela, a criança
pode aprimorar suas potencialidades de sociabilidade e formação
identitária, estabelecendo por exemplo, categorias de valor ligadas à
ética, além de contribuir com a formação da sua personalidade, com o
desenvolvimento do imaginário infantil e de seu espirito crítico; o
terceiro aspecto é o linguístico, que contribui para o desenvolvimento
do vocabulário, para aquisição de estruturas linguísticas, para distinção
de registros discursivos e desenvolvimento da escrita e da
narratividade da criança. (SILVA, 2016, p.180).

Assim, Sabichões de Marta Cocco e Apesar do amor de Marli Walker são obras
que contribuem para a formação integral da criança considerando o aspecto psicofísico,
de natureza social e, principalmente, o linguístico conforme os aspectos descritos por
Silva (2016). Com essa preocupação que as escritoras mato-grossenses preferiram por
meio do gênero poesia produzirem suas obras literárias voltadas ao público infantil.

Figura 1: Sabichões e Apesar do amor

Fonte: Site olharconceito.com.br, 2018.

Sabichões: literatura infantil de Marta Cocco


Marta Cocco é natural de Pinhal Grande- RS, mas desde 1992 reside no Mato
Grosso. Marta Cocco é poeta, contista, autora de livros infanto-juvenis, crítica
literária e professora universitária. A escritora ocupa desde 2014 a cadeira 18 da
Academia Mato-Grossense de Letras. Ganhadora de vários prêmios literários. A autora
tem publicados cinco livros de poemas: Divisas (1991), Partido (1997), Meios (2001),
Sete Dias (2007) e Sábado ou Cantos para um dia só (2011), três de literatura infantil:
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Lé e o elefante de lata (2013), Doce de formiga (2014) e Sabichões (2016) e um de
contos: Não presta pra nada (2016).
Marta Cocco, realizada com a seleção da sua obra Sabichões para o PNLD,
declarou para a redatora Isabela Mercuri, em uma entrevista ao site de notícias
“Olharconceito”, em 10 de setembro de 2018, na coluna de literatura que:

Esta é uma conquista importante para todos e todas que produzem


literatura em Mato Grosso. Gostaríamos que outros estados do Brasil
olhassem para este lugar e percebessem como temos autores e
autoras de grande qualidade hoje, e também do passado. Há muito
para se conhecer. [...] Ao levarem para suas salas de aulas da
educação básica, relatam que as crianças e jovens ficam muito
entusiasmados, ou por causa da identificação com o lugar onde vivem,
ou por saberem que os autores não estão distantes, no Rio de Janeiro,
em São Paulo, mas vivem aqui, como eles, estão próximos. Isso gera
uma autoestima muito grande. (COCCO, 2018).

Sabichões possui 14 haicais e cada poema apresenta um bicho sabido do bioma


brasileiro. O livro infantil aborda as atividades dos animais na floresta que vão do
amanhecer ao anoitecer. Ao mesmo tempo, essas atividades dos animais também estão
relacionadas com o cotidiano das pessoas. Os poemas e as ilustrações tornam a obra
lúdica66, assim as crianças aprendem brincando, ganham estímulo à criatividade e
despertam a afetividade pelos animais e pelo meio ambiente.
A preferência pelos haicais nos poemas de Marta Cocco vem do seu estilo de
trabalhar com palavras concisas e objetivas. O haicai é um poema curto de origem
japonesa formada por dois termos: “hai”, de brincadeira e “kai”, de harmonia, e,
geralmente, é um poema humorístico.
Esse tipo de poema, de acordo com o rigor métrico japonês, possui uma
estrutura fixa de três versos formados por 17 sílabas poéticas. O primeiro e o terceiro
verso com 5 sílabas o segundo com 7 sílabas, porém, Marta Cocco rompe com essa
tradição e, por isso, não segue essa estrutura fixa do haicai, pois seus poemas são de
versos livres, sem preocupação com o número de sílabas de cada verso.
Sabichões é o nome do livro que a escritora dedica às crianças, mostrando que é
possível fazer poesia com o que os animais já sabem fazer ou nascem sabendo, por isso a
escritora chama esses animais de sabidos. Marta Cocco brinca e joga com as palavras, para
que as crianças se tornem leitores competentes e percebam que esse jogo e essa
brincadeira são possíveis.

66
A ludicidade referida neste trabalho está voltada apenas para o significado do senso comum,
ou seja, para descrever atividades que sempre dão prazer.
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Essa obra é indicada para alunos das séries inicias, em período de alfabetização e,
também, para os já alfabetizados, pois lhes possibilita experiências de textos poéticos e
interação com a oralidade e a escrita. Além disso, a criança tem, desde cedo, acesso a
diferentes gêneros textuais, formados pela linguagem verbal e visual.
O livro inicia-se com o despertador tocando logo pela manhã: “A arara/ abre o
bico e dispara/ algazarra na mata” (COCCO, 2016, p. 5) e termina com a vigia da noite
com: “O vaga-lume / liga e desliga / o negrume da noite” (COCCO, 2016, p. 30). As
atividades dos animais estão relacionadas às atividades de um adulto e até mesmo de
uma criança no seu percurso de um dia inteiro: da manhã, a tarde e a noite.
Ainda nota-se nos haicais algumas figuras de linguagem, recurso utilizado para
aumentar a expressividade no poema, como se vê em: “O sapo / assopra a língua e
zapt: / a mosca tá no papo” (COCCO, 2016, p. 15). A palavra “zapt” é uma onomatopeia
que reproduz o som da língua do sapo saindo da boca e voltando com a mosca. O verso
“O macaco / se solta e salta / dos braços da árvore” mostra a relação do animal, macaco,
com a natureza, árvore, que vivem em harmonia.
Ao afirmar que a árvore possui braços, ao invés de galhos, utilizou-se um outro
nome para mostrar a relação do macaco com a árvore, uma vez que os braços servem
para proteger e segurar. Nessa perspectiva, Candido afirma que “no poema, as palavras
se comportam de modo variável, não apenas se adaptando às necessidades do ritmo,
mas adquirindo significados diversos conforme o tratamento que lhes dá o poeta”
(CANDIDO, 1996, p. 69).
Além dos poemas curtos, as ilustrações de Vanessa Prezotto destacam as
habilidades dos animais com o uso divertido das imagens e sons poéticos que
contribuem para um melhor entendimento, possibilitando variadas interpretações do
texto que vai além das palavras poéticas.
O desenho, pintado com giz de cera aproxima o leitor infantil, traz um colorido
especial que fascina e encanta a criança e, ainda, a imagem não está só relacionada
com o poema. Assim, a ilustração visual interage com o texto e com elementos a mais
que, juntos, expandem a imaginação da criança.
Cada animal possui sua função na natureza de acordo com sua habilidade. Ao
se referir às formigas, a escritora dá o título de ‘carriola’ e na linguagem escrita “A
formiga / carrega e corre-corre / no trilho do trampo” (COCCO, 2016, p. 9). Já na
ilustração, a imagem mostra a organização dos insetos, formando carreiro, carregando
folhas para construir sua casa. Dentro da colônia, cada formiga possui uma função
definida, de modo que as tarefas são divididas entre elas.

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O carreiro das formigas mostra a organização e o trabalho difícil que elas
desenvolvem, pois conseguem carregar objetos mais pesados que seu próprio corpo,
de modo que se evidencia no poema a incrível organização social que garante a
sobrevivência da espécie. Uma imagem foi selecionada para revelar a poética também
na ilustração.

Figura 02: Folga

Fonte: Marta Cocco, Sabichões, 2016.

Na imagem acima, a escritora atribui um costume que o ser humano possui, que
é a ação de escovar os dentes para os protegerem das cáries e manter um sorriso
saudável e bonito. Pela ilustração, observa-se a ‘folga’ do jacaré sendo embelezado
pelos pássaros, um jacaré preocupado com a aparência física, muito vaidoso. A
escritora relaciona os cuidados que uma pessoa tem quanto a higiene e a aparência
física utilizando o personagem animal para ficar mais atrativo para a criança.
Em outro momento da obra, assim como todos os animais do livro tem sua
atividade, o livro apresenta a abelha realizando sua tarefa; depois de sugar as plantas
ela forma o mel: “A abelha/ suga e centrifuga/ o suco da flor” (COCCO, 2016, p. 12). Na
prática, a abelha suga o néctar da planta e depois forma o favo de mel, garantindo seu
alimento e de sua espécie. Na ilustração do livro, a abelha está no laboratório
transformando o néctar das plantas em mel. Desta forma, podemos comparar a
atividade humana, onde o homem transforma a matéria prima em produto
industrializado, pronto para o consumo.
As palavras “suga” e “centrifuga” são rimas que possuem a mesma ação de
extrair algo. No mesmo sentido, as palavras do poema abaixo “afia” e “desafia” que
possuem significados semelhantes para mostrar o trabalho que os peixes fazem para
subir o rio na piracema para a desova.

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São poemas que comparam as atividades humanas por meio dos animais para
que as crianças conheçam as atividades que tanto o homem quanto os animais
precisam desenvolver para garantir sua sobrevivência e que essas ações nem sempre
são prazerosas e fáceis.

Figura 03: Acrobacia

Fonte: Marta Cocco, Sabichões, 2016.

Em “Acrobacia”, enquanto o poema apresenta apenas o peixe, na ilustração acima


nota-se o acréscimo do pássaro, o Tuiuiú, também conhecido como Jaburu, símbolo do
pantanal, com pernas longas, bico comprido, cabeça preta, corpo branco e uma faixa
vermelha no pescoço; é uma ave que, definitivamente, marca presença. Essa espécie
de pássaro tem o peixe como seu principal alimento. Todos os anos os peixes nadam
rio acima para realizar a desova. Esse período é chamado de piracema na qual os
peixes precisam nadar contra a correnteza para realizar a reprodução. Por esse motivo,
o peixe realiza uma acrobacia na água para subir o rio e, além disso, precisa se livrar
do bico do Tuiuiú para garantir sua espécie, por isso afia e desafia as lâminas das águas.
Sobre a prática de se trabalhar com textos curtos quando a criança está em fase
de aprendizagem da leitura, no período da descoberta, Coelho (2000) orienta a
importância de utilizar textos com muita ilustração e poucas páginas, que retratem
coisas e objetos do cotidiano, possibilitando experiências baseadas na realidade do
aprendiz, facilitando a compreensão da leitura nessa fase de pré-leitor e para as
crianças no início da alfabetização, textos curtos também são mais atrativos.
Assim, o texto poético aguça a imaginação, cativa o leitor pela ludicidade, pelo
jogo poético, pelo ritmo e musicalidade na qual a criança interage com o texto e as
imagens, de modo que cria gosto pela leitura, desenvolve a oralidade e, acima de tudo,
adquire conhecimento de uma forma prática e prazerosa a partir do contato com poema.

Apesar do Amor: literatura juvenil de Marli Walker

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Marli Walker, embora seja natural de Santa Catarina, mora há mais de 30 em
Mato Grosso. Atualmente, atua como professora no Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia de Mato Grosso - Campus Cuiabá e no Programa de Mestrado
Acadêmico em Letras da Universidade do Estado de Mato Grosso.
Walker publicou os livros Pó de serra (2006), Águas de encantação (2009) e
Apesar do Amor (2016). As três obras da escritora foram escritas em poesia,
aprimorando cada vez mais a poética da poesia em suas produções. Para 2020, a
escritora lançou do seu primeiro romance, Coração madeira. Apesar do Amor, sua
terceira obra, aborda uma experiência no norte do Mato Grosso no período de migração
das famílias, principalmente, da região sul do país em busca de um pedaço de terra com
a expectativa de uma vida melhor.
A escritora vivenciou toda essa exploração das terras, bem como a degradação
da floresta e observou que, se por um lado, o Estado produz tanta riqueza, pela
quantidade de grãos, de gado, ouro, por outro lado, gera, também, muita pobreza e
angústia nas pessoas deixadas às margens. Por esse motivo, a poeta acredita que a
educação formal é o único caminho para transformar a vida das pessoas.
Apesar do amor (2016) foi sua obra selecionada pelo PNLB em 2018 e
recomendada para as séries finais do ensino fundamental, considerada literatura juvenil,
uma vez que a linguagem poética utilizada nos versos exige um conhecimento prévio
do assunto em questão, não sendo indicado para as séries iniciais.
Em entrevista concedida em 2018 ao redator Alair Ribeiro, do Mídia News, jornal
virtual de Cuiabá, em Mato Grosso, a escritora declara:

O que eu sinto é alegria e gratidão, por pensar que algo que eu escrevo
pode tocar um adolescente, um jovem, pode humanizá-lo pela experiência
do texto literário, muito dentro daquilo que a literatura é para mim.
(WALKER, 2018).

Apesar do Amor (2016) é a terceira obra poética da escritora e contém 50


poemas que contrastam entre a figura da fartura e da fome, nos quais aborda toda uma
experiência e uma vivência do período migratório do norte do Mato Grosso em que a
escritora observou a exploração, derrubadas das matas, e que, apesar de produzir
muitas riquezas, grande produção de grãos, de gado, o estado e os grandes produtores
agrícolas deixaram muita mágoa e uma grande quantidade de meninos e meninas às
margens da sociedade.
O livro está dividido em quatro partes: ritos iniciais, atos e omissões, mea culpa
e em nome da mãe do filho e do amor sempre santo amém. Em cada parte da obra a
escritora trabalha poeticamente com as palavras, revelando sua sensibilidade poética e
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a complexidade do poeta no momento de compor, como se observa nos versos de
“acordo”: “promessas não são feitas pra poesia/ porque palavra prometida é lei/ e poesia
é palavra leito/ sem promessa/ réu confesso/trato feito” (WALKER, 2016).
Nesse poema, primeira parte da obra, o eu lírico se vê refém da poesia e da
palavra, pois, de acordo com a poeta, não se promete nada em poesia, a poesia é livre,
feita para meditar, deleitar, não deve ficar presa a um significado apenas.
A escritora expõe a dificuldade das pessoas em perceber que não é só de amor
que se faz poesia, mas de tristeza, fome, desilusão, entre outros, como retrata o poema:
“Fome pouca é bobagem / dizia o homem de si para si / a mãe com sua renca de filhos”
(WALKER, 2016).
A dificuldade que as famílias de imigrantes enfrentavam no período migratório é
exposta no poema “quantos grãos são necessários / pra abastecer os armários / das
casas que não tem chão? / tantos grãos desperdiçados / tantos meninos ilhados / no
mar inglório de grãos”. A repetição da expressão “tantos grãos” e “tantos meninos”
mostra a intensidade da expressão, bem como a ironia existente, pois se por um lado
existe fartura, existe desperdício, por outro, falta esperança, falta comida. Só no
transporte de grãos que sai dos armazéns das fazendas e corre pelas estradas desse
imenso Brasil até chegar ao seu destino final há um enorme desperdício e perda de
grãos.
O livro apresenta o desespero de uma mãe que luta pela sobrevivência de sua
família: “milagre mesmo/ era dar de comer aos filhos/ era parir sem pai os filhos/ era
sorrir pra dentro ao projetar o seio na boca do pequeno/ era ainda doar alguma sobra
de amor que fosse/ ao menino/ filho da mãe”.
Os poemas curtos, com versos livres, seguem o mesmo estilo da escritora Marta
Cocco, em que a maioria dos poemas são haicais, como pode-se observar no poema
“partilha”:

a mãe repartia o pão


o arroz e o feijão
fazia seus os milagres de deus (WALKER, 2016)

A obra é um instrumento que permite o professor de forma prática e didática


refletir com seus alunos as dificuldades que pessoas enfrentaram no processo de
migração e desbravamento do estado de Mato grosso, além de estrutura poética que
une forma e conteúdo numa estrutura sucinta mas com um grande significado que
traduz a rigidez da fome que afetaram as famílias e que ainda persiste até os dias atuais.

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Embora o conteúdos dos poemas retratam a situação regional, contudo, percebemos
que isso se estende também para outras partes do país.

Considerações Finais
Sabemos que o livro literário passou a fazer parte do programa do governo
federal somente com o decreto nº 9.099/17, que além dos livros didáticos, os livros
literários, que antes pertenciam ao Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)
foram inclusos no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), tornando-se um único
programa, no qual além das obras didáticas e literárias, outros materiais estão também
disponíveis como apoio pedagógico.
Esse programa vem ao encontro da necessidade, principalmente na área da
linguagem, de se trabalhar em sala de aula com vários gêneros textuais de acordo com
sua função social e histórica. Assim, as obras literárias se tornam aliadas e facilitadoras
no processo de formação de leitores críticos e competentes.
Embora as obras Sabichões e Apesar do amor tenham sido produzidas no Mato
Grosso e reproduzem experiências locais, uma vez que os haicais de Cocco
apresentam os animais do bioma mato-grossense e as poesias de Walker abordam as
dificuldades de um menino que sobrevive à margem da realidade dos grandes
latifúndios da região, são obras com temáticas que contribuem para expandir o
conhecimento e a criticidade dos alunos tanto do Mato Grosso quanto de todo o país.
Assim, com o presente estudo, espera-se que as duas obras selecionadas pelo
PNLD e discutidas neste trabalho façam parte do acervo das bibliotecas das escolas de
todo o país e, principalmente, do estado do Mato Grosso tendo em vista que a literatura
infantil nas práticas pedagógicas funciona como elemento mediador do conhecimento.
Com isso, concluímos que as poesias de forma lúdica e agradável podem contribuir para
a formação de um leitor infantil, bem como, com o processo de ensino-aprendizagem
das crianças e jovens.

Referências
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. 5. ed. São Paulo:
Scipione, 2006.

CANDIDO, Antônio. O estudo analítico do poema. 3. ed. São Paulo: Humanitas


Publicações, 1996.

COELHO, Nelly Novaes: Literatura Infantil: Teoria Análise Didática. Editora Moderna.
São Paulo, 2000.

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COCCO, Marta. Sabichões. 1. ed. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato Editorial, 2016.

FREUD, Sigmund. Escritos sobre literatura. Iuri Pereira (org.). São Paulo: Hedra,
2014.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e
histórias. São Paulo: Ática,1984.

PAZ, Octavio. Verso e prosa. In: PAZ, Octavio. Signos em rotação. Tradução de
Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 11-36.

SILVA, Mauricio. Brincando com as palavras: lúdico e linguagem na poesia de José


Paulo Paes. In: NAVAS, Diana; SILVA, Mauricio (org.). A literatura Infantil e juvenil na
contemporaneidade: histórias, caminhos, representações. 1. ed. São Paulo, BT
acadêmica, 2016. p. 179-199.

ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na escola. 10. ed. São Paulo: Global, 1998.
WALKER, Marli. Apesar do amor. 1. ed. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato Editorial, 2016.

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LITERATURA EM SALA DE AULA: (RE)DESCOBRINDO O
POEMA

Cecília Barchi Domingues, UNESP/Assis, CAPES


Drª. Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira, UNESP/Assis

Eixo Temático: Grupo Temático 3: Poesia e oralidade.

Introdução
O século XX foi marcado pelo desenvolvimento da tecnologia, produtos como a
televisão, o computador, a internet e o celular passaram a fazer parte da rotina de
milhares de brasileiros. Inicialmente, em razão do seu alto custo, as mercadorias eram
privilégio daqueles que possuíam melhor poder aquisitivo, contudo, ao longo dos anos,
essa realidade vem sendo alterada e podemos afirmar que o sujeito contemporâneo
adota as ferramentas tecnológicas em seu cotidiano com bastante naturalidade. Não
demorou muito para que esses avanços tecnológicos refletissem no modo como vemos
e nos colocamos no mundo. Na literatura infantil e juvenil, por exemplo, o livro impresso
deixou de ser o único suporte e o mercado livreiro passou a adotar, também, o livro em
formato digital, chamando-os de e-books. Esse novo formato agrada a alguns leitores
pela praticidade de acesso e seu baixo custo em relação ao livro físico, pois podem ser
baixados em qualquer dispositivo móvel de interação, como smarphones, tablets,
notbooks, entre outros.
Além disso, Paulo Machado, Maria de Lourdes Remenche e Eliane Ferreira
(2020), ainda, destacam uma nova ferramenta de leitura decorrente da interação entre
ser humano e tecnologia, com potencialidade na formação do leitor, os book apps.
Segundo esses estudiosos, diferente do e-book, o book app é uma criação híbrida
multimodal e multissensorial (incluem texto escrito, imagem, som, música, movimento,
entre outros modos), capaz de permitir que o leitor se comunique com a narrativa a partir
de gestos. Dessa forma, observa-se que a inserção da tecnologia em sociedade foi
capaz de melhorar e democratizar o acesso à informação, à comunicação e à cultura.

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Apesar do benefício gerado pela inserção da tecnologia, também há aspectos
negativos nessa inovação. O instituto Pró-livro divulgou em sua 4ª edição da pesquisa
Retratos da Leitura no Brasil (2019) que a maioria dos entrevistados (estudantes e não
estudantes) gasta o tempo livre com televisão, internet e redes sociais. Logo, é possível
observar que a população brasileira utiliza-se da tecnologia, mas, o aproveitamento,
como aquisição de cultura, é questionável. Na mesma pesquisa, observa-se que tanto
os leitores, como os que se declararam não leitores afirmam que deixam de realizar
leituras em razão da falta de tempo ou falta de paciência.
As informações demonstram que o leitor contemporâneo lamenta a falta de
tempo e sente falta de leitura em seu cotidiano, mas não utiliza a tecnologia para
solucionar essa deficiência. O acervo literário, de um modo geral, está disponível no
formato digital, contudo, essa opção não é levada em consideração. Observamos que
o livro físico é considerado obsoleto para muitas crianças, mas por que isso acontece?
Acreditamos que a falta de contato e a falta de oferta pode ser um de seus motivos.
Dessa forma, o objetivo do presente artigo é apresentar um relato de experiência
desenvolvido em uma escola municipal da cidade de Assis, com alunos do 5º ano do
Ensino Fundamental e, consequentemente levantar uma hipótese que justifique a
resistência desses alunos quanto à leitura do gênero poema. A metodologia utilizada
para realização desse trabalho de campo foi calcada no Método Recepcional,
desenvolvido por Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira de Aguiar (1993), pois se
acredita que a determinação do horizonte de expectativas é fundamental na formação
do leitor.

O poema em sala de aula


Antes de iniciarmos o trabalho com poemas foi necessário determinar os
horizontes de expectativa dos alunos que participaram da pesquisa. Esses alunos
possuem entre 11 e e 12 anos, cursam o 5º anos de uma escola municipal situada em
região periférica da cidade de Assis. A direção desta escola tem demonstrado, ao longo
de vários anos, na parceria com a Unesp – FCL Assis, seu compromisso com a leitura
e a formação do leitor, o que certamente tem favorecido o bom desempenho de seus
alunos em avaliações propostas pelo governo.
De acordo com o Método Recepcional (BORDINI; AGUIAR, 1993), a primeira
etapa consiste em fazer uma análise das obras lidas pelos estudantes para que, a partir
delas, seja possível selecionar o material de leitura capaz de contribuir para a formação.
Conforme o Método, o trabalho com qualquer tipo de gênero textual não pode acontecer

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de forma impositiva, pois uma leitura que foge de forma demasiada do horizonte de
expectativas do leitor pode provocar seu distanciamento. Textos que “exigem um
esforço de interação demasiado conflitivo com seu sistema de referências vitais”
(BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 85), podem afastá-lo e promover a ideia de que a leitura
é uma atividade inacessível. O leitor deve ser incluído no processo de mediação, se a
obra selecionada pelo professor atende a princípio as expectativas do aluno, pois este
foi ouvido e consultado na etapa de escolha, o aceite ao convite à leitura acontece de
forma natural e provoca aproximação com a literatura.
De modo geral, observamos que os estudantes gostavam de ler, mas quando
indagados sobre os gêneros textuais favoritos ou conhecidos, percebeu-se que não
eram diversificados, restringiam-se a gibis, contos de fadas e “histórias de terror”.
Quando questionados sobre o gosto pelo poema, muitos afirmaram que preferiam
“histórias”, mas, na leitura oral dos poemas, era divertido encontrar as rimas. Observa-
se que, para as crianças, o poema está desvinculado da narrativa e se limita à
exploração de rimas. Além disso, não conseguiam entender a utilidade do poema fora
do ambiente escolar.
Para que a determinação do horizonte de expectativas não ficasse somente no
contato direto com as crianças, buscamos fazer uma análise do material didático
fornecido pelo governo, no que se refere ao trabalho com o gênero poema. O material
utilizado em sala de aula é da editora Moderna, intitula-se Buriti mais: português,
acompanha os alunos do 1º ano até o 5º ano. O objetivo de nossa análise foi observar
não a qualidade dos poemas, mas as suas sugestões de trabalho, de exercícios que
envolvem o gênero. De um modo geral verificamos que a preocupação recaía sobre a
fixação de conceitos, como rima, estrofe, verso, sílaba, aliteração, entre outros. O que
é justificável, pois é o primeiro contato das crianças com esse gênero textual. Além
disso, o poema é utilizado como uma ferramenta de auxílio na decodificação fonológica.
Contudo, um dos principais problemas foi a distribuição do conteúdo entre os anos.
No material do primeiro ano, encontramos com mais frequência o gênero poema.
Das sete unidades, cinco trabalhavam com ele. Havia muitos exercícios destinados à
detecção de palavras que rimam, todas no final do verso, com rimas externas. Não se
questiona acerca da posição das rimas, ou seja, se são emparelhadas (AABB),
alternadas (ABAB), opostas (ABBA) ou encadeadas. O texto visual que acompanha os
poemas é meramente ilustrativo, não é dotado de recursos estéticos, contudo, é exigido
que o aluno faça e discorra sobre uma associação. O primeiro ano está em processo de
alfabetização, dessa forma, é evidente que o estudo do poema esteja intimamente

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ligado à exploração dos fonemas. O interesse é pelo plano sonoro e não pela leitura
deleite, com reflexões sobre a significação ou com a fruição seguida de debates sobre
o texto.
As unidades preocupam-se em trabalhar com os gêneros: conto, poema,
parlenda e cantiga, fábula e história em quadrinhos. Apesar de o objetivo ser a
alfabetização, os exercícios que envolvem cantigas, parlendas e poemas são similares,
principalmente, no que se refere ao trabalho com as rimas, dessa forma, acreditamos
na possibilidade de haver uma confusão pela falta da recomendação de diferenciação
dos gêneros textuais.
O trabalho com gêneros textuais tem início especificamente no segundo ano, o
poema continua a ser utilizado como principal ferramenta de alfabetização, mas, dessa
vez, há uma unidade que se destina à exploração do gênero. Para tanto, a sequência
didática proposta aos professores apropria-se de uma fábula conhecida dos alunos
(atendendo ao seu horizonte de expectativas) e, em seguida, apresenta a mesma
narrativa adaptada sob a forma de poema. O objetivo da mediação é diferenciar os dois
gêneros, reconhecer as características de cada um deles. Além disso, há uma
preocupação em contextualizar e questionar o conteúdo da fábula. Apesar da
abordagem do material ser satisfatória, na versão sob a forma de poema ainda
apresenta exercícios de identificação de rimas, sem se preocupar com a localização
delas. O conceito de cada gênero, assim como suas características, é mencionado no
material, contudo, a diferença entre poema, parlenda, cordel e adivinha não é citada.
O material do terceiro ano deixa de utilizar o poema como uma ferramenta
auxiliar na alfabetização e faz uma abordagem do gênero textual. Há duas unidades que
trabalham com poema, em uma delas, há um poema modernista que brinca com a forma
e, no outro, um poema narrativo. As atividades deixam de enfatizar a identificação das
rimas, mas continuam a ser externas. O poema modernista exige que as crianças
entendam a potencialidade da assonância e leva o professor a questionar seus alunos
acerca dessa função no texto. O poema narrativo aprofunda-se na interpretação de texto
e faz pequenas considerações sobre a diferença entre conto e poema.
O material do professor vem acompanhado de sequência didática que, em sua
maioria, trabalha questões de interpretação de texto e observações gramaticais. No final
do livro, tanto do aluno quanto do professor, há uma lista de livros recomendados como
material complementar, contudo, observa-se que as indicações se limitam a um livro por
unidade. Além disso, chama a atenção indicações de leitura complementar do primeiro
e do terceiro ano, pois se recomenda o mesmo livro de poemas; Poemas para brincar,

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de José Paulo Paes. A diversidade de textos e o contato com o livro impresso fica a
critério do professor.
No quarto ano não é desenvolvida atividade alguma com o gênero poema e, no
quinto ano, há apenas um texto do gênero na modalidade visual. Os exercícios
vinculados a essa unidade são de interpretação de texto, trata-se de exercícios que
analisam a estrutura visual e o uso das rimas.
A partir do que foi levantado, nota-se que, durante os cinco anos do Ensino
Fundamental I, o leitor tem mais contato com o gênero poema nos anos iniciais,
momento de início do processo de alfabetização. A análise estrutural do poema ocorre
no terceiro ano, mas utilizando apenas dois textos como suporte. Faz-se necessário que
o professor complemente o material com textos desafiadores e diversificados. O livro
didático é uma alternativa para garantir a padronização do ensino e, consequentemente,
garantir que o conteúdo esteja adequado conforme a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). Nesse tipo de livro estão os textos e os exercícios capazes de garantir o
desenvolvimento das habilidades requeridas. Entretanto, apesar da facilidade e das
garantias que o recurso promove, acreditamos que ele afasta o leitor do texto literário,
pois este está ausente da sala de aula.
Objetivando dar continuidade à recepção dos poemas, uma vez determinado o
horizonte de expectativas, passamos a atender esse horizonte, ou seja, levamos um
acervo de livros até a sala de aula para que os alunos escolhessem o livro a seu gosto.
De acordo com Bordini e Aguiar (1993), nessa etapa, o professor precisa selecionar
obras literárias com elementos temáticos e estruturais que atraiam a atenção e
promovam o prazer na leitura de seus alunos. Optamos em selecionar obras que fazem
parte do PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola), pois são dotadas de valor
estético. Ao final dessa etapa observamos que nenhum livro de poema foi selecionado,
afirmaram que era “muito fácil” identificar as rimas.
Dessa forma, levando em consideração tudo o que foi observado durante a
primeira e a segunda etapa do Método Recepcional, levantamos a hipótese que a
resistência dos alunos referente ao poema pode ter sido gerada pela execução de
atividades redutoras e mecânicas. Além disso, observa-se a desvinculação do texto com
seu conteúdo narrativo. Quando indagados sobre a ausência do gênero os alunos
explicam que “não tem uma historinha”, “não chama atenção” e que se trata de um texto
onde tem rimas, ou seja, ignoram a existência de qualquer construção de sentido.
Segundo Geraldi (1996), o ensino de textos poéticos deve estar vinculado a três
atividades: a leitura, produção e análise linguística do poema. Diferente do que o

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material didático propõe, para o estudioso, a análise linguística deve questionar o
porquê do autor ter utilizado aquele recurso estético e no que ele interfere na produção
de sentido. A partir do momento em que o leitor consegue entender o conceito dos
recursos estilísticos e a estrutura do texto, a análise não pode ser mecânica, mas
questionadora de sentido. A atividade mecânica e repetitiva dos exercícios de
localização das rimas, por exemplo, afasta o leitor do texto e o impede de construir
sistemas simbólicos, impossibilitando a vinculação com a vida prática.
O resultado aqui demonstrado, referente à análise do trabalho com poema em
sala de aula, vai ao encontro das investigações de Souza e Modesto-Silva (2018), ou
seja, indica que o ensino de literatura nas instituições emprega uma abordagem
redutora, mecanicista e utilitária do texto poético, “[...] nos materiais escolares
verificamos um trabalho com poesia limitado e fragmentado, em que a compreensão da
definição de poesia é reduzida às suas característica estruturais: organização em versos
e estrofes, com aparecimento de rimas” (p.160).
Dessa forma, para garantir a formação do leitor, a leitura não pode ser
facilitadora, entregar aquilo que o leitor deseja, ou difícil demais, o estranhamento pode
gerar distanciamento. A leitura precisa ser um desafio aceito pelo leitor. Segundo Vera
Teixeira de Aguiar (2011, p.115), “o ato de ler significa diálogo com o texto, descoberta
de sentidos não-ditos e alargamento dos horizontes do leitor para realidades ainda não
visitadas”. Uma vez identificado o motivo da resistência à leitura do poema na sala de
aula, apresentamos um relato de experiência e uma proposta de sequência didática que
busca complementar o material didático, driblando suas deficiências.

(Re)descobrindo o poema
A terceira etapa do Método, preconizado por Bordini e Aguiar (1993), exige a
ruptura de horizontes de expectativa através de textos mais exigentes, dotados de
recursos estilísticos que abalem as certezas dos alunos. É importante que texto não
exija tanto o ponto do leitor sentir-se inseguro em assumir o desafio. Escolhemos como
objeto inicial a obra Que raio de história! (1994), da autora Sylvia Orthof (1932-1997),
pois se trata de um texto narrativo ilustrado, cuja prosa poética, permite explorar rimas,
assonâncias e figuras de linguagem, além disso, suas ilustrações estabelecem relação
de colaboração com o texto verbal. A primeira leitura agradou bastante aos alunos, pois
o enredo explora recursos cômicos para tratar de uma hiperbólica disputa entre a Lua e
a Noite por um guarda-chuva. Ambas brigam e, como não chove, cabe ao narrador –
materializado no relato, como personagem apresentador da encenação – a dedução do

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absurdo daquela briga. A esse respeito, os alunos diziam que a história era engraçada
e que, às vezes, “a gente briga mesmo sem razão”.
Solicitamos, então, após o debate a respeito da história, do seu tema e da
exploração dos recursos narrativos e das ilustrações altamente expressivas dispostas
sob a forma de encenação teatral, que lessem o texto em voz alta e observassem seu
plano sonoro. Eles detectaram que as ilustrações não eram meros acessórios do texto,
elas conferiam atmosfera ao texto verbal e efeito dramático. No plano sonoro,
reconheceram assonâncias e rimas no texto e, nesse momento, ficaram espantados
com a possibilidade de existirem fora de um poema, diziam que não sabiam dessa
possiblidade. Questionados sobre a função da rima e da assonância, os alunos
observaram que esses recursos eram responsáveis pela promoção de certa cadência
sonora e atmosfera no texto. Eles diziam que ampliavam os sentimentos das
personagens, bem como de suas ações na história. Dessa forma, descobriram também
a potencialidade da sinestesia.
Esse questionamento sobre o texto e as suas funções, que exige um nível mais
elevado de reflexão, faz parte da quarta etapa do Método Recepcional (1993), quando
o leitor passa a entender o texto em seu sentido mais amplo, não apenas literalmente.
As construções de sentido ganham novos significados, pois são capazes de
proporcionar uma leitura mais prazerosa, afinal, o sentimento provocado pela sinestesia,
ou a descoberta dela, motiva a criança a continuar o desafio da leitura. A identificação
de sensações desconhecidas através do não-dito provoca o avanço no processo de
formação do leitor crítico.
Como observamos anteriormente, nas atividades propostas pelo livro didático,
os alunos compreendiam a estrutura do gênero poema e seus conceitos básicos, mas
não refletiam sobre a construção de sentidos na narrativa. Dessa forma, optamos em
continuar nosso trabalho com a recepção do poema narrativo Que dragão é esse?!
(2013), de Alexandre Azevedo. Questionamos se os alunos compreenderam a história
e todos afirmaram que sim, um dos alunos completou “eu fiquei surpreso com o autor,
ele conseguiu rimar tudo!”, além disso, todos os alunos afirmaram que nunca haviam
encontrado um poema que contasse uma história de conto de fadas. Observa-se, então,
que além de identificarem as rimas do poema perceberam que a narrativa possuía os
elementos do fantástico presente no conto de fadas.
O final clássico apesar de dialogar diretamente com os contos de fadas,
incomodou os alunos, provocando questionamentos e rompendo com seus conceitos
prévios. Eles diziam que “a princesa não deveria ficar com o príncipe, porque ele não

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fez nada, deveria ter ficado com o dragão”. Nota-se a evolução do leitor como sujeito
crítico, pois no início do ano letivo optavam por gêneros confortantes e não
questionavam o final proposto pelo autor. Além disso, a temática do bullying e da
exclusão social foi reconhecida e provocou a identificação, uma vez que os alunos
começaram a contar o que já presenciaram a respeito.
A última etapa do Método Recepcional é a ampliação do horizonte de
expectativas, “[...] os alunos, nessa fase, tomam consciência das alterações e
aquisições, obtidas através da experiência com a literatura” (1993, p.90). A narrativa
tem papel formador na personalidade do sujeito leitor, segundo Candido (1995), a
literatura atua no subconsciente e no inconsciente enriquecendo a nossa percepção e
a nossa visão do mundo, torna-nos humanizados. No momento em que o poema foi
apresentado aos alunos, sem o comando da mediadora, começaram a procurar rimas,
o que reafirma nossa hipótese acerca do excesso de atividades mecânicas no ensino
de poesia. A atividade voltou-se apenas à interpretação do texto e do porquê dos
recursos utilizados pelo autor. O intuito era desvincular o trabalho mecânico, para que
o aluno pudesse identificar a narrativa e vincular seus questionamentos com a vida
prática.
Outro problema encontrado no material didático foi a falta de diálogo entre o
poema e a ilustração estética e, também, o excesso de poemas com a mesma estrutura:
estrofes com quadro versos ou uma única estrofe com rimas ABAB. Para mais uma vez
romper com o horizonte de expectativas optamos pelo poema narrativo ”Que barulho!”,
de Tatiana Belinky, com ilustração de Biry (retirado da Revista Recreio [s/d]). O poema
possui doze estrofes, sendo a primeira de três versos e as demais com dois versos. A
maioria dos alunos o desconhecia e, consequentemente, ignorava o diálogo entre texto
visual e verbal. Apresentar a diferença entre o texto verbal e o imagético dentro de uma
obra, em especial, o diálogo que se estabelece entre eles, é fundamental para garantir
a formação de um sujeito crítico. Os alunos observaram atentamente a ilustração do
poema antes de lê-lo, pedimos para que criassem hipóteses de narrativas. A sugestão
de uma hipótese narrativa desenvolve a criatividade e promove o lúdico, o que cativa o
leitor. Além disso, aproveitando a oportunidade, discutimos sobre o processo de escrita
de um poema. Alguns alunos observaram que os poemas, na maioria das vezes, são
elaborados sobre assuntos muito comuns do cotidiano.
Dessa forma, a partir do depoimento deles, optamos em apresentar um pouco
da produção contemporânea, utilizamos o poema “O jacaré e a lagartixa”, de Alexandre
Azevedo (2008, p.12-13). Azevedo rompe com os conceitos de poema das crianças,

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pois apresenta um poema irregular, além disso, que dialoga com uma ilustração
marcante. As crianças o elegeram como seu favorito, pois gostaram da palavra lagartixa
desenhar-se no formato de um jacaré. A liberdade de um texto verbal configurar-se sob
uma forma – mancha tipográfica – significativa, acompanhando a ilustração, cativou as
crianças e as fez perceber que há muita liberdade na escrita. Analisamos também os
poemas “Balas e balas” e “Afta”, de Ricardo Azevedo (2005); “Cacá”, de Almir Correia
(2003); “O poetinha”, de Almir Correia (2010); e os limeriques de Tatiana Belinky de sua
obra Temqueliques (2008).
O trabalho com o contemporâneo e a diversidade apresentada despertou nos
alunos vontade de produzir seu próprio poema, inicialmente, tentavam conversar
rimando até espontaneamente associarem o poema ao rap. Como atividade final,
solicitamos que produzissem seu próprio poema, alguns deles merecem atenção 67:

Escola
Eu sou a Thainá
Gosto muito de brincar

Às vezes sou teimosa


Mas obedeço pra valer
Até tiro 10 na prova
Isso sim gosto de ver

Quero muito ir pra escola


Para eu aprender mais
Eu nunca perco a hora
Sou a primeira a acordar meus pais
(T. 11 anos)

Gigante
Coitado do Gigante
É tão interessante
O pobrezinho é tão alto
Que não consegue ver o asfalto
10 anos)

Aragão
Eu sou o Aragão
Feliz e brincalhão.
Mas se mexe comigo
Eu viro um furacão
(F. 11 anos)

Por meio dessa atividade, pudemos observar que a produção de poemas deixou
de ser “difícil”, a maioria dos alunos dizia não ter criatividade ou ideia para que pudesse

67
Os nomes completos dos alunos foram omitidos, pois estabelecemos o pacto com eles de
mantê-los em sigilo.
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criar. Contudo, após o contato com textos diversos, não se sentiram mais intimidados e
aceitaram o desafio. Observamos que a redescoberta do poema cativou e estimulou a
criatividade daqueles que apresentavam resistência.

Considerações finais
A partir do que foi demonstrado, chegamos à conclusão de que existe um
preconceito, por parte dos alunos, instaurado no gênero poema e que existe a
possibilidade de ter sido provocado pela abordagem do material didático com que
tiveram contato. Nesse material, notamos que as atividades eram mecânicas e
limitavam sua abordagem a características estruturais. Há um poema, em uma única
unidade, durante os cinco anos de Ensino Fundamental, que promove a discussão dos
recursos estéticos utilizado pelo autor.
Vale salientar que a pesquisa foi realizada em uma escola municipal de Assis/SP
com biblioteca dotada de um acervo de qualidade, além disso, a escola também possui
lousa digital na sala de aula, o que garante a possibilidade de completar o que falta no
material didático. Contudo, não devemos esquecer que esse privilégio não abrange
todas as escolas do Brasil, para muitas o livro didático é a única ferramenta. O professor
é o responsável em adequar e dosar o material, contudo, é preciso que receba suporte
para que isso seja possível, como livros e formação específica, a fim de discutir sobre o
ensino de textos poéticos.
Para Eliane Ao. Galvão R. Ferreira (2009), a leitura produz sentidos a partir da
sua dialogia com a memória de leituras anteriores e dados culturais, o que
posteriormente a professora chama de biblioteca vivida. Além disso, Ítalo Calvino (1993)
afirma que o leitor só conseguirá eleger as obras de que gosta a partir do contato com
a diversidade. Sendo assim, para que o leitor tenha gosto pelo poema é necessário que
ele tenha contato com vários textos do gênero e, a partir disso, a construção de sentido
passe a ser ampliada a ponto de possibilitar a vinculação com a vida prática.
O poema pode atuar como uma ferramenta para a alfabetização, mas o aluno
não pode ter a sensação de que sua função é somente a de promover exercícios e de
treinar a leitura. Conforme discutimos na introdução deste texto, há várias plataformas
capazes de garantir o desenvolvimento da leitura, livros impressos, livros digitais, books
app, entre outros. O leitor precisa conhecer textos diversos, inclusive, a prosa poética
para ampliar seus horizontes de expectativa sobre gêneros textuais, sobre a relação
que se estabelece em uma obra entre seu plano verbal e imagético, enfim, sobre seus
temas e sua vivência.

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Por meio deste estudo pôde-se reafirmar com a prática, o que preconizam as
estudiosas Bordini e Aguiar (1993), o processo de recepção quebra o distanciamento
entre leitor e texto, tirando-o de sua zona de conforto conscientemente. A leitura
impositiva aliada à falta de diversificação impede a expansão do horizonte de
expectativas e, consequentemente, atrapalha no processo de formação de um sujeito
crítico e humanizado. A sala de aula é espaço de questionamento e libertação, portanto,
é injusto enrijecer e limitar qualquer gênero textual somente a uma análise estrutural. O
Ensino Fundamental I é responsável não só pela alfabetização, mas, também pela
construção do sujeito cognoscente, se a literatura é uma das fontes de conhecimento e
humanização, então, devemos aproveitá-la por completo.

Bibliografia
AGUIAR, Vera Teixeira de. A formação do leitor. In: ZANCHETTA JR, j. (ORG.) Caderno
de formação: Formação de professores – Didática dos Conteúdos – Conteúdos e
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Reitoria de Graduação, Cultura Acadêmica, 2011, p. 104-116.

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alternativas metodológicas. 2.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

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articulação no interior de uma biblioteca vivida. In: JUNQUEIRA, Renata (org). Biblioteca
escolar e prática educativas: o mediador em formação. Campinas: Mercado de letras,
2009, p. 69 - 96.

GERALDI. João Wanderley. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação.


São Paulo: Mercado das Letras; Associação de Leitura do Brasil, 1996. (Coleção
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MACHADO, Paulo Henrique; REMENCHE, Maria de Lourdes Rossi; FERREIRA, Eliane
Aparecida Galvão Ribeiro. Leitura de book app de literatura infantil na perspectiva dos
multiletramentos. R. Letras, Curitiba, v. 22, n. 36 p. 01-20, mar. 2020. Disponível em:
<https://periodicos.utfpr.edu.br/rl>. Acesso em: 03 ago. 2020

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Paes, José Paulo, and Luiz Maia. Poemas para brincar. Editora Atica, 1991.

PRÓ-LIVRO, INSITUTO. Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil – 4ª edição. São Paulo,


2016.

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Santos; Bortolotto, Nelita (orgs.). Poesia(cabe) na escola: por uma educação poética.
Campina Grande-PB: EDUFCG, 2018.

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ORALIDADE E MEMÓRIA EM O PRATO AZUL-POMBINHO, DE
CORA CORALINA

Claudia Miranda da Silva Moura Franco, PPGLETRAS – UNEMAT – Sinop- MT68


Dirlei Zafonato, PPGLETRAS – UNEMAT – Sinop- MT
Giselli Liliani Martins, PPGLETRAS – UNEMAT – Sinop- MT - CAPES69
Katia Oliveira Carvalho, PPGLETRAS – UNEMAT – Sinop- MT

Eixo Temático: Poesia e oralidade

‘REMANESCENTE, SOBREVIVENTE, SOBRA’: AS NARRATIVAS DE


MEMÓRIA DE O PRATO AZUL POMBINHO

A imagética do Prato Azul-Pombinho, tema deste estudo, remete às questões


que envolvem tradição e sociedade. Não há como abordar a poesia de Cora Coralina
sem considerar as questões sociológicas que a permeiam. De acordo com Antônio
Candido, em Literatura e Sociedade (2000), acerca do fenômeno literário
intrinsicamente ligado ás questões sociais, o teórico afirma que “existem camadas
profundas na literatura, só sendo possível observá-las por meio do traço social da obra
funcionando para formar a estrutura do texto” (CANDIDO, 2000, p. 7).
A observação das relações entre o texto e a sociedade tem a capacidade de
transportar o indivíduo do senso comum, para um outro nível de entendimento, que
permite a compreensão por meio da arte, neste caso as transformações consentidas
pela oralidade e a memória.
Em O Prato Azul-Pombinho (2002), a narrativa confere uma passagem pelo
tempo, por meio de uma estória contada pela bisavó. Os pressupostos teóricos de Linda
Hutcheon (1991, p. 20) explicam como a presença do passado ganha forma na escrita

68
Bolsista da FAEPEN-MT: Fundação de Amparo ao Ensino, Pesquisa e Extensão do Norte de
Mato Grosso.
69
“O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001” (Portaria n. 206 de 04 de
setembro de 2018, que dispõe sobre a obrigatoriedade de citação da CAPES).

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presente, porém dialogando criticamente, e não somente como um retorno nostálgico.
O deslocamento histórico por meio da oralidade confere à literatura a coerência
enquanto sistema sincrônico, durante um certo período, e diacrônico devido as
singularidades entre literatura e sociedade, que se intercomunicam num incessante
processo de transmissão de valores.
Existe na tradição oral, de acordo com Nelly Coelho (1991), aa necessidade do
homem em procurar explicações para o desconhecido a sua volta:

a palavra que se perpetuou de geração a geração ou de povos para


povos, procurava dizer algo que explicasse não só a existência
concreta do dia-a-dia..., mas também a que ficava para além dos
limites conhecidos e compreensíveis (COELHO, 1991, p. 15).

Partindo do conjectura da oralidade como um objeto histórico capaz de produzir


as mais intensas memórias no indivíduo, o presente artigo buscou construir, por meio
da obra O Prato Azul Pombinho (2002) de Cora Coralina, com ilustração de Ângela
Lago, o percurso de construção da memória como compreensão dos fenômenos das
relações vividas em sociedade.

Um prato sozinho,
último remanescente, sobrevivente,
sobra mesmo, de uma coleção,
de um aparelho antigo
de 92 peças (CORALINA, 2002, p. 4).

Por meio das práticas culturais de determinadas épocas, e abordando o


cotidiano, os saberes eram construídos pelos narradores, e o eu lírico demonstrará
esses saberes firmados no alicerce da tradição e repassados de geração em geração.
Em O Prato Azul Pombinho (2002), o eu lírico evidencia os impactos das tradições nas
práticas femininas, permeando esse cotidiano, e oferece assim a compreensão da
sociedade, valores e renovação dos conhecimentos acerca das tradições.
Para aporte teórico deste estudo, este estudo foi pautado nos pressupostos de
Nelly Novaes Coelho (1991, 2000) sobre a abordagem dos contos de fadas e a as
narrativas folclóricas, criadas pelo povo e transmitidas por Charles Perrault, e para a
definição de memória, os pressupostos de Bergson (1990) sobre as reflexões quanto à
memória como percepção impregnada de lembrança.
Em O Prato Azul Pombinho (2002), a história de uma louça antiga representa
o que Bergson (1990, p. 13) chamará de “espírito sobre a percepção e a relação do
homem com a realidade”. Uma história contada pela bisavó, toda construída em torno

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de um prato de porcelana antiga, ‘muito grande’, “prato de centro, de antigas mesas
senhoriais/ de família numerosa (CORALINA, 2002, p. 6).

Figura 1: Prato Azul-pombinho

Fonte: Museu-Casa de Cora Coralina

A percepção desse objeto vai aos poucos se materializando dentro da narrativa,


um prato predominantemente em tons de azul, com galhos de árvores e flores, todos
estilizados, remetendo aos desenhos orientais, um palácio chinês se destaca, um casal
de pombos azuis sobrevoa a paisagem, ao fundo há um barquinho deslizando, o que
remete aos pressupostos da afirmação de Sérgio Motta (2007, p. 265) quanto a
descrição do movimento de retorno, por meio do qual obras ficcionais localizadas nos
tempos modernos dialogam com outras antigas.
O diálogo prossegue e a bisneta passa a ouvir “com os olhos, com o nariz, com
a boca” (Coralina, p.10). E sobre o prato, quanto ao seu valor familiar assim o eu lírico
relembra:

Pesado. Com duas asas por onde segurar.


Prato de bom-bocado e de mães-bentas.
De fio de ovos
De receita dobrada
De grandes pudins,
Recendendo cravo,
Nadando em calda (CORALINA, 2002, p. 6)

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A narrativa realiza todo o percurso histórico da peça, o juízo de valor do prato,
passa a ser de uma memória afetiva construída pela bisavó, o que remete a apropriação
da memória sugerida por Bergson (1990, p. 11), que subjetivamente indica um construto
por meio da presença de imagens metafísicas, para ele o passado não só coexistirá
com o presente que um dia ele foi, como ele se conserva em si, o passado coexiste no
presente. Deste modo a memória vai se aproximando do cotidiano, das antigas reuniões
de família numerosa, essa memória retratada entre doces, bolos e pudins, reverbera a
doçura da lembrança.
Ao detalhar os desenhos, contidos no prato, a narrativa se aprofunda, “Todo
azul-forte, em fundo claro/num meio-relevo. /Galhadas de árvores e flores estilizadas.
/Um templo enfeitado de lanternas. [...] Um pagode e um palácio chinês. /Uma ponte
(CORALINA, 2002, p. 8).
Segundo Cristina Biazetto (2008, p.75), a ilustração permite um olhar duplo,
considerando tanto o modo como o leitor a percebe quanto como este percebe o mundo
ao seu redor. A ilustração detém um valor importantíssimo quando se considera a
interpretação textual, é o caminho encontrado por essa arte para interpretar a obra
ilustrada.
Por esse motivo, a cor azul não poderia ser negligenciada nesse estudo, por
possuir uma carga profunda de significado. Logo de início, ao se pensar em azul,
imagina-se o céu, uma imensidão, como o ato de se debruçar sobre a memória, o azul
é uma cor fria, segundo Biazetto (2008, p. 79), repousante, capaz de evocar um
conteúdo psíquico, como é proposto pela ideia de memória trazida pela narrativa
poética.
A ilustração em O Prato Azul-pombinho (2002) dispõe um espaço, onde
predominam os tons de azul e marrom. A utilização de cores frias ou dessaturadas, de
acordo com Biazetto (2008) representam tons de mistério, no caso do uso dos tons
azulados, trata-se de cores frias, o que segundo a autora remetem lembranças de água,
e céu, que são elementos de leveza, a escolha dessa cor prova a sensação de
distanciamento (BIAZETTO, 2008, p. 90).
A autora afirma que os tons terrosos, presente em todas as ilustrações do livro
O Prato Azul-pombinho (2002), representam um certo ar de leveza, o marrom é uma
cor quente, conecta à ideia de raízes, segundo Biazetto (2008, p. 90), as cores quentes
provocam vibração visual e sugerem densidade e proximidade.
O marrom pode também ser associado à segurança e firmeza, como pode ser
evidenciado na ilustração da mesa presente em quase todas as cenas narradas,
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oferecendo um sentimento de afeto e continuidade, como é possível observar na figura
2:

Figura 2: Ilustrações da página 5 e 7.

Fonte: O Prato Azul-pombinho, ilustrações de Ângela Lago (2002)

A representação do Prato Azul Pombinho vai ganhando corpo, materializa-se no


imaginário da criança que ouve a história e no imaginário da bisavó. Segundo Bergson
(1990, p. 500):

Nossas percepções estão certamente impregnadas de lembranças, e


inversamente uma lembrança, conforme mostraremos adiante, não se
faz presente a não ser tomando emprestado o corpo de alguma
percepção onde se insere (BERGSON, 1990, p.50).

A imagem agora, transmitida pela voz da bisavó, é traduzida em um ‘sentimento


sem igual’. Transmuta-se na história da princesinha Lui lá da China, a fuga do palácio
com um plebeu, o pai da princesa, e narrativa de um amor impossível surge de dentro
do prato. A perseguição e a quebra das regras patriarcais são abordadas de forma
peculiar, tudo no fundo do Prato, como memória. Bergson (2010, p.280), afirma que a
memória consiste numa espécie de progressão do passado ao presente, “ partimos de
um estado virtual, que conduzimos pouco a pouco, através de uma espécie de plano de
consciência diferentes, [...] até o ponto em que ele se torna um estado presente e
atuante.
Para compreender o desdobramento dessa história, é preciso ressaltar outros
dois textos de Cora Coralina, a Estória do Aparelho Azul-Pombinho e a Nota

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(CORALINA, 1985) nos quais a poeta explica a origem da narrativa, ou seja, de todo o
folclore em torno do castigo dos cacos quebrados amarrados ao pescoço das crianças.
Surge na Nota a história de uma rica senhora, cheia dos “Teres-Haveres” Dona
Jesuína, possuidora de escravos de serviço, sendo que os de dentro da casa tinham
certo privilégio no tratamento. E por esse motivo, recebe como afilhada uma das filhas
de suas ‘escravas de dentro’, esta afilhada vem a se casar, adoece, e ‘hética’, acaba
morrendo, deixa uma menina, a quem a madrinha acolheu-a para si: “A pequena, um
fiapo de gente [...] filha de mãe débil, franzina, [...] nem escrava, nem forra. Meio a meio
em boa disciplina” (CORALINA, 1985, p. 88).
A menina recebe o mesmo nome da madrinha, Jesuína, era menina medrosa,
varria a casa, lavava louça, dormia em uma esteirinha aos pés da cama do “sobrecéu”
da madrinha, e sua coberta era feita de velhos pedaços de forro.
A utilização da história oral, de Acordo com Paul Veyne (1998) proporciona à
criação escrita uma releitura da realidade, de modo a não representar exatamente, mas
revelar que existe uma força motora capaz de produzir e reproduzir novos sentidos. É o
que permite “compreender a forma como o passado chega até o presente (VEYNE,
1998, p. 18).
A menina possuía obrigações na casa, bastava um chamado para que se
colocasse ao dispor da sua madrinha, calçar-lhe chinelas, pegar o ‘urinol’, sempre
praticando a obediência. Por infortúnio, em um desses dias de serviço, escapou-lhe a
mão pequena a tampa de uma terrina, e ‘escacou’. A Madrinha’ estremeceu em
severidades visíveis’, teria que ser aplicado o castigo às crianças dos tempos antigos:
um colar de cacos quebrados amarrados ao pescoço, o “humilhante castigo exemplar’.
Porém, o eu lírico ressalta que devido a maldade das gentes, o colar permaneceu
ali no pescoço da criança e, certa noite, D. Jesuína, a madrinha, acordou com os
gemidos e resmungos que vinham da esteirinha onde a pequena dormia, porém apenas
ralhou: “Aquieta muleca, deixa a gente durmi...” (CORALINA, 1985, p. 88).
O desfecho se dá quando D. Jesuína acorda, chama pela menina e não obtém
resposta, quando se levanta, seus pés pisam num ‘molhado visguento no chão’, depara-
se com a menina ‘fria, endurecida e morta’. A poeta então finaliza “e foi assim, com o
sacrifício da menina Jesuína” que desapareceu o castigo dos cacos amarrados ao
pescoço.
Como seres de múltiplas linguagens que somos, aprender pelo ouvir precede a
outros aprendizados, o ser humano internaliza repetições advindas da oralidade, que

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funciona como um processo dinâmico de transmissão de saber, desse modo a narrativa
oral, contribui para o desenvolvimento do imaginário, como afirma Bergson (1990):

Supõe-se, desta vez que a percepção presente vá sempre buscar, no


fundo da memória, a lembrança da percepção anterior que se lhe
assemelha: o sentimento do déjà vu viria de uma justaposição ou de
uma fusão entre a percepção e a lembrança. (BERGSON, 1990.p. 71).

Ao resgatar a memória do fato acontecido, o eu lírico cria um percurso no qual a


abordagem assimila o fundo moral dos primórdios das narrativas de contos de fadas.
Existe a presença da lição de moral, do castigo, e até mesmo da morte como mote para
lições de vida. A memória se alimenta então das lembranças criando uma nova
percepção do presente, neste caso, se manifestando na extinção do castigo com os
cacos.

ENTRE FATOS E MEMÓRIA: A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO


Um fato peculiar é que na pequena Cidade de Goiás, a história de uma criança
que morreu devido o castigo dos cacos faz parte do imaginário local. Muitas histórias
contadas de geração em geração dão conta do fatídico acidente que ceifou a vida da
criança pelo caco de louça. Existe no cemitério da cidade uma pequena estátua de
mármore que representa esse evento:

Figura 2: Cemitério São Miguel Arcanjo, Goiás-GO. A criança e o caco.

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Fonte: Arquivo pessoal.

Segundo Pelegrini e Pesavento (2002, p. 10), os discursos contidos no


cruzamento entre história e sociedade permitem o aprofundamento nas representações
do real, esse aprofundamento permite a literatura dizer o que não foi dito, oferecendo
oportunidade para se revelar identidades sociais de uma época. Neste caso, essa
estatueta de mármore alimenta os causos contados na cidade. Assim, é possível
depreender que a narrativa foi construída sob o alicerce do imaginário social que
permeia essa história.
A imagem apresenta uma criança, aparentemente chorando, ela carrega um
pedaço de caco de louça na mão, e outro pedacinho amarrado em seu pescoço. É uma
escultura muito antiga, cheia de mistérios quanto a sua data, já que foi mudada de lugar
algumas vezes durante processos de reorganização do Cemitério. A única verdade que
a cerca é que continua alimentando o imaginário, principalmente depois do contato com
as ‘estórias’ de Cora.
Coelho (2000, p. 20) afirma que a aproximação entre o popular e o infantil ocorre
por ambos possuírem em comum uma mesma matéria, a consciência primária na
apreensão do eu interior, ou da realidade exterior, emoções, sentidos e sensibilidades
(COELHO, 2000, p. 36). Guiada pelo imaginário, ou pela percepção, a história ganha
sua verdade social por meio das repetições e símbolos que a constituem.
Retomando a questão da narrativa no Livro O Prato Azul Pombinho (2002),
após conhecer a história oral evidenciam-se elementos antes desapercebidos. Como
livro de literatura infantil e juvenil, a obra, seguindo os pressupostos de Coelho (2000,
p. 27) é literatura, é arte, e por esse motivo representa o mundo, o homem e a vida por
meio da palavra, entrelaçando realidade e imaginário. As narrativas possuem uma carga
afetiva; neste caso, ao narrar histórias, o eu lírico representado pela bisavó está também
influenciando a formação da personalidade da bisneta e, ao se transmutar para a
literatura infantil, a narrativa passa a oferecer novos modos de significação. Nesse
sentido:

A literatura é uma forma de arte que, através do imaginário, expressa


a realidade: Literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é
arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a
vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário
e o real, os ideais e sua possível/impossível realização [...] (COELHO,
2000, p. 27).

O imaginário da bisneta é tomado pelos elementos da história contada pela


bisavó, dos enamorados que fogem à perseguição do pai, o mar alto, um barco, foram

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elementos suficientes para aguçar a curiosidade infantil, e a menina arrebatada pelo
fascínio da narrativa deseja saber o final da estória. Mas a bisavó afirma que “dali pra
frente a estória era omissa, não estava no prato, nem constava no relato” (CORALINA,
1985, p. 14). A mensagem da subtração do final da estória, é suficiente para aguçar a
curiosidade de qualquer indivíduo e o instigar a saber mais, esse desejo de saber
percorre a memória da criança, desejo de conhecer o final da história, elemento que é
revelado quando o prato aparece quebrado:

Eu (emocionada), vendo o pranto de minha bisavó,


Lembrando só
Da princesinha Lui –
Que já tinha passado a viver no meu inconsciente
Como ser presente,
Comecei a chorar
- que chorona sempre fui (CORALINA, 2002, p.25).

Quando o prato aparece quebrado, e a bisavó passa a chorar a memória ali


perdida, a menina se põe a chorar também, pesando no que se perdeu junto a louça
quebrada, motivo bastante para ser acusada de ter quebrado o prato, e para que a
família se reunisse e optasse pelo castigo que servisse de lição:

Trazer no pescoço por tempo indeterminado,


Amarrado de um cordão
Um caco do prato quebrado.
O dito, melhor feito.
Logo se torceu no fuso
Um cordão de novelão.
Encerado foi. Amarrou-se a ele um caco, de bom jeito,
Em forma de meia lua.
E a modo de colar, foi posto em seu lugar (CORALINA, 1985, p. 27).

Um castigo de grande força moral conferia à criança o título da culpa, penalidade


exemplar. Para Sergio Motta (2007, p. 266), seguindo a raiz da lenda em direção a sua
verdade histórica, seu uso serve de pano de fundo para gerar o efeito histórico em torno
da lenda, ocorre o arranjo do universo ficcional, e o que era imaginativo, da tradição
oral, constrói o processo de composição poética.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como proposta de um estudo sobre a oralidade e a memória, a ‘estória’ do Prato
Azul-pombinho’ permite ao leitor, em um primeiro plano, uma viagem às suas memórias
afetivas pessoais; é uma história contada com afeto, e envolve laços familiares,
portanto, de cunho social. Um conteúdo sensível paira durante toda a narrativa que é o

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drama da morte de uma criança, porém, tratado de uma forma em que a tragédia social
acaba se transformando em uma lenda.
O evento triste da quebra da louça antiga serve de cenário para a construção
das reminiscências do eu lírico na figura da bisavó que consegue criar toda uma história
dentro de um prato para, na verdade, abordar uma outra história, essa outra, sombria e
triste, porém, ambas possuem em comum o fato de terminarem quebradas, o ‘caco’
representa a ruptura das duas ‘estórias’, a ruptura com o castigo das crianças na
antiguidade.
Por meio do percurso da oralidade as estórias folclóricas ganham força no
imaginário social, neste caso em O Prato Azul-pombinho (2002), observa-se que os
elementos do fantástico popular foram transmutados para a literatura, assumindo a
forma escrita, continuam exercendo o papel de colaborar para a formação do acesso ao
conhecimento passado de geração em geração e que ainda permanece no imaginário.

REFERÊNCIAS
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A PROSA QUE CANTA E ENCANTA: UMA ANÁLISE DO CONTO
“EMBORA MÍNIMA”, DE MARINA COLASANTI

Isadora Ruiz Gallati, Faculdade de Ciências e Letras de Assis


(UNESP – FCL Assis/SP)
Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira, Faculdade de Ciências e Letras de Assis
(UNESP – FCL Assis/SP)

Eixo Temático: 3 – Poesia e Oralidade

Considerações iniciais
Marina Colasanti nasceu em Asmara, morou até os dez anos de idade na Itália
e chegou ao Brasil em 1948. Em sua produção há mais de 40 títulos entre poesia,
crônicas, ensaios, contos e livros, destinados a crianças e jovens. No campo cultural,
trabalhou em revista, jornal, televisão e como ilustradora de seus livros infantis.
Ganhadora de prêmios, entre os quais, quatro Jabutis (premiação anual iniciada em
1959 pela Câmara Brasileira do Livro conferida a autores, editores, ilustradores, gráficos
e livreiros que mais se destacaram70), além de o Livro do Ano por Ana Z aonde vai você?
Entre seus prêmios configura o da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e o
Prêmio Norma-fundalectura Latino-americano, conforme consta na apresentação do
seu livro autobiográfico Minha guerra alheia (2010).
Mais recentemente, em 20 de janeiro 2020, foi indicada para o Prêmio Hans
Christian Andersen71. Essa premiação é considerada o Nobel da Literatura Infantil e
Juvenil, portanto, uma das maiores celebrações da literatura da área. Como se pode
notar, a produção de Colasanti é vasta e reconhecida no campo literário. Neste texto
objetiva-se apresentar uma análise do conto “Embora Mínima”, de Colasanti, que se
configura por meio do recurso à prosa poética, e compõe sua coletânea Mais de 100
Histórias Maravilhosas (2015, p.370-371).
A autora constrói sua narrativa pela dialogia e exploração do discurso libertário.
Suas narrativas breves que compõem sua coletânea (2015) estabelecem

70
Disponível em: <https://www.premiojabuti.com.br/historia/>. Acesso em: 04 fev. 2020.
71
Disponível em: <https://www.ibby.org/awards-activities/awards/hans-christian-andersen-
awards/hans-christian-andersen-award-2020>. Acesso em: 21 maio 2020.
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comunicabilidade com o leitor, pois, pela leitura, o jovem é convocado a preencher, pela
projeção imaginária, esses vazios, a fim de alcançar o entendimento. Seus contos
híbridos, pautados de poeticidade e discurso prosaico, suscitam reflexão do leitor sobre
as relações de poder que determinam a distribuição de renda na sociedade. Sobretudo,
questionam o papel da mulher no meio social. Desse modo, constituem-se como
denúncia de realidades opressivas, em especial, pautadas por conceitos patriarcais.
Para a consecução do objetivo, realizaremos uma análise, a partir do aporte teórico da
Estética da Recepção e do Efeito (JAUSS, 1994; ISER, 1996 e 1999), por meio da qual,
consideraremos o papel do leitor implícito no texto (ISER, 1996 e 1999), as disposições
do narrador enquanto ente ficcional e os recursos estilísticos empregados pela autora.
Como o conto é ilustrado, também, refletiremos sobre o diálogo que se estabelece entre
texto verbal e imagético, e seus efeitos de sentido.
Na Antiguidade, os contos de fadas eram chamados de contos folclóricos, porém
abordavam temas de cunho sexual e canibalismo, não sendo, portanto, voltados ao
público infantil (MOSCATELLI, 2015). Com o tempo, a sua estrutura foi modificada e os
contos perderam parte significativa de sua agressividade, sendo apropriados pela
literatura infantil. Os contos de Marina possuem determinadas características que se
assemelham as dos contos de fadas tradicionais, pois, alguns contêm ambientação
medieval e/ou na Antiguidade, com personagens da realeza e/ou que passam por ritos
de iniciação e são submetidos a provas, além do recurso à prosa pautada pela oralidade.
A escritora, em sua produção tributária do Modernismo, ao utilizar o discurso da
oralidade, tende a se aproximar do leitor, dialoga com narrativas clássicas e folclóricas,
de modo a ressignificar e romper com valores veiculados a alguns mitos. Assim, o seu
diálogo atua como encontro e confronto em relação às narrativas míticas. Suas
narrativas são breves e priorizam uma única história, consolidando o conto
moderno através dos “vazios” presentes na trama (ISER, 1996 e 1999). Outra
característica de sua escrita é que, além de seus contos serem poéticos, eles também
assumem discurso de denúncia social e, portanto, convocam seu leitor à reflexão crítica.
Deste modo, seus contos podem ser denominados como transgressores, pois
questionam o tempo presente.
O conto “Embora Mínima”, de Marina Colasanti (2015, p.370-371), aborda a
temática da fome, provocada pela situação de miserabilidade. Nesta história, o foco
principal se desenvolve a partir da existência de uma pequena e única fava. Os
personagens pertencem a uma grande e humilde família, composta por um homem que
caça o próprio alimento; uma mulher, responsável pelos cuidados da casa e dos filhos;

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e os filhos. O inverno é rigoroso, expondo desde a falta de lenha para se aquecerem e,
assim, conseguirem sobreviver, mesmo tendo que retirar seu sustento de um solo duro,
gelado e, consequentemente, quase improdutivo. A maneira com que Marina aborda
esta dura realidade e que, para muitos é presente, torna-se graciosa, pois realiza-se de
forma sutil, ressignificando o conceito de esperança.

O dialogismo no conto “Embora Mínima”


O dialogismo (BAKHTIN, 1995) no conto “Embora Mínima”, de Colasanti
(2015), avulta na referência à mítica passagem bíblica que trata da repartição dos
pães entre Jesus e seus discípulos. A referência é feita de maneira sutil e, neste caso,
propõe o saudosismo, como afirma Medeiros:

Na escrita de Marina Colasanti o mito é emancipatório, jamais é


utilizado de forma alienante. A autora vale-se do mito com maestria,
ora propõe o saudosismo ora a subversão, mas sempre numa
perspectiva crítica, reflexiva, a qual encaminha o seu receptor a uma
leitura do ser e do estar no mundo e, principalmente, do constituir-se.
(2009, p.72)

Observe a seguinte passagem:

Hora de comer. Mas a família era grande. E o que o pai havia


conseguido caçando e colhendo não era muito. Então a mãe, a quem
cabia essa tarefa, dividiu entre pratos e fomes o pouco que havia,
deixando para si apenas uma fava.
[...] Com cuidado, para que nenhuma migalha se desperdiçasse
esmagada entre faca e prato, partiu a fava ao meio.
[...].
Devagar, partiu cada metade ao meio. [...]. (2015, p. 370).

Agora, a passagem de João 6:11:

11
Então Jesus tomou os pães, deu graças e os repartiu entre os que
estavam assentados, tanto quanto queriam; e fez o mesmo com os
peixes.
12
Depois que todos receberam o suficiente para comer, disse aos seus
discípulos: “Ajuntem os pedaços que sobraram. Que nada seja
desperdiçado.”
13
Então eles os ajuntaram e encheram doze cestos com os pedaços
dos cinco pães de cevada deixados por aqueles que tinham comido.
(BÍBLIA SAGRADA, 1990, p. 1299)

A comparação entre o número de seguidores de Cristo é feita em relação à grande


família do conto, consecutivamente, a divisão dos pães é comparada com a divisão da
caça entre os membros da casa. Entretanto, diferente da passagem bíblica, no conto,
não há alimento para todos, mesmo após a partilha, sendo necessário dividir uma única

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fava em diversas partes, para que, de modo ilusório, aparentar ter mais alimento no
prato.
Há outras duas passagens no conto que reforçam a presença do mito da multiplicação
dos pães: “Que só não jogou fora porque não jogava nada fora” (2015, p.371). Nesse
trecho, a mulher encontra uma pequena fava entre as dobras de um pano branco, após
acordar de uma longa crença de que um broto de fava, agora morto, cresceria e vingaria
em seu ouvido. O ato de não desperdiçar nem uma migalha de comida dialoga com a
fala de Jesus: “Que nada seja desperdiçado” (1990, p.1299). Por consequência, este
pequeno ato esperançoso, fez com que a mulher enterrasse o alimento no solo duro e
gelado, revelando a segunda passagem do mito, por fim, a multiplicação:

Com esforço, quase sofrimento para abrir caminho naquela estação


desfavorável, as ramas magras que se formaram conseguiram produzir
somente uma baga. E dentro daquela baga magra, duas favas
pequenas, tão pequenas, e mirradas. Não mais. (2015, p.371).

Apesar da produção ser mínima, o que justifica o título do conto, o último


parágrafo demonstra a gratidão desta mãe que, apesar de todo o sofrimento, alegra-se
pelas duas favas que a “vida” lhe ofereceu, pois junto da rama cresceu a esperança, em
outras palavras, com a performance do plantio, ela obteve um ensinamento sobre a
renovação da vida, mesmo em condições adversas.

Estrutura do conto
Marina Colasanti pauta seu conto pela máxima economia nas descrições do
cenário e das personagens, como que mimetizando no texto a privação de toda ordem
pela qual passam seus personagens. Por meio deste recurso, seu relato apresenta
inúmeros “vazios” que requerem a produtividade do leitor para que desvende e,
consequentemente, atualize o texto (ISER, 1996 e 1999). O conto inicia-se in medias
rés, já com a ação avançada. Embora não haja menção ao período em que a cena
transcrita ocorre, subentende-se que é a descrição de um jantar, pois a seguir, a família
com muito frio e sem lenha, opta por dormir, inclusive, para esquecer a fome.
No conto, pode-se observar a inovação no relato do narrador observador que
não se limita a narrar os fatos e as peripécias, pois diante do cenário que descreve,
também, constrói uma hipótese e, relativiza suas impressões, revelando incertezas em
determinados momentos da narrativa. Essa hipótese aparece logo no início de seu
relato, em que se percebe a preocupação da protagonista com a fome instalada no seio
de sua família. Justamente, incumbida de repartir o pouco que possuem “[...] entre
pratos e fomes” [...]” (2015, p.370), a mãe destina a si apenas uma fava. Sobre essa
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decisão, instaura-se a ironia no discurso do narrador: “Grande, essa fava, de um verde
claro e luzidio” (p.370).
Justamente, a sua afirmação instaura um vazio no texto, pois uma fava, em geral,
é pequena e, por isto, incapaz de alimentar um ser humano. Mesmo assim, a
protagonista parte a fava ao meio e come bem devagar cada pedaço. A respeito de sua
atitude, o narrador constrói uma hipótese, todavia, relativiza-a, pelo emprego do
advérbio de dúvida: “Esperava talvez que algum gênio ou voz benfazeja escapasse
daquela fava, e com boas palavras a recompensasse pela fome que passaria aquela
noite.” (p.370 – grifo nosso). Em seguida, ele afirma: “Mas isso não aconteceu.” (p.370).
Pode-se observar, então, que falta ao narrador a onisciência, contudo, não a ousadia
em julgar a performance da mãe, imaginando que esta anseia por recompensa pelo seu
sacrifício e esta viria de um auxiliar mágico: um “gênio ou voz benfazeja” (p.370).
Novamente, o narrador relativiza suas impressões, por meio do recurso às
expressões dubitativas:

É possível que durante o sono a mulher sentisse uma coceira no


ouvido, mas estava tão cansada, que sequer moveu a mão para se
coçar. É provável que o marido, estendido ao seu lado na cama,
sentisse um leve toque no nariz. Mas roncava tão alto, que produzir o
ronco exigia toda a sua atenção. Nenhum dos dois se deu conta de
que, no escuro, algo novo acontecia. (2015, p.370 – grifos nossos).

Pelo recurso ao vazio, instaura-se o suspense no discurso do narrador e


confirma-se a hipótese do leitor de que a cena acontece no período noturno: “no escuro”
(2015, p.370). Embora não se mencione em qual dia os eventos transcorrem, sabe-se
que amanheceu e o inverno permanece. Todavia, um fato novo se instala, próprio do
conto fantástico, pois brota uma fava no ouvido da mulher, enquanto ela dormia. Ciente
da rama em seu ouvido, ela se entusiasma, imobiliza-se na cama, na esperança, que
dela nasçam favas para alimentar a todos. Finalmente, ela constrói pela primeira vez
sua hipótese: “- Quem sabe frutifica, e com seus frutos alimento minha família.” (p.370).
No transcorrer da narrativa, entretanto, o narrador informa que a hipótese não
se concretizou: “Mas isso não aconteceu.” (2015, p.370), pois a rama amarelou e
morreu. Após sacrificar-se pela família, a mãe desapontada levanta-se da cama e
“limpando as folhas mortas do travesseiro encontrou, quase perdida nas dobras do pano
branco, uma fava já fora da baga aberta. Pequena, mirrada, única.” (p.371).
Mais uma vez, o narrador, que acompanha os anseios desta mãe,
descreve com poeticidade o ato de acolher a fava: “Que abrigou na palma da mão como
se abriga coisa amada, que alisou ternamente com a ponta do indicador da outra mão,

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buscando vida naquela pele verde tão frágil e enrugada” (2015, p. 371). Apesar de
sentir-se desapontada, a sensibilidade com que a mulher protege a fava, cria-se um
novo horizonte de expectativa, pois, com esse alimento já tão humanizado a ponto de
ser comparado com algo amável e ser tratado com ternura, inicia-se a busca por algum
resquício de vida e, portanto, há esperança de que ela ainda frutifique. A fava, então, é
enterrada no quintal, junto à uma andorinha ali também posta quase no final do outono.
Todavia, o narrador rompe com a expectativa e pressupõe que ela não vingará: “Que
tivesse berço juntas, já que nenhuma das duas alcançariam o verão” (p. 371).
Além das lacunas instauradas no conto, no decorrer da história, repetidamente,
o narrador pressupõe os pensamentos da personagem e os acontecimentos que estão
por vir, e, após tantas tentativas, analisando os fatores externos, como o solo duro e
gelado, ele estabelece o potencial de negação, ou seja, a rejeição e condução da
percepção do leitor no sentido contrário do que se afirma, atraindo a atenção do leitor
na medida em que ele busca por elementos dentro e, também, fora do texto (ISER, 1996
e 1999): “Não pensou que a fava fosse brotar, tão pequena naquele chão gelado e duro.
Não parecia possível” (2015, p.371 – grifos nossos). Mas, passadas muitas semanas e,
apesar da estação desfavorável, ela brotou.
A mulher enche-se de esperanças e, em devaneios, imagina que a árvore
crescerá forte e assim que o verão chegasse estaria carregada de “bagas gordas, e
dentro das bagas, favas e mais favas” (2015, p. 371). O narrador, então, afirma que a
hipótese não se concretizou: “Mas isso não aconteceu”. Todavia, apesar da estação
árdua, as ramas que cresceram formaram apenas uma baga e, dentro daquela baga,
duas pequenas favas: “tão pequenas, e mirradas. Não mais” (p. 371). A economia da
descrição do cenário e a afirmação “não mais” anula qualquer esperança de que
nascerão outras bagas. Assim, mesmo com poucos frutos, a mulher deixa de ter
devaneios sobre a fartura de alimento, ou seja, ela aceita a realidade que lhe é posta e
alegra-se, pois “a vida, sempre tão áspera, lhe oferecia agora uma mínima abundância”
(p. 371).
Ao final do conto, temos uma pequena ilustração, tão pequena quanto as favas,
que dialoga com toda história. Mas, o recurso imagético é utilizado, especialmente, para
visualizar as duas últimas palavras antagônicas do conto: “mínima abundância” (2015,
p.371). Representado por uma única mão esquerda, pressupõe-se que seja da
protagonista. A mão está aberta e com a palma da mão para cima, como se os braços
estivessem estendidos para frente. Não há outras imagens e cenários, portanto, a
focalização é direcionada à fava que se encontra no centro da palma da mão, mirrada.

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O desenho é feito na cor azul, cor escolhida pela autora como central para a coletânea,
justifica-se, pois, o primeiro livro da coletânea ser denominado Uma ideia toda azul,
também, de Marina Colasanti.

Figura 1:

Fonte: Colasanti, 2015, p. 371

Isto posto, a partir do discurso libertário, a autora problematiza as questões


referentes à distribuição de renda na sociedade, pois, no Brasil, de acordo com o IBGE
há 13,5 milhões de pessoas em situação de miserabilidade72. Entretanto, discute-se,
sobretudo, o papel da mulher no meio social, visando a denúncia de realidades
opressivas, em especial, pautadas por conceitos patriarcais. Visto que, nessa situação
de extrema pobreza, as mais afetadas são as mulheres (7,8 milhões de pessoas vivendo
em casas chefiadas por mulheres negras e 3,6 milhões de pessoas vivendo em casas
chefiadas por mulheres brancas73). Assim, Marina se apropria da afirmação de
Showalter sobre a escrita da mulher, utilizando a sua obra como meio de “transgredir a
histórica condição de silenciamento do discurso de autoria feminina” (1994, p.50).
Colasanti também usufrui da linguagem em prosa poética para a produção de
sentido contra ideológicos como destaca Tássia T. de Oliveira:

As novas formas de estruturação do mundo moderno (a lógica


capitalista, o imperialismo, a divisão do trabalho, a sociedade de
consumo), com seus discursos ideológicos hegemônicos e seu senso
comum cristalizado, no entanto, trouxeram outros discursos à tona,
colocando a poesia em desfalque quanto ao poder de nomear, espaço
cada vez mais ocupado pela ideologia dominante através dos meios
de comunicação em massa. A resistência poética, portanto, caminha
no sentido inverso à lógica da produtividade, da mercantilização.
Assim, a poesia moderna produz sentidos contra-ideológicos (2013, p.
7, apud BOSI, 2000).

72
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/>. Acesso em: 28 agosto 2020.
73
Disponível em: <https://www.geledes.org.br/>. Acesso em: 28 agosto 2020.
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Constata-se, portanto, que a partir do seu discurso crítico e poético, a autora não
só se torna atraente para os jovens, mas, também, para os adultos. Por isso, trata-se
de uma obra literária de qualidade estética e com potencial para humanizar os leitores
jovens e adultos, configurando-se, portanto, inscrita na literatura crossover (FERREIRA
e CARRIJO, 2018).
Dessa forma, expressando seu projeto estético de subversão de uma ordem e
emancipação do jovem leitor (ZILBERMAN, 1984), Ferreira e Valente afirmam que “A
literatura infantil e juvenil contemporânea procura, por meio da autocrítica, da
manutenção da autenticidade, da conscientização, da metalinguagem, da dialogia, da
intertextualidade, adequar-se às peculiaridades próprias do tipo de leitor a quem se
destina” (2013, p.135-160). Para isso, há necessidade em confrontar a razão e a
imaginação, sendo ela vista como instrumento de conquista do conhecimento, isto é, de
conscientização do leitor em relação às descobertas que lhe cabe fazer no mundo
(ZILBERMAN, 1984).

Considerações finais
Observa-se que Marina Colasanti não se vale da estrutura do conto de fadas
com intuito didático ou com partidarismo ideológico, pois ela propõe a reflexão sobre as
ideologias como forma de poder e utiliza-se de um discurso libertário. Assim, Colasanti
usufrui dos recursos de intertextualidade e hibridismo, tanto verbal quanto imagético,
que são capazes de acionar a biblioteca vivida (FERREIRA, 2009) do leitor. Nesse
sentido, temos a literatura como função social e humanizadora (CANDIDO, 1995;
JAUSS, 1994), como afirma Moscatelli:

O conto de fadas, assim como os contos tradicionais, tem uma função


social que é possibilitar a imaginação em efeito, isto é, para o leitor
infantil trará benefícios, pois mostra a maldade, a perda, os desafios e
a esperança de um final feliz, justo. Com isso, o papel social do conto
de fadas se estabelece à medida em que norteia a criança em relação
ao funcionamento da vida em sociedade. Um fator primordial para os
contos de fadas é a magia. (MOSCATELLLI, SILMARA).

Nota-se, também, que o conto “Embora Mínima” estabelece comunicabilidade


com o leitor, pois a sua imaginação é capaz de preencher as lacunas intencionais
presentes no texto (ISER, 1996 e 1999). A concepção de leitor implícito, todavia, permite
descrever as estruturas gerais de efeito do texto, pela qual os sentidos se traduzem nas
experiências do leitor através dos atos de imaginação. Pois o texto enquanto material é
mera virtualidade que se atualiza no sujeito, além de ser visto como principal fonte de

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comunicação (ISER, 1996). Essa atualização só acontece na relação entre texto e leitor,
porque o leitor é inserido no processo de leitura, pela presença de lacunas e potências
de negação que exigem sua produtividade Assim, Colasanti constrói sua narrativa por
meio da intertextualidade das emoções humanas e de cunho moral, de modo a concluir
o seu papel literário em transformar a sua obra em transgressora, subvertendo a ordem
e trazendo emancipação a este público (ZILBERMAN, 1984). A escolha do conto
justifica-se, pois, a sua leitura permite que o leitor, pela reflexão crítica sobre as relações
em sociedade, reveja seus conceitos prévios e amplie seus horizontes de expectativa
(JAUSS, 1994).
Colasanti, então, traça a sociedade contemporânea em sua escrita associada à
crítica ao patriarcalismo, aos valores ideológicos cristãos e aos arquétipos de
massificação humana. Por fim, tratando-se de uma obra de autoria feminina, reflete-se
sobre a escrita da mulher, a qual, afirma Showalter, configurar-se como um discurso de
duas vozes que se personificam “as heranças social, literária e cultural, tanto do
silenciado quanto do dominante” (1994, p.50). Marina Colasanti, em sua produção,
rompe com este silenciamento, expõe a voz feminina, em especial, a mais
desprestigiada, justamente a que fornece lições de esperança e de compromisso com
a vida.

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SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA,


Heloísa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio
de Janeiro: Rocco, 1994.

ZILBERMAN, R. A literatura infantil e o leitor. In: ______; MAGALHÃES, L. C.


Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 2.ed. São Paulo: Ática, 1984, p.61-
134.

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BICHOS EM VERSOS E ILUSTRAÇÕES NA POESIA DE JOÃO
KÖPKE E PRESCILIANA DUARTE DE ALMEIDA

Morgana de Medeiros Farias, UFPB


Ana Paula Serafim Marques da Silva, UFPB
José Hélder Pinheiro Alves, UFCG/UFPB

Eixo Temático: 3 - Poesia e oralidade

Considerações iniciais
Desde os tempos remotos, a temática dos bichos está presente na literatura
infantil, já que as crianças nutrem uma especial relação sentimental e se divertem muito
mais com os animais que falam e agem como os homens, do que com os textos mais
rebuscados. Dessa maneira, propomos analisar, neste artigo, a poesia produzida para
crianças no final do século XIX e início do XX, mais especificamente, no manuscrito
Versos para os pequeninos (s/d), do educador fluminense João Köpke (1852-1926) e
Páginas infantis (1908), da poetisa mineira Presciliana Duarte de Almeida (1867-1944).
Enfocaremos nos poemas que trazem como temática os bichos, pretendendo,
especialmente, mostrar como os autores se utilizam dessa temática como recurso
literário e didático, visando ensinar bons modos às crianças, disseminando valores
vinculados ao período mencionado, como também observaremos se há nesses escritos
uma preocupação por parte dos autores com o deleite e a fruição infantis. O manuscrito
de Köpke, por não ter circulado entre as crianças naquele momento, contribuiu menos
do que o livro de Almeida para a dita formação dos pequenos, embora ambos tenham
retratado a infância brasileira de então.
A escolha das obras supracitadas se dá, principalmente, por esses autores terem
sido pouco estudados e merecerem ter seu destaque no cenário acadêmico. Apesar
das questões pedagógicas permearem a literatura no entresséculos, os poetas e as
poetisas conseguiram realizar textos de grande valor literário que dialogam de modo
pertinente com a criança leitora da época. Nesse sentido, faz-se importante questionar
o apagamento que se deu por parte de ambos na historiografia literária brasileira,
mesmo quando os textos escritos por eles demonstravam tanta qualidade estética.
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Nossa pesquisa é de caráter documental e bibliográfico, com natureza qualitativa
e dimensão interpretativa, que abarca os valores socioculturais, pedagógicos e literários
propagados no período de circulação e de recepção das obras. Como fundamentação
teórica, para a compreensão dos efeitos estéticos que os poemas são capazes de
ofertar, a partir da temática dos bichos, estudaremos, principalmente, Zilberman (2014),
Sosa (1993), Alves (2012) e Camargo (1999).
Para a organização deste texto, o dividimos em três seções principais, além das
considerações iniciais e finais. Escolhemos expor, no primeiro tópico, alguns livros de
leitura que circularam no período das obras aqui estudadas, que também exibem o
assunto em questão. No segundo tópico, apresentamos Versos para os pequeninos
(s/d), bem como aspectos importantes da vida do autor, João Köpke, com vistas à
análise de um poema sobre bichos. Já no tópico seguinte exploramos a obra Paginas
infantis (1908) e sua autora, especificando a presença da temática dos bichos na
coletânea. Ademais, ressaltamos que, por se tratar de uma pesquisa histórica, no título
do nosso corpus e nas citações, foi mantida a ortografia oficial da época, conforme se
encontra nos livros.

Os livros de leitura poética e a recorrências da temática dos bichos no


entresséculos
Os livros de leitura são peças fundamentais para que possamos entender as
configurações que permeavam o acesso por parte das crianças à literatura infantil. Para
Oliveira (2017, p. 36), “[n]os Oitocentos, o material impresso ou manuscrito destinado
ao ensino de crianças brasileiras era escasso, com as escolas adotando clássicos da
literatura internacional e rudimentares cartilhas, documentos judiciais e cartas
manuscritas fornecidas por professores e pais de alunos”. Foi a partir daí que surgiram
os livros de leitura, estes que representavam a renovação pedagógica necessária
àquele momento, já que os mesmos transmitiriam ideias vinculadas à Primeira
República, que perdurou de 1889 a 1930.
Para Leonardo Arroyo (2011), não é tão simples estabelecer as diferenças
intrínsecas aos livros de leitura, voltados à difusão de algum tipo de conhecimento, e os
livros de literatura infantil, voltados à fruição. “Percebe-se que a literatura infantil
propriamente dita partiu do livro escolar, do livro útil e funcional, de objetivo
eminentemente didático”. (p. 123-124). De fato, separar essas duas coisas se torna
complexo, pois em determinados momentos uma fazia parte da outra, de forma que
nem sempre era perceptível quem estava ali para educar e quem estava para entreter.

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O gênero literário poesia é o que tem a história mais longa entre todos os outros
por servir a diversos propósitos, dentre eles religiosos, políticos, didáticos, etc. Aqui no
Brasil, no século XIX, o gênero poético esteve presente desde a aurora da literatura
infantil e se caracterizava por tematizar, principalmente, como nos mostra Lajolo e
Zilberman, (2007, p. 148) “[...] bichos, paisagens, vultos familiares e patrióticos de um
ponto de vista exemplar e educativo”. Por motivo de toda a magia dos bichos que falam
e pelo poder de representação, a presente temática sempre foi assunto apropriado ao
leitor mirim.
Para Yvonne Bradesco-Goudemand (1982, p. 1-2):

O animal esteve sempre associado aos acontecimentos mais íntimos


de nossa existência, através das religiões (totêmicas ou não), quer se
trate de sacrifícios propiciatórios, jogos, superstições nupciais ou
funerárias. Em cada página da longa história da humanidade surge um
animal; e essa presença, mesclada à nossa, é símbolo e penhor do
equilíbrio de nossa vida e do mundo em que vivemos.

De acordo com Zilberman (2014, p. 134), desde sempre, “[...] bichos são
apropriados à literatura infantil, porque, a partir de algumas de suas características,
facultam simbolizar a própria criança”. Simultaneamente, sobre as relações
sentimentais dos infantes com os animais, Jesualdo Sosa (1993, p. 153) aponta que “[a]
criança possui um sentido especial para relacionar-se com eles [...]”. Sob o mesmo
ponto de vista, Benjamin (1987, p. 238) afirma que “[...] as crianças se divertem muito
mais com os animais que falam e agem como os homens que com os textos mais ricos
de ideias”.
Dessa maneira, entendemos que muitos escritores fazem uso da presença de
animais procurando representar o mundo interior das crianças, utilizando-se de
moralidade e também do lúdico, retratando a infância brasileira, ao se preocupar com
as necessidades literárias dos meninos e meninas de então. Conforme Alves (2012),
para a criança, o bicho é central, dessa forma, tal vertente é essencial em obras
destinadas ao leitor infantil.
Assim, o animal inspirou grande quantidade de escritores de obras didáticas que
circularam em escolas dos grandes centros do país. A educadora paulista Maria Zalina
Rolim Xavier de Toledo (1869-1961), em 1897, lançou sua principal obra poética para a
infância: Livro das crianças, com poemas ilustrados, vinhetas e volume cartonado. Seus
versos revelam uma “[...] enorme ternura pelas aves e pelos ninhos; e grande
preocupação em ensinar a protegê-los. [...] Ela viveu em sintonia com a criança, os

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animais, os pássaros e os peixes, a Natureza toda, as coisas simples da vida”.
(DANTAS, 1983, p. 40).
No prefácio de Contos infantis (1886), as autoras Adelina Lopes Vieira (1850-
1923) e Julia Lopes de Almeida (1862-1934) revelam a preferência em tratar da temática
abordada: “Alguns episodios pôdem ser lidos como não naturaes, são esses os que as
flores falam, e os animais raciocinam; mas isso mesmo fizemos como táctica subtil, para
tornamos animaes e flôres comprehendidos e estimados pelas creanças”. (VIEIRA E
ALMEIDA, 1886, p. V - VI).
Em Poesias infantis (1904), do escritor carioca Olavo Bilac (1865-1918),
podemos citar que há a temática de bichos em “O Passaro captivo”, “A Borboleta”, “As
Formigas”, “Plutão” e “O Boi”, e nas versões poetizadas das fábulas “A Rã e o Touro”,
“O Leão e o Camondongo” e “O Lobo e o Cão”.
Outro nome de destaque é o da poetisa Francisca Julia da Silva Münster (1871-
1920), também paulistana, que em colaboração de seu irmão Júlio César da Silva
(1872-1936), lança Alma infantil (1912). Dentre os versos que compõem o exemplar,
há fábulas que o deixam ainda mais primoroso.
Tendo listado alguns dos nomes expoentes da literatura infantil, estes que
também utilizaram os bichos como temas para os seus escritos, nos deteremos, nas
próximas seções, ao trabalho com essa temática no manuscrito Versos para os
pequeninos (s/d), do educador fluminense João Köpke e em Páginas infantis (1908), da
poetisa mineira Presciliana Duarte de Almeida. Veremos, assim, a quais necessidades
esses poemas atendem, se a de ensinar alguma coisa às crianças ou à de proporcioná-
las um momento de prazer através de leituras específicas voltadas à sua faixa etária.

Versos para os pequeninos (s/d)


João Köpke nasceu em Petrópolis, no dia 27 de novembro de 1852, tendo
falecido na sua residência, no bairro das Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, em
28 de julho de 1926, ao longo dos seus 73 anos de idade. Sua trajetória sempre esteve
interligada à educação, na maior parte do tempo, campo do conhecimento que lhe deu
bastante notoriedade à época em que viveu. No entanto, como o homem de múltiplas
facetas profissionais que foi, não se restringiu apenas a ela. Fora isso, como bacharel
em Direito, ele seguiu, ainda, carreira jurídica, percebendo, possivelmente, durante seus
primeiros passos como profissional, que não havia dentro de si a inclinação
indispensável a esse afazer. Não demorou até que visse que, na verdade, era a infância

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e suas demandas o que havia de mais urgente e significativo na sua vida, mesmo
quando se deparava com as dificuldades encontradas pelo caminho.
Apenas em 2017, através da professora Norma Sandra de Almeida Ferreira, da
Faculdade de Educação da UNICAMP, Versos para os pequeninos (s/d) veio à tona.
Isso porque, mesmo tendo sido escrito possivelmente entre 1886 e 1897 e mantido
guardado pela família do educador por mais de um século, foi digitalizado e publicado
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, em versão
online, em uma edição fac-similar, preservando suas características originais.
A obra em questão é organizada com 24 poemas e 24 estampas, estas sendo
uma denominação da época para as ilustrações vindas na maioria das vezes da Europa.
Há um apelo visual que estrutura o poema como em forma de desenhos, em toda a
página, usando os espaços disponíveis. “As estampas estão ao lado dos poemas estão
interligados, lado a lado, imagem e texto se apresentam ao leitor com o mesmo nível de
importância, provocando uma relação que vai do texto para a imagem e da imagem para
o texto”. (FARIAS; SEGABINAZI, 2019, p. 126). Vejamos abaixo, através de duas
figuras de um poema que será analisado posteriormente, como se dá a relação citada
acima.
Figura 1 – Estampa do poema “Meu burrinho” Figura 2 – Poema “Meu burrinho”

Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/wp- Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/wp-


content/uploads/2017/03/kopke-facsimile.pdf. content/uploads/2017/03/kopke-
facsimile.pdf.
Acesso em 17 de setembro de 2020. Acesso em 17 de setembro de 2020.

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Abaixo, temos o poema “Meu burrinho” de forma mais legível, de modo que
possamos analisá-lo rapidamente

Meu burrinho

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Meu burrinho Este burro Entre burros
Bonitinho De talento É portenho,
Não tropeça Entre os burros Este burro
No caminho. É portenho De talento.

Não tropeça Ora a passo, Em beijinhos


Nem dispara Ora a trote, Eu lhe pago
É de raça Não carece, Seu trabalho
Muito rara. De chicote. E o affago.

Dos burrinhos Corre, voa


É a flôr Sobe e desce, Elle fica
Té parece E cançando Satisfeito
Que é doutor. Não parece. O burrinho
Do meu peito.
Porque sabe Porque gosta Upa, upa!
Galopar D’esta lida Pr’a cocheira! Vamos, vamos,
Sem a gente E a carga Desce a noite Repousar,
Machucar. Lhe é querida. Bem ligeira! Pódes, pódes
Galopar.
E, se a gente
Quer cahir, Té parece A meu lado
Sabe a gente Que é doutor Ceiarás
Sacudir. Dos burrinhos E commigo
É a flôr. Dormirás.
Não é como
Muitos burros Não tropeça Meu benzinho
Que são mesmo No caminho, Minha flor
Burros, burros! Nem dispara Meu burrinho
Meu burrinho. Meu amor.
(KÖPKE, s/d, p. 107)74.

Antes de qualquer afirmação que possamos fazer, é perceptível a afetividade


que exala do poema “Meu burrinho”. A relação que une o animal e o eu-lírico é de
respeito e conhecimento mútuos, ao ponto de o burrinho saber, por exemplo, quando
aquele que monta no seu lombo quer seguir firme ou cair. Fica aparente, também, que
nenhum meio de agressão é utilizado, de modo que não se faz necessário machucá-lo
ou usar chicote para guiá-lo. A sutileza e o carinho que permeiam o texto nos saltam
aos olhos em estrofes como a última, onde um burrinho é chamado de “benzinho”, “flor”
e “amor”.
Trazendo a estampa, também chamada de ilustração, como referência para nos
auxiliar na interpretação do poema, podemos inferir, em segundo plano, que o eu-lírico
tem como burrinho uma mulher que brinca com ele, esta que poderia ser sua mãe, uma

74 Deixamos o poema assim disposto para sermos fiéis à forma como ele está no manuscrito.
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irmã mais velha ou qualquer outra pessoa com quem tivesse proximidade. Esse tipo de
brincadeira se assemelha a outra bastante tradicional, que é brincar de cavalinho.
Diferentemente dos poemas que que tratam dos bichos na literatura infantil
contemporânea, essa de João Köpke não traz um animal antropomorfizado, com
características humanas, tanto o eu-lírico, que parece assumir a voz de uma criança,
quanto o burrinho, adotam papéis que são seus de fato, se comportam como seres
distintos, porém unidos pelo amor já citado na estrofe que mencionamos no parágrafo
acima, sentimento tão genuinamente presente na subjetividade infantil. Para Silva Júnior
(2010), a representação dos animais é longeva na história da humanidade e na poesia
brasileira ela ganha certas peculiaridades, permitindo o jogo, o riso, a alegria de ser
criança e alegria de aproximar o que é natural do que é humano.
O poema é composto por dezenove estrofes regulares, todas organizadas em
quartetos com versos que contém três sílabas sonoras, também chamados trissílabos.
Olhando ligeiramente para a forma como ele está colocado na página, observamos que
o poema está desenhado, assume uma forma que não conseguimos identificar ao certo.
Entendemos que o autor quis brincar com as palavras, de modo a chamar mais a
atenção dos pequenos leitores que, além da estampa que vem ao lado do poema, teriam
um texto com apelo visual para prender-lhes a atenção.
Em termos gerais, ponderamos que o poema parte de significações e
construções simples, que possam ser mais facilmente compreendidas pelas crianças,
que é seu público alvo. A poeticidade, aí, pode ser concebida através da atmosfera de
encanto que se apresenta no ato do brincar, da referência ao burrinho, à afabilidade que
permeia linhas e entrelinhas, bem como à experiência infantil em um mundo que é delas.
A mera citação aos bichos ou a apenas um, dentre tantas espécies, já nos remete a um
universo próprio das crianças, devido à proximidade que há entre eles, sobretudo pela
naturalidade que é uma característica de ambos.

Paginas Infantis (1908)


Presciliana Duarte de Almeida, como aponta Coelho (1984), foi uma mulher de
destaque no movimento cultural literário tendo desenvolvido ações importantes na
divulgação das novas ideias feministas e educacionais no final do século XIX e ao longo
do XX. Nasceu em Pouso Alegre/MG, mas sua vida literária aconteceu, principalmente,
em São Paulo e no Rio de Janeiro. De uma família letrada, a poetisa era prima das irmãs

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e escritoras Julia Lopes de Almeida (1862-1934) e Adelina Amélia Lopes Vieira (1850-
1923) e foi casada com o poeta e filólogo Sílvio Tibiriçá de Almeida (1867-1924).
De acordo com a enciclopédia Itaú Cultural (2020), Presciliana Duarte de
Almeida publicou, em 1890, seu primeiro livro Rumorejos, colaborou em periódicos
como Almanaque Brasileiro Garnier, A estação, Rua do Ouvidor e A Semana, e foi
fundadora, em 1987, e diretora, até 1900, da revista A Mensageira – “Revista Literária
dedicada à mulher brasileira”. No campo educacional, teve participação na revista
Educação no ano de 1902, e na revista Alvorada – do Grêmio Literário dos alunos
paulistanos do Ginásio Silvio de Almeida, em 1909 – ano em que se tornou membro –
fundador da Academia Paulista de Letras, onde ocupa a cadeira nº 8, escolhendo como
poltrona a da poetisa Bárbara Heliodora, sua tia-trisavó. Ademais, lança, em 1906, o
livro de poemas Sombras. Em 1908, Páginas infantis; em 1914, o Livro das Aves:
crestomatia em prosa e verso – impressos destinados às crianças em fase escolar. E,
em 1939, lança seu último livro de versos, Vetiver.
Páginas infantis (1908) foi adotada pelo Conselho de Instrução de São Paulo, de
Minais Gerais e do Distrito Federal, é constituída, na sua 1ª edição, por 32 poemas, 7
contos, 2 cartas, 15 enigmas (adivinhas) e pelas seções “Cartas honrosas”, Carta-
Prefácio”, “Prólogo” e “Juízo da imprensa”. Destinada ao ensino das escolas primárias
dos referidos estados, foi um marco precursor da literatura infantil brasileira, no início do
século XX. Esse livro pode se diferenciar dos livros de leituras publicados na época pela
preocupação da escritora com a qualidade literária dele, com uma mescla de gêneros
no seu interior. A capa é desenhada por Bento Barbosa e o texto é ilustrado por Jonas
de Barros, com impressão realizada na typografia Brazil de Rothschild & Co. Tal
informação é de extrema relevância para as publicações da época nas quais, em sua
maioria, não é possível localizar a referência ao ilustrador ou ao capista.
Nesse nosso percurso investigativo, verificamos a existência das seguintes
edições: a de 1908, primeira edição; a de 1910, 2ª edição, disponível no acervo da
biblioteca Monteiro Lobato em São Paulo; a de 1914, contida no Laboratório de Ensino
e Material Didático da USP (Lemad); e a de 1934 (5ª edição), acessível no acervo da
Academia paulistana de Letras. Dessa forma, não iremos nos deter na análise da seção
em apenas uma edição, tomaremos como estudos as edições de 1910, 1914 e 1934
para obter um estudo mais completo, já que há alterações entre as supracitadas
edições.

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Listamos a seguir as composições presentes no compêndio que abordam a
temática de bichos: “Livro Bonito”, “Cricri”, “Brinquedo Novo”, “A mostarda”, “Tosquiado”,
“O beija-Flor”, “O Sertanejo”, “Hino ás Aves”; as que também estão presentes no Livros
das Aves: “Uma joia”, “Na fonte”, “O flamingo”, “Desgôsto”, “A galinha d´Angola”, “O
João-de-Barros”, “A longevidade das aves”; as trovas: “Chio!”, “Mugido”, “Trova”; e os
Enigmas n. 1, 2, 5, 7,8, 10, 12 e 14.
Escolhemos para análise, neste momento, o poema “Tosquiado”, presente
apenas na edição de 1934. O poema colabora para a presença do aspecto lúdico no
impresso, ao apresentar um diálogo em que o carneirinho tem voz, assim dando um
toque fabular aos versos. Vejamos o poema na íntegra:

Tosquiado

- Ó meu alvo carneirinho,


Quem te cortou toda a lã?
- Foi a dona do rebanho,
Que faz baixeiros de lã
Que tem colmeia de abelhas,
Que sabe ser aldeã!

- Mé-é-Mé… - Meu cordeirinho,


Não ficas tristonho assim?
- Que esperança! Sou valente,
Não sou nenhum alfením;
Nova lã, crespa e formosa,
Verás por cima de mim…
Alegre irei pelos montes,
Beberei água nas fontes,
- Mé-é-Mé… que bom capim!
(ALMEIDA, p. 108, 1934)

Em relação ao arranjo estrutural, a composição poética divide-se em duas


estrofes, sendo uma sextilha e a outra uma nona. A versejadora faz uso de
onomatopeias para remeter à melodia realizada pelo carneiro, produzindo uma
sonoridade divertida que atrai e encanta o leitor. Tal recurso se repete, por exemplo,
nos poemas “Mugido” - usa-se o “Mú-ú-Mú…”(p. 42, 1934) para representar o som da
vaca, “A galinha d´Angola”, encontramos o “ Tô-fraco…tô-fraco...tô-fraco...tô-fraco…” (p.
96, 1934) e em “O Sertanejo” o “Pacatá… pacatá...pacatá…” (p. 137, 1934) para retratar
o galope do cavalo. Esse ludismo sonoro contribui para o enriquecimento artístico do
leitor ouvinte.

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Além do título do poema que remete a quem tem lã ou cabelo cortado rente, o
leitor tem contato com o conteúdo do poema por meio da ilustração e também pela
vinheta.

Figura 3 – Ilustração e vinheta do poema “Tosquiado”

Fonte: Acervo da Academia paulista de Letras, 1934.

Obedecendo a uma configuração típica da época, há na coletânea uma série de


vinhetas, que, em alguns casos, extrapolam o papel decorativo e revelam ter relação
explícita com os versos que acompanham, como é o caso do poema aqui analisado. No
mais, elas cumprem uma função de pontuação, sinalizando o enlace final dos poemas.
A ilustração que acompanha o poema cumpre a [...] função representativa, quando imita
a aparência do ser ao qual se refere; (CAMARGO, 1999, on-line, destaque do autor), ao
retratar o animal do poema.
A composição poética é toda escrita em versos de sete sílabas (redondilhas
maiores), sugerindo um ritmo, uma melodia e uma sonoridade bastante agradável ao
gosto do leitor mirim. Os versos de “Tosquiado” explicitam clara preocupação estética
no que diz respeito à sedução e ao deleite do destinatário infantil, ao contar que o
carneirinho não se entristeça por ter perdido sua lã, pois ela irá se renovar.

Considerações Finais
A solidificação de uma mentalidade literária que visse a criança como ela é,
notando seus anseios, sem concebê-la como um ser frágil e inerte, era imprescindível,
no entanto, não se deu habilmente, já que ainda hoje vemos compreensões que vão de
encontro a essa. A cultura da literatura pedagógica trazida da Europa persistiu por muito
tempo no Brasil, mesmo séculos depois de o continente dar o passo inicial para romper
com essas amarras. Valores como respeito e amor à família e à pátria, obediência e
caridade eram comumente localizados nos livros infantis, o que andava em oposição

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àquilo que seria recomendado como forma de aproximar meninos e meninas do texto
literário.
Como resultados, é possível inferir que os escritores se preocuparam com as
necessidades literárias dos meninos e meninas de então, já que é evidente o esforço
deles em aproximar o leitor à temática dos bichos. A nosso ver, os escritores, mesmo
preocupados com os intentos moralistas, sabiam que tais narrativas proporcionavam e
agregavam mais encanto à sua produção poética infantil. Poemas sobre animais
perpassam os séculos encantando várias gerações de ouvintes e leitores ao possibilitar
uma experiência estética ao mesmo tempo em que trata de questões didáticas.
Em pesquisas como esta, buscamos fazer com que produções como a de
Almeida e a de Köpke não caiam no esquecimento e, mais do que isso, objetivamos
reverter o apagamento delas, não concordando que sejam tratadas apenas como peças
de museu, bem como contribuindo para distorcer uma visão meramente estereotipada
de obras e de escritores que antecederam Monteiro Lobato (1882-1948) e a sua
produção, preenchendo lacunas históricas existentes dentro da área de pesquisas em
literatura infantil e juvenil brasileira.
Alguns poetas e poetisas – Presciliana Duarte de Almeida, Zalina Rolim e João
Köpke, principalmente – rompem com os esquemas tradicionais e sua linguagem torna-
se lúdica, irreverente e fragmentada, despertando no leitor um efeito novo, pois utilizam
a repetição, a sonoridade, o ritmo, o movimento, dentre tantos outros recursos. As
objetividades apresentadas nos poemas trazidos para análise nos mostram as relações
entre o sujeito criança e o ser animal, que depostas de uma elucidação que preze pela
racionalidade, podem revelar profundas subjetividades inerentes à vida dos pequenos.
Mesmo passados tantos anos após a escrita de Versos para os pequeninos (s/d),
de João Köpke, e Página infantis (1908), de Presciliana Duarte de Almeida, percebemos
que tanto o manuscrito, quanto o livro apresentam considerável inventividade, temáticas
diversas, assim como estampas e/ou ilustrações que dialogam com o texto verbal, este
que por muitas vezes dribla a pedagogização infantil. Pontos como esses são os que
embasam pesquisas como esta, que pela escassez de estudos dessa natureza nos
motivam trazer os nomes de autores como Köpke e Almeida para o âmbito acadêmico.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, P. D. Páginas Infantis. São Paulo: Escolas profissionais do Liceu Coração de
Jesus, 1934. Disponível no acervo da Academia paulista de Letras.

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ALVES, J. H. P. De olho nos bichos. In: AGUIAR, V. T.; CECCANTINI, J. L. (org). Poesia
infantil e juvenil brasileira: uma ciranda sem fim. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.

ARROYO, L. Literatura infantil brasileira. 3ª edição revisada e ampliada. São Paulo,


Editora Unesp, 2011, 408 p.

BENJAMIN, W. Livros infantis antigos e esquecidos. In: Magia e técnica, arte e política.
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GRUPO TEMÁTICO 4: A
LITERATURA JUVENIL E JOVENS
LEITORES

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
A REPRESENTATIVIDADE DE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NO
CONTO A GOTA D’ÁGUA (1999)

Amanda Eliane Lamônica Araújo, doutoranda em Estudos Literários /PPG-


Letras/UFMS
Dayse Galvão Souza Oliveira, mestranda em Estudos Literários /PPG-
Letras/UFMS

Eixo Temático: A literatura juvenil e jovens leitores

Considerações iniciais

A característica emancipatória da educação exige a pesquisa como método formativo, pela


razão principal de que somente um ambiente de sujeitos pode gestar sujeitos. (Pedro Demo)

A literatura possui caráter humanizador que perpassa por diferentes formas do


saber, sendo vista como um elemento intransferível e privilegiado na formação de
leitores críticos e autônomos, proporcionando ao homem o aprimoramento de seus
conhecimentos e percepções frente à realidade e suas relações com o meio. Pelo
mesmo viés, o autor Antônio Cândido (1995, p. 244) conceitua-a como princípio de
humanização do homem, a qual possui pelo menos três aspectos: “[...] é uma
construção de objetos autônomos com estrutura e significados, é uma forma de
expressão e de conhecimento”.
Nesse sentido, verificamos que a literatura é uma arte inacabada e sempre em
construção, favorecendo ao homem por meio das artes o seu pleno desenvolvimento
social, cognitivo, cultural e político, ou seja, um sujeito dotado de uma educação integral,
como também orienta o documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ao
tratar a educação integral como um propósito de formação e desenvolvimento global
dos estudantes, compreendendo “[...] a complexidade e a não linearidade desse

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desenvolvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam ou a dimensão
intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva” (BNCC, 2017, p. 14).
Sendo assim, depreendemos que o texto literário na formação do sujeito leitor é
de suma importância, pois caracteriza-se como um elemento que colaborada com a
aprendizagem em diversas nuances, conforme aponta Roland Barthes (1987) sobre o
prazer proposto pela leitura ao romper com a questão estrutural do texto, já que o ato
de ler deve envolver-se em momentos de emoção, fazendo com que o leitor necessite
ser cativado pelo texto, “[...] é a fruição vista das margens do prazer” (1987, p. 35), ou
seja, a emoção que o texto provoca no leitor está associada ao prazer que o facilita e
contribui satisfatoriamente sua relação com os códigos do mundo. Por esse
entendimento, Bordini e Aguiar (1993, p. 09) descrevem que o homem se reconhece por
meio da linguagem, haja vista que ela nasce com a convivência humana e com a troca
de experiências.
Sendo assim, este trabalho evidencia-se como um convite de leitura literária ao
público leitor como forma de reflexão a partir das situações vivenciadas pelas
personagens ao longo da narrativa mediante estabelecimento das relações
interpessoais, socioculturais e comunicativas. Por esse caminho, entendemos que a
escola assume importante função na formação crítica, reflexiva e participativa do
estudante a partir do desenvolvimento da leitura literária em sala de aula, considerando
o fato da literatura relacionar-se com as diversas formas de manifestações.
Nesta perspectiva, representaremos as práticas pedagógicas que tangem o conto
A Gota d’Água (1999), escrito pelo professor e pesquisador, Rauer Ribeiro Rodrigues,
que traz no contexto da obra discussões que transitam pelo ambiente escolar a partir da
representação dos personagens que exemplificam a realidade, perfil de profissionais,
bem como as dificuldades encontradas pelos docentes na construção do novo
conhecimento, considerando abandonar as práticas pedagógicas tradicionalistas por
meio da ousadia de metodologias que permitem colocar o estudante como protagonista
da sua própria aprendizagem.
Nesse contexto de ideias, utilizamos como referencial teórico os estudos de
Bordini e Aguiar (1993) para explorar os diferentes métodos de leitura que podem ser
utilizados como proposta didática, as considerações de Lajolo (2006) e Zilberman (1982)
para retratar a importância da escola e das práticas literárias na formação do leitor, as
reflexões de Antonio Candido (1985) acerca da literatura, as ponderações de Moisés
(1992), Reis e Lopes (1988) para abordar as temáticas tratadas no conto, a fim de
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analisarmos os pontos de contato utilizados para representar as práticas pedagógicas
com base numa perspectiva relacionada ao contexto escolar.

Literatura infanto-juvenil na escola: práticas de formação literária


A função essencial da literatura está intimamente ligada à sua atuação sobre o
pensamento humano, transmitindo ao leitor a oportunidade de ampliar, transformar ou
enriquecer sua própria experiência de vida. Nesse sentido, a oferta da literatura na
escola assume um papel importante, pois permite ao estudante à formação em leitor
literário a partir da possibilidade e motivação das práticas de leitura literária na sala de
aula para além da decifração dos códigos linguísticos. Em consonância, Tatiane
Montanher (2019, p. 39) entendem que “A escola tem de fazer com que o leitor tenha
uma participação ativa, proporcionando a ele contato com textos literários que
promovam a reflexão cultural no estudante”.
Para Bordini e Aguiar (1993, p. 17), “à medida que o sujeito lê uma obra literária,
vai construindo imagens que se interligam e se completam, também se modifica apoiado
nas pistas verbais fornecidas pelo escritor e nos conteúdos de sua consciência”,
portanto, “não só intelectuais, mas também emocionais e volitivos, que sua experiência
vital determinou”.
Percebemos dessa maneira que a leitura de livros e textos de gêneros variados
proporciona ao leitor o conhecimento de mundo, criando relações e manifestações por
meio da prática da oralidade e escrita, estabelecendo relações sócio-comunicativas. Em
outras palavras, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) estabelecem o seguinte:

O trabalho com a leitura tem como finalidade a formação de leitores


competentes continuamente a formação de escritores, isto é, a
produção de textos eficazes com origem na prática de leitura, espaço
de construção da intertextualidade e fonte de referências
modelizadoras. A leitura, por um lado, nos fornece a matéria-prima
para a escrita: o que escrever. Por outro, contribui para a constituição
de modelos: como escrever. (BRASIL, 1997, p. 40)

Diante do valor da prática da leitura como ferramenta primordial na formação de


leitores capazes de inferir diversos significados e sentidos de um texto, conforme
elucidado nos PCNs, depreendemos que o exercício constante da leitura literária
compõe para o leitor atento e crítico, um quadro representativo do mundo a sua volta ao
qual aspira conhecimento, e exatamente neste sentido, a escola como instituição que

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articula e media o conhecimento, deve favorecer ao sujeito a aproximação constante da
prática da leitura e sua valorização.
Sobre o compromisso social que compete à escola, no que se refere ao ato de
ensinar a ler, Zilberman (1982, p. 17) esclarece que:

Ler confunde-se, pois, com a aquisição de um hábito e tem como


consequência o acesso a um patamar do qual não mais se consegue
regredir; porém, a ação implícita no verbo em causa não torna nítido
seu objeto direto: mas ler o quê? Desta maneira, o cerne da leitura não
se esclarece para o aluno que é beneficiário dela [...] sabendo ler e não
mais perdendo esta condição, a criança não se converte
necessariamente num leitor, já que este se define, em princípio, pela
assiduidade a uma instituição determinada – a literatura.

Portanto, quando a escola oportuniza momentos com atividades de socialização


e, permite ao leitor trazer para o seu mundo “os significados percebidos e coletiviza a
leitura no debate com o grupo e na criação de outras formas expressivas” (AGUIAR,
2006, p. 258), ela está praticando sua função social de criar e fortalecer hábitos de leitura
nos estudantes.
Assim, conforme apontamentos feitos por Lajolo (1993), a escola é tida como um
espaço que valoriza o exercício da liberdade de pensamento diante das expressões
artísticas:

É importante frisar também que a prática de leitura patrocinada pela


escola precisa ocorrer num espaço de maior liberdade possível a
leitura só se torna livre quando se respeita ao mesmo em momentos
iniciais do aprendizado, o prazer ou a aversão de cada leitor em relação
a cada livro. (LAJOLO,1993, p. 109)

Desse modo, entendemos que a escola em suas práticas de ensino e


aprendizagem, em especial, aos aspectos relativos à leitura literária, deve proporcionar
ao estudante uma formação de leitor crítico, capaz de raciocinar de forma argumentativa
frente os diferentes tipos de livros e textos, para compreender as diferentes
possibilidades de leituras e as múltiplas facetas da realidade que o cerca.

Método recepcional: uma proposta didática


Bordini e Aguiar (1993) abarcam discussões baseadas nas teorias de Jauss
como a principal proposta metodológica para a formação de um leitor literário, pois
acreditam que “no ato de produção/recepção, a fusão de horizontes de expectativas se
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dá obrigatoriamente, uma vez que as expectativas do autor se traduzem no texto e as
do leitor são a ele transferidas” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 83).
Sobre esse assunto, Montanher (2019, p. 49) entende que:

[...] o principal objetivo desse método em relação ao aluno é efetuar


leituras compreensivas e críticas; ser receptivo a novos textos e à
leitura do outro; questionar as leituras efetuadas em relação a seu
próprio horizonte cultural; transformar os próprios horizontes de
expectativas bem como os do professor, da escola, da comunidade
familiar e social.

A aplicação do método recepcional de Jauss proposto por Bordini e Aguiar


(1993), propicia ao professor em suas práticas pedagógicas sugerir como atividade a
leitura literária aos estudantes, partindo do entendimento que o aluno/leitor é o ponto
principal e, por isso, necessita manipular diversos tipos de textos e obras literárias,
realizando inferências e diálogos entre textos e contextos para firmar sua participação
ativa no processo de aquisição de sua formação leitora, nutrindo seu imaginário e
(re)construindo diferentes significados na sua formação literária.

Conto: algumas considerações


Massaud Moisés (1992) esclarece que o conto concretiza-se por meio de
conflitos, drama e ação, surgido a partir da relação entre duas ou mais personagens. O
autor afirma que “a literatura opera exatamente no plano em que o homem encara a
vida como luta, tomada a consciência da morte e da precariedade do destino humano”,
desta forma “quanto mais indaga, mais se inquieta, num permanente círculo vicioso”
(MOISÉS, 1992, p. 20). A partícula dramática gira em torno de um único conflito, já que
“todos os ingredientes do conto levam a um mesmo ponto” (MOISÉS, 1992, p. 20).
Ainda sobre as características do conto, Luzia de Maria (1992) descreve que a
narração oral surgiu como forma primitiva do conto “frequentando as noites de lua em
que antigos povos se reuniam para matar o tempo, narravam ingênuas estórias de
bichos, lendas populares ou mitos arcaicos” (MARIA, 1992, p. 08).
Atualmente, o gênero em questão conquistou um método simples, “expressão
do maravilhoso, linguagem que fala de prodígios fantásticos”; construindo desse modo,
sua função social de gerações em gerações, “adquirindo uma formulação artística,
literária, escorregando do domínio coletivo da linguagem para o universo do estilo
individual de um certo escritor” (MARIA, 1992, p. 10).

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Ricardo Piglia (2004, p. 90) revela que por trás de uma história visível em um
conto pode esconder uma história secreta quando é narrada de um modo elíptico e
fragmentário. Desta forma, o conto é construído para fazer aparecer artificialmente algo
que estava oculto, reproduzindo a busca sempre renovada de uma experiência única
que nos permita ver, sob a “superfície opaca da vida”, uma “verdade secreta”:

O conto sempre conta duas histórias. O conto clássico narra em


primeiro plano a história 1, o relato do jogo, e constrói em segredo a
história 2, o relato do suicídio. A arte do contista consiste em saber
cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível
esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e
fragmentário. O efeito de surpresa se produz quando o final da história
secreta aparece na superfície. (PIGLIA, 2004, p. 90)

Para Gotlib (1985) este gênero tem em comum o modo de contar algo, a
narração realizada através dos acontecimentos de interesse humano. Este
acontecimento é cotidiano e não tem compromisso fiel com o real, o que existe é uma
aproximação e um afastamento da realidade, pois ficção é imprecisa, como afirma a
autora, “não importa averiguar se há verdade ou falsidade: o que existe é já a ficção, a
arte de inventar um modo de se representar algo”. (GOTLIB, 1985, p. 11)
Diante das contribuições teorizadas pelos autores citados anteriormente, sobre
o gênero “conto”, podemos compreender que cada autor ao produzir seu conto parte de
suas singularidades de produção artísticas, como Edgar Allan Poe, criador do conto de
terror e policial; James Joyce ao trazer os momentos de epifania; e o brasileiro Machado
de Assis com seu conto dúbio, apresenta ao seu leitor dúvidas sem soluções.
Por fim, observamos uma série de contos produzidos com representatividades
diversas, assim compete ao leitor ativo e crítico, acrescentar suas aspirações e seu
conhecimento sociocultural de mundo na compreensão do texto.

Evidências de práticas pedagógicas no conto A gota d’água (1999)


Cabe neste momento, discutirmos sobre a obra que forma o corpus de estudo
deste trabalho, isto é, o conto A Gota D’água (1999) do professor e pesquisador Rauer
Ribeiro Rodrigues. A referida obra expõe a miudeza das questões humanas ao mesmo
tempo em que felicita a grandeza dos pequenos atos, além de fazer transbordar no teor
da imaginação e na significância do que seja o prazer da docência, uma narrativa com
detalhes capazes de transformar um calmo lago em um mar agitado e turbulento.

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Na tentativa de classificar o conto em questão, caracterizamo-lo como “conto
popular”, que segundo Lima (1952, p. 16) trata-se das fábulas e histórias que ouvimos
desde a infância.
Sabemos que a imprevisibilidade do conto apreende a atenção do leitor todo o
tempo, esperando no intimo a redenção e o perdão, acreditando que o bem
transcenderá e o novo será estabelecido e, é neste percurso que a narrativa é
construída: uma jovem professora, recém-formada, cheia de ideias e concepções,
proporciona aos seus educandos uma aprendizagem dirigida, focada nas relações entre
o homem e o meio no qual está inserido, pois acredita que não há aprendizado sem a
prática, sem o contato, sem o vislumbre da inovação, conforme evidencia o trecho
abaixo:

[...] me proponho a criar condições para que o aluno construa o


conhecimento. Quando fazemos a atividades dos canteiros, eles
descobrem o crescimento das plantas, a diferença na coloração, como
é o ciclo da vida, pesquisam propriedades nutritivas, analisam
rugosidades, textura, tiram conclusões. (RAUER, p. 35)

Observamos que o conhecimento transmitido pela professora é promovido e


produzido pelos próprios educandos, ou seja, o estudante torna-se o protagonista da
sua própria aprendizagem, sugerindo a escola como um lugar instigante de descobertas
e aprendizagens. Assim, a prática metodológica utilizada pela professora Liana é
concebida por meio do amor e da dedicação, sem as prévias teóricas e tradicionalistas
que invocam a abstração dos conteúdos ao invés de denotá-los e aproximá-los aos
agentes do objeto de estudo numa perspectiva pedagógica conduzida nas vivências
cotidianas que promovam de fato uma aprendizagem significativa para a vida do
estudante e não apenas como cumprimento de uma atividade enfadonha.
No cenário da educação brasileira, podemos fazer alusões ao conto referendado
frente à atual concepção pedagógica, uma vez que ainda prevalecem métodos
tradicionalistas e acima de tudo, a resistência ao novo conhecimento teórico-científico,
tendo em vista que muitos professores ainda utilizam de metodologias defasadas que
veem o estudante apenas como um simples espectador, copiador e reprodutor de
informações, muitas vezes preso ao uso quase que exclusivo do livro didático, à
realização de exercícios mecânicos que prezam apenas pela sua memorização, e em
que há apenas uma reposta correta, a do professor, que juntamente com a escola, falha

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ao não reconhecerem que este indivíduo possui uma experiência não só de vida, mas
também de mundo mediante sua própria sua vivência e experiência.
Todas essas observações entrevem que existem pelo contexto educacional
muitas Lianas, Nersacs, Concpecións e Agonais, tendo em vista que a caracterização
destas personagens evidenciam o perfil de muitos profissionais existentes no âmbito
educacional, que agem exatamente, da mesma forma, seja na resistência em aceitar o
novo conhecimento em relação à prática tradicionalista, ou ainda inerente àqueles
professores que lecionam enraizados em métodos que não oportunizam construir
conhecimentos e formar estudantes críticos, criativos e autônomos, capazes de se
posicionarem de forma responsável diante do mundo e da vida
Diante desse contexto de ideias, percebemos que a escola onde a professora
Liana leciona, utiliza de uma perspectiva metodológica pautada nos princípios
tradicionalistas, conforme a fala da diretora Agonai: “Muitos modismos educacionais vão
e voltam enquanto nosso critério de ensino continua o mesmo porque é vitorioso.”
(RAUER, p. 19)
Compreendemos que no conto as personagens são descritas em conformidade
com suas personalidades, assim como seus nomes afloram e instituem suas respectivas
condutas e suas prováveis atitudes no desfecho do conto: “Nersac; era uma freira
miúda, progressista, cartesiana [...] Talipos era hábil nas composições políticas, omitia-
se quando necessário, extraia poder ao manipular o poder que seu cargo lhe conferia”;
“[...] Liana pediu licença. Era jovem, olhos vivos.” (RAUER, p. 14-15)
O narrador observa e relata os fatos com precisão de um mestre de obras,
delineando cada aspecto, a fim de apresentar ao leitor uma atmosfera de tensão, por
meio da sensibilidade e da imaginação de quem necessita internar-se no panorama e
ser parte do todo. Por esse prisma, entendemos que a linguagem utilizada nessa obra
e suas sugestões no mundo das ideias correlacionando os personagens a história da
humanidade, reflete a riqueza e a visão de mundo empregada pelo autor. Tal percepção
deixa transparecer o ensino como algo que excede as paredes da sala de aula, assim
como a água quando ocupa todos os espaços.
Palavras como serviçal, progressista, cartesiana, Galileu e dilúvio são alocadas
com destreza e minuciosidade para informar aos ledores a densa filosofia e cientificismo
dentro do recinto escolar responsável pela aprendizagem significativa do estudante,
respeitando suas particulares, singularidades e vivências de mundo e da realidade à

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qual está inserido. Nesse sentido, compreendemos que a pluralidade deve se antepor
ao tradicionalismo agressor.
O autor utiliza-se da metalinguagem para ilustrar o conto e, assim, enriquecer o
conteúdo estético da obra, haja vista que nomes de escritores como Antônio Vilela,
Dalton Trevisan, Fernando Sabino e Joao Alphonsus são citados como nomes de salas
de aula. Por este ângulo, podemos denotar a importância da leitura e da literatura no
cenário educacional como agente promotor de conhecimentos e descobrimentos, de
forma a favorecer o processo de humanização dos estudantes em um contexto muitas
vezes tão negligenciado por educadores e unidades escolares ao não reconhecerem a
relevância de se adotar métodos baseados em leituras literárias como propiciadores de
criticidade científica.
A descrição do ambiente entorna o desfecho da narrativa num tenso clima de
indignação. Sala, antessalas e portas pesadas defrontam a seriedade do momento e a
rigidez nesta cena, que talvez poderia receber o nome O Julgamento de Liana,
considerando a cena: “Nevarim arrumou as flores na escrivaninha e achou que estava
bom. Limpou a mesa, dispôs papel de rascunho e canetas. Tudo impecável. Irmã Agonai
não admitiria deslize [...] A serviçal abril a pesada portado gabinete.” (RAUER, p. 13-14)
Por conseguinte, entendemos a água como a simbologia empregada no conto,
visto que de antemão já aparece no título, adentrando a ficção em variados momentos,
atribuindo-lhe um anseio especial de contorno e desfiguração, edificando e destruindo
alicerces, conforme acontece quando “Oferecendo água, Nevarim percebeu os
semblantes carregados [...]” (RAUER, p. 15).
A questão da água foi também o tema da problemática em que a professora
Liana é tida como a responsável, já que perante sua prática pedagógica inovadora de
construir um canteiro de hortaliças dentro da sala de aula, onde “cada aluno cuida de
uma plantinha” (RAUER, p. 20), fez com que à medida em as regas d’água foram sendo
feitas, o teto do gabinete da sala da diretora cedesse, já que fica embaixo da sua sala
de aula.
Além do que, bem neste dia visitava a escola, “[...] o presidente da Poor
Studante‘s Foundation. Mister Robert é canadense e veio da África [...] Ele está
escolhendo uma única instituição brasileira para destinar trezentas bolsas de estudo”. e
segundo relato da coordenadora Talipos “no instante exato em que o visitante estava
nesse gabinete, a água das experiências e do desleixo da professora Liana, rompeu
bem sobre a cabeça de Mister Robert”. (RAUER, p. 22)
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Diante dos fatos apresentados à Doutora Concepción, “recém empossada
presidente da Associação de Pais e Mestres” (RAUER, p. 13), a professora Lia diz
lamentar o “contratempo” (RAUER, p. 17). Contudo, a diretora Agonai entende tal feito
como “Foi A Gota D’água. Alias, foi um dilúvio, uma tempestade” (RAUER, p. 15). Com
isso, iniciasse a reunião, momento crucial para a jovem professora, resoluta no seu
estado de ré, no julgamento da sua conduta docente. Pastas, relatórios, relatos,
complacências e acusações fazem parte da trama, além da frase “Seria um encontro
tenso” (RAUER, p. 13) já antecipar a possível ideia do que poderia acontecer.
A perda do emprego seria evidente, tendo em vista o fato de a escola sustentada
em métodos tradicionalistas, não admitir uma possível quebra de paradigmas em razão
às inovações pedagógicas que tangem o contexto contemporâneo, como descreve o
fragmento: “Temos normas rígidas na condução dos nossos alunos. Nossa proposta
pedagógica é bem definida, aprovada por gerações sucessivas que passaram por nossa
escola e alcançaram sucesso” (RAUER, p. 19).
Todavia, o admirável trabalho realizado pela professora Liana foi reconhecido, já
que as evidencias comprovam que somente sua sala de aula teve aumento no número
de alunos em relação às demais, que apenas apresentaram perdas, conforme podemos
perceber no trecho: “[...] caíram de sessenta e oito para cinquenta e dois. Já a classe
da Lia subiu de dezoito para vinte e oito alunos” (RAUER, p. 25). Diante disso, sua
conduta não pôde ser subjulgada, sendo esta sua salvação.
O tradicional versus o inovador, muitas vezes provoca desconforto, medo,
tragédias, acusações. A água que produz vida é a mesma que se infiltra em todos os
lugares e gera aluviões de emoções, sensações e expectativas. De tal modo, que não
se conteve na sala da professora Liana e chegou a outros recintos. A água não
desfraldou a sua essência, apenas foi condizente com a sua função: se infiltrar e roer
as velhas engrenagens. Dando aparato para a reconstrução do novo.
Diante dessa análise do conto A Gota D’agua (1999), podemos averiguar e
perceber o quão é inefável o encanto da literatura em dar credibilidade e ênfase à
realidade, na qual muito dos docentes enfrentam, nos mais distintos meios pedagógicos.

Considerações finais

Compreendemos que toda a temática abordada vem de encontro com a proposta


da leitura do conto A Gota d’ Água (RAUER, 1999), pois explora uma leitura literária de
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ficção que aborda as temáticas relacionadas às práticas pedagógicas vivências no
âmbito escolar por professores e diretores que desempenham um papel de grande
relevância social e na formação integral do sujeito.
A proposta de leitura infanto-juvenil e adulta aqui apresentada parte do método
recepcional, abordado por Bordini e Aguiar (1988), que coloca o aluno no centro do
desenvolvimento e aquisição de suas competências leitoras, de forma a participar com
criticidade e expectativas nas diferentes formas de interpretação da história narrada e
representada pelas ações das personagens que se desenham ao longo da narrativa,
com suas particularidades, ações, conflitos e a trama.
Todas as situações elencadas na trama do conto proporcionam ao leitor uma
reflexão profunda quanto às atitudes do ser humano frente às posições e ações de
construções e práticas positivas em meio ao comodismo e posturas negligenciadas
tanto nos aspectos pessoais e profissionais vivenciados nas relações interpessoais.
Portanto, o texto traz a baila discussões que transitam pelo ambiente escolar por
personagens que exemplificam a realidade, perfil de profissionais e a luta da construção
do novo, da ousadia versus mesmice, e da acomodação nas práticas pedagógicas.
Por fim, compreendemos que os agentes escolares têm por missão abrir as
janelas, ou seja, as comportas do conhecimento, facilitando o aprendizado, fazendo os
alunos alcançarem voos altos no universo do saber, demonstrado por meio da
criatividade, ações reflexivas e discursivas, promovendo a interação como meio físico e
social do educando por meio do diálogo professor-aluno, não se limitando a uma simples
troca de ideias, devendo ser este o maior empenho do educador.

Referências

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2002. (trabalho originalmente publicado em 1973).

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Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEE, 1997. Disponível em:
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NOVAS HISTÓRIAS NA LITERATURA INFANTOJUVENIL:
HISTÓRIAS DA PRETA, HISTÓRIAS DA CAZUMBINHA E O
AFROFEMINISMO75

Andreza Oliveira Rocha76 (PPGEL/UNEB)

Eixo Temático: Grupo Temático 4: A Literatura Juvenil e Jovens Leitores.

Preta e Cazumbinha: introduzindo novos olhares sobre a literatura


infantojuvenil
A Literatura Infantojuvenil (LIJ77) é um gênero literário que desperta
encantamento pela capacidade em abordar temas de cunho social com uma leveza
singular a fim de cativar seus leitores, a partir do deleite da narrativa verbal
acompanhado do vislumbre imagético das ilustrações.
A pesquisa realizada parte do estudo das obras literárias Histórias da Preta
(1998) de Heloisa Pires Lima com ilustrações de Laurabeatriz e Histórias da
Cazumbinha (2010) de Meire Cazumbá, ilustrado por Marie Ange Bordas. A partir daí
pretende-se analisar e compreender nas narrativas a construção identitária das
personagens protagonistas, bem como a forma com que a afirmação dessa identidade
contribui para o empoderamento de meninas negras, averiguando o desencadeamento
desse processo na Literatura infantojuvenil.

75
Este artigo é resultante de uma adaptação da Monografia de Conclusão de Curso intitulada
Novas histórias na literatura infanto-juvenil: Histórias da Preta, Histórias da Cazumbinha e o
protagonismo afrofeminino, orientada pela Prof Dr Renata Maria Souza do Nascimento e
apresentada em 12/2018 por Andreza Oliveira Rocha para obtenção do grau de Licenciada em
Letras Vernáculas pela UNEB/Campus XXIII, Seabra-Ba.
76
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens (PPGEL), pela
Universidade do Estado
da Bahia (2020), bolsista CAPES, e-mail: andrezaoliveira5449@gmail.com. Orientada pelo Profº.
Dr. Marcos Aurélio dos Santos Souza (PPGEL/UNEB).
77
Doravante, adotaremos a sigla LIJ toda vez que nos referirmos a terminologia Literatura
Infantojuvenil.
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A hipótese que aqui se almeja defender pressupõe que, apesar da proximidade,
as obras em estudo - Histórias da Preta (HP78) publicada antes da Lei 10.639/2003 e
Histórias da Cazumbinha (HC79) publicada posteriormente- abordam temáticas
semelhantes de maneiras diferentes. Para analisar essas produções faz-se uso do
método comparativo, com base em Tania Maria Franco Carvalhal e seu livro Literatura
Comparada (2006), em que a autora aborda alguns aspectos que são particulares à
metodologia, enfatizando que “o método (ou métodos) não antecede à análise, como
algo previamente fabricado, mas dela decorre”. (CARVALHAL, 2006, p. 7).
Com base nessa proposta, os objetivos compreendem abordar a relação da LIJ
com a perspectiva da infância a partir de um breve panorama sobre as concepções da
infância, sobretudo na contemporaneidade, período em que as narrativas foram
publicadas, seguido de uma discussão acerca da indissiociabilidade do texto não verbal
com a narrativa verbal na LIJ. Para isso, contribuirão os estudos de Postman (2012) e
Azevedo (1998). Em seguida, o texto aborda a representação feminina negra na
infantojuvenil, averiguando de que modo as publicações em estudo rompem com visões
estereotipadas da menina negra na literatura, abarcando a aplicabilidade da Lei
10.639/2003 que se efetiva nas narrativas, assim como a importância que há na
discussão da temática étnica-racial e de gênero feminino nos espaços de leitura. Por
fim, este trabalho discute a visão social da LIJ, que por vezes foi vista como mero
entretenimento ou apenas como veículo didatizante, - Coelho (2000) - em contraponto
à ludicidade, que, como propõe Huizinga (2007), atua como elemento preponderante a
qualquer faixa etária da vida humana.

As histórias são contadas...


As concepções de infância advêm de uma construção social, caracterizadas
pelos períodos históricos e determinadas pelas condições sociais, econômicas e
políticas referentes a cada período. Com a modernidade e o início da
contemporaneidade é que se começou a construir a concepção de infância que se
assemelha aos dias de hoje, assegurando os direitos no que se refere, por exemplo, à

³Doravante, adotaremos a sigla HP toda vez que nos referirmos a LIMA, Heloísa Pires. Histórias
da Preta. 1. ed. São Paulo: Companhia das letrinhas 1998. v. 1. 71p.
79
Doravante, adotaremos a sigla HC toda vez que nos referirmos a CAZUMBÁ, Meire; BORDAS,
Marie Ange. Histórias da Cazumbinha. Concepção e fotoilustrações de Marie Ange Bordas com
a colaboração das crianças do quilombo Rio das Rãs. São Paulo: Companhia das Letrinhas,
2010. 72p.
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não violência, ao acesso à educação, aos cuidados sociais, com a saúde, entre outros.
Todavia, é possível notar na contemporaneidade e, sobretudo, com o desenvolvimento
tecnológico, que um movimento reverso vem sendo constituído a tal ponto que pode
desencadear o não discernimento sobre o que necessariamente deve ser considerado
“para criança” e/ou “para adulto”. Como exemplo, notam-se os objetos de
entretenimento que antes eram restritos para adultos e que hoje se tornaram brinquedos
de criança, como os aparelhos celulares. Neil Postman (2012) discute em seu livro O
Desaparecimento da Infância sobre o processo de extinção das concepções de infância,
e dentre as evidências citadas pelo autor destaca-se os “[...] próprios meios de
comunicação, pois eles não só promovem a desmontagem da infância valendo-se da
forma e do contexto que lhes são peculiares mas também refletem esse declínio em
conteúdo” (POSTMAN, 2012, p. 134). Cabe destacar que há uma controvérsia sobre as
atividades caracteristicamente vistas como obrigatórias, como a realização de tarefas,
que, na infância, mesmo vinculadas à educação, por vezes está dissociada da
ludicidade, construindo socialmente um imaginário de que o que é tratado com
seriedade deve ser apresentado para as crianças em primeiro plano, em contraponto
com os elementos de entretenimento que passam a ocupar segundo ou terceiro planos.
Outro elemento que circula o universo literário juvenil e sobretudo infantil são as
ilustrações, seja como meio atrativo, pedagogizante ou como entretenimento, o desenho
é elemento preponderante no ambiente infantojuvenil, e, com as produções analisadas,
não seria diferente. De acordo com o escritor e ilustrador Ricardo Azevedo (1997), “na
literatura infantil há textos que prescindem da imagem e outros onde texto e imagem
são indissociáveis” com a principal função de “fugir da leitura literal e ampliar o universo
significativo do texto.” (AZEVEDO, 1997, p. 5). Nesse sentido, compreende-se que HP
e HC são obras que acarretam esse efeito de sentido, pois transcende a interpretação
do leitor para além da mera representação, ora mais ou menos nítida, mas não menos
significante para as discussões abordadas em cada livro.
Em Histórias da Cazumbinha, as autoras Merie Cazumbá e Marie Ange Bordas
apresentam uma obra pensada a partir de uma dupla autoria- Cazumbá assume o texto
verbal, e Bordas, o texto imagético. As fotografias correspondem ao cenário em torno
do quilombo das Rãs, que faz parte do município de Bom Jesus da Lapa-BA enquanto
os desenhos são ilustrações produzidas pelas crianças da comunidade, abordando
sobretudo, aspectos acerca da contação de histórias, singulares à comunidade. Os
aspectos físicos que correspondem a caracterização da personagem Cazumbinha não
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se sobressaem na produção, visto que o enfoque da narrativa é descrever a infância no
quilombo pelo olhar da criança sobre a realidade que a cerca. Desse modo, a
personagem aparece imageticamente representada por imagens fotográficas de
crianças (em partes) como pés e cabelo, bem como por ilustrações produzidas pelas
próprias crianças.
Em Histórias da Preta, a autora do texto verbal se faz narradora das histórias,
utilizando uma linguagem leve e simples para abordar as questões étnico-raciais. A
narrativa é iniciada com a apresentação da personagem Preta, uma criança negra, que
deseja compreender suas origens e o porquê dos termos pejorativos que circulam em
torno de sua cor. A história descreve suas atividades costumeiras de crianças, seus
gostos e desgostos,
e principalmente, seu questionamento sobre como as pessoas não negras a
tratam, se perguntando “como é não ser preto? ” Assim, a protagonista inicia os estudos
sobre suas origens, partindo do pressuposto de que sua cor deriva dos seus ancestrais.
Os textos em análise apresentam uma abordagem simultânea da linguagem verbal e a
imagética, acessível para jovens a partir dos 10 anos de idade, que, de acordo com
Coelho (2000), nesta fase se dá
A consolidação do domínio dos mecanismos de leitura [...] que segue
apoiada pela reflexão; a capacidade de concentração aumenta,
permitindo o engajamento do leitor na experiência narrada e, [...]
desenvolve-se o pensamento hipotético dedutivo e a conseqüente
capacidade de abstração. O ser é atraído pelo confronto de ideias e
ideais e seus possíveis valores ou desvalores. (p. 37, grifo do autor)

Porém, as ilustrações que compreendem HP são abordadas de forma distinta


em relação a HC, considerando o período de publicação de HP (1998), a ilustração dos
livros infantis era de responsabilidade editorial e era um trabalho dissociado da escrita
do texto verbal. Assim, pressupõe-se que Laurabeatriz realizou as ilustrações de
Histórias da Preta posteriormente à escrita de Heloisa Pires Lima, o que justifica
algumas lacunas no diálogo entre o texto verbal e não verbal, visto que, por vezes, a
imagem reproduz o texto verbal, como acessório e apresentam-se com caráter
enciclopédico, em que o texto verbal descreve a cena, o cenário e as ações, enquanto
a ilustração reproduz. Entretanto, em HC, nota-se um trabalho de dupla autoria,
considerando que no período de publicação da obra, os direitos autorais equiparados e
as ilustrações nascem dos projetos desenvolvidos pelas autoras no quilombo em que
se passa a narrativa.

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As técnicas utilizadas por Laurabeatriz compreendem a pintura em pastel e na
obra em análise caracteriza-se pelo uso de pigmentos em bastão ou em lápis, em uma
superfície de textura não lisa, e, por não ser de fácil fixação, requer o uso de um spray
específico posteriormente para tal. Ao analisar as imagens de HP, é perceptível o
traçado borrado, em que as cores não se sobressaem uma em relação a outra, e por
muitas vezes estão mescladas, com bordas pouco delimitadas.
Desde a ilustração inicial- a capa (Figura 01) é possível inferir o tom de seriedade
que é dado a narrativa, pois Preta é ilustrada de perfil, como um retrato em primeiro
plano, e, apesar das expressões faciais que transparecem cumplicidade, não
possibilitam muitas aberturas à aproximação do leitor, considerando a sobriedade que
o desenho da personagem apresenta.

Figura 01. Fonte: LIMA, Heloísa Pires. Histórias da Preta. 1. ed. São Paulo: Companhia
das letrinhas 1998. v. 1. 71p.

O plano de fundo compreende uma praia, em que a personagem


supostamente encontra-se dentro de uma embarcação, o que sugere um diálogo com a
narrativa, que se constitui por “Histórias da Preta” a partir das viagens da personagem.
O azul é a cor predominante, oscilando entre tons mais claros referente as águas, em
contraponto com o tom mais escuro do céu. A ilustração apresenta-se em página cheia
o que remete a ideia de continuidade do cenário, considerando que as mesclas de
branco no azul da água sugerem o movimento e o entrecruzar das embarcações que
parecem chegar e sair da página.

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Ao analisar a capa de HC (Figura 02), observa-se que a leitura parte de uma
percepção cíclica, em que o leitor inicia observando a frente do cenário, a parte inicial
da casa, e a contracapa remete aos fundos da residência. A capa apresenta-se como
plano geral, enquanto a contracapa, em plano médio do cenário enfatizado. O diálogo
dos desenhos infantis com as fotografias evidencia-se com a foto de um homem
montado em um cavalo e uma ilustração do mesmo modo, ambos em primeiro plano,
cada um em uma direção, o que sugere movimento, tanto pela pata levantada do cavalo
em desenho, quanto pela fotografia que não aparece por inteiro e ainda pelas faixas
coloridas, onde cada cavalo encontra-se em uma faixa distinta.
Em forma de desenho, é possível observar ainda alguns peixes (que seguem a
ideia de movimento), uma pequena planta, uma borboleta e um pássaro, que, apesar
de serem pequenos e apresentarem-se como detalhes à capa, oscilam entre cores
quentes e frias e sugerem um diálogo com o cenário em que se passa as histórias,
assim como com o plano de fundo- as margens de um rio.

Figura 02. CAZUMBÁ, Meire; BORDAS, Marie Ange. Histórias da Cazumbinha.


Concepção e fotoilustrações de Marie Ange Bordas com a colaboração das crianças do
quilombo Rio das Rãs. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2010. 72p.

Na contracapa (ou quarta capa) é possível observar os fundos de uma casa, com
animais e crianças, além de mulheres e homens no trabalho manual- corte, costura e o
tratar de mandiocas (a mesma ilustração aparece inserida num contexto durante a
narrativa para situar o leitor das tarefas exercidas). Cabe aqui destacar que a
luminosidade das ilustrações de HC são preponderantes e compreendem técnicas de
pintura que se assemelham ora a giz de cera, ora a lápis de cor com pintura imprecisa,
ou ainda a tinta, marcados por um traço delineado preto.
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As imagens oferecidas nesse trabalho são a título de ilustração para um melhor
acompanhamento da leitura realizada. As falhas e inadequações das imagens aqui
presentes não me contentam, e nem poderiam pois referem-se a uma representação.
Assim, não ofereço ao leitor o suporte exato para a leitura, mas uma imagem do que a
ilustração aborda. Além disso, esse estudo consiste numa adaptação textual de uma
monografia de conclusão de curso (UNEB, Campus XXIII, 2018), de mesma autoria.
Logo, a análise aqui proposta aborda apenas alguns aspectos da investigação pois
compreende apenas uma pequena releitura do texto primário.
Durante as narrativas, as histórias são contadas com ênfase no cenário social
vivenciado por cada uma das personagens. Preta percorre um trajeto de descobertas
acerca de sua história enquanto menina negra, desde o processo de escravização
africana, até a consolidação da cultura afro-brasileira por meio do candomblé, em que
Preta descreve como se deu seu contato com uma nova religião, visto que ela veio de
escolas católicas, que tratam de forma pejorativa as religiões distintas. No momento em
que esteve em um terreio de candomblé, a personagem presenciou uma Festa de
Caboclo, que, de acordo com Prandi (2005), “o caboclo, nada mais é do que o espírito
de um índio ancestral brasileiro foi originalmente o centro do culto dos mais tarde
chamados candomblés de caboclo [...]”. (PRANDI, 2005, p. 121). E, conforme abordado
pela autora, foi uma festa criada para “reverenciar os habitantes da terra que eram os
índios” (LIMA, 1998, p. 60). Enquanto isso, Cazumbinha convive num cenário com
outras crianças e familiares, condizentes com uma mesma etnia, e ainda não enfrenta
questões de racismo e enfrentamento. Todavia, é notável para o leitor os aspectos
culturais abarcados pela narrativa, sobretudo marcada pelo sincretismo religioso
Ao considerar a temática abordada nas narrativas em estudo, em que
preponderam as discussões étnico-raciais, abordaremos aqui a Lei 10.639/2003 que
estabelece a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Africana e Afro-
Brasileira na rede de ensino. O Art. 26-A prevê a inclusão do
[...] estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil. (BRASIL, 2003)

Averiguando a aplicabilidade da lei nos livros em estudo é possível observar que


Heloísa Pires Lima já notava a necessidade de se inserir essa temática em ambientes
de leitura, considerando que Histórias da Preta (1998) antecede a publicação da lei.
Nesse sentido, infere-se que a realidade social em que a autora se inseria pode ser um
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dos elementos determinantes para que seus trabalhos tenham sidos voltados para a
temática étnico-racial africana e afro-brasileira. Do mesmo modo, as experiências de
Cazumbá também estão interligadas com a sua produção literária, ao observar, por
exemplo, a associação do nome da personagem – Cazumbinha – com seu próprio
nome. Numa mesma vertente, a visibilidade dada as meninas negras enquanto
protagonistas de suas próprias narrativas rompe com uma série de estereótipos que,
em outro cenário histórico, não abordou a mulher negra de forma empoderada, e sim,
enquanto submissa da figura não negra. Como exemplo desse cenário é possível
observar os clássicos da literatura infantil e juvenil brasileira produzidos por Monteiro
Lobato na série de histórias em torno do Sítio do Pica Pau Amarelo, em que, a Tia
Anastácia, personagem negra da trama, é representada como cozinheira.
Assim, é válido destacar aqui a relevância dos espações de leitura e
questionamento, sobretudo do ambiente escolar nas práticas de leitura, ao passo que,
através dela é que se dá condições para a identificação do público leitor/ouvinte com as
narrativas que são lançadas, a considerar a leitura como um dos elementos que
proporciona o desenvolvimento do senso crítico e reflexivo do leitor. Segundo Nelly
Novaes Coelho, (2000),
[...] a escola é hoje o espaço privilegiado em que deverão ser lançadas
as bases para a formação do indivíduo. E, nesse espaço, privilegiamos
os estudos literários, pois [...] eles estimulam o exercício da mente, a
percepção do real em suas múltiplas significações, a consciência do eu
em relação ao outro (COELHO, 2000, p. 49).

Para tal, observemos uma das reflexões proposta por Lima no capítulo “Diferente
de ser igual”, ilustrado por uma imagem em página cheia (Figura 03), em que de um
lado da página é possível observar uma menina não negra junto com um pássaro,
enquanto do outro, uma menina negra e outro pássaro, ambos, indo em direção ao
outro, com a possibilidade de encontro, que é evidenciado pelo efeito de espelhamento
e de decalque na ilustração, o que nos possibilita a reflexão acerca da equiparação das
relações, em que as diferenças não serão cessadas, mas que podem viver
harmonicamente, com valores equivalentes.

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Figura 03. Fonte: LIMA, Heloísa Pires. Histórias da Preta. 1. ed. São Paulo: Companhia
das letrinhas 1998. v. 1. 71p.

Enquanto isso, no capítulo “As Bonecas”, Cazumbinha e suas amigas fazem


bonecas com sabugo de milho, e através da criatividade elaboram os brinquedos a partir
dos materiais que possuem:
Cazumbinha nunca cansa de brincar. Então, ela convence as amigas
a irem ao fundo do quintal, onde a mãe descasca milho. Lá, certamente
há de se ter sabugos, e com eles poderão fazer suas bonecas. Cada
um escolhe o seu [...]. Pronta a boneca, resta a roupa. Embrenham-se
na mata à procura de folhas coloridas. -Ei, a minha boneca vai usar um
vestido amarelo. - E a minha, um estampado. - E a minha, um verde.
Quantas cores! Quantas folhas! Quanta malva para colher! Sentam-se
embaixo do juazeiro e emendam histórias. (CAZUMBÁ, BORDAS,
2010, p. 22)

A ilustração aparece em página cheia, porém enquadrada, a fotografia como


plano de fundo uma parede e alguns retalhos de pano, enquanto em segundo plano está
uma menina negra a vestir os sabugos. Com relação a personagem, é válido destacar

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que nessa cena, ela apresenta-se um pouco mais crescida em comparação com outras
representações da personagem durante a obra, o que sinaliza uma passagem de tempo.
Em primeiro plano encontra-se os desenhos das crianças que brincam com
Cazumbinha, enquanto alguns elementos se destacam nas ilustrações, como a cor das
saias, em tons quentes e chapados, uma minuciosamente preenchida- a saia vermelha,
o que pressupõe uma pintura a tinta, reforçada pela saia lilás, em que a cor ultrapassa
a margem que delineia o desenho da blusa- aparentemente pintada a giz. Cabe aqui
destacar ainda o cabelo das meninas, na fotografia, a menina usa tranças, enquanto os
desenhos buscam marcar a forma e a textura dos cabelos das meninas negras. Nesse
sentido, observa-se a representatividade das crianças acerca de suas próprias
características, considerando que os cabelos são sempre ilustrados nessa perspectiva-
volumosos, crespos, cacheados, em tranças e em diversas tonalidades- do mesmo
modo acontece com os tons de pele que variam entre tons escuros mais ou menos
pigmentados.

Figura 04. CAZUMBÁ, Meire; BORDAS, Marie Ange. Histórias da Cazumbinha.


Concepção e fotoilustrações de Marie Ange Bordas com a colaboração das crianças do
quilombo Rio das Rãs. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2010. 72p.

Ao considerar o elemento lúdico em relação as narrativas em análise, interessa-


nos enfatizar que o elemento lúdico vai além da faixa etária pois é de interesse do ser
humano enquanto ser social. Logo, a ludicidade na literatura não deve se restringir aos
textos infantis, pois, o homem enquanto individuo cultural se interessa pelo que foge do
cotidiano e pelo que lhe dá prazer. Para discutir o lúdico, Johan Huizinga, em seu livro
Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura (2007) defende em sua obra que o jogo
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é uma atividade da ação humana, considerando que o lúdico faz parte das relações
sociais, culturais, econômicas, artísticas, ou seja, da interação com o meio. “[...] a
verdadeira civilização não pode existir sem um certo elemento lúdico. (HUIZINGA, 2007,
p. 234)”. Nesse sentido, o autor defende ainda o jogo como elemento relacionado a
atividades lúdicas, que geralmente são divertidas e despertam interesse ao homem,
sendo observado ainda como forma de evasão do mundo real:

[...] o jogo não é vida ‘corrente’ nem vida ‘real’ para uma esfera
temporária de atividade com orientação própria. Toda criança sabe
perfeitamente quando está ‘só fazendo de conta’ ou quando está ‘só
brincando’. [...] a supressão temporária do mundo habitual é
inteiramente manifesta no mundo infantil. (HUIZINGA, 2007, p. 11/15)

Cabe aqui ressaltar que as produções em estudo apresentam a ludicidade de


forma distinta. Em HP, ela se mostra escamoteada pelos aspectos culturais e históricos
da narrativa, o que conduz o texto a um tom de sobriedade, em alguns momentos mais
ou menos evidenciados; enquanto HC ressalta a ludicidade tanto na escrita do texto
verbal, quanto nas atividades que a personagem realiza a cada capítulo. Isso se dá pela
faixa etária das protagonistas, pois Preta é uma jovem que aprendeu sobre as histórias
de seu povo ao longo da vida, vivenciou experiências, algumas leves e pueris e outras
negativas que impactaram na construção identitária da personagem. Em contraponto,
Cazumbinha apresenta uma outra perspectiva, a de uma criança que brinca e se diverte
no ambiente em que nasceu, conduzindo o leitor a valorização das origens abordando
os aspectos culturais que rodeiam o meio no qual ela está inserida, porém sob a ótica
infantil.

Preta e Cazumbinha concluem suas histórias


Ao observar os objetos em estudo, nota-se que a análise do texto literário
infantojuvenil compreende questões que abarcam as autorias, as temáticas, a
perspectiva social de cada uma delas e sobretudo o público ao qual se destina,
averiguando as recepções dessas produções no que tangem a faixa etária leitora e o
cenário na qual essas produções são trabalhadas.Diante das leituras e reflexões
propostas pela análise das produções em estudo podemos perceber que Histórias da
Preta e Histórias da Cazumbinha são obras que carregam consigo uma carga cultural
significativa e de grande valia para o trabalho em espaços de leitura, considerando a
aplicabilidade do conteúdo na formação de leitores críticos e reflexivos.

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Todavia, a implementação da Lei 10.639/03 muda a perspectiva de trabalho com
a temática étnica-racial, sobretudo de protagonista negra, haja vista por exemplo a
própria capa das obras, em que, em HP, a aparência dessa protagonista negra é
abordada de forma endurecida, do mesmo modo que a própria narrativa, em
contraponto a publicação posterior a lei – HC- em que, para além da abordagem
temática, nota-se um cuidado maior com a qualidade do texto literário. Desse modo,
compreende-se que a qualidade do texto em infantojuvenil perpassa pelas discussões
que envolvem a ficcionalidade, sendo essa um dos elementos fundamentais para o
desenvolvimento do leitor, conforme discute Ieda de Oliveira em seus estudos sobre
qualidade em literatura infantil e juvenil.
É possível observar um distanciamento no tempo e em termos qualitativos das
obras tanto na perspectiva verbal, quanto na imagética. No texto verbal, a diferença no
uso da linguagem utilizada é marca significativa; no cenário, em que um é mais amplo
e outro mais restrito; e sobretudo acerca da percepção das protagonistas, enquanto uma
apresenta uma diversidade cultural - advinda de seus estudos e experiências- e se
posiciona criticamente acerca desta, a outra ainda sugere um olhar sutil acerca da
cultura na qual se insere. E, com relação ao texto imagético, HC se sobressai ao pensar
na linguagem não verbal como parte expressiva da produção, em contraponto a HP, em
que as ilustrações apenas representam a narrativa. Apesar dessa destoância entre um
e outro, deve-se considerar o fator temporal de cada publicação, e como se pensava o
texto imagético antes e depois da lei.
As personagens negras protagonistas apresentadas na cena literária de forma
diversificada contribuem para o empoderamento de meninas negras por meio da LIJ.
Para tal, basta observar as possibilidades de abordagens que as autoras propõem -
seja uma menina negra mais velha, que reconhece e se interessa pela compreensão da
sua ancestralidade, seja pela naturalização dos hábitos comuns à menina mais jovem,
como correr, nadar e brincar. Destarte, as narrativas evidenciam a autonomia discursiva
dessas meninas negras. Não em um lugar de vitimização, mas autônomas de suas
próprias histórias.
Enquanto isso, de uma produção literária para outra, observa-se um significativo
salto qualitativo em termos de literatura, em que o texto foi ressignificado, perdendo o
tom didático à medida que ganha qualidade literária, marcadas pela ficcionalidade,
verossimilhança e pelo conjunto de metáforas. Assim, por se tratar de um texto de
literatura infantojuvenil, HC preocupa-se ainda com a marca da ludicidade na narrativa
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e de uma linguagem mais leve, palatável para o público ao qual se destina, diferente da
obra anterior- HP, que preserva um caráter mais sério e sóbrio, preso a um cenário de
abordagem literária sobre etnia negra anterior à lei.
Nesse sentido, pode-se inferir que a partir da Lei nº 10.639/03 não só se torna
obrigatório, mas, o uso da temática começa a ser aprimorado, com o trabalho com
discussões étnico-raciais, e sobretudo, com o destaque para as personagens femininas
nessas histórias, no que se refere à literatura infantojuvenil; haja vista que, para o
mercado editorial, não basta agora só falar sobre o tema, é necessário falar sobre o
tema e ter qualidade sobre ele, e, ao longo desses anos, observa-se um aprimoramento
nas formas dessas narrativas serem publicadas, tanto no texto verbal quanto no texto
imagético.

Referências
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SERRA, Elizabeth D’Angelo org. 30 anos de literatura para crianças e jovens. Algumas
leituras. Campinas, Mercado de Letras 1998. Disponível
em:http://www.ricardoazevedo.com.br/wp/wp-content/uploads/Texto-e-imagem.pdf.
Acesso em: 15 out. 2018.

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http://www.planalto.gov.br/ccivil03/leis/2003/L10.639.htm. Acesso em: 18 mai. 2017.

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<https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/população/9372-
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2018.

LIMA, Heloísa Pires. Histórias da Preta. 1. ed. São Paulo: Companhia das letrinhas
1998. v. 1. 71p.

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Alencar Carvalho e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Graphia, 2012.

PRANDI, Reginaldo. Segredos Guardados: orixás na alma brasileira. São Paulo:


Companhia das Letras, 2005a. p. 67-100.

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LITERATURA JUVENIL EM QUESTÃO: UMA REPRESENTAÇÃO
DA PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA EM CALEIDOSCÓPIO DE
VIDAS (2019), DE JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA

Ieda Maria Sorgi Pinhaz Elias (SEED-PR/GP-CRELIT/PG-UEM)

Eixo Temático: A literatura juvenil e jovens leitores.

Considerações iniciais
A era digital trouxe mudanças significativas no comportamento dos jovens. Uma
delas é a realização de muitas atividades, de modo virtual. Esse jovem, reconhecido
pelo meio comercial como um consumidor em potencial, é um alvo a ser conquistado.
Pensando nisso, o mercado editorial tem dado tratamento especial à produção de livros.
Em relação à literatura juvenil, o formato, capa, ilustração, fonte e diagramação são
quesitos importantes para atrair o leitor.
Apesar de haver um grande volume na produção de livros para o público jovem,
contando com obras de qualidade estética e cuidado editorial, o índice de leitura do texto
literário juvenil no Brasil, ainda não atende ao esperado. Na denominada era da
hiperconectividade, qual é o espaço do livro físico no cotidiano dos jovens? Pensando
nisso, esse trabalho se justifica pela necessidade de discussão sobre a produção
literária juvenil, pois, apesar de a era digital ter um grande apelo entre os jovens,
atualmente há um produção livreira de qualidade para os adolescentes, e que deve
chegar às mãos desse público, seja pela escola, por meio dos professores, potencias
mediadores da leitura, pela família, por programas governamentais, Market editorial ou
outros meios.
Nesse contexto, a obra, Caleidoscópio de vidas (2019), do escritor paulista João
Anzanello Carrascoza, merece destaque. O autor, que se dedica à literatura há quase
três décadas, conquistou vários prêmios na carreira, como Jabuti, Guimarães
Rosa/Radio France Internationale, Fundação Biblioteca Nacional, Fundação Nacional

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do Livro Infantil e Juvenil e Associação Paulista dos Críticos de Arte, sendo, portanto,
um nome reconhecido no meio literário.
Para realizar esse trabalho, nos amparamos em estudos de Theodor Adorno
(2002), sobre a indústria cultural; Pierre Bourdieu (2009), tipos de arte; Linden (2011),
leitura do texto não verbal; Bertran Ferrier (2009), legitimação da literatura juvenil;
Martha (2010), produção contemporânea de literatura para jovens.

O livro na era da Indústria Cultural


O termo “indústria cultural” surge na primeira metade do século XX, por meio dos
estudiosos Theodor Adorno e Max Horkheimer (2002), intelectuais da Escola de
Frankfurt, na Alemanha. Para os autores, a indústria cultural oferece aos consumidores
produtos estandardizados, que não promovem atividade mental ao público, agindo como
instrumento de dominação e alienação, fruto do capitalismo, representando um mal para
a sociedade. Para eles, a indústria cultural pode se vangloriar de haver atuado com
energia e de ter erigido em princípio a transposição – tantas vezes grosseiras – da arte
para a esfera de consumo, de haver liberado a diversão da sua ingenuidade mais
desagradável e de haver melhorado a confecção das mercadorias. Quanto mais total
ela se tornou, quanto mais impiedosamente obriga cada marginal à falência ou a entrar
na corporação, tanto mais se fez astuciosa e respeitável. (ADORNO e HORKHEIMER,
2002, p. 28)
A discussão levada a efeito, encetada pelos autores, tem relação direta com a
transformação da arte erudita, denominada “arte séria” em “arte leve”, a serviço da
distração. Assim, os pensadores julgam e desaprovam os produtos advindos da cultura
de massa, afirmando que a racionalidade técnica é a racionalidade da dominação, tendo
caráter repressor da sociedade que se auto aliena. (ADORNO e HORKHEIMER, 2002,
p. 41).
Segundo Bourdieu (2009), com a Revolução Industrial, o movimento do campo
artístico em direção à autonomia se acelera significativamente, contribuindo para
estreitar as relações entre imprensa, literatura, e indústria cultural. Nesse cenário,
surgem dois tipos de arte: uma vinculada à produção erudita, destinada a um público de
produtores de bens culturais (arte pura); e outra ligada à indústria cultural – que almeja
conquistar o mercado, atingir lucro -, destinada a um público de não produtores de bens
culturais (arte média). Nesse sentido, a produção erudita é mais autônoma, criando

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produto raro e de valor singular, enquanto à ligada a indústria cultural está atrelada à
demanda do mercado. No entanto, apresentam pontos de convergência.
A arte pela arte e a arte média – ambas produzidas por artistas e intelectuais
altamente profissionalizados - , caracterizam-se por uma idêntica valorização da técnica
que orienta a produção, na arte pela arte, no sentido da busca do efeito (visto ao mesmo
tempo como efeito produzido sobre o público e como fabricação engenhosa) e, na arte
média, no sentido do culto da forma pela forma, que constitui uma acentuação sem
precedentes do aspecto mais irredutível da atividade profissional e, por esta via,
afirmação da especificidade e da irredutibilidade do produtor. (BOURDIEU, 2009, p.141-
2)
Apesar da crítica à arte média, o estudioso também ressalta que esta tem um
papel importante na sociedade, uma vez que se apropria de elementos da cultura
erudita, oferece ao público o contato com uma arte, algo restrito aos intelectuais, antes
da indústria cultural.

Literatura juvenil e produção livreira


As duas primeiras décadas da segunda metade do século XX representam uma
fase importante para o fomento e valorização da literatura juvenil no Brasil. Esse
momento coincide com o interesse da escola em promover o livro e a leitura juvenil,
“ainda que esse aumento venha quase sempre impregnado de preocupações
utilitaristas, que facilitam a redução da leitura a mero exercício didático de transferência
de informação” (PERROTTI, 1990, p.15). Com o mercado aquecido, as editoras
começam investir na literatura para os jovens leitores, assim, na década de 60, a editora
Brasiliense lança a coleção “Jovens do Mundo Todo”. Na década seguinte, a editora
Ática inaugura a coleção “Série Vaga-Lume”, que rapidamente se consolida no mercado,
contribuindo para a expansão do subsistema literário. O mercado promissor trouxe
autores consagrados para a produção literária ao público jovem. No entanto, o comércio
livreiro aquecido também serviu de incentivo para que alguns escritores lançassem
vários livros por ano, em ritmo de produção industrial, primando em atender a demanda
e muitas vezes comprometendo a qualidade do texto.
No final do século XX e início do XXI, “As novas ferramentas e linguagens da
cultura digital abrem perspectivas inusitadas para o mundo do livro e da leitura”
(LAJOLO e ZILBERMAN, 2017, p. 52). Nesse cenário, o livro ganha novos suportes –

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surgem os e-readers e e-books, escritores criam blogs e páginas em Facebooks e
Instagram para interagir com o público, os meios de divulgação dos livros se ampliam.
Nesse contexto, o livro ilustrado contemporâneo assume, vários formatos e
configurações, na materialidade. A partir do enunciado verbal, diferentes mãos
produzem o aspecto visual, tendo espaço para fotógrafos, designers gráfico,
ilustradores, quadrinistas e produtores de imagem de diferentes formações.
Caleidoscópio de vidas (2019), escrito por João Anzanello Carrascozza, é um exemplo.
Ilustrado por Adriano Catenzaro, conta com a trabalho Júlia Masagão no projeto gráfico.
Com texto verbal, imagético e projeto editorial bem elaborados, temos uma obra que
deve cativar o jovem leitor.

A obra em foco: holofotes no texto


O livro, composto por três contos, possui histórias conectadas, mas narradas em
tempo e espaço diferentes.
O autor cria um universo por meio da prosa poética. Utiliza a quebra das frases
em versos, apresenta entrelaçamento entre ritmo, musicalidade e visualidade do texto
– a disposição das palavras sugere movimentos e formas. Outro diferencial do livro é
pluralidade do uso de cores. A página introdutória tem fundo azul escuro e letras grandes
em branco, com informações referenciais. Nas duas páginas seguinte, o jogo se altera.
O fundo é branco e as letras são em azul escuro. O sumário também quebra o padrão
tradicional, uma vez que os títulos dos contos são apresentados em letras grandes, em
azul escuro. As páginas que anunciam cada um dos contos têm cores diferentes. A
primeira tem fundo vermelho vivo, que pode representar o amor, mas que também se
associa à violência, temas presentes no primeiro conto. A cor da letra utilizada em cada
conto, segue a de cada página introdutória. O título, “Os catadores”, está escrito em
branco e abrange toda a largura da página. Esse conto narra a história de José e Maria,
que sobrevivem como “garimpeiros” em um lixão, e cultivam o sonho de morar em um
lugar digno, ter um filho e casa própria, feita de alvenaria. José e Maria representam
uma legião de brasileiros, que, como eles, sonham com a casa própria e com melhores
condições de vida e trabalho. Com frases sugestivas, permeadas por figuras de
linguagem, Carrascoza compõe a história do casal.
A página de abertura do segundo conto “O menino das capas de chuva” tem
fundo roxo, cor relacionada à melancolia. As letras do texto acompanham o mesmo tom.
O conto narra a história do garoto, filho de José e Maria, que na noite de réveillon tenta
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vender capas de chuva à beira da praia e que por vezes, lembra do avô. O contexto
remete ao texto do poeta e escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, A pequena
vendedora de fósforo (1845). No entanto, segundo o narrador, em terceira pessoa, o
ambiente é diferente, “mas não faz frio nem neva/ como daquela vez/ contada por
Andersen/ Ao contrário, é verão/ ferve em todas as coisas/ a fogueira invisível do calor”
(CARRASCOZA, p. 19, 2019). O prenúncio de um Ano Novo traz consigo a esperança
de renovação, dias melhores, mas nos primeiros versos o narrador anuncia que
mudanças significativas não ocorrerão, “ano que só é novo para o calendário”
(CARRASCOZA, 2019, p. 19). No final da noite, o garoto retorna para casa.
Externamente não há mudanças, mas depois da experiência vivida no outro lado da
cidade, ele passa por um momento de formação, “e os dois, pai e mãe/ iam encontrar,
surpresos, um novo filho/ (talvez não o notassem no ato,/ mas semanas à frente)/ porque
o menino, tal qual o ano,/ tinha passado, naquela noite,/ para um outro menino/ (maior),/
que nele/ (futuro homem)/ já existia” (CARRASCOZA, 2019, p. 39).
No último conto, “O velho estivador” o fundo da página de abertura é verde, cor
relacionada à esperança. Como nos dois outros textos, a cor das letras é a mesma da
página de abertura. O protagonista é Theo, pai de Maria, que tem no neto a “alegria que
rege seus sentidos”, pois, “ao segurar a mão do neto/ sentia como se ele fosse/ a sua
extensão/ como se estivesse dando-se/ (a si mesmo) a mão ” (CARRASCOZA, 2019, p.
44-45). O homem aposentado, viúvo, mora sozinho, em um bairro rodeado de amigos.
A vida que parece boa, apesar da dificuldade financeira, é silenciada ao chegar em casa,
depois de passar o dia com o neto. A esperança talvez esteja refletida na figura do neto,
no qual a história ainda está sendo composta.
A disposição dos contos no livro não segue uma cronologia sequencial, sendo
que após a vida à beira do lixão, obedecendo a uma temporalidade linear, caberia a
história de Theo, visitando o neto ainda criança, e por último, o filho do casal, menino,
buscando por meio do trabalho da venda das capas de chuva, conquistar algum lucro.
O ciclo da pobreza material é reafirmado pelo menino, que, por meio da venda das capas
de chuva, busca por pouco lucro, e que depois de horas na noite chuvosa, longe da
família em dia de confraternização, lucra quase nada. Temos assim, o pai (Theo) com
poucos recursos financeiros; filha e cônjuge, apesar de atingir o sonho de deixar o lixão,
continuam com dificuldades econômicas; neto, que por meio da informalidade, busca
rendimento financeiro, e que na primeira experiência, não é bem sucedido. O final da

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história do menino está em aberto. Cabe ao leitor, como coautor do texto, compor o
futuro do garoto.
Os textos permitem reflexões sobre diversos problemas sociais, como pobreza
extrema, desemprego, desigualdade social, violência, dentre outros. Segundo Martha,

A produção contemporânea de literatura para crianças e jovens


consolidou uma vertente bastante fértil que se caracteriza pelo
abandono da concepção idealizada da infância e juventude como
paraíso perdido, época de despreocupação e felicidade da vida, crença
bastante útil a instituições como a escola e a família. A literatura
higienizada, cujo processo de criação ou adaptação primava por
apagar todo sofrimento e crueldade, parece estar em decadência.
Personagens idealizados e perfeitos, criados em ambientes igualmente
impolutos, são substituídos por crianças e adolescentes que se
debatem em conflitos psicológicos, vivem ambientes inóspitos e
experimentam sentimentos e emoções violentas. Os temas de fronteira
em obras para crianças e jovens – compreendidos como situações-
limite que configurem, no plano ficcional, etapas da evolução vividas
pelo ser humano – ganharam força e podem ser aliados importantes
para que esses leitores reconheçam suas angústias, faces diversas do
medo que enfrentam cotidianamente – morte, separações, violência,
crises de identidade, escolhas, relacionamentos, perdas, afetividades -
a partir da leitura de narrativas contemporâneas. (MARTHA, 2010, p.3)

Caleidoscópio de Vidas não está a serviço da “literatura higienizada”. Pelo contrário,


apresenta conexão com a vida real, o que permite ao jovem, se identificar com o texto que lê.

Holofotes nas imagens

O livro, em formato sanfona, ao mesmo tempo que separa os contos, os une. A


ilustração encontra-se tanto na parte externa quanto interna da capa. No entanto, não
há imagens no corpo do texto.
De acordo com Lindem, livros com ilustração “são obras que apresentam um
texto acompanhado de ilustração. O texto é espacialmente predominante e autônomo
do ponto de vista do sentido. O leitor penetra na história por meio do texto, o qual
sustenta a narrativa” (LINDEM, 2011, p. 24), enquanto que os livros ilustrados são
“obras em que a imagem é espacialmente predominante em relação ao texto, que aliás
pode estar ausente [é então chamado no Brasil de livro imagem]. A narrativa se faz de
maneira articulada entre texto e imagem” (LINDEM, 2011, p. 24). Dessa forma,
Caleidoscópio de vidas (2019) é um livro com ilustração.

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Adriano Catenzaro, responsável pela ilustração, é artista visual, designer e
ilustrador. Produz obras que combinam técnicas de colagem com linguagens visuais,
com criações que circulam entre o design, a ilustração e a arte contemporânea. De
acordo com o site do ilustrador, por meio da colagem encontra “a forma de reter a
energia visual explícita dos seus trabalhos, criando conjuntos de sistemas, estruturas e
organismos imaginados, que se cruzam no apego pela trama material” (CATENZARO,
2020). Prima ainda pela diversidade cromática, fragmentação de elementos,
representações de formas, com marcante característica ficcional.
As ilustrações compõem a parte externa e interna da capa. Na parte externa,
representam o período noturno, enquanto a interna, o diurno. A capa remete à cidade
do Rio de Janeiro, com o Cristo Redentor no alto do morro e abaixo prédios coloridos,
que se assemelham a construções habitacionais e comerciais. O que as diferencia são
as luzes acesas nas habitações. Ao lado dos prédios vê-se, em menor quantidade,
barracos, moradias precárias, com poucas janelas, também com luzes acesas. Em uma
dessas moradias, a iluminação interna está representada na cor laranja, o que sugere
penumbra, pouca iluminação, enfatizando a falta de recursos, dialogando com trechos
do texto.
Com a parte sanfonada do livro toda aberta, vê-se uma ilustração panorâmica,
que se relaciona com os três contos. Na parte externa, que representa a noite, da
esquerda para a direita, o ilustrador retrata o lixão, por meio de restos de papel picado,
espaço que expressa o início da vida conjugal de José e Maria. Em todo o trabalho de
ilustração do livro, a diversidade cromática é bastante presente, mas na representação
do lixão ela se faz bem enfática, podendo ser entendida como uma denúncia do descaso
com o meio ambiente, pois os resíduos não caracterizam somente descarte orgânico,
mas produtos e embalagens em geral. Encostado no lixão, como se fosse uma
continuidade dele, barracos, que representam a moradia das pessoas de baixa renda.
Provavelmente o sonho da casa própria, conquistado por José e Maria quando deixarem
o lixão. Um sobreposto ao outro, remete à favela. Os tamanhos são variados, sempre
com telhado de uma única água, evidenciando a simplicidade da construção, com luzes
que ora são vibrantes, representadas pelo amarelo vivo, ora designam penumbra,
representadas por uma laranja apagado. Os barracos são de várias cores, mas
predominam as cores mais escuras, como o marrom, verde escuro, texturas que
lembram pedra, que remetem ao aspecto de pobreza. Entre o final da segunda página
da capa para a terceira, surge o mar, criado por meio do efeito de textura poá, em dois
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tons de azul, fundo mais escuro sobreposto por pequenos círculos, em azul levemente
mais claro. Na frente do mar, retângulos empilhados por guindaste, separam a “favela”
da cidade e anunciam construções pujantes, de cores vivas, trazendo a modernidade.
Ao alto, em destaque, uma única estrela, possivelmente representando o avô do
menino, já falecido. A correlação se justifica também pelo fato muitos utilizarem essa
metáfora para explicar a morte para crianças. Na sequência, em espaço ainda oceânico,
a representação de fogos de artifício, com formas circulares em cores vibrantes. Desde
a descrição das casas simples até a as imagens dos fogos, tem-se a representação do
percurso realizado pelo menino, vendedor de capas de chuva, que ao cair do dia, segue
em direção ao mar para vender o produto consignado. Ele vai à parte central da cidade,
à orla, mas não pertence àquele espaço. Mora na periferia.

Assim, quando esse se deu conta do tempo,


ao perguntar a um moço
com o relógio no pulso,
faltava só meia hora
para o ano novo,
e mesmo que partisse imediatamente,
e corresse, cortando caminho pelas docas,
a meia-noite o apanharia longe de casa.
(Carrascoza, 2019, p.33)

No trecho, percebemos mais uma vez a situação de diferença social entre o


menino da periferia e o moço da parte central da cidade, “ao perguntar a um moço/com
relógio no pulso”. Nesse caso, o relógio é um acessório, provavelmente caro, utilizado
por quem tem recursos financeiros. Por fim, chega-se novamente à capa frontal do livro,
já comentada.
Na parte interna, o cenário é diurno. Ao abrir as dobraduras, novamente tem-se
uma imagem panorâmica, abrigando ainda, três encadernações, separadas. O que se
destaca ao olhar a visão panorâmica, é que os limites entre moderno e simples, riqueza
e pobreza, compõem o espaço simultaneamente. O que a noite “esconde”, o dia
“mostra”. As antíteses convivem no mesmo espaço.
O dia é ensolarado e o céu, todo representado em laranja claro, transmite a
sensação de calor, próprio da capital fluminense. Ao fazer a leitura das imagens da
esquerda para a direita, o que se destaca na primeira dobradura são os “arranha céus”.
Eles são maioria, no entanto, no topo de alguns, há construções simples, similares a
barracos. Na dobradura seguinte, o dia fica mais alegre. Ao fundo, o céu alaranjado,

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cede espaço a uma pipa colorida, um teleférico e um pássaro vermelho em voo,
intensifica a sensação de calor. O morro, que sustenta os cabos do teleférico, é amarelo
claro texturizado, dando ideia de pequenos relevos. Na visão diurna, os prédios são
menores e o que sobressai são as construções simples, de uma única água, com poucas
janelas, caracterizando, mas uma vez, a pobreza, em maior escala do que a riqueza.
Além delas, recortes de papel em cores e texturas diferentes, destacam um amontoado
de sujeira da cidade. A ilustração enfatiza o excesso de lixo da cidade Fluminense. Um
morro, texturizado em poá, em bege claro, sustenta a outra ponta do cabo do teleférico.
O destaque para esse trecho é a intensificação do lixo no pé do morro, sinal da sujeita
deixada por turistas, que pode ser entendida como falta de educação ambiental, por
parte das pessoal que transitam na cidade carioca. Como nas duas dobraduras
anteriores, prédios e construções simples se misturam. Na quinta dobradura, três
nuvens em tom de laranja, bege e marrom, enfeitam o céu. Logo abaixo delas, uma pipa
tremula a rabiola, assim, a infância se faz presente. Os prédios se concentram mais à
esquerda, enquanto à direita faz surgir a favela. Na última capa, sobre um morro em
poá amarelo, vê-se o Cristo Redentor na cor cinza, em uma perspectiva mais próxima
do que a da capa, com prédios à sua frente e poucas construções rudimentares. À
esquerda, mais uma vez a colagem representa grande aglomerado de detritos. Ao lado
direito, pouco abaixo do Cristo, um pássaro, na cor roxa, com asas abertas, se
assemelha a Cristo com os braços abertos, mais parece um anjo. É possível vincular
essa imagem à representação do bebê encontrado morto no lixão, por um catador. A
cor roxa intensifica a sensação de melancolia da imagem.
Em “Os catadores”, José e Maria conversam sobre o fato:

O que foi que aconteceu? Maria perguntou outra vez.


José abaixou a cabeça e respondeu:
Acharam um bebê!
E, para represar, ao menos por um instante,
o espanto dela,
emendou,
Veio num dos últimos caminhões.
Maria em sobressalto, quase a expelir a alma.
Tanto que, instintivamente, tapava a boca com as mãos:
Meus Deus! Meu Deus!
Outro esguicho de silêncio.
E estava vivo?, ela perguntou, querendo o milagre.
Não!
(Carrascoza, 2019, p.11)

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O trecho, bastante chocante na narrativa, pode ter sido ilustrado de modo
sutil, mais sugerindo do que afirmando, situado na ilustração na camada implícita,
subentendida, ao invés de escancará-la. Cabe ressaltar ainda, que os nomes “José” e
“Maria”, nesse caso são genéricos, representando aqueles que vivem em situação social
semelhante a eles.

Direcionando o holofote
O texto é dominante na narrativa. Ele dá o “tom” da ilustração. Em Caleidoscópio
de vidas, cabe à imagem atuação secundária, sendo o texto instância prioritária.
Como as imagens situam-se em região periférica em relação ao texto, com
espaço restrito na capa e contracapa, tanto na parte interna como externa, percebe-se
na ilustração a escolha por momentos significativos da narrativa, havendo uma seleção
do que representar. Tem-se representação explícita, como as imagens da cidade do Rio
de Janeiro, o Cristo Redentor, o lixão, os fogos de artifício; ou no campo implícito, a
exemplo da estrela solitária no céu, representando ao morte do avô do menino, ou ainda,
o pássaro, que mais parece um anjo, lembrando a crianças morta, encontrada no lixão.
Apesar de a imagem não ser a sustentação majoritária da narrativa, ela, e todo
o projeto gráfico e editorial, são fundamentais para a qualidade e sentido da obra, que
busca conquistar o jovem leitor.
Segundo Candido (2002), a literatura possui “função humanizadora”, pois ela
“confirma a humanidade do homem”. Nesse sentido, ela é fundamental na formação do
sujeito, portanto, precisa ser legitimada. De acordo com Ferrier (p. 1, 2009), “os sinais
de legitimidade não são apenas literários, longe disso”, portanto, não basta que a obra
tenha valor estético, para legitimação, há necessidade de atuação de outras instâncias
legitimadoras.
Ainda para o autor

Livros para jovens são funcionais [...]. Os livros para jovens devem
reconhecer essa funcionalidade a partir da qual a literariedade pode
tentar fazer o seu caminho entre o uso prático e a utilização poética da
linguagem, para usar uma querida distinção de Paul Valéry. A instância
de legitimação é apelidada de seduzir a Educação Nacional e seus
agentes. A legitimação passa então pela demonstração de um
interesse pedagógico do livro, de acordo com os pontos de vista
técnicos (saber ler), moral (respeitar os outros), intelectual
(desenvolvimento de formas de pensamento). Se desenvolve assim
uma técnica quase farmacológica, oponente às vertentes curativas o
livro para jovens às propriedades mortais dos concorrentes,

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especialmente a maldição dos jogos de vídeo game. ( FERRIER, p.2,
2009)

Considerando o exposto, apesar da funcionalidade do livro, isso não quer dizer


estar a serviço do pedagogizante. Em obras literárias juvenis, podemos encontrar
equacionados, o funcional, não utilitário, com o estético (linguagem poética). Podemos
inferir do exposto ainda, que o jovem, que se formou leitor, não está vulnerável à simples
sedução do ambiente virtual, como os jogos de vídeo game. Optar pelo livro ou pela tela
iluminada, é uma escolha.
Cabe ressaltar também as que obras contemporâneas têm abordado assuntos
anteriormente proibidos a leitores mais jovens, como “morte, separações, violência,
crises de identidade, escolhas, relacionamentos, perdas, sexualidade e afetividades”
(Martha, 2017, p. 2467), fatores que contribuem para a legitimação do subgênero
literário.
Depois de meio século de crescente produção de obras literárias para o público
jovem e debate produtivo no que concerne à literatura juvenil brasileira, vemos
consolidar-se no país o que Bourdieu denomina campo literário autônomo, que “atrai e
acolhe agente muito diferentes entre si por suas propriedades e disposições” (Bourdieu,
1996, p.256), o que contribui para a legitimação desse subsistema literário em nosso
país.
Em “Caleidoscópio de vidas” o verbal e o imagético se completam, sendo
evidente o ressoar do texto na ilustração detalhada. O resultado é um livro artístico, que
constrói tanto a expressão literária quanto a plástica.
Considerando o exposto, entende-se que a obra é um exemplo de produto juvenil
contemporâneo que supera o que Theodor Adorno e Max Horkheimer (2002) alertavam
sobre a arte, quando do surgimento indústria cultural. O livro não intenciona a fixação
de regras de funcionamento. Pelo contrário, é um conjunto plurissignificativo, sem
pretensão de enquadramento, e que em muitos momentos mais sugere do que expõe,
o que permite a participação e inferência do leitor.
Compreende-se que, desde o surgimento da indústria cultural até os dias atuais,
o livro, objeto cultural, passou por várias fazes e atualmente tem-se obras de grande
qualidade artística, sendo que sua compreensão em maior ou menor escala, depende
dos mecanismos de leitura que devem ser acionados pelo leitor.
Cabe ressaltar que o escritor João Anzanello Carrascoza já demonstrou zelo
pelo aspecto físico do livro em outros trabalhos, a exemplo de Catálogo de Perdas
397

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(2017), premiado pela FNLIJ-2018 nos quesitos, “Melhor projeto editorial” e “Melhor livro
para jovem”. Em Caleidoscópio de vidas (2019), reafirma o cuidado aos elementos
paratextuais.

Referências
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Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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Cristiane Rogerio. Revista eletrônica Crescer. Disponível em: < http://
www.youtube.com/watch?v=n-Xi4LxEClw> Acesso em: 10 de dezembro, 2019.

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PERROTTI. Edmir. Confinamento cultural, infância e leitura. São Paulo: Summus,
1990.

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
LITERATURA INFANTO-JUVENIL E FORMAÇÃO SUPERIOR DE
PROFESSORES DE ENSINO BÁSICO NA UNIVERSIDADE
LICUNGO EM MOÇAMBIQUE 80

Lourenço Alfredo Covane81


Universidade Estadual Paulista – Campus de Marília
Bolsista Capes

Comunicação oral

Eixo Temático 4: A literatura juvenil e jovens leitores

Introdução
A literatura infantil constitui um tema de maior interesse para muitos
investigadores da área da educação e linguagem na actualidade, abordado como uma
prática social que permite a inserção da criança no mundo cultural e o desenvolvimento
imaginativo e criativo dos indivíduos, ao longo da vida. Neste aspecto, o debate sobre a
formação de professores ocupa um lugar de destaque, questionando-se quais
conhecimentos os professores como responsáveis pela formação de leitores
responsivos de textos literários devem ter sobre a literatura infantil e juvenil.
Assim, neste artigo, dou continuidade a essa discussão, reflectindo sobre a
formação de professores de literatura infantil e juvenil na Universidade Licungo,
Moçambique, onde trabalho como professor. Um olhar detido na organização curricular
no curso de Licenciatura de Ensino Básico da Universidade Licungo permite ver alguns
aspectos que indiciam alguma fragilidade na formação de professores de literatura
infantil e juvenil e falta de conhecimento sobre a importância deste género da palavra
para o desenvolvimento da consciência cultural de crianças e jovens em formação.

80
O texto foi redigido obedecendo a ortografia utilizada em Moçambique, salvo nas citações
directas.
81
Doutorando em Educação pela Universidade Estadual Paulista – Campus de Marília, sob
orientação do Professor Doutor Dagoberto Buim Arena. dagoberto.arena@unesp.br

400

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Para dar a conhecer o cenário em que se inscreve a disciplina de literatura infantil
e juvenil sobre a qual oriento as minhas reflexões, tratarei de destacar a configuração
da Universidade Licungo, tendo como ponto de partida a sua missão e visão
institucionais. A Universidade Licungo, recentemente desintegrada da Universidade
Pedagógica no âmbito da descentralização das instituições do ensino superior em
Moçambique que teve lugar em 2018, é uma instituição pública voltada para a formação
de professores e quadros de educação e áreas afins de nível superior com competência
para leccionar em todos os níveis de ensino em Moçambique, incluindo no ensino
básico.
Trata-se de uma instituição jovem que mantém ainda parte dos cursos e dos
planos de ensino das disciplinas ministradas na antiga Universidade Pedagógica. No
âmbito da reforma curricular da Universidade Pedagógica foram aprovados planos de
ensino para vários cursos de licenciatura, que entraram em vigor em 2009. Dentre os
planos aprovados consta o Plano curricular do curso de licenciatura em ensino básico
com habilitação em administração e gestão da educação ou educação de infância.
O curso de licenciatura em Ensino Básico tem como objetivo principal: “formação
de professores e técnicos para o EB82 (Ensino Básico)” (MOÇAMBIQUE, 2009, p. 5). O
EB corresponde ao primeiro nível do ensino escolar em Moçambique e prepara os
alunos do ponto de vista de comunicação, leitura e escrita, e de outras competências.
E, numa altura em que a sociedade moçambicana se debate com problemas de níveis
altos de analfabetismo e altos números de alunos que não sabem ler e escrever, o EB
tem uma grande responsabilidade de ensinar a literatura infantil como instrumento de
inserção da criança no mundo da linguagem nesse sentido.
Posso entender que é se pensando a importância na formação de professores
do EB que sejam capazes de ensinar os modos e actos de leitura e de escrita que a
Unilicungo que introduziu a disciplina de literatura infantil e juvenil no curso de
licenciatura em EB. De acordo com o plano de curricular da disciplina de literatura infantil
e juvenil, esta disciplina visa “[...] proporcionar aos estudantes [...] conhecimentos
necessários para o desenvolvimento da leitura e escrita no Ensino Básico EB”; fazer
com que “o professor do EB saiba desenvolver no aluno o gosto pela leitura de livros

82
O EB corresponde, no Brasil, ao ensino fundamental I. Diga-se, todavia, que essa
correspondência é confusa na medida em que o EB vai de da 1ª classe a 7ª classe. No Brasil, o
EFI vai do 1º ano ao 5º ano. Nesses termos, o nosso EB corresponderia ao EFI e uma parte do
EFII.
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infantis”; fazer com que o professor do EB conheça “a importância, a estruturação, a
tipologia e a função da Literatura Infanto-juvenil no desenvolvimento da competência
linguística e o sentido estético e da criatividade na criança e no adolescente.”
(MOÇAMBIQUE, 2009, p. 111).
É compreendendo os pressupostos bakhtinianos de que o texto como enunciado
constitui o ponto de partida para a pesquisa em ciências humanas, que o plano curricular
de ensino da literatura infantil e juvenil na Unilicungo ocupa o lugar privilegiado na
pesquisa realizada.
Nesse sentido, não pretendo tecer profundas considerações críticas a respeito
dessa compreensão, mas também não me atenho a penas à reprodução dos sentidos
desse documento que me levariam a ser repetitivo. Isso porque, ao longo da análise,
vozes que me constituem como professor e pesquisador da arte verbal de ler e escrever,
literatura, vão, em si, revelando contraditórias.
Desse modo, acredito que evitar a reprodução daquilo que foi/é dito como uma
palavra final constitui o próprio caminho de todo o acto de pesquisa em ciências
humanas. Os diálogos com as variadas vozes que me constituem transformam as
minhas posições iniciais, as dos sujeitos-criadores-autores desse documento, as dos
leitores e os professores que terão acesso a esta pesquisa em novas inquietações até
que possam chegar àquelas que se apresentam como ideais para o ensino da literatura
infantil de âmbito dialógica que se deseja.
Para apresentar o meu raciocínio e permitir maior compreensão das inquietações
acima apresentadas, debruço-me, primeiramente, sobre as origens da Literatura Infantil,
ressaltando algumas temáticas, ao longo da história, e em Moçambique. Com esta
reflexão, a minha intenção é a de mostrar à luz do pensamento da filosofia da linguagem
o outro lado da literatura infantil e juvenil e seu impacto social para a formação de leitores
de textos literários. Com base nesse pensamento, apresento o conceito de literatura
infantil e juvenil como uma prática social, de leitura dialógica e com leitor responsivo.
Realizar uma breve revisão da literatura permitiu-me compreender as origens da
literatura infantil internacionalmente e em jeito comparativo compreender a situação
moçambicana. E, diria que a escolha deste procedimento fez-se muito importante, ao
revelar que o tema da literatura infantil e juvenil é muito pouco explorado em
Moçambique; quase inexistem estudos realizados por académicos nacionais de grande
relevância nesse sentido, tendo recorrido a alguns trabalhos feitos por investigadores
não nacionais sobre a literatura infantil em Moçambique, mesmo assim muito limitados.
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Por esse motivo, a literatura infantil e juvenil constitui um tema que deve ser muito
estudado em Moçambique.

Literatura Infantil: origens e contribuições no ensino primário


Para falar da literatura infantil e juvenil tal como a conhecemos hoje, é preciso
pensar no sujeito a quem se destina – a criança. Portanto, essa criança que até o século
XVII não tinha o estatuto de infância no sentido que assumiria mais tarde. Nesse
momento, a criança era vista como um adulto em miniatura, ela dividia os trabalhos e a
mesma roupa com os adultos. Segundo nos conta Ariès (1981, p. 68), assim que a
criança suspendia a primeira assistência maternal, “ela era vestida como outros homens
e mulheres na sua condição”, independentemente da classe social a que pertencia.
Dessa forma, não havia quem se preocupasse com a literatura para esse grupo.
Segundo esse autor foi somente no século XVIII que começou a descoberta da
infância. Nesse contexto, a criança, ou ao menos a criança de boa família, quer fosse
nobre ou burguesa, já não era mais tratada como adulto, “[...] agora tinha um traje
reservado à sua idade, que a distinguia dos adultos [...]”. (ARIÈS, 1981, p. 70). Foi assim
que a criança passou a ser vista como uma pessoa que, além de necessitar um
tratamento diferenciado, precisava de cuidados especiais, proteção e uma educação
dos adultos.
Em Moçambique, essa questão precisa de um debate ainda muito profundo.
Num outro estudo, Covane, Covane e Arena (2019) fizeram referência ao conflito
existente entre as práticas culturais africanas e a educação oficial quanto à definição da
idade adulta, dizendo que algumas culturas consideram adulta uma criança, menina ou
menino, logo que se submete aos ritos de iniciação ou a outras práticas que a coloquem
como chefe de família antes de 18 anos definidos por lei.
Além disso, é preciso pensar que a colonização europeia discriminou as crianças
negras de todo o aparato social, político e cultural, durante a sua presença efectiva em
África. Quer por uma quer por outra razão, é difícil afirmar, de forma categórica, que
houve alguma consciência substantiva no que diz respeito ao estatuto social da infância,
nesse século XVIII. Da mesma forma, é difícil dizer que a criança, hoje, é vista do mesmo
modo em todas as culturas, considerando a diversidade cultural que caracteriza os
países africanos e Moçambique, de modo particular.
Nesse sentido, Colomer (2003) tem muita razão, pois, para ela, não se pode
conceber o nascimento da literatura infantil e juvenil sem analisar a sua relação com as
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mudanças no conceito da infância produzidas no século XVIII – eu diria, em uma
determinada sociedade concreta, pois acredito que a literatura infantil, ou mais
concretamente a sua função social varia de época para época. Concordo com a autora
que os livros infantis são e devem ser vistos a partir da óptica da função que os legitima
socialmente.
Ou ainda é impossível entender como e por que aparecem certos elementos
literários nos livros infantis, sem relacioná-los com as mudanças sofridas. Dessa forma
o caminho aberto por esta perspectiva é o de uma análise da literatura infantil a partir
das múltiplas relações que estabelecem com as mudanças sociais vigentes em cada
momento histórico desta literatura, como uma parte importante da vida da sociedade.
(COLOMER, 2009).
De qualquer forma, a literatura infantil e juvenil, no mundo, surge no século XVII,
tendo um desenvolvimento particular no século XVIII. Silva (2009), no entanto, afirma
que a literatura infantil aparece no século XVII, com Fenélon (1651-1715), justamente
com a função de educar moralmente as crianças. Segundo essa autora, as histórias
tinham, nesse momento, uma estrutura, a fim de demarcar claramente o bem a ser
aprendido e o mal a ser combatido.
No entanto, outros autores como Souza (2016) dizem que as primeiras
referências aos contos dão-se a partir do século XVIII, na Europa, quando os
camponeses se reuniam em conversas ao redor de lareiras para narrar sobre
experiências, desejos e esperanças. É difícil indicar com muita precisão o século em
que surge a literatura infantil e juvenil, pois as fontes que consultei também não são
consensuais e as mesmas dificuldades são assinaladas por vários pesquisadores, como
Paz (1992), chegando mesmo a situar a aparição de género da literatura infantil o século
XVII e XVIII.
De qualquer modo, parece consensual a constatação de que os contos de fada
foram introduzidos na França por Perrault, o linguista que editou as primeiras narrativas
folclóricas contadas pelos camponeses (SILVA, 2009). Mesmo assim, outros autores
informam que a literatura infantil já existia muito antes de Perrault e dizem que essa
literatura pode ser encontrada na cultura erudita como literatura pedagógica (os textos
dos jesuítas), e sob a forma de literatura oral nas camadas populares – como contos e
provérbios. (SOUZA, 2016, p. 14).
Nesse sentido, acredita-se que, antes do cunho pedagógico, houve o objetivo de
leitura e contemplação pela mente adulta. Acredita-se também que a mitologia grega já
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possuía um modo particular de transmitir o contexto da história de “Chapeuzinho
Vermelho”. Posteriormente, Charles Perrault trouxe histórias moralizadoras adequada
aos ambientes sociais que conviviam na época. Na Alemanha do século XVIII, dois
irmãos, Jacob e Wilhelm Grimm, expandiram a literatura infantil pela Europa e América
a partir de sua iniciativa de uma pesquisa linguística acerca do idioma alemão.
Segundo Souza (2016), entre antigas narrativas, lendas e sagas apanhadas, os
irmãos Grimm encontraram grande acervo de histórias maravilhosas, que selecionadas
constituíram a coletânea conhecida por Literatura Clássica Infantil. Os contos foram
publicados avulsos entre 1812 e 1822, e depois em volume único como Contos de fadas
para Crianças e Adultos, hoje conhecidos por Contos de Grimm.
Como destaquei, a literatura infantil e juvenil deve ser analisada dentro de
contexto específico da sua produção. Em Moçambique, a literatura infantil e juvenil
aparece, sem dúvida, no final da década de 70, depois da independência da colonização
europeia. De acordo com Seccó (2007), os anos de 1980, 1990, 2000 foram decisivos
e, sobretudo, com o acordo de paz, que marca o fim da guerra civil, que envolveu as
forças governamentais da Frelimo e as forças da oposição da Renamo (Resistência
Nacional de Moçambique), em 1992, é que uma nova literatura infantil e juvenil começou
a surgir e ser editada. No entanto, é possível assinalar a circulação de contos
tradicionais mais antigos. Segundo Secco (2007, p. 9), “ouvir os mais velhos contadores
de estórias, sentar à sombra das árvores sagradas e se embevecer com narrativas,
cujos enredos e temáticas não separavam os homens da natureza, eram práticas
fundamentais que, entretanto, hoje, estão se perdendo”.
Segundo essa autora, com a liberdade conquistada tornou-se importante
ensinar crianças e jovens a colocarem dentro de seus universos imaginativos o real das
lutas guerrilheiras. Nesse sentido, segundo afirma a autora, a euforia pós-
independência, as críticas à colonização portuguesa são temas que aparecem
recorrentemente não só na literatura infantil e juvenil, mesmo na literatura adulta,
publicada em grande parte depois de 1975.

Crise na literatura infantil e juvenil


Desde o seu surgimento, a literatura infantil vem sendo permeada de
preconceitos, rótulos e banalizações acerca de sua importância, função pedagógica ou
artística, entre outras eventuais questões. De acordo com Santana (2007), algumas
pessoas insistem em considerar a literatura infantil como uma literatura secundária,
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associando-a ao termo infantil. Mas, segundo ela, esse facto não justifica que a literatura
infantil tenha sido somente para crianças, na verdade acaba sendo aquela que
corresponde de alguma forma, aos anseios do leitor que se identifica com ela
(OLIVEIRA, 2005, apud SANATANA, 2007, p. 94-95).
Essa crise surge mesmo dentro da própria literatura, que a todo o custo, separou
a análise da obra literária da cultura que se vive (BAKHTIN, 2011, MEDVIÉDEV, 2012,
ARENA, 2010). A esse respeito também, Silva (2009) diz que no seu surgimento a
literatura infantil e juvenil “nasce uma comparação hierarquizada com [...] a literatura
canonizada, a aceita pela academia, a lida e praticada pelo público adulto [...]”. Tendo,
por isso, a literatura infantil recebido “[...] o peso de minoridade, uma vez atrelada a um
projeto educacional (político-pedagógico) [...]” (SILVA, 2009, p. 133).
Além disso, como toda a literatura em geral, o facto de ter sido associada ao
projecto mercadológico, a literatura infantil e juvenil foi ainda mais desprezada porque:

[...] como parte da sistemática mercadológica venda e consumo,


pois é produzida para ser vinculada a um projeto político ligado
à educação e, consequentemente, à escola. Com isso, as obras
perdem o seu valor estético de observação do mundo, de
plasmar as ideias do cotidiano e de transformar o ser no seu
íntimo, [...]. (SILVA, 2009, p. 133).

Essa autora diz que pelo facto de os livros de literatura infantil e juvenil serem
feitos a partir das medidas do mercado, para um consumidor comum, encontramos livros
de péssima qualidade em todos os níveis. Além desse fenómeno, a autora cita outro
problema de outra índole que concorre para a banalização da literatura infantil e juvenil,
que decorre da sua associação, ora à função educativa, ora, exclusivamente, artística.
Os críticos da teoria literária preconizam que para que uma obra literária seja
séria deve ser predominantemente literária. Essa perspectiva corresponde à formulação
dos formalistas que conferiram à literatura uma função de linguagem especial, a função
poética que acabou sendo característica predominante das obras literárias para as
crianças nos últimos anos.
Segundo essa perspectiva, a literatura infantil e juvenil é um fenômeno
puramente estético. No entanto, pensando dessa forma, a utilização da literatura infantil
nos meios escolares tem sido amplamente errônea, pois esta literatura não procura ser
pretexto para ensinar a linguagem como uma prática social, mas representar a Arte, a
estética literária.

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No entanto, estudos recentes esclarecem que a literatura infantil e juvenil é uma
prática social no sentido de que não se separa da cultura, e por inserir a criança no
universo cultural, ela deve ser utilizada como instrumento de constituição dos sujeitos,
para a ampliação da capacidade e necessidade de ler o mundo.

Concepção da literatura infantil e juvenil na perspectiva da filosofia da


linguagem
Bakhtin (2011) e Medviédev (2012) quando pensam a literatura vêm-lhes à
mente a vida e o homem como sujeito vivo e concreto como uma unidade ideológica
inseparável. Corresponde ao que Bakhtin (2011) entende como vínculos mais estreitos
da literatura e cultura. Para esse autor, “a literatura é parte inseparável da cultura, não
pode ser compreendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época”
(BAKHTIN, 2011, p. 360). É nessa linha também que Medviédev (2012, p. 73) equaciona
“a literatura, como outra ideologia, é social do começo ao fim”, por isso que ela deve ser
estudada sempre na interação viva com a cultura e na unidade, pois “é somente nesse
processo de interação [...] que o leitor de um texto literário poderá se constituir como
sujeito cultural.
Essa compreensão é, a meu ver, extensiva, para a literatura infantil e juvenil.
Nesse sentido, encontro-me com Arena (2010), quando ele afirma que a literatura
(infantil) medeia a relação da criança com a cultura da sua época. Aliás, segundo esse
autor, pela literatura infantil, essa relação da criança com a cultura da sua época,
transcende para outras culturas, “[...] tanto para o passado quanto para o futuro [...]”
(ARENA, 2010, p. 15) porque se fosse somente com a sua cultura, a literatura não
acrescentaria nada na vida da criança. Não abriria o horizonte da criança para mais
além.
Realmente, e concordando com Bakhtin (2011) e Medviédev (2012), existe uma
concepção que estuda a literatura como um elemento fechado numa época, num grupo
social, numa cultura. Insistindo nessa concepção, a literatura infantil e juvenil só pode
aprisionar o leitor que estuda a literatura. Essa, no entanto, não constitui a tarefa da
literatura. Ou seja, com a literatura infantil as fronteiras das culturas se diluem e se
tornam porosas. E, somente nesse sentido, a literatura infantil desempenhará o seu
verdadeiro papel, assim como afirma Bakhtin, a literatura liberta – neste caso o leitor
literário – “[...] da prisão da cultura da sua época [...] “do cativeiro do tempo” (BAKHTIN,
2011, p. 365-366).
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É o mesmo que dizer que a literatura infantil e juvenil aproxima a criança não de
uma cultura apenas, mas de muitas culturas, por mais distantes que essas culturas
estejam da criança. Nesse sentido, a literatura infantil e juvenil acaba sendo, como
afirma Bakhtin (2011, p. 366) uma “alavanca mais poderosa para a compreensão” –
neste caso da cultura do outro. Segundo esse autor,

A cultura do outro só se revela com plenitude aos olhos de outra


cultura. Um sentido só se revela as suas profundidades encontrando-
se e conectando com outro, com o sentido do outro: entre eles começa
uma espécie de diálogo que supera o fechamento e a unilateralidade
desses sentidos, dessas culturas. (BAKHTIN, 2011, p. 366).

Portanto, essa abertura à cultura, a literatura infantil e juvenil não só facilita a sua
própria compreensão, mas, e, sobretudo, traz vantagens para as crianças-leitoras,
porque, quer lendo texto literário, quer ouvindo estórias narradas por alguém mais velho,
a literatura infantil e juvenil funciona como um importantíssimo recurso e meio que leva
a criança a descobrir o que Bakhtin chama de tesouros de sentidos (2011). Os tesouros
dos sentidos se escondem na cultura e na linguagem e só se conseguem descobri-los
quando a criança entra contacto com a cultura vida pela literatura.
A importância da literatura infantil e juvenil na perspectiva bakhtiniana é
inesgotável. É de destacar, conforme Arena (2010) e Bakhtin (2011) que a literatura
infantil e juvenil amplia o horizonte imaginativo. “As obras [da literatura infantil e juvenil]
dissolvem as fronteiras da sua época, vivem nos séculos, isto é, no grande tempo, e,
além disso, levam frequentemente [...] uma vida mais intensiva e plena [...]” (BAKHTIN,
2011, p. 362).
Essa situação considera a literatura como veículo das culturas de dois
interlocutores. Corresponde assim à própria noção da linguagem proposta por
Volóchinov (2019) como constitutiva dos sujeitos e um acto bilateral. Constitutiva,
porque, nesse contexto, a linguagem não comunica, mas permite a troca dos
enunciados pelos sujeitos, dos quais se formam e desenvolvem. Os enunciados são
correias de vida e da historicidade. E acto bilateral, pois a linguagem é determinada
tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele a quem se dirige. Dessa forma,
é possível definir também a literatura infantil e juvenil não apenas como mediação e
contexto cultural da criança, como foi visto anteriormente, mas também, “ela é
justamente o produto das inter-relações do falante como o ouvinte” (VOLÓCHINOV,
2019, p. 179).
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A situação da literatura descrita pressupõe o trabalho autoral, editorial, ensino e
aprendizagem, do professor e da criança-leitora muito apurado. Porém, apenas falarei,
neste artigo, do papel da escola e do leitor literário. É, portanto, considerando que a
literatura infantil não se separa da cultura que advogo ainda mais que a escola deve
realizar um trabalho autêntico de ensinar a literatura infantil como uma prática social,
isto é, como interação da criança com o texto, e não como um elemento isolado.
Algumas práticas orientam crianças para a valorização dos aspectos da forma
ou de conteúdo, sugeridos pelo texto literário ou uma obra literária integral. De qualquer
forma, todas essas práticas reduzem a importância que a literatura infantil e juvenil
proporciona. Ler ultrapassa a percepção desses aspectos. De acordo com Arena (2015,
p. 139), ler é encontrar-se com o outro, “[...] responder a perguntas do outro [...]”.
Esse autor, preocupado com o rumo da leitura da literatura – neste caso da
literatura infantil e juvenil – diz que para que a criança aprenda a ler literatura é preciso
que a escola ensine a literatura, isto é, ensine a criança a compreender a configuração
de uma obra literária, a ver a beleza estética no arranjo das palavras, apreciar a
articulação da estrutura da narrativa e de seus componentes. (ARENA, 2010). Mas, a
leitura não se limita somente a apreciação estética da obra é preciso levar em
consideração o meio ideológico que recobre a totalidade de uma obra literária
(MEDVIÉDEV, 2012), porque fora dele a leitura perde sentido e adquire um carácter
monológico. O meio ideológico, segundo esse autor, inclui a própria obra literária como
uma parte ideológica e suas relações ideológicas, outras obras literárias, outras épocas
e outras culturas.
Nessa preocupação, Arena (2003, p. 57) procurou identificar algumas
expressões recorrentes na escola, como “a criação do hábito, o desenvolvimento do
gosto, a promoção do prazer e o estímulo [...]” como grandes vilões da compreensão da
importância da leitura de uma obra literária. Segundo esse autor, essas expressões
supõem acções externas ao aprendiz, desencadeadas por agentes que buscam motivar,
provocar ou estimular tudo isso. Nesse sentido, a leitura de uma obra literária não é uma
acção intrínseca do aluno. Por exemplo, o professor ou outro leitor privilegiado impõem
uma obra de literatura para que o aluno desperte o gosto, prazer e hábito de leitura.
Resumindo, nesse sentido, a leitura da literatura torna-se obrigatória. Dessa forma, o
dialogar do aluno com o texto literário – à medida que a leitura da literatura pressupõe
uma acção externa de despertar o gosto, o hábito e prazer – fica limitado e, como diz

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Barbosa (1998 apud Barbosa, 2009), também a sua capacidade de o aluno organizar-
se como leitor crítico.
No entanto, ao contrário disso tudo, a literatura infantil e juvenil cria
necessidades, entendendo que “as necessidades não são criadas pelas ações pontuais
de agentes externos, mas na relação que o aprendiz mantém com os outros, todos os
constituintes do tecido social [...]” (ARENA, 2003, p. 58). Em outras palavras, segundo
esse autor, o gosto e prazer não são acções nem comportamentos de um leitor, no
sentido responsivo.
Um leitor responsivo é aquele que não dubla o sentido do texto literário lido.
Infelizmente, existe uma concepção muito vivaz na escola de que, para que o aluno
aprove nas aulas de leitura deve descobrir o sentido do texto literário. Não estou a falar
desse tipo de leitura, pois a literatura infantil e juvenil não serve para isso. Se a leitura
da literatura “esgotasse apenas nesse momento, ela seria uma simples dublagem e não
traria consigo nada de novo e enriquecedor.” (BAKHTIN, 2011, p. 365).
A leitura da literatura que pretendo revelar é a leitura responsiva, que pressupõe
pelo menos duas consciências vivas. Isto é, a consciência do leitor, de um lado, e, a do
autor do texto, do outro, são consciências distintas e vivas, que se encontram no acto
de leitura. Porém, nesse acto, “nesse momento dialógico de duas culturas elas não se
fundem nem se confundem: cada uma mantém a sua unidade e a sua integridade
aberta, mas elas enriquecem mutuamente.” (BAKHTIN, 2011, p. 366).
Dessa forma, não há dúvida, evidentemente de que ler literatura é participar de
um diálogo do qual saímos fortalecidos mutuamente. Diferentemente da leitura que fixa
sentidos (GERALDI, 2009), para que o aluno descubra, na leitura da literatura infantil, a
criança constrói seu próprio sentido. É verdade que esta leitura é complexa, porque
depende de um acervo cultural (ARENA, 2015), mas também da compreensibilidade do
texto e do meio ideológico (MEDVIÉDEV, 2012). Nesse sentido, a compreensão de uma
obra literária é uma compreensão criadora, assim como considera Bakhtin (2011, p.
366), porque quando a criança lê “não renuncia a si mesma, ao seu lugar no tempo, à
sua cultura, e nada esquece” por conta da cultura do outro.
Na realidade, a ideia de existência de um sentido pronto faz com que a leitura de
um texto da literatura infantil torne a compreensão desse texto uma compreensão
passiva. Nesse sentido, entendo que a forma como a literatura infantil é ensinada,
baseada numa perspectiva reducionista, não ajuda não forma leitores no sentido
dialógico e responsivo de construção de sentido. É pensando nas consequência dessa
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forma reducionista do ensino da literatura infantil que aqui proponho um debate ainda
mais profundo sobre o assunto, evidenciando-se práticas sociais de ensino da literatura
infantil e juvenil na Universidade Licungo.

Conclusão
As considerações que teci ao longo deste artigo deixam claro que falta algum
conhecimento sobre a importância da literatura infantil e juvenil na Universidade Licungo
e que o elemento essencial para a mudança desse cenário é a apropriação de uma
perspectiva de linguagem que possibilite o trabalho pedagógico mais humanizado da
literatura infantil e juvenil.
Analisei o PCLEB, o qual me revelou certa visão sobre a literatura infantil e
juvenil, segundo a qual a literatura visa desenvolver o gosto pela leitura de textos;
desenvolver uma competência comunicativa da linguagem e o sentido estético. Da
análise, procurei mostrar que a literatura infantil não se resume nisso, apesar de ser um
elemento fundamental.
Partindo das leituras que fiz dos estudos bakhtinianos, que investigam a literatura
infantil e juvenil como uma unidade inseparável da literatura e da cultura, irrealizável
fora do meio ideológico; sugeri mudanças, porque somente assim se pode alcançar o
objetivo almejado, que é a superação do problema da leitura e escrita. É nesse âmbito
que a leitura surge como um encontro dialógico, uma compreensão criadora activa.
Não há dúvida, evidentemente, que é difícil mudar um conhecimento que vem
cristalizado há séculos. Ainda assim, entendo que ainda existem possibilidades de
mudança do cenário evidenciado e tudo passa necessariamente pela melhoria da
qualidade do processo de formação de professores de literatura infantil sob práticas
dialógicas e responsivas fundamentadas pela filosofia da linguagem.

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LITERATURA E MERCADO: UMA LEITURA DE TRÊS NOVELAS
JUVENIS DE ALCIENE RIBEIRO

Drª. Karina de Fátima Gomes, Secretaria Municipal de Educação – Lins – SP

Eixo Temático: A literatura juvenil e jovens leitores

Discussão e análise pessoal das novelas infanto-juvenis de Alciene Ribeiro

Após análise das três novelas apresentadas, optamos por classificar as obras
Filho de pinguço (1983), O mágico de olho verde (1984) e Drácula tupiniquim (1989)
como novelas, a exemplo da pesquisadora Natália Tano Portela, que em sua
dissertação Poliedro feminino: faces da mulher em contos de Alciene Ribeiro (2018) faz
a mesma classificação. A pesquisadora faz uma classificação de outras obras
infantojuvenis de Alciene Ribeiro de forma diversa da nossa, pois considera Condão do
gira-mundo, Um jeito vesgo de ser e Lagarta atrevida, borboleta e vida como livros de
contos, e optamos pela classificação dada pela autora no momento da publicação,
sendo desta forma para esta análise livros infantojuvenil:
Apesar de a NBR 6029:2002 definir livro como publicações não
periódicas que contém acima de 49 páginas, consideramos, neste
trabalho, que os títulos Condão do Gira-Mundo, Um Jeito Vesgo de Ser
e Lagarta atrevida, borboleta e vida são livros de conto(s). Ademais, a
despeito de Condão do Gira-Mundo e Um jeito vesgo de ser terem sido
classificados, nas fichas catalográficas, como Literatura infanto-
juvenil‘, não os unimos aos demais infantojuvenis por terem, cada, um
conto publicado em outra coletânea voltada ao público adulto.
(PORTELA, 2018, p. 15).

Desta forma, elencamos três textos para serem explorados, considerando este
ser o universo completo do gênero novelas de Alciene Ribeiro, buscando comprovar a
unidade e a diversidade das novelas infantojuvenis da autora. Rauer (2013), no estudo
Aspectos estruturais das novelas do ficcionista brasileiro Luiz Vilela, afirma:

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Em termos estruturais, a novela se apresenta com diversos blocos
curtos, sequenciais, cronológicos, centrados na figura do protagonista,
sem digressões, coladas ao fluxo dos acontecimentos as poucas
passagens de reflexões do narrador autodiegético. (RAUER, 2013, p.
170).

Assim, concordamos com Rauer para seleção do corpus desta tese. A obra Filho
de pinguço foi a mais editada de todas as publicações de Alciene Ribeiro Leite e é a
mais estudada em âmbito acadêmico. Faremos inicialmente uma análise breve dos
estudos acadêmicos já desenvolvidos a partir da obra Filho de Pinguço.
Por ordem de publicação vamos apresentar a pesquisa de conclusão do curso
intitulado O conto de fadas revisitado: uma leitura de Chapeuzinho Vermelho,
Chapeuzinho Amarelo e Boné Vermelho, no ano de 2014, de autoria de Bianca Guiçardi
Silva, Suellen Daniele Pimenta, Vanessa Ribeiro Martinez, sob a orientação da
professora, na época doutoranda pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (concluído
em 2015), Maria Eloísa de Souza Ivan. A pesquisa foi desenvolvida no Centro
Universitário Municipal de Franca, no curso de Letras. A pesquisa apresenta três
capítulos, iniciando-se com uma breve abordagem da evolução dos gêneros literários
aos gêneros discursivos, mais especificamente do gênero infanto-juvenil, baseado em
pesquisas de nomes Coelho, Lajolo, Zilberman, Ceciliato, entre outros. O segundo
capítulo apresenta os pressupostos teóricos que contribuem à interpretação dos contos
que compõem o corpus da pesquisa, e um terceiro capítulo que se dedica à leitura
interpretativa e comparada dos contos Chapeuzinho Amarelo e Boné Vermelho, em que
se revelam os efeitos de sentido criados pelo discurso renovado em relação à tradição.
Chico Buarque de Holanda, em Chapeuzinho Amarelo, publicado em 1979, oferece ao
leitor essa literatura renovada. Utilizando-se de uma linguagem leve, cheia de humor
irônico, o poeta trabalha com um jogo de palavras que transforma o discurso literário,
desfazendo a dicotomia bem e mal. Cada escritor, conforme seu estilo e ideologia, cria
a sua versão renovada do conto de fadas. É o conto de fadas às avessas, já que o autor,
em um tom paródico, constrói seu discurso irônico, quando faz uso da cor amarela, em
referência ao regime político social da época, posicionando, assim, o leitor ao contexto
de repressão vivenciado [...] Na obra de Alciene Ribeiro Leite, Boné Vermelho (1988)
percebemos outros aspectos de cunho social como, por exemplo, a pedofilia, a
homossexualidade entre outros temas os quais serão abordados na nossa
leitura.(SILVA, 2014, p. 14-15). A pesquisa aponta caminhos da literatura infantojuvenil

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no Brasil, demonstrando algumas características presentes nas duas obras e que estão
presentes na literatura contemporânea para jovens: Em uma leitura comparada dos
contos de fadas Chapeuzinho Vermelho (1697), de Charles Perrault, Chapeuzinho
Amarelo (1979), de Chico Buarque e Boné Vermelho (1988), de Alciene Ribeiro Leite,
inferimos que os autores brasileiros estabeleceram um inevitável diálogo com o texto do
século XVII; no entanto, os dois autores brasileiros renovam a estrutura do tradicional
conto de fadas e com propostas carnavalizadas, paródicas oferecem ao leitor uma outra
possibilidade de leitura que vai ao encontro do contexto históricopolítico e social do país.
( SILVA, 2014, p. 24). Trata-se de uma pesquisa importante e relevante no universo
acadêmico por ser a primeira publicada sobre a obra da autora.
No ano de 2016, dois trabalhos acadêmicos de conclusão de curso (TCC), na
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus de Corumbá – CPAN foram
desenvolvidos sobre a obra Filho de pinguço, ambos sob a orientação do Professor Dr.
Rauer Ribeiro Rodrigues. Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges Amorim defendeu o
tema Um suspiro de liberdade: A mulher em Filho de Pinguço, de Alciene Ribeiro.
Juliana Amorim abordou em sua pesquisa a temática da mulher na novela Filho de
pinguço por meio de estudos sobre a trajetória de algumas mulheres da história feminina
no Brasil, também analisou a violência simbólica sofrida pelas personagens femininas e
a forma em que se dá tal violência. Amorim (2016) pesquisa a mulher no Brasil até o
século XIX, e no século XX, trabalha com o conceito de novela na obra de Alciene
Ribeiro e com a construção da narrativa, passando pelos temas da trama: alcoolismo,
miséria e violência, e analisa as mulheres da trama (mãe, tias Marlene e Marina,
professora Luiza e a prima Silvia). A conclusão deste TCC tem um título original e que
se remete à obra No final, há um suspiro e diz: A obra de Alciene Ribeiro se erige como
eco da voz plural da mulher brasileira do final do século XX, como choro, como ranger
de dentes, como drama e dor, mas também como registro da luta e das conquistas que
surgem do suspiro das mulheres no recesso do lar ou no selvagem mercado de trabalho,
da conquista diária e permanente, pois Alciene Ribeiro encena em sua obra o suspiro
da liberdade da mulher brasileira de seu tempo. (AMORIM, 2016, p. 74). E afirma que
Alciene Ribeiro, em sua obra, e na construção ficcional das personagens ―é a voz
feminina falando por outras mulheres (AMORIM, 2016, p. 77), quebrando de alguma
forma a violência simbólica que as mulheres brasileiras vivenciam no cotidiano.
Cibele Fátima do Prado pesquisou as personagens da novela Filho de pinguço,
e seu trabalho de conclusão de curso foi intitulado A construção das personagens na
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novela Filho de pinguço, fazendo a análise de todas as personagens da obra, em uma
observação dos protagonistas, que Prado afirma serem o menino, o pai e mãe.
Abordando a personagem da mãe, Prado faz relação dela com as de outras
obras de Alciene, demonstrando a mulher subjugada pelo marido e pelo sistema
patriarcal: Ela pensa em largar do marido, mas recua ao pensar nos meninos e no nome
que tem a zelar, sofre por estar com a família naquela situação. Parece-nos que a mãe
é uma mulher frustrada por ter um marido alcóolatra, vício que gera uma série de
problemas familiares como a situação financeira deteriorada, as frequentes brigas, a
insegurança emocional para o filho. Falar sobre o sacrifício da felicidade pessoal para
manter um casamento fracassado é uma constante das obras de Alciene Ribeiro Leite,
a exemplo dos contos: Lar doce lar, O João nosso de toda hora (LEITE, 1981) e Alforria
para as hortênsias (LEITE, 1987), entre outros. (PRADO, 2016, p. 45). Quando analisa
as personagens secundárias, Prado explora as mazelas da vida conjugal; quando trata-
se dos tios, um não trabalha, a outra é fofoqueira, a outra é mal humorada, bem como
atribui um olhar afetivo à professora Luiza, que acolhe o menino: ―[...] qualquer dúvida
me procure depois da aula, viu‖ (LEITE, 1983, p. 15), além do dono do bar, Seu João,
com maiúscula, dando mais poder e autonomia à personagem do que realmente tem,
porque para o menino o dono do bar é uma autoridade, pois vende fiado ―de favor‖, e
sempre tratando a família como minoria. A prima Silvia também tem papel importante
porque desperta no menino sentimentos positivos; mas também negativos, de inveja
dos colegas de escola, por exemplo. A pesquisa de Prado (2016) trabalha com o gênero
novela, em específico com a novela infantojuvenil Filho de pinguço, abordando traços
neonaturalistas, explora as personagens de ficção e analisa no terceiro capítulo a forma
de construção das personagens na novela, protagonistas e personagens secundários.
Esta análise diferencia-se na análise de personagens com relação à pesquisa de Prado
(2016) por considerar apenas o menino como protagonista, diferente de Prado que
considera a mãe, o pai e o menino como centrais na obra, e concorda com Carmo
(2018): O menino é o protagonista absoluto da focalização, confirmamos essa escolha
já observada em outras narrativas, mas também em situações como essa em que a
autora usa de artifício – o deslocamento para confirmar tal escolha no enredo:

- Hê, pai, dá um beijo – falou apertando o garoto‘. (LEITE, 1986, p. 5).


Nesse fragmento, percebemos que a fala que seria do menino está na
boca no pai, reforçando assim o ponto de vista do menino. Em
situações como essa, cercada de grande tensão – a chegada do pai
embriagado e forçando ganhar um beijo do filho –, percebemos que o
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narrador observador, ao primar pela focalização na criança, reforça
ainda mais a tensão que é uma constante na novela. (CARMO, 2018,
p. 94).

A pesquisadora Carmo (2018) da UFMS apresenta a dissertação A esperança é


um doce: Filho de pinguço no acervo de Alciene Ribeiro, que se propõe, primeiramente,
a classificar e catalogar parte do acervo literário da autora mineira Alciene Ribeiro, bem
como descrever e organizar o acervo pertinente à obra analisada Filho de pinguço e
realizar a sua análise. Carmo (2018) cataloga o acervo recebido e registra o material
conforme orientações contidas no Manual de organização do acervo literário de Érico
Veríssimo, de Bordini (2014), sendo esse acervo composto por 891 documentos, dos
mais diversos tipos, tais como correspondência emissiva e receptiva, dedicatórias,
entrevistas, fotografias, memorabilia, livros, prêmios, contratos. O foco da pesquisa são
os documentos relacionados a obra Filho de pinguço, sendo dezoito documentos que
mencionam a novela nas diversas fases de sua produção, da gênese à circulação da
obra. Trata-se de uma narrativa lançada em 1983, ano em que recebeu o Prêmio
Coleção do Pinto, e que teve novas edições em 1986, 1989, 1991, 1992 e 1995. A autora
teve intensa produção ficcional nos anos 1970-1980, produção que decaiu na década
de 1990-2000 e que agora vem tendo uma anunciada nova leva de textos para vir à luz.
(CARMO, 2018, p. 6). Esses textos a que se referem Carmo (2018) estão em
andamento, tendo sido lançada no ano de 2018 a obra Você precisa de resposta –
manual de espiritualidade, pela Editora Eme, Capivari-SP, e no ano de 2019 a coletânea
de contos Mulher explícita, pela Editora Pangeia, Uberlândia-MG, reavivando a obra e
o projeto estético de Alciene e incentivando o aprofundamento das pesquisas da obra
da autora. A dissertação de Carmo representa um importante registro do acervo de
Alciene Ribeiro, que se compõe de inúmeros documentos inéditos e cujo trabalho
apenas se iniciou, tanto nos referimos à quantidade de material catalogado e ainda por
catalogar, quanto relacionado à qualidade e à organização dele pela própria autora, com
muito zelo e apreço por seus pertences, demonstrando assim o valor que a literatura
tem para si e para a comunidade acadêmica e também para o universo da literatura
brasileira. Desta forma, damos início às conclusões sobre as três novelas infantojuvenis
selecionadas como corpus desta pesquisa. O exemplar selecionado para a realização
desta análise é a primeira edição, da Editora Comunicação, de Belo Horizonte, no ano
de 1983, tendo por editor André Carvalho, as ilustrações e capa são de Isabel Cristina,

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fazendo parte da Coleção do Pinto. A segunda edição lida é da mesma editora e faz
parte da mesma coleção, porém o editor responsável muda, sendo Maria Ângela de O.
Torres, com capa e ilustrações de Manoel Victor de A. Filho. A terceira e quarta edições
são da Editora Lê, Belo Horizonte, com capa e ilustrações de Jarbas Juarez, e fazem
parte da coleção Transalivre, respectivamente nos anos de 1989 e 1991. A novela teve
duas edições (1983 e 1986) publicadas pela Editora Comunicação e, a partir de 1989,
passou a ser editada pela Editora Lê, que publicou, entre 1989 e 1997, cinco edições.
(CARMO, 2018, p. 68).
A pesquisa de mestrado de Carmo (2018) na UFMS indica que ocorreram sete
edições da obra Filho de pinguço; sendo as duas primeiras da Editora Comunicação, e
todas as posteriores pela Editora Lê. A obra O mágico de olho verde teve uma única
edição, pela Editora Nacional, em São Paulo, no ano de 1984. Com capa de O.
Sequetim, pertencente à coleção Passelivre, sendo o volume oito. Drácula tupiniquim
(1989) foi editado pela RHJ, em Belo Horizonte, seu editor foi Rafael Borges de Andrade,
com ilustrações de Rosa Maria Schetttino, compondo a Série Viagem 7. Teve a primeira
edição em 1989 e uma segunda edição no mesmo ano, (aparentemente houve só uma
reimpressão da mesma obra, apenas com uma indicação de 2.ª edição na capa).
Conforme estudos teóricos realizados no capítulo cinco, o gênero novela é para Moisés
(1967) um gênero próximo do cotidiano, destinada à distração, ao passatempo, sendo,
portanto, uma literatura fluída e leve, destinada a um público menos pronto para a leitura
literária, afirmando também que na ação a novela é ―essencialmente multífoca,
polivalente. (MOISÉS, 1967, p. 130), sendo constituída por uma série de unidades ou
células dramáticas ligadas entre si, ou seja, tem grande pluralidade dramática, com
sucessividade de acontecimentos. Com relação ao tempo, Moisés afirma ser o narrador
―dono do tempo (MOISÉS, 1967, p. 131), como observamos claramente nos textos de
Alciene.
Na obra Filho de pinguço, o tempo da narrativa dá-se em um fim de semana
prolongado, de feriado, e no retorno à rotina da escola na segunda-feira – espaço
temporal em que todos os acontecimentos narrados se passam:

A sexta-feira caiu num feriado, veio sábado, domingo. Três dias dentro
de casa, sem serviço. Cinco garrafas vazias no chão, muito toco de
cigarro, a sala fedendo: corpo, hálito, fumo. Nem tomou banho, trocou
roupa. Três dias. (LEITE, 1983, p. 5). Demorou dormir, ideias na
cabeça, medo, raiva. Urinou na cama, sonhou com a prima. Fez força
para sonhar de novo mas já amanhecia, hora de se levantar, segunda-
feira, a aula. (LEITE, 1983, p. 21-22).
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Em Mágico do olho verde, a descrição do tempo é subjetiva, mas está sempre
sob o domínio dos narradores, ora a menina Mila, ora um narrador memorialístico, que
entra e sai, trazendo sempre as memórias da família: Meu pai morreu e fiz aniversário
em pouco tempo. Cresci na cabeça, a maminha, só meio limão. (LEITE, 1984, p. 7).

Mila acordou com preguiça, o corpo mole. Olho fechado, e lembrou, é


Natal. Quase tão bom quanto aniversário. Dos outros. O dela subjuga
a culpa mais profunda. É o calendário bater com a certidão e desde a
fossa. Desde os cinco de idade. A cada ano se repete em expectativas,
mas a agenda do dia D‘ lembra o passado vinte e quatro horas. (LEITE,
1984, p. 41). - Todo Natal é importante, não é, mãe? Lá em Ituiutaba o
papai (...). (LEITE, 1984, p. 46).

A obra Drácula tupiniquim tem a questão do tempo bastante marcada, são fatos
que acontecem em um dado período, em que acontecem os assassinatos, crimes e o
período de investigação. A narrativa é rápida, como o passar do tempo: No calendário
é a quaresma, estação do sobrenatural. De preferência na lua cheia, em ermo de beira-
rio. (LEITE, 1989, p. 11). Oito dias durou a operação-morcego. Um jogo de esconde-
esconde, acha e desacha. Apoio na arte e captura aprendida nos quartéis, no espaço
aéreo, na selva de verdade e na urbana. Homens-rãs e bombeiros vasculharam o rio.
Aventureiros do lugar na retaguarda usam os truques observados nas esquinas da vida.
No nono dia puseram-lhe as mãos e algemas. (LEITE, 1989, p. 27). A análise do espaço
confirma nossa teoria de que ele é resumido aos locais onde a narrativa acontece; no
caso de Filho de pinguço, a casa, a rua, a escola; em O mágico de olho verde, a casa,
mas principalmente as memórias de Mila, personagem narradora; e em Drácula
tupiniquim, a cidade e suas ruas. Sempre com ênfase nos fatos acontecidos no lugar
citado na obra, sendo assim os espaços apenas cenários onde a trama se desenrola.
Em Filho de pinguço, os espaços são muito indicados pelos diálogos e
observam-se as mudanças de ambiente, da casa, bar, escola: O pai não tinha sono, até
tardão zonzonando pela casa. (LEITE, 1983, p. 7). (...) Reza baixinho, a cabeça
escondida debaixo da coberta, uma tremura no corpo. (LEITE, 1983, p. 7). No diálogo
com Seu João, dono do bar:

- Seu João, duas cervejas e um Roliúde. - Seu pai tá em asa, garoto?


- Tá sim, senhor. - Ele não vai sair não? - Acho que não, não senhor.
(LEITE, 1983, p. 9). Ou no diálogo com a professora Luíza: - Tia Luíza,
quê é cirrose? - Cirrose...? Cirrose é uma doença que dá no fígado de
pessoa viciada em bebida alcoólica. (LEITE, 1983, p. 15).

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A relação do espaço físico com as personagens é bastante presente, o espaço
físico da sala é degradado, sujo, desorganizado, em relação com a imagem paterna:
(...) a sala é fria. Tem até a marca da cabeça do pai no sofá, mancha escura, ensebada;
esquece de cheirar, mas aposta: fede cabelo sem lavar de velho. (LEITE, 1983, p. 8)
O sofá é citado em toda a narrativa, como uma extensão do pai, como no
momento em que este perde o abridor de garrafas (LEITE, 1983, p. 20), ou no
encerramento da narrativa, na última página do livro (LEITE, 1983, p. 42), dando a
sensação de que o espaço não se vai modificar, e que o pai vai continuar ali, em um
ciclo que não tem fim. - Ajuda aí moleza, olha debaixo do sofá, quê que tá esperando,
ficou bestado? (LEITE, 1983, p. 20). O pai desmoronou no sofá. (LEITE, 1983, p. 42).
Em O mágico do olho verde, o espaço da casa domina toda a narrativa, seja na
descrição do espaço real, presente, seja nas memórias, na casa antiga e na nova casa,
para onde se mudaram após a morte do pai, trazendo com a mudança do espaço físico
a mudança da vida também, as novidades, os novos rumos: Antes de cochilar, a última
noite passei na base do cochilo, resolvi uma coisa. A boba pensou que adiantava trazer
terra de lá. Papai não veio nada. (LEITE, 1984, p. 11). O grave da hora: mandar aviso
para onde não tem correio, telefone e estrada; não vai carta, interurbano, carro, ónibus,
avião. Nem tem mar, rio, lago ou ciclovia, para levar navio, lancha, canoa, jangada,
bicicleta. Onde não entra carroça, cavalo, nem gente viva despachada com recado na
boca. Um quebra cabeça. (LEITE, 1984, p. 12). Drácula tupiniquim tem o espaço das
ruas e da cidade marcado também pelos diálogos: Nem dia, nem noite. Vento frio lambe
as falas de esquina a outra, murmúrio algo lúgubre, assustadiço. Raros transeuntes
apressados. (LEITE, 1989, p. 5). O rosto imutável frente aos curiosos na delegacia;
durante o interrogatório. (LEITE, 1989, p. 31). Com relação a personagens, Moisés
analisa que o número muda radicalmente com relação ao conto, pois os protagonistas
são inúmeros, sendo muitas personagens secundárias também. A trama tem ritmo
―acelerado, precipitado, decorrente do fato de basear-se mais na ação do que nos
caracteres‖ (MOISÉS, 1967, p. 136). Filho de pinguço tem as personagens principais
sem nome próprio, em uma nítida desvalorização do próprio núcleo familiar, denegrido
pela bebida, pela violência doméstica, pela desestrutura familiar; em comparação, as
personagens secundárias (com famílias estruturadas), em que todos são nomeados: tia
Marlene, tia Marina, tio Wolney; bem como os amigos ou familiares deles: Mauricio,
Silvia, Fran, Seu Juellas, ou mesmo o dono do bar, Seu João, e a professora, Tia Luíza.
Em seu trabalho de conclusão de curso, a pesquisadora Cibele Prado afirma que: A falta
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de nome para os protagonistas pode indicar o fato de todos os três enfrentarem sozinhos
os seus conflitos ou ainda pode representar os valores de um mundo desestruturado,
representação mimética de uma sociedade desajustada em que essas personagens
sem nome estão mergulhadas. (PRADO, 2016, p. 37). A personagem central é tratada
como ―menino (LEITE, 1983, p. 5), ―garoto (p. 5 e 11), ―bichinho (p. 18), ―filho (p.
42), seus familiares de primeiro grau como ―mãe, ―pai: O pai abraçou o menino, um
cheiro forte de suor, cachaça e cigarro. (LEITE, 1983, p. 5). O menino não gosta de
discussão. Medo do pai bater na mãe, da mãe empurrar e ele cair igual um dia. (LEITE,
1983, p. 7). O pai não toma banho e a mãe não deixa ele dormir na cama grande. (LEITE,
1983, p. 8). - Uai menino, na conta, ora! e outro Roliúde com filtro. Mas primeiro chama
sua mãe aqui. (LEITE, 1983, p. 27).
O ―menino demonstra grande sofrimento na trama, seja por suas angústias
pessoais, seja pela preocupação com a mãe, seja pela preocupação ou mesmo remorso
com o pai: Acontecia dele chegar da rua com aqueles cheiros. Aí enfezava por nadinha
de tudo, gritava com a mãe, batia nos meninos. Mas antes ficava chato, e era o
interrogatório: só pergunta com resposta que já sabia. Perguntava para ver repetir
vantagens: gracinha de criança, bonito na escola, valentia na rua. (LEITE, 1983, p. 6).
Outra preocupação do menino é a saúde do pai, pois a tia Marlene sempre afirma
que o pai vai morrer de cirrose, e ele pergunta para sua professora sobre a doença, e
entendendo ser grave, preocupa-se com o futuro da família, com o sustento de todos,
com a solidão da mãe. Suas preocupações são tão grandes, que ele dorme mal, urina
na cama: Sonha muito, fala de noite, faz xixi na cama de vez em quando. (LEITE, 1983,
p. 8).
Quem morre primeiro, a mãe ou o pai? ela sabichona, formada normalista, ou
ele escondendo o quarto primário atrás do copo? Dói mais morte de cirrose ou de barriga
de mulher? Mãe chorosa ou pai espancando, qual faz mais falta até ele se virar sozinho,
carteira no bolso? (LEITE, 1983, p. 21).
É outra característica do menino o sonho com a vida adulta, ou com dias
melhores, com o pai não alcoólatra: Quando fosse rico nunca mais ia comprar fiado.
(LEITE, 1983, p. 11). Mas deseja o lugar: só ele de filho, geladeira assim d e guaraná,
neca de cerveja. Sábado e domingo, toca assear de moto. Pai e filho às risadas diante
da sua porta. (LEITE, 1983, p. 28). 160 O desejo de ter outra vida, as frustrações de ser
filho de alcoólatra, o desejo de brigar para extravasar aqueles sentimentos todos, o
levam a brigar na rua para defender o pai, o menino apanha, e o conflito externo chega
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a casa e reflete-se na condição do casal, o pai vangloriando-se da briga do menino, a
mãe enfrentando o sofrimento calada, chorando pelos cantos: Num pode é levar
desafora pra casa, filho meu num leva desafora para casa, escuta só, vivo repetindo pra
ele num baixar a crista ara nenhum frangote, o bichinho tá aprendendo, mulher. (LEITE,
1983, p. 38). Não foi choro alto nem calado, mais parecia suspiro, gemido, como se
alguma coisa tapasse a garganta, segurava a fala. O menino não conhecia aquele
choro, um modo novo da mãe sofrer, porque ela estava sofrendo paca, não tinha dúvida.
(LEITE, 1983, p. 39). As personagens da obra Filho de pinguço são personagens planas,
que vivem e revivem seus conflitos pessoais do início ao final da narrativa: O pai é
alcóolatra em toda a narrativa e, apesar de sentir muito pelo menino ser xingado de filho
de pinguço, não muda seu comportamento. Manda o filho mais uma vez comprar bebida
alcóolica, mas desta vez à vista. A mãe permanece infeliz e o menino continua vivendo
seus conflitos do começo ao fim do livro. Pai, mãe e menino não alteram seu
comportamento e também não evoluem psicologicamente ao longo da trama. (CARMO,
2018, p. 100 ).
O mágico de olho verde tem as personagens principais na figura da menina Mila
e nas memórias que ela tem do pai e o mágico do olho verde, não nomeado na trama;
as secundárias são a mãe Carmem, seu namorado novo Fernando, o irmão Júnior, o
amigo e o namorado Gilberto. Pitchura, o apelido carinhoso que a mãe Carmem lhe dá,
aparece nas situações de aproximação entre elas: - Que foi, Pitchura? – obrigou-a a
erguer o rosto. - Você chorou? (LEITE, 1984, p. 45).
A exemplo da análise realizada por Portela (2018):

―Em todos os contos com protagonista infantil feminina, a


personagem apresenta traços de independência e desajustamento ou
inconformidade com os padrões comportamentais dos adultos‖
(PORTELA, 2018, p. 32), a personagem narradora da obra O mágico
de olho verde, Mila, demonstra traços de independência, mesmo
tratando-se de obra destinada ao público infantojuvenil: Pouca menina
da minha idade viveu tanto quanto eu. Sou nova, estou no primeiro
namorado, o Gilberto. Quer dizer, ele não sabe, um dia conto. Mas de
acontecidos sou quase velha. (LEITE, 1984, p. 7).

Drácula tupiniquim tem como personagem o coletivo, sem nomes. O monstro


assassino, responsável por todas as mortes, recebe um nome em toda a narrativa:
―Coisa (LEITE, 1984, p.15). Todas as personagens são generalizadas: velho, mulher,
menino, homicida, criminoso, policial, político: Beraninho o rio. Do lado de cá. De hoje
para amanhã. Sexta-feira. Celho. Menina. Mulher. (LEITE, 1984, p. 5). O grito, tanto de

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uns como de outros – Homem matado!(LEITE, 1984, p. 7). O criminoso ronda por ali na
calada da noite. (LEITE, 1989, p. 9). Candidatos a candidatos às próximas eleições
perseguem microfones, não importam as ondas curtas, médias, longas ou FM. Qualquer
caixote, degrau ou tijolo serve de tribuna.(LEITE, 1984, p. 25).
A linguagem das obras difere-se pelo contexto social das personagens. Filho de
pinguço usa uma linguagem muito coloquial, com gírias e abreviações, enquanto O
mágico de olho verde tem uma linguagem rebuscada, metafórica, sonhadora, como
Mila, sua personagem principal, e Drácula tupiniquim tem a linguagem noticiosa, adulta,
jornalística, A linguagem utilizada por Alciene para compor suas obras e seu projeto
estético é uma das diversidades de sua obra, pois a autora tem o domínio da palavra e
usa-se disso com maestria para a composição de suas obras. A metáfora é uma
característica marcante em sua linguagem, e faz-se presente nas três novelas
infantojuvenis analisadas, bem como em toda a sua obra, mostrando a unidade.
Conforme nossa classificação, a faixa etária a que as obras destinam- se é entre os 11
e 13 anos, o que seria hoje para alunos entre o quinto e sexto ano do ensino
fundamental, conforme classificação de Coelho (2010, p. 37), pertenceria ao Leitor
Fluente, faixa etária a partir do 10/11 anos, que se caracteriza pela fase de consolidação
do domínio do mecanismo de leitura e da compreensão do mundo expresso no livro e
também ao Leitor Crítico, faixa etária a partir dos 12/13 anos, fase em que ―o
adolescente se abre plenamente para o mundo e entra em relação essencial com o
outro (COELHO, 2019, p. 39).
Essas características de faixa etária leitora conversam com as temáticas das três
novelas selecionadas como corpus, pois todas têm temática direcionada para o público
leitor que tem capacidade de abstração, com pensamento hipotético dedutivo e que tem
a capacidade de projetar, de colocar-se no lugar do outro, de compreensão de valores.
A temática da obra Filho de pinguço: alcoolismo, violência doméstica, agressões eram
pouco comuns na literatura do período, que se mostrava mais realista e menos
romântico, levando a realidade de diversas crianças e jovens para dentro do livro, de
forma a gerar reflexão, mudança de postura, sensibilização. Sobre a abordagem da
temática do alcoolismo em Filho de pinguço, segundo declaração da própria autora
grafada na orelha do próprio livro, sua novela era o único texto brasileiro destinado a
adolescentes e jovens que tratava com ternura e profundo sentimento humano do
terrível problema que é o alcoolismo (RIBEIRO, 1983, orelha).

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Pensamos que a aceitação por parte do mercado editorial para com a obra da
autora, que traz em sua temática os transtornos que o alcoolismo paterno acarreta a
uma criança, fora realmente narrado de forma tão humanizada, pois teve boa aceitação
e ganhou o prêmio literário (Coleção do pinto, 1982), como também foi dramatizada em
escola pública do estado, em Minas Gerais, o que prova que a obra apresentara uma
boa contribuição social para a juventude. (CARMO, 2018, p. 71). Tanto o alcoolismo
quanto a violência, constantes na narrativa, levam o jovem leitor a refletir sobre seu
papel social, buscando mesmo que nas entrelinhas e com o uso da linguagem
metafórica característica de Alciene Ribeiro, sua vocação pedagógica, conforme afirma
Coelho (2000, p. 31). A violência que o pai comete contra o filho, seja ela física ou
psicológica, nos remete ao modo da autora ver a Literatura.
Segundo Alciene (1978), essa arte é canal de denúncia das opressões pelas
quais passam as pessoas. Diante desse ponto de vista da autora, a novela aborda em
seu enredo o que as pesquisas apontam sobre maus tratos contra as crianças, que
mostra que os primeiros transtornos psíquicos oriundos do vício do pai geram
sentimentos oscilantes na criança, que, frágil e temerosa, ora sente amor, ora raiva.
(CARMO, 2018, p. 81).
A obra O mágico de olho verde trabalha a morte de um familiar próximo (pai),
mas mostra principalmente a negação da protagonista na aceitação desta realidade, e
todos os conflitos que ela enfrenta, a partir deste ponto, desde a saudade até a negação
do novo relacionamento da mãe e as mudanças que a nova situação lhe impõem; desde
a mudança de casa (física) até a mudança da imagem da mãe, mais moderna, com
roupas despojadas e ar juvenil, decorrente da alegria do novo relacionamento. 163 O
novo relacionamento da mãe também pode ser visto como temática secundária da obra,
se analisado sob o aspecto de que tudo na vida da personagem Mila transformou-se
com a morte do pai; e o novo, tudo que é diferente e causa espanto, gera angústia e
sofrimento, como o psicólogo Vygotsky a isso chama de zona de desenvolvimento
proximal, saída da zona de conforto, mudança de hábitos. Coelho (2000) define a
contemporaneidade da literatura infantil e juvenil: Enfim, o que hoje define a
contemporaneidade de uma literatura é a sua intenção de estimular a consciência crítica
do leitor; leva-lo a desenvolver sua própria expressividade verbal ou sua criatividade
latente; dinamizar sua capacidade de observação e reflexão em face do mundo que o
rodeia; e torná-lo consciente da complexa realidade em transformação que é a

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sociedade, em que ele deve atuar quando chegar a sua vez de participar ativamente do
processo em curso. (COELHO, 2000, p. 151).
Drácula tupiniquim aborda a violência, comum nas grandes metrópoles e, cada
dia mais, avançando para as pequenas cidades, e todo o impacto que essa violência
gera na vida cotidiana, como a mudança de hábitos gerada pelo medo, pelo vandalismo,
pelo abandono dos agentes políticos e policiais, sobre a forma com que as autoridades
lidam com o problema. Todos esses assuntos são tratados por meio dos diálogos entre
as personagens, de forma rápida, fluida, incorporada ao dia a dia, transformando a
violência em algo banal, cotidiano, supérfluo, de modo a banalizar o mal. Primeiras
conclusões Desta forma cabem algumas reflexões importantes: O que é comum nas
três novelas? Considerando as três novelas como obras destinadas a adolescentes dos
anos 1980 - 1990? Assim, as três novelas de Alciene Ribeiro podem ser analisadas
como unidas por atender às mesmas características de literatura infantojuvenil de um
período histórico, em que a obra literária para jovens buscava o realismo, o novo, a vida
das ruas. A autora procura em todo o seu projeto estético enfatizar o papel da mulher
na sociedade, o que também se reflete nas três novelas. Em Filho de pinguço, a esposa
subjugada, casada com um bêbado, sofrida e amargurada, presa a um casamento por
conveniência social, em que não há respeito ou amor. Na obra O mágico de olho verde,
a nova mulher que surge com a morte do marido, mais remoçada, mais moderna, com
164 batom e sorriso nos lábios com o novo namorado. Em Drácula tupiniquim, o medo
de andar na rua, o abuso sexual, a violência contra a mulher. Além disso, a literatura de
Alciene contempla as características de obra para o público jovem de uma geração, do
boom da literatura infantil e juvenil no Brasil dos anos de 1980 e 1990, período em que
as três novelas foram publicadas (1983 – 1984 – 1991).

Considerações Finais
As características comuns nas novelas demonstram a unidade nas obras de
Alciene. Ao mesmo tempo, a obra da autora mineira tem uma diversidade ímpar de
vocabulário, de possibilidades de interpretação, de abordagem do papel da mulher na
sociedade, por exemplo. Apesar das obras terem sido produzidas em um período
histórico muito diferente do atual – relacionado aos meios de comunicação e sua
agilidade de informação –, de forma que a leitura, digo a narrativa, demonstravam um
ritmo muito mais lento, e mesmo assim consegue conquistar as crianças e jovens
leitores; as narrativas envolvem o público juvenil atual por terem temáticas universais e
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que, mesmo na atualidade, em concorrência com as TICs (Tecnologias de Comunicação
e Informação) continuam envolvendo o leitor, em uma demonstração da importância e
do valor estético de sua obra. Para comprovar a unidade e a diversidade das novelas
juvenis de Alciene, comparamos as obras a de outras autoras do período histórico, como
Ângela Lago, Marina Colasanti, Vivina de Assis Viana, Lygia Bojunga. Sua literatura é
diversa por não apresentar características de literatura informativa, muito sutil nas obras
de Alciene, o que não é uma constante no período em que as obras tinham o potencial
informativo também, além de uma linguagem mais direta, mais simplificada, de fácil
leitura e interpretação por parte do público jovem. Sua obra se mostra diversa também
porque abrange um período em que a literatura para jovens era de maneira geral
padronizada, e a obra de Alciene Ribeiro foge a esses padrões, principalmente
linguísticos. Ao mesmo tempo em que se une às demais por atender expectativas do
mercado literário, quando a autora se coloca na condição de editora (RHJ – Belo
Horizonte, MG) e isso impulsiona suas publicações, muitas delas visando a atender ao
mercado editorial, como vimos no capítulo que trabalha com a influência do mercado na
produção infantil e juvenil deste período. Essa discussão leva-nos à conclusão de que
as três obras são catalogadas como novelas, por contemplarem as características do
gênero apresentadas no capítulo ―Literariedade e gêneros literários: conto, romance e
novela – uma análise de obras de Alciene Ribeiro‖ Concluindo: A denúncia que Alciene
apresenta em suas obras são gritos por socorro de uma sociedade oprimida pelos
desmandos causados pela infelicidade do ser, para que possa mudar sua história de
angústias e anseios e possa ter uma vida próspera e feliz. (CARMO, 2018, p. 95).
As análises aqui apresentadas permitiram-nos concluir que Alciene Ribeiro faz
da literatura um meio de denúncia social, e a tensão do olhar da criança é que faz a
focalização gerar a denúncia que é a função da literatura, como proferido por Alciene na
epígrafe desta nossa dissertação. Ao incumbir um narrador em sua obra de descrever
tão objetivamente as amarguras vividas por uma criança junto ao pai alcoólatra, a autora
faz de sua escrita um portavoz para alertar a sociedade sobre as intempéries que o vício
paterno acarreta para toda a família, e de forma ainda mais impiedosa, para uma criança
indefesa. Em sua narrativa, quando essa permite que a personagem tenha sua vontade
satisfeita, cremos que a autora, com esse pincelar na escrita, acredita que a
humanidade pode purgar seus desvarios, há sempre esperança de um momento novo
que signifique o fim das amarguras pretéritas. (CARMO, 2018, p. 100).

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Carmo (2018) faz uma conclusão muito pertinente com relação à obra de Alciene
Ribeiro e às perspectivas de pesquisa: Elucidamos que este trabalho de pesquisa com
o acervo de Alciene Ribeiro não termina aqui; ao contrário, configura-se como
documento ou como passo inicial para pesquisas futuras, sejam de nossa autoria, seja
de outros pesquisadores interessados por uma autora e uma obra tão singulares, ainda
à espera de leitores e de críticos. (CARMO, 2018, p. 101).
Temos, como a autora da dissertação, plena convicção sobre o potencial de
pesquisa da obra e do acervo de Alciene Ribeiro, e que os trabalhos acadêmicos, os
leitores e os pesquisadores de obra tendem a aumentar substancialmente, e a reedição
de suas obras está cada vez mais próxima da realidade, pois seus livros, antes
disponíveis e acessíveis financeiramente em ―sebos‖ do país (principalmente com
vendas pelo site Estante Virtual) encontram-se em sua maioria esgotados, e obras como
Borracha nele! (1991), livro infantil de Alciene sendo vendido por R$99,00, valor muito
acima do mercado literário infantil de livros usados; ou Nos beiras da memória, sendo
vendido por R$55,00; assim, vemos uma valorização da obra de Alciene Ribeiro.

Referências
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Horizonte: RHJ, 1989.

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LITERATURA PARA JOVENS LEITORES: A ATUAÇÃO DO
MERCADO LIVREIRO83

Juliana Garcia de Mendonça Hanke, Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Eixo Temático: A literatura juvenil e jovens leitores

Considerações iniciais
Após mais de cem anos do falecimento de Machado de Assis, seus textos
continuam em circulação chegando às mãos de públicos diversos, uma vez que os
limites de suas obras foram alargados. Esse alargamento das fronteiras é o enfoque
desse artigo, cuja discussão introduzimos com a afirmação de Sandra Beckett (2009) a
respeito de os jovens leitores tomarem emprestada a ficção escrita para adultos, sendo
essa apropriação facilitada pelo trabalho do mercado editorial. Apesar de inúmeros
estudos acerca da produção machadiana, existem campos que o escritor alcança
mesmo após sua morte e que consideramos merecerem atenção. Em 2008, centenário
da morte do autor, o mercado do livro investiu maciçamente em inúmeras edições de
textos de Machado, destinados aos jovens leitores.
Sendo assim, levantamos a questão acerca de como o mercado editorial atua
para que a obra do escritor migre do campo erudito para um público amplo e popular,
chegando ao público juvenil. Para tanto, selecionamos três obras publicadas por
diferentes editoras, todas elas escritas por Machado de Assis, assim, investigamos as
condições para a presença do fenômeno crossover, ficção que cruza as fronteiras que
separam o público adulto do infantil e juvenil (BECKETT, 2009). Verificamos, então, a

83
Este texto é resultado parcial da pesquisa desenvolvida no mestrado em Letras pelo Programa
de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Estadual de Maringá, sob orientação da Profª.
Drª. Alice Áurea Penteado Martha, desenvolvida entre os anos 2016 e 2018, intitulada “Jovens
Leitores: o fenômeno crossover fiction na obra de Machado de Assis”.

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constituição das obras selecionadas, a quem ela se dirige e os componentes do projeto
gráfico que facilitam esse movimento.
Com base em Chartier (1994), discorremos quanto a esse trabalho tornar
acessível, aos leitores, objetos-livros cuja materialidade orienta leituras por meio do
trabalho conjunto dos protocolos de leitura inseridos pelo escritor e pelo editor. Esses
envolvem paratextos como capa, imagens, prefácio e glossário, os quais, segundo
Norma Sandra de Almeida Ferreira (2009), levam textos imóveis a circular em meio a
leitores que mudam constantemente. As ilustrações podem ser mecanismos de
produção de novos sentidos para a obra, influenciando a leitura, provocando reflexões,
como discutem as pesquisadoras Laura Sandroni (2013) e Lígia Cademartori (2008).
Tendo em vista que o público em pauta é o juvenil, consideramos necessário abordar
que, de acordo com Vera Teixeira de Aguiar (2012), o intenso investimento nessa
camada da sociedade decorre da segunda metade do século XX, período em que os
livros são postos em circulação e concorrem com outros produtos culturais pela atenção
do jovem.

Mercado editorial e o rompimento das fronteiras ficcionais


A chamada cultura de massa, oriunda da indústria cultural estabelecida em 1970,
traz consigo uma maneira nova de produção da arte, afetando sua circulação e seu
consumo. Walter Benjamin (1994) apresenta o termo “era da reprodutibilidade técnica”
para se referir a esse período em que a difusão de obras de arte e o lucro por elas
gerado são ampliados pela influência das novas tecnologias. Tal movimento fez emergir
o mercado do livro, o qual está sujeito às leis que regem o mercado, cujos produtores,
em geral, aspiram ao lucro como motivação primeira. No entanto, Umberto Eco (2015,
p.50) assegura que, “ao lado de ‘produtores de objetos de consumo cultural’, agem
‘produtores de cultura’ que aceitam o sistema da indústria do livro para fins que dele
exorbitam”, produtores de cultura que produzem valores estéticos e culturais
disseminados por intermédio do livro.
Isso posto, voltamo-nos às obras machadianas, que são, ainda hoje,
amplamente publicadas e postas em circulação pelo mercado livreiro, adaptando-as e
reestruturando suas características materiais. Conforme afirma Chartier (1994), esse
trabalho coloca diante dos leitores objetos-livros cujas formas provocam sentidos
diversos e móveis, orientando leituras advindas da convergência dos protocolos de
leitura postos no texto pelo próprio escritor e os inseridos pelo editor – responsável por
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ordenar e engendrar as formas tipográficas, com motivação explícita, ou de maneira
inconsciente, influenciado pelos hábitos de sua contemporaneidade.
O trabalho material realizado pela editora, além de orientar a leitura, estende seu
nicho leitor/consumidor ao colocar as obras para circular entre as mais diversas
camadas da sociedade (CHARTIER, 1996), levando-nos a compreender que o mercado
da cultura de massa age sobre gostos e fruição do público. Via de regra, aquilo que é
“contemporâneo do leitor na edição antiga não é o trabalho de escrita, mas o de edição”
(CHARTIER, 1996, p.98), em outros termos, a estrutura e divisão de um texto no objeto-
livro, a tipografia escolhida, as ilustrações inseridas não pertencem ao nível da escrita,
mas são de responsabilidade do impressor/editor. O pesquisador assegura que os
dispositivos tipográficos têm tanta importância quanto as marcas textuais deixadas pelo
escritor, pois aqueles são responsáveis por conferir suportes móveis às possíveis
atualizações de um texto.
Ao considerarmos que a atuação do mercado dispõe a obra para circular em
meio a públicos diversos, levantamos a questão das produções que encontram leitores
diferentes do pretendidos de início pelo autor. Machado de Assis, a exemplo disso, foi
um escritor oitocentista que escrevia para uma camada formada por intelectuais dos
anos 1800 (GUIMARÃES, 2001) e, hoje, jovens têm acesso deliberado às narrativas.
Esse fenômeno de cruzamento e rompimento das barreiras ficcionais, que separam
rigidamente o público adulto do infantil e juvenil, é chamado de crossover fiction
(BECKETT, 2009). Segundo Sandra Beckett (2009), os textos escritos para um
determinado público transpõem os limites ficcionais e encontram um novo público –
narrativas infantis e juvenis que são apropriadas pelo público adulto, ou textos escritos
a adultos lidos por jovens e crianças.
O grande boom do fenômeno crossover deu-se nos anos 2000 com a publicação
da saga Harry Potter, de J. K. Rowling – suas histórias são lidas indiscriminadamente
por crianças, jovens e adultos. Encarando tal fenômeno como uma tendência do século
XXI, o mercado livreiro encontra um novo investimento rentável – o mercado crossover
(BECKETT, 2009). Todavia, segundo a pesquisadora, essa literatura não é uma
novidade desse século. Há anos, livros rompem os limites da ficção e cativam a atenção
de leitores. Beckett (2009) apresenta como exemplo as obras de Lewis Carroll, Alice no
País das Maravilhas (1865), de L. Frank Baum, O mágico de Oz (1900), de C.S. Lewis,
As Crônicas de Nárnia (1949) e de Tolkin, O Senhor dos Anéis, escrito entre os anos de
1954 e 1955. É importante ressaltar que o fenômeno crossover fiction refere-se ao
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processo de rompimento das barreiras que separam os públicos, seja esse rompimento
oriundo do próprio texto, dos leitores, ou facilitado pelo trabalho gráfico. Sendo assim,
esse cruzamento não se resume ao trabalho das editoras, todavia esse é o nosso
enfoque, devido ao corpus de nossa análise ser composto por obras que sofreram
alterações de nível material.
Os recursos paratextuais são estratégias do editor para aproximar leitor e autor,
de maneira que compartilhem referências. Capa, ilustrações, prefácio, posfácio,
glossário são alguns exemplos dos protocolos de leitura inseridos na editoração, tais
mecanismos possibilitam “um comércio perpétuo de textos imóveis e leitores que
mudam” (FERREIRA, 2009, p.187), dessa maneira, um mesmo texto pode ser reeditado
para gerações posteriores. Em alguns casos, nesse processo de editoração, trechos e
capítulos inteiros podem ser suprimidos ou invertidos, ou conteúdos novos, introduzidos
(ALMEIDA, 2015). Esse processo fica mais simples quando se tratam de textos em
domínio público, pois não há questões de ordem autoral. Os paratextos têm papel
importante no processo de mediação entre texto e público, Ferreira (2009) assevera que
designam preceitos, maneiras de fruição e contemplação, além de especificidades da
linguagem literária.
Incontáveis são os artifícios utilizados para prender a atenção do leitor e registar
a obra em sua memória (FERREIRA, 2009), a tipografia adotada, por exemplo, tem por
base o leitor para o qual é destinada. Fontes conservadoras, comumente, são adotadas
em obras endereçadas a públicos distintos, ao passo que tipografias informais e atuais
provocam um efeito visual. A qualidade do papel escolhido para compor o livro tem
íntima relação com as ilustrações, as quais têm seu traçado e cores preservadas, ou
opta-se por um tipo de papel que reflita menos luz e seja mais confortável para a leitura
do texto escrito. Tais elementos aliados à diagramação compõem um novo objeto-livro
capaz de produzir novas significações além das pretendidas pelo escritor.
No que concerne às ilustrações, a pesquisadora Laura Sandroni (2013) retrata o
importante papel que podem exercer sobre o leitor, a saber, tratam-se de “um modo de
influenciar fazer a cabeça, principalmente quando se trata de uma população menos
letrada” (SANDRONI, 2013, p.14 – grifo da autora). Por não seguirem uma linearidade,
as imagens cativam o leitor e comunicam, ao mesmo tempo, com seu traçado e suas
cores, promovendo acesso ao enredo e, até mesmo, exorbitando-o. Ilustrações ricas e
bem elaboradas, que viabilizam a reflexão e o pensamento analítico sobre o tema da

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narrativa, deixam vazios e ambiguidades para o leitor resolvê-los, alargando, pois, as
possibilidades de significações (CADEMARTORI, 2008).
A atuação do mercado do livro, permite-nos a apropriação das palavras de
Sandra Beckett (2009) para melhor compreendermos esse movimento dos livros em
direção ao público juvenil e infantil. De acordo com a autora,

[d]os clássicos à fantasia moderna, os jovens leitores de hoje


continuam a pedir emprestado a ficção que foi escrita para um público
adulto. Em alguns casos, essa adoção é facilitada por editores que
reformulam trabalhos de adultos para torná-los mais atraentes para o
público jovem (BECKETT, 2009, p.22 - tradução nossa)84.

No tocante a literatura juvenil, Vera Teixeira de Aguiar (2012) afirma que


hodiernamente representa “um fenômeno de produção e circulação de livros que
concorrem com os demais produtos culturais na busca da atenção dos jovens”
(AGUIAR, 2012, p.107), sendo assim, os imperativos que regem a produção de produtos
culturais são os que orientam também esse fenômeno literário. Isso porque, a partir da
segunda metade do século XX, houve um investimento maciço na camada jovem,
passando-se a destinar intencional bens culturais – inclusive os livros – a ela. A
demasiada globalização, junto da ascendente industrialização e aceleração da cultura
de massa são características da pós-modernidade, suscitando, também, o expressivo
avanço dos meios de comunicação e informação, os quais dão espaço ao jovem.

A atuação do mercado livreiro em obras machadianas


O espelho e outros contos machadianos foi publicado em 2008 pela editora
Scipione e conta com a reunião de nove contos escritos por Machado de Assis, a saber
O espelho (1882), O empréstimo (1882), Verba Testamentária (1882), Galeria Póstuma
(1882), O machete (1878), Noite de almirante (1884), O caso da vara (1891), Ideias de
canário (1895) e Umas férias (1906). A editora Scipione foca na publicação de obras
pedagógicas em parceria com professores. Para melhor compreendermos os aspectos
materiais do livro analisado, é importante destacarmos o fato de essa editora trabalhar
com produtos paradidáticos, assim entendemos com mais clareza as escolhas feitas
pelo editor para o livro O espelho e outros contos machadianos. Um livro paradidático é
aquele que não é obrigatoriamente didático, todavia é adotado para essa finalidade,

84
“From classics to modern fantasy, today’s young readers continue to borrow fiction that was written for
an adult audience. In some cases, this adoption is facilitated by publishers who repackage adult works to
make them more appealing to a young audience” (BECKETT, 2009, p.22).
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paralelamente aos livros didáticos, sem substituí-los. Seu uso se dá pelo fato de, do
ponto de vista pedagógico, possibilitar o trabalho com os conteúdos de maneira mais
lúdica.
A obra foi ilustrada por Angelo Abu e notadamente verificamos que são poucas
no decorrer do livro, aparecendo em duas situações: nas folhas introdutórias dos contos
e no meio da história. São belas ilustrações, com traçados elaborados, os quais se
assemelham a desenhos rabiscados; elaborados nas cores primárias azul e vermelho,
com variações de tonalidades e mistura das duas, obtendo-se tons próximos a roxo, os
jogos com essas cores, intensificam cenas e põem objetos e personagens em destaque.
Inclusive a tipografia adotada é toda em azul e vermelho; os títulos dos contos aparecem
em vermelho e a fonte tipográfica do conto, em azul.
Visto que se trata de um livro com a predominância do texto verbal, optou-se
pelo papel pólen bold, indicado para a leitura mais extensa e confortável por refletir
menos luz (ALMEIDA, 2015). Além disso, sendo as ilustrações bem estilizadas, com
traçados não tão delineados, feitos com cores fortes, o papel escolhido traz conforto
inclusive para a sua apreciação. Nesse caso, as imagens têm a função de acompanhar
o texto e criar no leitor expectativas quanto ao clima presente na narrativa, posto que
Ana Margarida Ramos (2010, p.13) afirma serem as ilustrações responsáveis pelo
fornecimento de pistas de leitura.
Essa é uma edição riquíssima em informações, permeada de notas explicativas
no desenrolar das histórias colocadas nas margens laterais das folhas, buscando
apresentar conteúdos de maneira a não permitir que o leitor perca referências deixadas
por Machado de Assis nas suas histórias, tais como indicações da data e local da
publicação original do conto, explicações de informações mencionadas pelo escritor,
quem são alguns dos nomes citados, a tradução de alguns versos que seus
personagens declamam, informações essas consideradas, pelo editor, como
necessárias para que seu público jovem seja alcançado e devidamente instruído.
O prefácio escrito por Ivan Marques, intitulado “Humor e desencanto”, é
destinado a um público com uma bagagem de leitura considerável, o estudioso usa uma
linguagem mais culta, a qual nitidamente se dirige a jovens e adultos. Aborda questões
da vida e da obra de Machado de Assis com o intuito de discorrer a respeito de sua
escrita e de seu pano de fundo mais recorrente: “as relações sociais do Brasil na
segunda metade do século XIX” (MARQUES, 2008, p.07). Ademais, orienta o leitor
quanto ao objetivo de a antologia contribuir para a reflexão a respeito da visão que
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Machado de Assis apresenta acerca do mundo e, também, sua relação com a filosofia.
Em seguida, apresenta a temática central de cada um dos contos; informações
concernentes aos enredos e à crítica social por detrás de cada um.
“Machado de Assis e a filosofia” é o primeiro paratexto depois dos contos. A partir
de então, o tipo do papel muda para o couché matte e a fonte tipográfica passa para a
cor preta, dando a impressão de que há um outro livro, ou uma espécie de informativo
inserido na edição. Nessa seção, também escrita por Ivan Marques, Machado é
reconhecido como um dos poucos a alcançar uma literatura considerada ao mesmo
tempo brasileira e universal, por sua capacidade de alcançar o geral, abordando o
particular. “O pensamento de Machado de Assis”, escrita pelo mesmo teórico, revela
que Machado não foi um filósofo, mas um leitor assíduo e um estudioso dos mestres do
pensamento antigo e moderno. Vários filósofos e pensadores são mencionados e
discutidos para deixar claro ao leitor quais foram as fontes que inspiraram Machado.
“Sobre as fontes filosóficas de Machado” vem a seguir e foi escrito por Adilson Miguel –
editor. Discorre sobre os primeiros filósofos, os pré-socráticos, e a respeito do
surgimento da filosofia e do pensamento filosófico. Por fim, Ivan Marques retoma a
palavra em “Machado de Assis: Vida e obra”, revelando informações ricas em detalhes
quanto ao nascimento, criação, ingresso no mundo da escrita e outras notas acerca da
trajetória de vida e profissional do escritor.
A última página do livro apresenta indicações referentes aos papéis usados para
essa produção e faz menção ao centenário de morte de Machado de Assis, revelando-
se, pois, um tipo de homenagem à efeméride machadiana. Apesar de não ser um livro
que apresenta em sua ficha catalográfica a terminologia Literatura Juvenil, o trabalho do
mercado livreiro para destinar tal obra aos jovens fica claro por conta de todos esses
aspectos como as ilustrações, o predomínio das cores, o diferencial da cor tipográfica,
que são modernos e atrativos. Além disso, sabemos que a editora Scipione é
reconhecida por seu foco direcionado a jovens estudantes, e, por esse motivo, as
informações presentes nos paratextos finais são de caráter predominantemente
pedagógico.
O segundo livro analisado foi publicado pela editora Escala Educacional em 2008
e ilustrado por Fernando Vilela. Compõe uma coleção de quatro livros lançada em
homenagem ao centenário de morte do escritor, como nos é informado na contracapa
da edição. O conto Missa do galo foi publicado originalmente em 1893 e incluído na obra
Páginas Recolhidas em 1899. A publicação analisada foi catalogada pela editora como
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“Contos: Literatura infanto-juvenil” e “Contos: Literatura juvenil”. O trabalho material do
livro conta com ilustrações, cujo traçado é grosso, não delineado e, em alguns
momentos, o ilustrador usa técnicas que lembram xilogravuras85, que marcam seu estilo
por todos os livros dessa coleção. Sua riqueza vem do fato de essa técnica aproximar
o leitor da época em que o conto foi escrito e ambientado, o século XIX.
De acordo com Cademartori (2008, p.83), as cores podem contribuir com essa
aproximação, relacionando-se com a época e dando um ar de livro antigo; para isso as
imagens têm tom sépia, com cores amareladas, tons ocres, com pequenos detalhes em
laranja, verde e, em alguns momentos, azul. O título do conto é grafado em letras
douradas, dando um ar de sofisticação à edição, a capa apresenta a ilustração de uma
igreja, inspirada em uma foto da Capela Real e o passadiço que a ligava ao Convento
do Carmo, chamando a atenção do leitor logo em seu primeiro contato, O preenchimento
das cores nas ilustrações do miolo não respeita os limites do traçado do desenho, não
se tratando de uma falha, mas de uma característica do estilo da ilustração. Além de
qualidade atrativa, coopera com a assimilação da narrativa, ao apresentar referências
da história e proporcionar seu esclarecimento (CADEMARTORI, 2008).
Na página seguinte ao final da história, há um glossário que conta com uma série
de palavras e termos, tendo por função a adequação das obras à faixa etária do público-
alvo, visto que as informações nele presentes são de um universo distantes do leitor. O
paratexto “Sobre o projeto e as ilustrações da Coleção Machado de Assis”, escrito pelo
ilustrador, explica sua intenção de viabilizar tais contos, a partir de um mergulho na
cultura e no visual do século XIX, buscando retratar por meio das ilustrações a capital
carioca sem carros, bondes ou luz elétrica, onde as pessoas andavam a pé, a cavalos
ou em charretes. Com o intuito de explicar ainda mais seu trabalho, apresenta uma série
de fotos nas quais baseou seus desenhos.
O último paratexto, intitulado “O ilustrador e seu processo de criação”, discorre
sobre Fernando Vilela, a cidade onde nasceu e trabalha, citando alguns títulos que
ilustrou e alguns dos prêmios que recebeu como ilustrador. Além disso, revela sua
preocupação quanto ao trabalho de alta qualidade, para o qual realiza uma pesquisa
iconográfica, com vistas a melhor conhecer os objetos, os costumes, as personagens e
os locais da época da narrativa. Informa que, por se tratarem de contos escritos há mais
de 100 anos, buscou a aparência de livro envelhecido com as folhas infestadas por

85
Descrita comumente como uma espécie de carimbo. A técnica da xilografia é muito empregada na
ilustração de cordéis.
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fungos; para tal efeito, revela ter elaborado esse fundo com base nas páginas de um
livro de 1890. Optou por fontes tipográficas originadas nesse século com características
dessa época, a saber Monotype Old Style 7, escolhida para os títulos dos livros, e Old
Style 7, usada no corpo do texto. Esse trabalho permite ao leitor o contato com uma
expressão de arte diversa e, consequentemente, sua educação estética (RAMOS,
2010).
A obra O Delírio – Capítulo VII de Memórias póstumas de Brás Cubas, publicada
em 2010 pela editora Companhia das Letrinhas, tem uma característica bastante
diferente dos outros livros por nós analisados. A editora investiu em um trabalho de
redução e supressão, mencionado por Beckett (2009) como um dos recursos usados
por editores e autores para que a obra se torne uma literatura crossover e, assim, rompa
as barreiras ficcionais. O Delírio é o título de um dos capítulos do livro Memórias
póstumas de Brás Cubas, lançado em 1881 – um marco na vida artística de Machado
de Assis por ser sua obra mais original e ousada, que mostra diferenças em sua
produção segundo a crítica literária. A editora Companhia das Letrinhas, criada em
1992, é um dos segmentos do Grupo Companhia das Letras e propõe a edição de livros
destinados à audiência infantil e juvenil.
O livro analisado tem uma peculiaridade de livros destinados a crianças: o
formato (ALMEIDA, 2015). Trata-se de um livro com formato horizontal, comum a livros
infantis porque possibilita uma maior amplitude das ilustrações, o que não significa que
não possa alcançar o jovem. Isso posto, afirmamos que essa característica contribui
muito para a construção de sentidos do livro, as ilustrações se estendem pelas páginas,
em alguns casos, por duas delas, a deixar a imagem mais extensa e mais expressiva.
As ilustrações de Marilda Castanha foram feitas com técnicas de pintura, com
predominância das cores azul e verde ao retratarem o delírio, e a presença do marrom
ao voltar à realidade, tendo sua nitidez preservada pela escolha do papel couché. A
mistura do verde e do azul aliados às figuras grandes e, em alguns momentos, disformes
constrói a ideia de sonho – o delírio é, pois, simbolizado por meio de imagens surreais.
Mesmo tratando-se de um formato de livro que visa, a princípio, ao público infantil, seu
público é ampliado também pela qualidade das imagens, as quais representam uma
mistura de traços figurativos – reconhecidos no mundo – e abstratos – a certa distância
da realidade (RAMOS, 2011) – ambos construindo uma ideia abstrata, tornando real e
visível o que não é palpável: o delírio.

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No caso de O Delírio, o trabalho realizado por Marilda Castanha permite uma
leitura fluida, sem quebra da linearidade da história. Outro aspecto de relevante para a
assimilação do narrado é o prefácio de Isabel Lustosa86, intitulado “O delírio de Brás
Cubas e a viagem de Machado”, que aborda sobre a vida de Machado - era mulato,
epilético e nunca havia saído do Rio de Janeiro – e seu estilo de escrita: “como ele conta
suas histórias” (LUSTOSA, 2010, p.05). Sua importância advém da contextualização
quanto ao livro Memórias póstumas de Brás Cubas, incluindo o ano original de
publicação (1881), um resumo de seu enredo, com informações sobre as características
psicológicas do protagonista e a acidez e ironia que há por trás da história de Brás
Cubas, bem como um destaque para o que fez dessa obra um texto fascinante: a forma
como Machado escreve. Para isso, a pesquisadora lança mão de uma linguagem atual
próxima ao público infantil e juvenil: “levando uma vida de playboy internacional”
(LUSTOSA, 2010, p.05). Faz, também, um breve resumo do próprio capítulo tema da
publicação e afirma que se trata de um tipo de viagem através da criatividade
machadiana e por questões filosóficas sempre presentes em seus escritos, podendo
diminuir, dessa forma, a distância entre jovens leitores e a narrativa machadiana.
Embora o prefácio permita ao leitor ir ao encontro do escritor, não há um
glossário, recurso que facilitaria a compreensão de termos não tão usados
corriqueiramente, como “lascivo” e “voluptuosidade”. O livro como um todo não se
ressente dessa ausência, pois os paratextos o contextualizam, tanto na obra em que o
capítulo foi originalmente escrito, como em seu universo social. Ao final há uma seção,
intitulada “Sobre o autor”, apresentando uma breve biografia de Machado de Assis e
sua obra, e outra denominada “Sobre a ilustradora”, brevíssima menção sobre Marilda
Castanha, sua formação e suas considerações sobre a experiência de ilustrar esse livro.
Por fim, a quarta capa informa a respeito do autor e a maneira inventiva como escreve,
além de dar um forte incentivo para que o leitor leia o livro para conhecer a obra de
Machado de Assis; outrossim, o encoraja a ler outras obras do autor:

Machado de Assis é com certeza um dos maiores escritores brasileiros.


Escreveu histórias de uma maneira tão original e interessante que,
assim que acabamos um livro seu, queremos ler mais. Se você ainda
não conhece a obra de Machado, poderia muito bem começar por este
“O delírio”, o sétimo capítulo de Memórias póstumas de Brás Cubas,
um dos livros mais importantes do autor. Extremamente inventivo e

86
Nascida em 1955, em Sobral no Ceará, Isabel Lustosa é pesquisadora e escritora, doutora em Ciência
Política pelo IUPERJ.
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fantástico, como um bom delírio deve ser, e ricamente ilustrado pela
artista Marilda Castanha, é uma ótima introdução ao nosso grande
escritor (ASSIS, 2010, contracapa).

O mercado crossover atua na reembalagem dessa obra, de maneira a comprovar


a afirmação de Beckett (2009) em relação aos editores contribuírem para o
estabelecimento da nova tendência crossover – livros infantis são lançados para
adultos, assim como livros de adultos são reendereçados para crianças e jovens. Como
já mencionamos, uma série de obras machadianas são reestruturadas para
corresponderem aos desejos dos mais jovens leitores. O forte investimento na
materialidade desse livro publicado pela Companhia das Letrinhas revela o público que
intenciona alcançar, a sua embalagem é claramente destinada à audiência juvenil. Não
apenas a transmigração acontece, como também a simbolização da realidade abstrata.
Cada imagem, cada ilustração do delírio do protagonista dá ao seu jovem leitor a
oportunidade de representar o abstrato, de simbolizar o que é real, mas não é palpável.
O imaginário infantil, então, continua em seu ciclo de transferências do “eu” para o
objeto, e do objeto para o “eu”, assim, a criança se constitui (EAGLETON, 2001).

Considerações Finais
Ao longo do artigo, foi possível evidenciarmos um movimento do mercado
editorial direcionado pelo fenômeno crossover (BECKETT, 2009), agindo a nível gráfico
e material em obras machadianas, de maneira que os jovens leitores se apropriassem
de obras escritas, a princípio, para o público adulto. A análise das três obras que
compõem o corpus do trabalho permite a verificação de que a inserção de diferentes
paratextos diminuem a distância entre leitor e texto e propõem leituras novas de uma
mesma narrativa (FERREIRA, 2009). O projeto gráfico-editorial comandado pelo
mercado do livro facilita o cruzamento dos limites entre os públicos.
As considerações aqui apresentadas visam contribuir com as discussões e
estudos acerca da ação do mercado editorial, o qual lança mão de alterações gráfico-
editoriais, de maneira inventiva, para ampliar seu nicho consumidor, ofertando a
distintos públicos um mesmo texto. Haja vista o alto investimento do mercado editorial
na literatura denominada crossover, consideramos pertinente ampliar os estudos sobre
o tema. Procuramos, então, chamar a atenção de pesquisadores e estudantes da área
para esse movimento cada vez mais intenso que enfraquece ainda mais os limites
tradicionalmente impostos que separam o público adulto do infantil e juvenil. Ademais,

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consideramos pertinente lançar nosso olhar sobre os meios utilizados pelos editores
para levar um autor como Machado de Assis a continuar em circulação e a ser
consumido por públicos tão distintos dos contemporâneos ao autor, em se tratando de
época e, também, de idade.

Referências
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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DA IMAGINAÇÃO E
CRIAÇÃO NA INFÂNCIA: CONTRIBUIÇÕES DA LITERATURA
INFANTIL

Marta Chaves, Universidade Estadual de Maringá (UEM) Vinícius Stein,


Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Paula Gonçalves Felicio, Universidade Estadual de Maringá (UEM) Estela Maris
Guimarães, Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Eixo Temático 4: Literatura Infantil e Ensino

Introdução

Neste texto, apresentamos algumas contribuições para a organização do ensino


e o desenvolvimento do processo de imaginação e criação na infância a partir da
proposição de ensino e de vivências com Literatura Infantil como recurso, estratégia e
conteúdo (CHAVES, 2011). Os estudos acerca do desenvolvimento infantil e do ensino
e das vivências com a Literatura podem favorecer a reflexão e a avaliação da prática
educativa, o que implica levar à discussão a função da escola em uma perspectiva de
humanização e emancipação. Sendo assim, observamos a contribuição da Teoria
Histórico-Cultural por acreditarmos que esse referencial teórico-metodológico se
apresenta também como humanizador e capaz de oferecer respostas aos desafios e
enfrentamentos da atualidade, possibilitando que nos instrumentalizemos, mesmo em
situação adversa, para vislumbrar uma educação plena para todos (CHAVES, 2011).
Assumimos a perspectiva da Teoria Histórico-Cultural por considerarmos que
esta nos permite refletir e elaborar intervenções práticas educativas com vistas ao
máximo desenvolvimento humano e das funções psicológicas superiores das crianças,
em especial a imaginação e a criação com a utilização de recursos pedagógicos como
a Literatura Infantil. Esses pressupostos podem ser encontrados nos escritos de autores

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clássicos como Leontiev (1979) e Vigotski (2009), e nos estudos de pesquisadores
contemporâneos como Chaves (2011a; 2011b) e Lima e Girotto (2007).
Nessa perspectiva, organizamos este texto de forma que possamos discutir
brevemente a respeito do processo de desenvolvimento das funções psicológicas
superiores, particularmente a imaginação e criação; refletir sobre a Teoria Histórico-
Cultural, considerando nossos estudos iniciais; e versar sobre algumas possibilidades
de trabalho com Literatura Infantil que podem efetivar os pressupostos teóricos
estudados. Nesse sentido, julgamos importante para o processo de desenvolvimento da
imaginação e criação na infância o contato com a Literatura.

Estudos iniciais afetos à Literatura Infantil em favor do desenvolvimento


da imaginação e criação
Conforme anunciamos, este texto se pauta em nossos estudos iniciais relativos
à Teoria Histórico-Cultural, concebendo-a como referencial teórico e metodológico que
oferece condições para a prática educativa humanizadora. Entendemos que o trabalho
docente intencional, planejado e mediado por um referencial teórico que proporcione ao
professor tal compreensão, pode ampliar as possibilidades de desenvolvimento das
funções psicológicas superiores como a memória, a linguagem e a atenção.
Autores clássicos dessa Teoria nos remetem à compreensão de que não
nascemos humanos, mas nos tornamos humanos no processo de apropriação e
objetivação da cultura criada pelo homem ao longo da história (LEONTIEV, 1979). E é
nas relações com os mais experientes, ou seja, com os que mais puderam se apropriar
da cultura construída pelo homem que acontece o processo de apropriação de
comportamentos essencialmente humanos. Para Vigotski (2010, p. 697), essa
perspectiva se aplica desde a mais tenra idade, pois como assinala

[...] o meio desempenha, com relação ao desenvolvimento das


propriedades específicas superiores do homem e das formas de ação,
o papel de fonte de desenvolvimento, ou seja, a interação com o meio
é justamente a fonte a partir da qual essas propriedades surgem na
criança. E se essa interação com o meio for rompida, só por força das
inclinações encerradas na criança as propriedades correspondentes
nunca surgirão por conta própria.

Nessa assertiva, Vigotski (2010) afirma que o desenvolvimento humano é


determinado pelas relações estabelecidas entre os indivíduos, relações estas decisivas

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e essenciais para que as capacidades humanas superiores sejam desenvolvidas, pois
do contrário, conforme o autor, esse desenvolvimento não se constituiria. Destacamos
a imaginação e a criação como capacidades complexas de desenvolvimento e
pertencentes, portanto, ao conjunto das funções psicológicas superiores.
Desse modo, consideramos que a função principal da escola é proporcionar o
máximo desenvolvimento humano por meio dos conhecimentos da arte e da ciência
elaborados historicamente. A escola deve ser também o local apropriado para o
desenvolvimento da linguagem, argumentação, disciplina e respeito. Nesse sentido,
entendemos a Literatura Infantil ocupa uma tríplice condição: ser conteúdo, estratégia e
recurso.
Realçamos o posicionamento de Meireles (1984) ao escrever que a Literatura é
uma atividade intelectual ampla que vai além de tudo o que está escrito, pois precisa
contar com a imaginação de quem lê, é necessária a interpretação das palavras, e as
crianças estimuladas para isso fazem muito bem.
Dessa maneira, consideramos fundamental apresentar às crianças o que há de
mais avançado; a vivência com literatura deve ser aprimorada, por meio da organização
do tempo e do espaço e de recursos didáticos de excelência, de forma sistematizada e
organizada. Nessa direção, Leontiev (2004, p. 291) enuncia: “O movimento da história
só é, portanto, possível com a transmissão, às novas gerações, das aquisições da
cultura humana, isto é, com educação”.
Chaves (2011b) contribui para pensarmos em práticas pedagógicas em uma
perspectiva humanizadora e emancipadora, que possibilite o desenvolvimento infantil.
A autora ressalta:

[...] as instituições escolares devem possibilitar a apropriação, por parte


da criança, da cultura desenvolvida e acumulada social e
historicamente pela humanidade. [...] o objetivo da educação deve ser,
direta e intencionalmente, produzir a humanidade em cada indivíduo.
[...] É preciso, a todo instante, considerar que as instituições escolares
constituem o espaço em que, intencionalmente e de forma
rigorosamente planejada, os conteúdos e valores serão ensinados e
apresentados aos educandos (CHAVES, 2011b, p. 98- 99).

Na acepção de Chaves (2011b), a Literatura Infantil requer critérios de extrema


relevância, como a organização, a pesquisa, o espaço, e ter como objetivo aprimorar o
vocabulário, apresentar diferentes contextos, exaltar a cultura, desenvolver a
curiosidade, a imaginação e a criatividade. Nessa lógica,

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[...] o trabalho pedagógico, seja qual for a área do conhecimento, pode,
de acordo com a Teoria Histórico-Cultural, potencializar as funções
psicológicas superiores. Nessa perspectiva, a sensibilidade, a
curiosidade, a atenção, a memória e a percepção podem ser
desenvolvidas com conteúdos, estratégias e recursos de ensino
adequados, e a literatura infantil apresenta-se como fundamental em
um processo educativo humanizador (CHAVES, 2011b, p. 99).

Reiteramos que o desenvolvimento da imaginação, assim como o das demais


funções psicológicas superiores, é possível pelas condições histórico-culturais, e
defendemos que a Literatura Infantil não pode ser compreendida apenas como uma
simples recordação do que a criança leu ou ouviu, mas como uma atividade importante que
representará possibilidades de desenvolvimento da imaginação e também da criação.
No tocante à imaginação, recorremos aos estudos de Vigotski (2009), em que o
autor analisa especificamente as possibilidades de desenvolvimento dessa capacidade
e conclui que é possível colaborar para a imaginação das crianças mediante a
promoção de situações que ampliem suas experiências imediatas. Em suas palavras,

[...] a atividade criadora da imaginação depende diretamente da


riqueza e da diversidade da experiência anterior da pessoa, por que
essa experiência constitui o material com que se criam as construções
da fantasia. Quanto mais rica a experiência da pessoa, mais material
estará disponível para a imaginação dela. Eis por que a imaginação da
criança é mais pobre que a do adulto, o que se explica pela maior
pobreza de sua experiência (VIGOTSKI, 2009, p. 22).

Diante dessas premissas, compreendemos que imaginar é representar uma


imagem antecipada, o que conta com a inteligibilidade do objeto percebido e do que se
anseia transformar, produzir, “o que caracteriza uma situação possível graças à
natureza da atividade que se realiza no atendimento às demandas reais,
fundamentalmente objetivas” (BEZERRA, 2015, p. 65).
Ressaltamos que é na atividade, na ação que a criança tem condições de se
apropriar dos objetos culturais, reproduzir ações dessas apropriações na condição de
objetivações e avançar para a criação do novo para satisfazer sua necessidade. E
concordamos com Martins (2013, p. 230) quando anuncia que “[...] toda imaginação
“cria” algo novo [...]”.
De acordo com Vygotski (2001b, p. 423),

[...] a imaginação não repete em iguais combinações e formas


impressões isoladas, acumuladas anteriormente. Com outras palavras,
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o novo aportado ao próprio desenvolvimento de nossas impressões e
as mudanças delas para que resultem em uma nova imagem,
inexistente anteriormente, constituem, como é sabido, o fundamento
básico da atividade que designamos imaginação87.

A imaginação, justamente por ser uma função psicológica superior, também tem
seu processo de desenvolvimento perpassado por elementos sociais interpsíquicos que
se convertem em processos intrapsíquicos, em que há formação da imagem subjetiva
da realidade objetiva.
Martins (2013, p. 230) assinala que se trata de uma imaginação
fundamentalmente requerida no trabalho com a literatura, bem como dos conteúdos
escolares de modo geral, a qual se justifica por ter condições de “libertar do
imediatamente dado pela experiência particular, promovendo as elaborações de ideias
imaginativas cujos produtos são as novas representações”.
Essa expressão da imaginação nos possibilita a reflexão sobre as organizações
pedagógicas a serem proporcionadas às crianças na escola. Nesse quesito, Chaves et
al. (2012, p. 52) expressam que

[...] na instituição educacional, quando há organização do tempo e


espaço, no qual se proporciona tudo o que há de mais elaborado, é
possível chegar a uma educação plena, em que as crianças realizam
vivências carregadas de arte, literatura e encanto, de forma a
desenvolver suas funções psicológicas superiores.

Na reafirmação que a Teoria Histórico-Cultural contribui para se pensar o ensino,


a pesquisadora declara que “[...] as elaborações de Vigotski, de como se efetiva a
imaginação e criação na infância, favorecem reflexões sobre intervenções pedagógicas
e para repensar e orientar nossas práticas educativas, em favor do desenvolvimento da
imaginação infantil” (CHAVES, 2011a, p. 3).
Compreendemos, assim, de acordo com Vigotski (2009, p. 23), que “[...] quanto
mais a criança viu, ouviu e vivenciou mais ela sabe e assimilou”. Isso nos direciona à
necessidade de pensar nas condições dessas vivências, pois conforme Chaves (2011a,
p. 50), a criança deve ter ampliada e enriquecida suas vivências, o que implica,

87
“La imaginación no se repite en combinaciones iguais y formas impresas aisladas, acumuladas
previamente. Al igual que otras palabras, o de novo contribuyó al desarrollo propio de nuestras
impresiones y mudanzas de modo que el resultado de una imagen no existente, inexistente
anteriormente, constituya, como se sabe, o la base básica de la actividad que designamos
imaginação” (VYGOTSKI, 2001b, p. 423).
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necessariamente, em não limitá-la às experiências de sua história individual e local,
únicas vivências que a sociedade capitalista lhe reservou.
Salientamos uma vez mais que os espaços educativos formais podem favorecer
condições para que as crianças possam expor em diferentes propostas de atividade
coletiva suas vivências particularidades, para que seja possível, como sugere Mukhina
(1996, p. 46), “[...] a assimilação de novas ações internas, psíquicas, que lhe permitem
resolver problemas cada vez mais complexos e variados, o que pode contribuir
significativamente para o desenvolvimento da imaginação”.
Vigotski (2009) ainda evidencia que expressões superiores de criação são até
os dias atuais atribuídas, assim como acessíveis apenas, a gênios eleitos pela
humanidade. Entretanto, na vida cotidiana, que pressupõe estarmos em relação com o
outro e, portanto, com a cultura criada pela humanidade, a criação torna-se condição
para nossa sobrevivência no contexto social em que estamos inseridos, particularmente
porque a todo momento temos necessidades diferenciadas e resoluções diferenciadas,
o que nos exige vasta apropriação do que já foi criado para que nas objetivações seja
possível elaborarmos situações para sanar tais necessidades.
Nos afastamos, assim, da compreensão que a criação é uma condição dada
somente a determinados sujeitos e a compreendemos como um atributo de todos os
sujeitos de nosso entorno social. Se atendermos à lógica de ampliar as experiências
das crianças, como propõe Chaves (2014), e sendo fiéis à Teoria Histórico-Cultural de
que as ofertas sejam ricas e enriquecedoras, a imaginação se constitui como
capacidade complexa de desenvolvimento.
Chaves (2011) ressalta que se o desenvolvimento da imaginação está
condicionado ao acúmulo de experiências, no âmbito escolar essa constatação implica
na organização dos procedimentos didáticos e intervenções pedagógicas que ocorrem
em todos os tempos e espaços. Consideramos que a criatividade se ensina, e assim as
intervenções educativas com a Literatura Infantil seriam adequadas para potencializar a
capacidade criativa das crianças e enriquecê-las.
Nesse contexto, faz-se necessário compreender a definição de “Literatura” e de
“Literatura Infantil” propriamente estabelecida por estudiosos contemporâneos, segundo
o posicionamento e defesas dos expoentes mais conceituados nessa área. A esse
respeito, Cecília Meireles, em seu livro “Problemas da Literatura Infantil”, enfatiza que
sempre que uma atividade intelectual se manifesta por intermédio da palavra, cai, desde
logo, no domínio da Literatura. A Literatura, porém, não abrange, apenas, o que se
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encontra escrito, se bem que essa pareça à maneira mais fácil de reconhecê-la, talvez
pela associação que se estabelece entre ‘literatura’ e ‘letras’ (MEIRELES, 1984, p. 19).
Frisamos a relevância da intencionalidade do trabalho pedagógico pelos
professores no tocante ao desenvolvimento das habilidades humanas dos educandos,
e que uma das possibilidades é a utilização de recursos didáticos que promovam a
aprendizagem (CHAVES; STEIN; SILVA, 2014). Com base nessas afirmações,
defendemos que a Literatura Infantil deve ser utilizada como conteúdo, estratégia e
recurso, como propõe a autora, pois amplia as possibilidades e potencializa o
desenvolvimento humano pleno.

Considerações Finais
Os autores referidos neste texto reafirmam a necessidade dos estudos afetos à
Literatura Infantil e as possibilidades de intervenções pedagógicas que devem se
efetivar com as crianças nas instituições de ensino. Desse modo, acreditamos que o
educador pode contribuir para o desenvolvimento da imaginação infantil à medida que
realiza intervenções pedagógicas que articulem as experiências imediatas das crianças
com modelos e referências artísticas. Os escritos de Vigotski nesse sentido são
elucidativos:

A conclusão pedagógica que se pode chegar [...] consiste na afirmação


da necessidade de ampliar a experiência da criança, caso se queria
criar bases suficientemente sólidas para sua atividade de criação.
Quanto mais a criança viu, ouviu e vivenciou mais ela sabe e assimilou;
quanto maior a quantidade de elementos da realidade de que ela
dispõe em sua experiência [...] mais significativa e produtiva será a
atividade de sua imaginação (VIGOTSKI, 2009, p. 23).

Considerarmos a Literatura como uma elaboração humana resultante do


contexto histórico e social de seus autores. Por isso compreendemos a relevância de
apresentarmos uma Literatura Infantil de qualidade nas instituições educativas
escolares àquelas crianças que poucas ou raras vezes têm a possibilidade de acesso
às expressões da Arte. Sobre essa questão, Chaves (2011b, p. 103) assevera que:

Com a participação das crianças e com o entendimento de que a


literatura infantil tem muito a oferecer, teríamos o espaço tomado pela
arte, e personagens e variados cenários revestiriam as paredes. Então
se fortaleceriam as vivências referentes a desenhos e pinturas. Telas
ou detalhes de pinturas poderiam ser expostos e as histórias clássicas
infantis, as brincadeiras de adivinha, as poesias de Cecília Meireles e
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de José Paulo Paes ou os textos de Carlos Drummond de Andrade
poderiam ganhar vida nas paredes, painéis e cartazes das unidades
escolares. Assim, todas essas grandezas estariam disponibilizadas
sob o toque e no campo visual imediato das crianças.

Cabe pontuar que o professor necessita de condições objetivas que possibilitem


a ampliação de suas experiências. Se as crianças precisam expandir suas vivências
com a Literatura e Arte em geral, essa regra também é verdadeira para os professores.
Em nossa análise, para que os textos literários e as outras expressões do conhecimento
elaborado sejam mediados com encanto e significado para as crianças, o professor
primeiramente precisa vivenciar esses conteúdos com “encanto” (CHAVES, 2011),
razão pela qual precisamos nos atentar para o valor da formação do docente. O
professor precisa se apropriar do conhecimento já elaborado, pois é por meio dele que
terá elementos sólidos para a criação de novos conhecimentos. Por conseguinte,
defendemos ser crucial que nos cursos de Formação de Professores, seja de graduação
em Pedagogia ou formação em serviço, sejam contemplados estudos e reflexões acerca
dessa temática, dada a sua essencialidade em se tratando da educação das crianças.

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O VIÉS CRÍTICO NA LEITURA DE ANGÉLICA, DE LYGIA
BOJUNGA
Anita Luisa Fregonesi de Moraes – IFSP/PEP

Eixo Temático: A literatura juvenil e jovens leitores

Considerações iniciais

Retomando o caminho proposto por Monteiro Lobato, no panorama da literatura


infanto-juvenil há, a partir da década de 70, uma variedade de autores que pretendem
contribuir com a leitura crítica e emancipatória com o objetivo de ampliar os horizontes
das crianças leitoras, tais como Clarice Lispector, com O mistério do coelhinho
pensante, por exemplo, e Lygia Bojunga, foco deste trabalho, que privilegia,
especificamente, o livro Angélica.
Não se tem aqui a pretensão de discutir a perspectiva de literatura com que
autores arquitetam sua história em relação à construção de personagens e à maior ou
menor complexidade estrutural da narrativa, aspectos que nos permitem, muitas vezes,
traçar limites entre literatura infantil e literatura juvenil, mas, sim, tratar a linguagem
literária com sua especificidade e seus jogos de imagens que a constituem como
discurso. Como postula Candido (1989), a literatura não é inofensiva, ela exerce a
função de formar a personalidade e o texto literário dirigido às crianças e aos jovens não
se priva dessa particularidade. Portanto, faz-se imprescindível que ele não seja suporte
para estereótipos cujo cerne está na representação de vozes explícitas e implícitas que
tecem o discurso literário.
Para abordarmos essa questão, e tomando como objeto o livro Angélica, de
Lygia Bojunga, consideraremos os estudos do discurso em uma perspectiva histórico-
ideológica, na qual se baseia a Análise do Discurso de linha francesa. Sob esse ponto
de vista, propomos considerar a leitura como uma prática discursiva, o que implica
entendê-la como um processo de produção de sentidos que envolve tanto o sujeito que
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lê, quanto as condições sócio-históricas nas quais ele está inserido. Segundo Orlandi
(1988), essas condições de produção de leitura implicam o contexto em que se faz a
leitura, seus objetivos, o lugar social ocupado tanto pelo autor do texto como pelo leitor,
o tipo de discurso e as leituras anteriores de ambos. Ou seja, a questão da leitura supõe
um processo sócio-histórico que fornece os elementos e a articulação que configuram
um determinado gesto de leitura, orientando a interpretação do texto.
Como método de investigação, na perspectiva discursiva, não é essencial a
organização do texto, mas o que ele organiza em sua discursividade em relação à ordem
da língua, à sua materialidade. A proposta de uma prática discursiva de leitura resulta
do encontro da ordem da língua com a ordem da história, representando, assim, um
conjunto de relações significativas nas quais se inscrevem questões teóricas relativas à
ideologia e ao sujeito.

A especificidade da Análise do Discurso (AD)


Os estudos da Análise do Discurso (doravante AD) fundam-se no
entrelaçamento entre a Linguística e as Ciências Sociais e são concebidos num terreno
ocupado pelo marxismo, pela luta de classes e movimentos sociais e pelo
desenvolvimento dos estudos linguísticos, que rompem com a dicotomia língua/fala
saussureana, colocando questões relativas ao sujeito e à ideologia nos processos de
significação.
Michel Pêcheux, um filósofo envolvido com questões marxistas, psicanalíticas e
epistemológicas, desenvolveu, com Jean Dubois, linguista e lexicólogo, um projeto
crítico em relação à Linguística ao propor uma semântica do discurso ao invés de uma
semântica linguística, pois, para Pechêux, as condições sócio-históricas da produção
de um discurso são inerentes a ele. Assim é que nasce o projeto da Análise do Discurso
(AD), apoiado em uma ruptura epistemológica nos estudos linguísticos, colocando
questões teóricas relativas ao sujeito e à ideologia. Para tal proposta, a teoria do
discurso teve que ressignificar as noções de história e de social. Conforme explica
Orlandi,
O social se apresentando não como traços sociológicos empíricos
(classe social, idade, sexo, profissão) mas como formações
imaginárias que se constituem a partir de relações tal como elas
funcionam o discurso [...] O histórico, por sua vez, é definido não como
fatos e datas, como evolução e cronologia, mas como significância, ou
seja, como trama de sentidos, pelos modos como eles são produzidos.
(ORLANDI, 2004, p.77)

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Como indica o nome da disciplina, o objeto de estudo do qual se ocupa a AD é
o discurso, entendido não em sua acepção advinda do senso comum: pronunciamento
político, retórica ou eloquência, entre outros, nem mesmo com o rigor teórico de
natureza estritamente linguística: língua, texto, fala e linguagem, apesar de esses
conceitos serem caros à AD, pois representam a existência material do discurso. O
discurso implica uma exterioridade, encontra-se no social, na ideologia e na História;
sem envolver questões estritamente linguísticas, necessita da língua para sua existência
material.
Os discursos não são fixos, pois, pertencendo à exterioridade, acompanham as
transformações políticas e sociais. Sendo assim, a ideologia materializa-se no discurso
que, por sua vez, materializa-se na linguagem em forma de texto, ou seja, a língua se
insere na história produzindo sentidos. Observado como ação social, Orlandi (1999,
p.15) argumenta: “A palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de
percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento,
prática de linguagem”. O discurso implica, portanto, suas condições sócio-históricas de
produção e sujeitos falando de diferentes posições ideológicas, diferentes espaços
socioideológicos, que representam as condições de produção que envolvem o discurso
e que o possibilitam e o determinam.
Nessas condições, o sujeito discursivo não é o ser empírico, individual e
transparente no seu dizer, mas o ser social, discursivo, que tem existência em um
determinado momento e não outro e cuja voz representa seu lugar social, de onde
ecoam outras vozes constitutivas desse lugar. Essas outras vozes, para a AD, por meio
de um viés psicanalítico lacaniano, instituem o Outro, que representa o social
constitutivo de cada sujeito, a manifestação do inconsciente estruturado na forma de
linguagem, permitindo o descentramento do sujeito e a emergência de uma posição-
sujeito pertencente a uma formação social, na qual um complexo de formações
discursivas produz efeitos de sentido. É a partir dessas noções, então, que se pode
pensar na produção de sentido.
Conforme podemos perceber, pela inter-relação com a Linguística, a História e
a Psicanálise, a AD possui um caráter transdisciplinar decorrente do cruzamento teórico
de diferentes campos do saber. Essas referências fundadoras são especificadas por
Gregolin (2003) ao dizer que o discurso como objeto de estudo é também um lugar de

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enfrentamento teórico, uma vez que, revelando uma determinação histórica dos
processos de significação, revela, também, uma dispersão de sentidos.
Considerando, portanto, “o ponto de encontro em que a língua toca a história”
(GADET e PÊCHEUX, 1984, p.64), a direção dada às práticas de leitura leva-nos a
conceber essa prática como um processo de produção de sentidos, o que implica
discutir qual a relação entre leitura, memória e pensamento e como se dá a interpretação
nesse processo. Pêcheux (2008) enfatiza:

Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois,


lingüisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente
determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a
interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise de
discurso. (PÊCHEUX, 2008, p.53)

A leitura: uma prática discursiva


Pautar a prática de leitura na perspectiva de um leitor individual é defendê-la
como unívoca e objetiva, um produto inscrito no próprio texto, desconsiderando que a
linguagem é exterior a qualquer falante e que o leitor é um sujeito histórico interpelado
pela ideologia.
No processo discursivo de produção de leitura funciona um jogo de perspectivas
em relação às manifestações dos discursos no texto considerado “planos enunciativos”
(ORLANDI, 1988), entre os quais está aquele que organiza as unidades do texto em
torno do “princípio de autoria”, o qual implica a figura do autor e sua correlata figura do
leitor virtual, a quem está destinada a obra. Essa relação entre autor/leitor pretende criar
uma aparência de homogeneidade que apaga as perspectivas enunciativas que se
confrontam como efeito de uma construção de unidade de cada parte que constitui o
todo de um texto.
Essas figuras enunciativas são representações ou imagens estreitamente
ligadas a funcionamentos e práticas discursivas institucionalizadas, ou seja, tem a ver
com os diversos modos de inserção e circulação dos discursos na sociedade. Como
práticas discursivas, estão apoiadas em um suporte institucional (Igreja, Governo, Mídia
ou, no que tratamos neste trabalho, a Escola), que funciona como sistema de exclusão,
impondo formas e fixando sentidos (FOUCAULT, 1996). Assim é que, em parte de um
discurso literário dirigido ao público infantil, a linguagem superficial marca um processo
de doutrinação e manipulação na maneira pela qual as figuras do autor e do leitor se

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colocam no texto, revelando que “nosso mundo interior se adapta às possibilidades de
nossa expressão, aos seus caminhos e orientações possíveis” (BAKHTIN, 1981, p.118).
Considerando que a memória discursiva de uma dada sociedade está inserida
em um universo discursivo, seja ele religioso, político, literário, pode-se dizer que o
sujeito autor, operando nesses universos, cria efeitos de sentido que podem revelar-se
eufóricos ou disfóricos em relação ao seu leitor. Para que haja, portanto, no discurso
literário dirigido ao público infantil, uma leitura crítica que tece discursos variados que
se entrecruzam a fim de despertar e construir, no sujeito leitor, sentidos, é necessário o
embate de ideias ancoradas em vozes explícitas e implícitas e desveladas no percurso
da leitura, que vai desde as camadas superficiais do texto, marcadas linguisticamente,
até a camada mais profunda dos sentidos.
Nessa abordagem discursiva, toda manifestação enunciativa realizada por um
sujeito autor deve ser entendida como uma manifestação da regularidade de uma
prática discursiva configurada por determinados rituais enunciativos que funcionam
como “regras anônimas, históricas [...[ que definem, [...] para uma área social,
econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função
enunciativa” (FOUCAULT, 1969, p.136). É por meio dessas regularidades enunciativas
que se estabelecem relações de continuidade entre os diversos efeitos e sentidos
produzidos no texto/discurso e que sedimentam os processos de interpretação
produzidos pelo funcionamento da memória discursiva no ato de leitura.
A leitura, então, constitui-se como um momento crítico de uma relação entre
sujeito-autor/discurso/sujeito-leitor, pleiteando uma “teoria não-subjetiva da linguagem”,
em que “da pluralidade de formações discursivas existentes em nossa formação social
resulta uma variedade de sujeitos sociais, daí decorrendo a diversidade de leituras
possíveis” (INDURSKY,1998, p189, 191).
É no rastro dos gregos, em especial Platão, que Lajolo (1997) lança um olhar
crítico ao discutir as “delicadas relações entre sociedade e literatura” (LAJOLO, 1997,
p.63), demonstrando como as diferentes formações discursivas estabeleceram formas
de pensar a literatura em distintos momentos da história. Interessa-nos, desse estudo,
o perfil instável das significações e fato de que “o gerenciamento que a sociedade impõe
à literatura sugere a grande influência desta sobre aquela” (p.64). Segundo a autora, as
relações entre sociedade e literatura não são unívocas nem homogêneas, constituindo
o texto literário a concretização, por intermédio da linguagem, do poder persuasivo sobre
os leitores.
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Mais do que o poder persuasório da literatura sobre seus leitores, o
que está em jogo na parceria sociedade/literatura é o poder
perfomativo da literatura.
Este poder performativo da literatura exerce-se não mais no nível
individual de um interlocutor sobre o outro, mas no nível coletivo, no
âmbito de uma prática de linguagem partilhada por largos e
importantes segmentos da comunidade de falantes [...] Esta
concretização, ou seja, esta transformação da vontade em ato se opera
por intermédio da linguagem e ocorre na linguagem. (LAJOLO, 1997,
p.80)

O caminho, então, é buscar como o literário constrói o social. Como aponta


Candido (1985, p.4), “fundindo texto e contexto, numa interpretação dialética íntegra [...]
o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como
elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se,
portanto, interno”.
Também considerando a obra literária como parte do social, ou seja, constitui e
é constituída por este, Mikhail Bakhtin, para quem a língua é a realidade material
específica da criação ideológica, centraliza suas análises na dialética cultural e social,
embasando estudos contemporâneos para os quais a análise textual não pode se
dissociar do social que o texto representa e transforma.
Para o autor, não há o “real” a ser captado, mas uma diversidade social de várias
posições sócioideológicas situadas em tempo e espaço históricos que compõem os
textos literários.
Julgamentos de valor, antes de tudo, determinam a seleção de
palavras do autor e a recepção desta seleção pelo ouvinte. O poeta,
afinal, seleciona palavras não do dicionário, mas do contexto da vida
onde as palavras foram embebidas e se impregnaram de julgamentos
de valor. Assim, ele seleciona os julgamentos de valor associados com
as palavras e faz isso, além do mais, do ponto de vista dos próprios
portadores desses julgamentos de valor. (BAKHTIN, 1976, p. 9-10)

Ler, portanto, é uma prática social que mobiliza interdiscursos, memórias


discursivas que conduzem o leitor, enquanto sujeito histórico, a uma disputa de
interpretações, mergulhando em uma teia discursiva construída de já-ditos,
desestruturando e reconstruindo o texto segundo saberes de sua posição sujeito-leitor
(INDURSKY, 2001), ou seja, na prática da leitura, o sujeito-leitor ocupa uma posição-
sujeito relacionada à posição-autor, identificando-se ou não com ele.
Retomando Lajolo (1997), a respeito da relação entre sociedade e literatura, torna-se
manifesto que esta última busca na sociedade valores e linguagens; por sua vez, a
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sociedade encontra na literatura modos de expressar e regular o sistema ou destruir a
homogeneidade imaginária do mesmo.
Linguagem social que se vale das línguas naturais, a literatura, em
suas diferentes manifestações, torna-se Instrumento poderoso no
gerenciamento das sociedades.
Ao formatar o imaginário coletivo o poder da literatura se exerce de
forma mais visível e nisso reside sua maior ameaça: se é verdade que
nações são comunidades imaginárias, a literatura é uma das
linguagens que esculpem esse imaginário, pondo em circulação,
discutindo e ressinalizando identidades, valores, crenças e demais
elementos que, ao darem forma a uma dada cultura, funcionam como
um dos elementos de coesão da comunidade que vive esta cultura.
(LAJOLO, 1997, p. 83)

O livro Angélica
É dentro de uma constelação de escritores surgidos sobretudo a partir da década
de 1970 que se situa Lygia Bojunga Nunes. Autores como Ana Maria Machado, Ricardo
Azevedo e Ruth Rocha se valem de procedimentos metalinguísticos construindo textos
inovadores que rompem com as expectativas dos leitores, levando-os a refletirem sobre
a própria matéria literária. Além da exploração da metalinguagem, o emprego do
coloquialismo, a abordagem crítica de problemas sociais e a valorização da perspectiva
infantil também são aspectos presentes nas obras desses autores.
O livro Angélica, publicado em 1975, consiste na segunda produção literária da
autora, que conquistou com ele, no mesmo ano, o prêmio “O melhor para a criança”,
concedido pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), além de integrar
o conjunto de obras premiadas com a Medalha Andersen e o Prêmio em Memória de
Astrid Lindgren, em 2004. É evidente, portanto, o alto teor artístico e literário da obra e
a capacidade inventiva da autora. Embora seja um livro dirigido ao público infantil, seu
elevado nível de criação e de consciência crítica tem conquistado leitores jovens e
adultos.
Neste livro, narrado em terceira pessoa, com predomínio do diálogo sobre a
narração e o vasto emprego do discurso indireto livre, temos as histórias do porco Porto
e da cegonha Angélica tematizadas em uma dicotomia de ser x parecer: o porco que
muda de nome para fugir da discriminação, anulando a sua identidade, e uma cegonha
que, inconformada por viver na mentira de que seriam as cegonhas responsáveis por
trazerem os bebês ao mundo, foge de sua terra natal para o Brasil, onde acreditava não
ter que mentir a seu respeito e que, já no país descobre que a mentira contada em sua

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terra natal também se contava aqui; portanto, “não adiantava ir para outro lugar porque
era tudo a mesma coisa”.
No decorrer da leitura, percebe-se uma visão crítica com relação a determinados
comportamentos e vivências dos personagens, tais como o preconceito sofrido pelo
elefante Canarinho por ser idoso; o machismo por meio das falas e comportamentos de
personagens, como o pai de Angélica e do crocodilo Jota, para quem “lugar de mulher
é dentro de casa cuidando dos filhos” , expondo uma ideologia patriarcal que, no
entanto, é subvertida por sua mulher, conhecida por Mulher-do-Jota, quando se assume
como Jandira.
Mas a narrativa detém-se mais demoradamente na figura do porco Porto, nas
suas alegrias e conflitos interiores, filtrando suas inquietações, seus pensamentos e
dúvidas e também é sobre esse personagem que privilegiamos os recortes para a
análise.

O viés crítico em Angélica


Após essas considerações, reiteramos que um texto dialoga com outros
discursos que têm lugar na história. Assim, o trabalho com os aspectos formais da língua
revela também aspectos próprios da formação histórico-ideológica nas quais os sujeitos
se inscrevem. Considerando que a AD não trabalha com separação entre linguagem e
exterioridade, ou seja, não separa linguagem e sociedade na história, estabelecemos
que o sentido não está fixado nas palavras e nem pode ser qualquer um, pois há uma
determinação histórica.
É tarefa do analista do discurso mostrar como um texto trabalha os processos
de significação e os procedimentos metodológicos podem ser pensados em dois
movimentos: um movimento no qual o discurso é situado em sua conjuntura, buscando
compreender suas condições de produção, ou seja, seus aspectos históricos,
ideológicos e sociais que determinam sua produção e outro, no qual se focaliza o interior
de uma formação discursiva, percebem-se as regularidades e opera-se a análise por
meio de recortes das sequências linguístico-discursivas. Os dois movimentos de análise
representam duas instâncias inseparáveis que permitem a movência dos discursos e
sentidos, um movimento de ir e vir entre a materialidade linguística e a sua exterioridade
histórica, social e ideológica.
O conceito de recorte, por sua vez, contribui para a sustentação teórica de um
trabalho de análise ao mesmo tempo em que fornece ao analista procedimentos
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metodológicos para a seleção e organização do corpus. A noção de recorte é
apresentada por Orlandi (1984, p.14) como “unidade discursiva [...] fragmentos
correlacionados de linguagem [...] um fragmento da situação discursiva”. Trata-se de
selecionar partes que tenha relações semânticas, conforme os objetivos de estudo,
considerando a interrelação com o todo do corpus.
O gesto do analista do discurso, portanto, é trabalhar as fronteiras das posições
ideológicas, trabalhar a opacidade da linguagem, sua não-transparência e não-
evidência; sendo assim, a descrição de um enunciado ou de uma sequência discursiva
coloca o Outro em evidência, “a historicidade concebida sob a forma do interdiscurso
[...] a presença da ideologia” (ORLANDI, 2004, p.76, 77).
Portanto, é delimitando um recorte que a prática de leitura sedimenta processos
de interpretação produzidos pelo funcionamento da memória discursiva na qual os
sujeitos se definem em uma formação social numa conjuntura histórica dada.
Vejamos:
Recorte I
[Porco] Estava adorando a vida, ria de tudo, pelo jeito não tinha
ninguém mais feliz do que ele.
Mas um dia disseram que ele não podia ficar à toa.
_ Não estou à toa, não: tô descobrindo as coisas – ele falou.
_ Não pode: tem que ir para a escola aprender a ler e escrever. E ele
então foi.
(BOJUNGA, Lygia. p. 13,14)

Recorte II
-Você não sabe ler, é? [...] Você querendo eu te ensino.
[...] Quando ele [Porto] foi dizer que sim, a resposta se envergonhou
outra vez e não saiu. E no lugar dela apareceu uma resposta
espevitada que foi logo dizendo:
_ Não precisa, eu até que vivo bem sem saber ler e escrever.
_ Pois podia viver melhor se soubesse.
(BOJUNGA, Lygia. p. 49)

O recorte I trata da imagem da escolarização, mais especificamente do que seria


a aprendizagem formal. Ao refletir acerca das implicações que decorrem do emprego
de tempos verbais, podemos nos remeter às considerações de Benveniste (1995), que
estabelece que a opção por determinados tempos verbais não se relaciona com o
aspecto cronológico, mas revela a atitude do enunciador perante ao que por ele é
enunciado.

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Neste primeiro recorte, o emprego do pretérito-perfeito em disseram cria um
efeito des-subjetivante em função do sujeito do discurso desobrigar-se de referenciar o
sujeito da ação, apresentando-o como o “outro” com vistas a privilegiar o acontecimento
discursivo. Ressalta-se, nesse caso, a coletivização do enunciador com o seu
enunciado; não é, necessariamente, uma indeterminação da terceira pessoa com a
intenção de eliminar réplicas suscitadas pelo dizer, mas de sustentar, no estilo verbal,
uma posição em que se pretende descentralizar a responsabilidade do dizer.
Ainda neste recorte, o sujeito-autor, por meio da fala do personagem Porto
centrada no verbo descobrir, cujo efeito de sentido repousa na novidade, no fazer
sozinho, assume a posição de que o conhecimento empírico é válido e real,
restabelecendo pré-construídos sociais e discursos populares transversos. Essa
consciência é reforçada pela dupla negativa, consolidada no procedimento retórico de
ênfase que acompanha a locução à toa, denotativa de desocupado, sem compromisso
e sem ideal proposto. Esse entendimento nos possibilita compreender que, no excerto
em questão, ressoa um discurso-outro presente no interdiscurso que faz eco nos
sentidos, resgatando identidades sociais.
A expressão do desejo transformado em ato, convertendo-o em realidade, se
constrói pelo uso do imperativo expresso na sucessão dos verbos poder e ter como
verbos de vontade. Com isso, estabelece-se uma manifestação cabal da função
performativa da linguagem, como expressa Lajolo (1997), fazendo emergir outro
enunciado, de diferente posição-sujeito, que se contrapõe ao anterior, proferido pelo
personagem Porco. Entende-se que não pode e tem que (ir para a escola aprender a
ler e escrever) produz aquilo que enuncia: e ele então foi.
Confrontando os enunciados dos dois personagens neste recorte, nessas
condições de produção inerentes ao fazer literário, o sujeito-autor passa a trabalhar
tanto no discurso da formação discursiva do personagem Porco, que assume a
apropriação do conhecimento empírico, como na formação discursiva que abriga a
posição-sujeito contrária ao discurso do personagem. Atestando essa movimentação de
saberes, o sujeito-autor assume o discurso amparado em um sistema pedagógico
dominante e reprodutivo de uma cultura no qual a criança, antes de ser aluno, não tem
saberes e o professor, legitimado por uma instituição, tem a posse desse saber e é
autorizado a transmiti-lo.
O sentido do conhecimento empírico sufocado é reforçado no recorte II por meio
do termo espevitada, cujo significado é de algo vivo, petulante e pretensioso e foi
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escolhida para caracterizar uma resposta automática, ou seja, inconsciente, do
personagem Porco. Inconsciente no sentido de vir à tona aquilo em que realmente
acredita, mas que está calcado por normas, regras, ditames vários
Essa posição assumida pelo sujeito-autor, e diluída na história principal, pode
ser considerada como tendenciosa e autoritária, quiçá até mesmo perniciosa, pois faz
parte de um discurso dirigido a crianças em idade de formação crítica, permitido a
manutenção e uma prática pedagógica instituída por uma ideologia na qual o saber
empírico é destituído de valor e o saber tradicional, escolar é superestimado.
Para Bakhtin (1981), a neutralidade da palavra se estabelece no sentido de que
ela pode assumir qualquer função ideológica, dependendo da maneira como aparece
em um enunciado concreto, ou seja, o falante, ao dar vida à palavra dialoga com os
valores da sociedade, expressando seu ponto de vista em relação a esses valores. São
esses valores que devem ser entendidos, confirmados ou não pelo leitor.

Considerações finais
Assim, adotando uma perspectiva discursiva, o sujeito-leitor se constitui na sua
identificação com as posições de sujeito definidas no processo de produção da leitura,
mas que, embora se relacionem entre si, não o fazem de forma equilibrada. Há entre
elas uma assimetria, pois, ao mesmo tempo em que há um espaço de resistência e de
singularidade no discurso há também a legitimação e o reconhecimento do discurso
institucional.
Tendo em vista a discussão empreendida neste trabalho, podemos afirmar que
o texto, permeado pelo discurso estético, gera um espaço crítico a ser preenchido pelo
leitor e que induz aos sentidos potenciais dos pontos de deriva da superfície textual,
materializados linguisticamente, e onde a memória discursiva fornece elementos para
outras identificações, constituindo o sujeito-leitor na interpretação.

Bibliografia
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e Cristovão Tezza. mimeo. 1976.

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Campinas: Pontes Editores, 2008.

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SAGAS FANTÁSTICAS BRASILEIRAS PARA JOVENS
LEITORES: UM PANORAMA GERAL88

Pedro Afonso Barth (UEM/UTFPR-PB)

Eixo Temático: Grupo Temático 4: A literatura juvenil e jovens leitores

Considerações iniciais
Sagas fantásticas são uma modalidade narrativa de histórias seriais.
Impulsionadas por fenômenos midiáticos, como Harry Potter e O Senhor dos Anéis,
tornaram-se populares no século XXI. Toda saga tem em comum o fato de compor um
universo único que definimos como paracosmos (MARTOS GARCIA, 2009): um mundo
autoconsciente com regras e lógica próprias de funcionamento. Além disso, sagas são
obras de ficção que possibilitam e incentivam a interação, a iconotextualidade e a
transmidialidade.
Ao longo da nossa pesquisa, refletimos sobre o conceito de sagas fantásticas e
sua relação com a formação de leitores. Para tanto, tornou-se necessária a criação de
uma possível delimitação/classificação de sagas fantásticas brasileiras por linhas, de
acordo com a estruturação de seus paracosmos. A partir da classificação das sagas,
proposta por este estudo, são realizadas quatro análises de obras do corpus: paracosmo
independente, paracosmo simultâneo, paracosmo encapsulado oblíquo e paracosmo
encapsulado manifesto.
Acreditamos que obras, como a série Dragões de Éter, de Raphael Draccon
(2010), a série Os sete, de André Vianco (2001), O espadachim de Carvão, de Affonso
Solano (2013), As Crônicas dos Mortos, de Rodrigo de Oliveira (2015), Super Nova, de

88
O presente trabalho é um recorte da pesquisa desenvolvida na tese SAGAS FANTÁSTICAS
NA LITERATURA JUVENIL BRASILEIRA: UNIVERSOS INSÓLITOS E IMERSIVOS orientada
pela professora Dra. Alice Aurea Penteado Martha na Universidade Estadual de Maringá no ano
de 2019.
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Renan Carvalho (2016), Ordem Vermelha, de Felipe Castilho (2017), A Arma Escarlate,
de Renata Ventura (2010), As Aventuras de Tibor Lobato, de Gustavo Rosseb (2016),
Legado Folclórico, de Felipe Castilho (2013), entre muitas outras, configuram um
universo autoconsciente, pois há um paracosmo estabelecido, com história e geografia
próprias. Seus personagens têm pontos de contato com arquétipos narrativos (o herói,
o antagonista etc.) e/ou estereótipos preestabelecidos, como “o vampiro”, “o príncipe”,
“o guerreiro”, que são atualizados e reformulados. Sendo assim, parece possível
caracterizá-las como sagas fantásticas. É um interessante movimento da literatura
juvenil brasileira que merece ser analisado com a atenção devida.

Eclosão das sagas fantásticas e definição de Paracosmo


Convém indagar o porquê da escolha do termo saga fantástica para caracterizar
esse fenômeno. Em relação ao termo saga, é necessário considerar que a origem do
vocábulo é norueguesa e tem a sua significação atrelada ao verbo segja, que significa
contar. Há uma aproximação com o termo inglês “say” e o termo alemão “sagen” (dizer).
André Jolles (1976) afirma que o termo saga identifica um gênero oral específico –
composições épicas, associadas às culturas nórdicas e germânicas, que narravam
façanhas e feitos memoráveis. Em sua obra As formas simples, Jolles (1976) descreve
que a palavra saga aplicada às manifestações literárias teve muitas alterações de
sentido ao longo dos séculos; portanto, muitas estruturas textuais distintas já foram
denominadas como sagas. Entretanto, o autor considera que a origem do vocábulo está
atrelada a um gênero literário associado a um país e a uma época determinada: a
Islândia dos séculos X e XI. Nessa perspectiva, saga é a história de uma estirpe, uma
grande narrativa sobre os vínculos familiares e a evolução genealógica de um clã. Com
o passar dos séculos, o termo saga passou a ser aplicado popularmente, tanto em língua
portuguesa quanto em outras línguas, para caracterizar séries de obras literárias que
apresentam algum argumento em comum. Partindo dessa premissa, os autores
espanhóis Alberto Martos García, Eloy Martos Núñez e Glória Garcia Rivera adotaram
o termo saga junto ao adjetivo “fantástica” para caracterizar uma modalidade
transmidiática das narrativas modernas (MARTOS GARCÍA, 2009). Importante
esclarecer que a escolha lexical do adjetivo “fantásticas” faz referência aos conteúdos
insólitos que as sagas transformam e elaboram. Dessa forma, o termo não tem relação
específica com a nomenclatura utilizada por Tzvetan Todorov (1975), na obra Introdução

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à literatura fantástica, ou com qualquer outra teoria sobre as manifestações do fantástico
na literatura.
Apesar de manter um forte vínculo com mitologias e histórias vindas da oralidade
de diferentes povos, as sagas são narrativas híbridas. Alberto Martos García (2009), em
sua obra Introducción al mundo de las sagas, caracteriza as sagas como um exemplo
de narrativa pós-moderna, pois seu enredo excede moldes preestabelecidos. Segundo
o autor, a saga não se limita a uma mera reprodução de um elemento fantástico ou ao
relato de espada e bruxaria, ou ainda, do mito do herói. Assim, essa forma narrativa é
capaz de elaborar utopias e distopias, configurar heróis e anti-heróis e mobilizar, em
relação à linguagem, diferentes manifestações multimodais.
Estruturalmente, as sagas também têm como característica a contínua
expansão: são histórias sem fim, pois não se resumem a um livro e até podem ser
representadas e adaptadas em vários meios concomitantemente. A saga fantástica
configura um conjunto transficcional: uma história e/ou universo coabitam em diversos
suportes e linguagens. Martos Núñez (2013) afirma que a narração serial e a
possibilidade de leitura não linear são inerentes às sagas modernas, ou seja, a partir de
um tronco inicial, a história se desdobra e podem se desenvolver múltiplos itinerários
narrativos. Esses possuem como elo comum o fato de acontecerem no mesmo mundo.
Por sua vez, Garcia Rivera (2004) afirma que a constituição de uma saga é
marcada pelo fato de compartilhar um universo comum e não o de contar uma história
linear. É importante abordar a principal característica que singulariza a saga fantástica:
o conceito de paracosmos. O termo paracosmos é a justaposição de: para – que provém
do grego παρά, que significa “à margem de” ou “junto à” – e cosmos – do grego κόσμος
e significa “mundo”; “universo”.
A união dos termos tem como significado “mundo à margem” ou “mundo ao
lado”. Glória Garcia Rivera (2004) foi uma das primeiras estudiosas a aplicar o termo
paracosmos para caracterizar o mundo paralelo estabelecido em uma saga fantástica.
É importante esclarecer que o termo paracosmos foi emprestado da Psicologia, pois,
segundo a autora, é um conceito muito heurístico e integrador. Na Psicologia, o termo
é utilizado para definir e caracterizar as narrações documentadas de crianças que criam
e inventam mundos de fantasia.
Entre os estudos sobre paracosmos citados pela autora, destacamos o estudo
dirigido pelo psiquiatra britânico Stephen A. MacKeith e o psicólogo, também britânico,
David Cohen (1992) que caracterizam o termo no estudo The Development of
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Imagination: The Private Worlds of Childhood. Para os autores, um paracosmos é
estabelecido quando alguém cria um mundo mentalmente. Essa criação precisa ser
detalhada e pode conter elementos que existem na realidade, bem como entidades e
seres completamente imaginários. É muito comum que esse mundo tenha idiomas
próprios, bem como história e geografia. Além desses estudos pioneiros, há outros como
o Delmont Morrison e Shirley Linden (2005) que, em seu livro Memories of Loss and
Dreams of Perfection, relacionam o uso de paracosmos como um processo mental de
superação de perdas. Os autores descrevem casos de pessoas que depois de sofrerem
perdas de entes queridos ou outra tragédia equivalente passam a dedicar-se na criação
de um mundo próprio.
Tanto Garcia Rivera (2004) quanto Martos Garcia (2010) justificam o uso do
termo paracosmos aplicado às sagas fantásticas alegando que a fantasia elaborada por
crianças guarda muitas semelhanças e é equivalente à ficção instituída em um universo
criado para atrair fãs/leitores. A diferença é que o primeiro tem um alcance individual e
contribui no crescimento e evolução mental de um indivíduo específico – o criador do
paracosmos. Já quando se converte em ficção para massas passa a ter um alcance
maior, atingindo uma escala global. De qualquer forma, todo paracosmos é um reflexo
da imaginação humana.
A partir da obra de Martos García (2009, p. 23), selecionamos e apontamos cinco
características fundamentais para a compreensão do conceito de paracosmos:
a) Universo alternativo, completo, autoconsciente, dotado de suas próprias
regras: como pontuamos anteriormente essa é a característica mais importante.
b) Composição formal derivada de uma hibridação de gêneros: uma saga
pode ter as mais diferentes inspirações, como história de fantasia, conto de fadas,
histórias de terror, ficção científica, histórias policiais etc.
c) Imagens cosmológicas: frequentemente as sagas lidam diretamente com
o mito de fundação de um mundo.
d) Iconotextualidade: expressa nos livros das sagas fantásticas por meio de
mapas, árvores genealógicas e outras imagens que ajudam o leitor a situar-se no mundo
da saga. Essa não é uma propriedade constitutiva: ou seja, não é ela que define uma
saga fantástica, já que é possível termos uma potencial saga sem a presença massiva
de elementos iconotextuais.

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e) Imagens e arquétipos recorrentes tomados da mitologia indo-europeia: o
mago, o guerreiro, o herói, a princesa, entre outros arquétipos são revisitados e muitas
vezes são modificados na narrativa da saga.

Classificação de Sagas Fantásticas Brasileiras


Serialidade e a formação de um paracosmos são duas das características
básicas de uma saga fantástica. São básicas porque é por meio delas que podemos
estruturalmente identificar se determinada narrativa é uma potencial saga fantástica ou
não. Entretanto, se o critério para identificar sagas fosse temático, teríamos um grande
problema: as sagas podem abarcar as mais diferentes temáticas e abordar as mais
múltiplas referências. Essa diversidade impacta quando temos a necessidade de
classificar e oferecer uma tipologia das sagas fantásticas.
Alberto Martos Garcia (2009) aponta que é importante delimitar o tipo de
subgênero em que a saga analisada se encaixa. O estudioso espanhol esclarece que
tal classificação sempre deve ser uma aproximação, pois não se trata de etiquetar e,
sim, compreender o funcionamento do paracosmos. Martos Garcia (2009), ao abordar
a tipologia das sagas, destaca três formas:
Sagas clássicas: sagas nórdicas, o mito e epopeia – nessa classificação o
estudioso espanhol abrange a forma simples da saga e não propriamente as sagas
fantásticas. Porém, nelas é possível encontrar o cerne básico de uma saga fantástica
contemporânea.
Sagas modernas: são propriamente as sagas fantásticas, também chamadas de
histórias de fantasia épica. O exemplo dado por Martos Garcia é a obra O Senhor dos
Anéis. São sagas que retratam passados míticos, além de ser o gênero de protagonismo
da espada e da bruxaria.
Sagas pós-modernas: distopias e recriações – seriam as formas avançadas de
sagas, pois abarcariam utopias e distopias que acontecem em um futuro possível. O
autor utiliza os impérios galáticos como exemplos de saga cosmológica. Aqui há uma
hibridação entre a fantasia e a ficção científica e são citadas sagas como Star Trek e
Star Wars. Fazem parte desse grupo as sagas que traçam histórias de um futuro ou
presente alternativo, como aquelas que respondem à pergunta: e se Hitler tivesse
vencido a Guerra? (MARTOS GARCIA, 2009).
Essa categorização de sagas fantásticas pode ser problemática no contexto
brasileiro, pois há muitas sagas que não se encaixam totalmente em nenhuma das
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categorias, ou que, então, unem aspectos comuns de ambas. Por exemplo, sagas que
misturam distopias com elementos da fantasia épica (elfos e trolls que vivem em reinos,
mas pilotam naves e estão armados com lasers). Assim, apesar de importante para a
orientação geral dos temas de uma saga, não sejam formas muito pertinentes de traçar
uma tipologia geral.
Uma proposta de tipologia das sagas fantásticas é a de classificar as narrativas
por meio das formas com que o seu paracosmos se estrutura. Ou seja, a forma que o
mundo paralelo da saga se posiciona em relação à representação do mundo empírico.
Tal classificação é pertinente, pois há sagas em que o paracosmos é totalmente
representado em um universo paralelo, sem menções diretas ao mundo empírico, como
é o caso de O Senhor dos Anéis. Outras sagas desenvolvem o seu paracosmos a partir
do mundo conhecido do leitor, ou seja, o que nos denominamos em nosso estudo como
mundo empírico. Dessa forma, o insólito manifesta-se em “nosso mundo” e é possível
reconhecer referências geográficas, históricas, temporais, alusões a personagens
históricos ou personalidades reais. Um exemplo é o caso de Harry Potter, em que as
histórias não se desenvolvem em um mundo paralelo, mas sim no mundo empírico, que
possui espaços mágicos onde exclusivamente bruxos habitam. Há ainda a possibilidade
do paracosmos de uma saga ser retratado em nosso mundo, mas em um futuro próximo
ou distante, frequentemente distópico. Esse é o caso de Jogos Vorazes.
Levando em conta especialmente as sagas fantásticas brasileiras, propomos a
tipologia de sagas fantásticas ancorada na estruturação do paracosmos. Nessa
perspectiva, existem quatro tipos de sagas: (1) paracosmos independente; (2)
paracosmos simultâneo; (3) paracosmos encapsulado oblíquo; (4) paracosmos
encapsulado manifesto. Na descrição usaremos exemplos de sagas estrangeiras que
apresentam grande popularidade no Brasil.
O paracosmos independente é estabelecido quando o mundo paralelo da saga
não apresenta relação explícita com o mundo que chamamos de “real”, o mundo
empírico, ou com uma representação do mundo que o leitor possa identificar como
aquele que ele efetivamente habita. Um exemplo é O Senhor dos Anéis e Crônicas de
Gelo e Fogo. Ambas as histórias se desenvolvem em um mundo paralelo, com geografia
e história próprias, sem nenhuma menção direta ao mundo empírico. Será no
paracosmos independente que a presença de mapas e cartografias se impõe com mais
importância: como o leitor irá se deparar com um mundo completamente diferente
daquele que conhece, a importância de ter elementos para guiá-lo nesse paracosmos é
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fundamental. Paracosmos independente: descrevemos e analisamos a saga Dragões
de Éter, de Raphael Draccon (2010): as cartografias e os percursos de três
personagens. Em seguida, apontamos a relação desse tipo de saga com as cartografias,
citando exemplos de outras sagas brasileiras.
Por sua vez, estamos diante de um paracosmos simultâneo quando a saga
apresenta dois universos: o mundo paralelo e o mundo empírico. O primeiro é um mundo
à parte, com geografia e história próprias. O segundo é uma representação de
ambientes reais do nosso mundo. É o que acontece nas Crônicas de Nárnia. Existe
Nárnia, um mundo encantado, em que animais, bestas, homens e criaturas mágicas
vivem pacificamente. Porém, o mundo empírico é citado, já que grande parte dos
protagonistas (como é o caso de Pedro, Suzana, Edmundo e Lúcia, na obra O Leão, A
Feiticeira e o Guarda-Roupa) vive inicialmente na Inglaterra, durante a Segunda Guerra
Mundial. Dessa forma, cidades, paisagens e eventos do mundo real são citados. Em um
paracosmos simultâneo é frequente a existência de portais que vão ligar e relacionar os
dois mundos. No caso da obra citada, o portal é um guarda-roupa que leva as crianças
do nosso mundo para Nárnia.
No paracosmos simultâneo é comum que os protagonistas sejam considerados
“especiais”, “escolhidos”. São considerados especiais porque serão os únicos capazes
de fazer a travessia entre dois mundos paralelos. Paracosmos simultâneo: o foco está
em como se efetiva a passagem dos personagens entre os dois mundos constituídos.
Para tanto, comparamos duas sagas: Crônicas do Reino do Portal, de Simone O.
Marques, e Príncipe Gato, de Bento de Luca (pseudônimo de Marcelo Siqueira e
Gustavo Almeida).
Por sua vez, teremos um paracosmos encapsulado quando o universo
autoconsciente da saga se manifesta no mundo empírico: um elemento insólito muda a
ordem natural, transformando a sua realidade. Ou seja, não é um mundo paralelo, mas
o “nosso” mundo é transformado, seja pelo avanço dos séculos e das guerras, como é
o caso de distopias, seja com a aparição de criaturas mágicas que alteram a realidade.
Nessa classificação podemos fazer uma importante diferenciação: paracosmos
encapsulado oblíquo e paracosmos encapsulado manifesto.
A diferença entre as tipologias de paracosmos encapsulados é que no manifesto
toda a humanidade é afetada diretamente. Os efeitos frequentemente são negativos e
criam uma realidade distópica. Já no oblíquo, observamos apenas um grupo de
personagens que vivencia experiências insólitas: grande parte da humanidade, do
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planeta Terra, ignora completamente a existência do paracosmos criado. Dessa forma,
o paracosmos encapsulado oblíquo será frequentemente representado no tempo
presente ao momento da escrita ou publicação e tratará do nosso mundo alterado por
um evento ou criatura fantástica.
Utilizamos o termo oblíquo, pois o insólito será realidade apenas para um grupo
de personagens: para parte da humanidade os elementos insólitos não são “reais”. Ou
seja, o elemento fantástico existe, mas ele está encoberto, escondido, eclipsado para a
maioria das pessoas. Ambos os casos se aplicam na saga Harry Potter: o mundo de
Harry é o mundo empírico. Existe Londres, existe a Europa, existem menções ao nosso
mundo real. Porém, a existência de magia e de seres humanos capazes de fazer
bruxaria e criarem uma sociedade paralela transforma a realidade, criando regras
próprias de funcionamento. Há uma tendência de que a trama principal da narrativa de
uma saga com paracosmos encapsulado oblíquo orbite em torno de um personagem
principal. É o caso de Harry Potter, o paracosmos é estabelecido (um mundo dividido
em bruxos e trouxas), mas a narrativa acompanha especialmente o personagem
mencionado no título. Acontece o mesmo em sagas como Crepúsculo (Bella e Edward
são o ponto central da narrativa) e Percy Jackson e os Olimpianos.
Paracosmos encapsulado oblíquo: o foco está em como o paracosmos fica
oculto. Além disso, nessa tipologia é possível observar elementos de brasilidade, já que
a tendência é que as sagas brasileiras utilizem paisagens do país para a trama. Esse é
o foco da análise e, para tanto, comparamos duas sagas: Aventuras de Timor Lobato,
de Gustavo Rosseb, e Legado Folclórico, de Felipe Castilho.
Por sua vez, o paracosmos encapsulado manifesto frequentemente retratará um
mundo empírico totalmente transformado, toda a humanidade foi afetada por uma nova
ordem em momento futuro do mundo empírico. Essa nova ordem pode ter sido causada
por guerras mundiais ou por ataques de criaturas fantásticas, como vampiros ou zumbis.
Esse tipo de paracosmos terá forte tendência de representar uma distopia. Portanto,
podemos considerar que o paracosmos encapsulado manifesto frequentemente será
uma saga também distópica. O insólito se manifesta de forma a atingir a toda a
humanidade: todos os seres humanos do mundo empírico sentem seus efeitos. Caso
fossem positivos, poderíamos ter a construção de utopias.
Entretanto, como citamos, nas narrativas brasileiras analisadas encontramos
com maior ênfase histórias distópicas. A saga distópica será composta por um
paracosmos caracterizado pelo caos, pela extrema opressão, desespero ou privação. A
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sociedade estará em crise, em situações de privação de direitos básicos, como
liberdade e dignidade. Ou então a humanidade estará perto da extinção lutando pela
sua sobrevivência. Um exemplo de paracosmos encapsulado manifesto é a saga Jogos
Vorazes, pois toda a humanidade foi afetada por guerras que a dividiram e modificaram
as divisões geográficas entre os países. Em determinado ponto desse futuro, uma
espécie de ditadura de uma capital sobre treze distritos foi imposta. Essa é a premissa
inicial dessa saga. Outro exemplo é The Walking Dead, pois toda a humanidade foi
afetada por um vírus que transforma corpos mortos em zumbis famintos por carne
humana.
Distopias são modalidades narrativas muito anteriores ao boom das sagas
fantásticas. A palavra distopia é formada por meio da união de dois prefixos, dis e topos.
O primeiro significa lugar, o segundo tem uma gama de significados, todos do âmbito
da doença, da anormalidade, da dificuldade ou do mau funcionamento (HILARIO, 2013).
Assim, distopia seria um lugar doente, um lugar de dificuldades. Há inúmeros exemplos
de distopias clássicas na literatura, como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou
1984, de George Orwell. A maioria dessas obras retrata o futuro da humanidade de
forma sombria, imersa no totalitarismo, na violência e no uso distorcido de tecnologias.
Nos últimos anos, muitas sagas fantásticas distópicas foram sendo criadas. Por
exemplo, Jogos Vorazes, de Suzane Collins, Divergente, de Verônica Roth, e Maze
Runner, de James Dashner. Tais narrativas apresentam muitas características
semelhantes com as distopias clássicas. E, a popularidade dessas sagas entre
adolescentes e jovens nos faz perguntar: por que mundos sem esperança têm um efeito
tão magnético?
Para refletir sobre essa pergunta, é importante levar em conta que “o objetivo
das distopias é analisar as sombras produzidas pelas luzes utópicas, as quais iluminam
completamente o presente na mesma medida em que ofuscam o futuro” (HILÁRIO,
2013, p. 205). Ou seja, as distopias surgem de medos e apreensões do tempo presente.
A ficção distópica permite tratar diretamente do medo do futuro e das más decisões que
podem ser tomadas pelos humanos. Assim, as distopias “detêm um horizonte ético-
político que lhes permite produzir efeitos de análise sobre a sociedade” (HILÁRIO, 2013,
p. 205). Martos García (2009) aponta que as sagas que narram distopias são
manifestações de esquemas apocalípticos. Ou seja, essas narrativas são estruturadas
em mundos cujo fim parece próximo, pois a humanidade não encontra mais esperança.

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Paracosmos encapsulado manifesto: o foco está na constituição de uma
realidade distópica. Para tanto, comparamos três sagas com características diferentes:
Sombras do medo (2015), de Camila Pelegrini, em que o próprio homem estabelece a
distopia, Saga Vampiro Rei (2013), de André Vianco, em que a distopia acontece após
conflitos com vampiros, e a Crônicas dos Mortos (2014), de Rodrigo de Oliveira, em que
a distopia acontece por meio do que denominamos como apocalipse zumbi.
Importante destacar que a estrutura de uma saga pode não ser completamente
rígida e mutável: nada impede que ao longo da sucessão de narrativas um paracosmos
encapsulado oblíquo possa se transformar em um paracosmos encapsulado manifesto.

Considerações Finais
A análise das oito sagas citadas no trabalho, assim como a leitura de outras
sagas não citadas, permite apontar quais paracosmos que possibilitam a presença de
maiores elementos de brasilidade. Chamamos elementos de brasilidade os índices,
dados, elementos que permitem relacionar a saga com a realidade brasileira. Sagas
com paracosmos simultâneos e encapsulados terão maior tendência a reproduzir
paisagens, cidades, elementos que remetem ao nosso país. Já os paracosmos
independentes, por criar um mundo à parte, não terão, necessariamente, marcas de
brasilidade. Pelo contrário, esse tipo de saga tende a reproduzir um mundo medievo.
Entre as sagas efetivamente analisadas, aqueles que apresentam marcais mais
notáveis de brasilidade são as sagas de paracosmos encapsulado.
Entre as sagas sem menção ao Brasil estão Dragões de Éter (paracosmos
independente) e Sombras do Medo (paracosmos encapsulado). Crônicas do Portal
apresenta apenas menções, mas não é ambientada no Brasil, apesar das lembranças
dos personagens. As demais sagas, Vampiro-Rei, Príncipe Gato, Crônicas dos Mortos,
Aventuras de Tibor Lobato e Legado Folclórico, têm como espaço da ação cidades e
regiões brasileiras. Destacamos as duas últimas, já que elas vão além: o elemento
insólito que estrutura o paracosmos é o próprio folclore brasileiro.
Uma saga fantástica de qualidade terá em seu paracosmos justamente um
elemento de singularidade que faz com o mundo criado por ela seja fascinante para
seus leitores e não se confunda com outro mundo ficcional já existente. Ou pode até ser
semelhante, mas há elementos de singularidade que possam garantir uma sensação de
ineditismo e de abordagem. O grande risco de uma saga brasileira é que o seu
paracosmos não tenha elementos de brasilidade que a tornem inconfundível, o que faz
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com que ela pareça uma variação genérica o paracosmos já existente de outra saga
fantástica. Observamos isso em Sombras do Medo: a trama principal, a trajetória das
personagens, o clima distópico, o baixo grau de caracterização espacial e temporal
fazem com que a história não apresente singularidade.
Mesmo as sagas independentes apenas serão relevantes se conseguirem ser
notáveis para seus leitores, não podem ser um universo genérico que pareça uma cópia
de outros já existentes. É preciso mais: uma centelha de originalidade na concepção do
novo universo.
A divisão dos paracosmos de sagas fantásticas defendidas na presente tese
permite um ponto de partida justamente para verificar a qualidade criativa de uma saga
fantástica. Ao identificar seu paracosmos, é possível entender os limites do mundo
paralelo com o mundo empírico e criar paralelos com sagas já existentes. Assim, há um
ponto inicial para o estudo crítico de sagas fantásticas e para apontar quais delas
apresentam a singularidade necessária para que sejam consideradas boas obras de
ficção e não meras cópias de universos já existentes.
Este estudo teve como ponto de partida os conceitos desenvolvidos pelos
autores espanhóis Alberto Martos García, Eloy Martos Núñez e Gloria Garcia Rivera,
entretanto não se limitou a uma aplicação dos conceitos à realidade editorial brasileira.
O que fizemos foi desenvolver um dispositivo de análise para qualquer saga fantástica,
ampliando os conceitos dos autores e criando uma nomenclatura para classificar os
paracosmos de uma saga fantástica. Dessa forma, podemos pontuar que a aplicação
dos conceitos desenvolvidos neste estudo pode ser ampla, não se restringe a obras
brasileiras.

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UM OLHAR SOBRE O TEMPO E A MEMÓRIO NO LIVRO
ILUSTRADO MANO DESCOBRE A LIBERDADE

Aline Candido Trigo, UNESP, CAPES

Eixo Temático: A literatura juvenil e os jovens leitores

Considerações iniciais
Num contexto em que a rapidez da comunicação, com novas formas de
relacionamento exploradas pela tecnologia, estabelece diferentes fontes de divulgação
de notícias, desponta-se uma exploração de sentimentos, atitudes e discursos
impulsivos e explosivos que visam impacto imediato a serem esquecidos no dia
seguinte, dando lugar a inúmeros outros acontecimentos. Por mais que a internet e os
computadores não deixem que nada se perca no tempo, a memória não é de fato
valorizada, e os discursos passam a serem embasados somente com fatos recentes e
amplamente divulgados. É o que observa Octavio Paz (1982, p. 97): "Nosso mundo
flutua sem direção; vivemos sob o império da violência, mentira, agiotagem e grosseria
porque fomos amputados do passado".
Diante dessa realidade, jornais eletrônicos passam a ter maior acesso aos
interesses de seus leitores e disparam notícias que não interessam, de fato, a ninguém,
mas que mesmo assim alcançam ampla comoção momentânea na rede. Conforme
colocação do jornalista Ruy Mesquita (1998, p. 9), a era da comunicação de massas
“reina sobre a sociedade da informação”, e “tem atrofiado, cada vez mais, o papel
combatente da imprensa, dando mais relevo à natureza meramente noticiosa dos
jornais”. Trata-se de um lamento do jornalista acerca do abandono ideológico da
imprensa, visto que considera o jornal como “arma política na luta pelo aperfeiçoamento
das instituições democráticas” (MESQUITA, 1998, p. 9).

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A reflexão acerca do papel do jornal na sociedade como um instrumento cujo
impacto vai além da divulgação descritiva dos fatos, tendo papel ativo na História, é
abordada no livro ilustrado Mano descobre a liberdade. Sob uma forma híbrida de
composição narrativa, os autores desdobram a noção de memória e a importância
desta, junto à arte, para o desenvolvimento de um cidadão livre e crítico. Ao colocar em
diálogo forma e conteúdo, a obra denuncia que a ditadura não se organiza no aparelho
repressivo, mas no discurso. E o poder dos discursos vai ser cuidadosamente percebido
pelo protagonista, com o auxílio de adultos experientes e com alto conhecimento
artístico que irão apresentar-lhe a um novo e amplo universo.
Mano descobre a liberdade pertence à série Cidadão-Aprendiz89, composta de
oito obras, escrita por Heloisa Prieto e Gilberto Dimenstein, ambos escritores premiados
no campo da literatura infanto-juvenil, sendo, a primeira, pesquisadora Doutora da área
de Literatura, e o segundo jornalista e escritor preocupado com a formação digna e livre
do cidadão. O volume em questão aborda um tema histórico - a Ditadura Militar no Brasil
-, realidade vivenciada pelo avô do protagonista e eternizada em um diário. Além deste,
outros temas importantes para a formação do jovem também despontam, como o núcleo
familiar não tradicional, visto que Mano vive com a mãe e o avô, pois os pais são
divorciados; a cultura de rua, com embates discursivos acerca do grafite; a violência
como forma ineficaz de resolver conflitos; e a intolerância perante o outro.
Apesar de parecer inicialmente uma obra de cunho pedagógico, o trabalho com
a linguagem e o discurso é capaz de surpreender e desafiar o leitor, estabelecendo
constantes diálogos com distintas formas narrativas e artísticas, que traz a ilustração
como referencial para a leitura, exigindo do leitor conhecimentos que vão além dos
limites da escrita para a construção de um sentido da história. Trata-se de uma relação
interartística, portanto. Para a fruição dessa obra, o leitor precisa ser despertado para
os diferentes aspectos ali trabalhados, de modo que possa depreender as múltiplas
significações e criar os embates necessários para lhe tirar da zona de conforto, uma vez
que, conforme Roland Barthes (1996, p. 85), “o prazer do texto é isto: o valor passado
ao grau suntuoso de significante”. Para o teórico francês, um texto não pode ser neutro;

89
A série foi transformada em filme pela cineasta Laís Bodanzky, com roteiro de Luiz Bolognesi.
O longa adaptou a história de Mano e as temáticas que ele vivencia: “a amizade, o crescimento,
o início da vida adulta. Namoro virtual, terrorismo, preconceito, drogas, morte, violência estão no
foco de cada um dos volumes da ‘Coleção-Aprendiz’.” (LIVRARIA DA FOLHA, 2010, s/p)
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ele carrega em si uma ideologia, num jogo de claro-escuro que denuncia e encobre
influências e experiências.
Nesse sentido, o intertexto é “a possibilidade de viver fora do texto infinito – quer
esse texto seja Proust, ou o jornal diário, ou a tela de televisão: o livro faz o sentido, o
sentido faz a vida” (BARTHES, 1996, p. 49). Para que isso ocorra, é preciso que o leitor
adentre um livro como Mano com certa bagagem indispensável para depreensão de
sentido e fruição. Por trata-se de uma obra endereçada ao público infanto-juvenil, o
papel do mediador precisa ser desempenhado acompanhando a mesma função que a
obra exige: exibindo materiais extras que desvendem os diálogos e contextos dos
discursos ali presentes. Conforme atestam diversas pesquisas, o trabalho interartístico,
ao lidar com o ensino de literatura infanto-juvenil em geral, surte grandiosos efeitos e
preparam um bom leitor:

A utilização de diversas formas combinadas de linguagens e discursos


desperta a curiosidade para o texto escrito. E mais: contribui para a
acumulação de conhecimentos e incentiva uma leitura com um número
maior das faces, no caleidoscópio das idéias que compõem a realidade
do mundo “Globalizado”. (MIRANDA, 2009, p. 46)

Diante do livro ilustrado em questão aqui, esse método de trabalho se faz


necessário também porque, ainda que tenhamos atestado a presença de
posicionamento ideológico na obra, não se trata de uma cartilha pedagógica, mas de
material literário. Nessa narrativa, há espaço para a reflexão e para diversas conexões
por parte do leitor, que pode trazer sua própria experiência ao texto. Para Barthes (2007,
p. 18), a literatura foge do fascismo da linguagem porque é feita de uma encenação
dramática do discurso, e, assim, “[...] a literatura faz girar os saberes, não fixa, não
fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto e esse indireto é precioso”.

As formas, os discursos e um breve aceno à materialidade


Em Mano descobre a liberdade, a forma narrativa escolhida convida o leitor a ser
confidente do narrador, pois se trata de um diário. Nas duas folhas de abertura do livro,
o leitor se depara com ilustrações sangradas que o ambientam a elementos culturais,
através da imagem de cds musicais de Moby e The Beatles, de gibis, que ultrapassam
o limite da página, deixando somente um pedaço em evidência, de um diário com chave
e dois lápis que representam não apenas a forma narrativa da obra, mas também a
forma de registro da memória e do discurso, que marcam o tempo assim como a música.

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Conforme ocorre ao longo de toda a obra, as cores trabalhadas ali são fortes, cujo
destaque recai no vermelho, marrom, verde, amarelo, preto e branco.
Ao virar a página, a ilustração funde-se à linguagem, pois, o texto se encontra
dentro da imagem de um livro aberto, que margeia a página dupla; trata-se da forma de
um diário, dentro do qual a narrativa se inicia, com a abertura: “Domingo * 23 horas”. O
escritor do diário é um menino de 13 anos chamado Hermano Santiago, “mais conhecido
como Mano, filho do meio [...]” (PRIETO; DIMENSTEIN, 2001, p. 6). O início consiste no
relato da necessidade que tivera de registrar, através da escrita, um segredo que
descobrira. Declara, também, que ninguém pode saber dessa história, então ele não
pode escrevê-la no computador, pois todos da casa têm acesso a ele. Resolve, por fim,
adotar uma prática de escrita não tão comum nos dias atuais: o diário, que pode ser
trancado com chave, resguardando, assim, os segredos.
Nós, os leitores empíricos, temos acesso a sua história quase como se ele estive
se dirigindo a nós, pois pelo trabalho de ilustração das páginas, é como se estivéssemos
lendo o seu diário. Sabemos que, nesse gênero textual, o interlocutor é o próprio diário,
um receptor mudo que é capaz de guardar segredos. Porém, na obra em questão, o
narrador não abre a narrativa diária através do apelo “querido diário”. Essa fuga ao
convencionalismo do gênero permite que o leitor empírico se identifique enquanto leitor
modelo - aquele a quem o narrador direciona o seu discurso, conforme os termos de
Umberto Eco (1994). A atenção do leitor, principalmente do leitor adolescente, público
ao qual a obra está voltada, é captada pelo mistério introduzido pelo narrador
protagonista, que atesta saber algo que o leitor não sabe: “Ninguém desconfia que eu
sei de tudo. Tudo do começo ao fim” (PRIETO; DIMENSTEIN, 2001, p. 6). A descoberta
desse mistério não será dada de imediato, pois o narrador busca ambientar o leitor ao
início de toda a euforia, contando fatos, impressões e sentimentos que antecederam o
seu processo de descoberta. Ao vasculhar sua memória, Mano enxerga com novos
olhos os acontecimentos que poderiam ter sido pistas para a descoberta do segredo.
Assim, lança seu olhar sobre as personagens que terão importância no decorrer da
história: a casa está cheia de amigos da família, que falam muito, mas nada de
interessante, até que entram na sala Fátima - amiga da mãe de Mano - que é diferente
e misteriosa, e Hermano Santiago de La Mancha - avô do protagonista - um jornalista
aposentado que “detesta agito”, é bravo e quase não sorri (PRIETO; DIMENSTEIN,
2001, p. 7). Mano nota, porém, que o avô sorri quando enxerga Fátima, e conversa com
ela como se fossem grandes amigos.
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Narrador afeito a digressões, visto que está a lidar com sua memória, Mano conta
que o avô e a Fátima conversavam sobre Proust e os diferentes tipos de tempo que
existem, e lhe explicaram que, além do presente, passado e futuro, existe o tempo da
memória, com acontecimentos que podem se perder ou então serem preservados. A
temática da obra já está denunciada aí. Ao dialogar com o principal tema explorado por
Proust – do tempo imaginário - percebe-se de imediato que algo do passado será
revivido através de uma memória que será vasculhada, e que, conforme se vê no
decorrer da narrativa, será também experimentada através das sensações emocionais.
É algo que Maurice Blanchot (2005, p. 23), ao falar sobre a exploração de Proust acerca
do tempo da memória, define como "metamorfose do tempo", que “[...] transforma
primeiramente o presente em que ela parece ocorrer, atraindo-o para a profundeza
indefinida onde o ‘presente’ recomeça o ‘passado’, mas onde o passado se abre ao
futuro que ele repete, para que aquilo que vem volte sempre, e novamente, de novo”.
Essa ideia de movimento circular aparece na obra não somente pela
ficcionalização de um escritor de diários, mas também no enredo propriamente dito.
Exemplo disso é quando Mano, após descobrir relatos sobre a luta de ativistas pela
liberdade durante a ditadura, tem a chance, ao fim do livro, de “reviver” a emoção que
sentiram tais protagonistas da História e juntar-se a eles para sair pela cidade, à noite,
fazendo pichações artísticas, sofrendo intervenção da polícia e podendo observar a
olhos nus o embate entre os jogos de poder. O protagonista se choca ao descobrir que
o líder da Gangue VG (Vovôs Grafiteiros) é seu avô, junto aos amigos Fátima e Lúcio,
todos feitos prisioneiros durante a Ditadura Militar no Brasil. Os três são flagrados por
Mano na garagem da casa, com sprays, tintas e enormes sorrisos estampados no rosto,
preparados para adentrarem à noite e realizarem intervenções artísticas. O avô, então,
convida o neto a acompanhar a turma e sair à noite. Ao virar as páginas desse relato,
adentramos em páginas de fundo preto, com pés e alguns rostos em tons de verde,
vermelho e amarelo às margens, com a representação de um grafite que está sendo
trabalhado no muro por um dos personagens (uma grande pomba branca). As cores
usadas nas caricaturas, aqui, parecem representar a iluminação que tais ativistas
possuem, visto serem tão nobres seus ideais, estabelecendo um contraponto à
corriqueira noção de vandalismo quanto à arte do grafite. A circularidade da obra é
reforçada quando Mano retoma, ali, a ideia das primeiras páginas acerca da memória:
“E o resto daquela noite virou uma aventura que eu nunca mais vou esquecer. Cara,

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agora eu já tenho um passado, tenho um tempo de memória, o dia que eu tiver netos,
quem vai ter o que contar sou eu!” (PRIETO; DIMENSTEIN, 2001, p. 44).
Em tais páginas, compartilhamos a emoção de Mano que, não apenas descobre
a grandiosa história do avô, como também se dá conta de que pessoas aparentemente
comuns carregam experiências inimagináveis, vendo que os moradores da rua,
conhecidos e familiares vão aderindo à manifestação, surgindo dentre estes sua
professora de artes, Anísia, e quase todo mundo do círculo social do adolescente, o que
destrói completamente as estruturas que ele achava existir. Podemos associar essa
obra, portanto, ao texto de fruição do qual fala Barthes (1996, p. 21-22): “aquele que
põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar
as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de
seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem”.
Para quebrar esse peso que a leitura acarreta, o embate final entre toda a turma
e a polícia que a cerca é amenizado pela ilustração: enquanto o texto narra a tensão do
episódio, se observa nas caricaturais representações dos personagens o sorriso aberto,
com tranquilidade, diante de Anísia que solta três pombas brancas de uma gaiola,
simbolizando a paz. Importante considerar aqui, que “As emoções são, por definição,
não verbais, e a linguagem não pode transmitir uma emoção adequadamente. [...] Ao
contrário do discurso emocional, representação emocional não é a explicação de uma
emoção [...], mas sua evocação” (NIKOLAJEVA, 2011, p. 106).
No vazio que o texto deixou, para que a linguagem continuasse sendo
honestamente a de um narrador adolescente, a ilustração cumpriu seu papel de ajudar
a contar a história, em busca de possibilitar maiores significações. Outro momento em
que a ilustração clamou o poder de expressão é quando, na escola, após aparecer no
muro uma pichação da gangue VG de “um pássaro gigante nascendo das cinzas”
(PRIETO; DIMENSTEIN, 2001, p. 34), os alunos passam a discutir sobre arte versus
vandalismo. Enquanto uns acharam o desenho lindo, outros bradaram que grafite era
sujeira. Anísia, então, conta a eles um pouco da história do grafite, que tem origem na
pré-história, com os desenhos nas paredes das cavernas, passando por Basquiat,
famoso grafiteiro do século XX. A aula acaba sendo interrompida por um aluno rebelde,
Sombra, que entra na sala e ataca: “- E aí, Anísia, defendendo a arte dos pobrezinhos?
Como é que vai minha tiazinha do Robin Hood?” (PRIETO; DIMENSTEIN, 2001, p. 35).
Mano ataca Sombra, que lhe empurra, e toda a sala entra no alvoroço: “Queriam matar
o Sombra” (PRIETO; DIMENSTEIN, 2001, p. 35). A professora então acalma a turma, e
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escreve três aforismos no quadro, que se encontram na página seguinte. Novamente, a
ilustração se funde à narrativa, semelhante à representação imagética do diário, com
Anísia em uma página, em pé, de giz na mão, escrevendo em uma lousa verde que
ocupa todo o espaço onde seria o lugar do texto na página dupla. Aqui, a narrativa cede
a vez para a ilustração encenar o episódio. Na parte inferior da lousa, pendurada com
uma fita isolante está a pintura de Picasso, Guernica (1937), obra considerada como
manifesto contra a violência que, aqui, ao mesmo tempo em que representa a cena que
os jovens acabaram de protagonizar, de violência e irracionalidade, também remete às
páginas anteriores, da aula em que Anísia contou sobre Picasso e sua luta pela
liberdade e pela paz.
Mano conta que todos amaram o pintor espanhol, e o interesse pela sua história
os levaram a descobrir que no Brasil já houve guerra: “No meio da conversa, alguém
gritou lá do fundo: ‘Ainda bem que no Brasil nunca teve guerra. Aqui sempre reinou a
paz’” (PRIETO; DIMENSTEIN, 2001, p. 14). Essa quebra com o horizonte de expectativa
pode ocorrer até mesmo com o leitor empírico, visto que é comum, entre os pré-
adolescentes, pensamento semelhante acerca do nosso país. Anísia, então, comenta
que no Brasil já houve “lutas mortais pela defesa da liberdade de expressão” (PRIETO;
DIMENSTEIN, 2001, p. 14), e solicita aos alunos que pesquisem, em casa sobre tal
temática.
O avô de Mano, benjaminiana figura de sábio, visto que é ancião e, portanto,
supõe-se que vivera muitas experiências e possui histórias a contar, é o alvo do menino
para a pesquisa. Ao vasculhar o armário do avô, Mano encontra um álbum de fotografias
e nos vai relatando detalhes de seu pai e sua mãe conforme as observa. Eis que em
meio aos álbuns, o garoto encontra livros de receitas culinárias. Sua curiosidade é
imediatamente desperta, pois o avô sequer costuma entrar na cozinha, então é estranho
que ele tenha guardado tais livros. Nas duas próximas páginas, as margens do diário
são ilustradas com o que remete à colagem de receitas culinárias, fragmentadas, em
ordem desconexa – de ponta cabeça, deitadas, sobrepostas -, em língua inglesa e
portuguesa, enquanto no diário Mano continua a divagar sobre essa descoberta.
Quando Mano leva à escola as fotografias que encontrou como tarefa, Anísia se
surpreende em descobrir que o avô do menino é famoso por ter lutado na ditadura. Ele
fica surpreso e a professora fala rapidamente sobre o que foi essa parte da história e
sobre a censura e as publicações de receitas culinárias nos jornais como forma de
protesto, deixando Mano intrigado. Trata-se, aqui, de referência ao marco histórico,
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quando, com o fechamento do Congresso Nacional e a instauração do AI-5 em 1968,
os jornais passaram a sentir o impacto da censura e tentaram novas formas de
sobreviver aos ideais de liberdade em meio à repressão:

As redações atuavam livres no registro de cada ato de força do regime


militar. Nas oficinas, onde foram confinados os censores, textos eram
arrancados das páginas e substituídos por poemas de Camões e
receitas culinárias – recurso das direções de redação para registrar
protesto. (PONTES; CARNEIRO, 1998, p. 11)

A professora explica resumidamente esse fato, portanto não se trata de uma aula
de História dentro da obra, e sim de um assunto que perpassa a narrativa. Além do fator
histórico, a obra apresenta vasta rede de intertextualidade. O trabalho de ilustração
desenvolvido por Maria Eugênia contribui para narrar e expor aos olhos do leitor as
diferentes culturas e formas de representação, abrindo diálogo com as formas artísticas,
conforme as sugestões linguísticas e, por vezes, complementando estas. Já num
primeiro contato com a materialidade do livro é possível perceber o diálogo com a
pintura, pois traz na capa e na quarta capa uma releitura das formas surrealistas de
Joan Miró: uma imagem que se assemelha a um peixe com um grande olho na lateral,
posicionado à frente do olhar de Mano, que se encontra de costas ao público,
caricaturalmente representado nas cores que são bastante exploradas pelo artista
plástico. A capa é composta de distintos tons de vermelho, que recobre toda a superfície,
exceto por uma faixa preta ao rodapé que traz informações técnicas onde se firmam os
pés de Mano, que está em pé, vestindo camiseta vermelha, shorts e meias verdes e
tênis amarelo. Se abrirmos o livro de modo a espelhar capa e contracapa, é como se o
personagem observasse a releitura das obras de Miró, pois na quarta capa o fundo
vermelho permanece, trazendo mais formas que destacam o olho, trabalhadas nas
cores amarela, preta e branca, representadas de forma sangrada, ocupando maior
espaço do que os paratextos.
A imagem da capa inicial reaparece no meio da obra, quando há uma colagem
da notícia de jornal destacada pelo avô de Mano, que a deixa cair. Aqui são
apresentados três parágrafos, em caixa alta, que tratam da misteriosa Gangue VG, que
pichou, nos muros da cidade, imagens coloridas, inspiradas em Picasso e Miró. Abaixo
da notícia, as letras voltam à fonte normal, representando o discurso de Mano, que tenta
entender a relação do avô com a estranha matéria. Na mesma página em que se
encontra a escrita, aparece a mesma imagem de Mano que está na capa, porém, aqui,
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ao invés de olhar para a esquerda (como na capa, frente ao desenho que remete a
Miró), agora ambos - Mano e figura - reaparecem na mesma postura, mas virados para
a direita, como se Mano estivesse olhando, ao mesmo tempo, a notícia ali colada,
conforme ele a vê na diegese, e a pintura de Miró que está sangrada, ocupando partes
da página dupla.
A ilustração ocupa papel de destaque nessa obra, articulando o olhar do leitor
ora para cima, ora para baixo, por vezes ocupando todas as margens de duas páginas,
ora também de ponta cabeça. Tais recursos “desautomatizam o olhar do jovem leitor,
pois este se surpreende com a sua disposição sempre diversa da anterior” (FERREIRA,
2011, s/p). Outro aspecto que também trabalha nesse sentido é a não repetição de
cores, a cada página alterando as tonalidades de cores quentes e frias, branca e preta,
e cores secundárias. As personagens são sempre representadas com cores alegres,
com formas caricaturais que também despertam o gosto do leitor infanto-juvenil. O
formato do livro apresenta medidas que o torna mais alto do que largo, configuração
comum do livro ilustrado, sendo “[...] o mais agradável para o jovem leitor, pois remete
à espetacularização e confere a sensação de poder ‘entrar’ na história, tornando a leitura
uma aventura” (FERREIRA, 2011, s/p).
Além disso, Mano sempre inicia a narrativa diária colocando, no canto superior
esquerdo, o dia da semana e as horas. Porém, trata-se de uma obra fragmentária, cuja
ordem quebra a expectativa com o virar das páginas, apresentando, ao invés de uma
sequência linear da história, imagens narrativas, fontes de texto de tamanhos variados
e colagens de outros textos. Um exemplo do recurso da colagem é quando Mano, em
sua posição de escritor do diário, faz uma cópia de um trecho do diário que o avô
escrevera enquanto estava preso na ditadura. O menino declara: “Caro diário, peço
licença, agora entra um pouco de Hermano Santiago de la Mancha, o verdadeiro.
Porque meu avô foi mesmo um herói” (PRIETO; DIMENSTEIN, 2001, p. 24). Ao
adentrarmos nas páginas seguintes, nos deparamos com um trabalho gráfico que
remete, novamente, a um livro aberto, mas já não mais parecido com o diário de Mano,
pois vem em fonte menor e em itálico, com a abertura no canto superior esquerdo: “São
Paulo, 1979”. Temos aí, na íntegra, o trecho do diário do avô que Mano mais gostou. As
margens são compostas de tijolos, como se reconstituíssem o cenário no qual se
encontrava o autor daquelas linhas quando as escrevera. As duas páginas seguintes
vão revelar o momento em que Hermano e seus amigos, Fátima e Lúcio, foram
libertados, enfim, graças às tias do primeiro que ficaram de vigília à porta da prisão,
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rezando, gritando, chorando e jejuando incessantemente. Essas senhoras encontram-
se caricaturadas à margem inferior da página dupla, de mãos postas em oração.
Adiante, a forma gráfica volta ao normal, mas logo será interrompida novamente,
terminando com as páginas pretas mencionadas anteriormente.
Para auxílio de uma leitura independente, o livro conta, ainda, com um índice, na
última página, que referencia os fatos citados e os personagens externos citados –
escritores, pintores, presidentes e ativistas. Ao fim da leitura desse livro, Mano descobriu
a liberdade e o leitor descobriu algumas das diferentes formas de opressão que existem,
bem como manifestações artísticas que se opõem a tais sistemas.

Considerações Finais
O tempo é devastador: destrói a tudo e a todos, ninguém lhe escapa. Mas a
memória pode intervir, guardando acontecimentos e detalhes, e, além, resgatando
sensações quando surge sob a forma involuntária. Mano descobre a liberdade propicia
ao jovem leitor a interação com novas formas de guardar memórias, bem como a
enxergar os espaços da memória, seja através de diários e outros textos escritos e
impressos, como também através da fotografia e das artes e geral.
Num jogo que coloca em diálogo o discurso histórico e o discurso poético, o leitor
encontra espaço para articular suas próprias experiências, realizando uma dupla
interpretação - do texto e das imagens – navegando por dois universos comunicativos
e cativantes. O amor pela arte vem de aprendizagem e socialização. Preferências
estéticas estão relacionadas ao contexto familiar, educacional e socioeconômico.
A obra permite, ainda, reflexões acerca dos gêneros literários e seus limites, bem
como os limites e poderes do discurso. Uma receita culinária torna-se ferramenta de
resistência diante da censura ao jornalismo, por exemplo. E o próprio gênero notícia
dialoga com o diário, ambos capazes de guardar relatos do cotidiano. Mano é um
menino familiarizado com o universo tecnológico, com acesso a computador dentro da
casa; ainda assim, opta por adotar uma prática de escrita pouco usada na atualidade: o
diário. A adoção dessa forma de escrita dentro do livro dialoga com o próprio conteúdo
da narrativa, acerca da importância da preservação da memória.

Referência
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Ginzburg. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,
1996.

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______. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França,
pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix,
2007.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São
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FERREIRA, Eliane Aparecida Galvão Ribeiro. O cânone reendereçado: uma análise do


texto Conto de escola, de Machado de Assis, ilustrado por Nelson Cruz. In: XII
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Livraria da Folha. "As Melhores Coisas do Mundo" adapta série escrita por Gilberto
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http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/ult10082u721868.shtml. Acesso em:
15 fev. 2017.

MESQUITA, Ruy. A liberdade, antes de tudo. In: PONTES, José Alfredo Vidigal.
CARNEIRO, Maria Lúcia. 1968: do sonho ao pesadelo. São Paulo: O Estado de S.
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MIRANDA, Maria Geralda de. Diálogos textuais e interartísticos como estratégia para o
ensino da leitura. Semioses, Rio de Janeiro, vol. 01, n. 05, p. 41-47, 2009.

NIKOLAJEVA, Maria. Atribuição de estados mentais através da palavra e imagem. Trad.


André Moura. Leitura em Revista, Rio de Janeiro, n 3, p. 89-118, 2011.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1982.

PONTES, José Alfredo Vidigal. CARNEIRO, Maria Lúcia. 1968: do sonho ao pesadelo.
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PRIETO, Heloisa. DIMENSTEIN, Gilberto. Mano descobre a liberdade. Ilustrações


Maria Eugênia. São Paulo: SENAC São Paulo, 2001. – (Série cidadão – aprendiz)

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GRUPO TEMÁTICO 5:
LITERATURA INFANTIL E AS
RELAÇÕES COM IMAGEM

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O POTENCIAL DIDÁTICO DO LIVRO ILUSTRADO NO ENSINO
DE ARTE

Rafaela Pupin de Oliveira, aluna de Graduação do Curso de Licenciatura em Artes


Visuais da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – FAAC, Unesp Bauru,
Programa Pró-Talentos/Prope
Maria do Carmo Monteiro Kobayashi, Professora Associada - Livre Docente (2019) em
Ensino de Arte: Linguagens da Criança, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho - UNESP, Faculdade de Ciências - FC, Departamento de Educação de
Bauru.

Eixo Temático: Literatura infantil e as relações com a imagem

Considerações iniciais
O livro ilustrado é conhecido por utilizar a linguagem verbal juntamente à
linguagem visual para construir uma história. Desta forma, a ilustração é um dos
elementos fundamentais deste tipo de literatura, que demanda, tanto como o texto,
conhecimentos próprios para que se faça uma leitura adequada (VAN DER LINDEN,
2011). Esta necessidade se torna mais urgente quando se nota que vivemos numa
sociedade da informação que valoriza cada vez mais as imagens, tornando-as
amplamente presentes em meios de comunicação, nos ambientes urbanos, na
publicidade e nas mídias digitais. As imagens se alastram, muitas vezes sobrepondo-se
ao texto, ao mesmo tempo que uma educação voltada para a leitura dessas imagens
não é tão valorizada quanto se deveria (RAMOS, 2011).
A Arte, como área específica de ensino, atua justamente para promover uma
leitura adequada das imagens. Seja por meio de obras de arte ou objetos próximos ao
cotidiano, pode-se desenvolver a leitura visual do estudante por meio da mediação do
professor. Sabe-se que a leitura de imagem constitui um dos três pilares da

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arte/educação, de acordo com Ana Mae Barbosa (1991), combinada à contextualização
e à produção artística.
É uma realidade que exista dificuldades de acesso a museus e galerias, bem
como a boas reproduções de obras de arte, o pode ser encarado como um impasse
para que o educador em Arte tenha ao seu alcance meios de incluir em suas propostas
educativas uma educação do olhar.
Neste sentido, cabe pensar se o professor pode encontrar no livro ilustrado uma
forma eficaz e acessível de promover os conhecimentos intrínsecos de sua área, que
exerçam o papel da escola de democratizar o acesso à arte e cultura de forma crítica.
Estudiosos como Van der Linden (2011) e Salisbury e Styles (2013) classificam
o livro ilustrado conforme características específicas, diferentes tipos de relação texto-
imagem, e observam que, na contemporaneidade, o livro ilustrado tem se tornado cada
vez mais valorizado e diversificado, com uma riqueza de significados, uma variedade de
estilos de ilustração, formatos, diagramação, articulados em uma unidade gerada por
texto, imagem e projeto gráfico. Por isso, indaga-se quais as considerações acerca dos
livros ilustrados como produto da articulação entre a linguagem visual e verbal indicam
seu potencial didático no ensino artístico.
Sendo assim, o objetivo a que se propõe esta pesquisa é identificar o potencial
do livro ilustrado como recurso para os processos de ensino-aprendizagem da Arte,
principalmente para a leitura visual. A partir deste objetivo, o livro ilustrado é
caracterizado conforme suas especificidades, e então descrito segundo as possíveis
interações entre texto e imagem na literatura ilustrada, para enfim relacionar com a
leitura visual na arte-educação.
Para tanto, a pesquisa é bibliográfica, de abordagem qualitativa e de natureza
básica. Inicialmente, foram estudados autores que abordam o tema da literatura infantil
e o seu papel na educação, como Lúcia Pimentel Góes (1984). Em seguida, abordou-
se aqueles que estudam o livro ilustrado de forma mais enfática, sendo eles Salisbury e
Styles (2013), Van der Linden (2011), Nikolajeva e Scott (2011) e Ramos (2011).
Deste modo, esta pesquisa evidencia de que modo o encontro com a literatura
ilustrada enriquece o universo infantil, entendendo-o como facilitador da inserção da
criança no mundo da arte. Constatou-se que este tipo de literatura pode, como as obras
de arte, ser objeto de estudo para aquisição de conhecimentos históricos e culturais,
repertório, leitura visual, além da fruição estética do objeto livro.

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Literatura e Livro Ilustrado
A literatura se consolida na educação devido a suas amplas funções. A utilização
de livros em sala de aula, além de promover o gosto pela leitura, pode gerar reflexões,
aprendizagem de vocabulário, apreensão de conceitos, e a aquisição de valores. Desta
forma, quando incentivado, o hábito de leitura pode contribuir para a formação do
indivíduo em vários planos. Além de ser muito importante para o enriquecimento da
expressão em linguagem escrita e o exercício mental que estimula a inteligência lógica,
os livros podem promover a observação, o equilíbrio entre o conhecimento do real e do
imaginário, sendo este muito aguçado. A capacidade de imaginação e fantasia são
alimentadas, permitindo que o leitor possa desenvolver sua originalidade criativa, e
ainda, um reconhecimento de si próprio, com todas suas características e preferências
(GÓES, 1984).
Além dessas importantes contribuições, Góes (1984) cita como principal função
do livro infantil a formação estética e a educação da sensibilidade. Para a autora, livros
infantis de qualidade estética são artísticos, reúnem a beleza das palavras e a beleza
das imagens. Esta qualidade amplifica um dos planos indicados pela autora, o cultural:
A leitura variada e rica levará ao aprofundamento dos conhecimentos
que permitirão melhor apreciação do mundo real e dos seus valores
culturais. Oportunidade de pensar o mundo e conhecer seus
problemas, nos quais serão logo chamados a opinar. (GÓES, 1984, p.
29)

O livro ilustrado é justamente um tipo de livro em que as palavras são


acompanhadas de imagens na construção de uma narrativa. Nesta junção do texto
verbal e texto visual, o livro torna-se um objeto mais rico, já que apresenta o mundo das
ilustrações com cores, traços, formas e texturas, oriundas do trabalho do ilustrador. Este
traz ao fruidor as cenas do imaginário, personagens, objetos, e até mesmo emoções, as
quais emergem de seu estilo artístico. Assim, sabendo desta riqueza, faz-se a pergunta:
como ele pode contribuir para o ensino de Arte?
Para abrirmos as possíveis respostas, torna-se necessário compreender as
teorias sobre o livro ilustrado, as quais conceituam-no como um tipo específico de livro,
com particularidades.
Segundo Sophie Van der Linden (2011), a definição de livro ilustrado varia de
país para país. O termo comumente utilizado em países da Europa “album” deriva de
album amicorum, um termo utilizado no século XIX para designar um caderno utilizado
por viajantes que coletavam frases e autógrafos - hoje, o termo álbum abrange os

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arquivos de fotos de família e fascículos de figurinhas autoadesivas. Em língua inglesa,
o livro ilustrado recebe o nome “picturebook”, “picture book” ou “picture-book”. Já no
Brasil, temos os termos “livro ilustrado”, “livro de imagem” e “livro infantil
contemporâneo”, que não são utilizados de uma forma bem definida (VAN DER
LINDEN, 2011).
Para entender ao que correspondem as designações, destaca-se que livro
ilustrado apresenta uma relação singular:
O caráter ímpar dos livros ilustrados como forma de arte baseia-se em
combinar dois níveis de comunicação, o visual e o verbal. Empregando
a terminologia semiótica, podemos dizer que os livros ilustrados
comunicam por meio de dois conjuntos distintos de signos, o icônico e
o convencional. (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 13)

A concepção tradicional de ilustração considera a imagem como uma mera


decoração do texto. Segundo Luís Camargo (1995), a associação da palavra ilustração
com “ornamentar” era feita desde os verbetes de língua portuguesa do século XVII, na
qual se entendia a ilustração no contexto da linguagem verbal. Trata-se de uma
compreensão que coloca as imagens como secundárias, pela visão de que a informação
principal está presente no texto, ao qual se subordinam os elementos imagéticos.
Porém, mesmo que uma imagem fosse equivalente à mensagem do texto, trazendo para
a linguagem visual o conteúdo verbal, ela teria sua relevância, justamente porque cria
novas formas de se apreender uma história (RAMOS, 2011).
Neste sentido, o termo livro ilustrado (picturebook) é assumido pelas
autoras Maria Nikolajeva e Carole Scott (2011) para distingui-lo dos livros com
ilustrações (picture books) ou com imagens (books with pictures).
O conceito de livro ilustrado contemporâneo demonstra que as
ilustrações interagem com o texto de modos muito mais amplos, dada as possibilidades
criativas e técnicas, que permitem a criação de livros com diversos formatos, cores e
estilos a serem reproduzidos. Ramos (2011) menciona o século XIX na Inglaterra,
durante a Era Vitoriana90, como um momento marcante, que elevou a qualidade do livro
ilustrado, justamente pela valorização das imagens e o aprimoramento da sua relação
com o texto, possibilitados, dentre outros aspectos, por avanços nas técnicas de
reprodução, como a litografia. A técnica, criada no século XVIII, consiste em desenhar

90
Era Vitoriana foi o período que compreende o reinado da rainha Vitória I (1819-1901) da
Inglaterra, de 1837 até o ano de sua morte. Rui de Oliveira (2008) também destaca como
importante o período em que governou o sucessor de Vitória I, seu filho Eduardo VII (1841-
1910).
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sobre uma matriz de pedra com um tipo de lápis gorduroso, e este desenho é gravado
sobre o papel. Este processo se aperfeiçoou com a possibilidade de reprodução em
cores, conhecido como cromolitografia.
O período mencionado gerou um marco, conhecido como a era de ouro da
ilustração. Isto se deve não apenas pelos avanços técnicos, pois, segundo Rui de
Oliveira (2008), é o momento em que a ilustração se individualiza como arte, e surge
então a figura do ilustrador. Autores como William Blake (1757 - 1827), Edward Lear
(1812 - 1888) e Randolph Caldecott (1846-1886) pensam a integração entre os códigos
visuais e verbais de maneira conjunta na construção da narrativa, tornando-se marcos
na história da ilustração (OLIVEIRA, 2008; RAMOS, 2011).
Também foi a Era Vitoriana que marcou o surgimento da literatura infantil como
gênero, sendo este influenciado pelas mudanças sociais. O século XIX é marcado pela
Revolução Industrial e a consolidação de uma classe burguesa, que, mais preocupada
com as particularidades da infância como período específico da vida, busca publicações
próprias para seus filhos.
A partir destas transformações, o livro ilustrado tornou-se um objeto voltado para
a infância, e pelos modos como a criança se relaciona com o mundo, e ao longo do
tempo. Ademais, com a valorização da relação texto-imagem inaugurada, se engendra
uma relação muito importante entre a criança e o livro.

É com o auxílio do livro e particularmente do livro infantil que


poderemos influir sobre a vida afetiva e estética da criança: o livro
infantil ocupa um lugar privilegiado, pois é o ponto de encontro entre
duas artes, a da palavra e a da forma, isto é, o texto e sua ilustração.
O texto revela a imagem e a imagem revela o texto; a compreensão e
eficácia do livro são aumentadas. (GÓES, 1984, p. 27)

No sentido do que afirma Góes (1984), pode-se pensar sobre o potencial da


imagem, associada à literatura, na construção do conhecimento em Arte.

O Potencial da Imagem e do Livro Ilustrado


É do senso comum que, em comparação ao texto, a imagem não demanda tanta
habilidade e dedicação em sua leitura. Tanto que os livros ilustrados são
frequentemente indicados aos não-alfabetizados e iniciantes na alfabetização. É um
recurso de iniciação, que é visto como um facilitador no incentivo do hábito da leitura -
e à medida que ele é adquirido, as imagens vão desaparecendo, conforme problematiza
Van der Linden (2011).
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Mas a linguagem visual requer, tanto quanto o texto, conhecimentos para que
seus códigos sejam apreendidos para uma interpretação rica, afirma a autora.
Atualmente, os ilustradores têm uma variedade de possibilidades criativas e técnicas,
que são portanto exploradas ao máximo.
Graça Ramos (2011) explica a relevância da interação entre as linguagens
presentes no livro ilustrado ao afirmar que a imagem é simbolização do real, e, à medida
que o mundo infantil é repleto de signos e símbolos, os livros ilustrados são
fundamentais para mostrar formas de representar esses símbolos. E ainda, a ilustração
é uma forma de promover o envolvimento da criança com a história: “A criança gosta do
jogo entre a segurança do conhecimento e a surpresa do inusitado que os desenhos
costumam provocar.” (RAMOS, 2011, p. 23).
Assim, apesar de em muitos casos as ilustrações atuarem como um
acompanhamento visual das palavras, configurando uma relação denominada
redundância (VAN DER LINDEN, 2011), os livros ilustrados destacam-se pela
complementaridade entre o texto verbal e o visual, de maneira que não é possível
compreender um sem o outro. Atualmente, as fronteiras entre palavras e imagens têm
se tornado cada vez mais desafiadas, tanto que há livros em que as próprias palavras
têm se tornado elemento pictórico, formando um “texto visual” (SALISBURY; STYLES,
2013).
Van der Linden (2011) traça uma classificação das diferentes relações entre
texto e imagem, demonstrando uma gama de possibilidades, exploradas entre aspectos
narrativos, temporais, espaciais e semânticos. A autora afirma que há basicamente três
modos de palavras e ilustrações se relacionarem na produção de sentido: redundância,
colaboração e disjunção. A primeira, como já foi dito, é caracterizada pela ausência de
um sentido suplementar, a imagem corresponde ao que está dito ao texto; a segunda é
uma relação complementar, ou seja, o sentido é criado pela interação entre as
linguagens, em que uma completa as lacunas da outra; por fim, a terceira ocorre quando
existem relações paralelas, não há um ponto de convergência entre texto e imagem,
eles entram em contradição, deixando em aberto o campo das interpretações.
Entretanto, os teóricos dos livros ilustrados infantis analisam não apenas a
relação entre texto e imagem, mas também o papel do design visual (SALISBURY;
STYLES, 2013). O design envolve o suporte, a materialidade do livro, que pode ser
explorada por criadores que queiram por meio dela manifestar um sentido. Van Der
Linden (2011) explica que o ilustrador do livro ilustrado não trabalha apenas com a
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narrativa, mas também com as capas, guardas, folhas de rosto e páginas do miolo, de
maneira conjunta, da mesma forma que a diagramação é trabalhada para promover uma
articulação entre texto e imagem.
Ademais, com as inovações tecnológicas, hoje não há limites para um livro
ilustrado, seja de tamanhos, tipografia ou estilo de ilustração. A grande abertura criativa
que autores e ilustradores encontram atualmente caracteriza os livros ilustrados pós-
modernos ou contemporâneos (SALISBURY; STYLES, 2013; VAN DER LINDEN, 2011).
São livros marcados pela diversão, quebra de regras, a referência de mídias digitais,
mescla com técnicas tradicionais, fragmentação e incerteza, explorando a ambiguidade
e o potencial de múltiplos significados. Os códigos do livro ilustrado são dominados, ao
mesmo tempo em que se resgatam elementos de outros veículos, como histórias em
quadrinhos, livros de artista, cartazes, games, dentre outros, que abrem caminhos
inovadores de expressão para o livro ilustrado.
Portanto, a apreciação de um livro ilustrado requer olhares atentos para uma
leitura crítica à altura, como afirma Van der Linden (2011, p. 9), já que “ler um livro
ilustrado não se resume a ler texto e imagem.” Estabelecer relações entre seus
elementos, associar representações, envolver-se em um ritmo de leitura, com ordem
própria, passando pela poesia da palavra e a poesia da imagem, são aspectos da leitura
que demandam uma formação do leitor.

Livro ilustrado como objeto artístico


Conforme os livros ilustrados vêm sendo explorados cada vez mais, por sua
questão gráfica, surge o questionamento se estes livros são arte. Os autores acima
citados nos indicam uma associação do livro ilustrado como objeto artístico, esta
consideração pode ser importante para entendermos seu potencial educativo no ensino
de Arte.
De acordo com Salisbury e Styles (2013), o livro ilustrado é a primeira literatura
com a qual a criança tem contato, justamente por apresentarem a linguagem visual. São
livros também considerados como o principal veículo por meio do qual as crianças são
introduzidas à arte. Os livros ilustrados são uma possibilidade de obra de arte
manuseada, que torna-se mais próxima da criança e de sua realidade:
Os melhores livros ilustrados tornam-se pequenas galerias de arte
atemporais em nossas casas - uma mistura de conceito, arte, design e
produção, que gera prazer e estimula a imaginação de crianças e
adultos. (SALISBURY; STYLES, 2013, p. 50)

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É importante notar que os livros ilustrados não são apenas objetos adquiridos
por pais e mentores, pois são amplamente acessíveis em bibliotecas públicas, dentre
elas as das escolas. Como mencionado na edição brasileira do livro de Salisbury e
Styles (2013), parte importante das vendas de livros infantis para o setor editorial do
Brasil são os programas governamentais, que compram obras literárias a compor
acervos de bibliotecas e escolas.
A biblioteca tem um papel insubstituível nos processos de aprendizagem, pois
através dela se aprofundam as trocas entre criança e adulto e também abre-se a
possibilidade de acesso à arte e cultura muitas vezes impossibilitado pela escassez de
recursos das famílias. Na biblioteca, o estudante tem a chance de atender suas próprias
escolhas, estabelecendo um vínculo entre si mesmo como leitor, seu mundo, e o livro
(GÓES, 1984).
Em uma cultura cada vez mais visual e digital, demanda-se de forma crescente
a instrução pictórica de signos e símbolos. As imagens estão presentes na maioria dos
meios de informação e entretenimento, tornando-se, em alguns casos, imprescindível
como substituto da palavra. Pelo fato do significado do livro ilustrado surgir da interação
entre texto e imagem, não é possível apreender o sentido com conhecimento de apenas
uma linguagem. Por isso, Salisbury e Styles (2013) enfatizam que o livro ilustrado deve
ser entendido muito mais como um apoio à alfabetização das crianças.
Rudolf Arnheim (2004), na sua obra Visual Thinking comenta sobre a tendência
do sistema de ensino a relegar o papel das artes ao de entretenimento, distração,
abandonando após os primeiros anos da educação infantil o estímulo à percepção.
Porém, no contexto atual, é essencial que a criança desenvolva habilidades de
observação, apreciação e interpretação de materiais visuais. Para Salisbury e Styles
(2013, p. 77):
Isso é algo que a maioria das crianças faz naturalmente em idade
precoce, conforme são atraídas por fotos, cores e formas, mas esse
instinto pode ser desenvolvido e reforçado pelo ensino esclarecido e
por aprender a analisar textos visuais com perspicácia.

Muitas pessoas foram educadas conforme uma literatura verbal, e não visual. No
Brasil, Ramos (2011) denuncia a ausência do aprendizado por imagens devido ao
menosprezo à educação pelo olhar. A desvalorização do olhar sobre as imagens

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demonstra que não é exercitada a apreciação, algo que enriquece o ser humano em
diversos âmbitos:

Olhar é forma de perceber, mas não se trata do gesto maquinal de


colocar os olhos em algo rapidamente. Refere-se ao ato de, a partir dos
olhos, examinar, avaliar, correlacionar, pensar o que está sendo visto.
Aprender a olhar significa sair do gesto primário de captar algo com os
olhos, que é uma atividade física, e passar para outro estágio, aquele
em que, a partir de muitos exercícios mentais, absorvemos e
compreendemos o examinado. Esse debruçar-se sobre o que os olhos
captam provocará análises e, o mais produtivo, provavelmente ativará
a capacidade de inventar. Olhar, portanto, é uma soma que inclui o
físico, o psicológico, a percepção e a criação. (RAMOS, 2011, p. 34)

O aprendizado do texto visual é algo que também demanda diversificar o que é


apresentado às crianças, mas deve haver um filtro dos conteúdos, conforme afirma
Nicolette Jones (2013), crítica de livros infantis do jornal britânico Sunday Times. As
crianças espontaneamente se atraem por elementos chamativos e reconhecíveis de
programas de televisão, como personagens de desenhos animados, sem contar as
imagens de publicidade. Mas é importante que haja um auxílio do adulto de propiciar à
criança leituras de qualidades, denominados por Jones como livros “nutritivos”.
Também pode-se ressaltar, com base em Ramos (2011), que assim como o texto
escrito, uma imagem pode apresentar diversas camadas de leitura, algo que requer uma
atenção especial para ler além da primeira interpretação. Ademais, as crianças têm uma
relação natural com a visualidade, ou seja, aprendem facilmente a se relacionar com
imagens, e isto se deve à fase de desenvolvimento infantil em que sensações
provocadas por linhas, formas, cores e texturas estão à flor da pele (RAMOS, 2011). Da
mesma forma, Góes (1984, p.178) afirma que: “A criança vive num mundo de
imaginação, num mundo com predomínio de imagens; ela é toda sensibilidade e sua
linguagem é afetiva”.
Por isso, entendemos que é importante a presença do livro como um objeto de
estudo:
Precisamos valorizar essa literatura visual extraordinária que dá tanto
prazer para as crianças, mas que faz exigências e contribui de forma
positiva para seu desenvolvimento cognitivo, emocional, estético e
intelectual. (SALISBURY; STYLES, 2013, p. 86)

Feitas estas reflexões, observa-se a proximidade entre as contribuições do livro


ilustrado e as próprias considerações teóricas a respeito da arte/educação, no que tange
à importância da leitura de imagens para o desenvolvimento infantil.

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Livro ilustrado e leitura de imagem no ensino de Arte
As considerações anteriores apontam que a literatura infantil acaba sendo
utilizada na escola muitas vezes pensando em seu potencial de alfabetizar e
desenvolver a criança apenas para a linguagem verbal. A imagem é vista como um
apoio para estabelecer um vínculo entre a criança e o livro e não no seu potencial
simbólico que demanda uma interpretação para além da imagem. Por esta razão,
conforme se avança nas séries escolares, é raro encontrar propostas que explorem os
livros ilustrados. É então que observamos a desvalorização da educação pelo olhar, a
leitura de imagem, que é um dos três pilares da arte/educação, fundamentada por Ana
Mae Barbosa (1991).
Segundo esta abordagem, conhecida como Proposta Triangular, o ensino de
Arte é pautado pelo fazer arte, ver ou fruir as obras de arte, e contextualizar. Apesar da
analogia ao triângulo, Barbosa (1991) explica que estes conceitos não são etapas, não
há uma ordem nem hierarquia entre elas e, portanto, podem figurar um zigue-zague, ou
seja, se entrelaçar. Mas, o fundamental desta ideia é que a Arte torna-se um caminho
muito importante para se cumprir o papel da escola como instituição que atua para
democratizar o acesso ao conhecimento, assim como à própria arte, e à formação
estética de pessoa de diversas origens, culturas e identidades. Além de exercer esta
função social, é essencial para formação do indivíduo:

Um currículo que interligasse o fazer artístico, a história da arte e a


análise da obra de arte estaria se organizando de maneira que a
crianças, suas necessidades, seus interesses e seu desenvolvimento
estariam sendo respeitados e, ao mesmo tempo, estaria sendo
respeitada a matéria a ser aprendida, seus valores, sua estrutura e sua
contribuição específica para a cultura. (BARBOSA, 1991, p. 36)

A Proposta Triangular é de grande importância para o ensino de arte


contemporâneo, à medida que foi a partir desta que se sistematizaram os processos de
ensino-aprendizagem artísticos.
Os desafios impostos pelo contexto atual podem apontar para a possibilidade
dos livros ilustrados contribuírem para a formação de crianças e jovens de nossa
geração, enquanto também sejam trabalhados os conhecimentos da arte/educação
segundo a Proposta Triangular. Além de enriquecer seus repertórios, superando os
conteúdos superficiais frequentemente encontrados nos feeds da internet, esta forma

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de literatura é capaz de propor reflexões, análises críticas, apresentar diferentes
linguagens à medida que atua como um produto artístico. Este tipo de abordagem se
qualificaria para atender às demandas contemporâneas da escola.
O livro ilustrado é um produto acessível, presente no entorno dos alunos. Ao
serem produzidos hoje com elementos da pós-modernidade, representam de maneira
palpável a arte contemporânea.
Roger Mello (2018), autor e ilustrador brasileiro reconhecido mundialmente,
considera o livro ilustrado uma forma de trazer ao estudante diferentes tipos de
produção cultural. Tal ideia pode corresponder a conteúdos de análise da produção
artística sob os aspectos históricos sociais e políticos, num trabalho interdisciplinar entre
design, arte e literatura. Desta forma, também possibilita o estudo do patrimônio cultural,
sobretudo do Brasil, que envolve uma grande diversidade. Isto contribuiria para a
construção de um repertório e um vocabulário referente às diferentes linguagens
artísticas.
Portanto, aponta-se para a necessidade de uma alfabetização visual, que seria,
no sentido definido por Salisbury (2007, p. 6): “Se alfabetização significa a habilidade de
ler, escrever e compreender, resulta razoável que ‘alfabetização visual’ se refira à
destreza de ver, desenhar e formular um juízo estético.” Com isto, as imagens podem
englobar uma série de relações a serem estabelecidas além da própria função narrativa
que se atribui às ilustrações em livros.

Considerações Finais
Os estudos realizados a partir da questão sobre qual o potencial do livro ilustrado
para o ensino da Arte nos levou a compreendê-lo como um objeto de arte, e assim
aprofundou-se no sentido das possibilidades educativas da literatura, bem como do
próprio ensino artístico com enfoque na leitura de imagem.
A literatura amplia o conhecimento de mundo da criança e do jovem, ao promover
o contato com assuntos que extrapolam as limitações da realidade. Um tipo de literatura
que tem crescido nas últimas décadas é o livro ilustrado, o qual é construído pela
interação entre texto e imagem, mas, além disso, é formado por um projeto gráfico. Sua
base está no surgimento da literatura infantil no século XIX, durante a Era Vitoriana. O
livro ilustrado contemporâneo é marcado por uma variedade de estilos, formatos,
diagramação, ilustração, todos estes elementos se articulam para propiciar ao leitor uma
experiência única. Mais do que um ato de ler palavras, este tipo de literatura exige que
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se saiba ler imagens, e ainda, que quem o leia tenha recursos para interpretar a
interação entre os dois tipos de linguagem.
Presentes nas bibliotecas públicas e em escolas, os livros ilustrados podem ser
um recurso acessível e próximo da criança, que pode favorecer o ensino sob diversos
aspectos. Apesar de haver uma ênfase em seu potencial para introduzir a criança ao
mundo das letras, o livro ilustrado pode ser muito importante para o ensino de Arte. Para
muitos alunos pode ser o primeiro contato com a Arte, com o mundo das imagens. Aliás,
as imagens estão ganhando cada vez mais destaque em nossa sociedade da
informação, algo que exige mais atenção e uma leitura adequada para que o indivíduo
exerça um pensamento crítico. Trata-se, portanto, da necessidade de uma alfabetização
visual e da leitura de imagem.
A imagem é o intermédio entre a criança e o livro, por ser muitas vezes atrativa
e incentivar a fantasia, sem contar os vários caminhos possíveis de interpretação que
se abrem. Dada esta riqueza, o professor tem o papel importante de mediar o acesso à
literatura de qualidade e proporcionar um entendimento sobre as imagens de maneira
contextualizada, crítica e fundamentada.
Partindo deste viés, e entendendo o livro ilustrado como objeto de arte, buscou-
se compreender brevemente quais as possibilidades do livro ilustrado em ser utilizado
em sala de aula. No entanto, sabe-se da pluralidade de possibilidades que a arte
propicia ao desenvolvimento humano. Da mesma forma, o livro ilustrado pode ser visto
sob diversos âmbitos, e isto é o que o torna um objeto tão rico culturalmente, e que
necessita cada vez mais de um olhar atento para valorizá-lo e estudá-lo.

Referências
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California Press, 2004.

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. Porto
Alegre: Editora Perspectiva, 1991.

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GÓES, Lúcia Pimentel. Introdução à literatura infantil e juvenil. São Paulo: Pioneira,
1984.

JONES, Nicolette. O crítico. In: SALISBURY, Martin; STYLES, Morag. Livro infantil
ilustrado: a arte da narrativa visual. São Paulo: Rosari, 2013.

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MELLO, Roger. As artes visuais e a literatura: as experiências estéticas dos livros
ilustrados de Roger Mello. [Entrevista concedida a] Camilla Castro. Guia do Professor
- Grupo Companhia das Letras, 2018. Disponível em:
<https://www.companhiadasletras.com.br/sala_professor/pdfs/GuiaProf_RogerMello.pd
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NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo:
Cosac Naify, 2011.

OLIVEIRA, Rui de. Breve histórico da ilustração no livro infantil e juvenil. In:
OLIVEIRA, Ieda de (Org.). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com
a palavra o ilustrador. 1ª ed. São Paulo: DCL, 2008.

RAMOS, Graça. A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual. Belo
Horizonte: Autêntica, 2011.

SALISBURY, Martin. Imágenes que cuentan: nueva ilustración de libros infantiles.


Barcelona: Gustavo Gilli, 2007.

SALISBURY, Martin; STYLES, Morag. Livro infantil ilustrado: a arte da narrativa


visual. São Paulo: Rosari, 2013.

VAN DER LINDEN, Sophie. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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A RELAÇÃO ENTRE TEXTO E IMAGEM NO LIVRO SABICHÕES
(2016) DE MARTA COCCO

Luana Grassi da Silva, Universidade do Estado de Mato Grosso


Andressa Salerno, Universidade do Estado de Mato Grosso

Eixo Temático: (Grupo temático 5: Literatura infantil e as relações com a imagem)

Considerações iniciais
Este trabalho visa investigar a relação entre texto e imagem na obra Sabichões
(2016), de Marta Helena Cocco. Para tal, são abordadas questões referentes aos
haicais, a ilustração do livro de literatura infantil, a relação entre imagem e texto na
ilustração de poesia infantil e operadores básicos de leitura do texto poético, que são
estimulados para a transformação das imagens nos poemas de Cocco. Foi trazida uma
apresentação da obra e, por fim, são feitas as análises dos poemas juntamente com as
ilustrações.
Este trabalho visa analisar a relação entre texto e imagem na obra Sabichões
(2016) de Marta Cocco. A escritora é natural de Pinhal Grande-RS e leciona literaturas
da Língua Portuguesa na Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Tangará
da Serra. É doutora em Letras e Linguística e autora de diversos livros, como: Divisas
(1991), Partido (1997), Meios (2001), O ensino da Literatura produzida em Mato Grosso:
regionalismos e identidade (2006), Sete dias (2007), Sábado ou cantos para um dia só
(2011), Lé e o elefante de lata (2013), Doce de formiga (2014), Não presta pra nada
(2016), Sabichões (2016) e Meu corpo é uma fabricazinha (2020).
A ilustradora da obra, Vanessa Prezoto estudou Desenho Industrial na UNESP
e trabalhou em agências de propaganda e estúdios de design gráfico. Atualmente,
grande parte do seu tempo é dedicado aos desenhos. Em 2018, recebeu o Selo Seleção
Cátedra 10 pela ilustração do livro Você faz, eu faço também, da editora Bambolê.
É valido ressaltar que a obra Sabichões no ano de 2018 foi incluída no Plano
Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), sendo esta obra e Apesar do amor
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(2016) de Marli Walker escolhidas pela primeira vez no estado de Mato Grosso. O livro
é dividido em quatorze poemas, que recebem os seguintes títulos: “Despertador”;
“Leque”; “Carriola”; “Engenho”; “Laboratório”; “Estilingue”; “Chiclete”; “Folga”;
“Peraltice”; “Acrobacia”; “Percussão”; “Estilo”; “Astúcia”; “Vigia”. Dentre as referências
utilizadas para fundamentar essa pesquisa destacam-se CAMARGO (2018) e
OLIVEIRA (2008) que abordam a ilustração do livro infantil, FRANCHETTI (2008) que
trata sobre a estrutura do haicai no Brasil e LEXIKON (1990) que aborda o simbólico.

Desenvolvimento
Parte-se, inicialmente, da noção do texto escrito e as ilustrações no livro de
Literatura Infantil e Juvenil:
[...] considerando que o texto visual tem seu valor no processo de
aprendizagens e desenvolvimento cultural da criança no período de
escolarização, principalmente na Educação Infantil, “no caso da
ilustração, ela pode assumir um caráter de transcendência do texto, o
que não significa transgressão. (2008, p. 31)
Ou seja, a partir da ilustração não existirão limites e definições demarcadas
sobre o que está escrito, pois o leque de possibilidades de análise será muito mais
abrangente. Principalmente para uma criança que está em contato com a obra literária
em seu processo de alfabetização, visto que, muitas vezes não conseguirá entender o
que o texto verbal anuncia, mas compreendera de forma muito mais genuína através
das imagens.
Dessa forma:
[...] a interlocução feita a partir de uma ilustração, não exclui o texto
escrito ou o substitui, mas mostra detalhes que a escrita não conseguiu
expressar. Essa parceria entre texto imagético/ilustrações e o texto
escrito contribui para o trabalho do professor com a leitura no momento
em que as crianças ainda não se apropriaram da língua escrita. Britto
(2009, p. 190 – 191)

A composição gráfica dos poemas do livro é em formato de Haicais, que é uma


literatura típica japonesa. A qual levou anos para que tivesse o devido reconhecimento
e admiração. De acordo com Franchetti (2008), no Brasil um dos pioneiros da escrita
modernista da poesia foi Oswald de Andrade publicando o livro Pau Brasil (1925) com
vários poemas curtos, que se aproximavam muito da língua falada. Após a publicação
houve uma grande empolgação entre os modernistas, criando expectativas no
rompimento dos laços que nos ligavam as escolas europeias de escritas e com isso
dando outro rumo a nossa escrita. (FRANCHETTI, 2008).

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Haicais são poemas curtos, de 3 versos. Em seu artigo, Franchetti menciona o
escritor Paul-Louis Couchoud, que ficou conhecido por adaptar os haicais do japonês
para o francês:
[...] Um haicai não é comparável nem a um dístico grego ou latino, nem
a um quarteto francês. Não é tampouco um “pensamento”, nem um
“dito espirituoso”, nem um provérbio, nem um epigrama no sentido
moderno, nem um epigrama no sentido antigo, isto é uma inscrição,
mas um simples quadro em três pinceladas, uma vinheta, um esboço,
às vezes um simples registro (touche), uma impressão. Franchetti
(2008, p. 4)

O Brasil não segue o rigor da métrica (5 sílabas poéticas no 1º verso, 7 no 2º e


5 no 3º). Conforme Franchetti (2008), o responsável por tornar o haicai conhecido no
Brasil foi o escritor Guilherme de Almeida, nas décadas de 1930 e 1940. Ele aproveitou
a estrutura composta por três versos e inseriu a rima, não necessariamente obrigatória
e utilizada também. Outro autor muito conhecido e grande utilizador desta técnica de
escrita foi Millôr Fernandes que juntamente com seus tercetos de cunho satírico e
cômico, acompanhava uma pequena charge. O haicai utilizado por Millôr se compara
mais a uma epigrama composta por três versos.
Entre as propostas do haicai, segundo a tradição japonesa, estão a de
apresentar de modo conciso uma cena da natureza, no presente, ou seja, o tempo
passando nesse momento, e de não colocar o ego do ser humano em evidência, como
se fosse superior a outros seres da natureza. Partindo dessa orientação é que Marta
Cocco criou os 14 poemas do livro, de maneira livre, sem seguir obrigatoriamente um
padrão de quantidade de palavras.
Cada poema fala de um animal, daquilo que eles sabem fazer, por isso são
chamados de sabichões. Tudo acontece no intervalo de um dia, desde o despertar até
a noite. Na parte da manhã, são privilegiadas ações associadas ao trabalho, ao
construir, ao preparar das refeições. Depois o almoço, o escovar dos dentes, a hora da
sesta. À tarde é voltada para as brincadeiras, a liberdade, os movimentos, a hora de
fazer caminhada “à tardinha”. Em seguida, o jantar e, por fim, à noite, quando um dos
animais faz o papel de vigia, procurando alinhavar, de alguma forma, as ações desses
animais com alguns hábitos dos humanos.
Então, para assimilar a relação entre texto e imagem:

entendemos que a ilustração é uma imagem que acompanha um texto,


então, é preciso reconhecer que a ilustração não tem função

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isoladamente, mas só em relação a um texto. [...] a relação entre
ilustração e texto pode ser denominada coerência intersemiótica como
a relação de coerência, quer dizer, de convergência ou não-
contradição entre os significados denotativos e conotativos da
ilustração e do texto. Camargo (2018, p. 2)

A partir desse excerto, entende-se que a obra une a magia da poesia em capturar
cenas da vida natural, aquilo que é, de certo modo, óbvio, combinando a parte verbal
(poemas propriamente ditos) com a parte não verbal (ilustrações) que sugerem múltiplas
possibilidades de leitura. Posto isso, reproduzir-se-ão aqui os poemas retirados da obra
Sabichões (2016) juntamente com algumas breves análises. Como primeiro poema,
temos:
Despertador
A arara
Abre o bico e dispara
Algazarra na mata.
(COCCO, 2016, p. 4-5)

Fazendo um comparativo com o título do poema e a ilustração temos a ideia de


que o pássaro realmente está gritando, anunciando o despertar de um novo dia, visto
que, a arara está utilizando um megafone. Fazendo referência de como a maioria das
pessoas iniciam o seu dia. É utilizada a imagem da Arara, que é um animal que se
comunica ‘gritando’. Então, pode-se dizer, que o eu-lírico faz uma alusão da arara com
o despertador. Nota-se que, a utilização do fonema ‘a’ é constante no poema, causando
assonâncias e a impressão sonora de que está sendo gritado. As cores utilizadas
também trazem uma sensação do raiar do dia, em que segundo Lexikon (1990), o
vermelho representa a vida e o amarelo o sol.

Figura 1 - Arara

Fonte: Cocco, 2016.


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No próximo poema temos a borboleta como o animal anunciante:
Leque
A borboleta
Abana e encanta
O azul da manhã
(COCCO, 2016, p. 6-7)

Observa-se que o leque possui o mesmo movimento que as asas da borboleta.


Ou seja, ela está imitando o leque e anunciando a transformação de um novo dia. Essa
abertura da borboleta em consonância com o leque nos traz a ideia da mimese, ou
melhor, uma recriação da realidade na obra literária. Temos a cor azul em quase todo o
desenho, representando de acordo com Lexikon (1990), a cor do divino, da imensidão
e da felicidade.
No terceiro haicai encontramos as formigas, que são símbolos da organização
da vida social e do trabalho coletivo. Ele vem acompanhado do título carriola, que faz
menção ao esforço humano para carregar os objetos, assim como as formigas carregam
diariamente seus suprimentos.
Carriola
A formiga
Carrega e corre-corre
No trilho do trampo
(COCCO, 2016, p. 8-9)

O sujeito-lírico utiliza as palavras ‘carrega’, ‘corre’ e ‘trampo’, juntamente com o


título ‘carriola’ criando a ideia do trabalho automatizado, em que as pessoas operam e
correm contra o tempo. A repetição da consoante ‘r’ gera a aliteração e parecem ecoar
ao longo dos versos. Pode-se analisar conforme a ilustração abaixo que a composição
gráfica do terceiro verso, mostra as palavras sendo carregadas do ‘trilho do trampo’

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Figura 2 - Formigas

Fonte: Cocco, 2016.

No poema seguinte temos a aranha como protagonista antecedida pelo título


‘engenho’:
Engenho
A aranha
Espicha e cose
Os pilares da casa
(COCCO, 2016, p. 10-11)

A aranha tem por característica própria tecer a sua teia, em que o dia vai
ganhando forma conforme o trabalhador o tece. Pode-se verificar por este viés o dia
sendo tecido, de modo trabalhoso no ‘engenho’, que pode ser visto como as indústrias,
um dos vários meios de trabalho de grande parte da população mato-grossense. Uma
vez que, o livro representa os animais da fauna dessa região.

Figura 3 - Aranha

Fonte: Cocco, 2016.

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Na quinta ilustração são apresentadas as abelhas, que representam a classe
operária e trabalhadora. Que vem a seguir:
Laboratório
A abelha
Suga e centrifuga
O suco da flor
(COCCO, 2016, p. 12-13)

As cores da ilustração são vibrantes e o sujeito-lírico ainda está na parte


representada pelos proletariados. Nota-se ainda, a abelha retirando o pólen da flor com
aparelhos para que em seguida seja enviado ao laboratório. Que é outro grande setor
do qual dependemos muito.
O poema intitulado Estilingue dá início ao horário de almoço, representado pelo sapo e
o jacaré em seus versos:
Estilingue
O sapo
Assopra a língua e zapt:
A mosca tá no papo
(COCCO, 2016, p. 14-15)

Identifica-se na ilustração que ao invés do sapo estar comendo de fato as


moscas, a língua dele pega a palavra mosca. Como explica a autora “a onomatopeia
decorre da palavra cujo som lembra o objeto ou o ser nomeado” (GOLDSTEIN, 1988, p.
27) no emprego da palavra “zapt”, para representar o instante em que o sapo pegou a
mosca. A vista disso, é valido salientar que esses dois animais são recorrentes na região
norte, ou seja, a utilização deles gera uma sensação de proximidade com a realidade
em que eles estão inseridos.
Em seguida, tem-se o almoço, com a ilustração do porco e da vaca, intitulado
“Chiclete”, em que o eu-lírico:
Chiclete
A vaca
Engole e desengole o pasto
Pra mascar outra vez
(COCCO, 2016, p. 16-17)

Constata-se que o uso das palavras engole e desengole dão a sensação de que
algo está realmente sendo mastigado, como o próprio nome do poema já deixa
subentendido. Ademais, a utilização dessas palavras deixa marcado a repetição da
vogal “e”, gerando a figura de linguagem conhecida como assonância. Nota-se, pela
ilustração que há também uma inversão nos papéis dos animais, em que o porco se
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sente enojado ao ver a vaca alimentar-se, quando o processo deveria ser ao contrário.
Isso, se dá pelo fato de a vaca passar por um processo de ruminação natural de sua
espécie. Conclui-se, por fim, que o título se chama “chiclete” fazendo um comparativo
com a ruminação que lembra o ato de comer algo que não acaba nunca.

Figura 4 – A vaca e a porca

Fonte: Cocco, 2016.

Após a refeição, geralmente é feito o processo de higienização. Na obra não


poderia ser diferente. Temos o jacaré, representado no poema “Folga”, em que é
mostrado na ilustração o intervalo de descanso.
Folga
O jacaré
Abre a boca e espera
Passarinho lhe escovar os dentes
(COCCO, 2016, p. 18-19)
Ainda neste trecho observamos que os passarinhos que estão arrumando e
fazendo todas as tarefas de limpeza e higienização do jacaré. Diante disso, é perceptível
como as ações do eu-lírico se aproximam das práticas humanas. Isso porque, são
atribuídas ações próprias dos seres humanos representadas pela figura de linguagem
conhecida como personificação.
Dando sequência, após o descanso, chega à tarde, que é o momento de
descansar, brincar, como o próprio título da poesia já induz:
Peraltice
O macaco
Se solta e salta
Dos braços da árvore
(COCCO, 2016, p. 20-21)

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Juntamente com o título pode-se observar a imagem do macaco, que representa
a alegria, descontração e felicidade, brincando com a árvore. Os fonemas “solta” e
“salta” estão diagramados no livro fazendo alusão ao movimento do macaco saltando.
Identifica-se também a personificação da árvore como se os seus galhos ganhassem
vida e formas de braços para o macaco brincar.

Figura 5 – O macaco

Fonte: Cocco, 2016.

Temos no próximo haicai a sequência desse momento de descontração, intitulado por


“Acrobacia” que possui os seguintes versos:

Acrobacia
O peixe
Afia e desafia
As lâminas das águas
(COCCO, 2016, p. 22-23)

O peixe nadando nas águas nos remete a uma atividade lúdica em que as
crianças se reúnem para brincar de diversos jogos. O emprego das vogais “i” e “a” nos
versos do poema constituem a assonância. O eu-lírico produz a sensação desafio
quando se remete as “lâminas das águas”, pois sugere que está sendo realizada alguma
brincadeira radical.
A passagem do dia vai ficando mais evidente no poema abaixo:

Percussão
O cavalo
Trota e galopa
Nos longes do vento
(COCCO, 2016, p. 24-25)

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Pode-se atentar a diagramação das palavras “trota” e “galopa”, acompanhadas
da ilustração do cavalo cavalgando. Isso remete a ideia do ritmo, da caminhada do final
da tarde. As cores utilizadas na ilustração remetem ao pôr do sol e do final do dia.

Figura 6 – O cavalo

Fonte: Cocco, 2016.

No final de mais um dia, todos retornam para os seus lares, no poema seguinte,
a tartaruga vem elucidando essa retomada. Juntamente com a ilustração, que remete a
tranquilidade do animal em meio aos outros tantos bichos que estão com
pressa, os versos também nos passam está mesma impressão, como podemos
notar:

Estilo
A tartaruga
Anda e tira onda
Na reta da pressa
(COCCO, 2016, p. 26-27)

Embora em meio a pressa e correria de retornar para seu lar, o sujeito-lírico nos
mostra que sempre há alguém que vai na contramão e anda sem ligeireza.
Em seu penúltimo poema, Cocco (2016) retrata a hora do jantar, com a
representação ilustrativa da onça tendo feito sua refeição. Acompanhado da imagem
temos os seguintes versos:

Astúcia
A onça
Se faz de sonsa e alcança
O jantar pra sua pança
(COCCO, 2016, p. 28-29)

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Ou seja, a partir da ilustração surge a ideia de traição, em que a onça se fingiu
de amiga do coelho para abocanhar-lhe. Com isso, conseguiu garantir seu jantar,
caracterizando o anoitecer e a hora do descanso.
Por fim, para fechar o dia, temos o vagalume, que representa o encanto da noite,
fazendo referência ao céu estrelado:

Vigia
O vaga-lume
Liga e desliga
O negrume da noite
(COCCO, 2016, p. 30-31)

O uso das palavras “liga” e “desliga” faz menção as luzes das cidades que
acendem e apagam, assim como o inseto. Acompanhado do título “vigia”, retratando o
momento em que todos estão em suas casas e resta apenas o vigia atento a tudo que
está acontecendo.

Figura 7 – O vaga-lume

Fonte: Cocco, 2016.

Considerações Finais
Por fim, a análise das ilustrações juntamente com os poemas na obra Sabichões
(2016) permitiu verificar que os textos estão diretamente relacionados com as imagens,
dando a este fenômeno o nome de relação intersemiótica, quando há ligação da
comunicação verbal com a visual.
Cocco (2016) escolhe atentamente os animais que decide representar, dando
preferência para os que habitam a fauna e flora mato-grossense. Despertando a
curiosidade das crianças e também permitindo a familiarização delas com o universo

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que as rodeiam. Buscando indiretamente, estimular alguma identificação e afetividade
entre animais e crianças.

Referências
BRITTO, L. P. L. Leitura e formação na educação escolar: algumas considerações
inevitáveis. In: SOUZA, R. J. (Org.). Biblioteca escolar e práticas educativas: O
mediador em formação. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009.

CAMARGO, L. A relação entre imagem e texto na ilustração na poesia infantil. São


Paulo, 2018.

COCCO,M. H. Sabichões. Carlini & Caniato Editorial, Cuiabá, 2016.

FRANCHETTI, Paulo. O Haicai no Brasil. Alea , Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 256-269,


dezembro de 2008. Disponível em: < https://bit.ly/31qzqaa >. acesso em 29 de
novembro de 2019.

GOLDSTEIN, N. Análise do Poema. Editora Ática, São Paulo, 1988.

LEXIKON, H. Dicionário dos símbolos. Editora Nova Cultural, São Paulo,1990.

OLIVEIRA, R. Pelos jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para
crianças e jovens. Rio de Janeiro, RJ: Nova fronteira, 2008.

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ESTUDO COMPARATIVO DOS LIVROS DIREITOS DO
PEQUENO LEITOR (PATRÍCIA AUERBACH E ODILON
MORAES) E QUERO COLO! (STELLA BARBIERI E FERNANDO
VILELA): APROXIMAÇÕES EM TORNO DO CONCEITO DE
LIVRO ILUSTRADO.

Mônica dos Santos, Faculdade de Conchas (A Casa Tombada).

Eixo Temático 5: Literatura infantil e as relações com a imagem

Considerações iniciais
O presente artigo analisa comparativamente as obras Direitos do pequeno leitor
de Patrícia Auerbach e Odilon Moraes e Quero Colo de Stela Barbieri e Fernando Vilela.
O primeiro publicado pela editora Companhia das Letrinhas no ano de 2017 e, o
segundo, pela SM edições em 2016. O objetivo é levantar, a partir desta análise, alguns
dos conceitos relacionados ao livro ilustrado.
Atualmente, têm-se publicado muito material sobre a relação imagem e texto nos
livros destinados à infância, sobretudo, naquilo que se pretende nomear como “livro
ilustrado”.
No livro ilustrado, a ilustração não se apresenta mais como um instrumento
limitador de leitura, tampouco, como disse Barthes no ensaio Retórica da imagem, uma
“duplicata de certas informações que um texto contém e, portanto, um fenômeno de
redundância” (1964, p. 68). Texto e imagem juntos, cada um com sua especificidade,
corroboram para a formatação de um novo significado. A narrativa, nesse aspecto,
constrói-se de maneira articulada.
Diante desse fato, pretende-se verificar de que modo as obras citadas se
aproximam e se distanciam, bem como se essas semelhanças e dissonâncias
reverberam no que classificamos como livro ilustrado. Este artigo tem como arcabouço
teórico as reflexões de Sophie Van der Linden, Maria Nikolajeva e Carole Scott nos livros
Para ler o Livro Ilustrado e Livro Ilustrado: Palavras e Imagens.

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Sobre as duas obras
Considerando os livros em análise, pode-se dizer que os dois não apresentam
temática semelhante.
Os direitos do pequeno leitor, como o próprio título esclarece, trata dos direitos
da criança leitora: ser o herói da história, escolher o personagem principal, decidir
quando e como ler, entre outros.
A partir do texto da obra, escrito por Auerbach, temos uma clara referência ao
texto Direitos do Leitor presente no livro Como um Romance de Daniel Pennac. Nesse
livro, Pennac elenca uma lista de direitos que o leitor tem ao ler qualquer livro, entre
eles: O direito de não ler; o direito de pular as páginas; o direito de reler; etc. Patrícia
reconfigura esta lista com um novo olhar: as crianças são o foco nessa nova lista de
direitos.
O livro de Stella Barbieri e Fernando Vilela discorre sobre como as crianças são
carregadas e ninadas em diferentes partes do mundo. A partir dele, podemos notar uma
pesquisa sobre o colo em diversas culturas e espécies de animais.

Figura 1 - Capa do livro Direitos do Pequeno Figura 2 -Capa do Livro Quero Colo! – Stela Barbieri e
Leitor (Patrícia Auerbach) Fernando Vilela

Já em Quero Colo!, por sua vez, os papéis de autor (texto) e ilustrador não estão
bem definidos.
Em Os direitos do Pequeno Leitor, Odilon trabalha exclusivamente com as
imagens do livro e Patrícia com o texto. Já nesse segundo livro, essas margens são
rompidas, não há delimitação de papéis específicos:

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Na parceria deles, em geral um escreve (Stela) e outro ilustra
(Fernando). Mas aqui fizeram de outro jeito, um contribuindo com o
trabalho do outro. Fernando escreveu a narrativa de alguns colos e
Stela criou os fundos de todas as ilustrações. Nelas, usaram lápis
preto, pincel, ecoline, carimbos de borracha, gravura em madeira, em
algumas imagens, utilizaram o computador para colorir. (BARBIERI;
VILELA, 2016, p 36).

Os textos, dessas duas obras, não são narrativas propriamente ditas, mas sim
listas. Ambos apresentam sequências de sentenças, extremamente lacunares, cada
qual aparecendo, no máximo, em uma página do livro. Elas são pouco descritivas e
referem-se às cenas apresentadas pelas ilustrações.
Quanto à ilustração, não é possível verificar semelhanças entre as duas obras.
Os três ilustradores, Odilon Moraes, Fernando Vilela e Stella Barbieri trabalham com
técnicas e estilos diferenciados. Moraes propõe aquarelas com traçado leve e rápido.
Tinta diluída em água com textura lisa, um jogo de transparência e luminosidade.

Figura 3 (Direitos do pequeno leitor – Patrícia Auerbach e Odilon Moraes).

Figura 4 (Quero colo! - Fernando Vilela e Stella Barbieri)

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Vilela e Barbieri, por sua vez, apresentam um trabalho no qual podemos observar
a utilização de uma técnica mista, envolvendo xilogravura, carimbos de borracha, lápis
preto, ecoline e computador.
Considerando as imagens apresentadas, podemos verificar que, além das
diferenças observadas, as cores escolhidas pelos autores/ilustradores também se
mostram divergentes. Mais vibrantes no Quero Colo! (Figura 4) e mais tênues em
Direitos do pequeno Leitor (Figuras 3).
Nas figuras destacadas, Vilela e Barbieri preenchem quase que completamente
as páginas com as cores citadas. Moraes, por sua vez, utiliza-se mais de espaços
brancos, apesar de existir casos em que as páginas também aparecem totalmente
coloridas: quando a criança está no mundo do livro as cores invadem a página dupla,
quando não, o branco entra em cena.
Em Quero Colo!, as cores, num primeiro momento podem parecer chapadas,
mas, num olhar mais atento, percebemos sua textura, advinda dos carimbos e demais
recursos artísticos. O branco aparece apenas na antepenúltima página, surgindo de
modo a emoldurar as ilustrações e propor uma sensação de passagem de tempo.
Quanto à diagramação, percebe-se que texto e imagem estão, nas duas obras,
bastante associados e não há espaços exclusivos a cada um deles - ambos trabalham
em conjunto, colaborando para o sentido único da obra.
As obras de Aeubarch e Moraes, Barbieri e Vilela são retangulares, no entanto,
a primeira é menos horizontalizada que a segunda, o que proporciona a esta uma leitura
mais fluída.
As duas obras privilegiam o uso das páginas duplas, no entanto, é possível
verificar que o texto, sobretudo em Quero colo!, fica na página da esquerda, a página
da direita, a dita “página nobre” (VAN DER LINDEN, 2011), a que detém o olhar é
destinada à ilustração.
Esses dois livros foram impressos em papel Office Set, sendo que o Barbieri
Vilela apresenta uma menor gramatura o que proporciona uma leitura mais lenta e uma
maior apreciação de suas imagens.
Levantadas algumas características dos dois livros, ressaltando aspectos
semelhantes e divergentes, cabe agora aprofundar um pouco mais nossa análise de

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modo a compreender como essas duas obras podem nos auxiliar no entendimento do
conceito de livro ilustrado.

Conceito de livro ilustrado: aproximações entre Direitos do pequeno leitor e Quero


Colo!
Antes de partimos para a análise propriamente dita de Quero colo! e Direitos do
pequeno leitor, é necessário compreendermos um pouco o que é um livro ilustrado.
Para isso, tomaremos como base teóricos que elucidam esse conceito: Livro
ilustrado: palavras e imagens (Maria Nikolajeva e Carole Scott) e Para ler o livro ilustrado
(Sophie Van der Liden)
Van der Liden considera os livros ilustrados “Obras em que a imagem é
espacialmente preponderante em relação ao texto, que aliás pode estar ausente [é
então chamado, no Brasil, de livro-imagem. A narrativa se faz de maneira articulada
entre texto e imagem” (LIDEN, 2011, p.24).
Nikolajeva e Scott assinalam que:
O caráter ímpar dos livros ilustrados como forma de arte baseia-se em
dois níveis de combinação, o visual e o verbal. Empregando a
terminologia semiótica, podemos dizer que os livros ilustrados
comunicam por meio de dois conjuntos de signos, o icônico e o
convencional. (NIKOLAJEVA e SCOTT, 2011, p.13).

O leitor se volta do verbal para o visual e vice-versa, em que em uma


concatenação sempre expansiva do entendimento. Cada nova
releitura, tanto de palavras como de imagens, cria pré-requisitos
melhores para uma interpretação adequada do todo (NIKOLAJEVA e
SCOTT, 2011, p.14).

A partir dos conceitos levantados pelas autoras, é possível destacar que no livro
ilustrado, é importantíssimo o modo como palavra e imagem interagem. Dessa maneira,
não cabe pensar em uma obra na qual palavra e imagem nos trazem conteúdo
redundante.
Voltando um pouco às proposições de Auerbach, Moraes, Vilela e Barbieri, nota-
se que estes autores propõem ao leitor livros ilustrados. Ao observamos como a palavra
se relaciona com a imagem nas duas obras, nota-se que seu o sentido global só é
possível por meio da relação entre o visual e o verbal.

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Figura 5 (Quero colo! - Fernando Vilela e Stella Barbieri)

Figura 6 (Direitos do pequeno leitor – Patrícia Auerbach e Odilon Moraes).

Van der Liden, assim como Nikolayeva e Scott, propôs uma análise do modo
como estas relações entre ilustração e texto podem se dar no livro ilustrado, sugerindo
até algumas classificações. Essas autoras, indicaram diferentes visões sobre o duo
palavra-imagem, contudo, nesse artigo, iremos nos ater apenas àquela que se aproxima
um pouco mais dos livros ilustrados em análise.

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Como abordado anteriormente, o texto das duas obras, não é narrativo. Ele se
apresenta como uma lista de ações relacionadas à temática que cada um aborda:

Um colinho é sempre bom.


Para dormir...
Para comer...
Para passear...
Gosto de colo quando estou triste...
Ou no trabalho da mamãe (Quero Colo!,VILELA e BARBIERI, p. 6 - 17).

Todo leitor tem o direito de ser herói, escolher o personagem principal


e decidir quando e como quer ler.
Todo o leitor tem o direito de brincar com as palavras, fazer amigos
incríveis e levar a turma toda para passear (Direitos do pequeno leitor,
AUERBACH e MORAES, p.11- 20).

Como podemos observar, o texto, nessas duas obras, é uma lista uma sequência
de sentenças. Cada sentença apresenta uma proposta, cujo núcleo principal é uma
ação. Contudo, essa proposição não é fechada. Aberto, o texto nos parece muito mais
como fragmentos que ganham um novo sentido na interação com a ilustração.

Figura 7 (Quero colo! - Fernando Vilela e Stella Barbieri)

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Figura 8 (Direitos do pequeno leitor – Patrícia Auerbach e Odilon Moraes).

O texto, nessas duas obras é lacunar, ou seja, ele se apresenta como uma peça,
permitindo o ajuste de outra, no caso a ilustração. Sophie Van der Linden propõe “que
o autor (escritor) do livro ilustrado ao compor esse tipo de obra não deve ignorar as
imagens (mesmo que ele não as tenha produzidas)” (2011, p.48). A autora acrescenta
que a leitura, nesse contexto, é realizada pelas idas e vindas e da imagem e do texto
curto.
Quanto texto, voltando nosso olhar à Maria Nicolajeva e Carole Scott temos:
A função das palavras, signos convencionais, é principalmente narrar.
Os signos convencionais são em geral lineares, diferentes dos
icônicos, que não são lineares nem oferecem instrução direta sobre
como lê-los. A tensão entre as duas funções gera possibilidades
ilimitadas de interação entre palavra e imagem em um livro ilustrado.
(NIKOLAJEVA E SCOTT, 2011, P.14).

Como é possível verificar acima, as autoras de Livro ilustrado: palavras e


imagem não destacam tão somente esse caráter lacunar do texto no livro ilustrado, elas
ressaltam também a importância de se pensar o texto no conjunto com a imagem, um
preenchendo a lacuna do outro.
Palavras e imagens podem preencher as lacunas umas das outras,
total ou parcialmente. Mas podem também deixá-las para o
leitor/espectador completar: tanto palavras como imagens podem ser
evocativas a seu modo e independentes entre si. (NIKOLAJEVA E
SCOTT, 2011, P.14).

Aprofundando um pouco mais a questão da imagem, tanto em Quero Colo!


como Direitos do pequeno leitor, percebe-se nitidamente a preponderância espacial da
ilustração nos dois livros. Vander Linden destaca, como citamos anteriormente, essa
particularidade como uma das principais características do livro ilustrado.
Ainda sobre as ilustrações é possível notar, nas obras de Moraes, Auerbach,
Barbieri e Vilela que as imagens, além do que já foi destacado, têm um papel
fundamental quando analisadas do ponto de vista do modo como se relacionam com
seus respectivos textos: acrescentar novas referências.
No caso de Quero Colo!, a diversidade, os diferentes modos de se carregar uma
criança/filhote nos são apresentados por diferentes etnias, bem como animais diversos
que estão presentes nas imagens. Em Os direitos do pequeno leitor, as ilustrações
incluir personagens consagrados da literatura infantil de diferentes universos: Sítio do
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pica-pau amarelo (Monteiro Lobato), Onde Vivem os Monstros (Maurice Sendak),
Contos de Fada, Alice no país das Maravilhas (Lewiss Carrol), entre outros.

Figura 9 (Quero colo! - Fernando Vilela e Stella Barbieri)

Figura10 (Direitos do pequeno leitor – Patrícia Auerbach e Odilon Moraes).

Sophie Van der Liden classifica esta relação como função de amplificação, em
que tanto texto como imagem: “(...)pode dizer mais que o outro sem contradizê-lo ou
repeti-lo. Estende o alcance de sua fala trazendo o discurso suplementar ou sugerindo
uma interpretação (2011).
Nicolayeva e Scott (2011), por sua vez, discorrem sobre esse modo como
interagem palavra e imagem, por meio de conceito de reforço: “As ilustrações na
verdade não fazem contraponto às palavras, mas sim as “expandem” [expand] e
“elaboram” [elaborate].

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Por conseguinte, podemos dizer que as obras apresentam tanto a função de
amplificação de Liden, como o aspecto de expansão e elaboração proposto por
Nicolayeva e Scott. Tal afirmação tem por base a constatação das referências advindas
da ilustração para o texto. O visual traz ao verbal um novo universo, de modo que o
leitor é chamado a apreciar o livro, não só pela palavra e nem só pela imagem, mas pelo
jogo entre texto e ilustração, buscando a referência que esta última traz.
Por conseguinte, podemos verificar que esse é o principal ponto de convergência
entre essas duas obras.

Considerações Finais
O que é um livro ilustrado?
Muitas têm sido as definições apresentadas na atualidade, bem como as dúvidas
no que diz respeito a este conceito. Grande tem sido a variedade de livros compostos
por imagens e textos, contudo, como sabermos se estes livros são ou não livros
ilustrados?
A principal diferença observada entre um livro com imagem e o livro ilustrado
está justamente no grau de interdependência imagem/texto:
A análise hermenêutica parte do todo, depois observa os detalhes,
retorna ao todo com um entendimento melhor, e assim
sucessivamente, em um círculo hermenêutico. O processo de “ler” um
livro ilustrado também pode ser representado por um círculo
hermenêutico. Comecemos de pelo signo ou verbal ou visual e vice-
versa, uma concatenação sempre expansiva do entendimento. Cada
nova releitura, tanto de palavras como de imagens, cria pré-requisitos
melhores para interpretação adequada do todo. (Nicolayeva e Scott,
2011, p.34)

Desse modo, segundo Nicolayeva e Scott, depreendemos a essência do livro


ilustrado na concatenação dessas partes lacunares, sendo cada leitura uma nova
camada de sentido.
Sophie Vander Linden acrescenta a esse conceito a importância do suporte e da
materialidade diante dessas camadas. Nessa defesa, cita Isabelle Nièvres Chevrel
(p.86, 2011): “O livro ilustrado não é apenas texto e imagem no espaço, é texto e
imagem no espaço desse estranho objeto que é o livro”.
Para além de imagem, texto, e materialidade, elementos influenciadores de
sentido no livro como um todo, destacou-se o fato das duas obras analisadas

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apresentarem imagens que expandiam o texto: função de amplificação em Liden e
conceito de reforço de Nicolayeva e Scott
Apesar de citarem com nomes diferentes, as autoras quando discorreram sobre
o modo como poderiam se relacionar palavra e imagem no livro ilustrado, levantam a
hipótese de um tipo de relação no qual uma linguagem expande a outra. No caso, os
dois livros verificados detém essa característica, a imagem dá ao texto uma nova cor
proporcionando ao leitor ir além do sentido daquilo que o primeiro indica, adicionando
novas referências de cunhos históricos, sociais e culturais (no caso de Quero Colo!, até
mesmo biológicos).
Quero Colo! e Os Direitos do Pequeno Leitor são exemplos claros de livros
ilustrados. Obras díspares, mas que apresentam similitudes, sobretudo em seu caráter
lacunar, cujo sentido se dá obviamente na relação amplamente discutida, mas também
em propor uma obra aberta que proporcione diferentes leituras e releituras.

Referências
AUERBACH, Patricia; Moraes. Direitos do Pequeno Leitor. 1ª ed. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 2017.

BARBIERI, Stela; VILELA. Quero Colo! 1ª ed. São Paulo:Edições SM, 2016.

BARTHES, Roland. A Retórica da Imagem. In :O óbvio e obtuso. [s.e]. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 1990.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. 1ª ed. São Paulo: Cosac Naif, 2011.

NICOLAYEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. 1ª ed. São
Paulo: Cosac Naif,, 2011.

PENNAC, Daniel. Como um romance. 1ª ed. São Paulo: Rocco, 1993.

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LITERATURA INFANTIL ENTRE O TEXTO E A IMAGEM (OU
VICE-VERSA)

Marcos Roberto do Nascimento


Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET/MG
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas

Eixo Temático: Literatura infantil e as relações com a imagem

Introdução

Não é nada fácil definir literatura infantil e juvenil. É o texto ou o objeto livro que
a define com seu formato e projeto gráfico? São as instituições estranhas ao “universo”
da criança, como o mercado editorial, as premiações e a academia, com estudos no
campo da teoria literária, da psicologia do desenvolvimento, da pedagogia etc.? São as
instituições comuns ao “universo” da criança, como a família e a escola? São esses dois
aparatos institucionais que subordinam a literatura infantil e juvenil a uma função
utilitária e pedagógica? Essas questões parecem importantes para se pensar,
contemporaneamente, algumas tendências na literatura infantil. O mercado também tem
grande relevância nesta demarcação conceitual na medida em que determina não
apenas os aspectos comerciais, mas também, em grande medida, os estéticos. Quando,
por exemplo, em uma feira internacional de livros infantis e juvenis, como a de Bolonha
na Itália, quase toda a dinâmica do evento está voltada para o comércio de direitos
autorais, numa absoluta ausência de crianças nos corredores da feira, algo está sendo
dito sobre quais as preferências que o mercado tem para as crianças (e não o contrário).
Ao mesmo tempo, as escolas e as famílias, preocupadas, sobretudo, com a formação e
o desenvolvimento cognitivo das crianças, fazem escolhas literárias pretensiosamente
acertadas para as crianças. Há quem diga que a história infantil apreciada apenas por
crianças é uma história infantil ruim (HUNT, 2010, p. 75). Se for assim, os traços para
delinear as tendências da literatura infantil ficam, como veremos a seguir, menos opacos
do que se imagina.

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Este trabalho busca apontar, como tendência na literatura infantil (LI), um modo
de tratar temas hoje consolidados neste campo. O que se chama aqui de “modo” de
tratar os temas é a ênfase que se dá a uma abordagem filosófica na LI, o que vem a
influenciar as linguagens escrita e visual dos livros para criança. De certa forma o que
esta abordagem sugere como literatura infantil de qualidade influencia o modo de tratar
os temas. Apesar da grande diversidade da produção literária para crianças, desponta,
especialmente nos resultados dos prêmios literários, uma literatura com texto e imagem
que trazem uma apreensão dos sentidos em camadas estética e filosoficamente
justapostas. As imagens, sob tal perspectiva, ganham ainda mais destaque nas
narrativas quanto mais organicamente estiverem integradas ao texto por meio de um
projeto gráfico que una consistente e conscientemente esses elementos. Este parece
ser o caso do livro Horizonte, com texto e ilustrações de Carolina Celas (Orfeu Negro,
2018), o qual será analisado neste trabalho.

A literatura infantil e juvenil: Portugal e Brasil


Toda literatura tem a marca de seu tempo. Não seria diferente no caso da
literatura infantil (LI), no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo. Parece improvável,
portanto, que se possa falar de uma LI que não desempenhe funções na formação dos
pequenos leitores. Para Balça (2008)
Os textos de literatura infantil não são inocentes, e para além de
encerrarem em si mesmos valores literários e valores estéticos, estão
igualmente impregnados de valores sociais e de valores éticos. A
literatura infantil é assim não só um veículo de convenções literárias,
mas também de paradigmas e de comportamentos vigentes e
considerados adequados pela sociedade em geral (p. 3).

Não obstante isso, a autora chama a atenção para o fato de que, apesar de os
textos de literatura infantil serem portadores de um potencial formativo, eles não podem
nem devem ser objeto de uma instrumentalização ou de uma didatização (BALÇA, 2008
p. 3). Essa questão parece ser um consenso entre os estudiosos da literatura infantil,
no Brasil e em Portugal, mas nem sempre é consenso nas escolas brasileiras. Em
muitos casos, as escolhas das escolas têm como finalidade transmitir ou reforçar valores
que estas julgam fundamentais para a formação de seus estudantes. Lajolo e Zilberman
(2017) afirmam que é antiga e estreita a relação entre literatura infantojuvenil, livros
didáticos e governo. Segundo as autoras

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Livros destinados ao público escolar são muitas vezes escolhidos a
partir de pressupostos pedagógicos contemporâneos, mas ainda assim
tão pedagógicos quanto patriotismo e obediência, valores difundidos,
por exemplo, em Poesias infantis, de Olavo Bilac, que contavam com
a aval e com a compra de autoridades educacionais de seu tempo (p.
67-68).

Lajolo e Zilberman (2017) enfatizam a relação entre a escola e o estado, tendo


em vista a definição e implementação de políticas públicas de educação e cultura que
afetam diretamente a produção e circulação da literatura de maneira geral, mas
especialmente a literatura infantil e juvenil. Isso porque a LI, enquanto gênero, “vê-se
investida da missão de redimir a leitura e alterar o panorama de práticas letradas ralas
e precárias no país” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2017: p. 73). Ou seja, o investimento
nestas áreas levaria o Brasil a dar um salto qualitativo do ponto de vista social, cultural
e econômico. Tais objetivos, contudo, atingem mais o mercado livreiro em alguns
momentos da história da leitura no Brasil do que propriamente o salto qualitativo. Dos
temas transversais propostos nos documentos oficiais de definição curricular aos planos
e programas governamentais voltados para o livro, leitura e bibliotecas, o que se vê é
uma grande movimentação do mercado editorial devido às compras governamentais
vultosas no Brasil e não uma melhora na qualidade.

Aparentemente, no Brasil do século XXI, livros para crianças e jovens


continuam, salvo em fugidios momentos de invenção e vanguarda,
gerenciados pelo discurso didático e ideológico de órgãos centrais da
Educação e da Cultura, reforçando-se com isso, ainda que sob nova
roupagem, a tão antiga vocação gramscianamente orgânica da
literatura infantil e juvenil (LAJOLO; ZILBERMAN, 2017, p. 68).

Considerando as especificidades culturais, sociais, políticas, econômicas e


demográficas de Portugal e do Brasil, é possível identificar algumas semelhanças e
tendências na produção da literatura infantil. Ramos e Debus (2015), pesquisadoras de
instituições em Portugal e no Brasil, analisaram estudos teóricos sobre a literatura
infantil e juvenil (LIJ) nesses países, buscando mapear o que ocorreu ao longo de três
períodos de produção (1960/1970, 1980/1990, 2000/2010) e refletir sobre as alterações,
as continuidades e avanços verificados nesses períodos. As pesquisas sobre a LI no
Brasil têm início em 1957, quando os estudos teóricos e práticos sobre a literatura infantil
passam a ser obrigatórios nos currículos das normalistas a partir da Lei 3.739. Em
Portugal, segundo as autoras, os estudos têm início nos anos de 1970 e são fortemente
pautados pela relação entre escola e LI.

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Nesse período, em Portugal, motivado pelas alterações verificadas no ensino,
“com o alargamento da escolaridade mínima obrigatória, bem como uma ligeira abertura
política do regime ditatorial” (RAMOS; DEBUS, 2015, p. 17), ocorreu um maior interesse
pelas publicações dedicadas ao público mais jovem. No Brasil, como/uma vez que as
décadas de 1970 e 1980 foram os anos de ouro da literatura infantil (PINHEIRO, 2018),
as reflexões teóricas sobre a LI ganham novos contornos. Sem abandonar as questões
anteriores sobre a formação dos jovens leitores, essas reflexões, em sua grande
maioria, vêm do espaço acadêmico universitário. Na década de 1990, a literatura infantil
se consolida nos programas de pós-graduação nas universidades (RAMOS; DEBUS,
2015, p. 22).
Em Portugal, as décadas de 1980 e 1990 são marcadas, por um lado, pelo
mapeamento historiográfico de fôlego sobre a produção da literatura infantil, e, por outro,
pelo aspecto mais voltado para as teorias sobre a LI. A tentativa de sistematização do
contexto histórico e político, para entender a relevância da produção literária para a
infância em Portugal, ocorre , particularmente no período de vigência do Estado Novo
e do seu regime ditatorial (1933 a 1974) (RAMOS; DEBUS, 2015).
No último período analisado pelas autoras (2000-2010), destacam-se, no Brasil,
os estudos teóricos e as análises de autores específicos, de forma que “as publicações
de cunho historiográfico vão rareando em prol de análise de títulos de autores
específicos” (RAMOS; DEBUS, 2015, p. 29).
Percebe-se que, tanto em Portugal quanto no Brasil, ocorreu uma mudança na
abordagem da LI que, além de dar destaque a ela como componente formativo, passou
a estudá-la como fenômeno literário de pleno direito, trabalhando as qualidades
estéticas e artísticas e o crescente interesse pelo estudo da ilustração (RAMOS;
DEBUS, 2015, p. 35).
Destaca-se também aqui outro aspecto: o modo como são abordados os temas
já consolidados na LIJ nos últimos anos, desde os 1980 (BALÇA, 2008; LAJOLO;
ZILBERMAN, 2017). Esta é uma tendência a ser mostrada, ainda que de maneira
exploratória e intuitiva, neste trabalho.
Quando Lajolo e Zilberman (2017) destacam o papel dos órgãos centrais de
Educação do estado brasileiro na formulação de políticas públicas de educação e
cultura, a partir da Constituição de 1988, elas apontam para o impacto direto sobre a
literatura infantil. Apontam ainda que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(Lei 9394/96) é um marco nesse processo ao definir parâmetros curriculares novos e
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temas transversais que influenciam a cultura escolar91: “os temas transversais
elencados pelos documentos são seis: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente,
Saúde, Orientação Sexual e Temas Locais. Desde então, eles passam a constar de
catálogos de editoras (...)” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2017, p. 70).
Em Portugal, como destaca Balça (2008), o surgimento de novos temas, nos
anos 1970 (a ecologia, o problema da discriminação, a droga, os problemas sociais e
políticos, a sexualidade e os conflitos entre gerações), não é apenas uma tendência da
literatura infantil portuguesa. Em outros países da Europa essa é uma realidade devido
ao contexto histórico, como, por exemplo, o fato de, na década de 1970, a Unesco
proclamar o ano de 1974 como o Ano Internacional do Livro Infantil e o ano de 1979
como o Ano Internacional da Criança, fazendo com que as atenções se voltassem para
os temas da leitura, do livro, da literatura infantil e da criança (BALÇA, 2008).
Balça (2008) destaca em seu texto que
estes temas emergentes na literatura infantil portuguesa, nos anos
70/80, são na actualidade temas consolidados, que se afirmaram e
atravessaram os últimos 30 anos, com uma presença constante nos
textos literários para os mais novos (p. 2).

Também, como no Brasil, as políticas e órgãos do estado em Portugal terão


papel importante neste processo de consolidação:
As questões da leitura e da literatura infantil são encaradas com um
novo olhar pelos responsáveis pela educação, uma vez que se
introduziu, nas Escolas do Magistério Primário, o estudo da literatura
para a infância e que a Direcção Geral do Ensino Básico organizou
colóquios nesta área e procedeu à compra anual de livros infantis, que
distribuía pelas escolas do ensino primário e pelas diversas bibliotecas
escolares (ROCHA, 2001:100, citado por BALÇA, 2008).

Além dos elementos comuns entre os dois países, ainda que


apresentados de maneira breve aqui, o que se quer é discutir se há um modo de
tratar esses temas que corrobore a ideia de que a literatura infantil dita de
qualidade não é tão acessível para as crianças, considerando os recortes

91
Na esteira de um conjunto de documentos governamentais no Brasil, ao longo de três décadas,
além da Constituição Federal (1988), da LDB (Lei 9394/96), mencionados acima, tem-se ainda
os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (1998); as Diretrizes Curriculares Nacionais da
Educação Básica – DCN (2010); e o Plano Nacional de Educação - PNE (2014) que subsidiaram
a formulação da Base Nacional Comum Curricular - BNCC (2017). De caráter normativo, este
documento define um conjunto de princípios para aprendizagens essenciais, a partir dos quais
orienta e operacionaliza a elaboração de currículos. Evidentemente que este é um tema
complexo e envolto em polêmicas e debates importantes que não serão tratados aqui.
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arbitrários de idades, e que o papel do mediador de leitura ganha destaque.
Como diz Balça, há valores presentes nos textos literários em camadas que só
podem ser claramente percebidos por meio de uma exegese ou dedução, nem
sempre tão acessível às crianças.
Ainda de acordo com Senís (idem, 49), os textos podem encerrar
valores que só são claros após um certo trabalho de exegese ou de
dedução. Logo, a figura do mediador é fundamental, uma vez que pode
contribuir para que a criança efectue leituras mais profundas do texto
literário, auxiliando-a nesse trabalho de exegese. Segundo Cerrillo
(2007), uma vez que o mediador, na literatura infantil, é normalmente
o primeiro receptor da obra, será ele que facilitará às crianças leitoras
ideias e caminhos para realizar as suas leituras, possibilitadas pelos
textos literários, na medida em que estes encerram uma dimensão
plurissignificativa, permitindo à criança leitora diversos níveis de leitura
(BALÇA, 2008, p. 3).

A abordagem filosófica de temas concretos para crianças talvez seja uma forma
de aproximar a ideia de literatura sem adjetivos (ANDRUETTO, 2012) da produção
contemporânea para o público infantil e juvenil. É a literatura infantil que está mudando
ou a infância? Parecem ser ambas. Mas como uma tem influenciado a outra?
A seguir, será feita a análise do livro Horizonte, sob a perspectiva de uma
literatura infantil que lança mão de uma abordagem que trata os temas “eleitos”
para a LI de maneira mais complexa, em camadas.

Preâmbulo da análise
A leitura de um livro infantil nem sempre é uma tarefa fácil para os adultos. Há
vários motivos para isso ocorrer: arrefecimento da imaginação (quando as pessoas se
tornam adultas, elas vão se desbotando, perdendo a cor; para ler histórias para crianças
é preciso imaginação); falta de repertório (é preciso ler para si para ler para as crianças);
falta de tempo (é preciso tempo para brincar, para jogar, para imaginar), entre outras
coisas. Enfim, são necessárias algumas condições socioculturais, ambientais, pessoais
e institucionais para ler e contar histórias para crianças. Apesar de se reconhecer que
há uma diversidade de livros produzidos para crianças, alguns filtros são realizados por
especialistas que vão desde os filtros definidos pelas comissões de julgadores de
prêmios e concursos literários a editais de compras governamentais no Brasil, ou
mesmo os crivos pedagógicos das escolas, ora orientados por documentos que
determinam os currículos, ora por seus projetos pedagógicos e ideológicos.

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Em meio a essa diversidade de livros infantis, podem ser observadas diferenças
marcantes em relação ao uso das imagens e ilustrações na concepção de livros para
crianças. Na década de 1960, o mundo ocidental, com o avanço da tecnologia e a
valorização das imagens, experimenta novas propostas de livros infantis, que trazem a
ilustração e o projeto gráfico como importantes elementos narrativos (PINHEIRO, 2018,
p. 141).
Nesse aspecto, Horizonte pode ser considerado um “livro ilustrado”, o
qual se define por forte interação e diálogo entre imagem e palavra (PINHEIRO, 2018).
A narrativa apresenta uma integração orgânica entre imagem e palavra. Pode-se dizer
que, de maneira geral, os livros para crianças são livros multimodais e multimídia, mas
nem todo livro para criança é intermídia. Os livros intermídia se caracterizam não apenas
pelo diálogo entre duas linguagens, como a escrita e a visual, mas, sobretudo, por “uma
inter-relação entre essas duas formas artísticas, de modo que uma não é compreendida
sem a outra” (PINHEIRO, 2018, p. 139).

Horizonte
Horizonte é um livro acompanhado de belíssimas ilustrações e projeto gráfico
criativo. A autora, Carolina Celas, apresenta o seu universo poético de maneira sensível
e encantadora. O horizonte está subentendido nos olhares, marca indelével dessa
narrativa, que provoca deslocamentos de sentidos. O horizonte, que se escreve, no
singular, apenas uma vez na capa do livro, pode estar aqui, acolá, visível ou disfarçado.
A procura é parte desse movimento. Querem agarrá-lo, mas ele parece escapar sempre.
Nessa narrativa filosófica para crianças de todas as idades, o objetivo da busca talvez
esteja, todo o tempo, bem próximo ou mesmo distante, só ao alcance da imaginação.
O título Horizonte bem que poderia estar no plural, “Horizontes”, porque é isso
que o livro faz todo o tempo, remetendo os leitores e leitoras a múltiplas perspectivas, a
múltiplos olhares sobre as realidades, a possibilidades sempre imaginadas a partir do
olhar sobre as coisas, sobre o mundo. O olhar terá um destaque especial no livro,
subentendido no texto e bastante marcante nas ilustrações.
Em Horizonte, o fluxo da narrativa é indeterminado. Há uma busca permanente
de sentido e, como livro ilustrado, as imagens compõem um enredo de maneira
absolutamente integrada ao texto. O horizonte (ou os horizontes) é, ao mesmo tempo,
texto e imagem a expressar mais do que uma perspectiva estética, mas, sobretudo, uma
perspectiva da linguagem. A autora remete o leitor a um campo de sentido por meio de
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uma construção ou estratégia composicional que só é possível porque ela também é a
ilustradora. Neste aspecto, o livro Horizonte é uma obra intermídia, onde o texto e a
imagem não apenas dialogam entre si, mas se fundem numa única coisa, quase uma
mesma linguagem. O texto, na sua forma escrita, é um elemento também da ilustração,
seja pela posição que ocupa na página, seja pela cor das letras em determinados
momentos da narrativa visual. Não é possível despregar o texto da imagem nem a
imagem do texto. Essa integração orgânica entre texto e imagem só é possível por meio
de um projeto gráfico conscientemente elaborado para produzir determinados efeitos de
sentido. O projeto gráfico da obra é marcado pela presença de várias linhas,
predominantemente horizontais, retas e sinuosas, indicando a divisão e ou a separação
de espaços.
O próprio título do livro é escrito em letra cursiva. A linha branca cria uma divisão
no meio do livro. Essa grossa linha branca horizontal que divide o livro ao meio também
está presente na imagem da metade superior da primeira capa (Figura 1), parecendo
formar caminhos que cortam montanhas azuis, rosas e vermelhas. Aponta para novos
horizontes escondidos por detrás das montanhas coloridas.
Tal efeito de demarcação, delimitação, separação, não produz uma ideia de
dicotomização do espaço da página, como, por exemplo, em cima/em baixo, na medida
em que esta demarcação se dilui através da perspectiva visual criada. Este traço sempre
remete o leitor para além do texto e da imagem. Este corte, esta linha, cria certa
perspectiva que é, ao mesmo tempo, visível e imaginada.

Figura 2: Capa aberta do livro Horizonte


Fonte: CELAS, C. Horizonte (2018)

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As ilustrações, mesmo que não pareça, estão quase sempre em página dupla, e
as palavras se apresentam no livro de forma discreta. Elas compõem as páginas e se
fundem com as ilustrações. As cores das letras não variam muito. Sempre no branco,
azul ou vermelho, as cores que predominam no livro. Isso gera um efeito de composição
muito interessante no livro, uma vez que as cores são suaves, aquareladas. A posição
do texto na página também revela a estratégia composicional em cada página, o que
reafirma a característica intermídia do livro. O texto, neste caso, é também imagem.
O horizonte está sempre colocado em perspectiva. As linhas imaginárias criam
possibilidades que remetem o leitor a um caminhar, a um navegar, a um experimentar
a descoberta de algo novo, como no poema de Quintana, em epígrafe neste texto, ou O
conto da ilha desconhecida, de José Saramago. Os horizontes estão “ali” ou “acolá”; no
"infinito" ou "dentro de mim". A palavra horizonte é escrita em letra cursiva a partir de
uma linha branca que surge da quarta capa e segue como continuidade da letra “e” no
final da palavra, sem romper a linha que passa para a contracapa. A guarda do livro e a
folha de créditos, que também estão criativamente integrados a esse jogo enunciativo,
servem de suporte para o movimento que se inicia: estrada, caminho, primeiros passos,
primeiros personagens, deslocamento, narrativa (Figura 2).

Figura 3: Guarda e Folha de Créditos como elementos do jogo enunciativo


Fonte: CELAS, C. Horizonte (2018)

O livro não tem paginação. Talvez essa ausência de marcação sugira que a
atenção deva estar voltada para outras marcações nas páginas, como, por exemplo, a
posição das palavras e das frases nas páginas ou, ainda mais relevante, as direções
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dos olhares das personagens. É como se esses olhares guiassem, ou devessem guiar,
os olhares de leitores e leitoras, evitando o lugar comum de uma leitura linear, a certeza
de onde se está no livro. A leitura deste livro remete o leitor e a leitora sempre para fora
do livro, ou para outro lugar dentro do livro, ou ainda para um lugar em si mesmo. Mas,
sobretudo, sugere sempre um movimento, um deslocar-se de si para o outro, do
concreto para o imaginário, da realidade para a brincadeira, jogo de imagens e palavras.
Esta narrativa não é tão simples. Não é linear. O leitor é levado a buscar
significados a partir das camadas de sentidos que o texto e as imagens vão justapondo.
Essa trama de imagens e textos exige sempre um pouco mais do leitor, mas não mais
do que a imaginação criativa da criança. Quero dizer com isso que enquanto os adultos
buscam racionalizar o encontro da criança com a literatura, tentando ver uma relação
direta entre texto e imagem, entre mensagem e formação, leitura e educação, subtraindo
desta relação o jogo, a trama, a brincadeira, as crianças, por sua vez, rompem esta
barreira da racionalidade instrumental. Dessa forma, elas podem alcançar outras
camadas do texto. O papel do mediador, neste caso, passa a ser fundamental, se
orientado pela perspectiva criativa do jogo enunciativo, da leitura literária 92. Horizonte
parece romper com o viés pedagógico tradicional e instrumental. Pode-se dizer que a
obra se insere na tendência que se aponta aqui, de um modo de abordar temas
consolidados na literatura infantil que faz interagir, filosófica e poeticamente, texto e
imagem dentro do jogo enunciativo.
Em nenhum momento a palavra "horizonte" aparece no miolo do livro, apenas
na capa. O texto da capa, o título do livro, é ele mesmo texto e imagem (Figura 1). Ele
é o início da narrativa, criativamente integrado à linha que dá sentido a toda trama da
obra. Moraes (2019), ao fazer a análise de seu livro ilustrado, Rosa, diz que entende por
escrita “não somente as palavras, mas também as imagens. Escrevo com as imagens”
(p. 116). Para ele, imagem e palavra estão integradas no livro ilustrado como se fossem
um arquipélago: “substantivo coletivo e assim deveria ser nossa concepção de livro
ilustrado” (MORAES, 2019, P. 127).
No livro Horizonte, apesar da delicadeza e singeleza dos desenhos das pessoas
que compõem a narrativa visual, os “olhares" estão sempre destacados. Eles sempre

92
Entende-se aqui por leitura literária o modo de ler textos e o mundo, imprimindo neles o olhar
do leitor e se deixando tocar por eles através da imaginação, dos sentimentos, da criatividade,
dos afetos e também pelas racionalidades de leitores e leitoras. A leitura, nesta perspectiva, pode
conter um ou mais desses elementos, mas ela só será literária se preservar a liberdade da
interpretação, do jogo, da imaginação.
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estão apontando para algum lugar. Curioso porque os rostos das personagens humanas
são definidos por três pontinhos pretos: olhos e nariz. Porém, essa perspectiva traz uma
expressividade singular, bastante apropriada e integrada ao texto e à proposta do livro.
Em toda a narrativa visual, esse elemento está fortemente presente. Destaca-se,
contudo, a seguinte imagem: mesmo não aparecendo o rosto da personagem, o seu
olhar está sempre direcionado para algo. Ela está diante de um quadro, de costas para
o leitor (Figura 3), e percebe-se que ela olha para o quadro. O que pode ser também
uma janela. E dentro (ou fora) dele (ou dela) há um outro personagem que também olha.
Ao lado, na mesma imagem da página dupla, que parece ser uma galeria de artes ou
um museu, um grupo de pessoas tem seus olhares atentos e direcionados. O olhar é
um importante elemento da narrativa. O olhar, nessa narrativa que também é visual, é
movimento, um movimento sempre para outro ponto, outro lugar, outro olhar. Essa
disposição das ilustrações em páginas duplas amplia tal jogo de imagem e palavra. Não
há redundância nesse jogo. O uso minimalista das palavras não apenas exige a
imagem, mas compõe a imagem, provoca a imaginação.

Figura 4: Os sentidos do olhar


Fonte: CELAS, C. Horizonte (2018)

As linguagens escrita e visual, no livro Horizonte, estão tão integradas e concisas


que aparentam ser apenas uma. Destaca-se outra cena paradigmática dessa integração
orgânica: quando, em uma das ilustrações em página dupla (Figura 4), a linha que
separa o meio da página desaparece (ou essa ausência é insinuada), o texto: "Quando
me deito desapareces", ocupa esse lugar e dá continuidade à narrativa sem provocar a

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quebra da estratégia visual adotada pela autora. O jogo enunciativo aqui ganha ainda
mais força.

Figura 5: Texto e imagem - Quando me deito desapareces


Fonte: CELAS, C. Horizonte (2018)

A abordagem filosófica dos temas parece ser uma das características das
tendências do livro infantil contemporâneo. Qual leitor esta abordagem pressupõe?
Certa complexidade do texto decorre disso. Se, por um lado, recentemente, a literatura
infantil, especialmente por critério de julgamento em prêmios literários ou em editais
públicos de compra de livros, busca evitar o chamado “didatismo” nos textos infantis e
um discurso pedagógico e moral, que marcaram o início da literatura infantil no Brasil e
também em Portugal, por outro, os livros infantis vão se tornando mais complexos,
atendendo talvez a demandas externas ao universo da infância, ou mesmo
ressignificando a infância a partir da literatura infantil. Como diz Hunt (2010):

Definir literatura infantil pode parecer uma demarcação de território,


mas apenas na medida em que o objeto necessita alguma delimitação
para ser manejável. No entanto, a despeito da instabilidade da infância,
o livro para criança pode ser definido em termos do leitor implícito. A
partir de uma leitura cuidadosa, ficará claro a quem o livro se destina:
quer o livro esteja totalmente do lado da criança, quer favoreça o
desenvolvimento dela ou a tenha como alvo direto (p. 100).

Os desafios parecem não se encerrar com esta definição. Pelo contrário, exigem
ainda mais dos editores, dos teóricos da literatura, das famílias e das escolas um
compromisso com a criança, enquanto expressão da infância, e com a literatura,
enquanto uma das expressões artísticas da nossa humanidade.
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A narrativa do livro Horizonte encerra-se com uma ilustração (Figura 5) onde as
linhas se multiplicam em todos os sentidos, formando uma trama de pequenos
quadrados, o que, paradoxalmente, amplia as possibilidades. No alto, em segundo
plano, uma pessoa parece ler um livro. Outras duas parecem observar e comentar a
cena da jovem leitora dentro de uma moldura, com vários enquadramentos; elas
mesmas dentro e fora de um espelho imaginário. E termina assim a narrativa escrita:
“Pergunto-me se também estás dentro de mim”, com as palavras em letras vermelhas,
rompendo as linhas traçadas na vertical, como se estivessem rompendo limites,
construindo possibilidades.

Figura 6: Pergunto se também estás dentro de mim


Fonte: CELAS, C. Horizonte (2018) 1

Essa é uma exegese, uma leitura em camada, como diz Balça (2008). A página
final, ilustrada por linhas em vários sentidos, retas e curvas, com diferentes traçados, é
costurada pela trama imaginária da busca permanente pelo sentido da vida, por assim
dizer, num perspectiva filosófica. Sutilmente a imagem da personagem leitora no alto da
página à direita sugere que a linha do horizonte poderá ser alcançada, superada pela
imaginação criativa desprendida dos livros, algo que a menina que gostava de ler, de
Clarice Lispector, clandestinamente sabia.
O horizonte é um lugar a ser alcançado, superado, imaginado, conquistado, Mas,
antes de tudo, visto como possibilidade. A autora tenta mostrar que o horizonte pode
ser visto e olhado de vários ângulos e perspectivas. Ele tem que ser almejado como a
Ilha desconhecida de Saramago, como as estrelas de Quintana, como o livro da menina
de Lispector. Isso remete o leitor a outro elemento importante do livro, não tão explícito,
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como dito acima: o movimento. Movimento como deslocamento de sentidos. Dessa
maneira, o movimento é um atributo da imaginação e uma estratégia do jogo
enunciativo, a qual se mostra desde a capa do livro.

Considerações finais
As condições econômicas, sociais, políticas e demográficas de um país podem,
direta ou indiretamente, influenciar a produção literária voltada para criança,
especialmente porque infância e literatura infantil são conceitos complexos e instáveis,
uma vez que variam em diferentes épocas e culturas. Contextos históricos determinam
processos de mudanças nos valores, nas instituições, nas ideias, nas formas de
organização social e cultural etc. A descoberta da infância (ARIÈS, 1981); a relação do
Estado com a escola e com o mercado editorial no Brasil (LAJOLO; ZILBERMAN, 2017);
as transformações na política e nos valores em Portugal (BALÇA, 2008) em alguma
medida influenciaram a produção literária nesses países. Ao considerar essas
condições, as tendências na produção literária para crianças podem ser identificadas
quando associadas a processos de mudanças. Tendências relativas a temas
abordados, a padrões estéticos, a estratégias editorias, a políticas públicas de educação
e cultura etc., podem estar ligadas às mudanças na sociedade.
Buscou-se apontar neste trabalho um “modo” de tratar os temas emergentes e
consolidados na literatura infantil no Brasil e em Portugal. Entre semelhanças e
especificidades, uma abordagem filosófica parece emergir nesse contexto de
mudanças. Não se trata de redução do texto literário ao texto filosófico, o que tornaria o
livro para criança um livro paradidático. O “modo” de tratar os temas combina,
dialogicamente, texto e imagem por meio do projeto gráfico, visando produzir múltiplas
camadas de significados. O resultado produzido por esse “modo” de tratar temas
consolidados e emergentes na literatura infantil são livros que trazem uma complexidade
semiótica nem sempre alcançada pelos leitores. É como se o livro infantil deixasse de
contar história para criança e passasse a contar histórias.
Horizonte se aproxima dessa perspectiva. O caráter intermídia do livro
Horizonte faz dele um exemplo paradigmático da complexidade semiótica expressa,
delicadamente, em cada detalhe do livro. Seu texto e sua ilustração foram elaborados
pela mesma pessoa. Evidentemente que esta não é uma condição suficiente para
determinar tal aproximação.

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Cabe ressaltar que neste texto exploratório analisar apenas um livro não é o
bastante para qualquer tipo de afirmação ou conclusão que não seja absolutamente
especulativa, sendo necessário uma diversidade maior de livros, de editoras, de autores
e uma análise temporal cuidadosa.

Referências
ANDRUETTO, M. T. Por uma literatura sem adjetivos. Trad.: Carmem
Cacciacarro. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.

ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC,


1981.

BALÇA, A. Literatura infantil portuguesa – de temas emergentes a temas


consolidados. In: e-f@bulações: Revista Electrónica de Literatura Infantil. No.
02/2008. Disponível em: https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4650.pdf.
Acesso em: 03/07/2019.

CELAS, C. Horizonte. Lisboa: Orfeu Negro, 2018.

HUNT, P. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. Tradução de Cid Knipel. São


Paulo: Cosacnaify, 2010.

LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira: uma nova outra


história. Curitiba: PUCPress, 2017.

LISPECTOR, C. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MORAES, O. “O contraponto na criação de livros ilustrados: a dupla orientação


em Rosa e Olavo”. In: PINHEIRO, M. P.; TOLENTINO, J. M. A. (Orgs.) Literatura
infantil e juvenil: campo, materialidade e produção. Belo Horizonte: Moinhos;
Contafios, 2019, p. 113-128.

PINHEIRO, M. P. “O diálogo entre texto escrito e projeto gráfico em livros de


literatura infantil premiados”. IN: OLIVEIRA, L. H. S.; MOREIRA, W. (Orgs.)
Edição & crítica. Belo Horizonte: CEFET-MG, 2018 (127-167).

QUINTANA, M. Quintana de bolso. Porto Alegre: L&PM, 1997.

RAMOS, A. M.; DEBUS, E. Os estudos sobre literatura infantil e juvenil no Brasil


e em Portugal: uma análise comparada. In: Caderno Seminal Digital, ano 21,
nº 23, v. 1 (JAN-JUN/2015). Disponível em: https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/cadernoseminal/article/viewFile/14461/12976.
Acesso em: 03/07/2019.
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SARAMAGO, J. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.

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O VERBAL E O NÃO VERBAL NO LIVRO LITERÁRIO INFANTIL:
“ABRINDO CAMINHO(S)” PARA A LEITURA MEDIADA

ZATERA, Luciana Carolina Santos


(Colégio Nossa Senhora de Sion)
CRUZ, Gisele Thiel Della
(Centro Universitário UniDomBosco)

Eixo Temático: 5 – Literatura Infantil e as relações com a imagem

Considerações iniciais
Este trabalho aborda a relação entre o texto verbal e o não verbal no livro literário
infantil, a partir da prática de leitura mediada. Tem como objetivo apresentar
possibilidades para a prática de mediação de leitura de livros literários infantis que
contêm imagens, a partir da leitura da obra Abrindo Caminho, de Ana Maria Machado,
ilustrada por Elisabeth Teixeira (MACHADO, 2004), cuja narrativa é construída em prosa
poética, a partir de recursos intertextuais entre texto verbal e não verbal.
O artigo relata uma experiência vivenciada no quarto ano do ensino fundamental
de um colégio da rede privada de Curitiba, a partir da leitura mediada do livro citado e
de uma sequência didática realizada pelos estudantes. O livro literário escolhido
apresenta riqueza literária e imagética, não sendo possível desvincular texto verbal do
não verbal, pois ambos se completam na construção do discurso e na atribuição de
sentidos por parte do leitor. A figura do mediador, leitor mais experiente, é essencial
para que capacite o leitor em formação a ler as pistas textuais e visuais, realizar
inferências, fazer perguntas durante a leitura e acionar conhecimentos prévios.
O recurso intertextual utilizado pela autora e ilustradora exige que se
estabeleçam estratégias para a exploração do texto antes, durante e após a leitura.
Assim, o planejamento de práticas de leitura mediada do livro de literatura infantil foi

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decisivo para que os alunos-leitores pudessem atribuir sentidos à leitura, o que é
fundamental para o letramento literário.

O livro literário infantil: o verbal, o não verbal e o intertexto em Abrindo


Caminho, de Ana Maria Machado
A ilustração é tema recorrente quando se trata de literatura para crianças. O uso
dos termos verbal e não verbal para tratar do livro literário infantil não é aleatório. Não
usaremos as expressões texto e imagem por entender que a ilustração também se
configura como texto. A semiótica nos auxilia nessa compreensão, pois define texto
como um “todo de sentido”, que se caracteriza, conforme Barros (2011), pela sua
organização e por ser objeto de comunicação, seja oral, escrito, visual, gestual ou
formado por materialidades multissemióticas.
Quando linguagem verbal e não verbal se associam em um livro ilustrado para
crianças e suscitam uma leitura articulada, “a apreensão conjunta daquilo que está
escrito e daquilo que é mostrado” é atitude exigida ao leitor, de acordo com Linden
(2011, p. 8). Por isso, equivoca-se quem pensa ser os livros literários ilustrados
destinados apenas ao público infantil ou, mais ainda, à criança não alfabetizada. A
leitura de imagens é uma exigência das sociedades digitais, nas quais o multiletramento
tornou-se prática frequente.
Ler isoladamente a imagem ou mesmo o texto verbal tem outro direcionamento
que não aquele proposto pelo livro ilustrado. Essa forma de leitura supera as outras
duas. Como afirma Linden (2011), a leitura de um livro ilustrado exige formação leitora,
pois é preciso analisar o formato, o enquadramento, a capa e todas as possíveis
relações que se estabelecem com o conteúdo do livro; fazer associações entre o verbal
e o não-verbal; fazer relação entre a poesia do texto e a imagem; descobrir os silêncios
estabelecidos entre um e outro; decidir sobre a ordem de leitura no espaço da página
entre outras ações.
Mas essa multiplicidade de relações entre o verbal e o não verbal nem sempre
foi assim. A leitura da imagem no livro ilustrado foi ficando cada vez exigente a partir da
evolução histórica dessa arte. Segundo Linden (2011), até o século XVIII, a única
técnica de desenho existente era a xilogravura e ela era usada para compor páginas
com caracteres e figuras, com traços pouco precisos. No século XIX, ainda havia poucas
imagens nas primeiras publicações destinadas ao público infantil. Elas eram

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apresentadas em páginas isoladas e, depois, foram aperfeiçoadas as técnicas, sendo
possível imprimir texto e imagem em uma única página.
No século XX, de acordo com Andrade (2014), o mercado editorial se expandiu
decisivamente e, nos dias de hoje, os livros infantojuvenis ocupam um bom nicho de
mercado, além de apresentarem inúmeras ilustrações baseadas nas mais diferentes
técnicas, além dos livros interativos em suportes digitais, nos quais convergem
linguagens híbridas.
Camargo (2003, p. 290) apresenta algumas categorias no que se refere à
ilustração presente em livros literários destinados ao público infantojuvenil. Para este
trabalho, interessa-nos tratar do livro com textualidade híbrida ou verbo-visual, no qual
texto verbal e ilustração têm a mesma relevância, “configurando um diálogo a duas (ou
mais) vozes”. Nesse tipo de livro, o verbal e o não verbal interagem no mesmo espaço,
normalmente, na mesma página do livro. Para Camargo (2003), a ilustração tem
sentidos próprios e, mesmo que acompanhe o texto, não serve para traduzir ou explicar
a ação. Ela fala por si e, por vezes, “diz” mais do que está escrito.
É o que ocorre na obra Abrindo Caminho, escrita por Ana Maria Machado e
ilustrada por Elisabeth Teixeira. Entre a narrativa poética escrita e a narrativa
configurada nas ilustrações ocorre correspondência, sem haver repetições, como
destaca Fittipaldi (2008, p. 103-104):

Escrita e imagem são companheiras no ato de contar histórias. Os


temas são colocados, em princípio, pela linguagem literária: uma
história dá origem a uma imagem; a imagem, por sua vez, dá origem a
uma história, que, por sua vez, apresenta-se por meio de uma nova
imagem, esta permitindo uma outra história e mais outra, alternativa
que logo se transforma em outras imagens, numa cadeia sonora,
verbal, textual e imagética [...].

Soma-se a isso o fato de Ana Maria Machado ter explorado a intertextualidade


em toda a obra. A autora parte do sentido metafórico que o título da obra provoca para
apresentar algumas personagens que, mesmo se deparando com desafios, abriram
caminhos para que “outros passassem” ou dessem continuidade ao projeto que
iniciaram. “Abrir caminho” pode, então, significar “despertar para o novo”, ousar, romper
paradigmas.
A construção de sentido para toda a obra depende, além da leitura integrada do
texto verbal e da imagem, da relação intertextual que se estabelece entre o texto e o
conhecimento prévio do leitor. Como afirma Barthes (1974 apud Koch, 2011, p. 59),

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“todo texto é um intertexto, outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob
formas mais ou menos reconhecíveis”. Portanto, a recepção de um texto depende do
conhecimento que se tem de outros textos com os quais ele se relaciona.
Os estudos de Bakhtin (2000) e seus colaboradores apontam para esse conceito
quando constatam que nossos discursos são carregados de diferentes vozes, ou seja,
são dialógicos ou polifônicos93. O dialogismo, além de estar presente na interação verbal
e na construção dos discursos pelos sujeitos, também ocorre entre as vozes que
compõem um texto, pois “todo discurso é marcado pela heterogeneidade, uma vez que
é condição de um discurso se constituir em relação a outro” (TERRA, 2019, p. 5, grifos
do original).
Koch (2011) distingue dois tipos de intertextualidade: de amplo e de restrito
sentido. No sentido amplo, o processo discursivo é sempre carregado de muitos textos;
não existe um primeiro e original discurso; as vozes se entrelaçam, sendo o intertexto
uma condição intrínseca de todo enunciado. No sentido restrito, a intertextualidade se
dá na “relação de um texto com outros textos previamente existentes, isto é,
efetivamente produzidos”, conforme Koch (2011, p. 62). Um dos tipos de
intertextualidade restrita chama-se implícita, quando não se cita a fonte do texto de
origem, mas cabe ao leitor, segundo Koch (2011, p. 63), “recuperá-la pela memória para
construir o sentido do texto”.
Abrindo caminho vale-se especialmente da intertextualidade implícita. Embora
as referências a outros textos sejam bastante evidentes ao leitor adulto, para a criança
podem não ser. Isso não significa que a obra não possa ser lida por ela, pelo contrário,
quando não se conhecem todas as referências intertextuais, a possibilidade de outras
leituras amplia-se, principalmente quando é possível estabelecer diálogo entre o texto
verbal e a ilustração. De todo modo, a partir da mediação do professor como leitor mais
experiente, explorando estratégias de compreensão leitora, será possível levar o aluno
a construir sentidos para o texto, num processo interlocutivo de leitura compartilhada.

Abrindo Caminho: uma experiência de leitura mediada

93
Enquanto alguns estudiosos de Bakhtin consideram os dois termos como sinônimos, outros os
diferenciam. Para Brait (2003), polifonia é outro termo para dialogismo, ou seja, diferentes vozes
instauradas num discurso. Barros (2003) diferencia os dois termos: dialogismo é um espaço
interacional entre o eu e o outro. Polifonia contrapõe-se à ideia de monofonia. Nos discursos
polifônicos, as vozes se mostram ou se deixam escutar; nos monofônicos, elas se ocultam ou,
quando o discurso é autoritário, apenas uma voz faz-se ouvir.
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A leitura da obra Abrindo Caminho com uma turma de 4º ano do ensino
fundamental da rede privada de Curitiba deu-se em razão de um projeto adotado pelo
colégio, chamado Música em família: um para o outro94, cujo objetivo era integrar escola
e família por meio da arte, no trabalho com temáticas relacionadas a valores. O livro-
base do projeto trazia músicas e poesias autorais, bem como sugestões de atividades
para serem desenvolvidas durante o ano letivo.
Logo no início do ano, as professoras do 4º ano decidiram iniciar o trabalho de
sala por um dos capítulos do livro-base do projeto. Esse capítulo continha uma música
chamada Não custa nada, que explorava a questão do ser em detrimento do ter,
mostrando aos leitores o quanto os sentimentos, a amizade e o amor valem mais do
que bens materiais. Além da música, havia um poema intitulado O caminho, que serviu
como inspiração para que escolhêssemos o livro de Ana Maria Machado para
enriquecer o desenvolvimento do projeto. Houve uma identificação surpreendente dos
alunos pelo poema O caminho, em razão da temática e do recurso anafórico, que gerou
ritmo aos versos:

Os pássaros esperam as estações.


As folhas esperam o toque da terra.
As flores esperam os beijos de seus donos.
As pedras esperam as pedras.
Os galhos esperam os frutos.
[...]
O caminho espera seus pés, meus pés, os pés de quem quiser.
O caminho não sai do lugar, ele está, os pés movimentam o chão.
O caminho não escolhe os pés, mas os pés escolhem o caminho.
[...] (SANTISTEBAN; BOLOGNA, 2017, p. 35).

Todos os meses, as turmas do ensino fundamental trabalham com um poema,


que é lido, explorado pelos professores, memorizado e declamado de diferentes formas
pelos alunos. Assim, as crianças são familiarizadas com a linguagem poética, o que
facilitou a recepção desse poema. Elas extraíram com facilidade vários sentidos
possíveis à metáfora “caminho” e o que mais se destacou foi a ideia de que há vários
caminhos possíveis para serem seguidos e cada um de nós é responsável pela escolha
que faz, mas o caminho de cada pessoa cruza o caminho de outras; então, essas
escolhas podem influenciar a vida de outros sujeitos.

94
O projeto faz parte da coleção Música em Família: um para o outro, desenvolvido por Paula
Santisteban e Eduardo Bologna. Mais informações em
http://www.musicaemfamilia.com.br/ouca/um-para-o-outro/. Acesso em 21 ago. 2020.
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O envolvimento das crianças pela temática do poema e a disposição que tinham
em estudá-lo para a recitação, ao final do mês, fez com que as professoras pensassem
em outras possibilidades de exploração da mesma temática. Assim, lembramos da obra
Abrindo Caminho, que foi selecionada para leitura e posterior atividades em uma
sequência didática.
Pelo teor da obra, consideramos necessário realizar leitura mediada e selecionar
estratégias de compreensão leitora que auxiliassem os alunos-leitores a avançar de
uma leitura superficial a uma leitura mais aprofundada, a fim de estabelecerem as
relações intertextuais presentes no texto e atribuírem sentidos a ele.
A leitura é um processo que demanda a construção de sentidos, extrapolando a
simples decodificação dos vocábulos ou da informação da frase ou do verso. Ela é um
processo dinâmico e ativo, que requer a construção de sentidos e se estabelece no
diálogo que o leitor tem com elementos extratextuais, ou seja, repertório prévio (de
mundo, linguístico, de outras áreas etc.) e o texto.
Nesse processo de construção de sentido que é feito pelo aluno, cabe ao
professor o papel de mediar a aprendizagem. O professor é o par mais competente na
relação educativa e fornece ao educando um suporte para dar conta dos desafios e das
situações novas que possam surgir.
De acordo com Tébar (2011, p. 74), a mediação deve ser compreendida como
“uma posição humanizadora, positiva, construtiva e potencializadora” da relação
educativa. Em Vygotsky (2000) encontramos a base teórica desse conceito, pois o autor
enfatiza a presença do professor como colaborador e orientador da criança, fazendo-a
avançar em aprendizagens que ainda não domina sozinha.
Na prática de leitura literária, o educador deve ser capaz de fornecer mediação
qualitativa aos estudantes. É importante que ele ofereça ferramentas ao aluno para que
este desenvolva capacidades cognitivas e exercite sua compreensão leitora, além de
tornar-se leitor ativo e autônomo, apto a

Realizar previsões, formular e responder questões a respeito do texto,


extrair ideias centrais, identificar conteúdos novos e dados, relacionar
o que lê com sua realidade social e particular, ler o que está subjacente
ao texto, valer-se de pistas para fazer inferências, sumarizar, ser capaz
de dialogar com outros textos. (FREITAS, 2012, p. 68)

A mediação ocorre à medida que há interação entre o leitor experiente e o leitor


em formação. Nesse caso, o primeiro é aquele que oferece suporte necessário ao

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segundo que, aos poucos, vai tomando segurança para realizar leituras mais
complexas. Aos poucos, o aluno-leitor será capaz de ler com maior autonomia,
dispensando a presença contínua do mediador. Ao longo do processo de mediação, o
uso de estratégias de leitura pode ser uma alternativa eficiente para que o leitor em
formação passe a compreender que a leitura promove a mudança qualitativa em sua
cognição.
As professoras realizaram a leitura da obra Abrindo caminho com os alunos
sentados em círculo, no chão. Havia apenas um exemplar do livro, assim, a leitura foi
feita pausadamente, página a página, mostrando as ilustrações às crianças.
Primeiramente, foi feita uma leitura sem intervenção, nem dos alunos com perguntas,
nem da professora com explicações, a fim de que tivessem o primeiro contato com a
obra, ouvindo o texto e observando as imagens. Como o livro não é longo, pôde-se, logo
após, realizar uma segunda leitura, agora com paradas para questionar os alunos sobre
os possíveis sentidos construídos e as relações intertextuais que estabeleceram.
Nesse processo, as estratégias de leitura selecionadas, apresentadas por Souza
(2019), foram: conhecimento prévio, conexões e inferências. O conhecimento prévio diz
respeito às informações que temos acerca do mundo em relação àquilo que estamos
lendo. As conexões ocorrem entre texto e texto, texto e leitor e texto e mundo. As
inferências são usadas quando o leitor compreende o que está nas entrelinhas por meio
de pistas que o texto fornece. O quadro a seguir apresenta como essas estratégias
foram exploradas.

Quadro 1: Estratégias de leitura para a leitura mediada de Abrindo Caminho


Estratégia Leitura mediada: perguntas realizadas pela professora (P) e
respostas dadas pelos alunos (A)
Conhecimento Em cada página do livro, a professora questionava os alunos, de
prévio modo a ativar o conhecimento de mundo necessário à compreensão
do texto, especialmente para que as crianças estabelecessem
relações intertextuais. Alguns exemplos:
P - Quem pode ser Dante? O que ele tem nas mãos? Onde ele está?
Quem são as demais personagens que aparecem na cena?
A1: Eu não conheço nenhum Dante, mas pode ser um escritor,
porque ele tem um livro e uma pena na mão.
A2: Ele está numa floresta.
A3: Tem diabo, anjo, leão, lobo e pessoas.
P: Muito bem, vocês conhecem algum escritor com o nome Dante?
A: (Nenhum aluno conhecia).
P: Já ouviram falar em Dante Alighieri?

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A4: Ah, agora lembrei. Eu fui com meus pais para Itália e visitei a
casa dele.
P: Que ótimo, então conte aos colegas sobre o que você lembra.
A4: Lembro que ele foi bem famoso e escreveu um livro famoso
também.
P: Isso mesmo, ele escreveu um poema chamado Divina Comédia.
A5: Meu pai tem esse livro em casa. Na verdade, é uma caixa com
três livros.
P: Ótimo, então você poderia trazê-lo para mostrar para os colegas?
A5: Vou ver com meu pai.
P: Então, esse poema é dividido em três partes, como a colega disse:
O inferno, O purgatório e O paraíso. Vamos voltar à ilustração do
livro. Que relação isso pode ter com as imagens?
A6: Tem o diabo do inferno e tem o anjo no paraíso? O que é
purgatório?
P: (A professora seguiu com as explicações).
Conexões Como muitas das páginas da obra inicia-se com a expressão “No
meio do caminho”, que faz alusão ao famoso poema de Carlos
Drummond de Andrade, a professora explorou a conexão texto-texto
para que os alunos relacionassem trechos da obra com outros textos,
embora se tratasse de escritores não conhecidos das crianças.
Desse modo, foi preciso levar para a sala de aula e ler para os alunos
o poema “No meio do caminho”.
P: E agora, quem pode ser Carlos? Diz que no meio do caminho dele
tinha uma pedra.
A7: Pode ser outro escritor porque na mão dele também tem lápis e
papel, como o Dante.
P: Isso mesmo. E alguém conhece um escritor chamado Carlos?
A: (Ninguém conhecia).
P: Já ouviram falar em Carlos Drummond de Andrade?
A: (Vários alunos ergueram as mãos).
P: (A professora falou um pouco sobre o poeta, leu o poema “No
meio do caminho” e explorou os sentidos que “uma pedra no meio
do caminho” poderia significar).
A2: Uma pedra é um problema, né, porque pode tropeçar.
A8: Pode ser uma dificuldade.
P: (Essa estratégia também foi usada para a leitura da página que
diz: “No meio do caminho de Tom tinha um rio”. Aqui, as crianças
disseram que Tom poderia ser um cantor porque carregava um
violão. Outras crianças mencionaram Tom Jobim e afirmaram
conhecer a música Garota de Ipanema, quando a professora cantou
um trecho).
P: E nessa página: “Era pau, era pedra. Era o fim do caminho?” quem
aparece?
A9: As sombras dos personagens de antes, do Dante, do Carlos e
do Tom.
P: E vocês acham que era o fim do caminho para eles?
A: (Seguiram várias opiniões. Um aluno disse que não era o fim do
caminho porque já sabia que eles ficaram famosos, então não
pararam por ali).

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P: (A professora questionou se alguém conhecia o verso que
aparecia nessa página. Nenhum dos alunos reconheceu. Então, ela
sugeriu que a letra da música Águas de março fosse o poema que
deveria ser estudado para o próximo mês.
Inferências Essa estratégia foi explorada nas atividades escritas realizadas após
a leitura do livro, como por exemplo, na observação da página em
que está escrito: “No meio do caminho de Tom tinha um rio”:
1- Descreva a paisagem para qual Tom está olhando. Você acha que
é uma paisagem brasileira? Por quê?
2- Você já ouviu falar de Tom Jobim? O que você sabe sobre ele?
3- Leia, a seguir, a biografia de Tom Jobim e responda:
Agora que você já conhece um pouco mais sobre a vida desse
compositor e cantor, que sentido você pode atribuir ao trecho “No
meio do caminho de Tom tinha um rio”?
4- Observe a página em que está escrito: “No meio do caminho de
Cris tinha um oceano” e responda:
a) Quem pode ser a personagem Cris? Que elementos do texto
verbal e do não verbal você considerou para chegar a essa
conclusão?
b) Os animais que estão no mar são peixes comuns? O que eles
parecem? Por que você considera que eles foram representados
assim?
Observação: Na disciplina de História, no 4º ano, os alunos estudam
as grandes navegações, assim, eles elaboraram uma série de
hipóteses em relação a essa página da obra.

Fonte: As próprias autoras, 2020.

A partir dessa abordagem, foi possível realizar, além de atividades antes e


durante a leitura, uma sequência didática para o trabalho após a leitura, que durou
praticamente um mês. Nessa sequência, além da obra, sempre retomada, houve prática
de leitura, análise linguística e produção textual de outros gêneros textuais: leitura e
análise linguística da biografia de Tom Jobim e de um texto expositivo-informativo sobre
Marco Polo e produção escrita de uma biografia de Carlos Drummond de Andrade, com
base em pesquisas sobre a vida dele. Além disso, as professoras leram para os alunos
Poema de sete faces, de Drummond. Os alunos ficaram curiosos quanto à expressão
“ser gauche na vida”, que foi explorada pelas professoras. Como resultado desse
trabalho, foi produzido um texto coletivo, declamado, dramatizado e apresentado pelos
alunos às demais classes dos anos iniciais.

No meio do caminho de Dante


Tinha uma selva escura e perigosa
No meio do caminho de Carlos
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho

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Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
No meio do caminho de Tom
Tinha um rio
O rio espera o barco
O barco espera o pescador
O pescador espera o peixe
A mulher espera a saudade passar
O caminho espera seus pés, meus pés, os pés de quem quiser
O caminho não escolhe os pés
Mas os pés escolhem o caminho
É pau, é pedra, é o fim do caminho?
Ah, como foi Divina a Comédia de Dante
Encontrar Beatriz no Paraíso
Ah, como foi vasto o coração de Carlos
Que escolheu ser gauche na vida
Ah, como foi doce o caminho de Tom
Que com Vinicius se encontrou
E com seu canto nos chamou
E nenhum de nós
nunca mais
sozinho ficou
São as águas de março fechando o verão
É promessa de vida no teu coração.

Considerações Finais
A leitura mediada da obra Abrindo Caminho, de Ana Maria Machado, com base
em estratégias de compreensão leitora, foi uma experiência significativa porque
apresentou possibilidades para o letramento literário dos alunos-leitores e evidenciou a
postura do professor como agente de letramento, indispensável à formação leitora.
O texto literário não traz em si significados prontos, determinados pelo autor da
obra, mas possibilita o desencadeamento de processos cognitivos que permitem ao
leitor estabelecer relações com os conhecimentos prévios, preencher os vazios do texto,
ampliar a visão de mundo e, a partir disso, atribuir sentido àquilo que lê.
Contudo, esse processo não é intuitivo; deve ser ensinado pela escola, na figura
do professor mediador, que aplica estratégias de modo a auxiliar o aprendiz em uma
ação cooperativa, visando a sua autonomia, para que precise cada vez menos de
mediação.
A leitura mediada mostrou-se como um exercício gratificante, que colaborou para
a transformação do leitor principiante em leitor ativo. Por meio da leitura compartilhada,
os alunos sentiram-se mais à vontade para dar opiniões, formular hipóteses, responder
aos questionamentos, arriscar interpretações. Ademais, compartilharam aprendizagens,
em um ato dialógico e colaborativo, ampliando sua capacidade leitora e seu
conhecimento de mundo.
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Referências
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BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3 ed. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São
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BARROS, D. L. P de. Teoria semiótica do texto. 5 ed. São Paulo: Ática, 2011.

BARROS, D. L. P. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: BARROS, Diana L. P.;


FIORIN, José L. Dialogismo, polifonia e intertextualidade: em torno de Bakhtin (orgs.). 2
ed. 1 reimp. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.

BRAIT, B. As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso. In: BARROS, Diana L. P.;


FIORIN, José L. Dialogismo, polifonia e intertextualidade: em torno de Bakhtin (orgs.). 2
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CAMARGO, L. Para que serve um livro com ilustrações? In: JACOBY, S. (org). A criança
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FITTIPALDI, C. O que é uma imagem narrativa? In: OLIVEIRA, I. de. (org.) O que é
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Paulo: DCL, 2008.
FREITAS, V. A. de L. Mediação: estratégia facilitadora da compreensão leitora. In:
BORTONI-RICARDO, S. M. (orgs.) [et al.]. Leitura e mediação pedagógica. São Paulo:
Parábola, 2012.

KOCH, I. G. V. O texto e a construção de sentidos. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2011.

LINDEN, S. V. der. Para ler o livro ilustrado. Tradução de Dorothée de Bruchard. São
Paulo: Cosac Naify, 2011.

MACHADO, A. M. Abrindo caminho. Ilustrações de Elisabeth Teixeira. São Paulo: Ática,


2004.

SANTISTEBAN, P.; BOLOGNA, E. Coleção Música em Família: um para o outro.


Ilustrações de Hernani Rocha Alves; patchwork de Estela Cassilatti. São Paulo: Música
em Família, 2017.

SOUZA, R. J. de. Ler e ensinar: estratégias de leitura. Tubarão, SC: Copiart, 2019.

TÉBAR, L. O perfil do professor mediador: a pedagogia da mediação. Tradução de


Priscila Pereira Mota. São Paulo: Senac, 2011.

TERRA, E. Práticas de leitura e escrita. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo


Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA: EXPLORAÇÃO DO ESPAÇO E
SENTIMENTO DA CULPA NO MATADOR (2008)95

Erika Juliet Carvajal Hernández, Universidade Federal de Integração Latino-


Americana, CAPES

Eixo Temático: Literatura infantil e as relações com a imagem

Introducción
Las flexiones propuestas aquí manifiestan el interés de dialogar con los
presupuestos de orden filosófico y hermenéutico en relación a los procesos internos de
la falta y su correlación con la posibilidad del perdón, a través de la experiencia de
lectura de la obra, clasificada como Literatura Infantil Matador (2008), escrita por
Wander Piroli e ilustrada por Odilon Moraes. Para ello, el texto desarrolla en cinco
segmentos de exposición la reflexión en cuestión. En un primer apartado denominado
En palabras propias se manifiesta el sentido de la selección del tono de voz dispuesto
en el texto que propende incentivar un diálogo desde otra relación, que trastoque la
relación lector-comunicador a un campo de la construcción mutua, a propósito de las
reflexiones suscitadas en la lectura sobre la memoria y el sentido del símismo.
En seguida, bajo el título Memoria punzante se propone el abordaje de la obra,
presentando su entramado narrativo y un contexto biográfico de la trayectoria de los
autores. Así mismo, desde una perspectiva de análisis narratológico orientado por los
estudios de la profesora en estudios literarios Mieke Bal (2009), presento una
interpretación en atención a la lógica de narración en Matador que coincide con su
clasificación del texto con el esquema de tipo Castigo (postulados del lingüista Claude
Bremond,1970). Lo anterior como marco de argumento literario de interpretación sobre
los recursos narrativos que expresan el uso de la memoria y su impresión concreta,

95
El presente estudio está vinculado a la disertación en curso “Wander Piroli: Mediaciones del
espacio de la memoria y la escrita de sí mismo” en orientación del profesor Emerson Pereti, para
optar al título de magíster en Literatura Comparada en la Universidad Federal de Integración
Latino-Americana. UNILA.
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hallazgos orientados por la intelectual Aleida Assman (2000) a propósito de la marcación
del cuerpo. En un tercer segmento correspondiente a Memoria afectiva, estos elementos
son tratados con mayor profundidad y sirven como marco para reconocer como el relato
literario puede ilustrar el mecanismo y las características de uno de los estabilizadores
materiales de la memoria: el afecto.
Acto seguido en un cuarto apartado denominado Perdón Íntimo, trazo un punto
de partida de lo que me dio qué pensar Matador en términos filosóficos. para dialogar
con los postulados de Paul Ricœur al respecto del perdón como posibilidad del hombre
capaz y su correlación con la presencia imposible de olvidar de la falta cometida.
Aspecto que, en un quinto capítulo, a manera de epíteto inicia una interpretación del
perdón, a partir de la separación del agente causante del crimen y del acto en sí,
posibilidad que se puede interpretar a partir de la obra Matador (2008).

En palabras propias
“una lengua con alguien adentro”
Jorge Larrosa

Provocar una relación entre la filosofía y la literatura es volcar la mirada a lo


fundamental: leemos, escribimos (hablamos) para pensar. Cuando exponemos lo que
pensamos creamos un código y una relación particular con el receptor, esa selección
del código para decir qué es lo que pensamos, pasa también por un cómo lo decimos.
Al respecto, Jorge Larrosa reconoce que hay en las redes de la comunicación científica
un hábito de des-personalización en aras de una objetividad ficcional. En reacción,
LARROSA (2008) insiste en una lengua que una el escritor y el lector de otras maneras.
Un vínculo que traspase la emisión automática de información, para procurar una lengua
de la intimidad, que encare el lector como sujeto, se instigue a la búsqueda de un
lenguaje propio, que invite a escuchar la voz escrita. Para LARROSA es necesario un
autor que escuche “el eco de las palabras dentro de sí mismo” y un lector que “afine su
oído lingüístico”. Ese carácter conversacional, concluye el autor, lograría una
experiencia distinta del mensaje, nos situaría en una relación con el mundo a partir del
interior, derrumbaría realidades legítimas para compartir incertidumbres o cautelas con
las que transitamos en nuestro pensamiento (LARROSA, 2008, p. 59-64).
Es en ese sentido singular que acentúo el abordaje de la obra literaria, en un
diálogo que dé cuenta de las sensibilidades suscitadas en mi experiencia de lectura y la
posibilidad de un marco filosófico de reflexión académica. Matador (2008) es esa clase
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de relatos que perdura en un tiempo interno, su disposición narrativa es consciente del
lector implícito. Al principio uno se ve llamado a escuchar un recuerdo narrado en
primera persona que conduce la atención a la espera de un acontecer. Empero, la
entrega no es la consumación, sino el nudo del relato, uno que vincula el personaje
ficcional conmigo en una suerte de proyección. A partir de ese punto, la perspectiva de
lectura cambia, soy yo -la lectora-, quien introspectivamente continúo alargando el
relato. Me veo llamada a hablar (pensar) sobre la experiencia, ahora, compartida. La
empatía lograda en la recepción estética es una característica del texto literario, que
trasciende del espacio cultural, el idioma, las circunstancias concretas, para explorar la
condición humana universal. Matador logra, como dice el poeta, de una manera tierna y
a la vez implacable desahuciar 96la inocencia, encarar al lector consigo mismo y sus
actos. La memoria aparece como vehículo para transitar las marcas de lo que nos
constituye como sujetos. Las reflexiones a explorar desde el campo de la filosofía
rondan la configuración del sí mismo o el mirar interior, y su relación con la construcción
de una memoria de las faltas en la construcción del sujeto, que puede trascender o no,
al perdón propio.

La memoria punzante
“Cómo se cria uma memória para o animal humano?
[...]Marca-se a fogo, e com isso alguma coisa ficará na memória;
só o que não termina, o que dói, fica na memória"
Friedrich Nietzsche

Wander Piroli, murió en el 2006 por un ataque al corazón. Las instituciones


encargadas de la preservación de la memoria colectiva estimularon acciones recientes
para inscribir su existencia en historia de la literatura brasileña. Entre ellas, la colección
documental y literaria de su trayectoria en la Biblioteca Central de la Universidad Federal
de Minas Gerais, el cual lleva su nombre; y, la publicación por parte de Conceito Editorial
de un perfil biográfico titulado por Fabricio Marques como, “Wander Piroli: uma manada
de bufalos dentro do peito” (2018). En esta última narra el autor para una entrevista con
motivo del lanzamiento, que en el estilo narrativo de Piroli “prima la concessão e raiz da
palavra [...] la pretensão dele foi chegar ao o texto só com sujeito, verbo e predicado,
nada mais, sem nenhuma gordura, sem nenhum excesso” (MARQUES, 2018).Dicha
afirmación cobra sentido en Matador (2008), obra publicada dos años después de su

96
En referencia al poema “La culpa es de uno” Mario Benedetti, 1984
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fallecimiento, un libro-álbum clasificado como Literatura Infantil y Juvenil, que en
cuarenta y cinco oraciones gramaticales distribuídas en veintiocho hojas ilustradas con
detalle por Odilon Moraes logran, con un “áspero lirismo”97, ahondar en asuntos
trascendentales de la configuración de la experiencia humana.
Wander Piroli, transitó esa clasificación literaria con cautela, en un aparente
desinterés por sus implicaciones. Para el tiempo en que se encontraba vivo, su narrativa
fue visionaria, polémica algunas veces, censuradas otras tantas, pero constantemente
punto de resonancia. Una obra que en el título ya transforma el abordaje de esa literatura
adjetivada, interroga la memoria personal de infancia, desestabiliza el discurso de
sacralización de la naturaleza del niño, humaniza su existencia, atribuye experiencias
propias. En una entrevista radial el escritor menciona en referencia a la literatura infantil,
“acontece que os meninos existem também” (PIROLI, 1968). El punto de partida de su
escritura dialoga con una experiencia de la realidad, narrar historias que no se traslapan
en la invención de mundos fantásticos, por el contrario, se centran en la crónica del
cotidiano de la existencia. En ese sentido, el acto de narrar estaría atravesado por la
memoria de la experiencia de ser niño. Desde esta perspectiva, en la escritura para la
infancia, hay una pregunta por la manera en como recordamos éramos y sentíamos para
dialogar con la conciencia de una memoria infantil.
El relato se podría resumir en un recuerdo de la infancia, en el cual el agente
narrador aparece en primera persona y se desplaza a través de las acciones del
personaje principal, un niño que quería matar un gorrión con su resortera, como los
demás compañeros lo hacían, pero no lo lograba, con frustración lo intentó repetidas
veces, hasta que un día por fin, desgraciadamente, atinó. La secuencia narrativa finaliza
en tiempo presente continuo que, a través lenguaje figurativo, devuelve la vida al pájaro,
un mecanismo de representación de la latencia del acto, logrando a través de recurso
literario de la metáfora, enfatizar la prolongación del hecho en un tiempo interior.
Con el interés de analizar la narración de la obra, logré percibir aspectos del
relato en el sentido que explica el lingüista, Claude Bremond sobre las estructuras de
los posibles narrativos, encontré que el relato coincide con el arquetipo de la eliminación
del adversario. En el cual, explica Bremond, el agente debe traspasar obstáculos para

97
La Secretaria de Estado de Cultura de Mina Gerais para el año 2011 publicó en su primer
suplemento literario una edición especial en homenaje al escritor minero, la cual titularon “Ó
áspero lirismo de Wander Piroli”, el título se sugiere como alegoría a su estilo personal de
escritura.
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lograr un cometido, y la manera de lograrlo es la eliminación del adversario: “Sólo vi
cuando el gorrión rodó tejado abajo y cayó del otro lado” (Piroli, 2008 p.24). Dado que
la historia no termina allí, en el relato se crea nuevamente un proceso de degradación,
evidente en la sentencia “Pero hubo un problema: el gorrión estaba vivo.” (Ibídem p.24),
consiguiendo un estado de tensión, fuerzas de oposición que dejan en suspenso el
relato: “Y no pio más. Quiero decir, pío, sí. Y sigue piando dentro de mí, hasta hoy”
(Ibídem p.28). La memoria del acto podría identificarse con la acción que Bremond
refiere como castigo, en el cual “Todo daño infligido puede volverse, desde la
perspectiva de un retribuidor, una mala acción, un delito a castigar. Desde la perspectiva
del enjuiciado, el retribuidor es un agresor y la acción punitiva que inicia, una amenaza
de degradación.” (BREMOND, 1966, p 107).
El relato, inscrito en la lógica estructural que advierte Bremond (1966) sobre el
esquema del castigo, aparece con mayor claridad en el salto temporal: un pasado aliado
a la infancia y un presente relacionado a la adultez, evidente en el cambio irruptivo de
la conjugación de los verbos en la oración “no pio más. Quiero decir, pío, sí. Y sigue
piando dentro de mí, hasta hoy.” (Piroli, 2008, p 28). El resumen del tiempo transcurrido
entre estos dos puntos, como desenlace del relato, es una construcción elíptica, en la
cual “el acontecimiento sobre el que nada se ha dicho puede ser tan doloroso que esa
sea precisamente la razón de que se elida” (BAL,2008, p 79). La omisión de la transición
de la infancia a la adultez, se reveló, por un lado, como símbolo del sentimiento de culpa
y en su revés, como la pérdida de la inocencia: un punto de dolor irremediable, sin vuelta
atrás. Esa imposibilidad de ser subsanado marca una pérdida, la omisión de la muerte
es una latencia del acto doloroso.
Pero ¿Qué tipo de castigo asume el personaje? El discurso del hombre adulto,
que recuerda un acontecimiento doloroso de su niñez, emerge con un carácter
testimonial, es decir, un principio de sanación en el acto de confesar. ASSMAN (2011)
demuestra que la represión de experiencias acaecidas en la infancia, pueden detonar
en la vida adulta y concretarse en una marca corporal, así mismo explica cómo la
remembranza de un vestigio de esa memoria impedida, inconsciente, puede ayudar a
una introspección sobre la raíz del síntoma habituado en el cuerpo. Estas marcas, -
precisa la autora- pueden ser “autênticas, persistente o prejucidiciais” y, es posible
rastrearlas a través de la memoria, ya que en allí quedan inscritas imborrables en el
inconsciente. Seguidamente, la autora expone cómo la literatura expresa las
operaciones psíquicas y exterioriza las tensiones internas del sujeto del acto de recordar
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en el acto de escribir. Para ejemplificar lo anterior, analiza unos diálogos de Hamlet en
los que concluye la autora, Shakespeare sitúa el corazón como la capa más profunda
en donde se hospeda la memoria, una metáfora de la impresión de la memoria en el
cuerpo; y, de la memoria misma, por el carácter del ser melancólico que retiene los
recuerdos como bienes preciados, inamovibles, siempre presentes. (ASSMAN, 2011, p
259-261).
La reflexión que la profesora en estudios literarios propone, tiene eco en mi
interpretación sobre el sentido de la memoria en Matador. El discurso narrativo
construido exterioriza la carga de una memoria castigada sobre sobre sí que reverbera
en el prevalecer del piar del pájaro dentro de su memoria. La narración con imágenes
logra matizar varios sentidos del relato, uno, la aparición incesante del muro (incluso
desde la portada, guardas y contraportada) que anticipa la relevancia del espacio como
lienzo en donde se inscriben cosas; dos, la secuencia de la sombra del niño y el pájaro
reflejado en el muro durante el clímax dramático del texto (la sombra de los personajes
se proyecta en el muro, luego la sombra del niño desaparece de escena y se inscribe
la marca de sangre en la pared, para finalmente, en la página ulterior aparece de nuevo
traspuesta sobre la sangre del pájaro en el muro -que intencionalmente-, encaja en el
lugar donde queda el corazón del niño y tiene forma de corazón.). Una secuencia visual
que, a través de la metáfora de un pájaro herido en el corazón, exterioriza en el corazón
un lugar en donde se inscribe la memoria.
Por otro lado, el efecto del arquetipo del castigo presente en el relato puede
relacionarse desde dos aspectos del texto. Uno en referencia a la denominación, puesto
que refleja un interés particular sobre el lenguaje, para la configuración subjetiva del
acto padecido. Si bien, podría llamarse “cazador” en alusión al pasatiempo infantil o,
“asesino” en referencia a la conciencia punitiva, no se expresa así. La selección del
nombre: “Matador”, enfatiza en la interiorización del acontecimiento, hay una reflexión
intencional en el verbo, en doble función: de sustantivo y adjetivo, insistiendo en la
resonancia interna del desenlace. Como también una sensibilidad sobre el sentido de
la memoria, en tanto que el relato expresa una afinidad con la experiencia interior del
tiempo y su latencia perenne, la representación del deseo de modificar o prevalecer la
memoria y los mecanismos que desarrollamos, como seres del lenguaje, para enfrentar
las pérdidas que sufrimos en nuestra condición vital. “Una de las más difíciles
transiciones que afronta el ser humano en desarrollo a la vida adulta son varias muertes

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que se tienen que sufrir, una de ellas es la inocencia”98, la obra podría actuar como una
alegoría a la transición que enfrentamos cuando crecemos.

Memoria afectiva
En el camino de reconocer la distinción entre remembranza y memoria, ASSMAN
(2011) cita en sus reflexiones los postulados de Friedrich Nietzsche respecto al lugar de
la memoria: el cuerpo, espacio en el que se marca, grava con dolor una impresión. Así
mismo menciona que para él, la memoria individual conduce a una voluntad de
conciencia moral que moviliza la discusión a una relación con el campo de las
instituciones de poder y violencia. Las cuales instauran un modo pautado de ser, puesto
que unen la responsabilidad con la moral. Advierte ASSMAN (2011), que para Nietzsche
no bastaba tampoco con el reconocimiento de la memoria como espacio de difícil acceso
y latente en la conciencia, sino además reconoce la presencia constante. Lo anterior,
expone la autora, traza una diferencia entre la memoria (presencia) y la remembranza,
(aleatoria y fluctuante) “não se pode recordar algo presente, o que se faz é corporificar
tal coisa” ASSMAN (2011p 263-265). De tal manera, el cuerpo padece la memoria, hay
una escritura sobre el cuerpo a manera de cicatriz.
En ese orden, ASSMAN (2011) introduce la emergencia de “estabilizadores
materiales de la memoria” (ibídem, p 267), mecanismos internos que la conservan del
olvido. La lengua natural, explica, es el dispositivo que por definición logra fijar de
manera más clara el recuerdo. En Matador, la falta de la lengua puede denotarse como
metáfora de un espacio interior en la sentencia “Yo iba guardando todo eso, una rabia
muda...” (Piroli,2008, p 8). La no verbalización de los sentimientos del personaje detenta
una saturación interna de palabras, un espacio interno congestionado de emociones no
expresadas, que en el desenlace se exteriorizan, convertidas no en palabras sino en el
acto desbordado de violencia “Hubo apenas un golpe sordo y el gorrión cayó
definitivamente, inerte” (Ibídem, p 27) una acción agresiva como consecuencia, de la no
verbalización de su frustración, logrando en la dimensión del espacio interior situar un
sentimiento impedido.
Además de la lengua, la autora describe tres estabilizadores de la memoria: el
afecto, el símbolo y el trauma. Respecto al primero señala como la afección que una
imagen o un acontecimiento impregnado en la memoria puede crear un sentido

98
Comentario de un profesor sobre la obra, preservado en registro sonoro.
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fidedigno del recuerdo. Éste no pasa por una verdad objetiva y sin embargo constituye
una memoria afectiva sobre sucesos personales, no necesita más comprobación que su
mismo relato. Manifiesta un carácter testimonial. En cuanto al símbolo, advierte que
aparece en diferenciación con el afecto porque el recuerdo “gana su fuerza y es
comprendida por su trabajo interpretativo retrospectivo en frente a la propia historia de
vida y situado en un contexto de una configuración en sentido particular”(ASSMAN,
2011, p.275) la importancia de la remembranza no es la verdad objetiva tal como sucede
en el mecanismo del afecto, no obstante la experiencia personal no es lo que constituye
el estabilizador de la memoria a través del símbolo, sino el espacio de representación.
Por último, el mecanismo relacionado al trauma corresponde a la “memoria no heróica”
(Íbidem, p 276) es decir aquella en que la víctima no encuentra referentes para
simbolizar su tragedia, una imposibilidad de narrar lo sucedido, lo que se busca a través
de este mecanismo es la pacificación de la memoria.
En Matador, la descripción referida a la memoria afectiva, expuesta pos
ASSMAN (2011) cobra sentido. Hay una exploración en el sentimiento de culpa,
representado en el desenlace del relato que actúa -como lo referí en anteriores
apartados- a un relato testimonial. El escritor Fabrício Marques menciona en una
entrevista, en referencia a Wander Piroli que “sua vida esteve misturada em sua
literatura” (Marques, 2008, p s/n). La fuerza emotiva del acontecimiento y su prevalencia
en la constitución de una subjetividad expresa una tensión psicológica que se interesa
en cómo se pensaba en ese cuerpo infantil que intentaba dignificar su existencia a través
de los rituales de una infancia rural. El acto de lanzar pedradas contra el pájaro es una
cuestión de domar el espacio natural (el cielo, el lugar desconocido, amenazador),
habitual en una relación primigenia del hombre con la naturaleza. Una idea instintiva de
poner orden y apropiarse del entorno.
En ese sentido el relato ocurre en un momento de transición, descubrimiento de
otra relación con el espacio psíquico íntimo que encara la mancha de sangre sobre el
muro como una marca de algo que dejó de ser. Es decir, reconocer en el cielo, la
naturaleza un lugar propio del pájaro, el cual fue expropiado por el niño de su espacio
vital y, en sí mismo como una marca de ruptura para abandonar la infancia. El
sentimiento de culpa construye una verdad sobre el hecho, narrado desde la perspectiva
emotiva, allí no hay una comprensión y subsanación del acto entendido en lógica
racional. “Eu fácilmente esqueço de mina desgraça, mas não posso esqueçer de meus
erros [...]sua lembraça, é tao cara para mim que jamais poderia desaparecer do meu
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coração” (ROSSEAU, VI p 274) El discurso del personaje está preso en una tensión
emotiva de la memoria personal. La culpa, consecuencia del acto, es lo que prevalece.

Perdón íntimo
“Quien no se ha platicado a sí mismo
no ha encontrado el interlocutor perfecto,
va con la boca ciega y con el ojo mudo”
Carla Faesler

De esta manera trazo un punto de partida de lo que me dió qué pensar Matador
en términos filosóficos. En esa recepción estética del mensaje, se iluminó un espacio
interior, un lugar donde nos escuchamos a nosotros mismos, aglutinamos lo que sea
eso que constituye nuestra subjetividad. En ese acto de mirar hacia adentro, la memoria
nos hace aparecer, desdoblados de sí, en una conciencia de lo padecido en nuestra
piel, allí se siente el tiempo que somos. Estas sensibilidades fueron fuente de
conversación con el pensamiento de Paul Ricœur para dialogar sobre la tradición del
pensamiento frente a dos aspectos, de un lado la interioridad y su imbricación con la
memoria personal para aparecer, un espacio de sí mismo y por otro, el perdón y su
inseparabilidad del sentimiento de culpa (o falta).
Matador (2008) puede interpretarse como un testimonio en el sentido que
explicaba la profesora Aleida Assman, en relación a la memoria afectiva. Es decir,
explora en una memoria intimista el sentimiento de la culpa por un acto irreversible. El
orden del discurso es de carácter confesional con esto no me refiero al sentido religioso
en que se le ha encasillado el concepto sino al acto introspectivo de admitir una falta,
una pérdida de posibilidad de subsanar. El relato representa de manera escrita y
pictórica, una condición humana sobre la conciencia moral de nuestros actos. El
narrador relata, pero este continúa zumbando; suele suceder, sobretodo en prólogos y
reseñas de literatura infantil, que las editoriales explican el chiste, tornan didáctico el
sentido, muestran el camino más corto, esto ocurre en la contraportada del libro, en
donde se inscribe la siguiente sentencia “La vergüenza de confesar el primer error nos
lleva a muchos otros. La Fontaine”. Pero sin duda la potencia de resonancia que por sí
solo tiene el libro hace ruido en el interior. El relato intencionalmente cierra con la herida
marcada en la memoria, expuesta, adolorida, lo que sigue es reflexión, en un sentido de
actitud filosófica sobre el símismo y “los elementos de posibilidad para...” en que se
proyecta el hombre cuando se reconoce un animal racional. Una de estas posibilidades
es el perdón. Para el caso de Matador -si se me permite en términos figurativos- la
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posibilidad de escuchar, sin perturbación, el piar de pájaro de la memoria dentro de sí
mismo. Es decir, apaciguar la memoria.
Paul Ricœur, en la obra “La Memoria, la Historia, el Olvido” (2000), recorre con
una actitud filosófica un diálogo interdisciplinar con la fenomenología, la neurociencia,
la historia, la psicología, entre otros campos de conocimiento para reflexionar sobre la
representación del pasado, en un último capítulo a manera de epílogo extiende una
reflexión sobre el sentimiento de la culpa, su interrelación con el problema del símismo
y la configuración del perdón como posibilidad. El ejercicio de escritura en Matador
(2008), podría interpretarse como una confesión de una memoria dolorosa. Partir este
hecho es concebir, en el acto de recordar la emergencia del hombre capaz de
perdonarse así mismo. Para referirse a ese doble ejercicio de encontrar un culpable y
anunciar un perdón, en palabras del autor “no puede haber perdón a no ser que se
pueda acusar a alguien, presumido o declarado culpable” (RICŒUR, 2011, 588)
Cuando la falta es efectuada por otro, para quien recibe la ofensa el perdón es
una posibilidad de restaurar lazos de afecto, sostener una relación de diálogo, es decir
continuar un marco de normalidad vital. No obstante, cuando el perdón es a sí mismo
se está en doble función de víctima y victimario, se configura como un paso de
transformación interior que encarar el sentimiento de culpa como algo irreparable que
tiene como finalidad apaciguar la memoria, presente en su devenir. RICŒUR (2011)
explica que la relación entre la falta y el perdón no es proporcional, siempre la falta será
un asunto irreparable, imposible de subsanar. En el caso de Matador (2008) el personaje
expresa esta condición al referir que la muerte del pájaro a causa suya, será una marca
que siempre quedará en su memoria y por ende lo ha acompañado hasta el punto
presente del narrador.
Al respecto el autor explica que “esas ¨situaciones límite (Karl Jaspers) en los
que se injerta el pensamiento reflexivo. Se pone así al descubierto el lugar de la
acusación moral -la imputabilidad, ese lugar en que el agente se vincula con la acción y
se reconoce responsable de ella” (RICŒUR, 2000, p 585) la separación del agente
causante y de la acción dolorosa recibida se torna un ejercicio de capacidad interna y
su posibilidad de proyectarse en lo que el autor denomina como una antropología del
hombre capaz. Advierte que el perdón es un camino difícil que no cambiaría el hecho
acontecido, ni tendría un efecto positivo en el exterior, como por ejemplo que otros dejen
de hacerlo, ni actúa como compensación del daño causado, pero sí tendría una
repercusión en quien padece la memoria. señala además que el proceso de perdón, no
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es posible por medio de la institucionalidad, es un ejercicio íntimo que tiene que
experimentarse como individuo.
Asumir la culpabilidad moral en el acto de confesar, es escoger por sí mismo la
decisión sobre los actos, ser responsable de la falta. Enfrentar la consecuencia del dolor
irremediable causado a otro, en el caso de Matador es reconocer en el pájaro una
conciencia de su singularidad y un ser viviente plausible de experimentar dolor, angustia
de morir, “agonizando, con su pequeño corazón de gorrión latiendo tras las plumas
erizadas”. (PIROLI, 2008, p26) reconocer en él un instinto de vida por el cual intentó
repetitivamente escapar y vivir. Lograr una conciencia de ello, es lo que RICŒUR (2008)
llama imputabilidad, “es esa capacidad, esa aptitud, en virtud de la cual ciertas acciones
pueden demandarse a alguien” RICŒUR (2008, p 598), entender que lo que hizo estuvo
mal. El ejercicio de rememoración del hecho, que se logra expresar en la narrativa de
Matador, representa la acción creadora de confesar, atestiguar el acto, sin embardo
esta representación no implica una introspección, “La reflexión en cambio reconduce al
centro de la memoria del sí mismo que es el lugar de la afección constitutiva del
sentimiento de falta” (Ibídem, p 590) el camino de la conciencia pasa por una
recordación del acto pero es en la memoria reflexiva en donde logra cristalizarse una
imputabilidad, en una fractura de la integridad del agente que vincula la falta con el mal
moral.
El autor advierte que, en la ecuación del perdón, la falta nunca desaparece “se
puede mostrar comprensión con el criminal, no absolverlo. La falta es por naturaleza
misma imperdonable” (RICŒUR 2008, p 597). Lo anterior tiene sentido en la obra como
expresión de estas reflexiones en tanto que el título de la obra sea matador, actuando
como una recordación del acto, una manera de llevar la memoria punzante sobre sí.
Siguiendo la reflexión RICŒUR, reconoce unas tipologías de culpabilidad a saber
criminal o imprescindible, política y, la más cercana a la experiencia en Matador la cual
denomina culpabilidad moral, ella a diferencia de las dos anteriores, no compete un
proceso institucional, corresponde a la voluntad del mal, una responsabilidad individual.
Cuando el personaje de Matador realiza el crimen no hay testigos, “Quería que todos lo
vieran. Que todo el mundo supiera que yo había matado un maldito gorrión. No había
nadie en la calle” (PIROLI, 2008, p23), la acusación viene de sí mismo ¿cómo se puede
vivir con una memoria propia culpable? ¿cómo opera el perdón cuando se es a sí
mismo?

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Yo, la que fui, me perdono
“eres cuna, todavía”
En Matador, hay una motivación literaria direccionado por un “agente narrativo”.
El yo narrador se desplaza en la identidad del personaje, dado que el relato está
construído en primera persona. Se manifiesta un narrador que habla sobre sí mismo. La
intención narrativa en esta técnica “cuenta hechos verídicos sobre sí mismo. Puede
fingir estar escribiendo su autobiografía” (BAAL,2008, p128) esta condición, para el la
reflexión sobre el acto de perdonarse construye una separación simbólica entre el niño
que se fue, y el adulto que recuerda un crimen realizado en la infancia, al dislocar estos
dos tiempos de conciencia en el sujeto se puede considerar que hay una posibilidad de
“Desligar el agente de su acto” es decir, el yo infantil que cual adquirió una pérdida, una
falta irreparable, es consciente en su adultez de la culpabilidad moral, el tiempo que
transcurre marca un cambio en el sujeto un desprendimiento del que se fue. RICŒUR
(2000), señala que “esta disociación expresa un acto de fe, un crédito otorgado a los
recursos de regeneración del sí” (RICŒUR,2000, p628), en ese sentido el perdón es un
acto excepcional, es una posibilidad del hombre capaz de aliviar, en una memoria feliz,
para el agente comenzar de nuevo.

Referencias
ASSMAN, Aleida. IV.CORPO: ESCRITURA DO CORPO. In: ASSMAN, Aleida. Espaços
da recordação: Formas e transformações da memória cultural. Pelotas: Unicamp, 2000.
p. 259-283. Traducción: William Haack.

BAL, Mieke. TEORÍA DE LA NARRATIVA: (Una introducción a la narratología). 8. ed.


Madrid: Catedra. Crítica y Estudios Literarios, 2009. Traducción de Javier Franco.

BREMOND, Claude. LA LÓGICA DE LOS POSIBLES NARRATIVOS. In: Introducción


al análisis estructural. Argentina: Editorial Tiempo Contemporáneo, 1970. Traducción
directa del francés: BEATRIZ DORRIOTS.

LARROSA, Jorge. UNA LENGUA PARA LA CONVERSACIÓN. In: LARROSA, Jorge.


Agamenón y su porquero. Colombia: Asolectura, 2008. p. 59-84. (4).

PIROLI, Wander; MORAES, Odilon. MATADOR. Bogotá: Babel Libros, 2017.


Traducción: Beatriz Peña Trujillo.

PIROLI, Wander; Entrevista. Ardilhes MOREIRA, Livro Falado #8: 'O MENINO E O
PINTO DO MENINO', DE WANDER PIROLI. 2019. Disponível em:
<https://g1.globo.com/podcast/livro-falado/noticia/2019/07/14/livro-falado-8-o-menino-
e-o-pinto-do-menino-de-wander piroli.ghtml>. Acesso em: 19 ago. 2019.

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
RICŒUR, Paul. EL PERDÓN DIFÍCIL. In: RICŒUR, Paul. La Memoria, la Historia, el
Olvido. México: Fondo de Cultura Económica, 2000. p. 583-640. Traducción: Agustín
Neira.

SANTOS, Flávia Batista da Silva. CONVERSA DE ESCRITOR: A AUTOIMAGEM DE


WANDER PIROLI. Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, [s.l.], v. 4, n. 7, p.37-
37, 30 jun. 2012. Programa de Pos-Graduacao em Letras Vernaculas - PPGLEV.
http://dx.doi.org/10.35520/flbc.2012.v4n7a17189.

#WANDER Pirolli- UMA MANADA DE BÚFALOS DENTRO DO PEITO [Entrevista


Fabrício Marques]. Minas Gerais: Daniella Zupo, 2018. (14:11 min.), On-Line, son.,
color. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WCuCd8XleBY>. Acesso
em: 14 ago. 2019.

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TEXTO, IMAGEM E NOSTALGIA: A FENOMENOLOGIA DA
PAISAGEM EM A CASA DO MEU AVÔ, DE SOLANGE ADÃO

Sandra Fonseca Pinto (PPGL UPF-Passo Fundo/RS - UNIEDU)


sandrafonsecalit@gmail.com
Carlete Maria Thomé (PPGL UPF-Passo Fundo/RS - UNIEDU)
carlete_sc@hotmail.com

Eixo Temático: Eixo 5 – Literatura infantil e as relações com a imagem

Considerações iniciais

Considerando que novas abordagens sobre a ação do indivíduo no seu espaço


físico fizeram com que a paisagem passasse a integrar parte importante da escrita e
análise literária, abrem-se perspectivas de diálogos interdisciplinares sobre a paisagem
e outras áreas do conhecimento. Ao longo do tempo, os estudos sobre ambiente
econômico, social e cultural passaram a fazer parte de uma geografia humana, que
considera o ambiente como parte constituinte do sujeito. Nesse sentido, a literatura, em
suas múltiplas linguagens, faz com que texto e imagem sejam percebidos de maneira
diferente pelo leitor, que transcende o livro e experimencia uma percepção
fenomenológica nas paisagens das histórias lidas.
Nesse sentido, esta investigação pretende abordar o conceito de fenomenologia
da paisagem, de Michel Collot, bem como o conceito de nostalgia, principalmente, de
Jankélévitch e Starobinski. Mas antes, esta pesquisa apresentará autores da teoria
literária infantil, com ênfase no livro ilustrado, linguagem verbal e não verbal, e a relação
entre texto e imagem, apontamentos importantes para embasar a análise proposta.
O corpus de análise escolhido é o livro de literatura infantil intitulado A casa do
meu avô, da escritora catarinense Solange Abrão, reconhecida pela contribuição na
defesa e promoção da cultura afro-brasileira, que está presente, também, nessa obra.
O livro é ilustrado por Bruno Barbi, de nacionalidade francesa, radicado em
Florianópolis, SC.

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Os resultados da análise apontam para um narrador personagem nostálgico, que
expressa essa nostalgia ao descrever a casa de seu avô, com todos os eventos, gentes,
cores, cheiros e sabores, que constituem as paisagens presentes na obra.

As imagens na literatura infantil – Ilustrações

Quando se fala em letramento literário, a literatura possui um lugar único, que a


destaca de outros tipos de letramento, uma vez que ela contribui para “[...] tornar o
mundo compreensível transformando a sua materialidade em palavras de cores, odores,
sabores e formas intensamente humanas”, que fazem da literatura uma experiência a
ser realizada, pois ela tem o poder de se “metamorfosear” nas inúmeras possibilidades
de formas discursivas (COSSON, 2012, p. 17).
No que diz respeito à literatura infantil brasileira, Hunt (2010) corrobora a ideia
de Cosson ao afirmar que cada obra literária abre ao leitor um leque de possibilidades
de sentido e interpretação, por meio de diversos tipos de análise e enfatiza que, em
termos históricos, por ter pouco mais de um século, ainda apresenta discurso teórico,
crítico e historiográfico ainda muito recente. Portanto, é necessário que se compreenda
“a análise literária (...) como um processo de comunicação, uma leitura que demanda
respostas do leitor, que o convida a penetrar na obra de diferentes maneiras, a explorá-
la sob os mais variados aspectos” (COSSON, 2012, p. 29).
Esse processo é facilitado com o livro de literatura infantil ilustrado, pois,
conforme Barthes (2013):

A narrativa pode ser sustentada pela linguagem estruturada, oral ou


escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura
ordenada de todas estas substâncias; está presente no mito, na lenda,
na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no
drama, na comédia, na pantomima, na pintura [...], no vitral, no cinema,
nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação.
(BARTHES, 2013, p. 19).

Dessa maneira, é preciso valorizar todos os elementos, verbais e não verbais,


do livro infantil, como texto e ilustrações. De acordo com Salisbury e Morag (2013), o
livro ilustrado é uma verdadeira criação híbrida da arte e da literatura, uma vez que
existem dois eixos narrativos, em uma indissolúvel e perfeita união entre texto e
imagens, de modo que a leitura seria prejudicada se faltasse um desses dois elementos,
inviabilizando a leitura integral do texto.

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Tais elementos estão presentes no livro ilustrado, que expressa seu conteúdo
por meio de signos convencionais e icônicos, aliando o texto verbal e o visual em uma
forma de arte. Tais signos são representados pelas figuras que compõem a narrativa,
dando origem a uma “tensão” comunicativa entre as esferas verbal e não verbal do texto,
uma vez que não há orientações de como interpretá-las (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011).
Levando-se em conta que o livro com imagens é o primeiro contato da criança
com a literatura, a ilustração é um recurso peculiar para chamar atenção nos livros
infantis; as ilustrações podem adicionar informações a um texto, substitui-lo, ampliá-lo,
ou, ainda, questioná-lo (FREITAS; ZIMMERMANN, 2006–2007).
Na perspectiva de Camargo (1995), os livros que são compostos apenas por
imagens são livros sem texto, pois acredita que somente imagens não são o suficiente
para contar uma história. Já para Van der Linden (2011), nos livros ilustrados, o texto
predomina à imagem, em relação ao espaço da obra. Para a autora, o texto sustenta o
sentido da narrativa, fazendo com que o leitor penetre na história por meio dele.
Na concepção de Camargo (1995), a ilustração do livro infantil pode chamar a
atenção para a linguagem visual, dando suporte ao texto, além de poder representar,
descrever, narrar, simbolizar, expressar, brincar, persuadir, normatizar, pontuar,
enfatizando sua própria configuração, o que significa muito mais do que apenas ornar
ou elucidar o texto, uma vez que a imagem raramente desempenha uma única função,
no entanto, assim como na linguagem verbal, as funções da imagem seguem uma
ordem hierárquica relativa à função dominante.

Fenomenologia da paisagem
Michel Collot, por meio de seus estudos, considera a paisagem como um
procedimento estratégico que une elementos opostos, o sensível e o inteligível, pois foi
por meio da experiência sensível que o indivíduo adquiriu capacidade de manipular o
meio onde vive. Com isso, o ambiente econômico, o social e o cultural passaram a fazer
parte de uma geografia humana, que considera o ambiente como parte constituinte do
sujeito, uma vez que ele compreende seu lugar no mundo, quando também reconhece
o lugar do outro (COLLOT, 2013). Essa concepção se tornou presente, também, nos
enredos e personagens da narrativa literária, em um princípio relacional entre a
subjetividade e a alteridade: “[...] a paisagem não é apenas um procedimento social,
econômico e político, mas que nela podem ser investidos significações e valores tanto

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coletivos como individuais, todo um imaginário ao qual a ficção e a poesi a podem dar
sua plena expressão” (COLLOT, 2013, p. 15).
O sujeito apreende a paisagem - extensão de região que se abre diante de
si - que é um espaço percebido sob uma perspectiva do olhar. Dessa maneira, existe
uma relação íntima entre a paisagem e o ponto de vista do sujeito. Três componentes
complexamente relacionados entre si unem-se à noção de paisagem: um local
percebido, um olhar que observa e uma imagem formada a partir dessa relação
(COLLOT, 2012).
Há uma correspondência do microcosmo com o macrocosmo, que tem um
fundamento sensível na fenomenologia. O sujeito expressa afinidade com o lugar
apreendido quando percebe a paisagem, reconhecendo, subjetivamente, espaços
familiares, os quais lhe despertam pensamentos, em um desdobramento cíclico. Esses
espaços são unidos, fenomenologicamente, pelo sujeito em forma de pensamento-
paisagem (COLLOT, 2013).
Esse pensamento se dá porque o sujeito se vê inserido no mundo e tem uma
compreensão sensível dele. Essa abstração do mundo, por meio da visão, compõe uma
cena. Para Collot (2012), a perspectiva do olhar, a observação e a percepção da
paisagem levam a um pensamento-paisagem, forma de pensamento partilhado entre o
homem e as coisas, e uma maneira diferenciada de refletir sobre o mundo, em uma
relação de percepção entre espaços que se tornam parte da própria identidade, pois,
segundo esse autor, o visível se estrutura ao sujeito em forma de uma paisagem em
potencial, que não se enquadra como construção contingente, mas como estrutura
fundamental da percepção do homem.
A paisagem é como um “espelho da afetividade do sujeito” (COLLOT, 2010, p.
22), visto que há uma reciprocidade entre ambos: a paisagem nos leva a pensar; o
pensamento se desdobra em paisagem. Essa relação se dá por meio da
espacialidade, a consciência espacial do sujeito no mundo, que não se impõe às coisas,
mas está aberto às possibilidades.
Não existe paisagem completa sem a intervenção do indivíduo que a observa,
pois, de acordo com seu ponto de vista, o sujeito passa a contemplar apenas parte do
horizonte, a qual se estende por certa região. Essa extensão é abarcada pelo olhar
como um conjunto e gera sentido por meio da inteligência perceptiva. A percepção e
compreensão do sujeito se alterna de acordo com o que ele vê, imagina ou como se

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movimenta, e preencherão essas lacunas, em uma intervenção ativa do sujeito
(COLLOT, 2004).
O sujeito se percebe no mundo ao se relacionar com o todo. O sujeito se projeta
para fora, em uma exteriorização, para se reencontrar e se firmar no mundo, em uma
consciência existencial, que o coloca nem como sujeito, nem como objeto, mas como
uma consciência projetada para apreender-se a si mesma (COLLOT, 2013).
Em um processo de co-produção, são unidos natureza, cultura e sujeito para
formar uma unidade de sentido, a partir da orientação de espaço que o sujeito tem. De
acordo com Collot (2013), tal orientação do espaço se exprime por incontáveis
transferências metafóricas do corpo ao cosmo, o que depende da consciência postural
do sujeito. O espaço é a continuação do sujeito, que possui valores, crenças e conceitos
que influenciarão na construção e no sentido que ele atribuirá à paisagem.
Conforme Collot (2013), a manifestação da exterioridade da paisagem se dá em
uma linha divisória intransponível; um movimento constante entre o eu e o mundo, que
instaura uma relação de intimidade e alteridade entre um e outro. A paisagem ultrapassa
o sujeito e o abre a uma dimensão desconhecida, tanto de si próprio quanto do mundo.
Há uma ambiguidade constitutiva da paisagem que faz com que cada sujeito reinterprete
o horizonte apreendido, não apenas pela sua visão, mas também por seus sentimentos
e imaginação. Portanto, a paisagem pode tanto ser uma transformação quanto uma
invenção (COLLOT, 2013).
É por meio delas que o sujeito atribui sentido e valor ao seu mundo, uma vez
que há uma singularidade nessa relação entre paisagem e sujeito, através das
experiências vividas. O sujeito tem parte de seu pensamento ligado ao lugar quando
observa uma paisagem, pois seu corpo é o ponto fixo entre a consciência e o mundo, e
a perspectiva que o leva a compreender-se no mundo, por meio dessa consciência
(COLLOT, 2013). O sujeito perceptivo, em seu lugar e por meio de seu ponto de vista,
dirige-se às coisas, sem ter a chave de acesso a elas, mas trazendo no mais profundo
de si o projeto para abrir-se a um outro absoluto. De maneira transcendente e subjetiva,
o indivíduo compreende não somente a coisa, mas também a experiência da coisa. Por
conseguinte, o ponto de vista do sujeito é uma maneira de ele se introduzir no mundo
inteiro. Na paisagem está implicado o ser-no-mundo do homem, uma vez que o sujeito
tem a capacidade de registrar na paisagem a sua existência humana e de transformar
o espaço em lugar (COLLOT, 2010).

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A Nostalgia
Em 1688, Johanes Hofervs, um médico suíço definiu nostalgia como causa moral
de uma doença física. Em latim, “desiderium pátrio” significa “o desejo do nosso país”,
“Nóstos” significa viagem, “álgos” significa dor, em outras palavras, dor da
viagem/regresso. É um distúrbio causado pela distância do lar. O termo “nostalgia”
surgiu na medicina, para nomear um sentimento bastante especial, quando os soldados
que foram para as guerras ou os exilados estavam definhando por estarem longe de
casa. O sujeito torna-se nostálgico ao estar longe de seu lugar, daquele que considera
seu lar (BOYM, 2017).
O que fundamenta a nostalgia é o retorno, compreendido como algo trágico. De
acordo com Jankélévitch (1974), mesmo que o nostálgico retorne ao lugar familiar, este
já não será o mesmo, pois a ação do tempo e da natureza já o terão modificado. O
retorno é impossível, é um erro infinito. O regresso, então, torna-se uma outra partida.
Sob esse contexto, há a irreversibilidade do tempo e do espaço. O sujeito nostálgico
recusa o presente, porém alimenta uma ilusão de retorno que não existe. Mas a
nostalgia alimenta a ilusão do retorno, tornando-se um ciclo infinito de esperança. O
retorno, assim, é uma panaceia. A impossibilidade do regresso é o que faz o nostálgico
(BOYM, 2017).
A nostalgia é uma turbulência íntima ligada a um fenômeno temperamental,
capaz de desencadear uma hipermídia emocional que relaciona a ilusão apaixonada do
passado com o sentimento doloroso de separação. Portanto, o conceito de nostalgia é
caracterizado por analogia ao habitante que migrou até um país distante, cujos usos e
língua são diferentes dos seus e devem ser apreendidos sensivelmente
(STAROBINSKI, 1966).
O ponto de vista do sujeito define a nostalgia, no sentido de que é uma posição
no presente em relação ao passado, uma vez que o sujeito reivindica o retorno às fontes
originais de tudo o que constitui uma linguagem natural, fabular, nacional encanto
popular, que afirma o direito imprescritível das origens históricas e geográficas. Por isso,
a nostalgia é uma melancolia humana que se torna possível por meio da consciência,
que é a consciência de outra coisa, um contraste entre passado e presente, entre
presente e futuro. Para o nostálgico, os lugares distantes se tornam a representação de
uma vida fantasmagórica, uma segunda vida, uma vida poética e sonhadora, uma vida
que ocorre à margem da primeira (JANKÉLÉVITCH, 1974).

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Dessa forma, há uma complexa relação temporal na percepção do sujeito, que
sente que o passado mais remoto é um futuro quimérico. O sujeito que retorna à sua
origem, à sua inocência, retorna para onde ele nunca mais voltou, volta a ver o que ele
não viu e esse falso reconhecimento é mais verdadeiro do que o homem verdadeiro.
Este, guiado por verdadeiro falso reconhecimento, retorna a um lugar desconhecido
(JANKÉLÉVITCH, 1974). Começa, então, uma espécie de retorno infinito. O desejo, a
esperança de um passado por vir e o retorno a um futuro que já ocorreu, são formas
paradoxalmente recíprocas da mesma nostalgia.
Há a eterna peregrinação em busca das fontes do verdadeiro objeto que causa
a nostalgia. O tempo nostálgico não é a ausência em oposição à presença, mas o
passado em relação ao presente; não é o verdadeiro remédio, e sim a parte de trás na
retrocessão do espaço para o passado no tempo; não é novo, mas o eterno retorno
(JANKÉLÉVITCH, 1974).

Paisagem e Nostalgia em A casa do meu avô


A obra intitulada A casa do meu avô, escrita por Solange Adão e ilustrada por
Bruno Barbi, é uma narrativa em primeira pessoa. Antonieta é uma criança que, pela
sua perspectiva, narra as histórias da casa do seu avô.
Já no início da narrativa, há uma projeção da personagem para fora, quando ela
conta que gosta da casa do avô por meio da sua percepção do ambiente, demonstrando
o que Collot (2013) chama de experiência sensível: “Eu gosto mesmo é da casa do meu
avô!!! Ela é grande, de madeira e tem um enorme fogão a lenha. [...] O fogão é pintado
de azul claro, da cor do céu quando não tem nuvens nem vento. A casa do meu avô é
amarelo ouro. Uma joia!!!” (ADÃO, 2018, p. 7).
A personagem continua a narrativa descrevendo a casa do avô, unindo o que
sente ao lembrar das comidas, das cores e dos cheiros. Ou seja, torna o mundo da
personagem – e do leitor – “compreensível transformando a sua materialidade em
palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas” (COSSON, 2006,
p. 17). As ilustrações estão presentes em todas as páginas e têm a função de
complementar o texto. Sozinhas, não contam histórias, mas sem elas, o texto perderia
a riqueza de detalhes na cena formada na cabeça do leitor, em forma de pensamento-
paisagem (COLLOT, 2013), pois unem o sensível ao inteligível na compreensão do
leitor, que forma, no pensamento, uma cena, unindo todos os elementos da história, por
meio da fenomenologia.
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A autora do texto aborda questões culturais da nossa sociedade ao falar sobre
religiões de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé. Pelo olhar de Antonieta,
narra de maneira muito sutil e familiar os detalhes da religião, aproximando o leitor da
afetividade que sente ao contar com carinho sobre a função dos avôs em suas
respectivas religiões. Pode-se perceber, aqui, a relação intersubjetiva da personagem
com o ambiente, pois há significações e valores tanto coletivos quanto individuais, que
envolvem todo um imaginário expressado na história (COLLOT, 2013).
A personagem conta que seus dois avôs são, cada um, de uma denominação
religiosa diferente, descrevendo alguns detalhes que as diferenciam. Como
consequência, esse pensamento-paisagem constituído pelas paisagens da história faz
com que a criança que lê se naturalize com o tema e aprenda com isso, pois é um modo
diferente de refletir sobre o mundo, uma vez que é um pensamento partilhado entre o
homem e as coisas, em uma relação de percepção entre espaços que se tornam parte
da própria identidade (COLLOT, 2012).
É possível perceber essa relação na imagem a seguir:

Figura 1 – Quintal da casa do avô

Fonte: Adão (2018, p.11)

As ilustrações corroboram para a constituição das paisagens nessa história, pois


instigam o leitor a imaginar a cena, a se exteriorizar para a narrativa ao mesmo tempo
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que interioriza a paisagem observada, de acordo com a sua perspectiva de olhar. Ao
unir elementos da religião à afetividade da família, a personagem faz com que o leitor
alie texto e imagem, ampliando sua percepção, pois, conforme Freitas e Zimmermann
(2006-2007), as ilustrações podem adicionar informações a um texto, substitui-lo,
ampliá-lo, ou, ainda, questioná-lo.
Nessa obra, pode-se perceber o que Hunt (2010) chama de leque de
possibilidades de sentido e interpretação, por meio de diversos tipos de análise, pois,
ao inserir o sub-tema “escola” na narrativa, Adão traz novos elementos para a narrativa,
uma vez que faz uma relação entre a denominação religiosa – e cultura – e a escola.
Toninha vai conhecer a nova professora do terceiro ano escolar e fica surpresa ao
reconhece-la do terreiro de seu avô:

Figura 2 – A professora da escola

Fonte: Adão (2018, p. 33)

A paisagem constituída por essa cena, chama a atenção do leitor para a


linguagem visual (CAMARGO, 1999), pois ela dá suporte ao texto e simboliza a
representação de mundo percebida pela personagem ao reconhecer que sua nova
professora frequentava o terreiro de seu avô. Isso é perceptível ao leitor pela ilustração,

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já que mostra, por meio das vestimentas da mulher, características religiosas e culturais
da Umbanda.
A nostalgia está presente na sequência narrativa. É possível perceber isso na
mudança repentina de tempo verbal da narrativa, em que demonstra que, desde o início,
Antonieta descreve as ações da história como se estivesse revivendo, pois narra no
tempo presente. No entanto, ao chegar na página trinta e cinco da obra, o leitor pode
perceber que se trata de uma nostalgia da casa do avô, pois a personagem expressa a
situação da morte do avô ao contar da última grande festa: “Meu avô ficaria orgulhoso
da organização que fizemos este ano. Está tudo lindo!!! Saudade do meu avô José!!!
Ele viajou para o plano espiritual antes do meu avô Zacarias que agora tem cento e dois
anos” (ADÃO, 2018, p. 35).
Ao descrever, durante toda a narrativa, tudo que ocorre (ou ocorria) na casa do
avô, Antonieta deixa claro ao leitor a nostalgia que sente, um desejo de retorno àquela
situação de infância, em que o avô cozinhava, recebia convidados, ajudava as pessoas.
Toninha demonstra essa nostalgia na sua percepção da paisagem, que expressa as
cores, os cheiros, os sabores, os costumes e as afetividades da casa de seu avô
enquanto ele era vivo. Essa cena da narrativa vem ao encontro do que Jankélévitch
(1974) afirma ao dizer que, mesmo que o nostálgico retorne ao lugar familiar, este já
não será o mesmo devido as mudanças causadas pelo tempo e pela natureza. Por isso
o retorno é impossível. Antonieta será sempre um sujeito nostálgico, que percebe a
nostalgia na casa do avô falecido: “Na casa que era do meu avô nada mudou, nem os
móveis. Agora já estamos morando lá. Minha mãe herdou do meu avô as entidades e a
responsabilidade de cuidar do terreiro. Isso é uma tradição da nossa família” (ADÂO,
2018, p. 36).

Considerações finais
O intuito desta pesquisa era analisar como as relações entre texto e imagem do
livro ilustrado contribuem com a boa recepção do texto literário pelo leitor, por meio da
fenomenologia da paisagem, que, na perspectiva tanto do narrador-personagem quanto
do leitor, expressam a presença de nostalgia na obra analisada.
Foi possível analisar que a percepção das paisagens pelo olhar da personagem
é fenomenológica, uma vez que ela se projeta para o fora ao descrever os ambientes
da casa do avô, ao mesmo tempo que se interioriza ao demonstrar sua subjetividade,
por meio das suas afetividades e emoções.
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A percepção da linguagem verbal e não verbal demonstrou essa
intersubjetividade expressada na obra por meio das descrições feitas por Toninha. O
leitor é levado ao envolvimento nessa obra quando percebe, junto com a personagem,
elementos da sua própria cultura, afetividades familiares de uma criança, ao mesmo
tempo que é transformado por essa leitura, pois texto e imagem instigam o leitor a refletir
sobre a cultura e alguns conceitos que a ele possa ser familiar, como os costumes e a
religião, bem como as rotinas de uma casa de família.
O objetivo desta investigação foi atingido quando foi demonstrado que o
imaginário do leitor, as cenas, vão além do texto e da ilustração, são pensamentos-
paisagem que dão sequência na narrativa, o que leva a uma melhor compreensão da
leitura ao ampliar o universo de significados, gerando prazer na leitura, autonomia de
pensamento e ação, através das experiências literárias.

Referências
ADÂO, Solange. A casa do meu avô. Florianópolis: Editora Cruz e Souza, 2018.

BARTHES, Roland. “Introdução à análise estrutural da narrativa”. In: BARTHES,


Roland [et al.]… Análise estrutural da narrativa. Tradução de Maria Zélia Barbosa
Pinto. Introdução à edição brasileira por Milton José Pinto. Petrópolis, RJ: Vozes,
2013.

BOYM, Svetlana. Mal-estar na nostalgia. Disponível em:


https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1236. Acesso em: 23 de
abril de 2019.

CAMARGO, Luís. Ilustração do livro infantil. Belo Horizonte: Editora Lê, 1995.

COLLOT, Michel. O sujeito lírico fora de si. Terceira Margem. Poesia e seus entornos.
Trad. Alberto Pucheu. Revista do programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura
da UFRJ, ano IX, n. 11, p. 165-180, 2004.
www.ciencialit.letras.ufrj.br/terceiramargemonline/.../NUM11_2004.

______. De l’horizon du paysage à l’horizon des poetes (Do horizonte da paisagem ao


horizonte dos poetas). In: ALVES, Ida; FEITOSA, Marcia Manir Miguel (Orgs.). Literatura
e paisagem: perspectivas e diálogos. Niterói: Ed. da UFF, 2010. p. 191-217.

______. La pensée-paysage: philosophie, arts, littérature. Paris: Actes SUD/ENSP,


2012.

______. Poética e filosofia da paisagem. Rio de Janeiro: Editora Oficina Raquel, 2013.

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. 2ª ed. 2ª reimpressão, São


Paulo: Contexto, 2012.

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FREITAS, Neli Klix; ZIMMERMANN, Anelise. A ilustração de livros infantis: uma
retrospectiva histórica. DAPesquisa, Florianópolis, v. 2, n. 2, ago./2006 — jul./2007.
Disponível em: <http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2
/humanas/Neli%20-%20Anelise.pdf>. Acesso em: 21 maio 2020.

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução: Cid Knipel. São Paulo:
Cosac Naify, 2010.

JANKÉLÉVITCH, Vladimir. L'irréversible et la nostalgie. Paris: Flammarion: 1974.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo:
Cosac Naify, 2011.

SALISBURY, Martin; STYLES, Morag. Livro infantil ilustrado; a arte da narrativa visual.
Trad. Marcos Capano. 1ª ed. São Paulo: Rosari, 2013. 192p.

STAROBINSKI, J., Le concept de nostalgie, in Diogène, aprile-giugno 1965; trad. it. Il


concetto di nostalgia (1966), in AA. VV. Nostalgia, a cura di A. Prete, Raffaello
Cortina, Milano 1992.

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INTERAÇÕES ENTRE TEXTO VERBAL E VISUAL EM
DIFERENTES VERSÕES DE JOÃO E MARIA

Dayse Oliveira Barbosa, Universidade de São Paulo

Eixo Temático: Literatura infantil e as relações com a imagem

Considerações iniciais:
Em razão da relevância das ilustrações nos livros infantis, atuando
expressivamente na construção de sentido das obras, esta pesquisa visa à análise da
relação entre o texto verbal e as ilustrações presentes nas versões do conto tradicional
João e Maria, escritas por Tatiana Belinky (1997) – ilustração de Francesc Rovira –,
Ruth Rocha (2010) – ilustração de Adilson Farias – e Neil Gaiman (2015) – ilustração
de Lorenzo Mattotti.
Este estudo analítico deteve-se de maneira mais aprofundada na ilustração de
João e Maria apresentada na capa dos livros e nas ilustrações presentes em três
momentos significativos da narrativa. São eles: a partida de João e Maria para a floresta,
a estada das crianças na casa da bruxa e o assassinato da bruxa.
Nesses três momentos selecionados para o estudo, procurou-se ressaltar como
as imagens interferem na compreensão do texto verbal, aperfeiçoando-o ou repetindo-
o.
Esta pesquisa demonstra que há uma relação intrínseca entre palavra e imagem
que não pode ser menosprezada no processo de leitura e interpretação da narrativa,
uma vez que as ilustrações podem contradizer o texto verbal prejudicando a
compreensão global da obra, representar em imagens as palavras do texto, bloqueando
a imaginação e a criatividade do leitor, ou preencher as lacunas do texto verbal,
complementando-o e fortalecendo a construção dos sentidos da narrativa.

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Capa: um convite especial ao leitor

Figura 1: capa de João e Maria, ilustração de Francesc Rovira


Fonte: João e Maria, 1997

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Figura 2: capa de João e Maria, ilustração de Adilson Farias
Fonte: João e Maria, 2010

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Figura 3: capa de João e Maria, ilustração de Lorenzo Mattotti
Fonte: João e Maria, 2015

As três obras, como é evidenciado nas figuras 1, 2 e 3 mostram na capa o casal


de irmãos – João e Maria –, na floresta, sozinhos. A construção da capa antecipa a
tônica da narrativa: a surpreendente aventura reservada a essas personagens.
A figura 1 apresenta o casal de irmãos caminhando lado a lado, olhando
atentamente o caminho que percorrem, em uma floresta densa. Alguns desenhos
coloridos na parte direita inferior sugerem ao leitor os doces encontrados na casa da
bruxa. Esses desenhos são os mesmos que representam os doces oferecidos pela
bruxa às crianças, no interior do livro. Os trajes das crianças – especialmente, da menina
– atesta não se tratar de uma história contemporânea, uma vez que na atualidade as
meninas não usam mais saia longa e corpete. Na obra não há menção de datas, mas
os trajes da madrasta e da bruxa vão corroborar a ideia de que a narrativa se passa em
um passado longínquo.
A figura 2 apresenta o casal de irmãos correndo na floresta à noite. A lua cheia
e o céu estrelado ilumina o rosto das crianças, que se entreolham como se
perguntassem “e agora?” um ao outro. As árvores são desenhadas nas laterais da capa,

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dando total privilégio à representação dos irmãos. Por estampar a noite, prevalece o
azul e o verde-escuro, além de uma tonalidade arroxeada na paisagem. O vestido de
Maria, com alças e babado na parte inferior, tanto quanto o bermudão (aparentemente)
jeans de João, na altura dos joelhos, aproxima as crianças do contexto contemporâneo.
A figura 3 apresenta João e Maria de mãos dadas, no cerne de uma floresta; os
emaranhados dos troncos das árvores ao redor de toda a imagem das crianças sugere
que elas foram engolidas pela floresta. Não há detalhes de fisionomia ou corpo dos
irmãos. A única luz do desenho focaliza os irmãos de perfil, sem características
peculiares. A floresta negra e bastante intrincada domina a capa do livro, intensificando
a pequenez das crianças naquele cenário. Essas características sugerem o tom de
horror e medo que perpassará a história. Aliás, o tom de horror e medo prevalecerá em
todas as imagens no interior da obra, evidenciando com mais profundidade o contexto
de guerra no qual transcorre a versão de Gaiman.
A representação dos irmãos caminhando lado a lado na figura 1; entreolhando-
se na figura 2; e caminhando de mãos dadas no emaranhado escuro da floresta, na
figura 3, testemunha a cumplicidade existente entre o casal de irmãos. Essa
cumplicidade será ressaltada no texto verbal das três narrativas.

Começa a aventura dos irmãos: a partida de João e Maria para a floresta

Figura 4: ilustração de Francesc Rovira


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Fonte: João e Maria, 1997

Figura 5: ilustração de Adilson Farias


Fonte: João e Maria, 2010

Figura 6: ilustração de Lorenzo Mattotti


Fonte: João e Maria, 2015

Nota-se, na figura 4, a fisionomia arrogante da mãe e o pé, visivelmente maior


do que o normal para a estatura dela, no intuito de realçar os chutes nas pedrinhas que
João atirava para marcar o caminho.

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Além disso, a família segue em fila, não há diálogo entre eles. O pai, cabisbaixo,
demonstra submissão à mulher. O semblante preocupado de Maria e a concentração
de João nas pedrinhas evidenciam a tensão da cena. A mãe é a última da fila, ela vê a
atitude de João e desfaz as marcações dele para que as crianças não retornem, visto
que foi dela a ideia de abandono dos filhos e o intuito da insensível mulher era nunca
mais vê-los.
A versão de Belinky é a única em que na primeira tentativa de abandono as
crianças se perdem na floresta. Dessa forma, essa imagem frisa a maldade da mãe,
reforçando as características dadas a ela no texto verbal.
A ilustração de Adilson Farias, figura 5, adota o recurso cinematográfico da
câmera plongée, ou seja, a imagem é retratada de cima para baixo. Conforme Martin
(2013), a câmera plongée tende a apequenar o indivíduo, “fazendo dele um objeto preso
a um determinismo insuperável, um joguete da fatalidade” (p.44).
É possível relacionar a câmera plongée ao tom infantilizado da narrativa de
Rocha. Na primeira tentativa de abandono, as crianças retornam e o narrador afirma
que os pais se alegraram ao rever os filhos, porque estavam arrependidos de tê-los
abandonado. Contudo, algum tempo depois, a situação econômica da família piora e,
mesmo com a proximidade do inverno, os pais realizam outra tentativa de abandono
das crianças, dessa vez, levando-as mais para o fundo da floresta.
Assim, pode-se pensar que a câmera plongée reproduz visualmente o
determinismo expresso no texto verbal, que minimiza a crueldade dos pais.
A figura 6 apresenta a segunda tentativa de abandono das crianças na floresta.
Nota-se que as crianças são levadas apenas pelo pai para a floresta. Pela ligeira
inclinação da coluna do pai, parece que ele está arrastando as crianças e isso
representa um encargo muito pesado.
Percebe-se que, apesar de Maria ser mais velha do que João nessa história, ela
sempre aparece menor do que ele nas ilustrações. O pai dá a mão ao João e esse à
irmã, formando uma fila. Os três são reconhecidos apenas pelas características da
silhueta e a diferença de estatura. As árvores negras com os troncos retorcidos
acentuam o caráter assustador da floresta.
É importante mencionar que não há nenhuma ilustração da mãe na obra de
Gaiman, assim como as imagens humanas são representadas sempre de perfil, sem
traços que individualizem a fisionomia dos personagens.

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Tensão da narrativa: a estada das crianças na casa da bruxa

Figura 7: ilustração de Francesc Rovira


Fonte: João e Maria, 1997

Figura 8: ilustração de Adilson Farias


Fonte: João e Maria, 2010

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Figura 9: ilustração de Lorenzo Mattotti
Fonte: João e Maria, 2015

Na figura 7, o vestido suntuoso, o chapéu, os laços nos cabelos da bruxa, o


enorme caldeirão e a cozinha repleta de barris, cestos e potes de mantimentos alocados
em prateleiras próximas ao teto da casa, evidenciam o padrão econômico superior da
bruxa, ressaltado no texto verbal pelas comidas variadas que eram preparadas para o
João e, no desfecho da narrativa, no baú de riquezas da bruxa.
A figura 8 mostra João aprisionado em uma gaiola, enquanto Maria assessora a
bruxa na cozinha. A menina parece estar preparando alguma comida para o irmão, ao
passo que João, apesar de estar preso e sendo bem alimentado há algum tempo,
mostra-se bem magrinho na ilustração.
Nota-se que nas ilustrações de Adilson Farias, diferentemente do que ocorre nas
ilustrações de Francesc Rovira, a bruxa e a mãe têm características muito distintas
fisicamente. Essa distinção entre Farias e Rovira, possivelmente, deve-se ao fato de
que a versão de Rocha tenta suavizar a imagem dos pais – inclusive, essa é a única
adaptação na qual a mãe não morre no final da história – ao passo que a versão de
Belinky tenta aproximar as características da mãe e da bruxa, para realçar a maldade
da mãe.
A figura 9 mostra o momento em que bruxa apresenta-se para as crianças. É
visível o aspecto horrendo da bruxa; nariz e queixo extremamente protuberantes, além
dos braços e mãos muito magros não parecerem humanos. Não há luz no rosto de
nenhum dos três personagens.

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O jogo entre o preto e o branco de toda a página sugere a formação de teias
intrincadas, direcionando a atenção do leitor para os personagens (mais especialmente,
para a bruxa), e aludindo à construção de uma grande armadilha, que vai se
configurando melhor nas ilustrações seguintes.
A pobreza da bruxa também é retratada no texto verbal ao mencionar que a casa
dela tinha apenas um cômodo – bastante diferente da casa rica apresentada na obra de
Belinky ou exuberantemente colorida do livro de Ruth Rocha – e a alusão à armadilha
também é reforçada no texto verbal, quando o narrador elucida que a bruxa ficou feliz
com a chegada das crianças porque há muito tempo não se alimentava de carne.

Clímax: o assassinato da bruxa

Figura 10: ilustração de Francesc Rovira


Fonte: João e Maria, 1997

Figura 11: ilustração de Adilson Farias


Fonte: João e Maria, 2010

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Figura 12: ilustração de Lorenzo Mattotti
Fonte: João e Maria, 2015

A figura 10 aparece na página seguinte à figura 7. O texto verbal no canto


superior da página menciona que bastou um empurrão de Maria na bruxa para que a
velha caísse no fogo do grande forno no qual mataria João. Contudo, a ilustração não
apresenta forno, mas uma fogueira conhecida pelo nome de “trempe” nas regiões
interioranas do Brasil.
Assim, a figura 10 é discrepante em relação ao texto verbal. De acordo com
Santaella (2012), no capítulo A imagem no livro ilustrado, afirma que há relação de
discrepância quando imagem e palavra se contradizem. Há discrepâncias intencionais
(nos casos de licença poética, por exemplo) e não intencionais ou errôneas (quando
não é possível correlacionar texto e imagem). Nesse caso, pois o texto verbal menciona
“grande forno” e a ilustração apresenta uma “trempe” em um livro que, conforme consta
na página de apresentação, é uma obra para crianças brasileiras.
As demais ilustrações enfeixadas nessa adaptação literária, ainda de acordo
com o conceito de imagem exposto por Santaella (2012), podem ser consideradas
redundantes, porque expressam visualmente o que é mencionado no texto verbal.
A figura 11 apresenta a bruxa abrindo a porta do forno no qual pretendia assar
João. O texto verbal menciona que Maria empurrou a bruxa para dentro do forno e
trancou a porta; entretanto essa cena não é mostrada na ilustração.
Dessa forma, percebe-se que há várias tentativas de suavização da história tanto
no texto verbal escrito por Ruth Rocha quanto nas ilustrações compostas por Adilson
Farias. Além disso, é perceptível o emprego de cores em tonalidades muito fortes ao

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longo da obra, o que direciona a atenção do público, especialmente, das crianças em
tenra idade (público alvo dessa obra), para o desenho em si, ignorando a construção de
sentido entre texto verbal e imagem.
A figura 12 mostra o momento em que Maria empurra a bruxa para dentro do
forno. A bruxa não tem sequer o delineamento facial, braços, mãos e, principalmente, a
parte inferior do corpo dela lembra um animal quadrúpede.
A sombra da bruxa projetada no chão é apenas uma mancha escura, sem
qualquer forma humana. Os braços de Maria são muito maiores do que o corpo da
menina, aludindo à força e à coragem dela. À distância, João, preso, parece tentar
acompanhar a cena; e, novamente, o jogo entre preto e branco formam teias intrincadas
que separam João e Maria, deixando-a no centro da cena.
A partir da análise dessas imagens, percebe-se que a relação existente entre
ilustrações e texto verbal traduz o que Santaella (2012) denomina complementaridade,
ou seja, ilustrações e texto verbal complementam-se, integram-se, um preenchendo as
lacunas do outro e contribuindo para o significado global da obra.

Considerações finais:

Ao longo deste trabalho foi analisada, de maneira bastante sucinta, a relação


entre texto verbal e ilustrações presentes nas versões de João e Maria, escritas por
Tatiana Belinky (1997) – ilustração de Francesc Rovira –, Ruth Rocha (2010) – ilustração
de Adilson Farias – e Neil Gaiman (2015) – ilustração de Lorenzo Mattotti.
Este estudo analítico priorizou três momentos específicos para abordagem do
diálogo entre ilustração e texto verbal. São eles: a partida de João e Maria para a
floresta, a estada das crianças na casa da bruxa e o assassinato da bruxa.
Além desses momentos, também foi detalhada a capa das publicações de
Belinky, Rocha e Gaiman, dada a importância da capa dos livros, especialmente, dos
livros infantis.
Por meio da breve análise de algumas ilustrações das versões de João e Maria
apresentadas neste trabalho procurou-se demonstrar como as ilustrações,
imprescindíveis nos livros infantis, interferem na compreensão do texto verbal,
aperfeiçoando-o ou repetindo-o.

Referências:
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BELINKY, Tatiana. João e Maria. Ilustração Francesc Rovira. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.

BUORO, Anamelia Bueno. Olhos que pintam. A leitura da imagem e o ensino da arte.
São Paulo: Educ/Fapesp/Cortez, 2002.

COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: história, teoria, análise. São Paulo: Quíron,
1987.

GAIMAN, Neil. João e Maria. Ilustração Lorenzo Mattotti; trad. Augusto Calil. Rio de
Janeiro: Intrínseca, 2015.

POWERS, Alan. Era uma vez uma capa. Trad. Otacílio Nunes. São Paulo: Cosac &
Naify, 2011.

ROCHA, Ruth. João e Maria. Ilustração Adilson Farias. São Paulo: Moderna, 2010.

SANTAELLA, Lucia. Leitura de imagens. São Paulo: Melhoramentos, 2012.

TATAR, Maria. Contos de fadas. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro:
Zahar, 2013.

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DAS NARRATIVAS VISUAIS A ATIVIDADE CONSCIENTE: O
QUE ESSAS IMAGENS SIGNIFICAM?

Janaína de Souza Silva, ALLE/AULA, Unicamp


Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto, Unicamp

Eixo Temático: 5: Literatura infantil e as relações com a imagem

Para início de conversa...


Os estudos postulados por Vigotski e seus colaboradores durante as primeiras
décadas do século XX legaram grande contribuição à psicologia, tal como a melhor
compreensão da gênese dos processos psíquicos intelectuais do desenvolvimento
humano. Nesse ínterim, a visão do processo de humanização defendida nesse estudo
parte do pressuposto de que tudo o que o homem apresenta na condição filogenética
não é suficiente para humanizá-lo. Assim, este estudo considera o aspecto social
presente no meio, elemento fulcral de todo o processo de desenvolvimento humano, de
modo que é na relação com o outro e com o meio que o sujeito tem a possibilidade de
se apropriar da cultura e se constituir humanamente.
Nesta direção, o enfoque dialógico presente nos estudos bakhtianos apresenta
correspondência à referida concepção discorrida nas linhas anteriormente, uma vez que
tanto a teoria histórico-cultural postulada por Vigotski e seus colaboradores quanto a
teoria discursiva de Bakhtin se utilizam dos princípios da característica dialógica da
linguagem, materializada em processos de comunicação nas relações sociais.
Destarte, o escopo desse trabalho incide no entrecruzamento dessas duas
teorias, ou seja, este estudo preocupa-se em apresentar como o processo de mediação
postulada por Vigotski e seus colaboradores (2018), pode (re)organizar ou (re)qualificar
as funções superiores dos sujeitos ao mesmo tempo em que os enunciados formam-se
por dois ou mais indivíduos, que utilizam da palavra como ato bilateral, isto é, “produto
das inter-relações entre falante e ouvinte” (VOLÓCHINOV, 2019, p.179).
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Assim, vale destacar que partimos do pressuposto de que “um homem, vivendo
isolado, não só não criaria a linguagem, mas sequer uma cultura” (VOLÓCHINOV, 2019,
p.245). Portanto, consideramos o processo de mediação como essencial para o
processo de humanização. Nas palavras de Vigotski (2018):

O homem é um ser social e fora da relação com a sociedade jamais


desenvolveria as qualidades, as características que são resultado do
desenvolvimento metódico de toda a humanidade. (VIGOTSKI, 2018,
p.90)

Diante do exposto, consideramos a experiência desenvolvida de leitura de livro


de imagem, também chamado de “embrião” do livro ilustrado 99, com discentes
matriculados no curso de Pedagogia como oportuna, uma vez que a análise crítica da
propositura das especificidades do estilo desse tipo de obra possibilita aos envolvidos a
partilha de saberes, a socialização de produto cultural que circula na sociedade e a
reflexão acerca da concepção que rege o trabalho com a leitura na educação escolar.
A escolha da obra “Trilogia do Retrato” de autoria de Ilan Brenman e Renato
Moriconi não foi aleatória. Durante o período de dois meses, os discentes se
debruçaram no estudo e reflexão dos documentos, acervos, propostas e programas
oficiais organizados pelo governo federal para a promoção da leitura nas instituições
escolares. Nesse momento, os alunos tiveram contato com duas das obras da trilogia,
“Telefone sem fio” e “Bocejo”, e mais tarde, “Caras Animalescas”, que também compõe
o acervo da trilogia, foi indicada pela docente responsável pela disciplina.
Em síntese, o estudo dividiu-se em dois momentos: manuseio exploração das
obras e busca de materiais e informações para complementar as ideias iniciais. Para
tanto, o trabalho preocupou-se em identificar como os estudantes superaram
pensamentos incipientes acerca das narrativas visuais e as transformaram em ideias
racionais e conscientes, haja vista que grande parte dos estudantes considera os livros
como “simples” e “insignificantes”, uma vez que as duas primeiras obras da trilogia,
“Telefone sem Fio” e “Bocejo”, dos autores supracitados são obras com ausência de
linguagem verbal, apenas visual.

99
Conceito utilizado para caracterizar os diversos níveis de relação entre o texto e a imagem
ou, melhor dizendo, entre o encontro da comunicação visual e verbal. Cf. NIKOLAVEJA, Maria;
SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naif,
2011.
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Sob a ótica das funções aparentes, em um primeiro momento, durante as
primeiras explorações e manuseio das obras, no entender de grande parte dos
discentes, a beleza e o encanto da proposta literária foram compreendidas pelas suas
cores, ilustrações e dimensão. A nosso ver, a concepção de leitura concebida pelo
grupo, não possibilitou que os discentes superassem a ação de percepção visual, ou
seja, não propiciou o rompimento da aparência das imagens em busca da essência dos
sentidos provocadas por elas.
Contudo, cada momento de leitura, socialização, cotejamento e partilha de
informações acerca da obra, do autor e do ilustrador, foi decisivo para que o grupo
tivesse a oportunidade de atribuir mais sentidos às obras destacadas para o estudo.
A segunda sequência de atividades foi marcada para socialização de outras
informações e atribuição de mais sentido às obras. Para isso, os discentes foram
convidados a pesquisar mais informações acerca da “Trilogia do Retrato”, de modo a
explorar ainda mais a narrativa visual das obras.
O fechamento da proposta de atividade de leitura do livro de imagem contou com
novas descobertas e curiosidade pelos discentes, tais como a brincadeira “telefone sem
fio”, foi iniciada por um dos autores das obras, dentro de um restaurante; o retrato do
casal Sforza pintado pelo artista italiano Piero Della Francesca, que dá origem ao
formato e técnica das obras; e a questão da progressão da linguagem que une a trilogia,
isto é, do silêncio do “Telefone sem Fio” para as onomatopeias do “Bocejo”, até chegar
nas frases do “Caras Animalescas”, assim sendo, do silêncio a voz100.
Assim, ao longo do desenvolvimento das atividades de leitura, constatou-se que
os discentes (res)significaram o trabalho com a literatura infantil, de modo a
compreender o potencial da atividade de leitura no processo de humanização e
desenvolvimento da atividade consciente.

O que sei? É que tudo começou assim...


O trabalho com a leitura da “Trilogia do Retrato” de autoria de Ilan Brenman e
Renato Moriconi na disciplina “A leitura de Literatura na Educação Infantil”, desenvolvida
no curso de Pedagogia de uma instituição privada no município de Limeira, interior de

100
Informações extraídas da entrevista cedida por Ilan Brenman ao site Esconderijos do
Tempo. Disponível em: <http://esconderijos.com.br/uma-dupla-tres-livros-muita-diversao/.>
Acesso em 25 ago. 2020.
592

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São Paulo, possibilitou aos discentes participantes reconhecer potencial na atividade
leitora para o processo de humanização por meio da literatura.
As sucessivas reuniões de leitura, partilha, socialização e exploração das obras
possibilitaram aos estudantes romper com a visão reducionista de que para ser
interessante ou para apresentar “selo” de qualidade, a obra literária deve conter
linguagem visual e verbal.
Para tanto, foi destinado um dia da semana para o desenvolvimento desse
trabalho, no período de 2 meses. Tendo em vista que o enfoque da disciplina
centralizava a leitura da literatura infantil, considerou-se pertinente que os estudantes
tivessem acesso as informações do Programa Nacional de Biblioteca na Escola
(PNBE)101, que por meio do Ministério da Educação e Cultura, em gestões anteriores,
encaminhou diversas obras literárias a todas as instituições escolares públicas que
atende as modalidades: Infantil, Fundamental I e II e EJA.
Assim, os primeiros encontros foram reservados para apresentação da proposta
da disciplina, bem como organizar processos de interlocução entre as práticas escolares
e os conteúdos previstos na grade do curso de formação inicial.
Promover práticas de interlocução entre a formação inicial e a unidade escolar pareceu-
nos uma atividade profícua, como também bastante interessante para os estudantes,
uma vez que proporcionar acesso para os discentes aos documentos, programas,
materiais e projetos elaborados pelo governo federal e voltados para a educação básica,
contribui para o desenvolvimento das capacidades de formação profissional destes,
além de possibilitar a aproximação com as situações reais de sala de aula.
A título de contextualizar a experiência, seguimos o estudo apresentando um breve
relato com recortes de episódios selecionados e fundamentados pelas teorias
supracitadas.
Após conhecimento dos materiais que compõem o acervo do PNBE, tais como
os catálogos das obras e a guia de utilização do acervo encaminhado para as unidades
escolares, os discentes tiveram a oportunidade de explorá-los com a finalidade de
conhecer um pouco mais das ações e materiais distribuídos. Na oportunidade,
deparam-se com as obras “Telefone Sem Fio”, e o “Bocejo”, as quais chamaram muita

101
Programa criado com o objetivo de assegurar que todas as crianças matriculadas em escolas
públicas possuíssem acesso aos bens culturais, ou seja, à diversas obras literárias que circulam
socialmente. Para maiores informações acessar <
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=15609-guia-ei-
leituraforadacaixa-pdf&category_slug=maio-2014-pdf&Itemid=30192. >.
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a atenção dos estudantes por serem livros, segundo eles diferentes, com dimensões
distintas das demais e repletos de imagens. Na ocasião, a professora incorporou às
obras selecionadas pelos estudantes o livro “Caras Animalescas”, dos mesmos autores.
Para dar prosseguimento ao momento de atividade com a turma, a professora
solicitou que os alunos se organizassem em três grupos, elegessem um discente
responsável para relatar toda a discussão e, em seguida, explorassem as obras
selecionadas da “Trilogia do Retrato” considerando: público-alvo, sequência narrativa,
personagens, possível fio condutor e desfecho da obra. Na sequência, seguem recortes
selecionados durante a produção de dados.

Grupo 1
Discente responsável pela interlocução do grupo 1: meu grupo chegou à conclusão
de que o primeiro livro que vimos “Telefone sem fio” parece ser bem interessante para crianças
de 3 anos, talvez de 4 e 5. Algumas disseram também de 7 e 8 anos. Já sobre o outro livro
“Bocejo”, pensamos que este deve ser indicado para crianças menores, aquelas que não sabem
ler, talvez crianças de 2 ou 3 anos. Achamos que estes livros são mais indicados para essas
crianças, pois foi assim que aprendemos a ler. E o último, “Caras Animalescas” deve ser lido
para crianças do Fundamental I. Com relação à frequência narrativa, não conseguimos chegar a
uma conclusão. Na verdade, vamos expor o nosso entendimento aqui. O primeiro livro visto
“Telefone sem fio” [...] entendemos que é uma brincadeira, pensamos que a sequência narrativa
está aí, na brincadeira. A informação passa de pessoa para pessoa e então forma uma sequência
de ações, achamos que é isso (risos) [...]. O segundo livro, “Bocejo”, pensamos que todas as
pessoas já viram e bocejaram alguma vez na vida... (risos) [...]. Ah, foi isso que concluímos, além
do mais, é uma ação que contamina o bocejar, não é? Então pensamos que o ato de “contaminar”
é o encadeamento da ideia, ou seja, a frequência narrativa [...] (risos). Já o terceiro livro, “Caras
Animalescas”, achamos bem cômicas as imagens. Pensamos em possíveis reações contrárias
ao objetivo de leitura, pois fala-se muito da “fulana tem cara de...” enfim, ficamos pensando na
questão do bulling, um fato que pode ocorrer, por exemplo, e o professor deve ficar bem atento
a isso, é o pai ou mãe de estudante questionar a leitura da obra, não sei [...] (risos). Enfim, assim
como o primeiro grupo, concluímos que são bons livros, mas para públicos diferentes! E com
diferentes propósitos! Bem diferentes [...]

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Docente: E quanto aos personagens? E o desfecho das obras? Que conclusão vocês
chegaram?
Discente responsável pela interlocução do grupo 1: Chegamos à conclusão de que
os dois primeiros livros “Telefone sem fio” e “Bocejo” não apresentam nenhum tipo de linguagem,
só figuras. Ah, tem no “Bocejo” uma espécie de linguagem que aparece em HQ, mas personagem
mesmo da obra não tem. São pessoas que lembram os livros de história. Mas não são
personagens dessa história. Entende? Quero dizer que não são exclusivos ou pensados para
esta história. Então, achamos que não tem um enredo fechado, um desfecho só. Cada um lê de
acordo com seu entendimento.

Grupo 2
Discente responsável pela interlocução do grupo 2: bem, o nosso grupo fez
apontamentos semelhantes aos apresentados pelo grupo 1. No que diz respeito ao público-alvo,
consideramos que as obras que apresentam somente imagens são ideais para o trabalho na
Educação Infantil, com crianças que ainda estão aprendendo a ler e também tendo em vista que
é o período que as crianças mais exploram a imaginação. Em contra partida, o terceiro, “Caras
Animalescas”, dá para ser explorado na Educação Infantil com as crianças maiores, do último
ano da Educação Infantil e no inicio do Ensino Fundamental. Vimos que o livro é bem engraçado
e as crianças ficam apaixonadas por livros assim. Com relação à sequência narrativa, decidimos
que ela está implícita nas imagens. Por exemplo, no livro “Telefone sem Fio” as imagens parecem
dialogar uma com a outra, uma espécie de continuação. No livro “Bocejo” dá impressão de que
começa com a criação do mundo e vai evoluindo para outros acontecimentos depois da criação.
E no terceiro, não tivemos clareza dessa sequência, mas acreditamos que existe, mesmo porque
em uma das páginas os autores entram na brincadeira. Nós até chegamos a achar que tem
alguma mensagem “subliminar” que não captamos (risos) [...]

Docente: E com relação aos personagens e desfecho?


Discente responsável pela interlocução do grupo 2: Nossa verdade ...(risos). Então
é isso, concluímos que na primeira obra “Telefone sem fio” os personagens apresentam uma
certa ligação. A capa, por exemplo [...] (apresenta a capa para a professora) O modo de
apresentar os personagens parece que há entre eles familiaridade, como se todos pertencessem
à mesma família. Isso acontece no “Bocejo” também, veja, os personagens parecem todos
conhecidos desde o princípio da criação até a evolução. Pensamos assim, sendo esses também
o desfecho. Ou melhor, o desfecho fica para a imaginação de cada um.

Grupo 3
Discente responsável pela interlocução do grupo 3: Chegamos em conclusões muito
próximas também dos dois grupos. Em relação à obra 1 “Telefone sem Fio”, notamos a presença

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do Arlequim e depois de alguns personagens da história do teatro, da cultura, enfim, ainda não
sabemos [...]. A segunda obra “Bocejo”, pensamos que esta é uma obra mais completa, no que
diz respeito à sequência narrativa, os personagens fazem parte da nossa história desde a
fundação do mundo. Temos personagens bíblicos e personagens da revolução, então
conseguimos observar o fio narrador e o desfecho de tudo isso, até em forma irônica, uma vez
que ao nosso entender, não foram os EUA e tampouco a Rússia que chegaram à Lua, foi o
homem (risos) (docente aponta para a imagem do livro) [...] vejam a bandeira com uma “cueca”
(risos). Então chegamos à conclusão de que essas obras falam muito mais do que se tivessem
alguns escritos aqui indicando quem é cada personagem ou o que diz cada imagem. Quando
começamos a folhear os livros, uma apontou uma lembrança, outra evocou uma experiência com
um personagem e assim chegamos à conclusão de que as imagens falam muito mais que as
palavras.

Considerando o exposto e avançando para as primeiras análises, muitas são as


tensões que pulsam as ideias explanadas pelos três grupos. Entre elas, podemos
destacar aquelas que vamos trabalhar neste estudo. A saber: a questão de concepção
de leitura presente na fala do 1º grupo:
(...) Já sobre o outro livro, “Bocejo”, pensamos que este deve ser indicado para
crianças menores, aquelas que não sabem ler, talvez crianças de 2 ou 3 anos. Achamos
que estes livros são mais indicados para essas crianças, pois foi assim que aprendemos
a ler.

No que concerne às características do livro de imagem e à questão da narrativa


que é apresentada pelos três grupos:
Grupo 1: Com relação à frequência narrativa, não conseguimos chegar a uma
conclusão. Na verdade, vamos expor o nosso entendimento aqui. O primeiro livro visto
“Telefone sem fio” [...] entendemos que é uma brincadeira, pensamos que a sequência
narrativa está aí, na brincadeira. A informação passa de pessoa para pessoa e então
forma uma sequência de ações, achamos que é isso (risos) [...]. O segundo livro,
“Bocejo”, pensamos que todas as pessoas já viram e bocejaram alguma vez na vida...
(risos)[...]. Ah, foi isso que concluímos, além do mais, é uma ação que contamina o
bocejar, não é? Então pensamos que o ato de “contaminar” é o encadeamento da ideia,
ou seja, a frequência narrativa [...]

Grupo 2: Com relação à sequência narrativa, decidimos que ela está implícita
nas imagens. Por exemplo, no livro “Telefone sem Fio” as imagens parecem dialogar
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uma com a outra, uma espécie de continuação. No livro “Bocejo” dá impressão de que
começa com a criação do mundo e vai evoluindo para outros acontecimentos depois da
criação. E no terceiro, não tivemos clareza dessa sequência, mas acreditamos que
existe, mesmo porque em uma das páginas os autores entram na brincadeira. Nós até
chegamos a achar que tem alguma mensagem “subliminar” que não captamos (risos)
[...].

Grupo 3: A segunda obra “Bocejo”, pensamos que esta é uma obra mais
completa, no que diz respeito à sequência narrativa, os personagens fazem parte da
nossa história desde a fundação do mundo. Temos personagens bíblicos e personagens
da revolução, então conseguimos observar o fio narrador e o desfecho de tudo isso, até
em forma irônica, uma vez que ao nosso entender, não foram os EUA e tampouco a
Rússia que chegaram à Lua, foi o homem (risos) (docente aponta para a imagem do
livro)[...] vejam a bandeira com uma “cueca” (risos).

E no que tange ao “politicamente correto em literatura” expressada pelo Grupo


1:
Já o terceiro livro, “Caras Animalescas”, achamos bem cômicas as imagens.
Pensamos em possíveis reações contrárias ao objetivo de leitura, pois se fala muito da
“fulana tem cara de...” enfim, ficamos pensando na questão do bulling, um fato que pode
ocorrer, por exemplo, e o professor deve ficar bem atento a isso, é o pai ou mãe de
estudante questionar a leitura da obra, não sei [...] (risos). Enfim, assim como o primeiro
grupo, concluímos que são bons livros, mas para públicos diferentes! E com diferentes
propósitos! Bem diferentes [...]

Considerando os destaques apresentados acima, note que as preocupações que


cercam as observações apresentadas pelos discentes, denotam a compreensão do
grupo com relação à visão de mundo, homem e sociedade quando as estudantes
destacam “achamos bem cômicas as imagens. Pensamos em possíveis reações contrárias ao
objetivo de leitura, pois fala-se muito da “fulana tem cara de...” enfim, ficamos pensando na
questão do bulling, um fato que pode ocorrer, por exemplo, e o professor deve ficar bem atento
a isso, é o pai ou mãe de estudante questionar a leitura da obra, não sei [...]”; E no que tange a
concepção de ensino e aprendizagem defendida por eles observa-se que as ideias de
ensino e aprendizagem da leitura estão calcadas no modelo de aprendizagem
vivenciada por parte do grupo. Sobre isso veja-se “sobre o outro livro “Bocejo”, pensamos

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que este deve ser indicado para crianças menores, aquelas que não sabem ler, talvez crianças
de 2 ou 3 anos. Achamos que estes livros são mais indicados para essas crianças, pois foi assim
que aprendemos a ler”.
Nas palavras de Bértolo (2014, p.13), “tentei dar conta de como as relações
sociais, assim como estão presentes em toda comunicação, intervém no processo
pessoal e coletivo que é o ato de ler”.
A afirmação exposta por Bértolo ajuda-nos a inferir ao menos duas condições
básicas presentes nos relatos dos grupos e no próprio ato de ler. A primeira refere-se
ao ato de ler como atividade humanística, ou seja, uma atividade que só acontece entre
os seres humanos. A segunda condição básica do ato de leitura refere-se à sua
condição de estabelecer (re)lações, as quais todos nós estamos expostos. Para aclarar
um pouco mais essa ideia, convém recuperar parte das expressões dos discentes:
“pensamos que esta é uma obra mais completa, no que diz respeito à sequência
narrativa, os personagens fazem parte da nossa história desde a fundação do mundo.
Temos personagens bíblicos e personagens da revolução, então conseguimos observar
o fio narrador e o desfecho de tudo isso, até em forma irônica, uma vez que ao nosso
entender, não foram os EUA e tampouco a Rússia que chegaram à Lua, foi o homem
(risos) (docente aponta para a imagem do livro) [...] vejam a bandeira com uma “cueca”
(risos). Então chegamos à conclusão de que essas obras falam muito mais do que se
tivessem alguns escritos aqui indicando quem é cada personagem ou o que diz cada
imagem. Quando começamos a folhear os livros, uma apontou uma lembrança, outra
evocou uma experiência com um personagem e assim chegamos à conclusão de que
as imagens falam muito mais que as palavras”.
Assim, partimos do pressuposto que o homem, como sujeito social é um ser de
(re)lações, isto é, que se constitui por meio das várias (re)lações estabelecidas entre ele
e o outro, ele e o mundo, ele e a sociedade. Para Silva (2011, p. 81), “ao ler, o homem
comunica-se na distância, com as impressões referenciais que tem do mundo”.
Portanto, defender uma concepção de leitura que, bem ou mal, ensinou a ler, e
indicar um livro para um determinado público, pois o considera “ideal” para ensinar a
criança a ler, são resquícios das muitas (re)lações estabelecidas durante nosso
percurso de vida , inscritos em nossa história pessoal.
Dessa forma, o que este estudo pretende dizer é que, não se trata de defender
as ideias iniciais externalizadas pelos grupos de discentes, tampouco defender
concepções de leitura que destoam dos pressupostos teóricos aqui defendidos, ou seja,

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de que ler “é portanto, constituir e não reconstituir um sentido” (GOULEMOT, 2009, p.
108). De outro modo, trata-se de apresentar o quanto a atividade de leitura,
especificamente humana, não é “inocente”. No que concerne ao conceito de leitura
inocente, de acordo com Bértolo, trata-se de:

[...] uma reinvindicação daquelas leituras que assimilam o texto como


simples encadeamento de ações [...], desativando nela aqueles
aspectos que pelo seu caráter conflituoso pudessem dar lugar a um
questionamento do sentido da leitura – e que desativam os aspectos
literários ou de representação do mundo neles existentes. (BÉRTOLO,
2014, p.73)

À face do exposto, a atividade de leitura possibilita liberdade de pensamento,


portanto, exige do sujeito leitor, atitude crítica e consciente voltada para transformação
e emancipação. Por menores, essa atividade demanda uma concepção que entenda
que a atividade de leitura é uma revelação pontual de uma polissemia de texto literário
(GOULEMOT, 2009).
Prosseguindo com essa ideia de suscitar atitude consciente e crítica, as
menções realizadas pelo primeiro grupo com relação ao conteúdo do livro “Caras
Animalescas” e ressaltadas por esse estudo como algo “politicamente correto em
literatura”, nos coloca outro emblema – o que deve ser considerado ou não como
literatura infantil.
Sobre o assunto, Coelho (2000) admoesta que se tratando de literatura, a
“literatura infantil é, antes de tudo, arte: fenômeno de criatividade que representa o
mundo, o homem, a vida, através da palavra”. (COELHO, 2000, p.27).
Diferentemente de uma atividade mecânica, ou condenada a ser exibida e
explorada por um sujeito “sem voz”, a atividade de leitura de literatura infantil exige de
qualquer leitor ações de atenção, memória, percepção, e reconhecimento do material
linguístico, uma vez que concebemos a língua “material da criação literária”
(VOLÓCHINOV, 2019, p.236).
Compreender a importância da literatura infantil para a transformação social é
tão essencial quanto compreender que a arte da literatura excede os propósitos
escolarizados de utilizá-la com o pretexto de ensino do be-a-bá. Nas palavras de
Volóchinov:

Se não compreendermos a essência da língua e da linguagem, se não


compreendemos seu papel na vida social, jamais saberemos abordar
corretamente aquilo que chamamos de estilística do discurso literário,

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isto é, a técnica da construção do objeto literário, que deve ser
dominada, sem exceção, por todos os escritores desejosos de se
tornar mestres em sua arte, e não amadores e diletantes superficiais
(VOLÓCHINOV, 2019, p.236)

No que concerne aos outros destaques apresentados pelo grupo acerca de suas
considerações sobre essa modalidade literária e a existência ou não, da sequência
narrativa, nota-se ausência de entendimento pelo grupo da representação deste objeto
como objeto literário. A título de exemplificar a afirmativa, a sequência de imagens
presente em um livro de imagens exerce a função de narrar. E como toda narrativa,
possui enredo, com tramas e personagens.
Importa-nos destacar que a leitura de um livro-imagem exige do leitor identificar
os recursos visuais, particulares e intencionais utilizados pelos autores, tais como
características dos personagens, fio condutor da narrativa visual, cores, traços dos
personagens, entre outros. Neste caso específico da “Trilogia do Retrato”, note que as
obras “Telefone sem fio” e “Bocejo” apresentam dimensão temporal (ao evidenciar uma
sequência linear dos personagens, interligando um personagem a outro ao utilizar o
mesmo campo semântico), bem como dimensão espacial (lógica na organização das
imagens, de modo a possibilitar ao leitor identificar progressão do tempo ou período de
uma imagem para outra), como condição básica para a constituição de uma narrativa
visual.
Vale lembrar que o livro-imagem é constituído de uma narrativa visual, pode ou
não ser acrescido por linguagem verbal e pertence a um gênero textual, portanto não
tem a finalidade de exibir um compilado de imagens ou fotografias, o livro-imagem tem
a função de narrar uma história com trama, contexto de criação e personagens.
Sobre o assunto, Belmiro 2014 destaca
Define-se, então, livro-imagem como um livro com imagens em sequência e que conta
uma história, geralmente selecionando uma situação, um enredo e poucos personagens.
Constitui-se como uma narrativa visual, que aproxima duas condições básicas para a sua
realização: a dimensão temporal (sequência linear de imagens) e a dimensão espacial (a lógica
da organização espacial que compõem as imagens). (BELMIRO, 2014, p. 203)

A ausência de conhecimento acerca da modalidade desta obra literária para a


educação escolar compromete a compreensão estilista da obra bem como a apreensão
da representação ficcional e características e especificidades do livro-imagem pelos
leitores.

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Entre uma experiência e outra... o que aprendemos?
A experiencia nos mostrou a importância de conceber a leitura da
literatura infantil em suas diversas modalidades de modo a explorar suas características
e especificidades. No caso do livro-imagem, importa esclarecer que a leitura da obra
implica análise crítica e estudo da parte do leitor. Não se trata de uma obra desenvolvida
para leitores não convencionais, tampouco a concentração dos esforços para
desenvolver uma trama narrativa qualquer. De modo oposto, o livro-imagem explora
códigos imagéticos e diversos recursos visuais, portanto, é uma modalidade literária que
explora a linguagem de maneiras diferenciada e potencializa o desenvolvimento das
funções psíquicas elementares, tais como atenção, memória, percepção, linguagem e
sensação.
A experiência desenvolvida com os discentes possibilitou identificar que
as primeiras observações realizadas pelos grupos focalizaram apenas os elementos
incipientes contidos nas imagens, ou seja, a disposição e dimensões das figuras,
ausência de linguagem verbal e a identificação isolada dos personagens.
Contudo, após uma análise crítica das obras e novas possibilidades de
colocar em prática ações de constatação, cotejamento e transformação (SILVA, 2011),
os discentes puderam suplantar a concepção de que livro-imagem requer apenas a
“leitura de imagem”.
Em síntese, a experiência possibilitou aos discentes: refletir acerca das
condições de produção desta modalidade literária; Compreender melhor os recursos
visuais e as metáforas presentes nas obras selecionadas; (Re)significar o trabalho com
a leitura de livro-imagem e reconhecer sua importância para o trabalho com esse tipo
de leitura na educação escolar; Compreender o potencial da atividade de leitura para o
processo de humanização e desenvolvimento da atividade consciente.

Referências
BELMIRO, Célia Abicail. Livro de Imagens. In I. C. A. Frade, M. G. Val, & e M. G.
Glossário Ceale: termos de alfabetização, leitura e escrita para educadores. Belo
Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2014.

BÉRTOLO, Constantino. O Banquete dos Notáveis: Sobre leitura e crítica. Tradução


Carolina Tarrio, 1. Ed. São Paulo: Livros da Matriz, 2014.

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BRENMAN, Ilan; MORICONI, Renato. Telefone sem frio. São Paulo: Companhia das
Letrinhas, 2010.

___________. Bocejo. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2012.

___________.Caras animalescas. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2012.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática. São Paulo:
Moderna, 2000.

GOULEMOT, Jean-Marie. Da leitura como produção de sentidos. In CHARTIER, Roger.


(org). Práticas da leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 2009.

SILVA, Ezequiel. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da
leitura. 11 Ed. São Paulo: Cortez, 2011.

VIGOTSKI, Lev.S. Sete aulas de L. S. Vigotski sobre os fundamentos da pedologia.


Organização [e tradução] Zoia Prestes e Elizabeth Tunes; Tradução Claudia da Costa
Guimarães Santana. 1. Ed. Rio de Janeiro: E-Papers, 2018.

VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos,


resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo
e Ekaterina Vólkova Américo. 1. Ed. São Paulo: Editora 34, 2019.

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O PODER E A FUNÇÃO DAS ILUSTRAÇÕES NA LITERATURA
INFANTIL E A NECESSIDADE DE FORMAÇÃO DE LEITORES
DE IMAGENS

Joelma Rodrigues Paes Nóbrega


Universidade Federal do Paraná – Setor de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação: Teoria e Prática de Ensino

Elisa Maria Dalla-Bona


Universidade Federal do Paraná – Setor de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação: Teoria e Prática de Ensino

Eixo Temático: Literatura infantil e as relações com a imagem

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Os livros ilustrados estão presentes especialmente na literatura infantil e por trás


destas obras há toda um trabalho de desenvolvimento de métodos e técnicas de
composição. O processo da evolução do livro diz respeito também à própria relação de
sentidos estabelecida entre as imagens e o texto que o compõe.
Existe uma variedade muito grande na configuração dos livros ilustrados,
inclusive que se inovaram ultrapassando as características peculiares das próprias
páginas, com livros que usam técnicas de dobraduras, formatos inusitados e que podem
levar uma experiência nova ao leitor devido à imersão criada pela junção dos textos e
imagens que se conectam.
A articulação entre imagem e texto pode ser compreendida em diversas
trajetórias e desempenhar diferentes funções como a representação, expressão,
narração, descrição, simbolismo entre outros aspectos que podem compreender uma
função mais ampla e completa representando e preenchendo espaços que o texto, por
vezes, deixa em aberto, aumentando a possibilidade de interpretação por parte do leitor.

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Como cita Linden (2011, p. 29), “o que encontramos no livro ilustrado é um tipo de
linguagem que incorpora ou assimila gêneros, tipos de linguagem e tipos de ilustração”.
No molde de livro ilustrado a que se chegou, bem como em todos os outros pelos
quais se passou anteriormente, texto e imagem representam dois níveis de
comunicação diversos (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011), que se combinam de modo a criar
um terceiro nível de mensagem, distinto dos dois primeiros isolados. Graças as suas
características de formação, esse nível global de comunicação que constitui o livro
ilustrado como um todo, tem seu potencial interpretativo ampliado a cada nova leitura.
As possibilidades se iniciam nos vários caminhos de leitura que se apresentam ao leitor.
Primeiro a imagem e depois o texto ou vice-versa, a ordem de apreensão de cada
imagem, o caminho dos olhos pela página, não ler o texto, não observar as imagens;
tecnicamente qualquer que seja a escolha do leitor, a interpretação que deriva disso é,
não apenas válida, mas diferenciada. Anterior a isso, há ainda todo o trabalho editorial
realizado com a obra, que invariavelmente acaba carregando certa intenção ou
direcionamento – seja do autor, do ilustrador ou do editor.
Há também os fatores alheios à vontade do leitor como seu humor, a situação
em que a leitura ocorre, de que modo ela ocorre – um adulto lendo para uma criança,
uma criança interagindo sozinha pela primeira vez com um livro. Por último, devem ser
considerados também os fatores psicológicos que, em maior ou menor grau, acabam
por influenciar no modo como se interpreta as imagens, os textos, e o conjunto formado
pelos mesmos. Tanto as palavras como as imagens deixam espaço para os
leitores/expectadores preencherem [...], e assim podemos descobrir infinitas
possibilidades de interação palavra-imagem. (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 15).
Diante destas premissas, o presente estudo bibliográfico reflete sobre o modo como
texto e ilustração de uma obra da literatura infantil possibilitam a construção de sentidos
pelo pequeno leitor e identificam as principais contribuições da literatura para o
desenvolvimento ético, estético e intelectual do ser humano a partir da descrição e
análise da obra Se eu abrir esta porta agora, publicada em 2018, pelo autor e ilustrador
Alexandre Rampazo.

DESVELANDO UM LIVRO ILUSTRADO


Aprender a ler imagens é fundamental para o leitor de literatura infantil dada a
multiplicidade de experiências estéticas que proporciona. Com base nesta premissa,
este texto constrói uma reflexão a partir da descrição e análise da obra Se eu abrir esta
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porta agora. A imagem sempre esteve presente na vida de Alexandre Rampazo, que
publicou ao longo da carreira 64 livros, entre autorais e os que assina como ilustrador. O
autor já era diretor de arte quando fez com que a literatura infantil entrasse na sua vida
como uma forma de extravasar o seu desejo de ilustrar, e tem sido bem sucedido na
empreitada, pois vem emplacando um livro – e um prêmio – na sequência de outro.
O livro é muito original, a começar pelo fato de estar dentro de um invólucro ou
capa box. Na capa do livro há uma porta entreaberta e um bicho espreitando pela fresta,
desde logo esta imagem introduz o clima da história e instiga o leitor a descobrir o que
aconteceria se ele a abrisse agora. A capa box concentra as informações editoriais,
como: nome do editor-chefe, revisor, produção gráfica, entre outras. É importante notar
que há muitos profissionais envolvidos na produção do livro. Alexandre Rampazo é o
autor e ilustrador, seus dados biográficos o contextualizam no universo literário. A
dedicatória à sua mãe, insere o leitor no contexto da obra: “Para minha mãe, por mirar
a coragem para além do medo. E por deixar a luz do abajur sempre acesa.”
No verso da capa box está a provocativa e poética apresentação da obra por
Roger Mello: “Quem foi que disse que seria fácil abrir uma porta no meio da noite? [...]
é um livro na entrelinha. [...] E o livro tem dores e chaves, mas não queremos esconder
o perigo, queremos? Perdão, não consigo mais ficar falando, preciso abrir esta porta
agora.”
O livro apresenta características diferenciadas na encadernação, as páginas
possuem dobras que permitem distintas leituras ao objeto e um conjunto de textos e
imagens que podem seguir caminhos diferentes e que propõe uma brincadeira ao leitor,
pois parece que um perigo iminente pode surgir ao abrir a porta. Mas será que esse
gesto não poderia se transformar numa boa surpresa? Essas possibilidades são
exploradas a cada página, pela alternância entre a questão do título e a imagem da
porta, sempre seguidas de um comentário.
A porta remete ao leitor infinitas possibilidades de abertura para o desconhecido.
É através dessas portas ou das formas diferentes de olhar para o livro que o leitor entra
no estado investigativo, abandona o automatismo e se deixa ser surpreendido na
criação de sentidos.
A interação começa ao retirar o livro do invólucro. Em formato sanfonado, o livro
traz duas sequências, uma em cada face: a primeira relacionada ao medo e a segunda
à alegria, na qual a impressão em duas cores, azul e preto as simboliza. Um estudo
elaborado por Witter e Ramos (2008) demonstra a associação das cores às diversas
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situações da vida das pessoas. Com base nessa propriedade, faz-se uso de cores para
indicar condições diversas como perigo, atenção, paz, entre outros. A cor azul
significa tranquilidade, serenidade e harmonia, mas também está associada à frieza,
monotonia e depressão. Simboliza a água, o céu e o infinito. O preto em propaganda,
publicidade e marketing é associado com o poder, elegância, formalidade, morte, mal e
mistério. O preto é uma cor misteriosa associada ao medo e ao desconhecido (o
escuro).
O livro apresenta dois lados de uma mesma narrativa, ou melhor, dois lados de
um mesmo quarto de criança. A leitura pode ser iniciada por qualquer um deles, quando
sucessivamente se repete a frase “Se eu abrir esta porta agora...” e a imagem da porta
de um armário. No quadro abaixo, para estabelecer uma comparação, transcrevemos o
texto de cada lado e descrevemos as ilustrações.

Quadro 1 – Transcrição dos dois lados da história e descrição das ilustrações


Se eu abrir esta porta agora... Se eu abrir esta porta agora...
Um amigo adorável pode estar me Um monstro terrível pode estar me
esperando do outro lado. esperando do outro lado.
(a ilustração mostra o menino em pé (a ilustração mostra uma enorme ave negra,
no meio do quarto, vestindo seu com um grande bico, seu corpo
pijama de listras azuis e com cara de estranhamente recoberto com uma espécie
dúvida) de pelo e não de penas)
Se eu abrir esta porta agora... Se eu abrir esta porta agora...
Poderei sair e pegar o pé dele de Ele pode querer sair, puxar meu pé e me
surpresa pra brincar de pega-pega... pegar.
(aqui o menino aparece de lado indo (vê-se uma bruxa com seu grande chapéu,
se esconder) uma cara peluda, com verruga na ponta do
comprido nariz, grandes unhas afiadas
Se eu abrir esta porta agora... Se eu abrir esta porta agora...
Vou querer abraçar, apertar e até dar Ele pode querer me devorar.
mordidinhas de felicidade no meu (o Drácula aterroriza com seus longos
novo amigo. dentes incisivos, sobrancelhas altas,
(agora o menino abre bem os braços) orelhas pontudas, capa sobre os ombros e
unhas afiadas)
Se eu abrir esta porta agora... Se eu abrir esta porta agora...
A gente pode brincar que eu sou ele e Ele pode até querer tomar o meu lugar e
que ele sou eu, e ninguém vai notar. fingir que sou eu.
(faz cara de monstro, a boca torta, o (um enorme lobo seduz pelo olhar)
olho arregalado, os dentes afiados de
fora)
Se eu abrir esta porta agora... Se eu abrir esta porta agora...
Eu disfarço como se fosse ele, fico Ele vai ficar com meu quarto, meus
brincando com os brinquedos. Então brinquedos, minha mãe, meu pai...
vamos enganar todo mundo, até o pai (o Saci Pererê com seu cachimbo, chapéu
e a mãe dele. de duende, bermuda e de uma perna só)

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(o menino é retratado com expressão
inocente, numa das mãos um livro de
história, na outra um lobo de
brinquedo)
Se eu abrir esta porta agora... Se eu abrir esta porta agora...
Eu sei que vou adorar! Um, dois, três, Eu sei que eu vou me arrepender...
vou abrir esta porta... (o assustador gorila King Kong)
(a porta fechada)
...Agora! Se eu abrir esta porta agora...
(esta é a única palavra grafada em (a porta fechada)
azul)
(O menino dorme serenamente na
sua cama)
Ai, Ai, se eu abrir esta porta AGORA...
(esta é a única palavra grafada em azul)
(o armário do menino guarda dois livros de
histórias, uma revista do Batman, uma
camiseta do King Kong, outra com o raio do
The Flash, um ninho com um pássaro, um
brinquedo de lobo, uma meia caindo da
gaveta e um par de olhos dentro da gaveta
entreaberta.
Fonte: Livro Se eu abrir esta porta agora, de Alexandre Rampazo (2018).

Na coluna à esquerda o texto mostra toda uma expectativa positiva de uma


criança que quer brincar, que imagina estar sendo esperada por um amigo adorável,
que é afetiva, feliz e alegre, que quer estabelecer uma simbiose e cumplicidade com
seu amigo, e que sabe que tudo isso vai ser muito bom. A ilustração é suave e mostra
a imagem do menino de braços abertos, ou fazendo careta, mostrando um brinquedo,
um livro e, finalmente, dormindo tranquilamente com seu pijama de suaves listras azuis.
Na coluna à direita o uso dos verbos revela a insegurança e medo do menino. A
utilização de poder como verbo auxiliar seguida de infinitivos indicam a possibilidade de
que algo pode ocorrer, causando desassossego e expectativa: pode estar me
esperando do outro lado, ele pode querer sair, ele pode querer me devorar, ele pode até
querer tomar o meu lugar. As inseguranças pioram e nos dois últimos trechos se
transformam em terríveis certezas: ele vai ficar com meu quarto, meus brinquedos,
minha mãe, meu pai..., eu sei que eu vou me arrepender... Nota-se ainda o uso das
reticências como insinuação de alguma coisa que o menino não consegue revelar, dada
a sua emoção demasiada. Este recurso de pontuação interrompe um pensamento de
forma que convida o leitor a subentender ou imaginar o que seria enunciado. Há ainda
assustadoras expressões no texto como monstro terrível, me devorar, puxar meu pé e

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me pegar, e nas ilustrações os personagens associados ao mal como a bruxa, o
Drácula, o Saci-Pererê e o King Kong.
Num primeiro olhar, este livro aparentemente contém um texto e ilustrações
muito simples, mas é de uma leitura mais atenta e conjugando texto e imagens que
emana a sua força. A análise desta obra nos faz perceber o asseverado por Walty,
Fonseca e Cury (2001) sobre as diferentes facetas de um mesmo processo de leitura
"em rede" de produção e recepção provocado pela força da palavra em seu poder de
criar imagens na mente do leitor, pela força que emana da associação entre o traço e a
letra, e pela força da imagem a suscitar textos verbais.
Cada personagem nos olha nos olhos, não temos para onde fugir, precisamos
encarar os nossos monstros ao virar as páginas. A caixa box de onde tiramos o livro
poderia representar talvez a caixa de Pandora, que é um artefato da mitologia grega,
tirada do mito da criação de Pandora, que foi a primeira mulher criada por Zeus. A caixa
era na verdade um grande jarro dado a Pandora, que continha todos os males do
mundo. Pandora abre o Jarro, deixando escapar todos os males do mundo, menos a
"esperança". Ao abri-la deixamos que escapem todos os seres assustadores da
literatura infantil. E o que ganhamos com abrir a porta uma e outra vez? Percebe-se a
cada repetição da frase a conjunção condicional se, portanto, a partir da própria
condicional o leitor é motivado a romper com seu horizonte de expectativas e reconstruir
seus horizontes agora de forma mais ampla. Apesar de haver muitos significantes
imagéticos usados no texto que tendem a produzir determinado efeito de sentido, há de
se observar que eles não produzem sentidos isoladamente, os discursos estão
produzidos na articulação das linguagens e não somente por meio da imagem ou do
verbal isoladamente.
A montagem do Quadro 2 nos auxilia a aproximar e a comparar os dois lados do
livro, o que resulta na descoberta do anunciado por Roger Mello na apresentação: “É
só através do outro que eu sei quem sou”. Um livro de dupla face, dois lados de um
mesmo personagem, o bem e o mal que convivem dentro de cada um de nós, as
certezas e as inseguranças lado a lado.

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Quadro 2 – Comparativo entre os dois lados do livro
Um amigo adorável pode estar me Um monstro terrível pode estar me
esperando do outro lado. esperando do outro lado.

Poderei sair e pegar o pé dele de Ele pode querer sair, puxar meu pé e me
surpresa pra brincar de pega-pega... pegar.

Vou querer abraçar, apertar e até Ele pode querer me devorar.


dar mordidinhas de felicidade no (o Drácula aterroriza com seus longos
meu novo amigo. dentes incisivos)

A gente pode brincar que eu sou ele Ele pode até querer tomar o meu lugar e
e que ele sou eu, e ninguém vai fingir que sou eu.
notar. (um enorme lobo seduz pelo olhar)
(e o menino faz cara de monstro, a
boca torta, o olho arregalado, os
dentes afiados de fora)
Eu disfarço como se fosse ele, fico Ele vai ficar com meu quarto, meus
brincando com os brinquedos. Então brinquedos, minha mãe, meu pai...
vamos enganar todo mundo, até o
pai e a mãe dele.
Se eu abrir esta porta agora... Se eu abrir esta porta agora...
Eu sei que vou adorar! Eu sei que eu vou me arrepender...

Fonte: Livro Se eu abrir esta porta agora, de Alexandre Rampazo (2018).

Na última cena do lado do menino, de modo surpreendente, na gaveta aberta


tem um par de olhos. São olhos de um bicho de pelúcia ou olhos de algum dos monstros
do armário? Só aqui sabemos que se trata da porta de um armário, a porta vista sozinha
poderia ser do quarto. O mais importante é que aqui fica elucidado que a narrativa é
dada a partir da perspectiva do sonho, da fantasia, e da imaginação do menino, pois
dentro do armário real estão a fonte da imaginação do menino: um livro de contos de
fadas, uma revista do Batman, uma camiseta do King Kong, um ninho com um pássaro,
um brinquedo de lobo. Por meio de uma linguagem metafórica, percebe-se que surge
um jogo estabelecido com o leitor na medida em que ele se identifica. Nesse processo,
o receptor da história envolve-se em diferentes eventos daqueles que está vivendo na
vida real e, através desse envolvimento intelectual, emocional e imaginativo,
experimenta fatos, sentimentos, reações de prazer ou frustrações podendo, assim,
lembrar, antecipar e conhecer.
A obra Se eu abrir esta porta agora provoca o enfrentamento do medo do
desconhecido. Não existe pior monstro do que aquele que ainda não tem forma. A
interdependência entre imagens e texto enriquecem “o jogo de significações da leitura

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[...] palavra ou traço, verbo ou cor, o signo codifica o mundo em suas linguagens. Importa
articulá-las.” (WALTY, FONSECA, CURY, 2001, p. 68). O livro se torna circular, o final
de um lado leva ao início do outro. O abrir e fechar da porta, junto com a repetição da
frase que dá nome ao livro, tem grande potencial para cativar crianças e instigar o
imaginário infantil.

Apontamentos e contribuições para a formação de leitores


A peculiaridade do suporte da obra analisada convida a criança a explorar a sua
materialidade. Crianças se entregam ao convite de brincar, de se envolver emocional e
sensorialmente com grande espontaneidade, em suas mãos as páginas de um livro
como este “ganham vida e performances mágicas, apresentando algo curioso,
surpreendente, divertido, inovador [...].” (PAIVA, CARVALHO, 2011, p. 15). Um livro que
desperta o desejo de agir sobre ele, um convite ao manuseio.
O livro infantil é um recurso importante para o desenvolvimento dos aspectos
cognitivos e socioafetivos, como a criatividade, a percepção visual, e as noções de cores
e de espaço. Desenvolver estas habilidades propicia o acesso a processos de
apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes
linguagens.
Num mundo em que se proliferam as linguagens e, especialmente, as linguagens
visuais é essencial incentivar as crianças a se interessarem pela arte e prepará-las para
interpretar imagens. Quanto mais cedo as múltiplas experiências visuais significativas
forem proporcionadas aos sujeitos e for dada a eles a oportunidade de refleti-las e
apreciá-las, mais efetiva será sua formação leitora. Nas palavras de Linden (2011), ler
o livro ilustrado envolve a apreciação, por parte do leitor, de todo o conjunto que a obra
nos traz, por isso,

[...] ler um livro ilustrado não se resume a ler texto e imagem. É isso, e
muito mais. Ler um livro ilustrado é também apreciar o uso de um
formato, de enquadramentos, da relação entre capa e guardas com seu
conteúdo; é também associar representações, optar por uma ordem de
leitura no espaço da página, afinar a poesia do texto com a poesia da
imagem, apreciar os silêncios de uma em relação à outra... Ler um livro
ilustrado depende certamente da formação do leitor. (LINDEN, 2011,
p. 8-9).

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Como se nota, é na interação do objeto lido que a literatura se consolida e
permite ao leitor participar da leitura, proporcionando o exercício da liberdade e levando
o leitor a produzir sentidos.
A passagem do olhar de uma a outra página, o ato de folhear o livro Se eu abrir
esta porta agora, faz o leitor criar expectativas, experimentar surpresas, formular
hipóteses. Tudo isso concorre para a construção de significados. Cria a possibilidade
da interação entre texto e imagem e enriquece a leitura atraindo o leitor. A obra se
estrutura apoiada no humor, na busca de soluções, e, sobretudo, na aposta de contribuir
para a transformação do enfrentamento espontâneo e podemos dizer até divertido do
medo. É um menino que vivencia os problemas, os conflitos e tenta resolvê-los, na
espontaneidade, e no humor onde os brinquedos, os jogos de pega-pega e faz de conta
são fontes de imaginação.
A memória contextual da criança sobre o ambiente físico e psicológico, com fatos
que lhe foram agradáveis ou hostis, permanece como referência a partir da qual ela
elabora e reelabora os conceitos de que necessita para interagir com o mundo. O medo
que muitas vezes sentimos é um grande obstáculo, o qual nos impede de alcançar
objetivos, não deixa fluir nossa energia e nos desgasta. Além disso, o medo inibe a
capacidade de refletir com liberdade, discernir entre possíveis caminhos ou iniciar outros
novos, livres e desimpedidos.
A obra convida o leitor a uma proposta séria de reflexão, meditação e mudança,
mas não engana ninguém, o esforço é árduo. Ela sugere um primeiro ato de coragem
encarando desafios, inspirada em um menino no sentido de produzir um discurso com
independência e autonomia que enfrenta suas aflições e projeta um mundo de liberdade
com humor. O exemplo de coragem leva o leitor a também imaginar e recriar
experiências. Sua intenção é proporcionar prazer e diversão ao leitor e, ao mesmo
tempo, instigá-lo a questionar, a descobrir outros caminhos e soluções para os
problemas, permitir que ele reconheça no texto suas próprias experiências de vida e
experimente novas emoções e sentimentos. As crianças, curiosas por natureza, podem
ser provocadas a viver no campo simbólico experiências difíceis, e encorajados a
enfrentá-las.
Tauveron (1999) aborda a relevância para a formação de jovens leitores contida
na sua aproximação precoce de obras que não se deixam apreender automaticamente,
que não entregam seu sentido simbólico facilmente. Elas oferecem uma chance ao leitor
de colocar as suas habilidades à prova, de usar a sua criatividade para mergulhar nas
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pistas que podem vir de diferentes fontes e serem diversamente interpretáveis. Se eu
abrir esta porta agora... vai exigir do leitor aprender a analisar, abstrair e argumentar,
mas como se trata de uma leitura literária demanda um trabalho de interpretação
construído a partir do que lhe diz ou sugere a obra. Aos poucos o jovem leitor vai
percebendo que há estratégias num texto literário a serem povoadas com suas
experiências de vida, suas leituras, seus conhecimentos e que é preciso ir negociando
a construção de sentido do texto consigo mesmo, ou no debate argumentativo com
outras pessoas.
A leitura da obra provoca tensão, curiosidade, reflexão, enfrentamento do
desconhecido e do medo. E aí vem muitas opções interessantes para desfazer qualquer
medo que a criança possa ter evocado quando estava do outro lado da porta. Demonstra
ao leitor que na vida temos dois lados, trabalhando os sentimentos aos quais o ser
humano se constitui ao longo de sua vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra Se eu abrir esta porta agora tem potencial para favorecer a formação
leitora dos pequenos, uma vez que suas ilustrações e a forma como estão ordenadas
com o texto possibilitam desenvolver a imaginação do leitor, oferecendo-lhes novas
possibilidades de leitura, novas interrogações, impressões e sensações. Nela as
imagens e as palavras possuem a mesma importância narrativa, o significado surge por
intermédio da interação entre palavras e imagens (SALISBURY; STYLES, 2012).
Por vários motivos, a obra instiga, desperta a curiosidade e estimula os sentidos,
mas destaca-se a originalidade provocada por seu instigante formato sanfonado, que
provoca uma experiência sensorial, e tão bem descrita na apresentação de Roger Mello:
“Precisamos distender o tempo, e sabemos que o tempo é um espaço que estica e
encolhe, entre uma ou outra dobra de pensamento”. Ela está sempre a ser descoberta,
basta um novo olhar para desvendar outras formas de ver, abrir, fechar, brincar e
sanfonar.
A obra revela que assim como na vida, tudo pode ser uma questão de
perspectiva, transformando a experiência leitora em algo único com portas que
escondem segredos e temores, surpresas e possibilidades e que é preciso se arriscar e
não há escapatória. Ela permite vivenciar emoções, como a tristeza, o medo, a alegria,
surpresa, bem como conhecer a si mesmo. A leitura das palavras e das imagens pode
provocar emoções, ora fortalecendo e ora confrontando o leitor, demandando a sua

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tomada de decisões, e na medida em que ele avança vai seguindo por trilhas da
curiosidade, pelo lúdico e por diferentes campos intertextuais.
A obra provoca reflexões de natureza cognitiva e afetiva, permitindo ao leitor a
entrada em um mundo desconhecido, porém, instigante, que desenvolve o imaginário,
e desperta a curiosidade. Nela, a imagem é linguagem imprescindível à manifestação
do sentido textual, ela contribui para desenvolver no pequeno leitor a capacidade de
observação e análise, à medida que o desafia a examinar os detalhes e a construir
inferências a partir deles.
Trata-se de um livro em que a forma como ele é apresentado faz diferença na
compreensão da leitura. São indissociáveis o projeto gráfico, o texto e as imagens, que
juntos contam uma história. A exclusão de um destes elementos comprometeria a
narrativa. São linguagens diferentes que integradas neste livro, reservam para o leitor o
papel de interpretar, de buscar os seus sentidos, de desconfiar, de se surpreender.
Ressalta-se ainda, o apresentado por Paiva e Carvalho (2011, p. 32-33), o fato de que
este tipo de livro desperta uma relação afetiva da criança com o objeto, pois ela se
diverte com as descobertas suscitadas pelo seu manuseio que “incentiva muito mais um
ler viajado e expressivo do que um ler corrido e superficial, mecânico, acelerado [...] o
que promove iniciativas espontâneas de revisitação, de brincar de novo e aprender
explorando o apreender.”

REFERÊNCIAS
LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro Ilustrado: palavras e imagens. São Paulo:
Cosac Naify, 2011.

PAIVA, Ana Paula; CARVALHO, Amanda Carla Minca. Livro-Brinquedo, muito prazer.
In: SOUZA, Renata Junqueira de; FEBA, Berta Lúcia Tagliari (orgs.). Leitura literária
na escola. Reflexões e propostas na perspectiva do letramento. Campinas: Mercado de
Letras, 2011. p. 13-47.

RAMPAZO, Alexandre. Se eu abrir esta porta agora... São Paulo: SESI-SP editora,
2018.

SALISBURY, Martin; STYLES, Morag. Livro infantil ilustrado. A arte da narrativa


visual. Tradução: CAPANO, Marcos. São Paulo: Rosari. 2012.

TAUVERON, Catherine. Comprendre et interpréter le littéraire à l’école: du texte réticent


au texte proliférant. REPÈRES – recherches en didactique du français langue

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maternelle. Revue de l’Institut National de Recherche Pédagogique. Lyon, n. 19, p. 9-
38, 1999.

WALTY, Ivete Lara Camargos; FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda
Ferreira. Palavra e imagem: leituras cruzadas. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

WITTER, Geraldina Porto; RAMOS, Oswaldo Alcanfor. Influência das cores na


motivação para leitura das obras de literatura infantil. Psicologia Escolar e
Educacional, Campinas, v. 12, n. 1, p.37-50, jun. 2008. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
85572008000100004>. Acesso em: 28 fev. 2020.

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AS RELEITURAS DE CINCO OBRAS CLÁSSICAS DE POESIA
INFANTIL DO SÉCULO XX: OS OLHARES DOS ILUSTRADORES
NA CONSTRUÇÃO DE NOVOS TEXTOS IMAGÉTICOS NO
SÉCULO XXI

Raquel Cristina Baêta Barbosa, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


Isabel Cristina Alves da Silva Frade, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Eixo Temático: Grupo temático 5: Literatura Infantil e as relações com a imagem

Considerações iniciais
Este texto tem como objetivo apresentar uma parte das análises referentes à
materialidade, ilustração e investimento editorial em obras de poesia infantil, que foram
publicadas, pela primeira vez, no século XX. Faz parte do conjunto de análises da tese
de doutorado “A circulação de cinco obras clássicas da poesia infantil brasileira: análise
de possíveis estratégias literárias e editoriais para a acomodação e permanência das
obras dentro e fora do contexto escolar”.
Foca-se na relação entre texto verbal e imagético das últimas versões das obras
O menino poeta, de Henriqueta Lisboa, (1943) Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles
(1964), Pé de Pilão, de Mário Quintana (1968) , A arca de Noé, de Vinicius de Moraes
(1970) e É isso ali, de José Paulo Paes (1984).
Essa relação é analisada a partir do olhar do ilustrador, ou seja, da forma que
ele construiu a relação entre texto verbal e texto imagético. Em função da diversidade
de edições das cinco obras, publicadas por diferentes editoras, com a presença de
distintos textos imagéticos, produzidos por vários ilustradores, consideramos que a
construção autoral dos ilustradores das últimas versões das cinco obras é uma releitura
das obras. Ou seja, é um olhar sensível para a produção poética e uma diálogo com o
texto verbal de Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Mário Quintana, Vinicius de Moraes
e José Paulo Paes.
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Para a realização das análises, levou-se em consideração a contribuição da
História do Livro, (DARNTON e CHARTIER), porque essa perspectiva de estudo
trabalha a significação tanto de elementos externos, quanto de elementos internos de
uma obra que influenciam, positivamente ou negativamente, no destino final dela, ou
seja, a interação entre leitor, livro e leitura. Esta perspectiva nos ajuda a entender como
as alterações de um dos aspectos pode provocar distintas interações ou até mesmo
produzir novas obras a partir de um mesmo texto verbal, por exemplo.
Além do campo histórico, nos apoiamos nas contribuições do campo da
Literatura Infantil e também Poesia Infantil Brasileira com o objetivo de compreender a
constituição das produções do gênero poema, voltados para o pequeno leitor, bem como
as interações entre os distintos aspectos de uma obra que se destina para a faixa etária
da infância.

Contribuições da História do Livro e da Literatura Infantil


A obra literária pode ser concebida como a união do texto verbal, texto imagético
e projeto gráfico editorial, quando todas essas partes estão presentes. A junção de todos
os elementos que compõem uma obra literária na forma de um livro impresso é avaliada
como significativa e como influenciadora nos processos de avaliações, de escolhas
literárias e de leitura. A visualidade é considerada, nesta pesquisa, como resultado da
união de todos os elementos que compõem um livro.
Nessa visualidade há signos visuais que não são ilustrações, mas que
constituem uma imagem da página. Portanto, o conceito de imagem é muito mais amplo
que o de ilustração. Num livro, há um conjunto de recursos que resultam no que
podemos chamar de mise-en-page: em primeiro lugar, podemos citar os fatores ligados
à letra impressa e à forma como ela se apresenta, observados na tipografia, nas
marcações de cores, na distribuição pela página e no tamanho de letras; em segundo
lugar, destacamos a organização geral da página que comporta margens, espaços em
branco, amarrações para iniciar ou fechar as lições e, em terceiro lugar, ressaltamos as
ilustrações e esquemas gráficos. (FRADE, 2010b, p. 144).
Chartier (1997, 2001, 2002, 2009) aponta a relevância de se reconhecer que
todos os aspectos gráficos e materiais de uma obra impressa interferem na sua
recepção. O papel de editores, impressores e ilustradores de transformar o texto
produzido pelo autor em um livro é reconhecido dentro do contexto de circulação da
obra no mundo social. “As variações das modalidades mais formais de apresentação
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dos textos podem, portanto, modificar-lhes o registro de referência e interpretação.”
(CHARTIER, 1997, p. 24). Nesse sentido, o papel do editor e da sua equipe é construir
estratégias, na materialidade e na organização dos textos ao longo das páginas, que
busquem conquistar determinados leitores.
Há também outros fatores culturais e sociais, no âmbito externo, que
repercutem no sentido de uma obra. Uma mesma obra pode circular em grupos sociais
variados e assumir distintos significados, dependendo das intenções que marcam os
elementos que a compõem. Pode durar por um tempo significativo por influência não só
das expectativas impostas pelo contexto autoral e editorial, mas pelas possíveis
produções de significados dadas pelo leitor a cada tempo. Ao longo dos tempos, as
obras assumem outros valores de sentido, porque, apesar de não terem seu conteúdo
alterado, ou o terem pouco alterado, o mundo em que elas circulam sofre constantes
modificações e as maneiras de se pensar a vida interferem nas construções dos
significados. Por isso, uma mesma obra, com “novas roupagens”, pode ser lida de
variadas formas por diversas gerações de leitores.
O interesse por um livro, demonstrado por um dado leitor, passa pela recepção
tanto da materialidade quanto das relações entre textos escritos e textos imagéticos. Se
uma obra é produzida ao longo de vários anos, em diferentes materialidades, sua
permanência pode ser um indício de que foi aceita por diferentes leitores.
Para além de evidenciarmos a força de todos os elementos que compõem uma
obra reconhecemos a força do texto poético dos cinco poetas.
A essência de um texto poético é a possibilidade de dar aos diferentes leitores o
direito de interpretar e construir distintos sentidos para o que é apresentado. É a
liberdade de sentir a expressão da palavra. “É essa a magia da palavra poética –
multiplica-se em diferentes sentidos, dependendo do olhar e do espírito de quem a lê.”
(COELHO, 2000, p. 222).
Nessa direção, um texto, que assume as características do poético não
tem prazo de validade enquanto fizer sentido para os leitores, ele pode seguir um longo
percurso no circuito de obras desse gênero. Partindo desse apontamento, salienta-se
que os textos poéticos de Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Mario Quintana, Vinicius
de Moraes e José Paulo Paes não envelheceram e, mais do que isso, ganharam novos
olhares, novos sentidos, a partir das intervenções materiais, editorias e imagéticas feitas
em novas versões. Ganharam novas roupagens para chegar até as mãos de distintas
gerações de leitores, transformaram-se em novas obras.
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As últimas versões: possíveis releituras dos ilustradores
Foi possível identificar que, ao longo dos anos e das diferentes roupagens, as
cinco obras sofreram adaptações para serem incluídas em coleções e propostas
editoriais e, por isso, circularam e ainda circulam ao lado de produções publicadas pela
primeira vez, no século XX. Todas as últimas versões foram publicadas no século XXI e
podem ser assim apresentadas:

Tabela 1 - Informações editorias das últimas versões das cinco obras


O Menino Ou isto ou Pé de A Arca de
É Isso Ali
Poeta aquilo Pilão Noé

Capa

Ano de 2005
2008 2014 2018 2004
Publicação (2ªedição)
27cmx17c 28,0cmx21,0c 27,5cmx20,5c
Tamanho 27cmx20,5cm 21,5cmx26,0 cm
m m m
Companhia
Companhia
Editora Peirópolis Global das Salamandra
das Letrinhas
Letrinhas
Ilustração Colorida Colorida Colorida Colorida Colorida
Walter
Ilustrador Nelson Cruz Odilon Moraes Rosinha Nelson Cruz
Vasconcelos
Número de Sem
118 64 40 62
páginas numeração
Fonte: Elaborada pela autora.

Para nossas análises das últimas versões das cinco obras partimos da defesa
de que os ilustradores fizeram a releitura dos textos poéticos dos poetas Henriqueta
Lisboa, Cecília Meireles, Mário Quintana, Vinicius de Moraes e José Paulo Paes. Um
dos aspectos que respalda a nossa defesa é o reconhecimento de suas trajetórias nas
produções de literatura infantil e, por isso, receberam algumas premiações por suas
produções e intervenções.
Alguns ilustradores falam sobre o processo de ilustração dos textos poéticos
consagrados dos poetas, ou seja, sobre as releituras das obras. Há trechos dos seus
pronunciamentos em paratextos na obra e nos sites das editoras. O olhar dos
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ilustradores para a produção das ilustrações revela o contato com o tempo da infância,
bem como a necessidade de imprimir nos novos textos imagéticos às suas
interpretações pessoais dos poemas, como pode ser verificado a seguir:

Tabela 2 - Ilustradores da última versão das cinco obras

OBRA ILUSTRADOR COMENTÁRIOS

Fui e voltei inúmeras vezes à minha infância


sorvendo a poética de Henriqueta. Fui
recuperando o fio do tempo e puxando-o entre os
dedos. Às vezes sentia que o fio escapava e
O menino criava ilustrações com metáforas para um mundo
Nelson Cruz
poeta adulto impossível de evitar. Algumas ilustrações
perseguem um desejo que tenho de ver sempre
um adulto com uma criança no colo dividindo um
livro, como na ilustração do poema “Laços”.
(CRUZ, 2008, orelha da obra).
Para Odilon Moraes, (...), ilustrar uma obra de
Cecília Meireles é uma oportunidade fantástica.
“Realizar a reinterpretação de obras clássicas é a
atividade que todo ilustrador quer”, enfatiza.
“Sempre imagino como seria a minha versão de
ilustração de obras que ganharam destaque na
literatura brasileira e, quando tenho a
oportunidade de fazê-lo, é fantástico.
Além do fato de ser uma obra de destaque, Odilon
conta que adorou fazer a ilustração por causa de
um detalhe bastante peculiar. “Esse livro de
Ou isto ou Odilon Cecília Meireles tem para mim um significado
aquilo Moraes muito especial, pois além de ser um clássico,
minha esposa fala que é o livro da vida dela”,
conta. Uma das coisas que mais chamaram a
atenção do ilustrador nesta obra foi a questão da
“escolha” que Cecília deixa explícito. “Em alguns
momentos ela brinca com os sons e possibilita
que o leitor enxergue várias oportunidades de
escolher entre ‘isto ou aquilo’.” E completa: “Esta
não é uma obra somente para crianças, pois
Cecília se revela. A obra já inicia com a maneira
dela ver a vida, sempre relacionada à questão da
escolha.”102
Não foi encontrado comentário da ilustradora.
Pé de Pilão Rosinha

102
Disponível em: http://www.globaleditora.com.br/blog/ultimas/global-editora-lanca-ou-isto-ou-aquilo-
de-cecilia-meireles/. Acesso em: 16 dez. 2018.
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(...) Mesmo sem me conhecer, você pode
adivinhar que pelas minhas mãos passou um
exemplar do disco A Arca de Noé, e que eu li, reli
e cantei seus poemas alegrando encontros com
sobrinhos e tantas outras crianças. Tamanha é a
grandeza e simplicidade de Vinicius que criar as
ilustrações para os poemas de A arca de Noé –
já tão repletos de imagens – foi dos meus maiores
desafios. Confesso que, como leitor, criei minhas
próprias imagens para esses poemas e
intimamente venho convivendo feliz com elas.
A Arca de Passado o susto do convite, aos poucos fui me
Nelson Cruz
Noé recompondo e me conscientizando da felicidade
e da honra que é ilustrar essa obra. A partir daí
procurei elaborar ilustrações que não tivessem a
intenção de, vamos dizer, “capturar” os poemas,
e sim de dar outras dimensões ao tema de cada
um deles. Considerei-os passagens para criar
ilustrações que registrassem meu sentimento
como leitor e ilustrador do poeta. Assim conduzi
a criação das imagens desta edição; na verdade,
leitor e ilustrador vieram se misturando até o final
do livro no feliz encontro que foi ilustrar esses
poemas. CRUZ, 2004, p.62).
Walter Não foi encontrado comentário do ilustrador.
É isso ali
Vasconcelos
Fonte: Elaborada pela autora.

Nessa última versão das cinco obras, há um notável investimento no texto


imagético que ganha maior destaque em relação ao texto poético. Dessa forma, a
interação entre texto verbal e texto imagético traz para o leitor novos elementos. Não
há, dessa forma, apenas uma compreensão do texto verbal nas ilustrações, há uma
apresentação de novos elementos que focam na interpretação do texto poético feito
pelos ilustradores.
Na obra O menino poeta, o texto visual se faz presente em todas as páginas e
ocupa um maior espaço, se comparado ao texto verbal, como acontece no poema
“Consciência”. O texto imagético ocupa as duas páginas e o poema fica concentrado no
canto superior direito da página.

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Figura 1 - Distribuição do texto verbal e texto imagético na última versão de O menino
poeta

Fonte: Foto produzida pela autora.

Para a versão mais atual da obra Ou isto ou aquilo há um equilíbrio entre


ilustração e poemas e, em cada um deles, há uma ilustração, bem como, em cada
página, há um investimento diferenciado em cores.

Figura 2 - Proposta diferenciada para as ilustrações de Ou isto ou aquilo

Fonte: Foto produzida pela autora.

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Pode-se dizer que a última reprodução da obra Pé de Pilão é caracterizada pelo
investimento no projeto gráfico e no texto imagético. As ilustrações ocupam todas as
páginas, dialogando com os versos do poema narrativo.
O texto imagético é preponderante ao longo de toda a obra e cada página dupla,
apresenta elementos dos versos dispostos, com riqueza de detalhes. A distribuição do
poema narrativo, ao longo das páginas, foi estratégica para que os trechos dialogassem
com as ilustrações. Isso pode ser exemplificado na ilustração que é apresentada no
fragmento em que há uma discussão entre o pato e o passarinho.
Como as ilustrações evidenciam detalhes do poema narrativo, estas trazem
novos elementos, como é o caso do trecho em que é citada a presença de vários rostos
para a avó:

Figura 3 - Os rostos da avó em Pé de Pilão

Fonte: Foto produzida pela autora.

O investimento imagético, a riqueza dos detalhes, o foco em determinados


pontos da narrativa em versos pode contribuir com novas construções e novos sentidos
para o texto literário produzido por Mário Quintana. Nesse sentido, é possível
compreender que um texto poético traz muitas imagens em suas palavras e que a junção
entre texto poético e texto imagético acrescenta novas possibilidades de interação,
novos sentidos, novas percepções.
A Arca de Noé é reproduzida em uma versão maior do que as anteriores. Não
são todos os poemas que são acompanhados de ilustração. No entanto, quando estas

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estão presentes, o texto imagético se sobressai. A ilustração, nesse caso, é iniciada na
página onde está registrado o poema.

Figura 4 - Exemplo de preponderância da ilustração. Poema “O ar (o vento)”.

Fonte: Foto produzida pela autora.

Esta versão exibe ilustrações austeras, sem traços infantis, o que pode revelar a
sua intencionalidade: ser voltada não só para o leitor criança, reforçando outros
modelos estéticos para estes leitores, mas também para os leitores adultos.
Em relação à obra É isso ali não há um padrão para a apresentação de poemas
e ilustrações. Ora os poemas vêm em primeiro lugar, ora as ilustrações. O maior formato
da obra é a sua última edição. O projeto gráfico editorial se mistura com as ilustrações
nas apresentações dos poemas, assim como acontece em suas outras versões, já que
há um lugar privilegiado para as ilustrações e um investimento em propostas gráficas.
Até mesmo o paratexto “Explicação” vem acompanhado de uma ilustração.
Os poemas ocupam pequenos espaços das páginas, já que, na maioria das
vezes, o texto imagético predomina no projeto gráfico como um todo, às vezes
invadindo a página de texto. No caso da reprodução abaixo, o próprio efeito
tridimensional de dobradura dá volume maior à página da direita.

Figura 58 - Poema “Inutilidades”, de É isso ali

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Fonte: Foto produzida pela autora.

Certamente as releituras dos ilustradores assim como novas diagramações que


também dão mobilidade aos formatos dos textos, em relação a versões anteriores,
mostram como se criam novas atmosferas visuais e novos recursos semióticos que
constroem outros tipos e processos de recepção das obras. Também não podemos nos
esquecer de fatores materiais e técnicos que ajudam a construir uma cultura visual ou
uma dimensão estética própria do tempo de publicação das obras.

Considerações finais
O papel dos distintos ilustradores das obras dos escritores Henriqueta Lisboa,
Cecília Meireles, Mário Quintana, Vinicius de Morais e José Paulo Paes pode ser
considerado essencial para a manutenção e sobrevivência do texto dos autores. Afinal,
é por meio das releituras e das distintas ilustrações que as obras são apresentadas em
novos formatos, em novas perspectivas, adaptadas ao contexto e ao período editorial,
ou seja, novas obras são apresentadas para as propostas e demandas editoriais de
cada época. De tal modo, os olhares dos ilustradores são, também, uma forma de
testemunho sobre diferentes possibilidades de interação entre os leitores e a obra
poética, no caso desses atores que intervêm na obra.
Em conformidade com Genette (2009), alguns formatos e investimentos em
materialidade podem ser sinônimo de investimento em obras consideradas clássicas.
De forma geral, identifica-se, por parte das editoras, ao publicarem as versões atuais
das cinco obras, um olhar mais cuidadoso e um significativo investimento na
materialidade, na escolha do papel, das capas e quartas capas, na presença de outros
paratextos, textos imagéticos, organização e distribuição do texto verbal ao longo das

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páginas. Há um número relevante de paratextos que apresentam, contextualizam e
organizam as versões. As ilustrações ganham destaque e são apresentadas em cores
vivas e interagem de forma diversificada com o texto poético. Dessa forma, são versões
que dão destaque para a produção poética dos cinco poetas, ao oferecer ao leitor um
conjunto material, gráfico e imagético sofisticado.
Para além da sofisticação e do destaque para o texto verbal, ou seja, o texto
literário em forma de poemas, dos cinco poetas, o investimento na linguagem imagética,
bem como no projeto gráfico editorial, certamente, é um dos fatores que contribuíram
para fazer com que os textos escritos no século XX continuem circulando, em diferentes
roupagens, no século XXI. As estratégias editoriais são investimentos para que as obras
dos poetas sejam reatualizadas e, dessa forma, a editoras alimentam o ciclo de vida das
cinco obras.
O papel autoral dos ilustradores ao imprimir uma releitura do texto poético em
suas produções imagéticas, foco deste artigo, garante uma interação diferenciada e
novas experiências com a leitura das produções.

Referências
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CHARTIER, Roger. Cultura Escrita, Literatura e História: Conversas de Roger Chartier


com Carlos Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto
Alegre: Artmed Editora, 2001.

CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: UNESP, 2002.

CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar: Cultura escrita e literatura. São Paulo: Editora
UNESP, 2007.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP,


2009.

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Tradução: Cristina Antunes. 2.ed.


Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In: CHARTIER, Roger. (Org.). Práticas de Leitura.
5.ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011a. (p. 77-105).

CHARTIER, Roger. A leitura: uma prática cultural – um debate entre Pierre Bourdieu e
Roger Chartier. In: CHARTIER, Roger. (Org.). Práticas de Leitura. 5.ed. São Paulo:
Estação Liberdade, 2011b. (p. 231-253).

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CHARTIER, Roger. (Org.). Práticas de Leitura. 5. ed. São Paulo: Estação Liberdade,
2011c.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, analise, didática. São Paulo:
Moderna, 2000.

COELHO, Nelly Novaes. Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira.


5.ed. São Paulo: Companhia da editora Nacional, 2006.

DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: Mídia, Cultura e Revolução. São Paulo:


Companhia das Letras: Schwarcz, 1990.

DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. São Paulo:
Companhia das letras, 2010.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos: e outros episódios da história cultural


francesa. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Cartilha Proença e Leitura do Principiante de


Antônio Firmino de Proença: configurações gráficas e pedagogia. In: RAZZINI, Marcia
de Paula Gregorio (Org.). Antonio Firmino de Proença: professor, formador, autor. São
Paulo: Porto de Ideias, 2010b.

GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

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A LEITURA DO LIVRO ILUSTRADO NA ESCOLA: DIÁLOGO
ENTRE AS PRÁTICAS DOS PROFESSORES E AS OPERAÇÕES
DE LEITURA DAS CRIANÇAS

Profa. Dra. Andrea Rodrigues Dalcin, FE/UNICAMP

Eixo Temático: Literatura Infantil e as relações com a imagem

Considerações iniciais
Nesta pesquisa, nos ocupamos em conhecer as práticas de leitura dos livros
ilustrados a partir das maneiras de fazer de um grupo de professoras que atuam em
duas escolas públicas municipais. Para tanto, realizamos dez acompanhamentos em
sala de aula percorrendo os anos iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º). Em cada
ano, acompanhamos duas aulas, pois nossa intenção ao repetir os acompanhamentos
com um mesmo olhar, foi descobrir o que parece marcar as práticas de leitura do ponto
de vista de ações que se repetem nas diferentes aulas entre os diferentes anos quanto
à forma de ler da cultura escolar, à organização da classe, o tipo de intervenção, à
interação com o livro e com o outro.
Levantamos como hipótese a ideia de que as práticas se repetem nos diferentes
anos, tornando-se muito parecidas, inclusive entre crianças que estudam no 1º e no 5º
ano. Diante disso, interrogamos: Por que as práticas de leitura se repetem ao longo dos
anos? O que marca essa repetição? No interior dessa repetição de práticas, o que
podemos encontrar como distinção? Por que os modos de ler, tão singulares fora da
escola, parecem buscar uma homogeneidade ou uma uniformidade dentro dela? Afinal,
que práticas de leitura vêm sendo produzidas pelas escolas?
Para desenvolvimento da pesquisa utilizamos operações voltadas a um estudo
qualitativo das práticas. Nessa direção, as aulas foram acompanhadas, registradas,
filmadas
e transcritas. Buscamos registrar e transcrever a cena que envolvia professoras
e alunos nas práticas de leitura, além de todo o movimento de olhares, gestos,

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circulação de outras pessoas no momento da aula, barulhos externos a sala de aula,
calor, cheiro, entre outros, pois o cotidiano se faz entre muitos acontecimentos que não
são vistos, mas sentidos pelos sujeitos ordinários103 da e na ação. Os trechos das aulas
selecionados transformaram-se em fotos para compor a historicidade das cenas. As
páginas dos livros lidos foram digitalizadas e inseridas nas transcrições para que
tivéssemos a oportunidade de conectar às nossas análises uma intervenção realizada
pela professora, chamando a atenção para o que ela destacava do ponto de vista da
relação entre texto e imagem. Toda essa maquinaria foi fabricada no percurso da
operação e não pensada ou planejada anteriormente, pois descobrimos que para
acessar as singularidades precisamos aguçar nosso olhar.
Após cada aula assistida e registrada havia um momento em que professora e
pesquisadora trocavam ideias, impressões, indagações. Um período curto, mas que
canalizava a atuação do momento, o pensar posterior do professor sobre sua aula, sua
respiração e emoção. Uma "auto avaliação" ou um desejo de aprovação por parte das
professoras sobre o seu fazer que extrapolou o "não dito" nas entrevistas e o anunciado
nas práticas. As professoras quiseram falar sobre a aula, desejavam ouvir o que o
observador tinha a dizer, necessitavam dialogar sobre sua arte de fazer num processo
dialógico diante das relações que se estabeleceram entre o eu e o outro. Nessa busca,
recorremos ao estudo das práticas cotidianas para buscarmos nelas não as marcas da
estrutura social que as iguala e padroniza, mas, sobretudo, a lógica das produções dos
sujeitos, considerados atores e autores das maneiras de pensar e fazer.
Segundo os depoimentos das professoras, vimos que as práticas de leitura
realizadas por elas são diversas quanto às finalidades, espaços e materiais para ler. Há
a leitura em sequência, em capítulos, pausada, privilegiando o texto verbal; há a leitura
oral, em silêncio, individual, em grupo (jogral) etc. Além disso, nas escolas estudadas,
vimos que se lê para deleite, para desenvolver habilidades cognitivas, aprender a se
comportar na sociedade, para estudar, para aprender conteúdo gramatical, para
alfabetizar, para produzir texto, para reescrever etc. Lê-se na biblioteca, na sala de aula,
no cantinho de leitura. Lê-se livros didáticos, diversos gêneros, livros do acervo da
escola, textos tirados da internet. Entre todas essas modalidades e finalidades, porém,
uma prática parece predominar: a leitura oral de um único livro de literatura, pela
professora, em frente à turma.

103
Na perspectiva das práticas cotidianas compreendemos sujeitos ordinários como sujeitos
comuns em suas ações.
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Com o livro ilustrado, a prática de leitura predominante não foi diferente. As
professoras, sem exceção, leram oralmente o exemplar que estava em suas mãos e as
crianças ouviram a leitura. Nas tensões que movimentam as práticas de leitura, mais
especificamente aquelas ligadas ao livro ilustrado encontramos, de um lado, a liberdade
inventiva dos praticantes da leitura e, de outro, o controle disciplinado da ordem dos
livros e das instituições que buscam orientar modos de ler, o que ler, por que ler.
Este trabalho está ancorado pela perspectiva da História Cultural e das práticas
cotidianas com contribuições advindas de Chartier (2001, 2002) e Certeau (2007).
Quanto à singularidade do livro ilustrado utilizamos os estudos de Linden (2011), Hunt
(2010), Scott e Nikolajeva (2011).

A leitura do livro ilustrado em sala de aula: práticas em cena

Aqui há um livro maravilhoso, ali há um grupo de crianças, o que


acontece em seguida? Em seguida fala-se (...). Quando nosso melhor
amigo nos diz que leu um livro maravilhoso e pensa que nós também
devemos lê-lo, o que faz para ajudar-nos a começar é dizer-nos o que
nele encontrou. Assim nos familiariza com esse livro novo e, por isso,
ameaçador. Diz-nos algo sobre seu enredo. Indica quais são as partes
emocionantes. Diz-nos com que outros livros se parece, livros que ele
sabe que já lemos. E compara-os ou fala sobre suas diferenças. São
similares nestes aspectos, diz, e diferentes nestes outros. Também
prepara-nos para as dificuldades. “Siga adiante até o terceiro capítulo”,
pode dizer-nos o amigo, “é difícil até esse ponto, mas depois você não
poderá parar”. Em outras palavras, convence-nos a ler o livro por nós
mesmos. Isso é, exatamente, o que os melhores promotores de leitura
fazem sempre: convencer-nos a ler. (CHAMBERS, 1997, p. 6-7, apud
COLOMER, 2007, p. 101)

Uma das cenas de leitura que consideramos representativa de muitas outras que
encontramos nas escolas pesquisadas percorrendo todos os anos do ciclo I do ensino
fundamental traz aspectos comuns independente do livro lido 104. Nessa direção,
algumas ações que constituem as práticas de leitura em todos os anos nos chamou a
atenção. Evidenciaremos tais ações a partir da aula realizada com crianças de 1º ano
na qual a história lida foi Quero meu chapéu de volta, de Jon Klassen.
As cenas dessa aula mostraram que há certa insistência do professor em
controlar os sentidos das crianças para uma determinada compreensão na leitura. A

104
A cena a que nos referimos encontra-se na Tese de Doutorado intitulada de Práticas de
leitura do livro ilustrado nos anos iniciais do ensino fundamental, defendida em abril de
2018, na Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP, por Andrea Rodrigues Dalcin.

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leitura torna-se um ritual, desde a apresentação do livro, interrompida constantemente
pelas crianças e pela professora em busca de um "diálogo" que possa construir sentido
(comum) entre a turma, a professora e a história.
Nesta leitura, perguntas e intervenções da professora são realizadas para
identificar e relacionar as características de animais na ficção e na realidade; para que
as crianças opinem sobre um possível final; para que tentem adivinhar o enredo pela
ilustração; para que identifiquem cenários e personagens. Ainda que não existam
orientações oficiais para a prática de leitura com o livro ilustrado, vemos que este fazer
parece ser fabricado a partir do uso das orientações oficiais e dos programas
desenhados em cursos de formação com outros tipos de livros. Esse fazer envolve
ações de leitura próprias da cultura escolar, como: chamadas para leitura; apresentação
do livro feita pela professora; controle de sentidos para compreensão do texto. No
entanto, na prática de leitura do livro ilustrado, também pausada e fragmentada, pelas
chamadas das professoras e pelas falas das crianças, muitas operações de leitura
acontecem. As crianças levantam hipóteses, intuem, observam, comparam, tentam
adivinhar, corrigem ou discordam da professora, conversam entre elas, mostram-se
conhecedoras do mundo (animais, pessoas, natureza) representado pelas imagens no
livro. A leitura das crianças não é passiva frente àquilo que ouvem e ao que veem; frente
àquilo que sabem e o que está representado nas ilustrações. Orientadas pelas
ilustrações, podem ressignificar sentidos sobre os personagens, o enredo e o cenário.
No ritual de leitura em sala de aula, a apresentação do livro ilustrado é outro
aspecto que chamou a atenção. Em geral, na leitura dos livros de literatura infantil a
professora inicia normalmente lendo o título e questionando o porquê o livro possui
aquele nome. Na leitura dos livros ilustrados, observamos que as professoras começam
pela descrição da imagem da capa que convoca e aciona a estratégia de antecipação.
Além disso, a apresentação do livro pode incluir também a exploração de paratextos
como, por exemplo, a quarta-capa, com a finalidade de complementar a ilustração ou
dar pistas ao leitor sobre a história, como acompanhamos na leitura do livro Quero meu
chapéu de volta: um chapéu vermelho aparece na quarta-capa do livro e marca o
enredo. No entanto, observamos que explorar a quarta-capa ainda está no âmbito da
fala da professora ao descrever o que há neste espaço do livro, porém sem mostrar a
imagem às crianças.
Compreendida por alguns como uma forma de "atrasar a leitura" e, por outros,
como já sendo o início da leitura, a exploração dos paratextos no livro ilustrado pode dar
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pistas sobre o enredo da história. Mais do que isso, os paratextos são estratégias
editoriais que intervêm na produção de sentidos pelos leitores: antecipam,
complementam, disciplinam sentidos sobre a história. A questão que se coloca é a de
que não basta decodificar um título ou palavras; não basta apenas ler no texto verbal,
aspectos do enredo, identificação dos personagens e do cenário onde se passa a
história. Compreensões da história pressupõem a leitura dos paratextos, a sutileza da
ilustração em sua articulação com o conteúdo verbal, o formato do livro e o jogo de
cores, aspectos esses que se tornam distintos em relação à leitura que acompanhamos
com outros tipos de livros. Nessa direção,

[...] a compreensão de um texto não pode ser entendida com o


conhecimento dos significados das suas palavras, a descoberta da sua
mensagem ou a classificação dos seus personagens, porque a
significação de um texto não está encerrada em suas partes, não é
dada a um leitor que passivamente a compreende ou não. Ela vai além
do texto, resulta da interação entre este, o leitor e a vida, a história de
cada um deles, não sendo nunca uma só, renovando-se a cada leitor
e a cada tempo em que acontece essa leitura. Por isso, compreender
um texto é mais que recuperar os seus aspectos referenciais (quem,
onde, quando, porque etc.). (SILVA, MOYSÉS, FIAD e GERALDI,
1986, p. 45-46).

Na busca pelo controle de uma leitura única, a professora insiste na


caracterização de cada personagem, no local em que se passa a história, limitando ou
elegendo uma significação única e verdadeira para a história (neste caso, o
comportamento do urso) lida ou contada. Na prática observada, a professora conduz a
leitura, busca construir o sentido pretendido por ela e, para isso, se utiliza de estratégias
que ela mesma realizou no momento de sua leitura, considerando agora ter que
conduzir o leitor em formação: aponta para elementos da ilustração; faz perguntas
direcionadas; levanta outras questões para conseguir a resposta pretendida; pergunta
mais de uma vez para conferir se as crianças estão compreendendo o sentido dado pela
professora; repete a resposta correta dada pela criança. Tomemos como exemplo o
trecho a seguir:

Professora: (continua a leitura) “Você viu meu chapéu? Um dia eu vi


um chapéu. Era azul e redondo105. Meu chapéu não é assim. Em todo
caso, obrigado”. (Pergunta da professora sobre o personagem) Ele é
muito...

105
No livro “Quero meu chapéu de volta” os diálogos entre os personagens são marcados pela
mudança na cor e, neste fragmento da aula, estão reproduzidos tais como se apresentam no
livro.
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Criança 5: Gentil!
Professora: Gentil. Ele é muito e...
Criança 11: Explicativo.
Criança 8: Envergonhado.
Criança 6: Estranho.
Professora: Ele é muito e... educado, gente! (vira a página)

Podemos aproximar a cena observada por nós daquela registrada por Silva,
Moysés, Fiad e Geraldi (1986) em seus estudos sobre o ensino de Língua Portuguesa,
há 31 anos:

P – Então por hoje chega e amanhã nós continuamos... Nós vamos


fazer agora uns exercícios para treino... Nós vamos dar comparações...
Psiu!!... Olhos pretos como?
A – Carvão.
P – Quem sabe? Fala... Vamos ver... Olhos pretos como...
A – Pichi.
P – Piche! Não é pichi... Olhos pretos como...
A – Jabuticaba.
P – Certo!

A ideia é que a "leitura interrompida" ajuda na compreensão dos leitores mais


jovens, pouco familiarizados com a cultura escrita, sendo as interrupções um esforço
para padronizar os sentidos atribuídos ao texto. Nas aulas observadas, de forma
mais geral, encontramos interrupções na forma de comentários feitos pela professora e
pelas crianças podendo-se dizer que elas se prestam também a guiar a compreensão
de trechos que, aos olhos dos adultos, parecem complexos para as crianças. São
produzidos comentários diversos, como explicações sobre o que o texto diz,
apontamentos sobre a tipografia textual e seus sentidos junto ao texto verbal e à
ilustração, destaque e apreciação das imagens e exposição de ideias e pontos de vista
(nem sempre consensuais) tanto da parte das crianças como da professora. A
interrupção é marcada também pelas respostas em coro ou individuais das crianças,
atendendo às perguntas feitas pela professora quanto à "decifração" de imagens,
"acerto" sobre o desenrolar do enredo, "aprendizagem" de bons modos de
comportamento pelos personagens.
Nesta comunidade de leitores (na/da escola), a leitura do livro ilustrado se
constitui pela objetivação da compreensão pelas respostas muito parecidas entre as
crianças, pela "formatação" de acordo com as orientações dadas em cursos de
formação, pela adequação ao sentido do texto pretendido pela professora, para um
"acerto" de resposta a ser conseguido com muito empenho da professora.

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Professora: (vira a página) Senta Raiane! Tão vendo? Agora, vou fazer
uma pergunta pra vocês todos. Prestando atenção! Quem acha que o
urso comeu o coelho? (algumas crianças levantam a mão)
Professora: Quem acha que só sentou em cima do coelho? (outras
crianças levantam a mão)
Professora: Vocês não acharam que o urso estava muito bonzinho
assim, o tempo inteiro?
Algumas crianças: Sim!
Professora: (retoma a fala do urso) “Em todo caso, obrigado. Em todo
caso, obrigado. Em todo caso, obrigado”. Mas será que o urso é assim?
Criança 4: Não! Ele come.
Professora: Ele come, né? Ele é bravo! Então crianças, nossa história
hoje vai terminar aqui. Vão sentar direitinho nos lugares que vocês
estavam106.

Na prática de leitura, independentemente do tipo de livro – ilustrado ou não –


para cada resposta imprevisível das crianças verifica-se todo um esforço da professora
para enquadrá-las no sentido pretendido por ela, especialmente no final da história, ou
quando se finaliza a prática de leitura. É o caso da criança 4, que desestabiliza a leitura
da professora: "Não! Ele come". Para driblar essa fala, a professora introduz uma
característica própria deste animal: "Ele é bravo!" (referindo-se ao comportamento do
urso). A professora justifica o gesto do personagem urso ao comer o coelho, trazendo
para a leitura uma informação de "fora do texto": o urso é um animal bravo, por isso
comeu o coelho, embora durante toda a história tenha se mostrado educado e gentil
com todos os animais.
O fato de a leitura ser escutada e observada pelas crianças às vezes coloca em
xeque o pensamento da professora sobre sua leitura desde a apresentação da capa do
livro, aspecto esse que ganha maior movimento na leitura do livro ilustrado. Em uma
das conversas realizadas com a professora Neusa, foi possível observar o seu conflito
diante dos comentários das crianças no momento da aula em que, para ela (a
professora), o desfecho da história era certo e já estava dado. Recorrendo às
transcrições do diário de bordo da pesquisadora, compartilhamos a conversa:

Pesquisadora: O que você achou? (referindo-se à aula)


Professora Neusa: Eu gostei! Eu li umas três vezes o livro, mas eu não
tinha percebido que ele come o coelho. Ele comeu o coelho, não é? Aí,
fica essa interrogação, na verdade!
Pesquisadora: Você viu o que ele responde para o último bichinho? Ele
comeu?

106
Trecho da aula realizada pela Profa. Neusa com alunos do 1º ano.
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Professora Neusa: Então, porque aí ele respondeu do jeito que o
coelho respondeu pra ele. Eu ia questionar isso pra eles, mas aí pensei:
“Deixa pra lá!”.
Pesquisadora: Ele diz: “Vou te devorar” ou “Eu não devoraria”, algo
parecido.
Professora Neusa: Na verdade essa história do amigo urso é bem falsa.
Eu li a história pensando nisso e não nesse final que agora que percebi
que é diferente. Não consigo ter a certeza.
Pesquisadora: Então, essa foi uma leitura feita por você, com suas
impressões, deduções... E a leitura das crianças? Você esperava ser
como a sua? A minha leitura é a de que ele comeu, porque você lembra
como o coelho falava sendo que ele estava com o chapéu? O urso
pode ter feito à mesma coisa! Ter dito que não comeu sendo que
comeu já que o coelho mentiu para ele. Pelo menos eu acho isso...
Professora Neusa: Ah! Mas eu vou retomar com eles a história. E
também, agora que eles estão prestando mais atenção e fazer com
que eles observassem mais as imagens107.

O autor/ilustrador não explicita se o urso comeu ou não o coelho no final da


história, porém a professora insiste em uma única resposta que, por sua vez, induziu as
crianças a dá-la. Chamar a atenção dos alunos para o paralelismo das respostas do
coelho (início) e do urso (final) poderia constituir sentidos diferentes no final da leitura
pela leitura. Seria outro modo possível de ler livros de literatura.
Na observação das práticas de leitura com o livro ilustrado, ainda que feita
sempre oralmente pela professora, os alunos parecem se envolver nesta "escuta" que
não é propriamente apenas com os ouvidos. As crianças solicitam à professora que
retome páginas anteriores para confrontar com a cena atual, levantam-se para chegar
perto do livro, comentam com os colegas o que foi observado, ações essas que dão
uma movimentação a esta prática. Um modo de ler muito próprio desta comunidade
escolar-infantil, que ouve, mas que também quer ver, que se desloca para se aproximar
do livro.

O livro ilustrado: experiências com este tipo de obra nas práticas de leitura
Nas observações realizadas em sala de aula, vimos que as crianças estão
constantemente expostas a práticas de leitura que convocam a observação das
ilustrações: ler a ilustração; observar os recursos tipográficos; dar um sentido como
hipótese; ir e voltar na ilustração; perguntar para a professora; confirmar com os colegas
- são formas aprendidas pelas crianças nesses momentos de leitura, principalmente em
relação ao livro ilustrado. Tais operações geralmente partem das crianças no momento

107
Trecho da conversa realizada entre professora e pesquisadora em 7 out. 2015.
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de leitura não sendo pensada, antecipada ou planejada pela professora. São operações
que, geralmente, surpreendem a professora, pois na leitura de livros que não exigem
tais estratégias de leitura as operações são outras.
A professora Flávia108, após a experiência de ler um livro ilustrado para sua
turma, destaca que ler a escrita das ilustrações também envolve, além da descrição e
informações sobre o livro, a observação, a análise e o levantamento de hipóteses quanto
ao entendimento do enredo na relação entre texto e imagem. Nessa direção, a
professora traz as seguintes questões para que as crianças prestem atenção à leitura
do livro Vozes no Parque, de Anthony Browe: "Vamos prestar atenção nas pistas.
Estamos trabalhando com pistas: ela estava nervosa, estava brava...", trazendo para a
leitura, um modo para observação de detalhes das ilustrações. É o caso, por exemplo,
em um dos trechos da aula, quando a professora Flávia diz: "Prestem atenção aqui!
Posso voltar na primeira página rapidamente? Nesta primeira página aqui, vocês
avistaram o personagem. Quem são esses personagens? São os mesmos que estão
aqui (referindo-se as páginas subsequentes)?".
Essa intervenção, representativa de muitas outras, trata-se de uma prática de
leitura conduzida pela professora onde os alunos
checam/observam/comparam/identificam aspectos importantes para sua compreensão.
A professora vai e volta na página perguntando, mostrando e comentando, e a criança
também solicita para que a professora volte, mostre e comente a leitura. É uma prática
movimentada, que busca acertos, possibilidades de dizer, de surpreender-se oralmente,
de trocar sentidos com os colegas; uma prática que se mostra fragmentada, pausada,
controladora, com vozes simultâneas que se fazem ouvir além do texto, tanto das
crianças quanto da professora. O esforço é grande para que a professora possa escutar
a todos nos diálogos que a leitura potencializa.
O diálogo abaixo elucida melhor essa situação:

Pesquisadora: Flávia, após essas duas aulas de leitura com o livro


ilustrado, o que você pode levantar como principais aspectos que
alteraram, transformaram ou modificaram sua prática?
Professora: Nossa! Posso enumerar pra você porque tudo é muito
diferente. Vamos lá: é outro tipo de leitura, é outra abordagem... O
professor precisa estar preparado na leitura, humanamente e
emocionalmente, pois é uma leitura que exige escuta, atenção e
diálogo intenso. A questão é que para esse tipo de aula é necessário
ter formação. Acho também que, após a intensidade da leitura o
professor fica esgotado, mas no sentido bom porque sobre uma

108
Flávia trabalhou com crianças de 3º ano no decorrer da pesquisa realizada.
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adrenalina, exige posicionamento o tempo inteiro e uma postura até
porque os livros são diferentes e eu senti alteração na leitura do
primeiro para o segundo livro ilustrado. No segundo livro a trama é mais
complexa... Capturar o que as crianças colocam e filtrar as informações
faz com que o professor esteja presente e atento a todo o momento
para saber o momento de questionar, voltar, informar. Senti vida ao
contar uma história como essa. Esse movimento que eu fiz exigiu um
comportamento diferente: entender o livro, selecionar o que queria
trazer à tona na leitura, ter uma postura de encenação. Exigiu também
um movimento diferente da parte das crianças: a leitura seguiu outra
ordem, essa história não era linear e as crianças estão acostumadas
com a leitura linear (situação inicial, conflito e desfecho). Não que essa
não tenha, mas a forma e a complexidade é outra. (Diálogo realizado
com a professora Flávia após a aula acompanhada, 29 out. 2015).

As práticas de leitura observadas por nós indicam aquilo que Linden (2011) traz
a respeito das possíveis maneiras de estabelecer a relação entre texto e imagem. Em
sua maioria, as práticas de leitura não foram conduzidas pelas professoras por uma
busca de comprovação redundante de sentidos possíveis de serem buscados
igualmente na linguagem textual ou na ilustração. As professoras souberam,
aproveitando a maioria dos livros selecionados por nós, explorar a articulação de
complementariedade constituída pelo jogo de sentido entre texto e ilustração. Também
houve momentos em que as professoras e as próprias crianças puderam questionar a
relação de disjunção, oposição, contradição entre texto e imagem, como, por exemplo,
no livro Hora de sair da banheira, Shirley!, de John Burningham, no qual há a
contraposição, na hora do banho, entre a visão da criança e a visão de sua mãe.

Considerações Finais
Mergulhar nas práticas foi e é um processo desafiador, pois as maneiras de
fazer e os aspectos que orientam/comandam essas práticas se constituem numa
relação ambígua, tensa e complexa. De início, tínhamos como hipótese que
conhecíamos as práticas de leitura, porém as análises mostraram que conhecê-las é
mais do que ouvir diálogos, acompanhar a leitura de um livro em uma aula, analisar
falas das crianças e intervenções das professoras. Conhecer as práticas é mergulhar
em um cotidiano escolar que produz seus modos particulares de lidar com o
conhecimento. Conhecer as práticas de leitura não é só analisar como se lê em sala de
aula, mas, junto a isso, conhecer as finalidades de leitura, as concepções de literatura
infantil, leitor, leitura e criança, a importância e o valor dado à leitura por este grupo de
professoras.

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O grupo pesquisado de professoras não conhecia o conceito de livro ilustrado
dado pela indústria editorial, sendo apresentadas a esse formato pela pesquisadora,
num diálogo formativo. Nessa direção, quando vemos e analisamos as cenas de leitura
com o livro ilustrado, descobrimos que a prática definitivamente não está presente na
escola de ensino fundamental quando pensamos nas diferentes relações que podem
ser estabelecidas a partir do jogo que constitui as diferentes linguagens desse tipo de
obra. Talvez pelo fato de não existirem ainda orientações oficiais para a prática de leitura
com o livro ilustrado, tal prática parece ser fabricada a partir do uso dos programas
desenhados em cursos de formação, porém com outros tipos de livros. Além disso,
muitas vezes é o olhar da criança que estabelece relação entre texto e imagem,
levantando hipóteses, confrontando ideias, opinando e atentando-se para aspectos que
se encontram nas ilustrações e não no texto escrito. Talvez porque essa seja a primeira
forma de leitura da criança antes de ser alfabetizada. Nesse caso, o olhar da criança
apresenta muita sensibilidade.
Constatamos que quando o livro chega até as mãos do leitor (no caso as
professoras), diversas operações são realizadas de forma muito parecida com outros
tipos de livros de literatura. Trata-se de um olhar para a ilustração moldado por uma
"prática de leitura modelar", professoral (voltada aos ouvidos) já apropriada pelas
professoras com outros tipos de livros. Uma prática marcada pela presença da leitura
oral de um único livro pela professora, em frente à turma; uma leitura oralizada,
coletivizada e interrompida. Mesmo tendo vivido a breve experiência de leitura nos
diálogos formativos, a pesquisa aponta para o fato de que as professoras tiveram
dificuldade para romper, em sala de aula, com o padrão do modo de ler presente na
escola.
A leitura do livro ilustrado pressupõe algumas distinções que difere da leitura
de outros livros na qual as operações mais constantes e recorrentes envolvem: ler a
quarta-capa e relacionar com o miolo da história; observar o jogo de imagens das
guardas inicial e final do livro a fim de relacionar suas informações com os
acontecimentos da história; analisar o jogo de imagens na relação com o texto verbal;
discutir a tipografia textual, entre outros. Tais operações se constituem como uma
prática de leitura que toca, sente, aperta e segura o livro em suas mãos, fato que
raramente aconteceu nas aulas observadas por nós.
A descoberta dessas distinções surpreenderam as professoras que se
envolveram com a leitura desse tipo de livro e compartilharam da ideia de levá-los para
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a sala de aula. Empenharam-se na leitura prévia e no planejamento, preparando-se para
a condução da compreensão; buscaram controlar sua ansiedade para lidar com o livro
ilustrado, um objeto desconhecido e uma prática inexistente até então. No entanto, a
prática de leitura do livro ilustrado, tal como foi desenvolvida, mostrou-se distinta em
algumas aulas e para algumas professoras. Para outras, apresentou-se resistente,
insistentemente repetitiva e espelhada no modelo escolar. Prevaleceu uma concepção
de leitura como prática homogênea, universal e abstrata, que se desloca igualmente,
independentemente do leitor, do tipo de livro, do suporte, do enredo, do gênero etc.
Ignorou-se que para um gesto aparentemente idêntico, ler pode ter valor e sentidos
diversos dependendo da maneira que o livro é lido, dependendo das formas partilhadas
de ler, dependendo das relações estabelecidas por cada leitor no momento da leitura
(CHARTIER, 2002). Parece que a força dos programas e as orientações dadas em
cursos de formação são intensas e impedem o professor de perceber e criar outras
possibilidades de leitura a depender do tipo de livro lido.
A distinção na forma de ler esse tipo de obra foi marcada junto às professoras
por meio da interação com a pesquisadora. Portanto, a originalidade deste trabalho
parece ter sido a de oferecer um acervo selecionado de livros ilustrados num diálogo
formativo entre pesquisadora e professoras que potencializou o repensar sobre as
práticas de leitura que considera a singularidade do livro ao invés da homogeneidade
da leitura.
Nesse sentido, as professoras "inventam" no cotidiano escolar formas de lidar
com o livro ilustrado. Se há mudanças, é no esforço das professoras, no interesse delas
e no seu investimento para explorar mais as ilustrações, sem privilegiar os sentidos
dados apenas pelo texto verbal. Também um esforço para contemplar mais as leituras
dos paratextos, das tipografias textuais e do projeto gráfico do livro como um todo.
Dentre todas as mudanças, a que mais se destaca é o valor de prestígio dado pelas
professoras ao livro ilustrado nas aulas observadas. (Re)inventaram, o cotidiano
escolar, esforçando-se para uma maior exploração das ilustrações, sem privilegiar os
sentidos dados apenas pelo texto verbal, buscando compreender mais as finalidades,
os usos e os jogos estabelecidos nessa relação entre texto, imagem e suporte.

Referências
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 13.ª ed. Tradução
Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

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CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução
Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

______ (Org.). Práticas da Leitura. Tradução: Cristiane Nascimento. São Paulo:


Estação Liberdade, 2001.

COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual.


Tradução: Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2007.

DALCIN, Andrea Rodrigues. Práticas de leitura do livro ilustrado nos anos iniciais
do ensino fundamental. 2018. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de
Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 2018.

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução Cid Knipel. São Paulo:
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LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Tradução Dorothée de Bruchard.
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Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

SILVA, Lilian Lopes Martim (et al.). O ensino da língua portuguesa no 1º grau. São
Paulo: Atual, 1986.

639

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
A ESTÉTICA E A ÉTICA DA ARQUITETÔNICA DO ATO DE
ILUSTRAR: VIDA E OBRA DE RUI DE OLIVEIRA E SUA
CONTRIBUIÇÃO COM AS NARRATIVAS VISUAIS PARA A
FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO 109

Gisele de Assis Carvalho Cabral, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita


Filho”, Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Marília

Eixo Temático: Literatura infantil e as relações com a imagem.

Considerações iniciais
A partir do meu percurso vivenciado como professora de Ensino Fundamental
de 1º ao 5º ano, atuante há quase vinte anos na rede municipal de Marília e, atualmente,
na condição de pesquisadora, passei a compreender ainda mais a importância da
Literatura na formação do pequeno leitor e o papel que os livros de imagem podem
oferecer nessa constituição ao contribuir para a formação e a educação do olhar. Em
virtude dessa compreensão, comecei a entender a necessidade da ação docente
intencionalmente planejada, no que concerne à exploração desse gênero de Literatura
em sala de aula, a fim de levar os alunos a compreender todos os seus aspectos
constituintes por atuarem no desenvolvimento psíquico e emocional da criança, bem
como na formação da própria consciência humana.
Em face disso, iniciei a investigação, na pesquisa de Mestrado em
desenvolvimento, com a finalidade de compreender a estética e a ética da arquitetônica
do ato de ilustrar de Rui de Oliveira e sua contribuição com as narrativas visuais para a
formação do leitor literário. O estudo da vida e obra de Rui de Oliveira foi direcionado
ao seu processo de criação na condição social de ilustrador, ao considerar as suas
vivências desde criança com outras pessoas, outras vozes constituidoras de sua

109
Trata-se do Projeto de Pesquisa de Mestrado cuja Dissertação está em processo de escrita
com o título atual “A arquitetônica do ato de ilustrar: vida e obra de Rui de Oliveira e sua
contribuição com os livros de imagem para a formação do leitor literário”, sob a orientação da
Professora Drª. Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto.
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subjetividade, de seu lugar particular no mundo das imagens com ideias, referências e
valores, formadores de ideologias, que ditam suas ações responsáveis e responsivas
em relação aos seus leitores.
Quando uma pessoa está diante de uma expressão artística, nesse caso
específico, uma obra literária constituída unicamente por imagens, ao contemplá-la,
desvendá-la, lê-la atribuindo sentidos, está perante a expressão do outro/criador que a
concebeu e procura compreender o que o criador tentou comunicar por meio de seu
projeto de discurso pelas imagens, à medida que ela – a pessoa que contempla –
também foi pensada, como interlocutora, no processo de criação das ilustrações. Desse
modo, é nessa interação dialógica entre o leitor e o ilustrador que ocorre o processo de
empatia e a compreensão responsiva promotoras da formação da consciência
(BAKHTIN, 2003). Essa consciência só pode ser construída quando o criador é
compreendido pelo outro, quando a sua consciência dialoga com a consciência dele,
quando, por meio da obra artística, o contemplador/leitor pode reconhecer as intenções
sociais do seu criador ao perceber o que ocorre ao redor transformando a si mesmo
nessa interação.
A partir desse pensamento, torna-se fundamental que as crianças tenham o
primeiro contato com as artes visuais, de forma significativa, notadamente com as
ilustrações das obras literárias de qualidade como porta de entrada para a compreensão
das imagens e da arte em geral. Ao considerar a Literatura como patrimônio cultural por
possibilitar ao leitor acesso a determinado momento histórico, social e cultural de uma
dada época (ARENA, 2010), na intenção de a criança leitora se apropriar dessa cultura
presente no gênero literário, faz-se necessário com que seja ensinada a como ver tudo
isso, a construir e atribuir sentidos diante dos enunciados, mediante a relação dialógica
entre autor e leitor, a fim de aprender a questionar e a encontrar respostas a partir da
leitura de bons livros literários.
Para desenvolver a pesquisa, adotei um percurso metodológico que considerei
relevante para assegurar a natureza qualitativa coerente com minha intencionalidade.
Segundo Bakhtin (2017, p. 59, grifos do autor), “o objeto das ciências humanas é o ser
expressivo e falante”. Esse autor construiu uma metodologia pautada na teoria dialógica
que implica a interação de pelo menos dois sujeitos. Assumir uma posição dialógica é
compreender e considerar o movimento real da vida que se dá nas relações sociais
entre o eu e o outro – sujeitos únicos e singulares – por isso, não há como definir um
conjunto seguro de procedimentos a ser seguido rigorosamente. Assim, este artigo
641

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versa sobre em que momento da dialogia me situo na pesquisa e qual o movimento de
construção de sentidos e ressignificações até aqui efetivado.
O pesquisador interage com o seu objeto de pesquisa – o outro sujeito, que
também carrega a sua singularidade, as suas crenças, as suas ideias, os seus sonhos,
os seus projetos pessoais, as suas vozes, portanto, um sujeito que fala e pensa – e
nessa interação há o embate ideológico pelos signos em ação (VOLÓCHINOV, 2013;
2017). Ao considerar todos esses apontamentos, procurei sustentar o cerne dessa
pesquisa a partir de uma posição dialógica. Assim, tenho o desafio de, em toda a
trajetória metodológica, guiar-me pelas contribuições do pensamento construído pelos
estudiosos da filosofia da linguagem, ao aprofundar e vivenciar conceitos como os de
dialogia perpassando por alteridade, excedente de visão, empatia, vivência,
arquitetônica entre outros. Como procedimentos, utilizei a Revisão da Literatura, os
Encontros Dialógicos com o ilustrador Rui de Oliveira e a Análise de sete obras110
literárias constituídas unicamente por imagens.
Por todo o exposto, a pesquisa foi pautada nos pressupostos da filosofia da
linguagem a partir dos estudos de Bakhtin (2003; 2016; 2017) e Volóchinov (2013;
2017). No tocante à Literatura Infantil e ao estudo das ilustrações, recorri a
pesquisadores como Van der Linden (2011), Oliveira (2008) e Góes e Alencar (2009).

Breve percurso da ilustração: da imagem ao livro de imagem


Lúcia Pimentel Góes (2009, p. 6), ao perfazer o caminho “da imagem na história
da humanidade”, revela que os homens, desde a antiguidade, fabricavam utensílios e
construíam abrigos e, posteriormente, “Só pelos 40.000 anos a. C. é que o ser humano
começou a produzir formas que recriavam a realidade em que ele vivia e exprimiam,
desse modo, suas angústias e pavores”. (GÓES, 2009, p. 6). Assim, desde o tempo em
que morava nas cavernas, o ser humano utilizava as paredes para deixar as suas
marcas como um modo de comunicação e expressão perante as suas necessidades

110
Em sua carreira artística, Rui de Oliveira criou cerca de sete livros de imagem, dos quais seis
foram projetados anteriormente como desenho animado e adaptados posteriormente para livro,
em virtude de seus interesses, em termos de imagem, serem relacionados ao cinema de
animação. Recebeu alguns prêmios como animador e ilustrador, dentre os quais, quatro prêmios
Jabuti de Ilustração. Foi indicado ao Prêmio Hans Christian Andersen, na categoria Ilustração,
nos anos de 2006 e 2008, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Também
conquistou o Prêmio Cecília Meireles, pela mesma Fundação, em razão da obra, fruto de
profundas pesquisas na área da ilustração, intitulada Pelos jardins Boboli: reflexões sobre a arte
de ilustrar livros para crianças e jovens.
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tanto de sobrevivência física como mental, ou seja, o homem já produzia arte por meio
do uso da imagem.
Essa utilização da imagem foi evoluindo conforme o passar do tempo e novos
modos de expressão foram surgindo, passando pela pintura, fotografia, escultura,
arquitetura e outras manifestações artísticas, até chegar aos livros ilustrados, abordados
aqui como “Obras em que a imagem é espacialmente preponderante em relação ao
texto, que aliás pode estar ausente [é então chamado, no Brasil, de livro-imagem]. A
narrativa se faz de maneira articulada entre texto e imagens”. (LINDEN, 2011, p. 24). A
esse respeito, Góes (2009, p. 21, grifos da autora) comunica a necessidade de “[...] nos
conscientizarmos de que os livros que unem palavra verbal e palavra imagem [ou
múltiplas palavras], entendendo palavra como linguagem, texto, não podem ser lidos
ignorando a ilustração, o espaço, a moldura, a linguagem grafotipográfica”. Nesse
sentido, Góes remete ao livro ilustrado como enunciado pleno (BAKHTIN, 2016) por ser
uma totalidade repleta de significados na qual a ilustração tem papel fundamental visto
ser constituidora de sentidos. Por esse viés, o livro deve ser lido em sua integralidade
posto que cada uma das suas partes – capa, título, guardas, frontispício e todos os
outros componentes paratextuais – é elemento essencial de uma grande arquitetura.
Bakhtin (2016, p.73) assevera que “Dois elementos que determinam o texto
como enunciado: a sua ideia (intenção) e a realização dessa intenção”, ou seja, todo
texto é produzido por alguém e endereçado a outro alguém de quem se aguarda uma
compreensão responsiva a respeito do tema do texto, escrito conforme a
intencionalidade do autor. Ao correlacionar essas ideias ao livro ilustrado, é possível
empreender que no processo de criação de uma obra literária, as intenções do autor –
ou autores, uma vez que, muitas vezes, o texto escrito é produzido por alguém/autor
enquanto que o texto imagético é criado por outro alguém/ilustrador cujo papel também
é de autoria – estão presentes em seu conteúdo, desde a capa até a contracapa, no
conjunto da obra. A esse respeito, Volochinov adensa:

A importância da orientação da palavra para o interlocutor é


extremamente grande. Em sua essência, a palavra é um ato bilateral.
Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por
aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o
produto das inter-relações do falante com o ouvinte. Toda palavra
serve de expressão ao “um” em relação ao “outro”. Na palavra, eu dou
forma a mim mesmo do ponto de vista do outro e, por fim, da
perspectiva da minha coletividade. A palavra é uma ponte que liga o eu
ao outro. Ela apoia uma das extremidades em mim e a outra no

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interlocutor. A palavra é o território comum entre o falante e o
interlocutor. (VOLOCHINOV, 2017, p. 205, grifos do autor).

A palavra aqui é compreendida como linguagem, já aludida por Góes (2009), e


é destinada pelo autor ao seu interlocutor, cujo movimento de ir e vir, pela alternância
das falas dos sujeitos, vai permeando sentidos às palavras, ao texto, ou seja, ao
enunciado. “Ver e compreender o autor de uma obra significa ver e compreender outra
consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é, outro sujeito [...] Em certa
medida, a compreensão é sempre dialógica” (BAKHTIN, 2016, p. 83). Por esse ponto
de vista, o livro ilustrado carrega muitos sentidos, os produzidos pelo criador no
processo de concepção e os atribuídos pelo leitor no processo de compreensão. A
interação entre esses processos é efetivada por meio da troca dialógica entre os
interlocutores, onde ocorre a empatia, a alteridade e, por conseguinte, a compreensão.
Acerca das ilustrações nos livros para criança, Jackson de Alencar (2009, p. 30)
explicita que “[...] As imagens em geral, e não só nos livros infantis, mesmo quando não
acompanhadas de textos, têm explicitamente um texto, uma narrativa, uma mensagem,
uma ideia que estava na mente de seu criador ao concebê-la [...]”. Dentre os livros
ilustrados passamos, atualmente, aos livros de imagem, cuja essência é formada
unicamente por ilustrações que suscitam narrativas, e cuja leitura não é única, ao
contrário, essas obras sugerem inúmeras possibilidades de leitura, as quais são
constituídas em conformidade com as singularidades de cada leitor.
Marilda Castanha (2008, p.141) ao endossar que “Utilizar a imagem como
instrumento de linguagem foi – e ainda é – crucial para todos os grupos culturais”
compartilha a ideia de que conviver com as imagens não é exclusividade da sociedade
atual, posto que o homem, de todos os lugares e épocas, cria imagens particulares
desde há muito tempo, tendo construído um acervo grandioso e cultural de imagens
como uma necessidade de comunicação. Portanto, os ilustradores, ao criarem os livros
de imagem, “estão utilizando também uma forma de expressão, dando à sua maneira
visibilidade e voz para imagens muito particulares – a do próprio pensamento e da
imaginação” (CASTANHA, 2008, p. 142).

A respeito da escolha do ilustrador


Propor-se a conhecer e compreender a estética e a ética da arquitetônica do ato
de ilustrar de Rui de Oliveira, grande mestre e pesquisador da ilustração, é uma tarefa
abrangente, complexa e de grande responsabilidade. Por isso, ao tomar consciência de
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que seria um estudo muito extenso para uma pesquisa de Mestrado, foi repensada para
A arquitetônica do ato de ilustrar: vida e obra de Rui de Oliveira e sua contribuição com
os livros de imagem para a formação do leitor literário, uma vez que a estética e a ética
já estão imbricadas nesse processo. Assim, realizei um recorte de todo o trabalho do
artista que abarca um acervo de mais de cem livros publicados, tomando como análise
tão somente os livros constituídos exclusivamente por ilustrações. E este artigo, por
questões estruturais de espaço, ocupa-se de uma pequena parte de toda essa história:

Nasci no Rio de Janeiro, no bairro do São Cristóvão. Estudei pintura no


Museu de Arte Moderna, artes gráficas na Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e, durante seis anos, ilustração
na atual Moholy-Nagy University of Art and Design, em Budapeste.
Estudei também cinema de animação no estúdio húngaro Pannónia
Film. Doutorei-me em artes visuais pela Escola de Comunicações e
Arte, da Universidade de São Paulo. Fui diretor de arte da TV Globo e
da TV Educativa, atual TV Brasil. Entre as principais aberturas e
vinhetas, destacaria as que desenhei para a primeira versão da novela
Sítio do Picapau Amarelo e a reformulação do videografismo da TVE.
(OLIVEIRA, 2012, p.34).

A escolha por esse ilustrador, como autor das obras selecionadas, corpus de
análise da pesquisa, firmou-se a partir do primeiro acesso a um dos seus livros de
imagem, intitulado As aventuras de João Sem-Fim (2011), em virtude da realização da
disciplina ofertada pelo curso de Mestrado Leitura e Literatura Infantil na Educação da
infância: a formação de crianças leitoras, ministrada por minha orientadora Professora
Doutora Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto, em 2018. Até então, não havia
analisado um livro desse porte artístico, elaborado integralmente por imagens, na
condição de ocupar-me na compreensão de cada um de seus elementos visuais, bem
como de sua composição gráfica na construção da obra estética como um todo
significativo.
Independentemente de não haver palavras escritas no livro de imagem, há uma
narrativa pensada pelo autor. Ao analisar a obra referida, deparei-me com alguns
questionamentos, tais como: a narrativa idealizada pelo ilustrador ao produzir o livro de
imagem coincidia com os significados produzidos por minha leitura? O ilustrador tem a
intenção de que os leitores atribuam o mesmo sentido que ele ao criar as ilustrações?
O que é necessário para compreender/ler uma ilustração? Mediante a isso, outras
indagações se originaram, para as quais muitas das respostas não haviam sido
encontradas, por isso vislumbrei investigar a respeito do processo de criação dos
ilustradores, em especial de Rui de Oliveira, ao conceber os livros de imagem, para não
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somente trazer soluções provisórias às minhas inquietações como também auxiliar
outras pessoas na direção de compreender o que as ilustrações significam.
Além de toda a extensa e marcante trajetória como ilustrador, dedicou-se por
cerca de trinta anos na condição de professor na Escola de Belas Artes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ensinando os seus alunos a arte de ilustrar.
Aposentou-se há sete anos e, desde então, dedica-se integralmente à ilustração
concebendo e executando seus projetos em seu estúdio. É um pesquisador da arte de
ilustrar e já escreveu, além de livros literários para crianças e jovens, capítulos e artigos
direcionados ao tema de seu interesse.

Sucinta análise de livro de imagem a partir do diálogo com o artista Rui de


Oliveira
Neste tópico, ocupar-me-ei de apontar e discutir, com base na perspectiva da
filosofia da linguagem, algumas ideias, dentre as tantas apresentadas pelo ilustrador,
na ocasião do segundo encontro, a fim de oferecer alguns elementos que auxiliem na
produção de sentidos para a obra como uma totalidade. Destaco que não se trata de
apresentar um caminho único de leitura, ao contrário, de apontar caminhos para as
tantas possibilidades de leitura na busca de produzir sentidos.
Por efeito da pandemia111 vivida atualmente, o encontro com o ilustrador não foi
efetivado da forma como fora inicialmente planejado. Mediante as circunstâncias do
novo contexto, as conversas foram realizadas a princípio por via e-mail, depois por
WhatsApp e posteriormente por intermédio do Google Meet112. Até a escrita deste texto,
fizemos cinco encontros por chamada de vídeo. No segundo encontro, ocorrido em 18
de agosto de 2020, o ilustrador apresentou o processo de criação da obra Uma história

111
Desde o final de dezembro de 2019, um surto de uma nova doença de coronavírus (COVID-
19, causada pelo Coronavírus 2 da Síndrome Respiratória Aguda Grave -SARS-CoV-2) foi
relatado em Wuhan, China, e posteriormente afetou 26 países em todo o mundo. Em geral, a
COVID-19 é uma doença respiratória aguda, que apresenta uma taxa de mortalidade de 2%. O
início da doença pode resultar em morte devido a danos alveolares maciços e insuficiência
respiratória progressiva. [...] A transmissão de pessoa para pessoa ocorre principalmente pelo
contato direto ou por gotículas espalhadas pela tosse ou espirro de um indivíduo infectado.
Sendo assim, o combate à disseminação da COVID-19 preconiza lavar as mãos frequentemente,
evitar abraços, beijos e apertos de mãos e adotar medidas de afastamento social, como
quarentena. (LIMA et al., 2020). Disponível em:
https://www.scielosp.org/article/csc/2020.v25n5/1575-1586/pt/. Acesso em: 24 ago. 2020.
112
Plataforma gratuita para realização de videoconferência.
646

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de amor sem palavras (2009). O encontro durou aproximadamente duas horas e meia.
Para iniciar, anuncio algumas informações técnicas sobre a obra aludida.
Trata-se de um livro editado e publicado pela Nova Fronteira, em 2009, no
formato vertical de aproximadamente 28 cm por 22,5 cm. A capa foi feita em papel cartão
e o miolo em papel vergê. A respeito da técnica utilizada, o ilustrador esclareceu que
trabalha dentro das linhas tradicionais e, por isso, foi ele mesmo que preparou a cor e o
fundo do papel para criar a sua obra. Primeiramente, desenhou em grafite a lápis Pitt
sobre um suporte de papel. Depois de todo desenhado, xerocopiou em papel vergê,
retocou e pintou com acrílico diluído. O acrílico aguado possibilita fazer várias camadas
uma sobre a outra por ser muito versátil, possibilitando assim inúmeras camadas e
efeitos de acordo com as intenções do ilustrador (OLIVEIRA, 18 ago. 2020). A respeito
desse formato de livro, Linden (2011) observa que:

O formato vertical (dito “à francesa”), mais alto que largo, revela-se o


mais corriqueiro. As imagens aparecem isoladas, na maioria das
vezes, e as coerentes composições talvez sejam menos marcadas na
sequência das páginas. Frequentemente deparamos com imagens
descritivas mostrando retratos ou paisagens. (LINDEN, 2011, p. 53).

Nesse caso, essa ideia apresentada por Linden se aplica parcialmente ao livro
analisado, uma vez que as imagens são marcadamente descritivas, o que é uma
característica dos trabalhos do ilustrador pela riqueza de detalhes, entretanto, não se
trata de imagens isoladas, visto ser uma sequência de imagens cuja composição forma
uma grande narrativa observada por meio do encadeamento entre as ilustrações. A
propósito, Rui de Oliveira (18 ago. 2020) explicitou que se trata de um picto-livro113 cuja
narrativa é contada por meio de signos. Nesse caso, escolheu três elementos com
simbolismo próprio: a estrela, a lua e o sol como uma espécie de trindade ou tríade de
luminosidades. Para tanto, criou um guardião desses signos que, juntos, formam a
expressão Eu te amo. Esse personagem, um ser fantástico, possui a resposta procurada
pelo protagonista, o príncipe-herói, que precisa encontrar essa tríade para chegar até a
sua amada, a princesa.
Para compor esse personagem como herói, Oliveira (18 ago. 2020) utilizou a
ideia da relação do pequeno com o grande, uma das antíteses encontradas nessa
narrativa. O ilustrador esclareceu que o fundamento, que confere riqueza à narrativa, é

113
Essa palavra foi criada pelo ilustrador para determinar um dos quatro gêneros do livro de
imagem. Trata-se de um gênero que se utiliza de signos para contar uma história. (OLIVEIRA,
18 ago. 2020).
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a presença de contrastes, sobretudo entre os personagens. O heroísmo do príncipe,
uma figura medieval, está justamente expresso em seu tamanho tão díspar em
comparação aos demais personagens que são seres muito grandes. Outra marcante
antítese estabelecida no livro diz respeito ao personagem possuidor da lua que surge
da terra com a lua entre os dedos. Uma das grandes características nessa criação
refere-se aos personagens serem totalmente estranhos, fantasiosos, engenhosos.
Curiosamente, Oliveira (2020) revelou que:

Algo imaginoso não tem que procurar na imaginação. Se quiser algo


realmente espantoso, veja as plantas [...] Esses personagens
estranhos foram baseados em peixes, águas vivas. Abrir um legume e
ficar olhando a estrutura surgem personagens dali. O imaginário passa
pelo real. [...] Ter contato físico com o legume e observar os seus
elementos para usar a sua imaginação. Para ser fantástico precisa ser
real primeiro. Quando a fantasia tem uma base no real, você tem uma
certeza muito grande de estar atingindo o imaginário da criança.
(OLIVEIRA, 18 ago. 2020).

Nesse sentido, o ilustrador colocou em prática essa ideia manifestada também


ao criar folhas com olhos, boca e nariz, flores com braços e pernas, raízes e filamentos
de plantas com características humanizadas, ou seja, concebe uma nova vida aos seres
vivos conforme a sua imaginação oriunda daquilo que já existe, o que dá certo
encantamento e fantasia à história. A esse propósito, Oliveira (11 ago. 2020) apontou a
ideia do “cenário ser lido como um ser da natureza porque o cenário absorve o
personagem e não o contrário”. No livro, em destaque, todo o cenário está vivo e faz
parte da grande narrativa. No tocante à estrutura, Oliveira (18 ago. 2020) expôs a
importância de considerar os contos tradicionais e populares em relação ao seu trajeto
linear. Para o ilustrador, a narrativa é uma grande caminhada, uma vez que:

Toda história tem que ter uma esfinge. Em determinado momento, ele
[o personagem] descobre aquilo e tem um desenlace. É como se fosse
uma linha ascendente até chegar à descoberta do enigma (ou
revelação da esfinge), daí começa a descer, depois estabiliza que é o
final da história – sempre segue isso, é o aspecto gráfico da história.
Ao contar um livro de imagem e conseguir desenhar em termos de
gráfico, é uma boa história, como se fosse um crescendo e um
diminuendo. (OLIVEIRA, 18 ago. 2020).

O artista, com frequência, faz alusão à música, e comentou que a história tem
uma musicalidade, como se fosse um “eletrocardiograma narrativo” (OLIVEIRA, 18 ago.
2020), ou seja, começa com uma situação inicial até aparecer um desafio, depois sobe
a um ponto máximo que é o ápice – revelação da esfinge/desafio – e, na sequência, vai
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descendo até estabilizar e chegar à situação final. Associando essa estrutura – que é
uma das convenções discutidas pelo ilustrador – ao livro em questão, é possível
compreender a história considerando essas partes. Ele também aponta que:

Você não tem que ter animosidade à convenção. Você tem que ter
sensibilidade para tratá-la porque a convenção tem que existir [...] Toda
narratividade tem uma narrativa que é baseada em seus clichês, em
seus opostos. As antíteses fazem a narrativa e são fundamentais no
livro de imagem. É preciso estabelecer essas antíteses, esses
contrastes, esses choques e rupturas para fazer a estrutura da
narrativa. É linear em relação à estrutura, mas internamente é cheia de
choques. Ao criar um livro de imagem não pode esquecer da tradição
[...] dos contos de fadas, dos contos populares [...] (OLIVEIRA, 18 ago.
2020).

Nesse encontro, Oliveira enfatizou o uso criativo das convenções, uma vez que
as considera fundamentais ao ato de ilustrar. É necessário ter cautela com a palavra
clichê, a qual é fundamental para contar histórias. Assim, todo ilustrador deve ter
conhecimento acerca delas e saber utilizá-las bem. Uma delas se refere ao
conhecimento de um dos fundamentos da narrativa que são os contrastes entre os
personagens como já mencionado. Cada personagem tem vida própria, tem sua
individualidade e deve ser desenhado de acordo com ele mesmo. A igualdade
relacionada às características dos personagens confere uma monotonia à narrativa
enquanto que o contraste enriquece. Assim, na obra em questão, há muitos contrastes
desde a primeira capa até a quarta capa, tais como: a relação do grande com o pequeno,
a disposição de ânimo dos personagens, a posição e a postura dos personagens, o uso
de cores quentes e frias, a divergência de olhares entre outros elementos, os diferentes
lugares/cenários e ângulos.
Para esse ilustrador, o livro de imagem pode ser visto como misterioso e
enigmático e por isso permite várias possibilidades de leitura. A esse respeito, ele
assevera que as interpretações são muito pessoais e que existe sim uma interpretação
“oficial”, mas existem as outras leituras que são muito particulares em decorrência das
vivências de cada leitor. Assim, no seu processo de elaboração, o ilustrador pensa uma
trilha de sentidos que o orienta a desenhar, mas isso não quer dizer que seja o único
caminho de compreensão. Por isso deixa pistas/sinais ao leitor a fim de construir a sua
própria interpretação. No livro analisado, na penúltima cena, quando a moça procurada
sai de seu refúgio, há duas possibilidades de leitura: uma é de que ela e a árvore, onde
se escondia, são uma mesma entidade, enquanto que a outra leitura remete a duas

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entidades, ou seja, a moça é uma e a árvore é outra. Segundo o artista, as duas são
corretas porque depende da leitura que cada um fará. Nas palavras de Bakhtin:

Ao construir o meu enunciado, procuro defini-lo de maneira ativa; por


outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta antecipável exerce, por
sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado (dou resposta
pronta às objeções que prevejo, apelo para toda sorte de subterfúgios,
etc.). Ao falar, sempre levo em conta o campo aperceptivo da
percepção do meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a
par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado
campo cultural da comunicação; levo em conta as suas concepções e
convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de vista), as suas
simpatias e antipatias – tudo isso irá determinar a sua ativa
compreensão responsiva do meu enunciado ele. (BAKHTIN, 2016,
p.63-64).

Ao criar, o ilustrador pensa em seu interlocutor considerando-o ativamente e


procura a sua compreensão responsiva, o que influencia diretamente na sua criação.
Desse modo, Oliveira (2008) propõe uma alfabetização visual que permita ensinar à
criança, antes mesmo da alfabetização convencional, a observar minuciosamente cada
detalhe e aprender a dar significado a cada símbolo utilizado na obra, pois a criança
precisa ter conhecimentos especiais da cultura da imagem – aspectos formais da
ilustração – os quais, sendo melhor compreendidos, possibilitará entender os processos
intricados na composição da narrativa por imagens. Isso promove a ampliação do olhar
e, como resultado, agrega conhecimento ao acervo cultural e artístico da criança na
contribuição da sua formação como leitor literário e constitui porta de entrada para a
compreensão das expressões artísticas em geral.

Considerações Finais
Ao defender a inserção da criança no mundo da Literatura Infantil o quanto antes,
se possível desde o berço, possibilitando situações nas quais possa ter atitudes
responsivas ativas diante dos livros, em um processo contínuo e gradual de constituição
como leitora, a ênfase dada na pesquisa de Mestrado, ainda em andamento, diz respeito
particularmente às obras literárias compostas essencialmente por imagens. Ao
investigar sobre os livros de imagem criados pelo ilustrador Rui de Oliveira a partir de
diálogos realizados nos meses de agosto e setembro com o artista, este texto buscou
situar em que momento da pesquisa me encontro e o que já alcancei. Para tanto, trouxe
como exemplo, um dos encontros efetivados com o artista a respeito de uma das obras
analisadas.

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Ao conhecer a trajetória do ilustrador nas etapas de concepção dessa obra, é
observável todo o cuidado e a prudência ao conceber um projeto de autoria, sobretudo
direcionada à criança, considerando-a como um ser que pensa, com desejos e vontades
e com atitudes capazes de produzir muitos sentidos, visto não se tratar de criar
ilustrações aleatoriamente para apenas adornar os livros com o fim de divertir, ao
contrário, trata-se de elaborar e executar um projeto pessoal, com base em suas
vivências e representações sociais sobre o mundo, e profissional amparado por muitos
estudos, principalmente pela história da arte, o que confere ao livro de imagem ser
objeto artístico e cultural.
Até o momento, obtive soluções provisórias a alguns dos meus
questionamentos: o ilustrador não tem a intenção de que os leitores atribuam o mesmo
sentido que ele ao criar as ilustrações, pois, embora tenha um percurso próprio e oficial
que serviu de base e orientação para a sua criação, intenciona que o leitor possa criar
a sua própria leitura. Evidentemente não pode se distanciar muito das intenções do
artista. Desse modo, para alcançar o objetivo de aproximações coerentes, é necessário
conhecer os aspectos formais da ilustração. Nesse sentido, é de grande magnitude que
esse gênero literário seja abundantemente explorado nas salas de aula das escolas -
diferentemente do que ocorre em geral - como um instrumento de cultura e
compreensão do outro para a constituição de si mesmo como pessoa consciente e
atuante diante das problemáticas do cotidiano, ou seja, como uma ferramenta que
amplie o olhar para além da contemplação estética proporcionando ações de mudança
na realidade. Nesta perspectiva, não é suficiente permitir apenas o acesso às obras. É
necessário criar oportunidades e condições para que as crianças, e também os adultos,
uma vez que é um gênero literário para todas as idades, possam saber ler as imagens
que foram intencionalmente construídas pelos artistas a fim de apreciar e compreender
as narrativas que ali se encontram como premissa à formação da própria consciência.

Referências
ALENCAR, Jackson de. As ilustrações na literatura infantil: da alma das imagens à
alma dos leitores. In: GÓES, Lúcia Pimentel; ALENCAR, Jackson de (org). A alma da
imagem: a ilustração nos livros para crianças e jovens na palavra de seus criadores.
São Paulo: Paulus, 2009, p. 6-25.

ARENA, Dagoberto Buim. A Literatura Infantil como produção cultural e como


instrumento de iniciação da criança no mundo da cultura escrita. In: SOUZA, R. J. de.
(org.) [et al]. Ler e compreender: estratégias de leitura. Campinas, SP: Mercado das

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letras, 2010, pp. 13-44.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016.

BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Paulo Bezerra
(org. e trad.). São Paulo, Editora 34, 2017.

CASTANHA, Marilda. A linguagem visual no livro sem texto. In: OLIVEIRA, Ieda de.
(org.). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o
ilustrador. São Paulo, DCL: 2008.

GÓES, Lúcia Pimentel. No início era a imagem: retrospectiva sobre a importância da


imagem na história da humanidade. In: GÓES, Lúcia Pimentel; ALENCAR, Jackson de
(org). A alma da imagem: a ilustração nos livros para crianças e jovens na palavra de
seus criadores. São Paulo: Paulus, 2009, p. 6-25.

LIMA, Danilo Lopes Ferreira et al. COVID-19 no estado do Ceará, Brasil: comportamentos
e crenças na chegada da pandemia. Disponível em:
https://www.scielosp.org/article/csc/2020.v25n5/1575-1586/pt/. Acesso em: 24 ago.
2020.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

OLIVEIRA, Rui de. Pelos Jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para
crianças e jovens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

OLIVEIRA, Rui de. Uma história de amor sem palavras. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2009.

OLIVEIRA, Rui de. As aventuras de João Sem-Fim. Rio de Janeiro: Record, 2011.

OLIVEIRA, Rui de. Quando Maria encontrou João. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2012.

OLIVEIRA, Rui de. Primeiro Encontro realizado via Google Meet com a pesquisadora
Gisele de Assis Carvalho Cabral, integrante do Grupo de Pesquisa Centro de Estudo e
Pesquisa em Leitura e Escrita (CEPLE) e do Grupo de Pesquisa Processos de Leitura
e Escrita: Apropriação e Objetivação (PROLEAO) da Faculdade de Ciências e Letras
de Marília/UNESP. Rio de Janeiro/Marília, 11 ago. 2020.

OLIVEIRA, Rui de. Segundo Encontro realizado via Google Meet com a pesquisadora
Gisele de Assis Carvalho Cabral, integrante do Grupo de Pesquisa Centro de Estudo e
Pesquisa em Leitura e Escrita (CEPLE) e do Grupo de Pesquisa Processos de Leitura
e Escrita: Apropriação e Objetivação (PROLEAO) da Faculdade de Ciências e Letras
de Marília/UNESP. Rio de Janeiro/Marília, 18 ago. 2020.

VOLOCHINOV, Valentin. A construção da enunciação e outros ensaios. João


Wanderley Geraldi (trad). São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

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VOLOCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova
Américo (trad). São Paulo: Editora 34, 2017.

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GRUPO TEMÁTICO 6:
LITERATURA INFANTIL E
JUVENIL E SUAS MÚLTIPLAS
LINGUAGENS

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LIVROS COMO ESPAÇOS DE COAUTORIA INFANTIL: A
CRIAÇÃO DE “O SUMIÇO DOS GUARDA-CHUVAS” E DA
COLEÇÃO “O QUE TEM?”

Ariane Alfonso Azambuja de Oliveira Salgado, PUC-SP, Coletivo Páginas Livres,


CNPq
Maria Isabel Leite, Coletivo Páginas Livres

Eixo Temático: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Considerações iniciais
Há tempos Walter Benjamin (2012) se sentia desafiado pelo declínio da
narrativa. A semente da narrativa está no outro. É o outro quem a acolhe e a faz
crescer/florescer. Nessa perspectiva, narrar pressupõe desabrochar afetos. E isso
requer tempo, entrega, acolhimento, escuta sensível, desejo de partilhar memórias...
Mas como fazer isso na contemporaneidade, época fundamentalmente marcada pela
escassez de tempo juntos, pelo excesso de pressa em tudo o que fazemos, pela
crescente e efervescente demanda tecnológica e de consumo ou, ainda, pela dispersão
e competitividade? Como formar ouvintes e provocá-lo(a)s a serem ele(a)s também
coautore(a)s/narradore(a)s/autore(a)s? E qual o papel dos educadores e educadoras na
direção de transformar essa realidade? Em seu livro Pedagogia da Autonomia, Paulo
Freire (1996) pontuava: “[...] o processo de aprender [...] é um processo que pode
deflagar no aprendiz uma curiosidade crescente, que pode torná-lo mais e mais criador.”
(p. 24). No presente artigo, envolvidas pelas perspectivas desses e outros autores do
campo da criação, apresentamos e discutimos os resultados de uma pesquisa em que
buscamos, como educadoras em arte, nos deslocar do lugar da apreciação para um
ambiente de criação promotor de aprendizados.
A pesquisadora Sumaya Mattar (2017, p. 14) defende que “quanto mais [a
docência em arte] foi exercida de forma criadora, mais gratificante será”. Com trajetórias
no campo da educação infantil e do ensino da arte, tanto em ambientes formais quanto
não formais de educação, nos sentimos alinhadas à ideia de Mattar e, em vista disso,
nos propusemos a realizar uma pesquisa focalizando nossos próprios processos

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durante a criação de livros artesanais para crianças. Este objeto cultural, por congregar
as linguagens verbal (escrita) e visual, promove um campo de investigação
interlinguagens bastante amplo e rico, além de abrir espaço para a oralidade, dada a
relação entre livro e história narrada. Assim, admitindo processo de criação “como um
movimento falível com tendências, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a
intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de ideias novas” (SALLES,
2014, p. 15), desenvolvemos uma pesquisa que envolveu a criação do livro O Sumiço
dos Guarda-Chuvas (escrito por Maria Isabel (LEITE, 2019) e com ilustrações criadas
por Ariane) e da Coleção O que tem? (ilustrada por Ariane). A partir da análise dos
documentos de registro de nossos processos de criação e de mensagens recebidas das
famílias leitoras dos livros, o artigo debate relações entre escrita, oralidade e imagem
em livros para crianças.

Metodologia: um coletivo para criação


O desenhista Michele Iacocca, no livro O Barbeiro e o Coronel (2003, p. 31),
ilustrado por ele e escrito por Ana Maria Machado, escreveu: “Quando estou criando,
imagino crianças ao meu redor, interferindo, dando palpites, brincando com o desenho.”
O artista mostra nessa passagem o que a estudiosa de processos de criação Cecília
Salles chama de “diálogos íntimos” (2011, p. 38): “O artista, como seu primeiro leitor,
faz a biografia da obra, na medida em que pode interferir e assim o faz quando sente
necessidade, e como consequência, novas formas vão surgindo. Ele é agente e
testemunha do ato criador.”. A necessidade de diálogo, seja interno, seja com um outro
de carne e osso, revela um dos aspectos da criação que a constituem como um ato
eminentemente comunicativo.
Sem intenção de fazê-lo, Iacocca nos indicou um caminho metodológico para a
pesquisa que desejávamos empreender. Sua reflexão a respeito das crianças
imaginárias com as quais dialoga enquanto desenha ilustra um desejo que nós
tínhamos: encontrar vozes ressoantes que nos acompanhassem nos processos de
criação; um outro que também pudesse ser agente e testemunha do processo. Com
esse direcionamento, a pesquisa foi iniciada no período pré-pandemia COVID-19, no
mês de dezembro de 2019, com a formação de um coletivo de arte como método para
a pesquisa. Após um debate sobre as ambições de cada uma sobre a investigação,
escrevemos um pequeno texto fundador para o que foi batizado de Coletivo Páginas
Livres:

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Pensamos num grupo que possa fazer trocas profícuas e permanentes
em torno da temática livro -- seja ele livro infantil, livro de artista, livro
artesanal, livro digital, livro-jogo [...]. Nos interessa o processo de fazer-
livros de toda natureza. Queremos trocar referências, compartilhar
projetos, produzir coletivamente (ainda que seja em dupla), receber
críticas construtivas sobre nossos trabalhos e projetos, trocar ideias
sobre formas e conteúdos, técnicas e materiais, compartilhar dicas e
ensinamentos.

O Coletivo Páginas Livres se tornou então um grupo não institucionalizado, que


existe em razão de um desejo de pesquisa de duas educadoras interessadas em
compartilhar aprendizados. Individualmente, já havíamos iniciado experimentos para
criação de livros artesanais e incorporamos esses projetos ao coletivo, sendo eles o livro
O Sumiço dos Guarda-Chuvas e a Coleção O que tem?. Delimitamos algumas ações
sistemáticas como passos para o desenvolvimento da pesquisa: trocas iniciais sobre os
projetos, apresentando uma a outra os primeiros esboços e testes; desenvolvimento dos
livros individualmente, com conversas em encontros presenciais; conversas e trocas de
referências contínuas por WhatsApp; “testagem” com crianças; e entrevista final com
perguntas sobre aprendizados obtidos. Além da abordagem prática ao tema, nos
fundamentamos teoricamente nos autores citados ao longo do texto, realizando leituras
em busca de adensar as contribuições que daríamos ao processo da outra.
Em um primeiro momento, como moramos em cidades diferentes, com 300 km
de distância uma da outra (Curitiba e Florianópolis), planejamos realizar encontros
presenciais bimestrais para compartilhar as experiências; a quarentena, entretanto,
transformou as viagens em reuniões virtuais. Esse afastamento foi sentido, porque a
presença física era algo importante para nós -- sem dúvida os encaminhamentos da
investigação teriam sido diferentes se tivéssemos tido essa liberdade. Mas
incorporamos no processo a reflexão sobre a presença das restrições em qualquer ato
de criação: “a criação realiza-se na tensão entre limite e liberdade: liberdade significando
possibilidade infinita e limite estando associado a enfrentamento de restrições.”
(SALLES, 2011, p. 57).
Para Salles (2011, p. 23), todo criador possui uma direção quando inicia um
processo, mas esse direcionamento é ainda uma “[i]ntuição amorfa, conceito[,] premissa
geral” ou “miragem”, que será manipulada e transformada ao longo dos movimentos da
criação. Ao iniciar o processo, tínhamos nosso rumo vago: elaborar materiais que
convidassem adultos e crianças a terem momentos de tranquilidade e cumplicidade,
para que pudessem ler o mundo junto(a)s. Acreditávamos que o estreitamento da
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relação adulto-criança, se ambos fossem entendidos como sujeitos culturais potentes,
poderia favorecer uma cumplicidade na construção de sentidos e, consequentemente,
na troca de experiências, de memórias, de subjetividades. Além disso,
compartilhávamos da perspectiva de Mikhail Bakhtin (1997), autor segundo o qual a
literatura é um espaço de coautoria entre autor(a)/leitor(a). Bakhtin defende que a
composição de significados se dá na triangulação entre o que foi escrito/narrado; aquele
que escreveu/narrou; e aquele que lê a escrita/narrativa. Argumenta ainda que, ao
mudarmos qualquer dos vértices desse triângulo, mudamos o sentido da coisa
escrita/narrada. Então, cada leitor(a) faz o escrito/narrado por alguém ser inaugural,
novo, autoral.
Guiava nossa tendência criativa, também, o entendimento de que fomentar
espaços&tempos de partilha adulto-criança possibilita que ambos se sintam convidados
a criar de maneira autoral, experienciar coisas diferentes, a brincar... e não a copiar,
reproduzir, cobrir pontilhados ou colorir modelos pré-existentes. Esses momentos de
espaços&tempos de narrativa e de autoria despertam olhares e escutas mais sensíveis
aos modos de ser, agir e pensar das crianças, de forma a favorecer a formação de
sujeitos mais autônomos, autorais, cooperativos e inteiros. Com a feitura dos livros,
portanto, debruçamo-nos sobre o desafio de buscar espaços&tempos de narrativas
para/das crianças por meio de livros artesanais. E, através do contato com nossa própria
criatividade e autoria, buscamos ampliar nossa capacidade de estimular a criatividade e
a autoria das crianças leitoras.

Entre texto e imagem: experiências na criação de livros artesanais


A natureza interna dos livros infantis assume a ilustração como um elemento em
par de igualdade com o texto, mas existem projetos gráficos com inúmeros tipos de
soluções para estabelecer a relação entre texto e imagem. Em nossa investigação,
optamos por experimentar três configurações gráficas diferentes nos livros: deixar
espaços em branco ao lado do texto para as crianças desenharem, sem ilustrações;
criar ilustrações página a página para cada seção da história; e somente criar
ilustrações, sem texto. As duas primeiras opções foram utilizadas no livro O Sumiço dos
Guarda-Chuvas, que ganhou mais de uma versão, e a terceira na Coleção O que tem?.
Alguns registros do processo testemunham os diálogos que tivemos para
diagramar a versão sem ilustrações. Amadoras no uso de softwares de edição de texto
e na relação com a impressão de livros, a Figura 1 é um registro do primeiro teste para

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encadernação de O Sumiço dos Guarda-Chuvas. Nossa intenção nessa versão era
deixar margens internas com espaço em branco suficiente para as crianças produzirem
suas próprias ilustrações. A disposição das folhas lado a lado nos dava a dimensão do
resultado, mas somente com o retorno em foto de uma criança pudemos ver que de fato
a diagramação havia ficado viável para inserções delas. Contudo, em consulta a dez
crianças que haviam recebido o livro, apenas uma havia ilustrado. Concluímos com isso
que, em geral, não foi convidativo para elas a proposta de terem um caderno para
ilustrar.

Figuras 1 e 2: Primeira visualização das páginas impressas na gráfica,


em 20/12/2019, e página ilustrada por criança de três anos.

Fonte: Arquivo das autoras.

As ilustrações na Coleção O que tem?, feitas por Ariane, surgiram de uma


intenção um tanto oposta a do exemplo anterior: a ideia era montar um campo temático
para as crianças produzirem histórias a partir das imagens. A proposta visava instigar
as crianças a criarem suas próprias narrativas e assim formarem uma trama de
significação individual a partir do que estava ali apenas sugerido. Ariane optou por criar
livros de pano, comumente voltados somente a bebês (por serem maleáveis e laváveis,
com figuras soltas, chapadas, ou quase nenhum texto), mas que neste caso poderiam
ser experimentados por crianças de outras idades, também.
Cada página traz um fundo estampado sugestivo da temática (céu, jardim, mar
e escuro) e poucos desenhos, apenas contornados com linha preta: é como se o
universo do jardim, do mar, do céu e do escuro fossem assumidos como campos
semânticos dos quais seriam dados às crianças, em vez de palavras, imagens. Ao
mesmo tempo, por serem desenhos feitos a mão, um a um, a intenção era deixar
espaços em branco em cada página para que as crianças desenhassem outros seres
ou objetos desses contextos ou mesmo escrevessem um texto. A proposição de criação
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para as crianças estaria, portanto, no campo da narrativa verbal e da narrativa visual:
elas poderiam ser autoras de textos e/ou de outras imagens. A intenção propositiva de
ação sobre os livros era destacada pelos títulos em forma de pergunta: O que tem no
céu?, O que tem no mar?, O que tem no jardim? e O que tem no escuro?.
No processo de começar a esboçar os desenhos, ficou muito evidente como era
difícil ir para além dos estereótipos. Então nos questionamos: como enriquecer as
imagens? Como fazê-las irem para além do lugar-comum? Vejamos um exemplo: a
fotografia da Figura 3 registra o primeiro desenho de um foguete produzido para o livro
O que tem no céu?. Com o desenho já concluído, Ariane realizou uma rápida busca no
Google utilizando as palavras “foguete+desenho” e descobriu como essa forma de
representação estava impregnada por referências comuns e já gastas, presentes de
maneira inconsciente em seu repertório. Para confrontar essa situação, foi necessário
iniciar uma pesquisa de imagens que ajudassem a enriquecer essa proposta inicial. As
Figuras 4, 5, 6 e 7 mostram algumas dessas tentativas:

Figuras 3, 4, 5, 6 e 7: Esboços de foguete para o livro O que tem no céu?

Fonte: Arquivo das autoras.

A visita à exposição a céu aberto Jardim das Esculturas, na Avenida Beira-Mar


da cidade de São José-SC, e a observação da obra Amnesia (Figura 8), do artista
iraniano Majid Haghighi, favoreceu uma nova maneira de pensar sobre esse desenho,
resultando na forma apresentada na Figura 9. Entretanto, a ilustração utilizou recursos
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como linhas finas e três cores diferentes, tornando impraticável a transposição do
desenho para o tecido escolhido para o livro. Trata-se de um processo ainda inconcluso,
para o qual são necessários novos estudos, mas que revela a importância da ampliação
de repertório não só das crianças, mas dos educadores, e do valor da pesquisa em
diferentes espaços (além da internet) para a coleta de referências.

Figuras 8 e 9: Fotografia da escultura Amnesia, de Majid Haghighi (11/1/20) e estudo


de foguete em desenho (19/1/20).

Fonte: Arquivo das autoras.

Em busca de desenvolver nossos pensamentos sobre a produção de ilustrações,


fizemos também um estudo em nossas bibliotecas pessoais de livros infantis (composta
de setenta e um exemplares) para analisar imagens e encontrar depoimentos de artistas
gráficos sobre seus modos de criar. Entre o conteúdo encontrado, localizamos alguns
artistas que, por exemplo, destacaram: o valor do acaso, como Ferreira Gullar (2014);
um artista, Rafael Limaverde (PIÚDA, 2009), que relatou acolher cuidadosamente as
imagens que surgem mentalmente enquanto lê o texto; e Cláudio Martins (ROCHA,
1998), que argumentou que o resultado da sua produção tem a ver com o tipo de afeto
que estabelece com o texto. A artista alemã Sabine Lohf, autora de uma coleção de dez
volumes publicada no Brasil sob o nome de Vamos criar com… (LOHF, 1998), registrou
em seu site: “Ser criativo significa criar conexões desconhecidas, desenvolver algo
novo. Ou resolver um problema de forma surpreendente.”114 (LOHF, 2020, s/p). As
soluções de abordagem minimalista, mas altamente complexas que Lohf encontra na
conjunção de colagem, uso de objetos e fotografia se tornaram uma referência para o

“Kreativ sein, heißt ungewohnte Zusammenhänge herzustellen, etwas Neues zu entwickeln.


114

Oder eine Problemstellung auf überraschende Weise zu lösen.” (Fonte: www.sabine-lohf.de


Acesso em: 20 set. 2020)
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projeto que empreendemos de ilustrar a segunda versão de O Sumiço dos Guarda-
Chuvas.
O livro, com cinquenta e nove capítulos, pedia uma ação de fôlego para a criação
do conjunto de imagens, pois o desafio a que nos propomos foi criar ilustrações página
a página. Maria Isabel escreveu o conto como um livro-jogo, explorando a narrativa
elástica (SANCHES apud GANDRA, 2019), a qual convida a criança, a cada página, a
decidir os caminhos a serem seguidos, gerando mais de quarenta narrativas escritas
possíveis. A inspiração para essa escolha veio da experiência de ler para as filhas e
para as crianças dos anos iniciais a Coleção Enrola e Desenrola, série de livros
publicado na década de 1970 pela Editora Ediouro.
As crianças-personagens de O Sumiço dos Guarda-Chuvas foram criadas com
a intenção de demonstrarem capacidades como coragem, inteligência, diligência,
cooperativismo e a virtude de enfrentar desafios; o enredo é alicerçado na ideia de
potência infantil e em sua capacidade de fazer escolhas. As inúmeras aventuras
inseridas nas dezenas de histórias possíveis dão protagonismo às meninas e aos
meninos, e têm nelas e neles o ponto de inflexão para as soluções possíveis. Essa
característica do texto implicou na decisão de evitar representações das crianças e
outros humanos na história, a fim de que elas mesmas imaginassem (e se imaginassem
como) os personagens. Por isso, optamos por criar os cenários sem pessoas. Dada a
característica de livro-jogo da história, esboçamos um story-board do conto que revelou
que algumas cenas se passavam nos mesmos cenários -- e por isso a mesma ilustração
poderia ser usada mais de uma vez. O trecho a seguir constitui o trecho/página 5 da
história:

“Achei!”, gritou Miguel, já com o guarda-chuva do pai na mão. “Estava


caído atrás do sofá!”
Papai Leonardo então correu lá fora e agradeceu ao carteiro por ter
levado aquela encomenda tão importante. E, na sala, os três se
sentaram em volta daquela caixa comprida que o carteiro tinha trazido
– o que seria aquilo?
“Nossa! Que lindo!”, exclamou Miguel, com os olhos vidrados naquele
guarda-chuva novo, grandão, com um pedaço de cada cor! O
menino estava encantado, pois nunca tinha visto um guarda-chuva tão
grande, tão lindo, e multicolorido daquele jeito! “Posso usar, mamãe?
Posso ir lá para fora estrear seu guarda-chuva novo?”, perguntou
ansioso. (LEITE, 2019, p. 5, grifos nossos)

As palavras destacadas na citação acima foram consideradas para a seleção dos


elementos mínimos que seriam contemplados na imagem, conforme Figuras 11 e 12:

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Figuras 11 e 12: Versões da ilustração da página cinco de O Sumiço dos Guarda-
Chuvas.

Fonte: Arquivo das autoras.

Entretanto, outros aspectos não presentes na narrativa verbal surgiram como


uma contribuição da ilustração para o texto, como a decoração da pequena sala, com
muitas plantas e uma parede com trepadeira. As Figuras 11 e 12 mostram a imagem
respectivamente com e sem o guarda-chuva; este elemento, por ser tridimensional,
impactou a captura da imagem e seu resultado de cor: a versão da esquerda foi
escaneada e é mais escura; a segunda versão foi fotografada e é mais clara. Esse
aspecto do resultado demonstrou o porquê de Sabine Lohf apontar a fotografia como
técnica utilizada (além da colagem e uso de objetos) e nos fez refletir sobre o impacto
das cores no clima da história.

Histórias narradas: experiência com O Sumiço dos Guarda-Chuvas


Hoje em dia as crianças podem ouvir muitas histórias gravadas, tanto em
podcasts, como em lives ou em vídeos no Youtube. Essas versões narradas de contos
infantis favorecem muito o acesso de crianças não leitoras às histórias, especialmente
daquelas para as quais os pais não leem ou se sentem inseguros em criar uma narração
mais expressiva. Após ter escrito o conto O Sumiço dos Guarda-Chuvas, Maria Isabel
visitou a casa de uma família com crianças pequenas as quais já possuíam o livro e foi
interpelada pelos adultos para que contasse a história para as crianças. Quando
começou a contar, as crianças ficaram paralisadas e os pais disseram: “Você precisa
contar [gravar], porque a gente não sabe fazer isso, a gente só lê, a gente lê e aí não
tem a metade da graça...”. Esse episódio fez surgir um desdobramento do projeto, com
a gravação da versão narrada do livro.
Para Maria Isabel, desenvolver a gravação trouxe à tona memórias de histórias
da infância que foram ouvidas em mídias já desaparecidas: pequenos discos coloridos

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da década de 1960 e outros mais antigos, LPs pretos. Além disso, recordou-se das
radionovelas. Ao mesmo tempo, lembrou do período de infância das filhas, quando os
mesmos disquinhos coloridos, chamados Coleção Disquinho (gravadora Continental),
foram reeditados. As histórias eram narradas por atores e possuíam arranjos e
orquestrações de músicos com o Francisco Mignone, João de Barro (Braguinha) e
Radamés Gnattali (MANSQUE, 2020, s/p). Atualmente, essas versões podem ser
ouvidas gratuitamente no Youtube e em diferentes plataformas de streaming.
Quando conta histórias ao vivo, Maria Isabel costuma enriquecê-las com sons
possíveis de serem produzidos pelo corpo, como palmas ou vozes diferentes. Na
experiência de adaptação de O Sumiço do Guarda-Chuvas para a oralidade, pensou
que a gravação seria uma oportunidade de fazer isso de uma forma melhor, com a
inclusão desses sons, eventualmente, em alguns trechos, sem serem produzidos por
ela. A inclusão de dois músicos e produtores musicais no processo, Caio Abreu e o
Alexandre Bender, da produtora Playade (Florianópolis-SC), deu origem à criação de
algo bem mais complexo: uma paisagem musical por trás da voz, cujo resultado fez com
que, por exemplo, quando está chovendo muito na Floresta Encantada, a chuva
acompanhe toda a narrativa; se a chuva cessa, ouve-se sons de passarinhos. Há ainda
um som específico para introduzir uma pergunta (presente em cada página do livro-
jogo); outro para se a resposta é positiva ou negativa; ainda outro quando a história
termina. Instalou-se, assim, uma grande riqueza de sons, escolhidos com referências
em games, histórias em quadrinhos, desenhos animados, filmes, entre outros tipos de
gravações. Os áudios são, portanto, produto de um processo de criação em grupo, já
que da mesma forma que Maria Isabel é autora da história, os músicos citados são
autores da sonoplastia da gravação.
A gravação foi feita em dois dias, um primeiro para a gravação completa do texto
e um segundo para corrigir erros, tais como: equívocos de concordância; trechos
suprimidos; troca de palavras; fala rápida demais; palavras pronunciadas erradas; vícios
de linguagem; entre outras questões. Os produtores tiveram um papel fundamental
nessas correções. Nesse momento o processo revelou também a necessidade de que
em alguns pontos o texto escrito fosse adaptado para ser transposto à oralidade. Por
exemplo: no pé da página 1 da versão impressa lemos a seguinte orientação para a
continuação da história: “» Se você acha que não, continue lendo na página 2 » Se você
acha que sim, continue lendo na página 3” (LEITE, 2019, p. 1). Na versão oral, essa
marcação ficou muito solta e foi transformada no seguinte trecho:
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Ah, nesse livro é assim, você quem vai decidir como continua essa
história. Se você acha que “não”, papai Leonardo não deixou Miguel ir
lá fora brincar na chuva, continuarei lendo na página dois. Mas se você
acha que “sim”, papai Leonardo deixou Miguel ir lá fora brincar na
chuva, continuarei lendo na página três. (LEITE, 2020, Trecho 1)

Na última parte de cada uma das quarenta versões possíveis da história foi
criada uma frase final, inexistente no texto escrito. No Trecho 56/57, por exemplo,
ouvimos: “Aqui a gente encerra mais uma forma de ler esse livro. São várias. Que tal?
Você volta, vai escolhendo caminhos diferentes e vai descobrindo histórias novas.”
Percebe-se, portanto, que o livro oral possui mais orientações do que o livro escrito. Tal
escolha foi feita, também, em função de um feedback recebido de uma leitora, a qual
leu as páginas em sequência, sem fazer as escolhas que são pedidas no pé de cada
página, e não entendeu a história. A leitura não vem necessariamente acompanhada da
compreensão e da imersão na história; por isso, Maria Isabel buscou favorecer esse tipo
de leitor no livro oral, porque entendeu que ele se beneficiaria mais de uma história
contada oralmente do que de uma história lida.
Apesar de termos citado anteriormente a abundância de histórias narradas
disponíveis para crianças hoje em dia, num mundo fundamentalmente imagético, a
experiência de escutar histórias sem imagem é bastante diferente para a maioria delas.
Segundo a mãe de uma menina de dois anos (Rio de Janeiro-RJ), a pequena estranhou
de início, sobretudo por ter de escolher a continuação da história; mas depois passou a
desfrutar do processo e escolher as páginas que deveriam colocar para ela escutar. A
mesma oralidade que gerou estranhamento em crianças menores, engajou muitos
adultos e crianças maiores, como testemunha a mensagem do pai de uma menina de
dez anos (Salvador-BA): “Hoje tomamos café da manhã escutando as suas histórias.
[...] Difícil foi fazer uma pausa! Ficamos ligados e curiosos para conhecer novas
histórias. Ouvimos três diferentes. Muito bem construídas, envolventes.” Alguns
meninos e meninas não leitores, após ouvirem a história gravada, também se viram
capazes de manipular o livro impresso e fazer seu reconto. Foi o caso de uma menina
de dois anos (Florianópolis/SC), em cuja filmagem enviada pela mãe narrou: “– Aí,
mamãe, eu caí num buraco, né? Aí, o duende me salvou, aí, pegou meu guarda-chuva
amarelo, aí ele me ajudou, né? O duende me ajudou!”.

Aprender a conviver com o inacabamento

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O que faz da educação uma arte é precisamente quando a educação
é também um ato de conhecer. Para mim, conhecer é alguma coisa
bonita. A amplitude do ato de conhecer é desvelar um objeto, o
desvelar dá “vida” ao objeto. Esta é uma tarefa artística porque nosso
conhecimento tem uma dada qualidade de vida, cria e anima objetos
com o nosso estudo a respeito deles. (FREIRE apud GADOTTI, 1996,
p. 107)

Paulo Freire, no trecho acima, aponta a aproximação entre conhecer e criar. Para
esse educador, o movimento de desvelar um objeto de conhecimento é criar algo novo
(uma ideia ou um objeto material para o mundo) e ao mesmo tempo transformar-se em
alguém diferente. Essa trajetória aponta a “inconclusão do ser humano, [...] sua inserção
num permanente movimento de procura”, a qual provém de uma “curiosidade ingênua”,
que pode se tornar “crítica, virando epistemológica” (FREIRE, 1996, p. 14). Entretanto,
tornar-se consciente do próprio inacabamento é, ao mesmo tempo, o maior desafio e
aprendizado.
A questão que nos colocamos no início da pesquisa foi compreender se os livros
aqui estudados, de alguma forma, favorecem a formação de ouvintes e provoca-o(a)s a
serem ele(a)s também coautore(a)s/narradore(a)s/autore(a)s. A Coleção O que tem? e
a versão ilustrada de O Sumiço dos Guarda-Chuvas não chegou à fase de “testagem”,
ou seja, de leitura das crianças; e isso fez com que tivéssemos dados provenientes das
crianças e suas famílias apenas sobre parte dos produtos criados. Considerando que O
Sumiço dos Guarda-chuvas foi pensado para crianças a partir de três anos, que já
possuem a linguagem mais estruturada e que podem, assim, fazer escolhas dos
enredos, achamos interessante ver que mesmo as menores, pouco a pouco, se sentiram
engajadas a ouvir, fazer escolhas e mesmo recontar, expandindo sua capacidade
narrativa e autoral.
O maravilhamento infantil se mostrou forte: seja com a ludicidade, participação
na história, pelo mistério envolvido ou pelo estranhamento em relação ao tipo de
material (livro-áudio ou livro-jogo sem ilustração). Isso nos mostra a importância de não
subestimar as crianças; de criar mais possibilidades de envolvimento e autoria por parte
delas; de quebrar com estereotipias; dentre outros paradigmas. A contemporaneidade
– seja antes, durante ou depois da pandemia – exige de nós o não conformismo com a
imposição de modelos, com a subserviência infantil, com a descrença em sua
capacidade como sujeitos produtores de e produzidos na cultura.
É preciso mudar as lentes do(a)s profissionais que criam materiais infantis de
forma a efetivamente inundarmos o mercado com objetos desafiadores e lúdicos; ao
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mesmo tempo, percebemos ao longo da experiência o quanto é valioso que educadores
e educadoras aceitem viver experiências que os coloquem em contato com seus
próprios potenciais criativos, assumindo uma postura mais ativa na busca por respostas
para esse problema.

Referências:
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da


cultura. 8 ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas, v. 1)

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996. Coleção Leitura.

GADOTTI, M. (Org.). Paulo Freire: uma biobliografia. São Paulo: Instituto Paulo Freire;
Cortez Editora, 1996.

GANDRA, A. “Leituras elásticas” são novo conceito para formar leitores. Agência
Brasil, Rio de Janeiro, s/p, 19 ago. 2019. Disponível em: https://bit.ly/2EjhG87 Acesso
em: 6 ago. 2020.

GULLAR, F. Bichos do Lixo. São Paulo: Casa da Palavra, 2014.

LEITE, M. I. O Sumiço dos Guarda-Chuvas. Florianópolis, 2019. Versão digital, em


pdf. Disponível em: encurtador.com.br/acpsQ Acesso em: 20 set. 2020.

LEITE, M. I. O Sumiço dos Guarda-Chuvas. Narração: Maria Isabel Leite. Efeitos


sonoros: Alexandre Bender e Caio Abreu. Florianópolis: Playade, 2020. Disponível em:
encurtador.com.br/blrwD. Acesso em: 20 set. 2020.

LOHF, S. Coleção Vamos criar com... São Paulo: DCL, 1998. 10 v.

LOHF, S. Site pessoal da artista. 2020. Não paginado. Disponível em: www.sabine-
lohf.de. Acesso em: 20 set. 2020.

MACHADO, A. M. O Barbeiro e o Coronel. Ilustrado por Michele Iacocca. São Paulo:


FTD, 2003.

MANSQUE, W. Encantando gerações, Coleção Disquinho chega às plataformas de


streaming. Gaúcha ZH, Porto Alegre, 4 mai. 2020. Disponível em:
encurtador.com.br/ruKQ9 Acesso em: 20 set. 2020.

MATTAR, S. Práticas de Registro e Processos de Ensino-Aprendizagem da Arte. In:


Caderno de registro Macu. Edição n. 10, 1.º semestre de 2017. São Paulo: Teatro
Escola Macunaíma, 2017.

PIÚDA, F. S. Toda criança tem o direito de ler o mundo. Ilustrações de Rafael Limaverde.
São Paulo: Cortez, 2009.

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
ROCHA, R. Palavras, Muitas Palavras. Ilustrações de Cláudio Martins. São Paulo:
Quinteto Editorial, 1998. Coleção Hora dos Sonhos.

SALLES, C. A. Gesto Inacabado: processo de criação artística. 5 ed. São Paulo:


FAPESP; Annablume, 2011.

SALLES, C. A. Redes da Criação: construção da obra de arte. 2 ed. Vinhedo: Editora


Horizonte, 2014.

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LITERATURA E MÚLTIPLAS LINGUAGENS: CONTAÇÃO DE
HISTÓRIA COMO SUPORTE NUMA PERSPECTIVA INCLUSIVA
PARA A FORMAÇÃO DO LEITOR

Carlete Maria Thomé (PPGL UPF-Passo Fundo/RS - UNIEDU)


carlete_sc@hotmail.com
Sandra Fonseca Pinto (PPGL UPF-Passo Fundo/RS - UNIEDU)
sandrafonsecalit@gmail.com
Franciele Thomé (Uniasselvi – Itapiranga/SC)
francithome@hotmail.com

Eixo Temático: Eixo 6 – Literatura infantil e Juvenil e múltiplas linguagens

Considerações iniciais

Na busca constante de avanços nas práticas pedagógicas e para obter melhoria


na qualidade de ensino, destaca-se a necessidade, em primeiro momento, o acesso ao
acervo literário em diversos suportes e produções em múltiplas linguagens. Diante
disso, a literatura deve ser utilizada na educação escolar de forma planejada e mediada
pelo professor. Infância e a imaginação andam juntas, cada criança tem uma forma
única de entender e descrever a história de vida e a literatura, em suas múltiplas
linguagens, auxilia e amplia esse universo, ajuda a criar personagens, estabelecer
relações e compreender conceitos e seus múltiplos significados e incentivar o prazer de
ler, ler e entender, ler para interpretar, para que se tenha autonomia de pensamento e
ação.
Nesta concepção, o uso da literatura e a contação de histórias, em suas múltiplas
linguagens, como suporte numa perspectiva inclusiva para a formação do leitor,
sedução e envolvimento dos leitores. No entanto, faz-se necessário um levantamento
de dados históricos sobre a educação inclusiva, para que possamos tecer reflexões que
possam indicar caminhos na qual a literatura e a contação de histórias, com o auxílio
das tecnologias, tenham espaço garantido na escola, família e sociedade. Para o

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alcance de informações, recorre-se a uma abordagem teórica entre a literatura e a
formação do leitor, utiliza-se aportes teóricos como: Vicent Jouve, Jorge Larrosa, Robert
Escarpit e Ezequiel Theodoro da Silva.

História da educação inclusiva

Segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS, deficiência é o substantivo


atribuído a toda a perda ou anormalidade de uma estrutura ou função, psicológica,
fisiológica ou anatômica.
O Decreto 3298/89, que regulamentou a Lei 7853/89, em seu art. 3º define
deficiência como “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica,
fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro
do padrão considerado normal para o ser humano“.
Até 1850, de acordo com Oliveira 2010, não se dava importância e não existia
nenhuma modalidade de atendimento às pessoas com deficiência. É importante
conhecer a história da Educação Especial desde os seus primórdios até a atualidade.
Historicamente a educação era vista apenas para uma parte da sociedade, da
classe alta e que fossem considerados “normais”. “As pessoas com deficiência, no
decorrer dos anos, lutaram para conquistar o seu espaço dentro da sociedade”
(OLIVEIRA, 2010, p. 3). No entanto, a história da Educação Especial no Brasil “atenta
para os movimentos que ocorreram com a criação da APAE, instituição que influenciou
na inclusão das crianças com necessidades especiais no sistema regular de ensino”
(OLIVEIRA, 2010, p. 13). A Associação de Pais e Alunos Excepcionais - APAE, oferta
atendimento especializado, o que influenciou para consequência de que as crianças
com necessidades especiais eram retiradas do ensino regular e passaram a frequentar
apenas a APAE. E com isso, continuaram a luta pela inclusão e direito de educação
para todos.
Porém, em 1961 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº.
4024/1961 previa o direito dos “excepcionais” à educação, preferencialmente dentro do
sistema geral de ensino. A partir dos anos 70, as reivindicações foram atendidas e as
escolas de ensino regular ofertaram vagas para as crianças e adolescentes com
necessidades especiais. Em 1971 alterou a LDBEN de 1961 e definiu “tratamento

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especial” para estudantes com deficiências físicas e mentais que se encontram em
atraso considerável quanto à idade regular de matrícula e os superdotados, não
promove a organização de um sistema de ensino capaz de atender às necessidades
educacionais especiais e acaba reforçando o encaminhamento dos estudantes para as
classes das escolas regulares e escolas especiais.
A Declaração de Jomtien, em 1990, determina o fim de preconceitos e
estereótipos de qualquer natureza na educação. Em 1994 acontece a Declaração de
Salamanca: Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas
Especiais.
Os anos 90 ficaram marcados por mudanças na política educacional brasileira,
o que resultou em novas perspectivas para a política de educação especial. Sendo a
educação especial caracterizada como:
Um processo que visa promover o desenvolvimento das
potencialidades de pessoas portadoras de deficiências, condutas
típicas ou de altas habilidades, e que abrange os diferentes níveis e
graus do sistema de ensino. Fundamenta-se em referenciais teóricos
e práticos compatíveis com as necessidades específicas de seu
alunado. O processo deve ser integral, fluindo desde a estimulação
essencial até os graus superiores de ensino. (BRASIL, 1994, p. 17).

Foi a partir da Declaração de Salamanca115, em 1994, que as escolas


começaram a dar acesso aos alunos com deficiência nas classes regulares de ensino,
tendo como princípio orientador que as escolas deveriam acomodar todas as crianças
independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais,
linguísticas ou outras.
Em 1999, o Decreto nº 3.298, que regulamenta a Lei nº 7.853/89, ao dispor sobre
a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, define a
educação especial como uma modalidade transversal a todos os níveis e modalidades
de ensino, enfatizando a atuação complementar da educação especial ao ensino
regular.
Em 2004, instituiu-se o Programa de Complementação ao Atendimento
Educacional Especializado às Pessoas com deficiência (PAED), com objetivos
principais de garantir a universalização do atendimento especializado de estudantes
com deficiência.
Em 2011, implementou-se o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com

115
Declaração de Salamanca. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf>. Acesso: 20 set 2020.
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Deficiência - Plano Viver sem Limite. A escola regular se caracteriza como inclusiva
quando reconhece e valoriza as diferenças de características de seus estudantes e
garantindo a todos o direito de aprender.
A escola na perspectiva inclusiva, não deve somente visar pela presença física
de sujeitos com deficiência, muito menos por apenas assegurar a matricula. Essa
presença física deverá ser acompanhada de qualidade, permanência com êxito e
reconhecimento do estudante com deficiência como um sujeito de direito igual a todos,
capaz de traçar sua própria trajetória de forma autônoma, caso contrário estará sendo
feita uma exclusão dentro da inclusão. Não basta apenas inserir o estudante, deve-se
dar-lhe o espaço para ser incluído. Toda a trajetória nos permite perceber como as
pessoas com necessidades especiais lutaram e ainda lutam para ter seu espaço em
meio à sociedade e principalmente à inclusão educacional. De acordo com o ECA -
Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu Art. 53. A criança e o adolescente têm
direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o
exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se lhes:

I- Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;


II-Direito de ser respeitado por seus educadores;
III- direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às
instâncias escolares superiores; IV - Direito de organização e
participação em entidades estudantis; V - Acesso à escola pública e
gratuita próxima de sua residência. (BRASIL, 1990).

A educação é um direito de todos, e quando o estudante com deficiência é


incluído e integrado a escola regular, fazemos com que todos os estudantes interajam
e entendam que mesmo com as diferenças todos são iguais e todos merecem respeito.
Nos últimos anos, o termo exclusão social vem sendo bastante discutido nos debates
políticos educacionais. Após a Lei que consagra “educação para todos” têm-se dado
destaque à tolerância da diversidade. As políticas de inclusão ressaltam que incluir as
pessoas com deficiência em diferentes espaços sociais, auxilia como uma forma de
desenvolver as habilidades e competências, bem como as potencialidades desses
sujeitos, podendo dessa forma se tornar autônomos, capazes de aprender e de viver
em sociedade, realizando dessa forma uma inclusão.
A inclusão é entendida como “(...) uma forma de romper com práticas e relações
sociais discriminatórias, ao longo de um processo de mudanças cotidianas de atitudes
de uns em relação aos outros”. (SANTOS, 1998, p. 448). Visando, dessa forma, que a
possibilidade de aprender e viver em sociedade deve atingir a todos, sem exceções.
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Literatura para todos

Etimologicamente a palavra literatura vem do latim litteratura que significa


escrita, gramática e ciência, forjada a partir de littera que significa letra. Para Vicent
Jouve (2012), no século XVI, a literatura designava a cultura do letrado, a erudição. Para
o autor, “ter literatura” é possuir um saber, consequência natural de uma soma de
leituras. Como a literatura supõe a afiliação a uma elite, a uma aristocracia do espírito,
o termo acaba, por deslizamentos sucessivos, vindo a designar o “grupo das pessoas
de letras”. (JOUVE, 2012, p. 29).
No entanto, entende-se que cada pessoa traz em si experiências/vivências e
trajetórias leitoras individuais, que ao longo do tempo, são compartilhadas e
internalizadas com as pessoas de seu convívio. Além do mais, a leitura deve realizar
um trabalho ativo de construção de conhecimento, conforme destacado nos Parâmetros
Curriculares Nacionais,
A leitura na escola tem sido, fundamentalmente, um objeto de ensino.
Para que possa constituir também objeto de aprendizagem, é
necessário que faça sentido para o aluno, isto é, a atividade de leitura
deve responder, do seu ponto de vista, a objetivos de realização
imediata. Como se trata de uma prática social complexa, se a escola
pretende converter a leitura em objeto de aprendizagem deve preservar
sua natureza e sua complexidade, sem descaracterizá-la. Isso significa
trabalhar com a diversidade de textos e de combinações entre eles.
Significa trabalhar com a diversidade de objetivos e modalidades que
caracterizam a leitura, ou seja, os diferentes “para quês” — resolver um
problema prático, informar-se, divertir-se, estudar, escrever ou revisar
o próprio texto — e com as diferentes formas de leitura em função de
diferentes objetivos e gêneros: ler buscando as informações
relevantes, ou o significado implícito nas entrelinhas, ou dados para a
solução de um problema. (BRASIL, 1997, p. 41).

Por consequência, a educação, ao longo dos anos, tem se preocupado em


contribuir para a formação de um indivíduo crítico, dinâmico, responsável e atuante na
sociedade. Segundo Langer, “as escolas podem contribuir para o desenvolvimento de
seres humanos que usam a imaginação para ganhar visão e insight, sensibilidade e
estratégia e que podem conceber caminhos de mudar e não apenas a si mesmos, mas
também o mundo”. (LANGER, 2005, p. 210).
Neste viés, segundo Ezequiel Theodoro Silva (2011), aprender a ler ou a ler para
aprender, o indivíduo executa um ato de conhecer e compreender as realidades
humanas registradas através da escrita, acrescenta que, ao experienciar a leitura, o
leitor executa um ato de compreender o mundo. O propósito básico de qualquer leitura,
portanto, é a compreensão dos significados mediatizados ou fixados pelo discurso
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escrito, assim sendo, a compreensão dos horizontes inscritos por um determinado autor,
numa determinada obra ou época. Nesta perspectiva, o leitor “porta-se diante do texto,
transformando-o e transformando-se”. (SILVA, 2011, p. 50). Para o autor, compreender
a mensagem é compreender-se na mensagem, portanto, ler “não só é uma ponte para
a tomada de consciência, mas também um modo de existir no qual o indivíduo
compreende e interpreta a expressão registrada pela escrita e passa a compreender-se
no mundo”. (SILVA, 2011, p.51).
De acordo com Jorge Larrosa (2003), a leitura neste contexto, nos constitui
naquilo que somos e nos define na vida social, como podemos observar a seguir,

Trata-se de pensar a leitura como algo que nos forma (ou nos deforma
e nos transforma), como algo que nos constitui e nos coloca em
questão, naquilo que somos. A leitura, portanto, não é apenas um
passatempo, um mecanismo de evasão do mundo real e do eu real. E
não se reduz nem a um meio para adquirir conhecimentos. Em primeiro
lugar, a leitura não nos afeta no próprio lugar que transcorre, em um
espaço-tempo separado: em o lazer, ou em o instante que precede o
sono, ou no mundo da imaginação. Mas nem lazer, nem o sonho, nem
o imaginário se misturam com a subjetividade que rege a realidade,
pois a "realidade" moderna, o que entendemos por "real", se define
justamente como o mundo sensível e diurno do trabalho e da vida
social. Mas isto nem sempre tem sido assim. (LARROSA, 2003, p. 25
e 26).
Partindo dessa premissa, podemos afirmar que, a conduta do leitor, no decorrer
da sua trajetória de formação leitora, expõe uma experiência particular, deriva, dessa
forma, de sua formação escolar, de suas trajetórias leitoras (de várias informações
internalizadas e socializadas), num processo estruturado - constituídas por elementos
essenciais com predisposição/ação, no momento de bordar a obra,

A ação do leitor se desenvolve simultaneamente em dois planos: de


um lado, o pensamento conceitual e a imaginação objetiva, os dois
socializados; por um lado, o sonho, da obsessão, da frustração. Ambos
traduzem sua liberdade em uma situação que o livro reduz a uma
experiência particular. A grande diferença entre o leitor, reside em que,
para o último, psicológico, situa-se antes da formulação da obra, e
deste modo, encontra-se quase totalmente fora do processo, portanto,
para o primeiro, constitui um dos elementos essenciais de sua
predisposição no momento de abordar a obra, fazendo parte do
processo. (ESCARPIT, 1974, p.33-34).

Contudo, quando tomamos as representações de leitor, de literatura e leitura


como objeto de estudo, partimos do pressuposto de que elas são partilhadas pelos
indivíduos que as acionam, que são repensadas por eles e carregam em si elos com
conhecimentos herdados de gerações anteriores. Assim, a leitura “passa a ser, então,

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uma via de acesso à participação do homem nas sociedades letradas na medida em
que permite a entrada e a participação no mundo da escrita; a experiência dos produtos
culturais que fazem parte desse mundo só é possível pela existência de leitores”.
(SILVA, 2011, p. 74). A partir dessa interpretação, destacamos o uso da literatura desde
a infância. A literatura infantil não possui o intuito somente de “entreter a criança, ou de
transmitir noções morais” (MEIRELES, 1979, p.78), mas também, busca “transmitir, de
maneira suave, os conhecimentos necessários às várias idades” (MEIRELES, 1979,
p.78). As histórias são uma maneira que a humanidade encontrou para expressar
experiências que, nas narrativas realistas, não acontecem. A contação de histórias
surgiu muito antes dos livros de literatura, pois
Desde que o mundo é mundo, o homem sempre esteve ao lado de
suas narrativas, ao redor do fogo, por meio da escrita rupestre
entremeada de sons guturais até a elaboração da linguagem.
Contando sua própria história e a do mundo, o homem vem se
utilizando da narrativa como um recurso vital e fundamental. Sem ela
a sociabilidade e mesmo a consciência de quem somos não seria
possível. (BEDRAN, 2012, p.25).

Inegavelmente a contação de histórias é uma metodologia de fazer arte em que


as pessoas vivem o momento, se envolvem, sentem prazer em ouvir. Hoje em dia, a
contação de histórias virou um grande aliado, às vezes mesmo esquecido pelos
profissionais da educação, que auxilia a deixar as aulas mais prazerosa e atrativa aos
estudantes. Contar e ouvir histórias são possibilidades de aprendizagem e de aquisição
de novos conhecimentos, “a história é importante alimento da imaginação. Permite auto-
identificação, favorecendo a aceitação de situações desagradáveis, ajuda a resolver
conflitos, acenando com a esperança.” (COELHO, 1999, p. 12). A contação de histórias
é uma estratégia pedagógica que pode contribuir com a prática docente, visto que,

Há quem conte histórias para enfatizar mensagens, transmitir


conhecimentos, disciplinar, até fazer uma espécie de chantagem – “se
ficarem quietos, conto uma história”, “se isso”, “se aquilo...”- quando o
inverso é que funciona. A história aquieta, serena, prende a atenção,
informa, socializa, educa. Quanto menor a preocupação em alcançar
tais objetivos explicitamente, maior será a influência do contador de
histórias. O compromisso do narrador é com a história, enquanto fonte
de satisfação de necessidades básicas das crianças. Se elas as
escutam desde pequeninas, provavelmente gostarão de livros, vindo a
descobrir que neles histórias como aquelas que lhes eram contadas.
(COELHO, 1999, p.12).

Sendo assim, contar histórias é fundamental, pois transmite valores e é decisiva


na formação e desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem. “O que acontece
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dentro de nós durante uma escuta narrativa nos é dado pelo texto tornado fala
significativa pelo contador, este capaz de expressar, pôr para fora, aquilo que estava no
interior”. (BUSATTO, 2007, p.75).
No entanto, Coelho (1999), relata sobre uma escolha especial, visando olhar
para o aluno com deficiência e escolher histórias que correspondam à sua deficiência.
O autor Cristiano Refosco (2016), criou um livro com conjunto de contos “Era uma vez
um conto de fadas inclusivo” que traz o tema da deficiência. Keil, editora do livro, aborda
que “todas as crianças com deficiência ou não, podem reforçar os seus recursos
psíquicos pela imaginação e pela fantasia, medidos pela problemática apresentada na
releitura dos contos.” (2016, s/p). Neste livro, o autor aborda o dia a dia de uma pessoa
com deficiência através de um conto de fadas e,

Para as crianças com deficiência, trata-se de aprender a enfrentar e


aceitar sua condição no sentido de autovalorização. Para crianças sem
deficiência, trata-se de compreender os problemas que os indivíduos
com deficiência enfrentam, tendo em vista a gramática social brasileira
profundamente segregadora e excludente. Trata-se, portanto, de um
trabalho no qual se ancoram lutas por cidadania e generalização de
direitos. (KEIL, 2016, s/p).

Sendo assim, contar histórias é fundamental, pois transmite valores e é decisiva


na formação e desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem. É também estimular
a motivação dos alunos para a leitura, visando suas possibilidades e potencialidades, e
do quanto o hábito da leitura poderá acrescentar positivamente ao seu desenvolvimento
intelectual. Os livros podem contribuir na formação pessoal e intelectual, ainda mais se
for pensado em crianças no processo de alfabetização, visto que é ideal que a criança
tenha contato com a literatura de forma integral, inclusive pessoas com deficiências.
Com dados obtidos no site CRB8116, pode-se notar que em um país com mais
de 6,5 milhões de pessoas com alguma deficiência visual, a acessibilidade na leitura é
um assunto de extrema importância. Quando falamos sobre livros acessíveis, o que logo
vem na memória é o livro em braile, mas existem vários outros formatos disponíveis e o
investimento para ajudar o deficiente visual é o que não falta. Infelizmente, a oferta de
livros em braille ainda é limitada e de difícil acesso para a população. Mas existem
instituições que trabalham nessa área com o intuito de promover a inclusão de

116
Literatura Acessível. Site CRB-8, 2020. Disponível em:
<http://www.crb8.org.br/category/leitura/leitura-acessivel/>. Acesso: 01 ago 2020.
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deficientes visuais no mundo literário, como é o caso da Fundação Dorina Nowill para
Cegos e o Instituto Benjamin Constant.
- Fundação Dorina Nowill para Cegos117 - A Fundação Dorina Nowill para Cegos produz
anualmente milhares de páginas em braille de livros didático-pedagógicos,
paradidáticos, literários e obras específicas solicitadas pelas pessoas com deficiência
visual. Os livros são distribuídos gratuitamente em escolas, bibliotecas, associações e
organizações que possuem esse cunho social. Além dos livros em braille também são
feitas versões audio descritivas e digitais.
- Instituto Benjamin Constant118 - O Instituto Benjamin Constant, localizado no Rio de
Janeiro, produz obras didáticas e paradidáticas com o objetivo de suprir a necessidade
de escolas públicas, bibliotecas públicas e instituições sem fins lucrativos que atuam
nesse setor.
De acordo com o site VIAGORA119, A escritora Josefa Geovana (2017) expõe a
ideia de disponibilizar a leitura a todos e fazer a inclusão social entre as pessoas com
deficiência auditiva e/ou visual, a Comissão de Cultura aprovou a proposta que cria o
programa “Literatura para Todos”120. O Projeto de Lei 4344/16, irá disponibilizar a esse
público o contato com diversos livros, didáticos, artísticos, científicos, entre outros,
impressos no sistema Braille, e também gravados em vídeo e áudio. Os livros poderão
ser encontrados em bibliotecas públicas, e em organizações que lidam com pessoas
mudas ou surdas.
Se pesquisarmos na internet, podemos encontrar livros em braile e até com
LIBRAS, tanto obras dos clássicos infantis como outras histórias que abrangem a
deficiência no enredo. Segundo Geovana (2017), a internet dispobiliza algumas
vídeoaulas e contação de histórias em libras que podem auxiliar no atendimento a
pessoas com deficiência auditiva e também existem aplicativos, como o Eye-D,
possibilitando a leitura de livros para portadores de deficiência visual, além dos já
antigos audiolivros. O desenvolvimento de tecnologias assistivas, como a dos
aplicativos, é importante para a garantia de uma população que inclua cada vez mais
pessoas com deficiência no meio social. Além disso, a tecnologia faz com que essas

117
Idem.
118
Idem.
119
GEOVANA, Josefa. Programa “Literatura para Todos” propõe livros para cegos e surdos.
Viagora, 2017. Disponível em: <https://www.viagora.com.br/noticias/programa-literatura-para-
todos-propoe-livros-para-cegos-e-surdos-61797.html>. Acesso: 01 ago 2020.
120
Programa “Literatura para Todos” propõe livros para cegos e surdos. Disponível em:
<http://www.lmc.org.br/?p=63787>. Acesso: 01 ago 2020.
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pessoas tenham a chance de ganhar autonomia ao realizar pequenas tarefas. Visto que
a tecnologia está ali para ajudar, e para as crianças pode ser uma ferramenta de grande
ajuda proporcionando o bem-estar e a qualidade de vida, sendo assim, separamos
algumas ferramentas encontradas em sites da internet, seguindo com o link e breve
explicação dos aplicativos:
GOOGLE - No próprio Google, existem diversas formas de conseguir ouvir e/ou
contar uma história, só abrir o navegador e digitar e/ou falar a história que gostaria de
ouvir/ver. Mas sabemos que existem algumas limitações e dificuldades que fazem com
que esse processo seja mais complicado. Para isso é bom um adulto acompanhar a
criança nessa busca por histórias. No próprio Google ainda, contamos com a ferramenta
YouTube, na qual existem diversos vídeos que narram histórias, encontram-se livros
apenas narrados para as pessoas que possuem deficiência visual, histórias narradas e
encenadas em Libras para quem possui deficiência auditiva e ainda histórias que
envolvem pessoas com diversas deficiências como seus personagens. Outra ferramenta
disponibilizada pelo Google uma plataforma de audiolivros gratuitos de clássicos
infantis por meio da ferramenta Google Assistente. É possível escutar um audiolivro
infantil acionando o comando de voz do Google em seu celular. Os áudios estão
disponíveis no aplicativo Google Play Livros, que pode ser baixado nas
plataformas Android e iOS, e também em caixas de som inteligentes que contam com
o Google Assistente.
Site: porvir.org/ - conta com diversas dicas de APP (aplicativos) para serem
baixados nos celulares, tais como:
- Crianceiras: Com poemas musicados e animados de Manoel de Barros, o aplicativo
traz clipes, poemas com sons, figuras e significados, desenhos e ferramentas para
capturar fotos com personagens das obras. Disponível para iOS;
- Animal Sounds: Com mais de 100 sons de animais, o aplicativo disponibiliza imagens
e categorias que permitem envolver as crianças em uma jornada imersiva para criar e
contar histórias. Disponível para Android e iOS;
- Google Spotlight Stories: Com o aplicativo é possível contar histórias a partir de
narrativas em realidade virtual. Com recursos imersivos em 360º, os estudantes podem
ser transportados para um ambiente virtual que estimula a imaginação. Disponível para
Android e iOS.
Site: essencecuidados.com.br/ - conta com diversas dicas de APP (aplicativos)
para serem baixados nos celulares, tais como:
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- TelepatiX - Esse aplicativo funciona como um alfabeto, possibilitando que pessoas que
não conseguem falar ou que apresentem limitações de movimentos se comuniquem
com mais facilidade. É possível até mesmo escrever no aplicativo apenas com o piscar
dos olhos! O TelepatiX tem versões gratuita e paga e está disponível para smartphones
com sistema operacional Android;
- Hand Talk - Eleito melhor aplicativo do mundo na categoria Inclusão Social em
concurso promovido pela ONU em 2013, o Hand Talk garante a acessibilidade a
pessoas com deficiência auditiva. Hugo, o intérprete virtual do Hand Talk, traduz texto e
áudio para Libras – a língua brasileira de sinais – simultaneamente. O download está
disponível para sistemas iOS e Android. Também tem versão desktop para empresas;
- VoiceOver - Desenvolvido pela Apple, o VoiceOver contempla pessoas com deficiência
visual. São várias funcionalidades. Ele é capaz de ler o conteúdo da tela em voz alta,
atender comandos de gestos, oferecer suporte para teclado em braile, descrever
imagens, entre outras. É possível ainda assistir a filmes no iPhone com audiodescrições
das cenas e ouvir as legendas ocultas e faixas de legenda através do VoiceOver.
Apenas para iOS;
- Aramumo - é um jogo desenvolvido por estudantes do Instituto Tecnológico de
Aeronáutica (ITA) a fim de estimular a aprendizagem em crianças e jovens com dislexia.
O aplicativo também pode ser usado por pessoas com dificuldade de aprendizado ou
com deficiência intelectual. No jogo, o usuário precisa resolver palavras-cruzadas com
o uso de sílabas. Disponível para sistema Android.

Considerações Finais
A partir desses exemplos de aplicativos disponíveis, acredita-se que os
estudantes, tanto com e aqueles sem deficiência, conseguem ter um vasto campo de
possibilidades de aprendizagem e que precisam ser estimulados para que ela ocorra.
De acordo com Rösing (2009), o fomento à leitura, à formação de leitores e mediadores
de leitura ainda se encontram com um longo percurso a percorrer. São necessárias
práticas leitoras para construir significados colaborativos, no qual o pensamento
conceitual e a imaginação leitora sejam socializados, para que estimulem o leitor para a
curiosidade e a descoberta das vivências e experiências existentes em cada texto,
O fomento à leitura, à formação de leitores e à formação de mediadores
de leitura é um caminho longo a ser percorrido. Essa caminhada fica
menos árdua quando apresenta paradouros em que se observam
pessoas lendo distintos materiais de leitura, desejando compartilhar
temas, recursos de linguagens, e, ainda, construir significados

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colaborativamente. É uma forma eficiente de ampliar a curiosidade pela
descoberta dos mundos existentes no interior de cada texto, de cada
livro em particular, ou mesmo, de conteúdos apresentados em outros
suportes não tradicionais, como as revistas em quadrinhos, os mangás,
ou textos impressos que importam o formato hipertextual próprio da
linguagem informatizada (RÖSING, 2009, p. 14).

Portanto, partindo do pressuposto de que a prática de leitura e a história leitora


dos sujeitos é sempre marcada pelas oportunidades de acesso e o convívio nas mais
diversas instâncias leitoras. Entendemos que, os espaços de leitura agem como
formadores de leitores. O mediador é a ponte entre o leitor e a literatura, uma peça
fundamental para formação leitora.

Referências

BEDRAN, Bia. A arte de cantar e contar histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2012.

BRASIL. ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. 1990. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 1 jul. 2020.

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa /Secretaria de


Educação Fundamental. – Brasília: MEC, 1997. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf>. Acesso em: 1 jul. 2020.

BRASIL. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamenta a Lei nº


7.853/89. Disponível: http://www.progep.ufu.br/legislacao/decreto-no-3298-de-20-de-
dezembro-de-1999-comprovacao-de-deficiencia-para-concurso. Acesso: 20 set 2020.

BUSATTO, Cléo. Contar e Encantar: pequenos segredos da narrativa. RJ: Vozes,


2012.

COELHO, Betty. Contar histórias: uma arte sem idade. São Paulo: Ática, 1999.

ESCARPIT, Robert. Y Otros. Hacia una sociología del Hecho Literario. Madrid,
Edicusa: 1974.

JOUVE, Vicente. Por que estudar literatura? Tradução Marcos Bagno e Marcos
Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2012.

LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. Estudios sobre literatura y formación.


México: FCE, 2003.

MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3ª ed. São Paulo: Summus;


Brasília: INL, 1979.

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
OLIVEIRA , Tátilia Cilnene Leite de. Caderno de Estudos: Educação Especial
Inclusiva: Aspectos históricos, legais e filosóficos. Indaial: Centro Universitário
Leonardo da Vinci - UNIASSELVI, 2010.

REFOSCO, Cristiano. Era uma vez um conto de fadas inclusivo. KEIL, Ivete (ed.). 2ª
ed. Porto Alegre, RS: Escritos, 2016.

RÖSING, Tânia M. K. (Org.). Mediação de leitura: discussões e alternativas para a


formação de leitores. São Paulo: Global, 2009.

SANTOS, Mônica Pereira dos. Revisitando a inclusão sob a ótica da globalização:


duas leituras e várias consequências. In: SILVA, Luiz Heron da. (Org.). A escola
cidadã no contexto na globalização. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. O Ato de Ler: fundamentos psicológicos para uma nova
pedagogia da leitura. Campinas, São Paulo: Cortez, 2011.

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
PALAVRA CANTADA, TECNOLOGIA E POÉTICA:
ALCANÇANDO INTELIGÊNCIAS E SENSIBILIDADES

Marcelo da Silva Carvalho, Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR.

Eixo Temático: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Poética e rizoma
Vivenciar cada manifestação artística e compreendê-la é um desafio. Tais
manifestações se dão em um conjunto de linguagens que nos possibilitam entender a
nossa realidade ou questionar muitas destas coisas que o mundo nos mostra. Um dos
elementos que ajudam nesta compreensão é a música, representada neste trabalho
pela dupla Sandra Peres e Paulo Tatit que dão vida à Palavra Cantada.
Grupo atuante desde 1994, suas obras se destacam pela música, por terem em
seu cerne a música brasileira como principal elemento de suas composições, as letras
ricas em uma poética própria e bastante marcada pelos elementos audiovisuais que se
transformaram ao longo dos anos e hoje é destaque nas mídias sociais. Essas
linguagens pretendem alcançar as Inteligências e sensibilidades das crianças, conforme
informação contida no website da dupla.
Assim, a pesquisa propõe analisar o objetivo da Palavra Cantada, isto é,
entender a poética presente nas canções da dupla. Porém, esta poética precisa ir ao
encontro de uma base filosófica, possibilitando entender como a Palavra Cantada quer
atingir seu objetivo já mencionado. Um dos caminhos que apresenta esta base filosófica
é o estudo de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2000) sobre o rizoma, que compreende
verificar a multiplicidade das letras, músicas e imagens da Palavra Cantada e
transformá-lo em novas possibilidades de se trabalhar este tema, principalmente, no
ambiente escolar. Teóricos como Hans Robert Jauss (1979), Ernst Cassirer (1977),
Alberto Cupani (2016), Walter Benjamin (2012) Gallo (2007) fazem parte da base
teórica, entre outros. A pesquisa é qualitativa e de caráter teórico, fundamentada em
bibliografias que buscam trazer novas reflexões sobre a música infantil, tendo como

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base as letras (texto) e as relações com as plataformas digitais de reprodução
(multimidialidade e a intermidialidade). Acredita-se que tal multiplicidade, tendo como
referência a poética da dupla, pode trazer novas referências de leitura, sendo um novo
aliado no ensino-aprendizagem.
.
O Rizoma por Deleuze e Guattari121
Há determinadas manifestações humanas que não possuem uma definição
postulada, dizendo que elas começam e terminam, num determinado universo único e
perene, inquebrável. A poesia, por exemplo, não traz uma definição, visto as inúmeras
expressões e formas como elas se apresentam, como um Haikai e a sua estrutura ou
um poema parnasiano. E a poesia é uma forma de arte; e a arte, também, não traz uma
definição, mas variações que dão completude ao sentido da palavra por si só. A música
é uma forma de arte e ela se ramifica em gêneros, subgêneros, ritmos e tudo isto é arte
dentro da arte musical.
Augusto Boal complementa esta ideia, trazendo o papel da arte na sociedade:

Arte é forma de conhecer, e é conhecimento, subjetivo, sensorial, não


científico. O artista viaja além das aparências e penetra nas unicidades
escondidas pelos conjuntos. Sintetiza sua viagem e cria um novo
conjunto a Obra - que revela o Uno descoberto nesse mergulho; este,
por analogia, nos remete a nós mesmos. (BOAL, 2008, p. 111).

Partindo desta reflexão e pensando na arte e suas manifestações, não basta


somente apreciá-la ou criticá-la sem ao menos compreender por completo uma
determinada obra. Tendo como base a citação de Boal, é necessário dizer que a arte
não é reduzida a algo óbvio. Ela parte para o campo subjetivo, levando a inúmeras
interpretações. Sempre quando é dito que para se entender algo é necessário ir à raiz
do problema, isso sempre fez todo sentido, fazendo um paralelo com os estudos dos
filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari.
A obra Mil Platôs (2000) tem cinco volumes lançados no Brasil e o primeiro
volume desta coleção já traz em sua primeira parte a reflexão sobre o rizoma. Em que
determinado momento a teoria rizomática pode ser importante para uma compreensão
mais apurada das letras da Palavra Cantada? De início, apresenta-se o resumo a seguir:

121
Uma poética rizomática. Capítulo 1 da dissertação Uma poética do sensível: Palavra
Cantada em perspectiva rizomática. Orientadora: Prof.ª Dra. Alice Atsuko Matsuda (PPGEL-
DALIC UTFPR).
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Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente
das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer
com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete
necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo
regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não signos.
(DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 31).

Esta conexão de um ponto a outro qualquer e suas ramificações seguintes, é a


recepção das músicas da dupla por pais e filhos, cada um fazendo em sua percepção
de mundo, conexões com suas experiências passadas ou experimentando uma nova
forma de se enxergar aquilo que está sendo transmitido, lembrando que há linguagens
diferentes (texto, áudio e vídeo) atuando em consonância, garantindo a fruição e o
entendimento daquela obra. Há de se pensar também nestas conexões, sobre como os
autores das letras imaginam atingir seu público e o trabalho poético e estético
necessários e quando uma pessoa recebe, ela percebe ou não estas nuanças. Em
suma, a autora Keila Mara de Souza Araújo Maciel em seu artigo Estrutura rizomática
na poesia visual de Arnaldo Antunes122 (2014) traz uma excelente maneira de se
enxergar o rizoma e suas conexões, base para o pensamento da multiplicidade:

O rizoma não é um molde, pois não fixa pontos nem ordens, apenas
linhas e trajetos. Por criar fronteiras resistentes, há rupturas no rizoma;
mas sempre que elas ocorrem, surgem as linhas de fuga, essas linhas
estão sempre em movimento de interação. Trata-se de uma rede
aberta, conectável, constantemente sujeita a modificações. (MACIEL,
2014, p. 10).

Neste sentido, pensar de forma rizomática possibilita inúmeras maneiras de se


enxergar o mundo; não há uma estrutura central que delimita onde começa e termina o
pensamento. O pensamento é fluido; é preciso sempre várias referências para tentar
entender ao máximo tudo o que permeia as ações humanas. São estas referências que
possibilitam a criação da arte e as relações que elas irão trazer. Mas antes, é necessário
se perguntar: o que é Rizoma?
Num primeiro momento, é possível entender o rizoma não só como uma teoria
de pensamento trazida por Deleuze e Guattari, porém, mais do que isso: é um caminho
para se tentar organizar o pensamento filosófico, pois para Deleuze, a filosofia “[...] é a

122
Revista Letras Escreve. Macapá, v.4, n.1, 1º semestre, 2014. Disponível em:
https://periodicos.unifap.br/index.php/letras/issue/view/80 Acesso em 16/07/2020.
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teoria das multiplicidades. Toda multiplicidade implica elementos atuais e virtuais”
(DELEUZE in ALLIEZ, 1996, p.49). Ou seja, o pensamento humano já é carregado com
estas multiplicidades e elas se manifestam de maneiras variadas a todo o momento. Um
exemplo prático desta multiplicidade trazida pelos filósofos já citados são os fios de uma
marionete; estes fios são o rizoma, pois levam a marionete não somente a repetir
comandos de alguém que a controle, mas estes mesmos fios se tornam fibras nervosas,
“[...] que formam por sua vez uma outra marionete seguindo outras dimensões
conectadas às primeiras” (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p. 15). São estas conexões,
estas fibras (ou fios) que nos ligam a experimentar novos níveis de pensamento dentro
da nossa realidade.
Quando se fala em arte e poesia no início deste capítulo, a ideia é sempre
mostrar que estes elementos são os fios condutores de novas possibilidades de
perceber o que o mundo pode nos oferecer e quais catarses elas podem nos transportar.
Aqui entra um elemento interessante que ajuda a compreender a arte a sua
multiplicidade, que é a estética da recepção. Assim como o rizoma, as experiências de
poiesis, aisthesis e katharsis, “[...] não devem ser vistas numa hierarquia de camadas,
mas sim como uma relação de funções autônomas: não se subordinam umas às outras,
mas podem estabelecer relações de sequência” (JAUSS, apud LIMA, 1979, p. 102). Ou
seja, quem cria determinada obra de arte, pode se por no lugar de quem vai receber e
vice-versa; são experimentações do mesmo tema, uma variedade de novas
descobertas, multiplicidades, em sua mais bruta essência. Em suma, o rizoma pode
também ser uma experiência poética. Este item será aprofundado em outro momento.
Voltando ao questionamento anterior sobre como o rizoma pode ser fundamental
para entender a Palavra Cantada, basta pensar em todo repertório produzido até hoje e
quantas possibilidades de interpretação podem ser encontradas em suas letras e na
visualidade de seus vídeos.
A música Bicicleta do DVD Pauleco e Sandreca é um destes exemplos de como
entender a letra e a imagem em uma perspectiva rizomática. Letra, ritmo musical e
imagem acabam se tornando uma coisa só ao longo do vídeo. Nos primeiros momentos,
mostra-se uma criança pedalando sua bicicleta por alguns caminhos pré-determinados
(Figura 1 a 4), com um cuidado muito sensível com a movimentação da câmera e a
dinâmica que este pedalar apresenta.

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Figura 1 – Cena do videoclipe “Bicicleta”

Fonte/reprodução: https://www.youtube.com/watch?v=ChIRU7CWdBo&t=2s Acesso:


14/08/2020

Figura 2 – Cena do videoclipe “Bicicleta”.

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Fonte/reprodução: https://www.youtube.com/watch?v=ChIRU7CWdBo&t=2s Acesso:
14/08/2020

Figura 3 – Cena do videoclipe “Bicicleta”

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Fonte/reprodução: https://www.youtube.com/watch?v=ChIRU7CWdBo&t=2s Acesso:
14/08/2020

Figura 4 – Cena do videoclipe

Fonte/reprodução: https://www.youtube.com/watch?v=ChIRU7CWdBo&t=2s Acesso:


14/08/2020

E não é só pedalar no sentido físico de esforço, de exercício, mas é o pedalar


por caminhos que a imaginação, numa representação poética possa alcançar, levando
a conhecer “novos lugares” (Figuras 5 a 8). E estes “novos lugares” não se restringem
somente ao vídeo, ele é passível de ser exercitado para fora dele; e para este
entendimento, o texto (a letra da música) deve ser colocado num primeiro plano. O
trecho que segue, resume todo o contexto, tanto da imagem, quanto da letra como um
todo:

Não vai cair não


Quem pedalar
E a vida assim vai
Continuar

Quantas interpretações cabem neste pequeno trecho? Com a análise das


imagens, as possibilidades só aumentam:
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Figura 5: Cena do videoclipe “Bicicleta”

Fonte/reprodução: https://www.youtube.com/watch?v=ChIRU7CWdBo&t=2s Acesso:


14/08/2020

Figura 6: Cena do videoclipe “Bicicleta”.

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Fonte/reprodução: https://www.youtube.com/watch?v=ChIRU7CWdBo&t=2s Acesso:
14/08/2020

Figura 7: Cena do videoclipe “Bicicleta”.

Fonte/reprodução: https://www.youtube.com/watch?v=ChIRU7CWdBo&t=2s Acesso:


14/08/2020

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Figura 8: Cena do videoclipe “Bicicleta”.

Fonte/reprodução: https://www.youtube.com/watch?v=ChIRU7CWdBo&t=2s Acesso:


14/08/2020

Tem-se aqui a teoria rizomática numa prática inicial de pensamentos. Sabemos


de quem é a música inicialmente, bem como seus compositores, os ritmos que ela
apresenta e a época em que aparece. Para o filósofo alemão Joseph Vogl, “o modo
rizomático é continuamente focado em encontrar novos começos”123. Estes novos
começos são os modos de se enxergar em um determinado elemento, possibilidades
para se apresentar uma nova visão de mundo, novas linguagens e o trânsito por novos
públicos, aumentando ainda mais os níveis de referência que a música aqui
exemplificada ou qualquer obra podem vir a apresentar.
Como já colocado, as letras da Palavra Cantada podem ser entendidas como
texto, sendo parte integrante de uma literatura que cria seu próprio universo. Não é a
toa que a dupla, juntamente com uma equipe de pedagogos e educadores, produzem
materiais para a sala de aula, além de livros de literatura que tem como base, suas

123
O que é um rizoma? Alexander Kluge e Joseph Vogl - Prime Time. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=2k-wWziPk-g Acesso em 17/07/2020.
691

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próprias letras. Porém, este universo próprio que a Palavra Cantada consegue criar,
encontra-se com as ideias de Deleuze e Guattari sobre como a literatura age na
multiplicidade; eles dizem o seguinte:

A literatura é um agenciamento, ela nada tem a ver com ideologia, e,


de resto, não existe nem nunca existiu ideologia. Falamos
exclusivamente disto: multiplicidade, linhas, estratos e
segmentaridades, linhas de fuga e intensidades, agenciamentos
maquínicos e seus diferentes tipos, os corpos sem órgãos e sua
construção, sua seleção, o plano de consistência, as unidades de
medida em cada caso (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 11).

Ou seja, tudo o que a Palavra Cantada criou até o momento, é o resultado de


anos de trabalho e criações diferentes, que possibilitaram até mesmo a sua evolução
em termos estéticos e tecnológicos; eles mesmos se reinventaram ao longo dos anos,
se tornaram múltiplos e segmentados em diversas linhas de construção, não só de sua
carreira, mas também dos processos criativos que garantem o sucesso e o cuidado com
as composições. Quando se fala em linhas de fuga na citação acima, entende-se que a
dupla busca cada vez mais expressões de arte dentro de sua própria obra de arte. Um
exemplo disso é a criação do projeto Palavra Cantada Toys exibido pela primeira vez
em 19 de outubro de 2019; consiste em vídeos curtos, de 30 segundos em média,
mostrando algumas aventuras das personagens Pauleco e Sandreca. Como o rizoma é
feito de conexões e aqui podemos atribuí-las a referências, outro exemplo encontrado
neste formato “Toy” é o da Turma da Mônica, que exibe vídeos neste formato desde
2013 e já conta com oito temporadas. A descrição seguinte pode ser encontrada em seu
canal no Youtube124:

Mônica Toy é uma família de personagens em animação 2D, voltada


para o público juvenil e adulto. As características mais marcantes dos
principais personagens da Turma da Mônica estão presentes nessa
nova linguagem, com mais liberdade e humor.

Não se sabe ao certo se a Palavra Cantava teve uma inspiração direta (ou
indireta) desta ideia, mas o que se vê nestas duas obras de arte é como a criação de
novas linguagens se torna necessária e cada vez mais criativa ao longo do tempo e qual
o público elas pretendem atingir.Fica evidente que a Palavra Cantada não se resume

124
Disponível em:
https://www.youtube.com/playlist?list=PLWduEF1R_tVYCikTS9pSWwd3UtfmotVvr. Acesso em
17/07/2020.
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apenas às performances de Sandra Peres e Paulo Tatit. Observar o trabalho deles para
além de uma obra de arte é verificar possibilidades da sua contribuição para a
sociedade. É por isso que a teoria rizomática pode ser o caminho ideal paraentender
um dos objetivos principais da dupla: suas composições são feitas a partir de uma
poética que além de atingir, respeita a inteligência e a sensibilidade das crianças.
Deleuze e Guattari (2000, p. 15) se tornam essenciais neste encontro de ideias, quando
eles dizem que a “[...] multiplicidade não tem sujeito, nem objeto, mas somente
determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que se mude de
natureza [...]”. A dupla prova a cada material lançado que a natureza de seus trabalhos
mudou desde os anos 1990, interferindo até mesmo nas construções poéticas das
letras. Para se entender ainda mais esta multiplicidade, é necessário primeiramente
compreender como a Palavra Cantada se expressa poeticamente ao longo do tempo e,
principalmente, como o estilo de música infantil surge no Brasil.
Contudo, Deleuze e Guattari nos traz a seguinte colocação sobre a expressão
musical:

A música nunca deixou de fazer passar suas linhas de fuga, como


outras tantas "multiplicidades de transformação", mesmo revertendo
seus próprios códigos, os que a estruturam ou a arborificam; por isto a
forma musical, até em suas rupturas e proliferações, é comparável à
erva daninha, um rizoma. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 20).

Portanto, se tem música, logo, se tem rizoma. Trazer a teoria rizomática até aqui,
foi fundamental para entender que a poética é produto de uma transformação diária de
si mesma. A poética é rizomática, na medida em que ela produz experiências ao longo
da sua jornada. Logo, esta poética cria novas versões de si mesma, nunca se esgota.
Em certa medida, ela se imortaliza na arte e na tecnologia.

Considerações Finais
Estar diante de um trabalho como o da Palavra Cantada e enxergar novas
possibilidades de estudo em seus materiais ajuda a entender que as linguagens
presentes em seus materiais são fontes ricas para se aplicar no ensino aprendizagem.
Estas linguagens são conectáveis e as referências que surgem a partir disso podem ser
vastas.
A pesquisa também mostra que uma teoria filosófica como o rizoma, pode se
tornar um elemento fundamental para se pensar a educação em outros patamares e que

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as conexões que existem na teoria possam se valer ainda mais na prática, havendo um
trânsito de ideias necessárias.

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DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE LÍNGUA MATERNA E
LITERATURA, NO ENSINO DE MATEMÁTICA, COM
TECNOLOGIAS DIGITAIS

Krisna Cristina Costa - CEFETMG125


José Teófilo de Carvalho - CEFETMG126

Eixo Temático: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Para começar
No contexto de Estudos de Linguagens, este artigo propõe uma breve reflexão
sobre o diálogo entre Língua Materna (LM) e Literatura no ensino de Matemática,
mediado pelas tecnologias digitais.
O tema é um recorte de uma pesquisa mais ampla, de natureza qualitativa, em
fase final de defesa. Trata do conceito e uso de duas coleções de livros didáticos digitais
de matemática (LDDM), adotados nas escolas públicas brasileiras pelo Programa
Nacional de Livro Didático (PNLD) no período 2017-2019. O PNLD existe desde 1985,
com essa denominação e recursos orçamentários definidos em lei, oriundos de Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FUNDEB). Não pretendemos tratar ainda
dos resultados da pesquisa, por não ter sido ainda defendida e devido aos limites de um
artigo. Discutiremos a Linguagem Materna (LM) e a relação que ela estabelece com
literatura.
A pesquisa tem como objeto a investigação o conceito do LDDM no PNLD e o
processo de seleção e uso do LDDM em dez escolas públicas brasileiras de perfis
variados, tanto em relação ao tamanho quanto à localização geográfica, dentro do
Estado de Minas Gerais. O tema tem relevância devido à magnitude do programa, à
abrangência das escolas públicas e ao volume de recursos financeiros envolvidos no

125
Licenciada em Pedagogia pela PUCMINAS e Mestre em Estudos de Linguagens pelo
CEFETMG - krisnacosta35@gmail.com.
126
Licenciado em Matemática pela PUCMINAS. Mestre em Educação Tecnológica e
Doutorando em Estudos de Linguagens pelo CEFETMG – jteofilo.carvalho@gmail.com.
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PNLD. O Brasil possui o segundo maior PNLD do mundo, ficando atrás apenas da
China.
Além disso, o LDDM é ainda pouco pesquisado no Brasil, por ser um produto
novo e adotado só para professores, na versão digital. Com a denominação genérica de
livro tipo 1, formando um conjunto com livro impresso, versão digital ainda em DVD,
acrescido de Objetos Educacionais Digitais (OED), o LDMM é tratado aqui como
Material Didático, isto é, desenvolvido com o objetivo específico para o processo ensino-
aprendizagem, na concepção de Tomlinson (2006).
Adotando uma abordagem multidisciplinar, a pesquisa tem como teoria de base
a Semiótica Social (SS), tendo como principais referências Kress (2003; 2010), Van
Leeuwen (2005) e Kress e Van Leeuwen (2001; 2006) e seus seguidores no Brasil.
Esses autores, por sua vez, se fundamentam na Linguística Sistêmico-Funcional (LSF),
desenvolvida por Halliday, no final dos anos 1980, e reformulada por ele mesmo e
Mathiessen (2004).
Na SS, abordamos o LDDM sob três eixos: tecnologias do livro, material didático
e multiletramentos. Nesse aspecto, as linguagens constituem o ponto fulcral dessa
reflexão e a literatura constitui uma de suas possibilidades de conexão das linguagens
com a matemática.
Os modelos digitais ou multimídia são potencializados por novas semioses
como: gráficos, infográficos, simuladores, mapas, vídeos e animações. Linguagens aqui
se referem aos vários modos de expressão e de representação de um texto, isto é,
multimodalidade: linguístico, visual sonoro, gestual e espacial (NLG, 1996). Todo texto
é multimodal porque possui variações dentro de cada modo da linguagem, de acordo
com o contexto. Na literatura infantil, os contadores de história exploram com
competência o uso de sons, de cores, de gestos e a expressão corporal para produzir
efeitos de sentido e prender a atenção das crianças.
Ao contar uma história, os significados são construídos, através das narrativas,
ganham a atenção e levam o ouvinte a querer saber mais. A literatura infantil nos remete
à dimensão lúdica, da fantasia, da brincadeira, do afeto, um mundo do qual o adulto se
afasta. A performance do contador de histórias gera interesse e curiosidade. Essas duas
palavras são a mola propulsora da aprendizagem da matemática. Um traço quase
sempre comum em quem opta pela área de exatas é ter tido um professor de
matemática inspirador na infância, no qual se espelhou. O contrário, também, parece
verdadeiro. Muitos se frustraram, não por incompetência, mas por desmotivação. Um
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professor inspirador é, quase sempre, um contador de histórias: relaciona o que ensina
ao mundo do estudante.
Para situar o leitor dentro do tema, faremos uma breve noção de SS.

Semiótica Social
Ao adotarmos a SS como teoria, estamos implicitamente admitindo prática social
como premissa. O ensino de matemática só faz sentido se estiver conectado ao mundo
real, em que o professor articula o que ensina, de acordo com a realidade social do
estudante. As teorias pedagógicas críticas e progressistas, de defesa de uma educação
democrática, apregoam esses princípios, desde Dewey e Anísio Teixeira, há cerca de
cem anos, passando por Paulo Freire e outros, no final do século XX. Claro que
devemos considerar as finalidades da educação em cada momento histórico e as
prioridades sócio-político-econômicas de cada época.
Nos aspectos de linguagens, apesar de críticas honestas aos conteúdos e às
opções pedagógicas atuais, os livros didáticos de matemática impressos têm inovado
na forma, principalmente no seu projeto gráfico e no aspecto de comunicação visual.
Contribui para tal o desenvolvimento da indústria gráfica no Brasil, a partir da segunda
metade da do século XX (HALLEWEL, 2017). Os LDDM seguem a mesma linha no
aspecto gráfico.
O processo de produção de um livro impresso é complexo e envolve uma cadeia
de operações com duas etapas bem definidas: projeto editorial e impressão gráfica. No
livro didático, a primeira etapa vai desde a produção do material didático pelo(s)
autor(es), de acordo com a legislação brasileira (BRASIL, 1998; 2017), até a conclusão
do projeto editorial-gráfico. Já a impressão segue um processo industrial, disponível nas
grandes editoras e terceirizado nas pequenas. Posteriormente, há a distribuição e a
comercialização.
No livro didático, o autor produz textos, geralmente impressos, e presta
consultoria na fase de projeto gráfico. O editor passa a ter um peso maior sobre a obra
porque comanda uma equipe envolvendo vários profissionais: digitador, revisor,
designer gráfico, comunicador visual, fotógrafo, programador, ilustrador etc. No LDDM,
além de todas as etapas mencionadas anteriormente, acrescentam-se ainda os projetos
computacional e de audiovisual, em geral, realizados fora da editora. Um livro digital,
em vez ser uma mercadoria, torna-se um serviço, isto é, um aplicativo, incluindo o

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audiovisual e outros recursos multimídia, independentemente do suporte. São arquivos
eletrônicos.
Na escola, o professor de matemática tem a possibilidade de escolha, com seus
pares, da coleção a ser adotada no próximo período do PNLD. Nessa escolha pesam,
principalmente, os recursos de linguagem do livro, de acordo com o contexto cultural e
características regionais dos estudantes. Essa escolha torna-se principal alvo de crítica
num país continental como o Brasil, onde um livro didático é produzido genericamente
para uso em todo o país, sem considerar as diversidades regionais, culturais e as
minorias. Muitos estudantes não se veem representados no livro didático.
Enfim, o aspecto de linguagem constitui o centro dessa reflexão. Como o
professor não tem opção sobre o conteúdo a ser ensinado, ele define a estratégia de
ensino e os recursos de linguagens a serem utilizados. Faz as escolhas mais adequados
ao processo de ensinar e de aprender, articulando o conteúdo do livro e o mundo
estudante. Nisso, concordamos com Cruz (2016, p. 13) que afirma: “Aquele que está na
sala de aula, se não cria o conteúdo com o qual trabalha, cria um significado para esse
conteúdo e toda a ação de elaborar significado de algo pode revelar um estilo”.
Nesse sentido, o professor faz uma “cocriação” do conteúdo e, assim, ele torna-
se coautor, do que ensina. Vimos muito disso, na prática, durante a pandemia de
COVID19: vídeos, lives, apresentações, de forma síncrona ou assíncrona. De acordo
com Silva (2020), coautoria é um processo de interatividade, fenômeno da
comunicação, em que o produtor participa com o receptor da criação da obra.
Ora, representar o mundo e produzir significados são funções da linguagem.
Portanto, a Semiótica Social lida com a semiótica e com o social. Para Santos e Pimenta
(2014, p. 298), o foco da Semiótica Social é a função social da linguagem. Halliday e
Mathiessen (2004) consideram também que a linguagem é criada, se molda e se
estrutura no meio social, isto é, é criada pela sociedade e, por sua vez, dialeticamente,
contribui para criar a sociedade.
“O termo "semiótica social", portanto, pode ser pensado como indicando uma
ideologia ou instância intelectual, um ângulo conceitual sobre esse assunto. Kress
(2003) reforça ainda que SS, ao considerar os aspectos multimodais das linguagens,
deixa de ser uma teoria linguística e torna-se uma teoria semiótica do letramento, ou
dos multiletramentos (NLG, 1996), ao afirmar:

Aqui vou descrever alguns elementos dessa teoria do letramento; ela


não pode ser completa, mas pode fornecer algumas ferramentas úteis.
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Esta teoria, como eu disse, não pode ser uma teoria linguística. Os
modos que ocorrem, juntamente com os modos linguísticos de fala e
escrita, em páginas ou telas, são constituídos em princípios diferentes
dos da linguagem; sua materialidade é diferente; e o trabalho que as
culturas fizeram com eles também diferiu. A mudança teórica é de
linguística para semiótica - de uma teoria que explica apenas a
linguagem a uma teoria que pode explicar igualmente bem gestos, fala,
imagem, escrita, objetos 3D, cores, música e sem dúvida outras.
Dentro dessa teoria, os modos de linguagem - fala e escrita - também
terão que ser tratados semioticamente; agora eles fazem parte de todo
o cenário dos muitos modos disponíveis para representação - embora,
é claro, ainda sejam especiais porque têm um status altamente
valorizado na sociedade e, no caso da fala, certamente ainda carregam
a maior carga de comunicação127 (KRESS, 2003, p. 35-36 – tradução
e realces nossos).

Assim, para Santos e Pimenta (2014), a ênfase da linguagem está no processo


de significação, situando-o como parte da construção social, no uso que o indivíduo faz
das linguagens para resolver seus problemas no mundo. Nas atividades do cotidiano,
usamos a linguagem para tudo. Nossas expressões verbais, corporais, visuais, gestuais
e sonoras dizem muito sobre nós.
Na cultura da educação, tudo começa na Linguagem Materna que, de forma oral,
aprendemos na família e na comunidade onde vivemos.

Matemática e Língua Materna


Logo ao nascer, a criança tem necessidade de se relacionar com o mundo e
utiliza mecanismos que tornam possível a comunicação espontânea com as pessoas a
seu redor. É o que denominamos LM. Trata-se de um fenômeno universal e uma
observação “[...] que podemos fazer sobre a aquisição da linguagem é que a criança,
em qualquer ponto do mundo, adquire a língua falada na família e na comunidade em
que é criada, e o faz perfeitamente, sem instrução formal, ao participar das atividades
sociais que constituem a vida da própria comunidade” (GUY e ZILLES, 2006, p.40).

127
Here I will outline some elements of such a theory of literacy; it cannot be complete, but it may
provide some useful tools. This theory, as I said, cannot be a linguistic theory. The modes which
occur, together with the language-modes of speech and writing, on pages or screens, are
constituted on different principles to those of language; their materiality is different; and the work
that cultures have done with them has differed also. The theoretical change is from linguistics to
semiotics – from a theory that accounted for language alone to a theory that can account equally
well for gesture, speech, image, writing, 3D objects, colour, music and no doubt others. Within
that theory, the language-modes – speech and writing – will also have to be dealt with semiotically;
they are now a part of the whole landscape of the many modes available for representation –
though of course special still in that they have a highly valued status in society and, in the case
of speech, certainly still carry the major load of communication (KRESS, 2003, p. 35-36).
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A escola, entretanto, ensina a língua padrão, no nosso caso, o português. O foco
se restringe à língua escrita dos livros didáticos. Ali, a criança vai ali aprender as regras
e técnicas de representação da língua em que ela já se expressa, ao contrário das
primeiras noções de matemática.

Portanto, a professora não está ensinando a língua materna no mesmo


sentido em que se ensinam, por exemplo, os conteúdos escolares de
matemática. A criança chega na sala de aula com noções rudimentares
de matemática, de número etc., mas não sabe como fazer uma
multiplicação: trata-se, neste caso, de compreender as operações
envolvidas e de aprender uma técnica, um sistema de regras e de
representações, com a ajuda da instrução da professora; como
resultado, e dito de modo bem singelo, sai sendo capaz de fazer o que
não sabia fazer quando entrou. Mas com a língua é, em certa medida,
diferente. A língua é também um sistema (muito complexo) de regras
e representações, mas a criança entra na escola já sabendo – pelo
menos em boa parte, no que se refere à variedade de língua da sua
comunidade – essa complexidade fantástica; mais do que isso, a
criança se vale desse complexo de representações diariamente, para
se comunicar, para brincar e para muitas outras finalidades (GUY e
ZILLES, 2006, p.40 – realces das autoras).

A inexistência de uma oralidade endógena, antes da fase escolar, faz com que
a matemática se situe diante de uma bifurcação crucial: ou é ensinada como uma língua
escrita, sem qualquer apoio da oralidade, ou se apoia continuamente na oralidade da
LM, anúncio de uma impregnação essencial (MACHADO, 2011).
No primeiro caso, a criança chega à escola com noções rudimentares de
número, por exemplo, mas não sabe fazer as operações matemáticas. Aprende uma
técnica, um sistema de regras e de representações, com a ajuda do professor. Tudo é
muito semelhante à aprendizagem da linguagem escrita, embora as condições sejam
outras. Isso se dá, em simultaneidade à língua escrita, mesmo se a criança se encontrar
em nível diferente de aprendizagem em matemática. É como aprender uma segunda
língua.
As dificuldades seriam naturais, até mesmo com a LM, que não dispensa o
suporte da oralidade (MACHADO, 2011, p. 14). A partir da mediação da LM, a hipótese
básica é que essa devia participar ativamente dos processos de ensino da Matemática,
não apenas tornando possível a leitura dos enunciados, mas sobretudo como fonte
alimentadora na construção de conceitos, na apreensão das estruturas lógicas da
argumentação, na elaboração da própria linguagem matemática (ibid., p.15).

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Desse modo, a linguagem constitui o centro das atenções nas duas áreas e
mesmo depois de aprender a ler e a escrever, a linguagem oral permeia todo o processo
comunicacional da vida escolar e social do estudante. Em síntese,

“[...] tanto a Matemática quanto a Língua Materna constituem sistemas


de representação, construídos a partir da realidade e a partir dos quais
se constrói o significado dos objetos, das ações, das relações. Sem
eles, não nos construiríamos a nós mesmos enquanto seres humanos”
(MACHADO, 2011, p. 91).

Desse modo, concordando com esse autor, “o verdadeiro significado da


matemática e das funções que deve desempenhar nos currículos escolares deve ser
baseado na mesma fonte onde se encontram respostas às questões homólogas
relativas ao ensino da Língua Materna” (ibid., 2011, p.93). A matemática transcende, no
entanto, a confusão das línguas e das nacionalidades, por ter uma linguagem e
simbologia quase unificada em todas as culturas. Essa característica faz da linguagem
matemática forma singular e, ao mesmo tempo, universal de expressão de práticas
sociais e aplicações científicas (idem).
A linguagem binária da matemática, por exemplo, é a base da linguagem
computacional. A função dos aplicativos é transferir as atividades humanas, os
processos, os eventos e ações para a máquina através de algoritmos. Por trás de cada
algoritmo, de cada comando de programação está a linguagem matemática.
Em nossa sociedade, segundo Fayol (2012), a matemática se tornou
intensamente valorizada: nas atividades profissionais; no ensino médio, para a maioria
das profissões; na sociedade dita de conhecimento, a matemática ocupa posição
significativa na cultura científica; por fim, na escola ocupa um duplo papel como
disciplina e ferramenta de ponta, ambas contribuindo para (super)avaliar os êxitos e
dramatizar fracassos do estudante (FAYOL, 2012, p. 7-8).
Portanto, a LM ajuda a compreender o conceito do LDDM, considerando ainda
os aspectos - socioculturais, pedagógicos e até políticos - que determinam a inserção
desse material didático na sala de aula. Como forma de expressão, afirma Fayol (2012),
enquanto as outras linguagens utilizam dois códigos, o verbal e o simbólico, a
matemática utiliza três: um código analógico, um simbólico e um verbal
simultaneamente.
Os códigos analógicos compartilham certo número de propriedades perceptíveis
com o que representam. Na antiguidade, sementes ou pedrinhas num pote podiam
representar o número de animais enviados ao comprador. Esse quebrava o pote e
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comparava a quantidade recebida. Os dedos (sistema decimal) e os ábaco, em certas
culturas, são também códigos analógicos. Assim podemos fazer acréscimos e
decréscimos às formas de representações correspondentes à adição e à subtração
(FAYOL, 2012, p.23-27).
Os códigos simbólicos são arbitrários, isto é, os significantes não têm
semelhança com aquilo a que remetem, o significado. Em matemática, os códigos se
dividem em verbal e numérico. O algarismo 3 (código numérico) não tem relação alguma
com o cardinal três (código verbal), a não ser o terceiro elemento da sequência verbal
dos números. “A linguagem codifica a numerosidade de uma maneira convencional, não
transparente: os símbolos numéricos assinalam a cardinalidade pelo lugar que eles
ocupam na cadeia verbal (um, dois, três, quatro, cinco, …)” (FAYOL, 2012, p. 28).
Por isso, aprender matemática é o mesmo que aprender uma segunda língua. E
as crianças, em geral, não chegam à escola com a mesma desenvoltura em matemática
pela falta de prática social, como na oralidade da LM. Aprendem técnicas de resolução
de problemas e isso computadores fazem melhor.
A linguagem matemática toma ainda emprestado o termo ‘numeramento’
(FAYOL, 2012; CEALE, 2020), em analogia a letramento das demais linguagens. “A
leitura é parte integrante do processo de alfabetização e de letramento na escola; o
(des)prazer da leitura nessa fase pode determinar os hábitos e desenvolver o gosto ou
(repulsa) por ela” (COSTA e CARVALHO, 2019, p.137). É com a literatura, como fruição,
que defendemos uma possível conexão para o ensino a aprendizagem da matemática.
É a literatura que encanta e proporciona prazer na educação infantil.

Matemática e literatura
Aprendemos matemática com mais facilidade, se gostamos de ler e a
relacionamos ao mundo real. No entanto, a relação do estudante com a matemática
produz reações surpreendentes: “A matemática aborrece alguns alunos, a outros seduz”
(FAYOL, 2012, p.7), a leitura também produz reações diversas. Em geral, essa relação
é construída nos primeiros anos da vida escolar, na fase de alfabetização. Quem produz
o leitor?

A ponte entre a oralidade e a escrita é feita pela professora


alfabetizadora (que pode ser o professor), semeadora do desejo e, na
maioria das vezes, a responsável pelo parto do leitor. É ela que lhe
mostra a chave para a decodificação do mundo da escrita, ensinado a
relação entre o som e a palavra. Semear o desejo pela leitura, ajudar
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no parto, nutrir e ver o crescimento do leitor: missão dessa grande
mestra (PINHEIRO, 2020).

A leitura e a escrita são fatores de “empoderamento” do sujeito na sociedade.


“Ler e escrever, quando tornados hábitos, faz o indivíduo pensar e se posicionar
politicamente como cidadão, transformando sua visão de mundo. Portanto, negar essa
possibilidade a alguém é também um ato de violência” (COSTA e CARVALHO, 2019, p.
137) e explica, em parte, as opções de muitos governantes.
De acordo com Lajolo (2001), a palavra canção significava também poesia, voz,
manifestada nas composições medievais, textos orais cantados, canções de amor,
posteriormente, incorporados à literatura. Já para Drummond, literatura é assumir
posições a partir e em nome de uma tradição cultural que vem se construindo há séculos
(LAJOLO, 2001, p.11). Portanto, literatura exige respostas que retomem e atualizem
tudo o que até hoje já foi escrito sobre o assunto. São perguntas permanentes e
respostas provisórias (idem - grifo da autora).
No entanto, existe pouca publicação fazendo a ponte entre literatura e
matemática. Para exemplificar, selecionamos dois autores com propostas diferentes,
ligando literatura e matemática. O primeiro é bem conhecido poema de Millor
Fernandes, denominado Poesia Matemática: “Às folhas tantas do livro matemático um
Quociente apaixonou-se um dia doidamente por uma Incógnita. [...]128”, em que o autor
personaliza os termos matemáticos, num jogo bem humorado de expressões
matemáticas.
Um segundo autor é Malba Tahan, pseudônimo do professor Júlio César de
Mello e Souza, aluno do Colégio Militar e do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Formou-
se engenheiro e tornou-se professor dessa última instituição. Pesquisou a cultura árabe
que tanto contribuiu para o desenvolvimento da matemática. Desenvolveu vasta obra
literária, mostrando como trabalhar a matemática de forma contextualizada e
interdisciplinar. Realça em suas narrativas a matemática como parte de nossa vida,
através de intrigantes problemas de aritmética e de raciocínio lógico. Seus personagens
mostram tolerância religiosa, amor à arte e diversidade cultural.
A sua linguagem é cativante, tendo o esmero de explicar cada palavra ou
expressão árabe em notas de rodapé. O aspecto lúdico, em forma de contos, permeia
sua obra. O livro “O homem que calculava” (TAHAN, 2018), lançado em 1938, tornou-

128
Disponível em: https://www.pensador.com/busca.php?q=poemas+de+Millor+Ferandndes.
Acesso em 19/08/2020.
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se um clássico. Está ainda indicado para PNLD 2020 para o II ciclo do Ensino
Fundamental (BNCC, 2017). A proposta do manual do professor desse livro na BNCC é
trabalhar a interdisciplinarmente nas áreas de matemática, educação física, história,
música e geografia.
A literatura, tendo como tema a matemática, tem ainda muito espaço para
crescer e encantar os leitores. O escritor do século XXI, talvez, seja um youtuber que
produz vídeos, planilhas, simuladores e infográficos na rede de Internet. Existem textos
multimodais para todos os gostos e necessidades, bons e ruins.
Contudo, dá para denominar isso literatura? A autor matemático é ainda muito
focado na técnica e no raciocínio lógico. Onde começa a arte que causa fruição e
encantamento para engajar o leitor? É preciso desmitificar a matemática tornando-a
parte do cotidiano do estudante e aqui está o desafio.

Para finalizar
A conexão entre matemática e literatura dever ser estabelecida da educação
infantil às séries finais do ensino médio. Pois, nessa fase, se desenvolvem não somente
a oralidade e a escrita como também o imaginário, a análise e a argumentação. O
trabalho interdisciplinar entre matemática e literatura pode possibilitar o
desenvolvimento de novas habilidades auxiliando na leitura, interpretação de dados,
resolução de problemas e, também, na organização do pensamento lógico matemático.
A BNCC ressalta a importância da literatura na formação de leitores com
abertura ao diálogo para outras áreas do conhecimento. Sendo assim, é fundamental
que haja diálogo entre as áreas de conhecimento para uma maior integração da
literatura com a matemática, pois muitas vezes o estudante apresenta resistência à
aprendizagem de matemática, devido à forma tradicional em que são propostos os
temas estudados. A literatura pode revolucionar o ensino de matemática, se se tornar
parte integrante das práticas sociais do estudante: ler e escrever são duas faces da
mesma moeda. Escreve bem quem lê e interpreta bem. Porém, ler hoje vai além da
linguagem verbal, como mostrado anteriormente nesse texto. Os estudantes hoje não
leem menos do que antes, leem diferente.
Por fim, nas competências gerais, a BNCC para o ensino fundamental, existem
tem dois pontos que queremos ressaltar aqui:

4. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como


Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como
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conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para
se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e
sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao
entendimento mútuo.

5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e


comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas
diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar,
acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver
problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva
(BRASIL, 2017, p.9).

Ao mostrarmos a matemática como linguagem, ratificamos o item 4. A expressão


e partilha de informações, experiências, ideias e sentimentos tornam-se parte da vida
do sujeito, se aprendido na infância. É nela que se transmitem os valores e atitudes que
determinam a vida do sujeito, para o bem ou para o mal. Nisso tem peso a participação
da família como a primeira escola, com todos os arranjos que uma família tem,
atualmente.
Tendo como teoria-base a Semiótica Social, os resultados apontam para um
diálogo interdisciplinar entre LM, matemática e literatura como um dos possíveis
caminhos para o impasse. Assim, a literatura poderia ser um modo desafiante e lúdico
para crianças pensarem sobre noções matemáticas e, ainda, ser complemento ao
material didático das aulas.
Outro ponto importante para nós é o item 5 das competências gerais da BNCC.
As tecnologias digitais de informação e de comunicação (TDIC) já possibilitam práticas
criativas e significativas em linguagens, contudo, demandam dos professores novos
letramentos em recursos multissemióticos, com os quais a maioria, sequer, teve contato
na formação acadêmica. Há cerca de trinta anos, essa questão vem sendo discutida no
Brasil, e tem sido objeto de muitas pesquisas acadêmicas.
Apesar disso, a pandemia mundial de COVID19 mostrou o esforço e a
determinação dos professores brasileiros. O trabalho criativo desses profissionais
salvou a instituição escolar e mudou a forma de eles verem as potencialidades das
TDIC. Embora o ensino remoto, na maioria das vezes, reproduza a aula tradicional,
muita coisa já mudou e a escola não será a mesma daqui para frente. O debate é intenso
e produtivo.
Interatividade é um termo que melhor traduz a atividade docente, na atualidade.
É um conceito da teoria da comunicação (SILVA, 2020). O professor articula autoria,
compartilhamento, em coautoria com o estudante. Portanto, é preciso emissor e
receptor para ocorrer interatividade. Nesse caso, o professor fala de igual para igual,
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cuida do desenho didático e articula tudo isso na arquitetura da tela. O professor torna-
se gestor do conhecimento, produzido com os estudantes (idem).
Assim, a literatura poderia ser um modo desafiante e lúdico para crianças
pensarem sobre noções matemáticas (SMOLE et al., 1996) e, ainda, ser complemento
ao material didático das aulas (BRASIL, 2017). A SS traz uma contribuição importante
ao oferecer uma base teórica para essa pesquisa cujo recorte mostra a articulação entre
LM, literatura e matemática, para uma aprendizagem significativa e profunda, na forma
como discutida nesse texto.

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Fundamental. Brasília: MEC /SEF, 1998, 148 p.
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SARAMAGO EM CENA: DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA,
CINEMA E EDUCAÇÃO, EM A FLOR MÁIS GRANDE DO
MUNDO129

Adriana Vieira de Souza, Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes

Eixo Temático: Grupo Temático 6 : Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Considerações iniciais
No campo educacional, os filmes são, habitualmente, utilizados como recursos
didáticos e pedagógicos em sala de aula, em todos os níveis de ensino. Em diferentes
práticas, sejam elas tradicionais ou contemporâneas, é recorrente a projeção de filmes
de ficção e não-ficção, como forma de potencializar o processo de ensino e
aprendizagem (CHRISTOFOLETTI, 2009, p. 603).
No que diz respeito à literatura, entendemos que, embora haja uma abundante
discussão sobre sua conexão com a educação, nas últimas décadas, no entanto, ela,
ainda, ocupa um lugar incerto nas práticas escolares e, consequentemente, secundário,
na formação das crianças, dos adolescentes e dos jovens (DALVI; REZENDE; JOVER-
FALEIROS, 2013).
É preciso refletir que, com o avanço dos recursos tecnológicos, além das práticas
pedagógicas inadequadas, o ensino da literatura nas escolas enfrenta, também, a
proliferação da cultura de massa (DESSBESELL; FRUET, 2012, p. 46). Portanto, a
facilidade de acesso, tanto ao cinema quanto à literatura, devido ao desenvolvimento
tecnológico, não garante, mesmo nos espaços de educação formal, o desenvolvimento
da sensibilidade estética, uma vez que o objetivo é que sirvam, apenas, como um apoio
pedagógico às diversas disciplinas que compõem o currículo escolar.

129
Texto vinculado à minha pesquisa de doutorado em andamento, que tem como título “O
potencial crítico-formativo da literatura: diálogos com a educação e o cinema a partir de
Saramago e Adorno”. Orientador: Prof. Dr. Robson Loureiro. Programa de Pós-Graduação em
Educação. Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes.
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Embora pertencente à esfera educacional, o presente artigo empreende
conexões por meio da tríade literatura-cinema-educação que se processam de forma
dialética. Tanto a literatura como o cinema são copartícipes do processo de constituição
das subjetividades no contexto (urbano) contemporâneo. A literatura, assim como o
cinema, são atividades que se desenvolvem tanto fora quanto dentro do espaço escolar.
A conexão entre cinema e educação, pretendida nesta pesquisa, extrapola o
âmbito do contexto escolar, pois entendemos que o processo educacional ocorre na
relações e interações sociais e não somente dentro de uma instituição formal de ensino,
visto que consideramos:

a educação é uma prática social ampla que não se restringe às


instituições formais de ensino, mas está presente em várias esferas
sociais, é possível vislumbrar que a produção fílmica se insere no
processo de formação da individualidade nas sociedades
contemporâneas (LOUREIRO, 2006, p. 10).

Ao refletir sobre o encontro entre a literatura de Saramago e o pensamento de


Theodor Adorno, renomado filósofo alemão, o faremos por meio de uma conexão com
o cinema. No entanto, não serão, aqui, discutidas e/ou analisadas a eficiência ou
eficácia das práticas pedagógicas destinadas ao trabalho com os filmes em salas de
aula das diferentes etapas da educação básica. A escolha pelo cinema se deu pelo fato
de que “Mais do que um mero suporte técnico-instrumental para se atingir objetivos
pedagógicos, os filmes são uma fonte de formação humana, pois estão repletos de
crenças, valores, comportamentos éticos e estéticos constitutivos da vida social”
(LOUREIRO, 2006, p. 20). Sendo assim, investigaremos o potencial crítico e formativo
da animação A flor máis grande do mundo, adaptada do conto homônimo de José
Saramago, única obra do autor destinada ao público infanto-junvenil.
A pesquisa é de cunho qualitativo de revisão de literatura e interpretação
hermenêutica da referida adaptação fílmica em conexão com a literatura de Saramago,
por meio da discussão das categorias adornianas definidas a priori “emancipação” e
“formação cultural”. A obra Educação e Emancipação, de Theodor Adorno embasará
as discussões e o estudo das categorias que servirão de base de análise do corpus da
pesquisa.
Pretendemos, portanto, responder ao seguinte questionamento: existe um
conteúdo de verdade na animação A flor máis grande do mundo que promova uma
educação dos sentidos, tal como proposto pela Teoria Crítica de Theodor Adorno?

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Cinema, literatura e filosofia
A ideia de um cinema formador, nessa pesquisa, é pensada, a princípio, por meio
da forte e libertadora literatura de José Saramago, não para fazer um estudo
comparativo, mas para reverenciar sua obra literária, única destinada ao público infanto-
juvenil, e o autor que inspirou a obra fílmica sobre a qual discorreremos e analisaremos.
José Saramago, o primeiro escritor de língua português a ganhar o Prêmio Nobel
de Literatura de 1998, “Nunca frequentou a universidade. A vida o forjou.” (ARIAS, p.
11, 2004). Seu engajamento político deu-se por meio de sua paixão pela leitura (em
bibliotecas públicas, por não possuir recursos para adquirir seus próprios livros). Dessa
forma, “Desde muito jovem, esteve ligado ao partido Comunista, no qual militaria
sempre” (ARIAS, p. 11, 2004).
Juan Arias (2004) destaca, ainda, o inconformismo de Saramago, que “não
aceita o lugar-comum” e encara sua produção literária como um trabalho “às vezes duro,
dramático”, e entende que um escritor deva se comprometer não apenas com seu texto,
mas, principalmente, com a sociedade em que vive:

Com essa postura e uma imaginação viva e flexível, criou um universo


novelístico original, essencial para mergulharmos nas frustações do
nosso tempo, um tempo louco que, segundo o escritor português, não
se sabe para que vive nem por que morre (ARIAS, p. 13, 2004).

Saramago afirma que tenta construir personagens que sejam mais que nós, que
sejam mais que ele mesmo, em situações que, provavelmente, nos colocariam no limite,
ou seja, seus personagens são a representação de uma sociedade evoluída e/ou
emancipada. É exatamente esse processo de evolução da humanidade, que fascina e
provoca em seus leitores a reflexão sobre valores e sensibilidade, que nos faz acreditar
que os filmes inspirados em suas obras, embora sistemas semióticos distintos, sejam,
também, ricos objetos de análise e de aprendizagem, visto que trazem em sua gênese
o engajamento político e o comprometimento com a humanidade, modelos ideológicos
da literatura saramaguiana.
A flor mais grande do mundo (2006) é um filme de animação dirigido pelo
uruguaio Juan Pablo Etcheverry e inspirado na obra homônima de José Saramago, A
maior flor do mundo (2001). Com narração do próprio Saramago, obteve o Prêmio
Amigos da Música de Badalona, na categoria “melhor música original”. Além disso,
recebeu o prêmio de melhor curta-metragem de animação, nos Goya, em 2008, e

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participou com êxito dos festivais, tais como: Prêmios Mestre Mateo, Tokyo Global
Environmental Film Festival, Anchorage International Film Festival de Alaska e no
Festival Internacional de Cine Ecológico e Natureza de Canarias.
O curta conta a história de um menino, que saiu para viver uma simples aventura,
nos arredores do lugar onde morava, mas se transformou num pequeno herói, a
esperança e a salvação de uma florzinha murcha, que se encontrava em um lugar de
difícil acesso.
Infinitas são as nuances a serem investigadas na narrativa fílmica, inspirada na
obra de Saramago, a partir da teoria crítica de Adorno, assim como múltiplos são os
conceitos de educação. Optou-se, portanto, por refletir a concepção de educação como
sinônimo de formação cultural, numa abordagem estritamente filosófica.
Representante da Escola de Frankfurt, Adorno acredita numa educação que
tenha como objetivo primordial a emancipação humana e, não apenas a progressão do
conhecimento. Pensamento este, totalmente contrário à teoria tradicional, defensora da
reificação da existência humana, por meio da fragmentação entre sujeito e objeto.
Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (1903-1969), filósofo, sociólogo, crítico
musical alemão leitor assíduo de Immanuel Kant e principal voz desta pesquisa, nos
presenteia com articulações essenciais, no âmbito filosófico e social, para o
entendimento dos sistemas de formação e/ou semiformação do homem e da sociedade.
Assim, entendemos que:

Para Adorno, é no processo de reprodução material da sociedade que


é possível captar a dialética da “formação” e da “semiformação”. Na
sociedade contemporânea, a significação germânica da Bildung,
especialmente na acepção da “liberdade”, dos “valores” que
orientavam a razão prática, foi reduzida a discursos ideológicos,
desvinculados da ação social. Com isso, a promessa da emancipação
e da autonomia, que era a principal razão do ideal iluminista moderno,
foi solapada e substituída pela adaptação e submissão disciplinada à
lógica da dominação. Assim, a dimensão crítica da cultura, que deveria
garantir a emancipação, cede lugar à semiformação, em que
predomina a racionalidade instrumental voltada para a adaptação e o
conformismo à situação vigente (GOMES, 2010, p. 286).

As discussões acerca do conceito e das características da categoria


“emancipação” e “formação” são constantes em pesquisas e discursos sobre a
educação. Objetivamos, entretanto, o desvelamento da importância da emancipação,
para os processos e os tecidos educacionais, por meio de uma abordagem filosófica.

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A justificativa para a escolha da abordagem pelo viés filosófico manifesta-se pelo
desejo de se lançar um olhar crítico sobre a educação, que ultrapasse os muros das
instituições educacionais, ressignificando, assim, o sentido de uma educação
emancipatória.

Esclarecimento, emancipação e formação cultural


O anseio pela formação da emancipação e pelo desenvolvimento do
esclarecimento tem suas origens no Iluminismo de Kant130. Para o filósofo alemão, o
próprio homem é o culpado pelo seu estado de menoridade, que nada mais é do que a
falta de atitude de indivíduos, da incapacidade de não se valerem do seu próprio
entendimento sem o amparo de alguém.
Entretanto, Kant (1985) afirma ser muito cômodo aos homens permanecer toda
uma vida na menoridade, sob a tutela de alguém, ao passo que a maioridade é muito
mais custosa e perigosa. Pensar a partir de suas próprias reflexões e apoiar-se em seus
desejos, particulares e individuais, é por demasiado complicado, uma vez que as
amarras da menoridade estão embutidas nas entranhas da existência humana.
A passagem para a maioridade, segundo o posicionamento de Kant, está no
desenvolvimento individual do autodomínio e da liberdade. Sapere aude! Ouse saber! É
um convite à busca do conhecimento, à saída do estado de acomodação, através da
ousadia e da “coragem de fazer uso de teu próprio entendimento” (KANT, 1985, p. 100).
É exatamente nesse movimento pela busca do conhecimento que se entende a
educação como instrumento de emancipação.
Nesse movimento de romper com o pensamento subordinado sobre o princípio
da emancipação, Adorno nos alerta para o seguinte fenômeno:

[...] justamente quando é grande a ânsia de transformar, a repressão


se torna muito fácil; que as tentativas de transformar efetivamente o
nosso mundo em um aspecto específico qualquer imediatamente são
submetidas à potência avassaladora do existente e parecem
condenadas à impotência. Aquele que quer transformar provavelmente
só poderá fazê-lo na medida em que converter esta impotência, ela
mesma, juntamente com a sua própria impotência, em um momento
daquilo que ele pensa e talvez também daquilo que ele faz (ADORNO,
1995, p. 185).

130
“Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?” é um ensaio brevíssimo, do filósofo Immanuel
Kant, publicado no jornal germânico Berlinische Monatschrift, em dezembro de 1784.
“Esclarecimento é a saída dos homens de sua auto-inculpável menoridade” (ADORNO, 1995, p.
169)
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Para além da sociedade com seus princípios alienantes, que detém o processo
de passagem do homem para a maioridade, Adorno considera que “qualquer tentativa
séria de conduzir a sociedade à emancipação” (ADORNO, 1995, p. 185) encontra
resistências significativas, fazendo-nos acreditar que aquilo que estamos almejando
seja utopia (ADORNO, 1995, p. 185).
Adorno, portanto, critica o pensamento contraditório iluminista, dividido entre
duas ordens simultâneas: razão e dominação. A ordem da racionalidade iluminista
clama por uma sociedade emancipada e, ao mesmo tempo, compartilha seus ideais
com uma ordem inversa, produzindo paradigmas que impossibilitam o seu próprio
processo de emancipação.
Nessa perspectiva, o pensamento de Adorno sobre o âmbito educativo perpassa
pelo entendimento de como a educação perpetua o pensamento iluminista, uma vez que
prega o desenvolvimento da razão, mas, contraditoriamente, em suas práticas, ignora o
desenvolvimento da criticidade. Sendo assim, “a educação não é necessariamente um
fator de emancipação” e, permanentemente, carece de crítica (ADORNO, 1995, p.11-
12).
Retomando a Kant, entendemos que há uma associação já previsível entre
esclarecimento (Aufklärung) e formação (Bildung). O esclarecimento, em Kant,
corrobora com a ideia de que os sujeitos, ao desenvolverem seus processos formativos,
se encaminham para a realização da maioridade, almejando a autonomia que os deixem
livres das amarras da dependência de outrem.
Para Adorno (2010), a formação seria a liberdade e a consciência própria de
cada indivíduo socialmente atuante, que conserva o estado de sublimação de seus
impulsos, diante da efetivação dos princípios determinados nos tratados sociais. A
formação seria compreendida como requisito implícito para uma sociedade autônoma,
que acredita que “quanto mais lúcido o singular, mais lúcido o todo” (ADORNO, 2010,
p. 13).

Aspectos formativos e emancipatórios do menino-personagem, em A flor máis


grande do mundo
A flor mais grande do mundo (2006) conta a história de um menino, como
qualquer outro de sua idade, que resolveu aventurar-se fora de seu quintal. No caminho,
encontrou uma flor seca, compadeceu-se dela e não mediu esforços para ajudá-la.
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Observando o enredo linear, dessa emocionante narrativa, logo nos deparamos com um
olhar em direção a questões de ordem ambiental, porém o que Saramago e Etcheverry
trazem em suas histórias é algo infinitamente mais profundo.
Na perspectiva da educação como prática social, entendemos as obras, literária
e fílmica, como palco de produção de sentidos e de promoção de uma educação
formativa para o desenvolvimento dos processos de emancipação dos sujeitos, que
ocorre mesmo fora do ambiente escolar, nas salas dos cinemas e até mesmo nas
televisões, celulares, tablets ou computadores de nossas próprias residências, quando
deixamos de enxergar a literatura apenas como um pretexto para a aprendizagem dos
conteúdos de ensino e deixamos que ela atue em nossa sensibilidade.
Na adaptação escrita e dirigida por Etcheverry, o menino, o qual não sabemos
nem mesmo o nome, vive em um ambiente em processo de urbanização: inúmeras
árvores derrubadas para que se dê lugar às grandes construções. A ausência dos
nomes dos personagens e de localização de um espaço nos parece ser um indicativo
de que a narrativa busca a identificação imediata com seu espectador, ou seja, uma
história que poderia acontecer com qualquer menino, em qualquer lugar do mundo. Ao
identificar-se com o personagem, o leitor passa por um processo de reflexão de suas
próprias ações, o que contribui para a produção de sentidos e para a interação dialógica
entre o texto e os sujeitos.
A promoção de uma complexa construção de sentidos múltiplos e não
padronizados, como encontramos nos mais diferentes filmes de animação Disney, faz
dessa animação um espaço educacional que leva o espectador a experienciar sua
autonomia, frente à obra.
O menino-personagem, a princípio, parece alheio ao cenário de devastação da
natureza, talvez por inocência, talvez por entender a inevitável onda do “progresso”. No
entanto, em sua essência peculiar de criança, conserva em si a curiosidade e o interesse
pela natureza, fato constatado pela relação que desenvolve com o personagem
besouro, no decorrer da animação.

Figura 1

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Fonte: A flor máis grande do mundo (2006)

Sim, ele é só um menino! Mas, o que isso significa? Significa que, na infância,
não é possível fazer uso de seu próprio entendimento sem a direção de outro indivíduo?
Seria, então, a infância o período no qual os sujeitos se encontram em estado de
menoridade tal como discutido por Kant?
Para Kant (1985, p. 100), “A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direção de outro indivíduo”. Assim, ao analisar o processo de
emancipação e formação do personagem-menino, tomamos como ponto de partida o
estado de inocência e de certa indiferença percebidos, no início da narrativa, como
estágio de menoridade, quando deixa que o pai o conduza no carro, e, em seguida, se
distrai com o besouro, e nem percebe, quando o pai arranca a última árvore que se vê
nos arredores.

Figura 2

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Fonte: A flor máis grande do mundo (2006)

O estágio de transição para a maioridade do menino-personagem é percebido


na cena em que besouro, levado para casa numa caixa de papelão, bate asas e voa. O
voo do besouro, significa para o menino, seu momento de emancipação. Ele lança um
olhar aos pais e rompe com os muros que o cercam, para viver sua própria aventura.
Para Kant (1985), é fácil ser administrado por tutores “É tão cômodo ser menor” (KANT,
1985, p. 100). No entanto, o menino consegue, pela transformação do seu espírito,
inicialmente, indiferente e inocente, iniciar seu processo de esclarecimento, de
libertação. Embora um pouco indeciso, o que se percebe no olhar que lança aos pais,
ele consegue “emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura” (KANT,
1985, p.102).

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Figura 3

Fonte: A flor máis grande do mundo (2006)

A partir daí, o que se percebe é a vivência de uma experiência íntima com a


natureza, de educação dos sentidos: cheiros, cores, texturas. Pressupõe, assim, que o
pensar está, literalmente, associado “à capacidade de fazer experiências” (ADORNO,
1995, p. 151).

Figura 4

Fonte: A flor máis grande do mundo (2006)

O menino, livre dos limites, que cerceavam o seu contato direto com a natureza,
encontra uma flor sedenta, quase morta e não mede esforços para ajudá-la, visto que
por perto nem água existia. Dessa forma, o personagem faz uso de seu entendimento

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e de sua liberdade em prol de um objetivo maior: salvar a flor, o símbolo de sua
maioridade, e de uma educação para a emancipação, vinculada ao conceito de
racionalidade ou de consciência, em uma acepção mais complexa tal como nos propõe
Adorno.

Figura 5

Fonte: A flor máis grande do mundo (2006)

A luta pela flor confere ao menino a qualidade de sujeito socialmente engajado,


comprometido com a humanidade, características próprias do posicionamento político e
social da literatura saramaguiana. Sem que estivesse sob a tutela de alguém, o menino
faz uso de sua coragem e de seu próprio esclarecimento para servir-se de si mesmo,
de suas próprias decisões e vivências, que contribuem para o desenvolvimento de seu
processo formativo. Nesse sentido, entendemos que “a educação para a experiência é
idêntica à educação para a emancipação” (ADORNO, 1995, p. 151).

Figura 6

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Fonte: A flor máis grande do mundo (2006)

Para Kant, a preguiça e a covardia são as responsáveis pela permanência de


grande parte da humanidade em seu estado menor, durante toda a vida. A distância
para se buscar a água e a insignificância de uma flor, poderiam ser elementos
impeditivos para que o menino alcançasse, então, sua maioridade. No entanto, ele não
sucumbiu ao padrão, desvencilhando-se das amarras da conveniência da menoridade.
Dessa forma, há um convite à reflexão sobre o conceito de esclarecimento, a partir da
ressignificação do sentido de emancipação, na dimensão educacional.
Para Adorno, “a educação tem sentido unicamente como educação dirigida a
uma autorreflexão crítica” (ADORNO, 1995, p. 121). É, portanto, a defesa de uma
educação voltada para o desenvolvimento da razão, da autonomia, da objetividade e do
direito à construção da emancipação humana, para “que Auschwitz não se repita”
(ADORNO, 1995, p. 119).
Ao final do curta, vislumbramos um olhar para o futuro e a esperança de que,
quem sabe, a atitude do menino, que agora é visto como herói, tenha despertado
consciências e assim, sua autonomia supere a visão individualista kantiana e a amplie
para toda a sociedade, como almeja Adorno.

Figura 7

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Fonte: A flor máis grande do mundo (2006)

Considerações Finais
As reflexões e análises acerca do diálogo entre literatura, cinema e educação, a
partir da adaptação da única obra infanto-juvenil de José Saramago associada aos
pressupostos da Teoria Crítica, na voz de Theodor Adorno, nos faz perceber o potencial
crítico e formativo do filme de animação A flor máis grande do mundo.
Primeiramente, é perceptível o convite que a obra faz aos espectadores para a
construção de diferentes sentidos, que levem em consideração a história, a cultura, as
vivências e experiências de cada um.
Além disso, o caminho que o enredo percorre na saga do “menino-herói” nos faz
perceber nitidamente a passagem do seu estado de menoridade para a maioridade,
indicando que ser criança não significa, necessariamente, ser “menor”, mas que é a
partir de uma educação como prática social, que se garante aos sujeitos o
desenvolvimento de sua emancipação e formação cultural.
Nesse sentido, o menino-personagem saiu de seu estado de indiferença e
realizou um feito grandioso, que vai ao encontro do conceito de educação crítica
proposto por Adorno: uma educação que desenvolva uma autonomia não apenas
individualista, como a que propõe Kant, mas que garanta, também a autonomia da
sociedade como um todo.
Assim, entendemos que, compreender teórico-metodologicamente o papel da
literatura e do cinema, dentro do processo educativo – não necessariamente escolar –
é um desafio crítico exigente; discutir essa compreensão, por sua vez, requer não
apenas o entendimento de conceitos apresentados, mas o entendimento de nosso
próprio tempo e de nossa própria natureza.

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Referências
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de Janeiro, 3ª edição, Editora: Paz e Terra, 1995.

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PUCCI, B.; ZUIN, A. A. S.; LASTÓRIA, L. A. C. N. (orgs.). Teoria Crítica e
Inconformismo: novas perspectivas de pesquisa. Campinas: Autores Associados,
2010.

ARIAS, Juan. José Saramago: O amor possível. Tradução de Rubia Prates Goldoni. Rio
de Janeiro: Manati, 2004.

CHRISTOFOLETTI, Rogério. Filmes na sala de aula: recurso didático, abordagem


pedagógica ou recreação?. Revista Educação, v. 34, n.3, p. 603-616, set./dez. 2009.
Disponível em: file:///C:/Users/user/Downloads/871-3066-1-PB.pdf. Acesso em: 30
agosto 2020.

DALVI, Maria Amélia; REZENDE, N. L. de; JOVER-FALEIROS, R. Apresentação. In:


DALVI, Maria Amélia; REZENDE, N. L. de; JOVER-FALEIROS, R. (Orgs.). Leitura de
literatura na escola. São Paulo: Parábola, 2013.

DESSBESELL, Daiane Luza; FRUET, Fabiane Sarmento Oliveira. O potencial do


hipertexto para o ensino-aprendizagem da leitura. Temporis (ação), v. 12, n. 1, p. 40 -
59, jan./dez. 2012. Disponível em: file:///C:/Users/usuario/Downloads/877-
Texto%20do%20artigo-3274-1-10-20121221.pdf. Acesso em 09 setembro 2020.

GOMES, Luiz Roberto. Teoria crítica e educação política em Theodor Adorno. Revista
HISTEDBR On-line, Campinas, n.39, p. 286-296, set.2010. Disponível
em:https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8639731/7298.
Acesso em: 11 setembro 2020.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta “O que é o esclarecimento?”. In: BUZZI,


Arcângelo R.; BOFF, Leonardo (Orgs). Immanuel Kant: textos seletos – Edição
bilíngue. Petrópolis: Vozes, 1985.
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LOUREIRO, Robson. Da teoria crítica de Adorno ao cinema crítico de Kluge:
educação, história e estética. 2006. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa
de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2006.

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RETORNO DE ULISSES: UMA ODISSEIA CONTEMPORÂNEA131

Fernanda Aparecida de Freitas, UENP, IC — Fundação Araucária


Vanderleia da Silva Oliveira, UENP

Eixo Temático: Grupo Temático 6: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas


linguagens

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em meio a um processo natural de globalização, o século XXI caracteriza um


novo fazer literário. As mudanças e revoluções da era tecnológica não poupam a
literatura, que acompanha transformações sociais de toda a ordem. Produz-se um novo
tipo de literatura: aquela que dialoga com a tecnologia e as multimídias, que acompanha
as mudanças da sociedade e que compreende um leitor híbrido em seu constante
contato com as diversas linguagens existentes no cenário contemporâneo. A literatura
infanto-juvenil participa dessa revolução. Uma geração tão conectada inspira a
produção de obras que abrangem múltiplas linguagens e faz uso dos mais diversos
recursos linguísticos. A complexidade do mundo contemporâneo interage com os
conhecimentos de um leitor antenado, que imerge diariamente em informações e busca
por desafios. Faz-se necessária, então, a produção literária que dialogue, não apenas
com a capacidade dos jovens leitores, mas também com seus problemas e conflitos
característicos da sociedade atual.
Nesse contexto, alguns autores se propõem a criar obras especialmente para
esse público. Essas obras, inseridas na instituição escolar, servem como uma forma de
desenvolvimento intelectual. A literatura em si oferece diversas possibilidades de
aprendizagem e sua importância está diretamente relacionada com a compreensão do

131
O texto compõe parte da pesquisa em nível de iniciação científica, em desenvolvimento sob
financiamento da Fundação Araucária, na UENP-CCP, intitulado “Letramento literário e
multiletramentos: abordagem prática em sala de aula”, sob orientação da Profa. Dra. Vanderleia
Oliveira.

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mundo, desempenhando, segundo Azevedo e Balça (2016), um papel crucial na partilha
de conhecimentos que nos fazem enxergar o mundo sob uma perspectiva diferente,
levando-nos à reflexão; especialmente a literatura infanto-juvenil, que “[...] familiariza os
seus leitores com o mundo, um espaço plural no qual se mostra a experiência humana,
o que significa ser humano e não humano.” (2016, p. 2).
Contribuindo, então, para disseminar esses conhecimentos, a renomada
escritora gaúcha Paula Mastroberti utiliza diferentes recursos de imersão em suas
obras, dialogando com o leitor através de uma linguagem multimodal. O uso dos
recursos visuais, a intertextualidade e o fluxo de consciência são algumas técnicas que
caracterizam a sua produção. É por meio desses recursos que se estabelece o equilíbrio
entre sua originalidade e seu desejo de engajar o público juvenil na leitura de clássicos
aclamados. De acordo com Beltramim (2018) sua produção é vista como desafiadora,
pois, recheada de elementos hipertextuais, intertextuais e multimodais, exigindo uma
reflexão maior do leitor.
Tais técnicas garantiram à escritora gaúcha reconhecimento por parte dos
críticos. Em 2006 recebeu o segundo lugar do “Prêmio Jabuti”, importante premiação
literária brasileira, por sua obra Heroísmo de Quixote. Além disso, recebeu outros
prêmios importantes como o “Troféu Açorianos de Literatura”, em 2011, por sua obra
Loucura de Hamlet. É reconhecida também como tradutora e ilustradora, recebendo o
Selo Altamente Recomendável da Fundação nacional do livro infantil e juvenil (FNLIJ),
na categoria tradução ou adaptação jovem. A autora é, ainda, graduada em Artes
Plásticas, mestre em Teoria da Literatura e doutora em Letras. Seu extenso currículo
reafirma sua importância frente à produção literária contemporânea. Em suas obras a
autora explora as diversas habilidades leitoras, no intuito de desenvolvê-las e criar uma
relação intrínseca entre leitor e obra. Além disso, recupera o enredo de obras canônicas,
que, consideradas complexas pelos jovens, assumem uma construção diferente, repleta
de conflitos contemporâneos. A partir da recriação desses clássicos a autora origina
uma de suas obras, cuja análise é o foco deste artigo: Retorno de Ulisses, que integra
uma coleção denominada “Reversões” na qual a escritora retoma famosos clássicos
como Dom Quixote, Fausto, Hamlet e A Odisseia, através de situações vivenciadas
pelo homem contemporâneo.
Este artigo intenciona, portanto, analisar a obra Retorno de Ulisses,1 sob a
perspectiva das multimodalidades empregadas pela autora, levando em conta os
aspectos estruturais, linguísticos e literários da obra, que reúne composições plásticas
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em sua formatação. A análise de conteúdo será feita por meio da revisão bibliográfica,
partindo de estudiosos como Azevedo e Balça (2016), Beltramim (2018), Candido (1972,
1998), Franco Junior (2009), Hasamaki e Nascimento (2018), Jouve (2013), Rouxel
(2013) e Rosenfeld (1975).

ODISSEIA REINVENTADA
A obra de Paula Mastroberti foi publicada pela editora Rocco no ano de 2007.
Trata-se do terceiro livro da série Reversões. Nessa releitura, a autora revive o clássico
Odisseia, de Homero, trazendo o conflito familiar como pano de fundo para desenvolver
personagens já conhecidos: Ulisses, Penélope e Telêmaco, que, na obra de Mastroberti
é chamado Estéfano. Retorno de Ulisses é um romance juvenil que conta com um
admirável trabalho gráfico feito por meio de “[...] desenhos em grafite sobre papel,
fotografias, imagens e efeitos digitais.”, conforme registros da editora nas informações
paratextuais. Esses elementos ajudam a compor a obra, dando-nos uma perspectiva da
psicologia dos personagens e de sua aparência, ilustrando acontecimentos do próprio
enredo. Também compõe os paratextos o item “Notas da Autora” em que ela informa ao
leitor as fontes utilizadas nos intertextos, assim como os agradecimentos pelas imagens
que formam as colagens.
Na edição selecionada para análise, deparamo-nos, quase de imediato, com
uma interação entre autor-leitor:

Olá, leitor. Abriu a capa? Já leu a contracapa? E é daqueles que lê as


orelhas também — parabéns. Ainda temos umas epigrafes mais
adiante. Não, não fuja — estamos falando de uma história tão antiga
quanto atual. Acho que você já ouviu falar dela, ou pelo menos de um
pedacinho. (MASTROBERTI, 2007, orelha do livro).

As primeiras páginas do romance são ilustradas por ultrassonografias, uma


citação de Homero e uma de James Joyce, ambas escritas à mão. Em uma
ultrassonografia observamos um círculo e uma flecha, ao que segue a indicação do sexo
do bebê. E é a partir daí que a obra se inicia. Os elementos gráficos ilustram o
acontecimento: Penélope está dando à luz a Estéfano. Agora, deparamo-nos com
fotografias de recém-nascidos. A relação entre Penélope e Estéfano é forte; mas a mãe
passa a ter problemas com sua identidade, como relata o narrador: “Alguém falou em
depressão pós-parto. Mas o puerpério penelopino é diferente: ela não rejeita o menino,
está literalmente se desmanchando por ele.” (MASTROBERTI, 2007, p. 12) O conflito
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sofrido por Penélope passa a incomodar Ulisses, que busca o conselho de um médico.
Ao descobrir a normalidade da situação, Ulisses tenta se adaptar à mudança de humor
de sua amante e ao nascimento do filho, mas suas dúvidas também crescem. Penélope,
percebendo o desconforto de Ulisses, deixa claro que não se importa com seu
distanciamento e que continuará sem ele. Então Ulisses parte e a introdução se encerra.
As ilustrações acompanham a narrativa. Na última página observamos uma fotografia
de bebê em preto e branco e uma fotografia de uma mulher olhando um recém-nascido,
o que nos evoca a imagem de Penélope. Essas fotografias são, por vezes,
acompanhadas de rabiscos ou anotações, o que torna a obra, além de agradável
esteticamente, mais verossímil; como se os personagens estivessem se expressando
por meio de tais fragmentos.
O próximo capítulo, Calipso, refere-se à personagem clássica da obra de
Homero. Neste, o narrador faz uso da prolepse para avançar no tempo e contar-nos
sobre a relação — agora conturbada — de Penélope e Estéfano. Estéfano tem 18 anos
e está em uma fase conflituosa com a mãe: chega tarde da noite e se envolve em brigas.
Penélope, por outro lado, leva uma rotina sobrecarregada pelo trabalho. Estéfano
decide, então, procurar o pai. Aqui, ressalta-se a importância das ilustrações para a
história. Na página 23 observamos uma série de caóticos rabiscos e uma anotação:
cornucópia. Imergimos na história, na confusão dos personagens. Ainda neste capítulo,
uma fotografia ilustra a gravidez de Penélope. Nessa fotografia a personagem segura a
barriga que está marcada com as seguintes frases. “Este corpo pertence a Ulisses” e
“Aqui mora Estéfano”. A isso se expressa o comentário na narrativa: “Na gravidez se
achava gerando o mundo, e o mundo todo parecia caber dentro da sua barriga.”
(MASTROBERTI, 2007, p. 24) Como, de fato, relata as inscrições na ilustração.
A seguir, acompanhamos a jornada de Estéfano em busca do pai no capítulo
intitulado Telemaquia, que se refere à primeira parte da obra de Homero. Nesse capítulo
Estéfano visita Nestor, antigo amigo de Ulisses, que, como na obra clássica, não sabe
o paradeiro de Ulisses, mas lhe fornece uma direção. Estéfano, por sua vez, fica um
tanto confuso quanto ao seu objetivo, pois Ulisses não menciona sua existência aos
amigos. Estéfano, ainda distante de Penélope, aceita o convite de Nestor para passar a
noite. Ele declara que sua mãe é artista plástica e ao final do capítulo observamos uma
ilustração de um dos projetos artísticos de Penélope, repleta de anotações, como uma
espécie de planejamento. Em outras imagens vemos a representação da aparência de
Nestor: fotografias atuais e fotografias mais antigas, nas quais ele parece jovem. Ao seu
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lado posa um outro rapaz, mas seu rosto está rabiscado. O mesmo ocorre em uma outra
fotografia, em que um homem posa sozinho frente a uma exposição artística. Esses
elementos, além de ajudar na construção da aparência e personalidade do personagem,
fornece ao leitor pistas da própria narrativa.
O próximo capítulo, Nausicaa, faz referência à outra personagem de Odisseia.
Acompanhamos aqui o ponto de vista de Penélope. O capítulo gira em torno da sua
reflexão diante da fuga de Estéfano e o distanciamento de Ulisses. O narrador faz uso
da analepse para relatar o passado do casal. Acompanhamos os pensamentos de
Penélope de maneira desordenada; suas reflexões e lembranças misturam-se com o
presente. As cenas do filme a que a personagem assiste são ilustradas por fotografias
e legendas. Essas ilustrações relacionam-se com a questão da maternidade, presentes
no início da obra. Ao fim do capítulo o fluxo de pensamentos vai diminuindo.
Posteriormente, voltamos a acompanhar a jornada de Estéfano em busca do pai na
segunda parte de Telemaquia. Aqui, Estéfano deixa a casa de Nestor para falar com
Menelau, outro amigo de Ulisses. Ao chegar na empresa onde Menelau trabalha,
Estéfano fica à espera. Lá, ele entreouve uma discussão envolvendo o pai e em seguida
é recebido por Menelau, que lhe informa que Ulisses está na cidade, no apartamento
onde costumava ficar antigamente. Menelau oferece, ainda, um emprego temporário
para o jovem. E então: “[...] despacha Estéfano para a secretária, que lhe entrega uma
pasta de documentos, um vale restaurante e um cartãozinho onde se lê o endereço e o
telefone do El Greco Apart-hotel.” (MASTROBERTI, 2007, p. 54) Nesse capítulo
deparamo-nos com outras ilustrações. Uma representa Menelau em sua idade atual:
uma fotografia rasgada em pedaços. Outra fotografia representa sua aparência quando
jovem. A última fotografia inclui dois outros sujeitos, sendo um deles Nestor. O outro
indivíduo tem sua fisionomia borrada por um pingo de tinta que escorre pela página.
No capítulo denominado Sereais, retornamos para a perspectiva de Penélope.
Antes do início do capítulo, observamos uma ilustração de uma mulher presa a um
mastro. Essa ilustração corresponde a outro projeto artístico de Penélope, comentado
por ela em uma entrevista descrita pelo narrador. Durante a entrevista, Penélope recebe
uma ligação de Estéfano, mas ambos acabam se desentendendo. Nesse capítulo,
observamos dois desenhos de personagens diferentes, mas sem nenhuma anotação.
Além deles, uma fotografia de Penélope carregando Estéfano quando ele tinha seis
meses. Nessa fotografia o rabisco de um círculo se localiza na barriga da personagem
com a palavra “gorda” ao centro. O que segue é a terceira parte de Telemaquia,
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retornando para a odisseia de Estéfano. Ao receber o vale restaurante, o jovem dirige-
se à praça de alimentação. Lá ele encontra Ulisses, sem saber de quem se trata. Em
determinado momento Estéfano esquece a pasta que Menelau lhe entregou e,
apressadamente, a procura em toda parte, até que quase é atropelado por uma moto.
Apesar da correria, Estéfano não chega ao banco a tempo. Planeja, então, pegar um
ônibus e ir para o endereço do hotel onde Ulisses está hospedado. Nesse capítulo a
única ilustração é uma fotografia de Estéfano aos 4 anos de idade.
Circe, a poderosa feiticeira de Odisseia dá nome ao capítulo seguinte. Voltamos
ao ponto de vista de Penélope, que ainda está ocupada com os preparativos da
exposição. Aqui, Circe é referenciada pelo nome do espetáculo. Inquieta com seu
trabalho, com Estéfano e algumas lembranças de Ulisses, Penélope reflete: “[...] se você
tivesse criado uma imagem decente de pai, se não tivesse negado sua existência,
destruído todas as fotos e assumido o papel de mãe auto-suficiente, Estéfano não teria
partido.” (MASTROBERTI, 2007, p. 77) Observamos outra imagem de um dos projetos
de Penélope, repleta de anotações. Outro rascunho e uma fotografia com o rosto
rabiscado.
O próximo capítulo pertence a Estéfano, novamente. Ele entra no ônibus rumo
seu destino, mas não sabe ao certo como chegar na zona sul. Está chovendo e o tempo
está frio. Estéfano se sente perdido, mas decide não ligar para Penélope. Ele para em
um bar e pergunta qual direção seguir, mas, antes que possa continuar seu caminho,
sente-se mal do estômago. Passa na farmácia, compra um remédio e pede informação
novamente. Transtornado, pensa em desistir:

[...] desisto chega pra que ir até lá afinal de contas como é que ele vai
me receber se é que vai vai ver ainda vai me tratar mal, se está por aí
por que é que não me procurou aliás por que é que nunca me procurou
não quis saber de mim desde o princípio, tenho importância nenhuma
pra ele (MASTROBERTI, 2007, p. 87)

O ambiente vai se tornando hostil ao adentrar a uma praça. Estéfano é agredido


por um grupo de pessoas, encontrado e levado para o Pronto Socorro Municipal. Nesse
capítulo, as ilustrações são, em maior parte, fotografias. A primeira delas mostra
Estéfano com sua vó paterna. A ilustração vai complementar o comentário feito pelo
narrador: “Uma vez, quando era ainda de colo, veio visitar a avó. Depois, nunca mais.
A avó morreu, por isso. Mãe de seu pai.” (MASTROBERTI, 2007, p. 83). Outra, mostra
Estéfano aos 5 anos, dormindo em um berço, e a última mostra Estéfano em sua idade

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atual, com sua avó por parte de mãe, que é descrita pelo narrador como uma avó
moderna. A última ilustração é a colagem de uma fotografia da ambulância. A partir daí
inicia-se o desfecho da história. Os capítulos seguintes são intitulados Ítaca e são
divididos em três partes. No clássico de Homero, Ítaca refere-se à ilha natal de Ulisses.
Na obra de Mastroberti, Ítaca simboliza o retorno de Ulisses para sua família. A primeira
parte de Ítaca representa o desenrolar do conflito. Ao chegar ao hospital Estéfano decide
contatar o pai em vez de a mãe e Ulisses vai buscá-lo. Penélope, ao descobrir, fica
arrasada, como relata o narrador:

Faço nada, se as coisas procedem assim mesmo. Tal filho, tal mãe, tal
cordão umbilical que parece não desaparecer nunca. Portanto, iguais
lágrimas do esforço e uma fraqueza imediata impedindo-a de pensar.
Olha para o chão, curvada, trêmula, etc. e tal — igualzinha.
(MASTROBERTI, 2007, p. 96).

Penélope recebe os catálogos de sua apresentação e o jornal com a síntese de


sua entrevista. No entanto, aí as coisas não saem bem como esperado. Nas ilustrações
podemos ver trechos do artigo escrito por Eury; que interpretam a arte de Penélope
como erótica e sensual. Nesse trecho, observamos a reação de Penélope por suas
anotações. Alguns comentários e rabiscos são feitos na folha. Outra ilustração que
aparece neste capítulo é uma fotografia rasgada em pedaços. Aqui, um homem segura
um bebê, cujo rosto nos é visível; enquanto que o rosto do homem permanece separado
em pedaços de papel. Um rolo de fita adesiva aparece no topo da página. Além disso,
observamos mais alguns elementos gráficos como de fotografias do espetáculo de
Penélope e do anúncio da apresentação por meio da capa do jornal. A segunda
parte de Ítaca se resume às reflexões de Penélope durante a ida ao teatro. A
personagem pega um táxi e enquanto viaja pensa sobre sua autoimagem e sobre a arte.
Poucas ilustrações aparecem nesse capítulo, uma vez que ele é curto. Apenas o esboço
de um autorretrato no qual Penélope anota “eu, por mim”. A outra ilustração é o anúncio
de sua apresentação. O capítulo se encerra quando ela desce do táxi. Na terceira e última
parte de Ítaca, Ulisses convence Estéfano a ir à apresentação de Penélope. Ele
empresta um terno para o filho e juntos vão ao espetáculo. Lá, a interação entre a artista
e o público permite que Ulisses desamarre Penélope do mastro. A autora deixa-nos um
desfecho em aberto: “O resto é com eles. Que se resolvam” (MASTROBERTI, 2007,
p.117). O capítulo se inicia com um esboço do rosto de Ulisses, como aparece anotado.
O trecho da música “é doce morrer no mar” também aparece escrito várias vezes. Outro

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elemento gráfico é o esboço de Estéfano usando um terno. Aqui, é utilizada a técnica de
colagem, pois o rosto do personagem é um esboço e o terno é feito a partir de uma
fotografia real. No fim do capítulo, observamos uma colagem dos três protagonistas
unidos: Penélope, Estéfano e Ulisses.

Fragmentos da jornada

As ilustrações são, conforme observado, um elemento essencial nessa obra. É


por meio delas que interpretamos os personagens e o próprio enredo. Desde o princípio
os elementos gráficos se unem à narrativa para tornar o leitor mais próximo da história,
assim como a representação de anotações feitas à mão nas margens da folha. Esses
elementos são mais do que um complemento, eles fazem parte do princípio de
composição da narrativa. Segundo Mastroberti, ao discutir sobre a ideia de arte como
conhecimento,

Ocorre que a especificidade do livro ilustrado requer a formação de um


leitor atento às linguagens propostas como um todo. Ao ignorar a sua
interação com o suporte de leitura aqui entendido na integralidade de
seus discursos, ao restringir a experiência de leitura à exegese verbal,
perde-se a oportunidade de ampliar o conhecimento e as faculdades
interpretativas da linguagem plástica-visual. (2010, p. 220).

Trata-se, portanto, de aprimorar a interpretação por meio de uma linguagem não-


verbal unindo-a à linguagem verbal; criando nessa união um texto multimodal. São as
ilustrações que permitem ao leitor mergulhar na história, interpretar aqueles
personagens em seu universo e se identificar com eles, criando empatia.
É assim que a odisseia moderna de Mastroberti conquista o leitor, ao fornecer a
ele uma posição de intimidade com os personagens. Isso é construído não apenas por
meio das ilustrações, mas também pelo modo como a trama é narrada. O narrador de
Mastroberti parece assumir um papel de proximidade aos personagens. Parece
compreendê-los, estar a par de seus pensamentos e emoções. Esse é o tipo de narrador
que Franco Junior (2009) classifica como heterodiegético, pois observa a história a uma
certa distância e não participa de modo ativo. Além disso, o foco narrativo utilizado pelo
narrador é o de onisciente intruso.

O narrador que utiliza esse foco narrativo se interpõe entre o leitor e os


fatos narrados, elaborando pausas frequentes (digressões) para a
apresentação de sua opinião e de seu posicionamento, seja em relação
à história e aos elementos que a constituem, seja em relação aos
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comportamentos e/ou valores sociais aos quais a história narrada faz
referência e com os quais dialoga (FRANCO JUNIOR, 2009, p. 42).

Essa posição assumida pelo narrador se configura como um diálogo travado com
o leitor. É como se leitor e narrador fossem velhos amigos compartilhando o relato de
conhecidos em comum. Notamos que as opiniões do narrador por vezes se misturam com
o pensamento dos personagens e tornam-se um só. Franco Junior (2009) define essa
técnica como fluxo de consciência. Segundo ele, é o que

[...] cria um efeito de forte perturbação, perda ou, mesmo, abolição das
relações de causalidade que regem a lógica cotidiana e, também, um
efeito de perda do controle da consciência pela personagem. O fluxo
de consciência é um recurso utilizado para aproximar maximamente o
leitor da vida interior da personagem, composta por elementos do
consciente, do subconsciente e do inconsciente. (p. 48).

Essa técnica é bastante utilizada nos romances contemporâneos, como uma


forte influência do modernismo e de escritores como o próprio James Joyce, William
Faulkner, Virginia Woolf, dentre outros. A trama de Mastroberti também é influenciada
por outros elementos modernos como o uso da linguagem coloquial, uma vez que as
gírias são bastante utilizadas ao longo da narrativa. Outro recurso é o do uso da
intertextualidade, presente em toda a obra. Essa intertextualidade é uma das

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características mais marcantes da série Reversões. É o diálogo com a obra
clássica que nos intriga, e é esse diálogo que permite ao leitor, mais uma vez, expandir
suas noções de interpretação, pois “A intertextualidade mais determinante não é a do
texto, mas a do leitor. Ler é realizar, sem preocupação com a cronologia, todas as
conexões possíveis entre os textos. (JOUVE, 2013, p. 58).
Rosenfeld (1976), em suas reflexões sobre o romance moderno, chama a
atenção para a existência do espírito de uma época, ou Zeitgeist. Esse espírito seria a
unidade de um tempo. Mastroberti consegue demonstrar o espírito contemporâneo por
meio de sua obra. Isto porque os conflitos em Retorno de Ulisses são os conflitos de
uma sociedade contemporânea. A instituição familiar está passando por constantes
mudanças e isso se reflete na obra. Outra característica do romance moderno, apontada
por Rosenfeld (1976), é a desrealização que se observa nas artes. Segundo ele, “O
termo ‘desrealização’ se refere ao fato de que a pintura deixou de ser mimética,
recusando a função de reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível”
(ROSENFELD, 1975, p. 76). Nesse sentido, o objetivo do romance, assim como a arte,
passa a ser o realismo interno; a expressão dos pensamentos e das angústias, ou seja,
“[...] reproduzir, de uma forma estatilizada ou não, idealizada ou não, a realidade
apreendida pelos nossos sentidos” (ROSENFELD, 1976, p. 76). Os personagens de
Mastroberti são, justamente, representados pelos seus sentimentos e emoções, mais
do que por suas ações. Às vezes pensam mais do que agem. Essa é uma característica
de composição daquilo que Franco Junior (2009) define como personagem redonda,
pois “[...] apresenta um alto grau de densidade psicológica, ou seja, marca-se pela
alinearidade no que se refere à relação entre os atributos que caracterizam o seu ser (a
sua psicologia) e o seu fazer (as suas ações).” (FRANCO JUNIOR, 2009, p. 39).
Vê-se que os protagonistas da obra são personagens complexos, que
apresentam instabilidade ao longo da trama. Estéfano, Penélope e Ulisses são os
personagens principais da obra, uma vez que “[...] suas ações são fundamentais para a
constituição e o desenvolvimento do conflito dramático.” (FRANCO JUNIOR, 2009, p.
39). Quanto aos outros personagens, podemos caracterizá-los como secundários. Eury,
Nestor, Menelau e outros são personagens planos, pois, conforme Franco Junior (2009)
aponta, não sofrem grandes transformações ao longo da trama. No que se refere ao
personagem do romance, Candido (1998) afirma:

A personagem é um ser fictício — expressão que soa como paradoxo.


De fato, como pode uma ficção ser? Como que pode existir o que não
existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e
o problema da verossimilhança no romance depende desta
possibilidade de um ser fictício [...] o romance se baseia, antes de mais
nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício,
manifestada através da personagem, que é a concretização deste.
(CÂNDIDO, 1998, p. 55).

Sob esse ponto de vista, a construção dos personagens da odisseia de


Mastroberti é pautada na ideia de verossimilhança, na desorganização e conflito do ser
humano contemporâneo. O espaço e a cronologia desse universo serão,
consequentemente, tão confusas quanto a mentalidade desses personagens. Embora
a história se passe em um ambiente urbano, acompanhamos a jornada dos
personagens entre um espaço e outro. Por vezes em casa, por vezes no shopping, no
hotel, no hospital, no teatro etc. Esses espaços físicos estão intrinsicamente ligados com
o que Franco Junior (2009) chama de tempo. Na obra, observamos a presença
predominante do tempo psicológico. Acompanhamos os personagens em um espaço
de tempo muito curto, com frequentes saltos temporais ou ações sequenciais. O fluxo
de consciência engloba sua noção de tempo e, nesse sentido, é válido salientar que “À
eliminação do espaço, ou da ilusão do espaço, parece corresponder no romance a da
sucessão temporal. A cronologia, a continuidade temporal forma abaladas, ‘os relógios
foram destruídos’” (ROSENFELD, 1976, p. 80). Restam apenas as marcações
temporais exatas como “dois mil e seis”, “quinze para as oito”, “até às nove horas da
manhã” e etc.
Para além de realizar um trabalho com a linguagem não-verbal e com a
intertextualidade, a obra também trata de temas importantes como abandono, solidão,
busca por identidade e depressão pós-parto. Os conflitos familiares presentes no livro
são vivenciados por muitos indivíduos na sociedade contemporânea, o que pode levar
o leitor à identificação imediata com os temas. De acordo com Candido (1972), o leitor,
quando em contato com a obra, “[...] se sente participante de uma humanidade que é a
sua, e deste modo, pronto para incorporar à sua experiência humana mais profunda o
que o escritor lhe oferece como visão da realidade.” (p. 809).
É por meio da construção de diversos elementos repletos de realismo que a
narrativa entrega ao leitor uma história que cumpre seu papel de engajar, cativar e
despertar curiosidade e empatia. Assim, também, cumpre seu papel de adaptar um
clássico que, tão distante, torna-se novamente próximo da realidade de jovens que
talvez nunca tivessem contato com Odisseia, de Homero, não apenas transformando o
enredo e os personagens, mas trazendo a linguagem híbrida para o jogo interpretativo,
ampliando as capacidades do leitor, pois,

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Para além do decodificar da palavra, este deve também interagir com
formas, cores, texturas diversas, reunindo-as em sua consciência
cognitiva e atribuindo-lhes significados conforme horizontes não
apenas verbais (configurados a partir de outras leituras), mas estéticos
e/ou sensoriais (configurados a partir das experiências sensíveis ou
sinestésicas). (MASTROBERTI, 2010, p. 219).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trama criada por Paula Mastroberti não está muito distante da obra que já
conhecemos. Ulisses é um herói que, distante de casa, leva 17 anos para retornar.
Diferentemente da obra tradicional, não acompanhamos a jornada de um único herói,
mas a jornada de uma família, a partir do foco sobre o personagem central, também
fechando um ciclo de igual período, do seu nascimento até o salto para a adolescência.
A autora gaúcha constrói uma obra repleta de elementos intertextuais, não
apenas emprestando o enredo criado por Homero, mas criando um conflito motivado
por problemáticas modernas, dando à obra de Homero e aos seus personagens uma
nova roupagem, que se torna mais acessível à realidade do jovem contemporâneo.
Trata-se de uma homenagem ao clássico, mas também um convite para os jovens que
ainda não conhecem a epopeia; para que se aprofundem no universo caótico de Ulisses,
Penélope e Estéfano; que possam compreender a origem desses personagens. Nessa
obra, Mastroberti desafia o leitor, fornece-lhe autonomia para compreender o significado
de cada elemento presente no texto. Em sala de aula, por exemplo, isso significa “[...]
partir da recepção do aluno, de convidá-lo à aventura interpretativa com seus riscos,
reforçando suas competências pela aquisição de saberes e técnicas.” (ROUXEL, 2013,
p. 20).
A linguagem não-verbal adquire importância nessa obra, pois é através dela que
o leitor constrói as interpretações de significado, como aponta Hamasaki e Nascimento
(2018):
Uma das especificidades da literatura infantojuvenil é a sua linguagem,
ou suas linguagens. Com ampla utilização de ilustrações e recursos
gráficos diferenciados, a literatura destinada à criança e ao adolescente
enriquece a construção de sentidos de um leitor (HAMASAKI;
NASCIMENTO, 2018, p. 124).

É por isso que todos os elementos são relevantes na obra. A linguagem, o


narrador, o espaço, os personagens, as ilustrações e os recursos linguísticos são parte
da construção de um universo que, à sua maneira, contribui para o amadurecimento de
um leitor híbrido, que precisa se adaptar ao mundo contemporâneo e suas diversas
formas de produção literária. Além disso, torna-se relevante pela sua capacidade de

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representar a realidade de modo a nos trazer a empatia ou pela sensação de
identificação. A isto, salienta-se que:

[...] a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser


satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar
forma aos sentimentos e à visão de mundo ela nos organiza, nos liberta
do caos e, portanto, nos humaniza. (CÂNDIDO, 1995, p. 256).

Nesse sentido, a odisseia recriada por Mastroberti contribui para a edificação do


jovem leitor; desafiando-o a construir sentidos e também a se apropriar de um universo
que é desconhecido a ele. Trata-se, portanto, de criar uma conexão entre o jovem leitor
e a obra apresentada; pois, através dessa interação é que são construídos os saberes.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Fernando; BALÇA, Ângela. Educação literária e formação de leitores. In:


AZEVEDO, F; BALÇA, A. Leitura e Educação Literária. Lisboa: Pactor, 2016.

BELTRAMIM, Alessandra. Loucura de Hamlet: O mundo desintegrado de um herói às


avessas. Revista Tabuleiro de Letras, Salvador, Vol 12; nº 01, junho de 2018.
Disponível em: http://www.revistas.uneb.br/index.php/tabuleirodeletras. Acesso em: 27
set. 2019.

CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura, São


Paulo, vol. 4, n. 9, 1972, p. 803-9.

CANDIDO, Antonio (org.). A personagem do romance In: A personagem de ficção.


São Paulo: Perspectiva, 1998.

FRANCO JUNIOR, Arnaldo. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI, Thomas;


ZOLIN, Lúcia Osana (orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas. 3a ed. Maringá: Eduem, 2009. p. 33-58.

HAMASAKI, Eloisa; NASCIMENTO, Maria. Da leitura literária ao leitor plural: caminhos


possíveis a partir dos multiletramentos. Entretextos, Londrina, v. 18, n. 1sup, p. 115 –
135 Dossiê Temático, 2018.

JOUVE, Vincent; REZENDE, Neide Luzia de. A leitura como retorno a si: sobre o
interesse pedagógico das leituras subjetivas. Leitura subjetiva e ensino de literatura
[S.l: s.n.], 2013.

MASTROBERTI, Paula. Escutando as paredes e vendo através delas: a aquisição do


conhecimento estético através da leitura do livro ilustrado. Revista Signo, v. 35, n. 58,
2010.

MASTROBERTI, Paula. Retorno de Ulisses. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. 119 p.


ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.

ROUXEL, Annie. LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia de. (Org). Leitura
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subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2013. p. 53-65.

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AS MANIFESTAÇÕES DAQUILO QUE É SENSÍVEL: UM
DIÁLOGO ENTRE A LITERATURA INFANTIL HÍBRIDA E A PÓS-
MODERNIDADE 132

Ana Luíza Silva Sanches (Universidade da Região de Joinville)


Berenice Rocha Zabbot Garcia (Universidade da Região de Joinville)
Fernanda Cristina Cunha (Universidade da Região de Joinville)
Isabela Giacomini (Universidade da Região de Joinville)

Eixo Temático: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Considerações iniciais
O presente artigo trata-se de um recorte a partir da pesquisa de cunho
bibliográfico, desenvolvida por integrantes do Programa de Literatura Infantil Juvenil
(PROLIJ) da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), intitulada “Hibridismo na
Literatura Infantil Juvenil: contrapontos contemporâneos”.
A partir das possibilidades de conceituação do pós-modernismo, objetiva-se
compreender o processo de hibridismo em obras recentes de literatura infantil e juvenil,
considerando suas múltiplas linguagens, à luz de textos teóricos e literários. Para isso,
sob o entendimento de autores como Canclini (2008), Sampaio (2013) e Cagneti (2013),
serão analisadas as obras ‘’Pinóquio - o livro das pequenas verdades’’, de Alexandre
Rampazo, ‘’A vida não me assusta’’, organizado por Sara Jane Boyers e ‘’É um livro’’,
de Lane Smith.
A escolha das obras incita o debate acerca dos motivos pelos quais elas são
híbridas, tendo em vista o uso das mais variadas linguagens, e da importância de serem
abordadas, principalmente em práticas educativas. Os resultados das análises
procuram relacionar a literatura infantil, a pós-modernidade e o hibridismo com as
multiplicidades de "enxergamentos" e diálogos possibilitados pelo contato do leitor com
essas novas estruturas literárias.

132
Este artigo é um recorte da pesquisa “Hibridismo na literatura infantil juvenil: contrapontos
contemporâneos”, que está sendo desenvolvida por membros do Programa de Literatura Infantil
Juvenil (PROLIJ) da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), sob a coordenação da
professora e pesquisadora Berenice Rocha Zabbot Garcia.
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As manifestações da literatura infantil na pós-modernidade
Os movimentos da chamada sociedade pós-moderna têm trazido à tona novas
formas de relação, a dissolução de fronteiras até então estabelecidas, a deslinearização
de diversos processos, a reformulação de teorias e pensamentos e também novas
necessidades que passam a se fazer presentes, principalmente no que diz respeito às
vivências humanas, ao subjetivismo e às possibilidades de diálogo. Gatti (2005) defende
que a pós-modernidade não deve ser compreendida como uma mera superação da
modernidade, mas sim como uma fase de transição que traduz “um movimento da
cultura em sociedades em rápida mutação, movimento que se ainda está produzindo,
sem que se distingam consolidações que ajudem a qualificá-lo melhor” (GATTI, 2005,
p.598-599). Nesse sentido, falar do pós-moderno é tratar da sociedade e de suas
questões em uma perspectiva daquilo que lhe é contemporâneo, do que lhe está
acontecendo no momento.
Assim, a fala de Esperandio (2007, p.11) expressa o que aqui se defende: “o
esforço de compreender o que vem a ser pós-modernidade implica, necessariamente,
um movimento para compreender o nosso próprio modo de existência hoje”. Por isso,
para que se possa entender as necessidades dessa sociedade é preciso percebê-la a
partir de um olhar atento, tanto para suas características e comportamentos como para
suas fragilidades e ausências. O suprimento dessas necessidades, que surgem e que
se modificam, pode ser notado e também acontecer de fato pelas produções artísticas
dentro de sociedades diversas, pois a arte, em suas mais variadas manifestações,
expressa aquilo que faz parte do universo, da realidade dos indivíduos e de suas
subjetividades, à medida que, além de se constituir pelo sensível, também sensibiliza
aquele que tem contato com ela.
Dentre essas manifestações, uma que recebe grande destaque é a literatura,
pois é a materialização de todos esses movimentos a partir do uso da linguagem e de
suas possibilidades. A literatura, enquanto manifestação artística, também revela a
sociedade na qual está inserida e, de acordo com Cosson (2009, p.16), “consiste
exatamente em uma exploração das potencialidades da linguagem, da palavra e da
escrita, que não tem paralelo em outra atividade humana”. Desse modo, a literatura é
compreendida como uma abertura à externalização e também à busca por aquilo que
se necessita no mundo contemporâneo. Cosson (2009, p.17) ainda afirma que:

A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar


o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma
experiência a ser realizada. É mais que um conhecimento a ser
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reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renúncia da
minha própria identidade. No exercício da literatura, podemos ser
outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do
tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós
mesmos.

A partir disso, percebe-se que a literatura é o espaço propício para falar das
subjetividades ao mesmo tempo que é para abordar questões mais amplas e comuns à
humanidade. Tendo a literatura toda essa capacidade e abrangência, ela retrata a
sociedade atual sem deixar de lado a poesia, a ficção, a metáfora e os simbolismos. Em
se tratando dessas materializações, elas são ainda mais perceptíveis nas obras infantis,
que revelam às crianças assuntos sobre seu mundo, ou seja, o pós-moderno,
tecnológico e contemporâneo.
A literatura infantil, sendo antes de tudo literatura, mostra aos pequenos leitores
seu próprio universo, a partir de diversas linguagens e de elementos que fazem com
que sua atenção seja captada. Contudo, tratar de literatura para crianças e jovens nos
tempos atuais é necessariamente ter que trazê-la para perto de suas realidades, espaço
no qual surgem os livros híbridos, que se distanciam da literatura infantil convencional,
de caráter simplista, com ilustrações pouco exploradas, muitas vezes “pedagogizante”
e repetidora de padrões. Um livro híbrido é aquele que dialoga com a pós-modernidade,
que abre fronteiras para a fusão entre diferentes linguagens, que se utiliza de uma
arquitetura livresca, de uma diagramação intencional e de elementos bem elaborados
que ajudam a compô-lo como um produto artístico final, mas que não acaba em si
mesmo, ao passo que dá abertura ao leitor e ao seu processo imaginativo de uma
maneira intensificada.
Cagneti (2013, p.83) aponta que, mesmo que os livros sejam compostos
“apenas” por imagens, também conhecidos como narrativas visuais, “são outro exemplo
de hibridismo, mesclando as linguagens do cinema, dos quadrinhos, da televisão”,
assim, para ser híbrido, deve haver a promoção desse diálogo. A autora afirma ainda
que uma obra híbrida é “constituída por mais de uma linguagem, explorando ao máximo
aquela escolhida" (CAGNETI, 2013, p.79). Nesse sentido, o processo de seleção
desses livros também passa a ser mais criterioso, visto que eles precisam potencializar
a utilização dessas linguagens de forma a permitir uma leitura interessante, fruitiva e
que dê lugar à inventividade e ao trabalho interpretativo do leitor, que não
necessariamente será uma criança, justamente pela ruptura de barreiras que o
hibridismo proporciona, reformulando também a divisão por faixas etárias
tradicionalmente utilizada na literatura infantil.

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Não apenas selecionar, mas ler um livro que seja híbrido requer um processo
diferenciado. Van Der Linden (2011) pontua que, ao ler um livro ilustrado, há um grande
exercício e, por isso, depende da formação leitora:

Ler um livro ilustrado é também apreciar o uso de um formato, de


enquadramentos, da relação entre capa e guardas com seu conteúdo;
é também associar representações, optar por uma ordem de leitura no
espaço da página, afinar a poesia do texto com a poesia da imagem,
apreciar os silêncios de uma em relação à outra… (VAN DER LINDEN,
2011, p.8-9)

Contudo, mesmo que esse processo traga uma demanda maior àquele que o
escolhe e/ou lê, ele permite um contato muito mais rico, no sentido em que possibilita
que o leitor possa desvendar o livro para além de suas palavras, ou seja, pelo seu
formato, suas texturas, suas cores, ilustrações, traços, metalinguagem, elementos
extratextuais e, acima de tudo, pela sua força literária. Cabe ressaltar que a vivência
proporcionada por um livro híbrido não deve passar pela noção de espetacularização
da obra, em que o foco deixa de ser a literariedade e a poesia transmitidas, mas sim
pela identificação entre obra/leitor, visto que este vê no primeiro uma exteriorização de
seu próprio universo a partir de outra perspectiva: a da arte.
O hibridismo literário, além de potencializar a utilização das mais variadas
formas de linguagem, aumenta o encantamento pela leitura, aproxima a literatura da
realidade contemporânea, resgata o subjetivismo e sensibiliza o leitor pela catarse. Com
isso, pode-se afirmar que, “embora aparentemente voltados para o universo infantil, eles
na sua maioria vêm agradando a diferentes faixas, mais uma vez revelando o proceder
contemporâneo de um mundo sem fronteiras” (CAGNETI, 2013, p.83), e justamente por
criarem esse movimento de identificação, os livros híbridos devem ser abordados nos
mais variados contextos, sejam eles educacionais, familiares ou sociais de um modo
geral.
Deste feito, principalmente diante da educação formal, por se configurar como
um espaço de contato privilegiado com a literatura infantil e, muitas vezes, como o único
local em que a criança tem acesso a livros, há o desafio no processo de curadoria das
obras a serem abordadas com as crianças e jovens, e ainda mais, em exercer um bom
papel na mediação das discussões que as envolvem. Por isso, é imprescindível que,
antes de falar do livro, ele seja profundamente conhecido pelo mediador e também que
este se permita aproximar da obra, pois, dessa forma, o envolvimento deixa de ser
apenas por parte da criança, instigando assim, ambos a desvendarem o que há no livro
e, por meio dele, descobrirem novas formas de enxergar o mundo.

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Metodologia
Este artigo, de cunho bibliográfico, é resultado do projeto de pesquisa
“Hibridismo na literatura infantil juvenil: contrapontos contemporâneos”, que vem sendo
desenvolvido desde 2018 a partir de encontros de leitura e discussão de textos teóricos
e literários, envolvendo acadêmicos e pós-graduandos das áreas de Letras e Pedagogia
e um docente coordenador da Universidade da Região de Joinville.
A pesquisa, que ainda está em andamento, iniciou-se com encontros para
discussão de teóricos previamente selecionados e, posteriormente, em paralelo aos
textos teóricos que foram sendo também sugeridos pelo próprio grupo, iniciaram-se
leituras, análises e seleção de diversos livros infantis para compor o escopo da
pesquisa. Para fins metodológicos, optou-se por categorizar os livros de acordo com
eixos temáticos, em que cada eixo representa uma área de aproximação entre os livros
escolhidos. Vale ressaltar que essa divisão foi uma maneira encontrada para
organização das obras, mas não de limitação do livro àquela ou esta categoria, pois,
justamente por serem híbridos, dialogam também com temas diversos, sendo, portanto,
alocados pelo mais abrangente. Os eixos temáticos são: livros sobre livros (metalivros);
família; convivência com o outro; tempo; revisitamentos; medo e desconstrução de
temas tabu.
A definição dos eixos temáticos partiu das obras já analisadas pelo grupo e
permanecem em aberto para a inserção de novos livros que surjam. A escolha pela
pesquisa bibliográfica se dá pelo fato de que:

A pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências


teóricas “já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos,
como livros, artigos científicos, páginas de web sites” (Matos e Lerche:
40) sobre o tema a estudar. Qualquer trabalho científico inicia-se com
uma pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador conhecer o
que já se estudou sobre o assunto. Existem porém, pesquisas
científicas que se baseiam unicamente na pesquisa bibliográfica,
procurando referências teóricas publicadas com o objetivo de recolher
informações ou conhecimentos prévios sobre o problema a respeito do
qual se procura a resposta (FONSECA, 2002, p.31-32)

Desse modo, as bases teóricas do projeto de pesquisa auxiliam na análise das


obras infantis, assim como estas conduzem os pesquisadores a novos referenciais,
trazendo novos olhares, formulações e possibilidades, que também estarão abertos a
novas pesquisas. Como última etapa, que está em desenvolvimento, pretende-se
produzir um livro com o conjunto dos resultados e com as sugestões dos livros infantis
e juvenis analisados para serem disponibilizados aos profissionais da educação e
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mediadores de leitura, que podem ter o material como base, apoio ou inspiração para
práticas diversas.

Análise das obras infantis híbridas


Diante do interesse no projeto em possibilitar o contato, a inventividade e o
processo interpretativo do leitor, compreende-se a importância de expor, através do
presente artigo, obras que se manifestam de forma híbrida e, portanto, dialogam com
tais interesses.

Pinóquio - o livro das pequenas verdades, de Alexandre Rampazo


Agente de si e dotado do recurso de margem, o Pinóquio, revisitado por
Alexandre Rampazo, é apresentado ao leitor frente a um espelho. E neste, ao ver-se
"somente" como um boneco de madeira, busca em outros reflexos encontrar aquilo que
lhe faria deixar de sê-lo. Ao buscar ser real, no livro das pequenas verdades, Pinóquio
se projeta em outras personagens do escritor e jornalista italiano Collodi, portando
outras características e refletindo ao longo das cenas - todas apresentadas em página
dupla, sobre os questionamentos daquilo que se é, da multiplicidade de quem se pode
ser e do encontro e da aceitação de si.
A obra proporciona àquele que lê identificar-se com Pinóquio pela insegurança
de ser quem se é metaforizado pelo olhar humano, filosófico e reflexivo que o boneco
de madeira estabelece consigo no percurso de se encontrar a partir do outro e, portanto,
a partir do mundo no qual está inserido. Acerca de tal percurso, pode-se pontuar que:

Conhecer a si mesmo é também conhecer este mundo no qual


habitamos. Heidegger, em Ser e Tempo, concebe a existência humana
como uma estrutura caracterizada por ser-no-mundo. O ser que se
caracteriza por ser-no-mundo, é o ser que já está, de início, "aí"
lançado no mundo, portanto o filósofo nomeia a existência humana de
Dasein (Ser-aí) (SAMPAIO, 2013, p.38).

O “retorno a si” e a descoberta daquilo que se pode ser se dá para Pinóquio à


medida que ele explora seu mundo e suas multiplicidades ao deparar-se novamente
com seu reflexo de boneco de madeira; ele se explora e, através da sua constituição de
madeira, busca sua gênese enquanto árvore. Para além da margem, a intertextualidade
estabelecida entre árvore, madeira e menino, nesta altura da obra, construída a partir
de uma arquitetura sanfonada, possibilita ao leitor ser ativo no processo de
autodescoberta do personagem.

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Partindo das contribuição de Canclini (2008) que compreende que o processo
de hibridação não é semelhante à fusão sem contradições, mas, sim, uma nova forma
de compreender as contradições surgidas dos conflitos interculturais, pode-se supor que
as manifestações sensíveis às questões do ser em um revisitamento e a utilização na
margem, a fim de desenvolver uma estratégia de diálogo entre ilustração e a arquitetura
do livro, utilizando-se da estrutura de sanfona, possibilitam novas relações dialógicas
entre aquilo que é clássico e pós-moderno, e portanto, híbrido. É nesse diálogo
preconizado que o indivíduo pode vivenciar novas experiências sem o risco da
indiferença diante de novas estruturas contemporâneas.

A vida não me assusta, organizado por Sara Jane Boyers


Um grande convite às variadas formas de arte, esta é uma obra que trata sobre
o medo a partir do poema Life doesn't frighten me at all, de Maya Angelou, famosa
escritora americana e defensora dos direitos civis, ilustrado pelas pinturas do artista
plástico Jean-Michel Basquiat, um dos grandes nomes da arte do século XX. Assim, a
obra é composta por versos do poema em diálogo com as pinturas de Basquiat, fazendo
com que o leitor tenha contato com a fusão de dois tipos de arte, a literária e a plástica,
a partir de uma obra voltada ao público infantil, mas não restrito a ele. O poema, dessa
forma, tece a narrativa ao falar que nada das coisas do mundo assustam, encorajando
seus leitores a pensarem sobre e a superarem seus próprios medos. A escolha das
pinturas por parte da organizadora também foi muito atenciosa, pois, além de criarem
uma grande conexão com os versos, mostram traços e especificidades do artista,
enaltecendo a riqueza de ambos. Esse livro foi organizado em uma edição especial de
comemoração dos 25 anos do poema de Angelou e traz um olhar sensível ao trabalho
de dois artistas negros americanos, com realidades diferentes, mas que se unem pelo
mesmo propósito: a arte e a superação dos medos através de suas experiências de
vida.
A vida não me assusta caracteriza-se como híbrida por apresentar essa nova
proposta a partir de artes já existentes separadamente, fazendo com que cada uma,
com suas singularidades, fosse aproximada gerando uma nova estrutura e uma nova
possibilidade leitora, provando o que afirma Canclini (2008, p.19): “entendo por
hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que
existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e
práticas”. O hibridismo do livro permite que a experiência leitora seja potencializada,
pois não há somente um texto verbal ou imagético isolados, mas uma nova forma de

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abordagem da arte, fazendo com até os mais jovens leitores sejam privilegiados por
esse contato. Em se tratando das crianças, a obra é riquíssima, pois o poema é escrito
sob o olhar de uma criança, assim como as ilustrações a remetem através dos traços,
cores e elementos; juntos, fazem com que seja mostrado que apesar dos medos mais
profundos que possam existir, há formas de enfrentá-los e de enxergá-los a partir de
outras perspectivas, não necessariamente negativas, visto que o medo é inerente à
infância.
Para complementar e deixar o livro ainda mais significativo e híbrido, com
diferentes linguagens e gêneros, ao final há a biografia dos dois artistas e o poema na
íntegra em sua versão original no inglês, para que dessa forma o leitor se situe a respeito
da obra como um todo, permitindo que este conheça o que está por trás dela e do
processo criativo dos artistas. O livro, em todo seu conjunto, é um convite à arte e um
passeio pelas suas veredas, tanto para os pequenos leitores, como para os mais
experientes.

É um livro, de Lane Smith


A obra evidencia a influência dos meios tecnológicos em contraste ao objeto
livro e a sua impressão em uma sociedade atual, que retêm na palma da mão um
instrumento capaz de modificar realidades, compartilhar informações, possibilitar o
contato com outras pessoas e as mais diversas formas de comunicação.
A narrativa da obra é constituída pela comparação entre o objeto livro e o objeto
computador/tablet, em que ‘’imbricam-se ideias clássicas e ideias contemporâneas,
para - sobre uma mesma temática - levantar novas possibilidades de reflexão’’
(CAGNETI, 2013, p.80), impulsionando a discussão sobre a possibilidade do fim do livro
diante da modernidade e das novas formas de leitura e interação.
O livro, apresentado de maneira tradicional, não precisa de bateria, nem de
login ou senha eletrônica para proporcionar sentimentos ao leitor, sejam eles de êxtase
ou desencanto. No entanto, com o avanço tecnológico e com as inúmeras possibilidades
de controlar a narrativa a partir das próprias palavras do leitor, muitas vezes o livro se
torna um objeto desconhecido, que causa curiosidade por não expelir sons, não mandar
mensagens ou ter letras demais.
A obra foi ainda abarcada pelo eixo temático de livros sobre livros, visto que a
narrativa se constrói pela percepção de dois objetos que contam histórias, mas que,
mesmo assim, atribui significado ao que é, de fato, o livro. Um é constituído por grandes
parágrafos, proporcionando um diálogo interno, enquanto o outro dispõe de dispositivos

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ilimitados, possibilitando um diálogo externo. O livro é híbrido por justificar, por meio do
contraste entre livro e computador, a possibilidade de atribuir novos significados e
dialogar com várias linguagens para, então, constituir-se como um produto final. Nessa
obra, essa característica é perceptível pelo uso da linguagem verbal em conjunto com
a linguagem visual, além da arquitetura do livro, da escolha de cores e fontes e do
protagonismo dos personagens em contraporem os dois objetos.
A linguagem do livro é subjetiva a partir do diálogo entre os dois personagens,
o Burro, que indaga a existência do livro, comparando-o com as utilidades do
computador, e o Macaco, que introduz o livro como um objeto incapaz de modificações
perceptíveis. Ainda, o surgimento de um terceiro personagem, o Rato, denota, em
caráter híbrido, o contraste entre os dois objetos, visto que, para o Macaco, mouse
significa rato e, para o Burro, significa um instrumento que executa determinadas ações
na realidade virtual.
São justamente os elementos específicos do livro: não descer a página ou não
fazer pontes virtuais por meio de hiperlinks, que despertam no Burro o interesse e a
curiosidade naquele instrumento capaz de captar a atenção do Macaco, tanto quanto o
computador capta a sua. Ao virar as páginas, o Burro se vê preso à narrativa, ainda que
não tenha controle sobre seus personagens. Esse enlace se dá pela possibilidade dada
pelo livro para a construção de cenários e elementos descritos na obra, valorizando a
visão de mundo do leitor e de seu contexto social na atribuição de diferentes
perspectivas à mesma história.
A problematização na obra É um livro compreende-se pela abordagem da
facilidade do acesso à tecnologia pelas crianças. O livro, no entanto, mostra esse
contato a partir da aproximação entre duas realidades aparentemente muito distintas,
mas de maneira poética e despertando nelas o mundo imaginário, mostrando que, ainda
que ‘’o mundo virtual criou um novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo
encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque, do tato e do contato humano’’
(BOFF, 1999, p.11), há possibilidades de resgate da humanidade. Sendo assim, a obra
possui relevância ao tratar da literatura como uma manifestação artística e híbrida,
representada por múltiplas linguagens, capaz de despertar o interesse do indivíduo por
meio do contato com o sensível. Não restrita somente às crianças, a obra retrata e
possibilita o acesso à literatura, o deleite proporcionado pelo livro, o estímulo ao
imaginário, a percepção do mundo que circunda o leitor, a adaptação às mudanças e o
ganho de experiências por meio da sensibilidade.

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Considerações Finais
Ao deparar-se com as novas estruturas presentes no livro infantil e suas
relações dialógicas com a sociedade pós-moderna, educadores, pesquisadores, pais e
as próprias crianças potencializam-se enquanto seres sociais, materializando nele suas
vivências, práticas e subjetividades. Tal condição é oportunizada por meio das
diferentes linguagens inseridas dentro de uma obra híbrida, seja ela através do texto
verbal ou ilustrado, de sua arquitetura ou até mesmo da temática.
À medida que a presente pesquisa se desenvolve através da leitura, análise e
discussões de obras infantis híbridas, ela possibilita aos envolvidos a expansão de
ideias e percepções através dos teóricos fundantes utilizados e dos questionamentos
acerca do hibridismo nas novas conjecturas literárias, perpassando análises profundas
sobre “o que lemos”, “como lemos” e “para que lemos”.
Para além disso, volta-se o olhar para a necessidade do contato com a literatura
infantil, independentemente do contexto, e especialmente no espaço escolar, já que
oportuniza a discussão das obras ao passo que traz diferentes olhares e também
possibilita o contato efetivo com elas. Permitir que desde muito cedo as crianças tenham
acesso à obras híbridas é fazer com que já muito jovens consigam ampliar o repertório,
aguçar a leitura de mundo, aumentar a criticidade, desenvolver a sensibilidade, ler com
mais atenção e ver nas linguagens usadas e na palavra literária possibilidades de
diálogos mais humanos, que são cada vez mais ausentes na sociedade atual, mas que
precisam ser resgatados pela arte e pelos processos imaginativos.

Referências
BOFF, Leonardo. Saber Cuidar. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

BOYERS, Sara Jane (Org.). A vida não me assusta. Rio de Janeiro: DarkSide Books,
2018.

CAGNETI, Sueli de Souza. Leituras em contraponto: Novos jeitos de ler. São Paulo:
Paulinas, 2013.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da


modernidade. 4.ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto,
2009.

ESPERANDIO, Mary Rute Gomes. Para entender - Pós-modernidade. São Leopoldo:


Sinodal, 2007.

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FONSECA, João José Saraiva. Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UEC,
2002. Apostila.

GATTI, Bernadete a. Pesquisa, educação e pós-modernidade: confrontos e dilemas.


Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 126, 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/cp/v35n126/a04n126.pdf>. Acesso em: 06 jan. 2019.

RAMPAZO, Alexandre. Pinóquio: O livro das pequenas verdades. São Paulo: Boitatá,
2019.

SAMPAIO, Vitor F. Reflexão sobre o conhecer a si mesmo como acesso ao sentido.


Rev. Nufen, v. 5, n. 1, 2013. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rnufen/v5n1/a05.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2019.

SMITH, Lane. É um livro. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2010.

VAN DER LINDEN, Sophie. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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O CORDEL EM QUADRINHOS E O LEITOR EM FORMAÇÃO:
ENTRE A SEDUÇÃO DOS VERSOS E O ENCANTO DA IMAGEM

Naelza de Araújo Wanderley – Universidade Federal de Campina Grande /


PPGLE

Eixo Temático: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Considerações iniciais
Investigar o ato da leitura como uma atitude capaz de provocar transformações,
tanto naquele que se propõe a mediar o texto quanto naquele que o recebe e dele se
apropria, para modificar seu pensar e seu modo de agir, é entender que o processo de
formação de leitores deve, continuamente, fazer parte das discussões que permeiam a
educação brasileira em todos os níveis de ensino, uma vez que o leitor deve ser
despertado para o universo encantado das histórias o mais cedo possível.
A formação de leitores, entendida aqui como uma das atitudes primordiais a
ser assumida pelo docente, deve partir de uma postura de facilitação do ato de aprender,
que tem, na figura do professor, um dos principais agentes desse processo, enquanto
mediador do texto em sala de aula. Para isso, será necessário o desenvolvimento de
abordagens metodológicas que objetivem promover o desenvolvimento do leitor,
principalmente através de atividades voltadas para o compartilhamento de leituras e
para a discussão sobre o texto e suas diversidades.
Mesmo citando inicialmente o docente como parte responsável pelo processo
de formação do leitor, entendemos que este papel não cabe exclusivamente à escola
ou ao professor. Acreditamos que cabe também à família oportunizar ao leitor em
formação, desde muito cedo, não somente o encontro prazeroso com a leitura, mas
também a apropriação desta enquanto conquista que pode contribuir para a construção
de sua personalidade.
Nesse contexto, a leitura do texto literário pode se apresentar como uma
alternativa promissora, tanto no ambiente familiar como na sala de aula. Assim,
teceremos alguns comentários sobre aspectos que consideramos importantes para a
formação de leitores, como escolhas metodológicas adequadas que ponderem, entre
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outras coisas, sobre o contexto do aluno, as preferências textuais, assim como as suas
expectativas enquanto leitor, no seu sentido mais amplo.
Explorar a diversidade de textos que o cenário editorial brasileiro oferece ao
público leitor pode ser um dos aspectos a ser considerado pelo docente na seleção das
obras a serem apresentadas em sala de aula. E é dentro dessa diversidade textual que
citamos o trabalho com a literatura de cordel quadrinizada como uma possibilidade
didática para a mediação do texto literário em sala de aula. Como parte dessa literatura,
apresentamos, como textos a serem trabalhados em nossas sugestões metodológicas,
os folhetos quadrinizados O pavão misterioso, de José Camelo de M. Rezende, e A
batalha de Oliveiros com Ferrabrás, de Leandro G. de Barros, considerados verdadeiros
clássicos da literatura de cordel, enquanto narrativas que foram quadrinizadas numa
forma de adaptação pautada em projetos gráficos que buscam adequar os textos às
exigências do público.
Observar o processo de formação de leitores, desenvolvido a partir do trabalho
com a literatura de cordel em sala de aula, em diferentes realidades educativas,
possibilitou-nos, ao longo dos anos, a realização de investigações voltadas para o
processo de recepção desse texto literário por discentes em vários níveis de ensino.
Como resultado dessas observações, permitimo-nos apresentar como sugestão didática
mais essa possibilidade de leitura para a obra em cordel e para o texto em quadrinhos.
Acreditamos que essa literatura, apresentada ao leitor em formação através de um
suporte diferenciado, tem o potencial necessário para despertar novas perspectivas de
envolvimento do aluno com texto e apresenta-se como mais uma alternativa de
abordagem para o texto literário, tanto no que se refere às histórias em quadrinhos
quanto ao folheto de cordel.
Dessa forma, partindo de uma abordagem predominantemente bibliográfica,
esse estudo está voltado para o exame de questões teóricas sobre a formação do leitor,
centrando o enfoque na mediação do texto literário em sala de aula, especialmente no
que se refere ao trabalho com a literatura de cordel. De aspectos atinentes à ideia da
prática de leitura desenvolvida a partir da junção do texto poético (cordel) com o texto
em quadrinho, trabalhado em sala de aula através da utilização de estratégias de leitura
como recurso motivador da interação texto/leitor, nossa discussão está pautada em
teóricos como Abreu (2006), sobre o folheto de cordel; Alves (2018), sobre cordel em
sala de aula; Feijó (2010) e Cademartori (2012), quanto à adaptação dos clássicos;
Rouxel (2013) no tocante à mediação docente; Solé (1998) Girotto e Souza (2010),
quanto às estratégias de leitura. Para estudar a relação entre a obra literária e as HQs

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não nos ateremos a uma teoria específica, uma vez que há poucos estudos
desenvolvidos sobre a produção de quadrinhos enquanto adaptação do texto literário.
Contudo, sobre as histórias em quadrinhos, abordaremos teóricos como Cirne (1975) e
Cagnin (1975), e outros cujas reflexões abordam aspectos que fazem parte do roteiro
de discussões presentes neste trabalho.

A literatura em sala de aula: o folheto de cordel e as histórias em quadrinho

“... Alguns preferem a literatura; outros, os quadrinhos. Nós preferimos


os dois. Em alguns momentos, a literatura nos diz mais, ou muito mais;
em outros, o bom quadrinho nos é mais significativo.” (Moacy Cirne)

Trabalhar com o texto literário em sala de aula, especialmente com a poesia,


requer do professor, entre outras coisas, a capacidade de entender a prática de leitura
como contribuinte para a formação de subjetividades por parte do discente em qualquer
fase de sua formação enquanto leitor e enquanto ser, uma vez que o texto literário,
mesmo falando sobre o outro, permite ao leitor o reconhecimento de si na ideia
apresentada ou na história contada. Essa perspectiva do ato de ler favorece o leitor,
tanto no processo de (re)conhecimento acerca do outro quanto de si mesmo.
Dessa forma, entendemos a figura do professor como sendo um facilitador do
ato de aprender diante do jovem leitor. Segundo Rouxel (2013, p.29), o professor “é um
profissional que precisa vislumbrar, em função de diferentes parâmetros (idade dos
alunos, expectativas institucionais), que leitura do texto poderá ser elaborada na aula.”
Da mesma forma, esse facilitador deveria estar pronto para reconhecer no discente a
capacidade de aprender e assumir uma autoria em suas escolhas, no decorrer do
processo de aprendizagem, uma vez que a construção do conhecimento deve estar
pautada no diálogo constante entre quem ensina e quem aprende e não em conceitos /
práticas impostas a partir de monólogos apenas interpretados pela figura docente.
Partindo dessa ideia de mediação, consideramos a vivência e experiência de
leitura do professor como ponto crucial para que haja uma contribuição significativa para
a formação de uma atitude leitora por parte do discente. O encanto por determinado
texto, presente na fala momentânea de quem conta / canta uma história, é capaz de
seduzir o ouvinte / leitor com muito mais eficiência que várias “aulas” em que o texto é
apenas discutido dentro dos moldes estabelecidos pelo pragmatismo da sala de aula
tradicional.
Isto posto, acreditamos que o texto poético, especialmente a literatura de
cordel, pode se apresentar no contexto da sala de aula como uma possibilidade

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produtiva na conquista e formação de leitores pelos vários aspectos que traz em sua
estrutura, entre eles, a fantasia das narrativas poéticas, a linguagem, a ludicidade e,
mais recentemente, o acréscimo de recursos como a quadrinização de alguns poemas
canônicos dessa literatura.
Sobre o processo de apresentação da literatura de cordel ao público infanto-
juvenil no espaço escolar, é necessário ter em mente que, se a riqueza dos jogos de
linguagem e das temáticas abordadas por essa literatura é capaz de seduzir o leitor, a
forma como ela é didatizada pode distanciar o aluno do texto com a mesma eficácia.
Quando esse texto é apenas utilizado como pretexto para a apresentação de
determinados conteúdos ou como sugestão a ser seguida nas aulas de produção
textual, perde-se o encanto e a ludicidade que abrem as portas para o universo da
sonoridade e da fantasia que tem motivado e despertado o interesse de leitores
pertencentes ao público infanto juvenil.
No que se refere à produção de folhetos voltados para esse público, Alves
(2018, p. 52-54) afirma que: “Tradicionalmente, sabemos que os folhetos não eram
divididos em textos para adultos e para crianças, como passou a acontecer com a
criação da literatura infantil.” Entretanto, de acordo com esse autor, após a realização
de um levantamento, é possível apontar uma tendência que caminha nessa direção, ou
seja, “folhetos voltados para a infância (e alguns para a juventude).” Estes folhetos são
apresentados / divididos em dois grupos: o primeiro refere-se às adaptações, e o
segundo é o grupo dos “folhetos que tratam das aventuras e vivências de animais.” E é
justamente ao grupo das adaptações que vinculamos a nossa escolha, uma vez que
acreditamos ser a adaptação literária, reinventada em seus diversos suportes, um texto
que pode contribuir significativamente para a formação do leitor, ao ser utilizado em sala
de aula e fora dela, especialmente quando falamos aqui sobre o folheto cordel.
A literatura de cordel é uma forma peculiar de escrita literária que, no Brasil,
especialmente na região Nordeste, surge no final do século XIX, cria raízes e se mantém
viva até hoje, também graças à sua capacidade de se renovar sempre, mantendo para
o leitor o encanto dos versos e das histórias seculares. Nesta, homens simples,
legítimos representantes do povo, elaboram suas composições de modo que, segundo
Abreu (2006, p. 119), “A vida nordestina parece ser o palco e a fonte dos folhetos” que
contam as suas histórias. Ainda de acordo com a autora (2006, p. 118), “Os poetas
populares nordestinos escrevem como se estivessem contando uma história em voz
alta.” Isto porque essa literatura popular, mesmo escrita em versos, mantém fortes
vínculos com a oralidade.

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Hoje, esse “folheto” sofreu alterações significativas em vários aspectos de sua
apresentação, mas permanece a riqueza dos versos, das histórias e da linguagem. O
poeta continua conhecendo o público para quem escreve e respeitando todos os
requisitos para a apresentação de uma boa história e, em função disso, essa literatura
também teve que se adaptar a um novo contexto, com novas formas de imprimir e
apresentar seus versos através suportes inimagináveis, no princípio dessa literatura. É
dessa forma que a literatura de cordel e as histórias em quadrinhos se unem e se tornam
um só texto, a partir da elaboração de adaptações como forma de lançar novas
possibilidades rumo à conquista de novos leitores.
Ao falar sobre as adaptações de clássicos para o “público escolar”, Feijó (2010,
p. 42 - 43) vai defini-las como “textos novos construídos sobre enredos antigos” e como
“necessárias porque toda e qualquer sociedade precisa atualizar seus discursos, sejam
eles artísticos filosóficos, jurídicos, científicos, políticos, religiosos. São alicerces
fundamentais.” Cademartori (2012, p. 68 - 70), ao tecer comentários sobre obras
adaptadas, afirma que elas “exercem importante função tanto na formação quanto no
entretenimento do jovem leitor.” A autora afirma ainda que “As adaptações tornam
possível a proximidade com histórias frequentadas por gerações sucessivas e que
deixaram as suas marcas nas culturas por onde passaram.”
É dessa forma que entendemos as adaptações do cordel a partir da união entre
o quadrinho e o folheto (principalmente aqueles folhetos considerados parte do cânone,
no que se refere à literatura de cordel e que também deixaram as suas marcas em
gerações de leitores), gerando um novo texto que ultrapassa os limites da referência
intertextual, pois, de fato, surge não somente um, mas dois novos textos: um que pode
ser lido apenas a partir da imagem apresentada pelos quadrinhos, que ratifica a
definição de Cagnin (1975, p. 21), quando afirma ser a história em quadrinhos “uma
história em imagens”, que pode ser vista a partir da perspectiva literária como
“continuação do folhetim e do cordel”, e um outro texto em que se complementam
imagem e palavra. Cabe lembrar que, no caso aqui apresentado, a adaptação não se
trata de um “resumo” elaborado a partir da narrativa quadrinizada, mas de sua
reprodução na íntegra, uma vez que todos os versos dos poemas foram preservados
nas versões aqui apresentadas, mesmo que em diferentes perspectivas, como é o caso
do folheto O pavão misterioso, que tem a sua narrativa poética permeada de elementos
que anunciam, entre outros temas, a tradição narrativa do Ocidente, a temática religiosa
Cristã, o componente fantástico / maravilhoso e a contemporaneidade das máquinas do
início do século XX.

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O romance conta a história de dois irmãos, João Batista e João Evangelista,
que perdem o pai, um turco muito rico, e, após essa perda, João Batista resolve usar
parte de sua herança para viajar e conhecer o estrangeiro. Antes de partir, a pedido do
irmão João Evangelista, promete trazer de presente um objeto bonito e do gosto do
irmão. Evangelista é presenteado, por seu irmão, com um retrato da condessa Creusa,
que, conhecida por sua beleza, vive trancada por seu pai em um quarto de sobrado.
Uma vez por ano, o pai da condessa, “um conde muito valente”, permite que ela apareça
em público por uma hora para que todos contemplem sua beleza. Evangelista se
apaixona perdidamente pela imagem do retrato e vai até a Grécia com o intuito de casar
com a moça. Para atingir seu objetivo, ele contrata um engenheiro que inventa para ele
uma máquina na forma de um pavão que voa, permitindo que ele tenha acesso ao quarto
da condessa. Após muitas dificuldades enfrentadas, Evangelista consegue fugir com
Creusa em seu pavão voador e casar-se com a sua amada na Turquia, na casa de seu
irmão, regressando à Grécia apenas para receber a herança da condessa, uma vez que
o conde seu pai tinha morrido.
O folheto apresenta um poema composto por 141 estrofes (sextilhas
setessilábicas) e um acróstico final. Estes foram os versos que a editora paulistana
Prelúdio, no final da década de 1960, assume o risco de publicar quadrinizados pela
“arte” e desenho de Sérgio Lima. Já na primeira página dessa edição, a editora propõe
uma viagem ao leitor, proporcionada pelas “ilustrações dos melhores artistas do gênero”
e informa ao leitor que o folheto de cordel, transformado em revista de quadrinhos, em
nada alterará o texto no que se refere ao conteúdo, versos, rima ou métrica. Essa edição
não obteve muito sucesso junto ao público leitor da época. Entre as causas apontadas
para a pouca receptividade da obra, segundo Haurélio (2009, p.5), constava “a
inexistência de balões nos diálogos, o que comprometia o dinamismo que a linguagem
das HQs exigia.”
Klévisson Viana, em parceria com a Editora Luzeiro e Tupynanquim Editora,
algum tempo depois, atualiza o projeto gráfico desse texto adequando-o às exigências
do novo público leitor. Nessa nova proposta / adaptação, o projeto gráfico elaborado
para o texto corrige um dos erros da edição anterior e acrescenta os balões, elaborando
também uma redistribuição para os quadrinhos, bem ao gosto do público juvenil deste
século. Dessa forma, o texto propõe uma dupla leitura para um leitor também duplicado,
o amante tradicional do cordel e o amante de HQs. A partir de mais essa proposta de
leitura para a narrativa desse folheto, “O Pavão atemporal, com ecos de As mil e uma
noites e cheiro de ficção científica, voa para as estantes, movido pelo mesmo

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combustível que, há séculos, impulsiona a criação artística: o sonho.” (HAURÉLIO,
2009, p.6).

Figura 2 ̶ Capa e página do livro O pavão misterioso cordel em quadrinhos – 2010

Fonte: Camelo e Lima (2010)

Outro clássico da literatura de cordel que também foi adaptado através da


quadrinização foi o folheto A batalha de Oliveiros com Ferrabrás, do poeta paraibano
Leandro G. de Barros. O poema é composto por 101 estrofes (décimas setessilábicas)
e foi adaptado pelos ilustradores Klévisson Viana e Eduardo Azevedo. Publicado em
2012 pela editora Nova Alexandria, o texto quadrinizado, assim como acontece com a
segunda publicação do texto anteriormente citado, mantém todas as estrofes do folheto
e acrescenta a estas os recursos comuns ao texto das histórias em quadrinhos, como
recurso de aproximação com o público leitor. Segundo Marco Haurélio (2012), na
apresentação da adaptação, essa versão “apresenta às novas gerações, em um formato
mais do que atraente, um dos melhores textos poéticos daquele que, no cordel, foi
cognominado O Primeiro sem Segundo.” O poema narra um episódio que remete o leitor
à História de Carlos Magno e os Doze Pares de França, um antigo romance de cavalaria.
Na história, Oliveiros, um dos 12 cavaleiros do Rei, enfrenta Ferrabrás, o líder dos
turcos, que desafia os paladinos de Carlos Magno para um combate. A partir daí,
acontece uma grande luta entre estes dois grandes cavaleiros e, ao final desta,
Ferrabrás é derrotado e obrigado à conversão.

Figura 2 ̶ Capa e páginas do livro A batalha de Oliveiros com Ferrabrás, em quadrinhos

Fonte:Viana e Azevedo (2012)


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E é a partir dessas adaptações que pensamos o cordel quadrinizado como uma
proposta / caminho para experienciar o trabalho com a leitura literária em sala de aula,
objetivando a articulação lúdica de conhecimentos e a formação do leitor por meio de
atividades prazerosas. Dessa forma, acreditamos que é possível sugerir o uso de
algumas estratégias de leitura como parte do processo de mediação da literatura de
cordel junto ao discente, enquanto recurso motivador da interação texto / leitor no
desenvolvimento de um trabalho voltado para a atividade de leitura em sala de aula, a
partir desse gênero narrativo.

O cordel quadrinizado na sala de aula


Ainda que a literatura de cordel e as Histórias em quadrinhos (HQs) tenham
sido consideradas, inicialmente, pelos estudos tradicionais como literaturas marginais,
cremos que o texto do cordel quadrinizado pode contribuir significativamente para a
formação de jovens leitores. Para tanto, é necessário que o docente, ao exercer a
função de mediador do texto literário em sala de aula, reconheça-o também como um
caminho que busca a aproximação entre texto e leitor. Dessa forma, enquanto
educadores, não podemos apenas sequenciar conceitos preestabelecidos por parte de
uma crítica tradicional, que desconsidera aspectos essenciais ao leitor, em qualquer
estágio de sua formação. Sabemos que, comumente, em nossas escolas, o professor
encontra / apresenta algumas dificuldades ao trabalhar com o texto poético no dia a dia
da sala de aula e que muitos são os motivos apontados para a quase ausência do
trabalho com a poesia junto aos discentes.
Esse quadro se acentua um pouco mais quando investigamos o trabalho com o
texto poético a partir da literatura de cordel. Imagine quando colocamos em uma escala
gradativa poesia, poesia em cordel e histórias em quadrinhos. Essa realidade se deve
aos mais diversos fatores que vão desde a formação do docente até o pouco ou nenhum
conhecimento acerca dos referidos gêneros enquanto caminho didático a ser percorrido
em nossas escolas, visando à formação do leitor. É imprescindível que o docente,
também enquanto leitor, conheça ou procure conhecer as peculiaridades de cada
gênero para que seja possível apresentá-los em sala de aula envoltos do encanto
necessário para a sedução do ouvinte / leitor.
Ao sugerir o cordel quadrinizado como texto literário a ser trabalhado pelo
professor, na difícil tarefa de formar leitores, entendemos que “Todas as ‘literaturas’ [...]
são importantes e têm sua razão de ser” e que o leitor pode ser definido como alguém

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que sabe “usufruir os diferentes tipos de livros, as diferentes ‘literaturas’” (AZEVEDO,
2009, p. 38-39). Vislumbramos aqui o professor como um profissional sempre aberto
a novas possibilidades de leitura e mediação, assim como a figura do leitor em formação
como alguém sempre disposto a “usufruir” de novas experiências de leitura.
No desenvolvimento do trabalho com o texto literário em sala de aula, a partir
do gênero anteriormente citado, compreendemos o uso de estratégias de leitura como
atividades selecionadas pelo docente visando facilitar o processo de interação entre
texto e leitor. Durante o planejamento dessas atividades, é importante que o professor
tenha em mente o papel de adaptabilidade requerido por cada estratégia, uma vez que
elas podem e devem variar de acordo com o texto e com a abordagem escolhida, visto
que, “no ensino elas não podem ser tratadas como técnicas precisas, receitas infalíveis
ou habilidades específicas”. (SOLÉ, 1998, p. 70) Assim sendo, as atividades planejadas
devem permitir ao estudante a percepção das relações estabelecidas durante a leitura,
de forma que sejam desenvolvidas estratégias voltadas para a construção de uma
leitura crítica, uma vez que a postura assumida pelo leitor diante do texto a, partir da
utilização de estratégias, é o que propicia a compreensão e a construção de sentidos.
Como parte do planejamento dessas atividades, está, inicialmente, a seleção
do texto a ser apresentado em sala de aula. Destacamos aqui que, no caso de nossa
proposta de leitura, essa escolha será realizada pelo professor sem a participação do
aluno, uma escolha “dirigida”. Esse momento se torna ainda mais “determinante para a
formação de sujeitos leitores” (ROUXEL, 2013, p.23), pois, além dos muitos aspectos /
entraves a serem considerados / vencidos, estão também a leitura pessoal do docente
e a concepção que esse profissional tem acerca do texto a ser apresentado / mediado
em sala de aula.
Uma vez realizada essa escolha, abre-se o espaço para que o docente
desenvolva sua proposta de leitura a partir de “oficinas de leitura”, definidas por Girotto
e Souza (2010, p. 59) como “momentos específicos em sala de aula em que o professor
planeja o ensino de uma estratégia.” Ao criar uma oficina de leitura, é necessário
considerar que o desenvolvimento da atividade de leitura demanda “tempo e prática”.
Assim sendo, em uma aula introdutória, o professor pode partir de uma das estratégias
de leitura (conhecimento prévio, conexão, inferência, visualização, perguntas ao texto,
sumarização e síntese) ou de elementos do texto a ser trabalhado (SOUZA, 2019, p. 5).
Nossa ideia para a realização de oficinas pode ser direcionada para o público
dos anos finais do Ensino Fundamental. Essas sugestões foram elaboradas
objetivando, principalmente, o estímulo à leitura da literatura de cordel em sala de aula;

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a conscientização docente e discente acerca da importância das estratégias de leitura
no processo de formação do leitor, através do ensino de literatura, e a apresentação do
gênero cordel em quadrinhos enquanto texto literário a ser trabalhado em sala de aula
a partir das múltiplas possiblidades de leitura suscitadas pelas obras sugeridas.
No caso dos textos aqui apresentados, sugerimos inicialmente que o docente
tenha, como ponto de partida para a leitura dos cordéis quadrinizados, O pavão
misterioso e A batalha de Oliveiros com Ferrabrás, a abordagem sobre o conhecimento
prévio, uma vez que ele “é a base para todas as outras estratégias de leitura, porque o
leitor não consegue entender o que está lendo sem pensar naquilo que já conhece.”
(SOUZA, 2019, p. 12) O estabelecimento de relações entre o que eles já conhecem e
as informações apresentadas pelos textos está na base do processo de compreensão
do conteúdo lido.
Em nossas sugestões optamos por uma estratégia de leitura centrada nas
conexões, visto que “Ensinar as crianças a ativar seus conhecimentos prévios, bem
como seus conhecimentos textuais, e pensar suas conexões é fundamental para
compreensão.” (GIROTTO; SOUZA, 2010, p. 67) Ainda segundo as autoras, há três
tipos de conexões possíveis: texto para texto, texto para leitor e a texto-mundo.
Sugerimos aqui, no caso das obras escolhidas para a mediação nas oficinas,
um destaque para o ensino da conexão texto – texto, visto que, durante da leitura dos
textos citados, é possível ao leitor o estabelecimento de relação com outros textos
pertencentes aos mais diversos gêneros. Em O pavão misterioso, é presumível, entre
outros textos, o reconhecimento de passagens comuns a algumas narrativas de As mil
e uma noites, a proximidade com a História de Aladim, ou a lâmpada maravilhosa e com
contos dos Irmãos Grimm, como Rapunzel e O fiel João. Do mesmo modo, em A batalha
de Oliveiros com Ferrabrás, é cabível aos leitores a retomada de filmes que tenham
como tema a bravura e a heroicidade dos cavaleiros medievais, assim como alguns
desenhos animados e jogos eletrônicos, também voltados para essa temática.
Ao considerarmos a conexão entre texto e leitor, o aluno pode suscitar
episódios de sua vida, centrados na temática amorosa, lembrando que essa fase da
vida do jovem leitor é fértil de amores possíveis e impossíveis, assim como de muitos
desafios e lutas a serem enfrentadas, verdadeiras batalhas a serem vencidas todos os
dias. Já na conexão texto e mundo, podem ser estabelecidas relações com a ideia de
fantasia, com o poder da tecnologia e seus avanços e com a observação sobre valores
éticos como honra e religiosidade na contemporaneidade, nos textos sugeridos,
respectivamente. Observemos aqui apenas algumas das muitas possibilidades de

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trabalho que podem surgir a partir das estratégias de conexão sugeridas para a
mediação dessa literatura em sala de aula.
Ainda pensando as conexões enquanto estratégias de leitura, como ponto de
partida para as sugestões de atividades de leitura, retomamos a fala de Girotto e Souza
(2010, p. 69), quando afirmam que os “leitores também fazem conexões com a natureza
dos textos e as características literárias”, para indicar outras possíveis atividades na
mediação dos textos O pavão misterioso e A batalha de Oliveiros com Ferrabrás em
sala de aula. Assim, destacamos a importância da observação do professor e do
conhecimento do aluno acerca de alguns elementos da conexão apresentados pelas
obras, para uma melhor compreensão do texto a ser lido, e sugerimos, a partir das obras
citadas, uma análise sobre a natureza dos textos e de suas características literárias
voltadas para os aspectos a seguir:
Os textos como pertencentes a um gênero híbrido, uma vez que se trata de
narrativas poéticas (cordel) que foram adaptadas para o universo das histórias em
quadrinhos; o formato apresentado por esses textos, rico em recursos poéticos e em
imagens que já seduzem o leitor a partir do colorido das imagens ilustrativas de cada
capa, permite uma leitura, pelo menos dupla, das obras; o reconhecimento do estilo dos
autores enquanto poetas populares, no nível verbal do texto, assim como dos
ilustradores, no nível não verbal; a percepção acerca da estrutura do texto como uma
narrativa que se apresenta ao leitor a partir da junção da imagem / desenho e do texto
poético / linguagem escrita.
Também sugerimos a observação / reconhecimento das características
comuns aos dois tipos de literatura, a literatura de cordel e a história em quadrinhos,
para que o leitor possa melhor compreender o texto que nasce a partir da junção dessas
duas formas narrativas, dessas duas linguagens, poética e quadrinística. De acordo com
Girotto e Souza (2010, p. 70), “Quando os leitores pensam sobre as conexões que
fazem com as características e natureza do texto, estabelecem uma Conexão –
Literária.”
Diante do exposto, ratificamos a ideia de que é necessária sempre a busca por
novos caminhos para a formação de leitores e de que o desenvolvimento de uma prática
de leitura a partir da elaboração de oficinas de leitura, através das quais o professor,
enquanto mediador da(s) estratégia(s) de leitura a ser(em) trabalhada(s) e também das
adaptações de clássicos da literatura de cordel que foram quadrinizados, pode contribuir
sim para o / a desenvolvimento / construção do jovem leitor em nossas escolas.

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Considerações finais
A formação do leitor tem sido tema de debate constantemente, retomado nas
pesquisas sobre a atividade de leitura. Mesmo quando a família participa dessa
formação, a escola ainda é o espaço das descobertas e do exercício dessa atividade,
cabendo, quase que exclusivamente, ao professor, essa difícil tarefa. A formação do
leitor literário, por sua vez, exige, para a mediação do texto, o desenvolvimento de
práticas leitoras que proporcionem ao aluno leitor aprendizagem e compreensão acerca
do texto que está sendo lido. Entretanto, isso só é possível quando a literatura é
abordada através do uso de estratégias de leitura que permitam ao leitor / aluno, não
somente compreender o texto literário, mas também entender as estratégias como
caminhos a serem percorridos no ato da leitura de forma ampla.
Isto posto, desejamos aqui sugerir caminhos para a prática docente de
mediação do texto literário em sala de aula, vislumbrando ser possível contribuir com a
formação leitores na escola a partir da literatura de cordel quadrinizada. Esclarecemos,
mais uma vez, que nenhuma metodologia aplicada no processo de formação de leitores
deve ser entendida como receita pronta e acabada. É necessário que, a partir das
muitas realidades encontradas em nossas salas de aula, planejemos as nossas
atividades observando sempre o melhor caminho a ser seguido e os ajustes
imprescindíveis para a promoção do encontro entre o leitor e o texto, para que esse
encontro seja duradouro. Em síntese, almejamos, com as nossas sugestões, contribuir
para a promoção do ensino da leitura literária na escola, com vistas à formação e
desenvolvimento do leitor de literatura.

Referências
ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. 2.ed. São Paulo: Mercado das Letras,
2006.

ALVES, José Helder Pinheiro. Cordel para crianças: aspectos temáticos e


metodológicos ou um sabiá na sala de aula. In: DEBUS, E.; BAZZO, J. L. S.;
BORTOLOTTO, N.. Org. Poesia cabe na escola: por uma educação poética. Campina
Grande: EDUFCG, 2018.

AZEVEDO, Ricardo. Formação de leitores e razões para a literatura. In: SOUZA,


Renata Junqueira de (Org.). Caminhos para a formação do leitor. São Paulo: DCL,
2009.

CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes.


2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos. São Paulo: Ática, 1975.

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CAMELO, José. O pavão misterioso em quadrinhos. São Paulo: Editora Prelúdio, [196-
].

CAMELO, José; LIMA, Sérgio. O pavão misterioso: cordel em quadrinhos. São Paulo:
Editora Luzeiro e Tupynanquim Editora, 2010.

CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica à narrativa


quadrinizada. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1975.

FEIJÓ, Mário. O prazer da leitura: como a adaptação de clássicos ajuda a formar


leitores. São Paulo: Ática, 2010.

GIROTTO, Cyntia; SOUZA, Renata. Estratégias de leitura: para ensinar alunos a


compreenderem o que lêem. In: SOUZA, Renata (org.) Ler e compreender: estratégias
de leitura. Campinas, Mercado de Letras, 2010.

HAURÉLIO, Marco. O Clássico do cordel em quadrinhos. In: CAMELO, J.; LIMA, S.. O
pavão misterioso: cordel em quadrinhos. São Paulo: Editora Luzeiro e Tupynanquim
Editora, 2010.

HAURÉLIO, Marco. Apresentação. In: VIANA, K. ; AZEVEDO, E. A batalha de


Oliveiros com Ferrabrás. [Adaptado da obra de] Leandro G. de Barros. São Paulo:
Nova Alexandria, 2012.

ROUXEL, Annie. Aspectos metodológicos do ensino de literatura. In: DALVI, M. A.;


REZENDE, N. L.; JOVER-FALEIROS, R. (Org.) Leitura de literatura na escola. Trad.
Neide Luzia de Rezende. São Paulo: Parábola, 2013.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto alegre: Artmed, 1998.

SOUZA, Renata Junqueira de. Ler e ensinar: estratégias de leitura. Tubarão, SC:
Copiart, 2019.

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QUEM, O QUÊ, ONDE, COMO, QUANDO E POR QUÊ?
REFLEXÕES SOBRE MEMÓRIAS DE LEITURA NO PERCURSO
DO FORMADOR

Camila Feltre, UNESP/CAPES, A CASA TOMBADA


Cristiane Rogerio, UNESP, A CASA TOMBADA

Eixo Temático: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Deixo aos vários futuros (não a todos)


meus jardins de veredas que
se bifurcam.
Jorge Luís Borges133
Considerações iniciais
Como o próprio título já indica, este texto é um apanhado de perguntas que nos
acompanham durante o nosso trabalho como professoras de formação em contato com
educadores, mediadores, professores, bibliotecários, mães e aquelas e aqueles que
estão em contato com a criança e com o livro, que chamamos de “formadores”.
Sugerindo mais perguntas do que respostas, pretendemos com este texto convidar a
uma reflexão sobre o tema “memória de leitura” e também instigar você, leitora ou leitor
deste texto, a pensar sobre sua própria memória de leitura, uma situação ou mais,
descobrir ou reinventar a própria memória de infância, já que como nos diria o poeta
Manoel de Barros “Tudo o que não invento é falso” (BARROS, 2013, p.319).
Sendo assim, convidamos a pensar: você se lembra de uma experiência de
leitura que tenha marcado a sua trajetória? Quais histórias compõem a sua memória?
Pode ser: memórias de infância com livros, memórias de infância sem livros em casa,
poucos livros, muitos livros, livros seus, livros da família, livros herdados, memórias de
idas à biblioteca ou livrarias, memória de mediação, leitura em voz alta, presentes,
empréstimos, indicações, memórias de desejar, memórias de quem fez o convite,
memórias de onde se leu, se lia, não há ausências de memórias com livros.
Ainda neste exercício de rememorar: você estava acompanhada ou
acompanhado? Era alguém da família? Uma professora ou uma bibliotecária que lhe

133
BORGES, Jorge Luís. Ficções. Companhia das Letras: São Paulo, 2015. p.88.
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ofereceu um livro? Outra criança, talvez? Você se lembra do local? Era na sua casa, na
biblioteca, ou em um parque? Como era este lugar? Tem cheiro, cor, textura? Quando
foi que esta experiência aconteceu? Você se lembra de como era este livro? O tamanho,
as cores, o cheiro, a capa? Ou podemos pensar num outro tipo de memória em que o
livro não está presente? Isto é possível? Talvez sim, se pensarmos nas tantas situações
em que somos impedidos de ler.
Com estas perguntas partimos para uma pesquisa que investiga: do que são
feitas as nossas memórias quando pensamos em livro e leitura? Quais acontecimentos
podemos nomear como experiências de leitura? “Experiência” no sentido daqueles
acontecimentos que marcam o tempo, distinguem o que veio antes e o que veio depois.
Nas palavras do pesquisador francês John Dewey: a experiência “define-se pelas
situações e episódios a que nos referimos espontaneamente como ‘experiências reais’
- aquelas coisas de que dizemos, ao recordá-las: ‘isso é que foi experiência’” (DEWEY,
2010, p.110). Também podemos considerar a experiência como “aquilo que nos
acontece, nos sucede” (LARROSA, 2014, p.250), “o que nos passa, o que nos acontece,
o que nos toca” (LARROSA, 2014, p.18). Sendo assim, o que trazemos à tona, quando
estas memórias nos invadem?
A partir de relatos de “formadores” que compõe a nossa rede, como agentes
de literatura, professoras, editoras, mediadoras, jornalistas da área de cultura, entre
outros, tecemos o texto dialogando com autores que contribuem para entendermos
melhor sobre os elementos da nossa memória e como esta questão está imbricada na
história do nosso país em relação a políticas públicas, planos de governos, atuação de
profissionais que lutam e resistem por acesso à literatura e ao livro. Buscamos relações
de pessoas com o objeto livro, entendendo que elas podem se dar com as múltiplas
linguagens e não somente em relação ao texto ou ao conteúdo.
Como material de estudo, temos relatos coletados em redes sociais,
depoimento durante aulas, escritas como exercício de aulas - as “Resenhas-Afetivas” -
e conversas com parceiros sobre o assunto. Enfim, uma bricolagem de vozes que nos
trazem elementos e nos convidam a refletir sobre o tema. Para isto, traremos além de
autores como Bruno Munari e Apolline Togressora, pensando nos elementos que
constituem a memória (sentidos, ambiente), a pesquisadora Eliana Yunes, filósofa e
doutora em Linguística e Letras, com seu trabalho em torno das questões da leitura com
a oferta de livros na década de 1980. Também entra em nossa pesquisa a professora
Nelly Novaes Coelho, pioneira em levar a relação do professor com uma "nova" literatura
infantil promovida na década de 1970. Sobre as questões propriamente da memória,

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estarão conosco o cientista argentino Ivan Izquierdo e a psicóloga e pesquisadora Ecléa
Bosi.

Memórias que evocam os sentidos

Figura1: Livros-memórias: a aparência da idade do livro, o reconhecimento da


coleção, o clássico em evidência com o afetivo. Fotografia de Cristiane Rogerio.

Fonte: Acervo Pessoal.

Comumente quando se pergunta sobre memória de leitura, as respostas


tendem a vir em formato de lista de livros ou trechos de histórias. Para nossa pesquisa,
no entanto, nos interessava o Quem, Onde, Como, Quando e Por quê. A partir desta
foto, postada em uma rede social antes de um encontro em que nós, autoras deste texto
e professoras n´A Casa Tombada, iríamos abordar sobre materialidade e memória,
fizemos a pergunta: “Quando você olha lá para os seus livros da infância... Que cheiros
eles tinham? Que sabor pareciam? Que cantos aparecem?” (ROGERIO, 2019).
E as respostas nos trouxeram alguns caminhos para pensar quais elementos
estão presentes quando se pensa em memória de leitura, além do próprio livro. Beatriz
Fiorotto, jornalista e produtora na área cultural, nos traz uma questão muito presente
nos relatos: “O Pote Vazio134 era um livro muito grande para minha mão e eu sempre
tinha que ler apoiando no chão ou no colo. A capa era lisa e geladinha”. 135 Ela nos traz

134
Pote vazio, livro de Demi, Editora Martins Fontes, 1990.
135
FIOROTTO, Beatriz. [Comentário realizado na publicação de Cristiane Rogerio em sua rede
social: facebook]. In: ROGERIO, Cristiane. Um pedido uma pergunta. São Paulo, 29 ago. 2019.
Facebook: cristiane rogerio. Disponível em:
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o tamanho do livro, a textura e a temperatura como características marcantes nesta
relação. Curiosamente, quando ela cita outra fase do seu percurso leitor, o mesmo tipo
de descrição reaparece.
Mais tarde, o Gênio do Crime136 me marcou também. A capa era lisa,
o livro tinha cheiro de guardado (porque comprei usado). E tinha umas
manchas nas páginas que eu acho que foi de ter pegado alguma chuva
na mochila. Ele tinha as pontas já meio esgarçadinhas e macias, e eu
ficava passando a mão ali enquanto lia. Nunca esqueci de várias cenas
dele.137

Como a memória guarda essas materialidades do livro? É curioso que o que a


Beatriz evidencia na resposta está menos ligado à sinopse e mais com a relação
sensorial com o livro. O conteúdo aqui não é explicitado, mas sim outras características
do objeto livro e suas marcas no tempo. O francês Michel Melot nos convida a pensar o
livro não somente como um suporte para os benefícios da leitura e, sim, um suporte em
si.

Há diversas maneiras de amar os livros, e o amor à leitura não pode


ser a principal. Não estando o amor aos livros completamente
submetido à leitura, como se costuma pensar, ele bem poderia
sobreviver aos computadores. Pelo menos, é o que nos ensinam os
mais aguerridos defensores, a saber, que o livro não é um objeto para
o uso da razão, mas um objeto sobre o qual se guarda uma paixão. Ele
poderia, porventura, sobreviver por suas qualidades funcionais, estas
mesmas que outros suportes não possuem. (MELOT, 2012, p.147)

Faz diferença na sua história com a leitura guardar estas memórias? O que
elas incorporam na relação com o livro pela vida toda? Afinal, o que é memória?

Podemos afirmar, conforme Norberto Bobbio, que somos aquilo que


recordamos, literalmente. Não podemos fazer aquilo que não
sabemos, nem comunicar nada que desconheçamos, isto é, nada que
não esteja em nossa memória. Também não estão à nossa disposição
ou conhecimentos inacessíveis, nem fazem parte de nós episódios dos
quais esquecemos ou que nunca vivemos. O acervo de nossas
memórias faz cada um de nós ser o que é: um indivíduo, um ser para
o qual não existe outro idêntico. (IZQUIERDO, 2018, p.2)

Se podemos ser apenas "um", como a leitura se transfere de um ato individual


para o coletivo e do coletivo para o individual? Faz-nos querer citar uma escrita do

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=2922368781109838&set=pb.100000102356905.-
2207520000..&type=3&theater. Acesso em: 20 ago. 2020.
136
O Gênio do Crime, livro de João Carlos Marinho, Editora Brasiliense/Global, 1969/1986.
137
FIOROTTO, Beatriz. [Comentário realizado na publicação de Cristiane Rogerio em sua rede
social: facebook]. In: ROGERIO, Cristiane. Um pedido uma pergunta. São Paulo, 29 ago. 2019.
Facebook: cristiane rogerio. Disponível em:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=2922368781109838&set=pb.100000102356905.-
2207520000..&type=3&theater. Acesso em: 20 ago. 2020
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pedagogo e narrador de histórias Magno Rodrigues Faria em suas redes sociais. Em
dia de organização dos próprios livros, ele teve ali um encontro poético com as suas
memórias daqueles objetos que arrumava na estante.

Cada livro, óbvio, tem muitas histórias. Pessoas, lugares, pessoas,


vivências e afetos. E isso também impacta como você lê, não? O livro,
o autor (a) e obra se vinculam a esta história. De quantas pessoas você
se lembra ao limpar/organizar os livros? E eu que já proferi que não
gosto de ler me coube, dentre mil possibilidades da licenciatura em
Pedagogia, trabalhar em uma biblioteca! (FARIA, 2020)

Qual é o lugar, então, destas emoções todas? O cientista argentino Ivan


Izquierdo nos diz que continua acontecendo algo completamente biológico: seria o corpo
da pessoa diante do corpo do livro que muda uma memória de leitura?

Os maiores reguladores da aquisição, da formação e da evocação das


memórias são justamente as emoções e os estados de ânimo. Nas
experiências que deixam memórias, aos olhos que veem se somam o
cérebro – que compara – e o coração – que bate acelerado. No
momento de evocar, muitas vezes é o coração quem pede ao cérebro
que lembre, e muitas vezes a lembrança acelera o coração.
(IZQUIERDO, 2018, p.4)

O italiano Bruno Munari, designer, artista e autor de livros, nos chama a atenção
de como o sensório faz parte da relação da criança com o conhecimento do mundo.

Por volta dos três anos, a criança começa a conhecer as formas e as


cores dos objetos; pelo tato aprende a distinguir as coisas macias das
duras, as lisas das rugosas, as elásticas das rígidas....Não sabe ainda
os nomes dessas qualidades, mas já as vivenciou na sua experiência
cotidiana (MUNARI, 1998, p.238)

Munari é criador dos “Pré-livros”, 12 livros de 10x10cm com diferentes materiais


como madeira, feltro, plástico, etc, encadernações, texturas e narrativas e vem dentro
de uma caixa com sugestão de que se manuseie todo como numa biblioteca “ideal”.
Para Munari, “O conhecimento do mundo, para uma criança, é do tipo plurisensorial”
(MUNARI, 2011, p.3) (Tradução nossa)138. Assim, na relação livro e leitor, está em jogo
muito mais que o conteúdo em si: também a multiplicidades de sentidos que o ato de ler
pode provocar.

138
La conoscenza del mondo, per um bambino, è di tipo plurisensoriale.
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Onde ler: o espaço como mediador
Poderia estar em qualquer lugar do mundo, mas não, está ali. Será que este
lugar influencia na experiência de leitura? A formadora de professores, Ana Carolina
Carvalho traz o lugar como parte importante da memória.

Meu Pé de Laranja Lima139 e esse do coelhinho desta coleção de


lombada dourada140. Me lembram a sala de casa ou o gramado da casa
dos meus avós, na fazenda. Me lembram férias. Ou manhãs antes da
escola, no caso dos livrinhos da lombada dourada. Saudade.141

O que há nestes lugares para que a experiência de leitura aconteça? Um


exercício proposto em aula por uma das autoras deste artigo, Cristiane Rogerio, visa
justamente puxar pela memória o momento desta experiência. Impulsionado pelo afeto,
o estudante é convidado a escolher um livro “que salvaria de um incêndio”, narrando o
contexto que fez desta leitura ser uma experiência de fato. A atividade é nomeada de
“Resenha-Afetiva” e tem por objetivo fazer uma indicação de leitura a partir da escrita
de si.
Para falar do livro “Fada cisco quase nada”, de Sylvia Orthof e Eva Furnari, a
professora de educação infantil Dayane Monteiro descreveu algo da infância.

Passei minha infância inteira em uma casa com jardim, minha mãe
sempre teve o que popularmente costumam chamar de “mãos boas”
para plantar, por isso tudo ali florescia e até hoje floresce. As tardes
tinham muita cor e minha pequena natureza abraçava o meu desejo de
navegar na imaginação pós-leitura. Em casa eu não tinha companhia
das páginas do “meu livro” encantador, pois ele, enquanto objeto físico,
pertencia à escola. Mas sua história era toda minha, eu tinha o direito
sobre minha imaginação e por isso lembrava de cada detalhe daquela
casinha e pensava: se tem uma fada naquela rosa, também vai ter uma
aqui no meu jardim.142

139
Meu Pé de Laranja Lima, livro de José Mauro de Vasconcelos, Editora Melhoramentos, 1968.
140
Coleção Beija-flor, livro de Bárbara Steincrohn Davis e Benvenuti, Tradução e Adaptação de
Ruth Rocha, Editora Abril, 1976.
141
CARVALHO, Ana Carolina. [Comentário realizado na publicação de Cristiane Rogerio em sua
rede social: facebook]. In: ROGERIO, Cristiane. Um pedido uma pergunta. São Paulo, 29 ago.
2019. Facebook: cristiane rogerio. Disponível em:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=2922368781109838&set=pb.100000102356905.-
2207520000..&type=3&theater. Acesso em: 20 ago. 2020
142
“Resenha-Afetiva” escrita pela estudante Dayane Monteiro durante disciplina ministrada pela
professora Cristiane Rogerio na pós-graduação “O livro para a infância” n´A Casa Tombada em
2018.
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A professora Apolline Togressora traz o ambiente como algo presente nas
aulas de educação artística. Para ela, existe uma “climatosofia” propícia para a formação
acontecer.

Este espaço interior, acolhedor, é aquele que define os contornos da


formação de cada pessoa. Esses espaços educativos como microclima
geram esse calor, uma temperatura afetiva onde é bom viver, onde é
possível estar, nele nos imergimos, nos envolve como uma aura vital.
(TORREGROSA, 2012, p.36) (Tradução nossa) 143

Então, podemos pensar que esses ambientes marcantes como o gramado na


casa dos avós ou o jardim da mãe, são como um território propício à experiência de
leitura, de estar junto, de ficar com um livro, de viver junto. Incorporar, como Apolline
nos explica:

Incorporar-se implica a dimensão do corpo e torna-se essencial, onde


etimologicamente incorporar vem de encarnar: faz entrar (no corpo
místico) mas também misturar intimamente (substâncias), lembrando-
nos da participação no meio, na dimensão formativa. (TORREGROSA,
2012, p.35) (Tradução nossa)144

A professora Ligia Pin lembra do próprio corpo nessa relação direta com o livro:

Recebi com os olhos brilhantes a coleção contos e cantigas


brasileiras145 – seis livros num pacote só! – tantas histórias de
artimanhas, tantas cantigas que embalaram a minha infância...E tudo
guardado em livros coloridos [...]. Creio que tinha sete ou oito anos. Os
livros passaram a fazer parte do meu corpo, pois os carregava pelos
quatro cantos da casa, para a escola (a real e a de mentira, que eu
montava no quintal de casa) e até mesmo em viagens.146

Com tudo isso, podemos pensar neste corpo como parte de algo, sempre em
relação com outros, com seu contexto e formas de pensamentos.

143
Este espacio interior, cálido, es el que alabea los contornos de la formación de cada uno.
Estos espacios educativos como microclima generan este calor, una temperatura afectiva donde
es bueno vivir, donde es posible ser, nos sumergimos en ella, nos envuelve como un aura vital.
144
Incorporarse implica la dimensión del cuerpo y se hace primordial, donde etimologicamente
incorporar proviene de encorporer: hace entrar (en el cuerpo místico) pero también mezclar
íntimamente (substancias), recordándonos la participación al ambiente, a la dimensión formativa.
145
Coleção Contos e Cantigas Brasileiras, livro de Maria Thereza Cunha de Giacomo e Heinz
Budweg, Editora Melhoramentos, 1975.
146
“Resenha-Afetiva” escrita pela estudante Ligia Pin durante disciplina ministrada pela
professora Cristiane Rogerio na pós-graduação “O livro para a infância” n´A Casa Tombada em
2018.
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As políticas públicas de educação e as relações com a leitura do formador
Surgiu de nossa experiência na coordenação do curso de pós-graduação “O
Livro Para a Infância”, uma espécie de malha que é trançada, das mais variadas formas,
por três palavras: criação, circulação e mediação. Elas, no nosso objeto de estudo e
motivo de convivência com dezenas de mediadores de leitura, associam-se às relações
vistas nos processos contemporâneos da produção do que é chamado de “literatura
infantil” ou “literatura para crianças e jovens”, ou “literatura infantojuvenil” mas que, para
nós, coube nomear como “literatura para a infância”. Livro, infância, criação, circulação
e mediação são termos que borram suas fronteiras a partir de si para o todo – ou a partir
do todo para cada um de seus significados ou atribuições.
É mexendo cada vez mais na potência de relação entre estas cinco palavras,
que notamos a influência das questões de políticas públicas no universo do livro no
Brasil. Com elas, estão envolvidas desde a formação de professores e artistas, até o
acesso ou os tipos de acervos que podem ser encontrados nas mais variadas formas
de bibliotecas no país. Em 2020, vivemos um impasse: embora tenha sido sancionada
em 2018 a Lei 13.696/18, conhecida como Lei Castilho, a Política Nacional de Leitura e
Escrita (PNLL) promulgada justamente para abranger e acolher como marco legal os
diversos aspectos educacionais, sociais, econômicos e políticos das questões da
universalização da leitura, ainda está repleta de incertezas de sua real existência.

Não basta ter livro, biblioteca com porta aberta, bom atendimento e
títulos na prateleira se não tem ninguém que faça essa mediação entre
o não-leitor e o livro. É preciso ter alguém que incentive. Por isso
precisamos ter cada vez mais bibliotecários, agentes culturais,
mediadores. A biblioteconomia no Brasil tem uma tradição muito forte
do ponto de vista técnico, é muito avançada na classificação dos livros,
organização do acervo, constituição de coleções, mas não oferece
curso de mediação de leitura. Então, muitas vezes, este profissional é
altamente qualificado nas suas funções de conservação, preservação,
mas não sabe pegar um livro da estante e contar a história para uma
criança, para uma pessoa de idade ou alguém que não saiba ler, fazer
uma indicação com entendimento das necessidades daquela pessoa,
além de não conseguir organizar na biblioteca uma roda de conversa,
um clube de leitura. São essas coisas que formam leitores e estão
previstas na lei. (CASTILHO, 2019)

Em primeiro lugar, precisamos percorrer nossos dados históricos. Não apenas


os números de leitores no Brasil. Mas também quando e como isso tem importância nas
políticas sociais, culturais, econômicas e, portanto, de educação.

A questão da leitura, no Brasil, data da época colonial, cujo sistema


de dominação impedia que a educação se popularizasse como forma
de manter o povo alienado da informação e do poder. Em
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consequência, o acesso à participação ficava restrito às elites culturais
e econômicas, que enviavam seus filhos para estudar na Europa
colonizadora. Assim, durante o período colonial inexistia um sistema
de difusão cultural, uma vez que a imprensa local era proibida, as raras
bibliotecas eram guardadas nos mosteiros e não havia uma massa de
leitores que pudessem levar os escritores a modificar seus padrões
europeus. Entre os intelectuais, educados no exterior, havia uma
sensação de desenraizamento, que os impedia de identificar-se com
os valores de sua terra natal, senão simbolicamente.
O desprezo pelas várias modalidades de cultura relacionadas às mais
distintas classes sociais e etnias levou o escritor a se destacar muito
mais como ratificador de caminhos literários e políticos e especialista
da palavra hábil, do que como agente de ideias e de aprofundamento
da linguagem.
Daí a literatura escrita até o século XIX se caracterizar mais por um
discurso eloquente, moralista e erudito do que como uma linguagem
cujo objetivo primordial fosse a crítica e a formação de um estilo
brasileiro de pensar, criar, agir. (YUNES e PONDÉ, 1988 p.26)

Tais apontamentos tão contundentes sobre as relações entre livros e leitura já


nos espantam se virmos que, mesmo em 2020, ainda estamos com tais defasagens.
Também nos evidencia as questões de racismo estrutural, valorização de determinada
cultura em detrimento de outra e equívocos profundos que culminam nas desigualdades
mantidas e reforçadas nos dias de hoje, principalmente referentes às políticas de
educação e cultura.
Ainda na mesma publicação, a educadora aponta que para uma verdadeira
democratização da leitura seria preciso:

a) De uma escolarização ampla da população, o que nos coloca


perante a problemas relativos ao ensino da leitura (alfabetização) e de
literatura; b) Da diminuição das altas taxas de analfabetismo (30%
segundo o censo de 1980); c) Da popularização da literatura, o que
remete à questão relativa ao best-seller nacional e à produção de uma
literatura de alcance popular; d) De uma rede atuante de bibliotecas
públicas e infantis; e) De uma adequação da escola à realidade, à
medida que não está cumprindo suas tarefas básicas com
competência, conforme atestam os altos índices de repetência e
evasão escolar; f) De um sistema eficaz de distribuição de livros por
todo o país; g) De uma melhoria da qualidade de vida da população,
para que a família, retome a sua função educadora e incentive as
crianças para a leitura. (YUNES e PONDÉ, 1988, p.34)

Outras questões se somam a estas, em um olhar ainda mais contemporâneo


do que seria a presença da literatura no ambiente escolar.

Não lemos os mesmos textos da mesma maneira e nem com os


mesmos propósitos. Pode-se ler para estudar, por exemplo, como
acontece com os textos informativos e científicos; ler para se divertir
ou para se emocionar, como costuma acontecer com a leitura de ficção
ou de poesia; ler para se informar, como se faz com os textos
jornalísticos; ler para dramatizar, caso dos roteiros de teatro e cinema.
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Na tarefa de formar leitores, precisamos dar conta desses propósitos,
que devem fazer parte do cotidiano escolar de maneira contextualizada
e com sentido. (CARVALHO e BAROUKH, 2018, p.16)

E complementam:

Nem sempre se pensou a leitura na escola desse modo. No Brasil, ela


passou por um forte questionamento na década de 1980. Até então, a
leitura na escola estava a serviço da alfabetização baseada na
decodificação. Ou seja, para ser alfabetizado, bastava juntar letras,
sílabas, palavras. A leitura apoiava a alfabetização por meio da oferta
de textos simplificados, fora dos contextos sociais, produzidos
unicamente para fins didáticos, apresentados nas cartilhas.
(CARVALHO e BAROUKH, 2018, p.16)

Para além do que é necessário às práticas e reflexões para a sala de aula, as


mudanças na exigência da formação acadêmica dos professores a partir da Lei de
Diretrizes e Bases de 1996 influenciaram no modo como se pensa o currículo das
universidades de educação no país. Se o curso de pedagogia, por exemplo, vem como
uma exigência para a atuação em sala de aula, a discussão do ensino de literatura
nestes cursos ainda é bastante desigual. “Literatura infantil” se tratada nas salas
universitárias, aparece muito mais como disciplinas opcionais, ou dependem de
militância particular de pesquisadores ainda presentes na academia. E, quando surge,
muitas vezes vem com reflexões e repertórios ultrapassados. Toda a produção de
literatura infantojuvenil no Brasil vem crescendo em muitos aspectos, principalmente
dos anos 1970 para cá, com o surgimento de autores da geração de Ruth Rocha e
Ziraldo, estimulados também por um mercado editorial impulsionado a partir das
publicações de histórias da Revista Recreio147. As formas de criação e linguagem
somadas às possibilidades gráficas também em constante evolução, fizeram emergir
um número muito grande de artistas dedicados e identificados com o universo da
infância, elevando também forma e conteúdo das obras. A pergunta que fica é: a
sociedade acompanhou esta (r)evolução?
Em publicação de 1986 (revisitada em 2010), a doutora em Teoria Literária
Ligia Cademartori contextualiza a discussão da literatura na academia. Veja que já
tínhamos vivido a inauguração da Cadeira de Literatura Infantil na Universidade de São
Paulo (USP), sob a iniciativa da professora Nelly Novaes Coelho, em 1980.

Naquela época, o gênero literário endereçado às crianças conquistava,


gradualmente, espaço nas discussões universitárias, congregando
estudiosos em instituições dedicadas ao tema. A literatura infantil
deixava seu lugar à margem para ser apreciada em suas
peculiaridades. (CADEMARTORI, 2010, p.7)

147
Revista da Editora Abril voltada para crianças publicada de 1969 a 1982.
771

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Estamos em 2020, o que significa que não faz muito mais que 30 anos que
essa discussão ganha força no Brasil.

No plano de ações, livros literários para crianças começaram a ser


distribuídos, em escolas e bibliotecas em todo o país, pelo Ministério
da Educação. A iniciativa pioneira recebeu o nome de Programa Salas
de Leitura e era desenvolvido pela Fundação de Assistência do
Estudante, hoje extinta. Se a iniciativa oficializava os laços entre
literatura infantil e educação, o que, na opinião de muitos, comprometia
a natureza literária do gênero, na mesma medida vinha promovê-lo,
tornando a distribuição de livros a estudantes parte de uma política
pública. Simultaneamente, criava-se uma relação de dupla
dependência entre a presença da literatura infantil nas escolas e a
produção de livros desse segmento editorial pela indústria livreira.
(CADEMARTORI, 2010, p.8)

Tais tensões ainda são grandes entraves na educação brasileira. E, por


consequência - ou causa? - afetam diretamente a função e responsabilidade atribuídas
ao educador, principalmente na educação infantil, de formar seu aluno como o "futuro
leitor". Retomando os anos 1980, então é a professora Nelly Novaes Coelho que aduba
um terreno das discussões dos livros para a infância na pesquisa acadêmica. Paulistana
de 1922 e falecida em 2015, doutora em Letras, livre-docente e professora aposentada
da FFLCH-USP, crítica literária inicia profissionalmente em 1961, no Suplemento
Literário de O Estado de S. Paulo. Em 1962 lança “O Ensino da Literatura”, referência
para os novos professores. No fim da década de 1970, com a eclosão de uma nova
literatura infantil, inicia um novo campo de pesquisa e, em 1980, cria, na área da Letras
da USP, a disciplina de Literatura Infantil/Juvenil – Estudos Comparados, com
graduação e pós-graduação. Lança vários livros com sua pesquisa, como o “Dicionário
Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira” (Companhia Editora Nacional), com a
primeira versão em 1983 e a segunda, em 2006.
Consciente de seu papel na educação, Nelly marca toda a sua trajetória na
valorização da formação dos professores. Em entrevista à Revista Giz, na época do
relançamento do Dicionário, ela conta:

Em 1980, eu já era professora titular do departamento de Letras da


USP, já era doutora livre-docente e me dedicava à literatura portuguesa
basicamente. Acontece que desde meados da década de 1970 eu
comecei a notar a importância que alguns países davam à literatura
para crianças. Estive em Los Angeles, na Universidade da Califórnia,
nos Estados Unidos e lá participei de um congresso sobre literatura
infantil. E lendo esses livros tratados no congresso comecei a me dar
conta que a nossa literatura infantil não deixava absolutamente nada a
desejar em relação à literatura estrangeira. De volta ao Brasil, e aí já
envolvida com o Centro de Estudos da Literatura Infantil, chegou às
minhas mãos um exemplar de O Reizinho Mandão, de Ruth Rocha.
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Ainda estávamos em plena ditadura, acho que o livro é de 1976, ou
1977, e ali estava uma verdadeira obra de contestação ao regime
militar. E então eu entendi que os valores da nova literatura já haviam
chegado à literatura infantil e o que era de difícil compreensão nos
livros dos adultos agora tinha uma tradução fácil nas obras para
crianças. (COELHO, 2007)

A pesquisadora salienta que o movimento de determinados artistas era além


de um mercado: era necessário naquele momento. “Grandes nomes até hoje que,
naquele momento, final da década de 1970, souberam contar para crianças como era o
rico mundo em que vivíamos” (COELHO, 2007).
A professora cita uma memória própria de leitura que a fez despertar para o
movimento que havia nas artes literárias, mas que ainda estavam em desequilíbrio de
entendimento com a área da educação.

Veja, O Reizinho Mandão foi lançado praticamente junto com A grande


fala do índio guarany, de Affonso Romano de Sant’anna, e com
Planoplenário, de Mário Chamie. Os dois falavam da ditadura. E O
Reizinho Mandão também. Ele zombava da ditadura, só que de uma
maneira divertida, engraçada até. E quando se zomba de alguma coisa
é porque ela já não é mais aquela potência toda. Então, com O
Reizinho na mão entendi que a ditadura não ia demorar muito mais,
pois já estavam zombando dela. E foi exatamente o que aconteceu.
Em 1979 a Anistia suspende o AI-5 e a ditadura começa a ir embora.
(COELHO, 2007)

E é na companhia de Nelly que voltamos um pouco mais no tempo, para


entender como iniciamos a relação pedagogia e literatura no Brasil. No paratexto de seu
Dicionário, Nelly expõe os alicerces da literatura “para crianças” que habitava o Brasil
entre o século XIX e XX. Entre os temas das traduções e das escritas para crianças que
surgiam de brasileiros, muitos falavam sobre travessuras “infantis” com exemplos de
castigo a desobediências, histórias com teor moralizante e um forte nacionalismo e
exaltação à pátria.
É neste contexto, inclusive, que Monteiro Lobato, já escritor e editor, se
movimenta no campo do livro infantil, com o propósito de quebrar paradigmas de temas
e linguagens nas histórias para esse público. Ele se envolve tanto que se torna um
revolucionário no mercado e, por isso, chamado de precursor de uma literatura infantil
moderna essencialmente brasileira. Inclusive, o autor articulou compras de livros pelo
governo que adotavam as obras e distribuíam nas escolas.
Esses programas de compras de governo continuam, mas sofreram mudanças
ao longo do tempo. São estas compras que abastecem bibliotecas e escolas públicas
em nível federal, estadual e municipal. Muitas, porém, estão entrelaçadas a um setor
ainda mais tradicional e gigantesco: o de livros didáticos.
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Nas décadas de 2000 e 2010, assistimos à ascensão e queda do setor de
literatura para a infância que, além de conseguir sustentabilidade, criou fundamentos e
referências para as criações nas áreas artísticas e editoriais. Fortaleceu-se um
parâmetro de qualidade que, além de beneficiar autores com anos de carreira,
possibilitou o surgimento de novos artistas. Uma coisa puxa a outra: a alta demanda
permitiu também experimentações de linguagens na criação, o aumento de cursos,
seminários, dissertações e teses e a consolidação de editoras pequenas e/ou
independentes. Ou seja, um conjunto de fatores que alterou o sistema de circulação das
obras e, com isso, afetou o mercado como um todo.

Por anos elas proliferaram e se multiplicaram, seguindo um modelo que


muitas editoras grandes repetiram em seus departamentos de LIJ.
Com a regularidade nos programas de compra de livros do governo,
como o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), editais
possibilitaram concorrência quase igualitária entre grandes e
pequenas. E a relação entre livros inscritos em editais e livros
selecionados demonstravam claramente a viabilidade do negócio.
(NAKANO, 2016)

A editora e pesquisadora Renata Nakano aponta que por muito tempo havia
um sistema que reforçava a desigualdade entre as chances de as editoras se
inscreverem e concorrerem às adoções de livro pelo poder público. Daí ter nas
bibliotecas e escolas um número não tão diverso ou compatível com a oferta que se via
disponível nas livrarias.
Um dos fatores principais era como a escolha dos livros era feita.

Tendo como selecionadores equipes qualificadas de grandes centros


brasileiros de estudo de LIJ, obras mais ousadas e transgressoras
passaram a se tornar viáveis. Escritores e ilustradores puderam se
dedicar quase exclusivamente ao labor literário. Cursos na área
surgiram. Na última década, o Brasil viveu um grande salto qualitativo.
(NAKANO, 2016)

É fundamental que se tenha clareza destes processos para o entendimento do


acesso a determinados livros no Brasil.

Com a suspensão de programas como o PNBE, o Pacto Nacional pela


Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) e o Programa Estadual do Livro
de São Paulo, vivemos um momento difícil para a área. Estruturas
formadas nesse modelo tendem a reduzir e mesmo a desaparecer se
não se adaptarem à nova realidade. (NAKANO, 2016)

A dimensão do alcance da política pública pode ser exemplificada na fala da


ex-professora de artes Franciane Junqueira, hoje ilustradora e dona de uma editora:

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eu só virei ilustradora por causa dos livros da biblioteca da escola
municipal que eu dava aula. E eu lembro muito deste encantamento de
ver aqueles livros e pensar uau... (informação verbal)148

Considerações finais
Fica, então, para os professores, bibliotecários, coordenadores e orientadores
pedagógicos, mediadores em geral equilibrar um recente passado com o presente, com
tantas defasagens na manutenção de acervos e formações continuadas.
Seria um bom momento, então, de retomar a palavra “memória”. Vivida
pessoalmente por determinado educador ou aluno, ou ouvida como referência de quem
esteve atuante neste período em toda a cadeia do livro infantil, há algo a se buscar, a
se reportar, a se guiar, pois experimentamos como sociedade leitora um jeito potente
de fazer parte das relações livro-leitura. Se enfrentarmos e resistirmos, nada será como
antes.
Vínculo. Ou a "necessidade de enraizamento", como salienta Ecléa Bosi em
seus estudos. Ele depende de diversas condições. No caso do livro, condições muito
além das decisões do educador, como vimos acima. É à sua resistência que podemos
estar mais atentos: quando, de fato, tudo pode ser possível.
O movimento de recuperação da memória nas ciências humanas será
moda acadêmica ou tem origem mais profunda como a necessidade
de enraizamento? Do vínculo com o passado se extrai a força para a
formação de identidade. Simone Weil julga esse vínculo como um
Direito Humano semelhante a outros direitos ligados à sobrevivência.
(BOSI, 2003, p.16)

Diante de tudo isso, memória de leitura está completamente relacionada com


o vínculo e por sua vez, o vínculo depende do contexto de cada leitor. Veja só, é
impressionante como a gente percebe que “memória de leitura” é muito mais que uma
“lista de livros lidos”. Como diria Paulo Freire, “linguagem e realidade se prendem
dinamicamente” (2006, p.11). “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que
a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”
(FREIRE, 2006, p.11).
Talvez Franciane Junqueira esteja se referindo ao vínculo e ao direito de ler o
mundo quando define o que o livro significou para ela naquele momento, e que pode
ser a relação “ideal” do formador: “O livro era pra mim um escudo, era um convite, era
uma ponte” (informação verbal)149.

148
Depoimento de Franciane Junqueira durante aula da pós-graduação “O livro para a infância”
n´A Casa Tombada, em agosto de 2020.
149
Depoimento de Franciane Junqueira durante aula da pós-graduação “O livro para a infância”
n´A Casa Tombada, em agosto de 2020.
775

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Referências
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BORGES, Jorge Luís. Ficções. Companhia das Letras: São Paulo, 2015.

BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória – Ensaios de Psicologia Social. Cotia: Ateliê
Editorial, 2003.

CADEMARTORI, Ligia. O Que É Literatura Infantil. São Paulo: Brasiliense, 2010.

CARVALHO, Ana Carolina; BAROUKH, Josca Ailine. Ler antes de saber ler: Oito mitos
escolares sobre a leitura literária. São Paulo: Panda Books, 2018.

CASTILHO, José. Entrevista ao site Diário de Pernambuco. Pernambuco, 2019.


Disponível em:
https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2019/11/u201cnao-basta-
ter-livro-e-preciso-incentivar-a-ler-u201d-diz-filos.html. Acesso em: 5 set. 2020.

COELHO, Nelly Novaes. A dama da literatura infantil, em entrevista para a Revista


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COELHO, Nelly Novaes. Dicionário Crítico de Literatura Infantil e Juvenil. São Paulo:
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LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica


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MELOT, Michel. Livro,. Cotia: Ateliê Editorial, 2012.

MUNARI, Bruno. Das coisas nascem coisas. Trad: José Manuel de Vasconcelos. São
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NAKANO, Renata. O editor-empreendedor e a qualidade da literatura infantil brasileira.


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ROGERIO, Cristiane. Um pedido uma pergunta. São Paulo, 29 ago. 2019.
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Publicação da 1ª Bienal de educación artística: Arte y Educación, Geografía de um
vínculo. Maldonado, 2012.

YUNES, Eliana; PONDÉ, Glória. Leitura e Leituras da Literatura Infantil. São Paulo:
FTD, 1988.

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FOTONOVELA: UMA EXPERIÊNCIA DE PRODUÇÃO TEXTUAL
COM ALUNOS DO 7º ANO

Laura Viviani dos Santos Bormann, Secretaria Municipal de Educação de


Belém
Nailce dos Santos Ferreira, Secretaria Municipal de Educação de Belém
Tatiana da Costa Tavares, Secretaria Municipal de Educação de Belém

Eixo Temático: Grupo Temático 6 - Literatura infantil e juvenil e as múltiplas


linguagens

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Antes de tratar sobre a experiência de uso da FOTONOVELA como recurso


educativo, vale expor, minimamente, sobre a história desse gênero que foi um marco na
vida de uma sociedade que não possuía ainda muitos atrativos e distrações.
A primeira revista de fotonovela publicada no Brasil foi “Encanto”, pois embora
“Grande Hotel” circulasse desde 1947, só em seu nº 210, de 31 de julho de 1951,
publicou a primeira fotonovela, intitulada “O primeiro amor não morre”.
Nos anos 1970, de acordo com escritos de Aramis Millarch, mais de 20 revistas
de fotonovelas chegaram a circular no Brasil, publicadas por várias editoras como:
Bloch, Vecchi, Rio Gráfica, Abril e Prelúdio, sendo que, na época, ao contrário das
demais editoras que importavam as fotonovelas da Itália, a Bloch produzia suas
fotonovelas no Brasil, com a revista “Sétimo Céu”.
As novas gerações pouco ouvem falar da história muito bem-sucedida das
fotonovelas. Com as tecnologias e um mundo digital cada dia mais repleto de
aplicativos, jogos, vídeos, etc, pouco se lembra desse gênero que fez a cabeça de
adolescentes. Eis um dos motivos que nos fez lançar mão desse gênero, como forma
de resgatar esse tipo de produção artística.
Encontramos na Fotonovela um gênero textual possível para o ensino
aprendizagem de língua portuguesa, bem como o desenvolvimento da leitura, da escrita
e da criatividade artística e digital. Por meio delas podemos trabalhar, também, com o
gênero dos quadrinhos (como maneira de comparar e facilitar a compreensão, pois são
gêneros próximos), bem como torna-se um instrumento de preservação da memória
textual/discursiva de uma sociedade.
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Sendo assim, indagamo-nos a respeito de quais os efeitos do trabalho com o
gênero fotonovela em alunos do 7º ano do ensino fundamental e enveredamos por este
caminho de muitas descobertas e diversão, tanto para os alunos quanto para nós
professores.
Desenvolvemos o nosso trabalho na Escola Municipal de Educação Infantil e
Ensino Fundamental Prof. Helder Fialho Dias, localizada no Distrito de Outeiro, Ilha de
Caratateua, pertencente ao município de Belém, estado do Pará.
O trabalho na Biblioteca Escolar e na Sala de Informática Educativa requer uma
disposição para a realização de projetos que aproximem a comunidade escolar desses
espaços e cumpram com seus objetivos de promoção do letramento linguístico (tanto
da leitura e da escrita primeiras como da proficiência digital).
Nesse contexto é que surgiu o projeto com o gênero Fotonovelas. Fomos
motivadas, inclusive, pelo Sistema Municipal de Bibliotecas Escolares que nos ofertou
uma oficina sobre o gênero e pode alargar nossa compreensão e nos munir de
conhecimento para atuar junto aos alunos e alunas do 7º ano do ensino fundamental.
Os ideias que norteiam o projeto são baseadas nos postulados de Roxane Rojo
(2009, 2012) e o conceito de multiletramentos. A autora afirma “novos tempos pedem
novos letramentos”, por isso o gênero Fotonovela encaixa-se perfeitamente, por aliar o
trabalho de leitura e escrita e o de letramento digital (ao fazer uso de câmera fotográfica,
celular, computador, internet). Assim como os postulados de Ângela Dionísio (2005;
2011) sobre multimodalidade.
Os documentos oficiais que norteiam a educação nacional também foram
basilares na construção do projeto, pois conforme nos sugere a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), o objetivo da escola deve ser desenvolver a criatividade, o raciocínio,
incentivar a leitura e o treinamento da escrita, capacitar os educandos para levantar
hipóteses e estimular o trabalho em grupo.
O resultado deste projeto foram quatro Fotonovelas produzidas pelos alunos
de uma turma de 7º ano do ensino fundamental expostas na culminância do Projeto
Lendo e Relendo para toda a comunidade escolar, em comemoração ao Dia Nacional
da Cultura, inserido no projeto anual das Bibliotecas Municipais de Belém/PA. E daí por
diante o projeto seguiu durante estes anos letivos.

Caminhos do projeto
Nesta seção, vamos detalhar a metodologia utilizada na realização do projeto
com o gênero Fotonovelas, discorrendo sobre as principais ações, desde a

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contextualização, a idealização até o passo a passo das aulas e a culminância. Vale
salientar que ele foi construído pela professora de Língua Portuguesa, a auxiliar da
Biblioteca Escolar (BE) Moisés Azevedo do Nascimento e a professora da Sala de
Informática Educativa (SIE).
A Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental Profº. Helder
Fialho Dias, fundada em 21 de maio de 2001, localiza-se na região insular (Ilha de
Caratateua) do Município de Belém. Esta Instituição de Ensino surgiu através de uma
assembleia popular, reivindicação da comunidade do bairro da Brasília, que almejava
ter um espaço educativo que atendesse inicialmente as crianças da Educação Infantil
(04 e 05 anos) e Ensino Fundamental, que lhes garantisse melhores oportunidades e
segurança.
A partir de uma pesquisa de campo, observaram-se algumas características da
população local como pouca acessibilidade aos meios de comunicação em geral, um
sistema de transporte precário que conta com poucas linhas de transportes rodoviário e
fluvial; poucas opções de lazer como praias e igarapés que são usados também como
fonte de subsistência; as residências apresentam-se em construções de madeira e
alvenaria, sendo localizadas em ruas na sua maioria não asfaltadas, tendo um sistema
de saneamento precário; quanto aos serviços de saúde a ilha conta apenas com um
posto de emergência para atender toda a população; o comércio é apresentado em
pequenos pontos e uma feira próxima ao rio.
Devido à especificidade da localização geográfica, ou seja, na região insular de
Belém e da sua proximidade da capital, a área possui uma atração turística muito
grande, fazendo com que muitas pessoas se desloquem para a Ilha em busca de
diversão ou atrás de terras para construírem suas casas. Esses fatores provocam um
aumento demográfico, principalmente, aos finais de semana, provocando analogamente
um aumento da violência, sendo a exploração do trabalho infantil, a prostituição e o
tráfico de drogas, as formas mais comuns, deixando crianças e adolescentes em
situação de vulnerabilidade.
Partindo da premissa de que a clientela da Ilha de Caratateua – onde está
localizada nossa escola – vive uma realidade de famílias que convivem em meio à
violência de todas as formas, desprovidos de direitos básicos e vulneráveis à Cultura de
Morte, este projeto busca para além da aprendizagem de conteúdos e habilidades
comunicativas, a promoção de valores morais e sociais, tais como solidariedade,
respeito, autoestima, empatia, coletividade, dentre outros.

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Muitos de nossos alunos não possuem acesso à informação, seja por
negligência da família, seja pela falta de condições em manter, por exemplo, uma
internet, Tv a cabo ou por não frequentarem locais que lhes permitam ampliar seus
conhecimentos (teatro, cinema, clubes, etc.). Sendo assim, levar os alunos para os
encontros na BE e SIE possibilitou aos educandos momentos de contato com culturas
diversificadas, leituras de mundo diferentes das que estão habituados, fontes de
informação variadas e suscitou, sem dúvida, o desejo por mais e por melhores
condições de vida.
A BNCC defende o uso dos conhecimentos na vida real, a importância da
contextualização para dar sentido ao que se aprende e o protagonismo do estudante,
tanto em sua aprendizagem como na construção de seu projeto de vida. Não é à toa
que a palavra “protagonismo” aparece várias vezes no documento completo da Base.
A escolha do 7º ano do ensino fundamental se deu porque era a turma com a
qual a professora de Língua Portuguesa envolvida no projeto estava atuando e pelo
motivo de em seu planejamento contemplar esse gênero (o qual era abordado pelo livro
didático da turma: Universos Língua Portuguesa 7º ano - Camila Sequetto Pereira -
Edições SM, 3ª ed, 2015).
Os alunos do 7º ano demonstravam também uma receptividade para a
realização de propostas diferenciadas das que geralmente são feitas em sala de aula.
Congregar visitas à BE e à SIE motivava-os ainda mais. Como são um público carente
em vários sentidos, iniciativas que apresentem para eles uma ampliação dos horizontes
e a possibilidade de contato com instrumentos novos, lúdicos, tecnológicos e que
envolvam sua criatividade, os despertam. E para o alcance de nossos objetivos, eis um
cenário propício, o que minou o projeto de relevância didática.

Passo a passo
O projeto foi organizado de maneira que em cada etapa os alunos participavam
de atividades diferenciadas, causando uma ansiedade pelo passo seguinte.

Passo 1:
Iniciamos com a escolha do livro de Luís Fernando Veríssimo, Comédias para
se Ler na Escola, sugerido pela professora da BE por conter pequenos contos cômicos
que envolveriam e divertiriam nosso público; possibilitaria um processo de
retextualização e pelo autor ser um dos mais respeitados escritores brasileiros, autor de
best-sellers inesquecíveis, como Comédias da Vida Privada e Clube dos Anjos.
Passo 2:
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Nas aulas de Língua Portuguesa iniciamos a leitura dos contos do livro. A
auxiliar da Biblioteca selecionou alguns e, primeiramente, fez a leitura em voz alta para
os alunos, a fim de aguçar a curiosidade deles. Foi um momento animado, pois a maioria
dos textos tem um tom humorístico e trata sobre temas conhecidos dos adolescentes.
As professoras conversaram a respeito dos textos com os alunos, pediram que
dissessem sua compreensão, identificassem o humor, etc. Um bate papo descontraído
e que ajudaria os educandos a adentrar no gênero conto e interpretar. Logo após, foi a
hora de apresentar o projeto, explicando os objetivos e quais seriam as tarefas que
seriam solicitadas a eles. Foram direcionados a dividirem-se em grupos e escolher um
dos textos lidos ou outros pertencentes ao livro (toda esta ação durou 3 horas/aula).

Passo 3:
O próximo passo foi conhecer uma Fotonovela. A partir do livro didático os
alunos tiveram o primeiro contato com este gênero. Fizemos a leitura coletiva da
fotonovela Aconteceu no Carnaval…, publicada em 1976, dirigida e produzida por Paulo
Alípio e que teve como ator principal o cantor Jerry Adriani (o qual fez muito sucesso
nas décadas de 1960 e 1970); presente nas páginas de números 32 a 39, do capítulo 2
da unidade 1.
O enredo conta a história de Míriam, uma moça que saiu de Curitiba para
passar o carnaval no Rio de Janeiro. Ao chegar à cidade, ela conhece Reinaldo, por
quem se apaixona. Os dois começam um namoro, mas o romance é abalado por uma
diferença de opinião. Hospedada na casa de Teresa, uma prima que desfila com
fantasias de luxo, Míriam é admiradora do Carnaval carioca; já Reinaldo não simpatiza
com esse tipo de desfile, que considera uma futilidade e um desperdício de dinheiro. A
protagonista se vê dividida, pois não tem coragem de contar para o namorado a
verdadeira ocupação da prima.
Os alunos foram indagados sobre as características mais aparentes de uma
fotonovela, se já conheciam o gênero, o que mais chamava atenção, se gostaram da
história, se a organização e disposição do texto assemelhavam-se a outro gênero
textual, etc. Fomos dialogando com o objetivo de fazê-los refletir e conhecer uma
fotonovela.
As questões trazidas no livro didático, tanto antes da leitura como depois da
leitura, contribuíram muito para a construção do conhecimento acerca do gênero, os
temas, enredos e personagens típicos, os elementos visuais e verbais, a comparação
entre as Histórias em Quadrinhos e as Fotonovelas e os aspectos linguísticos presentes
em narrativas dessa natureza.
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A leitura coletiva, discussão e realização das atividades do livro didático
ocuparam cerca de seis horas-aula e foram valiosas, pois eles puderam conhecer um
gênero totalmente novo, fazer as correlações com as HQ’s tão conhecidas e já
estudadas e analisar linguisticamente alguns fenômenos da língua portuguesa, tais
como: contextualização do vocabulário, uso do verbo no pretérito perfeito e mais-que-
perfeito, registro formal da língua, uso de pronomes pessoais como elementos coesivos
e diferenciação de frase, oração e período.

Passo 4:
Na SIE os alunos realizaram pesquisas sobre o gênero fotonovela, por meio do
acesso a alguns sites, orientados pela profissional. Essa etapa só pode ser realizada
com uso da internet particular da professora da SIE, pois a escola não dispunha na
ocasião de acesso à internet.
Após a leitura das páginas que tratam da origem e características da
fotonovela, a turma foi dividida em três grupos, sendo que cada um apresentou
oralmente sobre o texto lido. Os grupos foram organizados pelos temas: características
da fotonovela, fotonovela no Brasil e fotonovela capricho.

Passo 5:
De posse do entendimento acerca da Fotonovela e já tendo escolhido os contos
os quais as equipes trabalhariam, foi solicitado que os relessem e criassem um roteiro
para uma fotonovela a partir da história selecionada por eles próprios.
Os alunos adaptaram a escrita (individualmente e em grupos) dos textos lidos
a fim de empreender o processo de retextualização que é a produção de um novo texto
(roteiro da fotonovela) a partir de um ou mais textos-base (contos). Esta etapa foi feita
em parceria entre a professora de LP e a Auxiliar da Biblioteca, tanto durante as aulas
de LP como em horários vagos na BE. Na medida em que as equipes iam avançando
na escrita, criando os quadros e desenhos de como desejavam que ficasse a fotonovela,
as professoras faziam junto com eles a revisão e reescrita até que ficasse tudo
adequado para a etapa seguinte.

Passo 6:
De acordo com a finalização do roteiro, a professora da SIE ajudava os
educandos na criação e montagem de cenários e figurinos e combinávamos dia e local
para as sessões de fotos, construção, edição e finalização das fotonovelas no
laboratório de informática (momento que era ápice para os alunos, pois ficavam super

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empolgados em manusear os computadores e aprender mais sobre os recursos
tecnológicos).
Os passos 4, 5 e 6 aconteceram num período de dois meses até que as
Fotonovelas estivessem todas prontas para a apresentação. Só na SIE foram 8
encontros.

Passo 7:
O resultado final foram quatro Fotonovelas produzidas pelos alunos da turma
de 7º ano, as quais foram expostas na culminância do Projeto Lendo e Relendo para
toda a comunidade escolar, em comemoração ao Dia Nacional da Cultura, inserido no
projeto anual das Bibliotecas Municipais de Belém/PA. Este evento acontece todos os
anos e é um espaço para a socialização dos resultados dos projetos desenvolvidos em
toda a escola durante o ano letivo.

Protagonismo Educacional
Como dito na introdução deste artigo a pergunta que norteou nosso projeto foi
a respeito de quais os efeitos do trabalho com o gênero fotonovela em alunos do 7º ano
do ensino fundamental. Tínhamos a intenção de a) estimular as competências
linguísticas e leitoras dos alunos, o que fizemos por meio das visitas à biblioteca, pois
assim os alunos tomavam a iniciativa não só de ler os textos propostos por nós, mas de
fazer empréstimos de outras obras; também por meio dos diálogos sobre os elementos
linguísticos presentes nos gêneros fotonovela e contos e a partir das leituras coletivas
empreendidas em sala; b) discutir temáticas pertinentes para a formação pessoal das
crianças e adolescentes envolvidos no projeto como relações familiares, diálogo, ficção,
uso da tecnologia, brincadeiras da infância, dentre outros; c) motivar os alunos para
produção de novos textos ensinando-os os processos de revisão e reescrita, o que não
foi fácil, já que não há exatamente uma prática nas aulas de língua portuguesa nesse
sentido porque os educandos imaginam que a correção é um ato somente do professor;
d) dinamizar a leitura e a escrita dos textos através das linguagens artísticas, culturais
e digitais, práxis a qual traz muitos benefícios para a aprendizagem, pois os alunos ficam
mais envolvidos, animados e “abertos” para a construção de novos conhecimentos.
Os benefícios não pararam por aí. Notamos a aproximação da Biblioteca pela
comunidade escolar. Não só os discentes, mas os docentes e demais funcionários da
escola que se achegavam com curiosidade diante do trabalho que estava sendo
desenvolvido e passavam a enxergar a BE como um espaço vivo e passível e parcerias.
Sendo assim, o número de visitas, pesquisas, novos cadastros e empréstimo de obras
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aumentou, o que contribui para o alcance do objetivo primeiro desse espaço que é de
fomentar a leitura.
Os educandos, depois de todo o trabalho pronto e as reflexões que fizemos a
partir do que aprenderam, compreendem a importância da prática da leitura. O próprio
envolvimento com o projeto e o encorajamento dos mesmos em desenvolver ações as
quais não estavam habituados os fizeram perceber que têm capacidade para
desempenhar com êxito tarefas as quais não imaginavam. Toda a maneira como o
projeto foi pensado e executado (com as devidas adequações) construiu um ambiente
propício para o crescimento intelectual e do conhecimento letrado.
Os frutos foram quatro Fotonovelas construídas a partir de várias linguagens,
constituindo assim a multimodalidade, muito própria dos dias atuais nos quais os alunos
estão imersos e puderam depreender conhecimentos diversos para sua vida
educacional e social. Abaixo trazemos algumas imagens das etapas do trabalho e as
capas das quatro fotonovelas produzidas para melhor ilustrar o que expusemos até
agora.

Figura 1 - Etapa de pesquisa e aprofundamento sobre o gênero Fotonovela.

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Figura 2 e 3 - Etapa de captação das i magens.

Figura 4 e 5 - Etapa de edição e montagem da fotonovela.

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Figura 6 e 7 - Exposição das fotonovelas para a comunidade escolar

Figuras 8,9,10 e 11 - Capa das Fotonovelas produzidas.

Considerações Finais

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Diante de tudo que foi exposto no presente artigo, vale salientar que o projeto
teve uma aceitação muito positiva por parte da comunidade escolar. Foram vários os
benefícios para o ensino aprendizagem de língua portuguesa, para a aproximação dos
espaços da BE e SIE. Pudemos fazer uma interlocução entre um gênero considerado
“antigo” e as novas tecnologias, preservando a memória textual/discursiva de uma
sociedade. O projeto aqui apresentado ultrapassou uma visão ínfima de aula de LP e
efetivou a interdisciplinaridade.
E ao falarmos sobre multiletramentos e multimodalidade, pensamos que o uso
da TIC funcionou como um catalisador na missão da escola. Os novos recursos
tecnológicos não põem em dúvida a importância do professor, que foi nesse processo
um aprendiz também. A Escola do Futuro exige que os mestres assumam o papel de
facilitadores em sala de aula, para que a partir daí as TIC sejam verdadeiras aliadas nos
processos por eles conduzidos, por meio de suas competências pedagógicas, técnicas
e humanas. Assim, a utilização das TIC nesse processo de ensino-aprendizagem
requereu habilidade, inteligência, planejamento e estratégia por parte dos docentes
envolvidos, respaldando sua credibilidade pedagógica, muitas vezes tão desvalorizada.
Nessa perspectiva, o uso das mídias em sala de aula funcionou como um meio
inovador e motivacional, como um novo apoio pedagógico e não como um fim em si.
Deste modo, o procedimento de construção do saber atendeu de forma positiva aos
anseios dos alunos da era digital, que acolheram com naturalidade as diversidades
tecnológicas e os novos modelos pedagógicos, quebrando a linearidade dos conteúdos
e dos paradigmas do chamado ensino tradicional.
Ao trazer essa realidade para a sala de aula, Silva considera que o padrão
tradicional de ensino, segundo o qual o professor tinha a voz e o aluno, somente os
ouvidos, já não mais atende ao modelo de sociedade atual, a educação autêntica não
se faz sem o aluno, o ditar, falar do mestre não se faz transmitindo de A para B, ou de
A sobre B, mas sim, da interação de A e B (SILVA, 2001). Mas o que se percebe é que
o modelo atual de ensino ainda não se apercebeu em mudar essa comunicação
verticalizada para uma comunicação colaborativa favorecendo o protagonismo do
educando.
Em suma, o desenvolvimento da habilidade de raciocínio é fundamental para a
compreensão do mundo e ação crítica do estudante. Num mundo cercado de inovações
e novidades os professores sentem dificuldades em desenvolver suas atividades diárias
se não tentam despertar a curiosidade e o interesse dos estudantes. Com a utilização
do computador na educação e visando o multiletramento é possível ao professor e à

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escola dinamizarem o processo de ensino aprendizagem com aulas mais criativas, mais
motivadoras e que despertem nos estudantes, a curiosidade e o desejo de aprender,
conhecer e fazer descobertas.
É imprescindível a procura por materiais e metodologias novas na
implementação de atividades pedagógicas diversificadas, no planejamento e execução
das aulas. Prova desse sucesso é que o projeto que iniciou em 2017 foi repetido em
2019 tendo como resultado a produção de mais cinco fotonovelas pelos alunos com a
mediação dos docentes. E não vai parar por aí, deverá tornar-se parte do planejamento
anual da BE.

Referências

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e Ensino


Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2017. BRASIL.

DIONISIO, Ângela Paiva. Multimodalidade discursiva na atividade oral e escrita


(atividades). In: MARCUSCHI, L. A.; DIONISIO, A. P. (Org.). Fala e Escrita. Belo
Horizonte: Autêntica, 2005. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 04, n. 01, jan./jun.
2015. 90.

________. Gêneros Textuais e Multimodalidade. In: KARWOSKI, A. M.;


GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Org.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. São
Paulo: Parábola Editorial, 2011

ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social, São Paulo:


parábola editorial, 2009

_________; MOURA, Eduardo. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola


editorial, 2012

SILVA, Marco. Sala de aula interativa: a educação presencial e a distância em


sintonia com a era digital e com a cidadania. Boletim Técnico do SENAC, v. 27, n.
2, 2001.

SILVA, Tiago Medeiros da. A fotonovela como recurso pedagógico e


interdisciplinar. Brasília, 2011. Monografia. Disponível em
<https://bdm.unb.br/bitstream/10483/3650/1/2011_TiagoMedeirosdaSilva.pdf> Acesso
em 10.jul.2020.

VERISSIMO, Luis Fernando. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro:


Objetiva, 2001.

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GAIMAN/MATTOTI E MAJIDÍ/MALEKZAADE: RETRATOS DA
CUMPLICIDADE EM JOÃO E MARIA E FILHOS DO PARAÍSO

Dayse Oliveira Barbosa, Universidade de São Paulo

Eixo Temático: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Considerações iniciais:

Este trabalho pretende evidenciar como as ilustrações de Lorenzo Mattoti na


obra João e Maria, adaptada por Neil Gaiman, e as fotografias de Parviz Malekzaade
no filme Filhos do paraíso, dirigido por Majid Majidí, retratam a cumplicidade existente
entre os irmãos protagonistas do conto de fadas e do filme iraniano.
A adaptação de João e Maria escrita por Gaiman e ilustrada por Mattoti recebeu
em 2015 o selo “altamente recomendável” da Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil. Por sua vez, Filhos do paraíso foi gravado em 1997, começou a ser exibido em
1998 e em 1999 foi o primeiro filme iraniano a ser indicado ao Oscar de melhor filme
estrangeiro.
Apesar de estarem situados em diferentes contextos histórico-político-culturais,
os irmãos João e Maria, no conto, e Ali e Zahra, no filme, superam a situação de extrema
pobreza material em que vivem, bem como as adversidades impostas pelos adultos,
intensificando ao longo da obra os laços de cumplicidade existente entre eles.
Espera-se com esse estudo construir correlações entre as imagens
apresentadas nas obras literária e fílmica, considerando as especificidades e as
similaridades de cada uma delas no tocante aos vínculos construídos pelos
protagonistas das obras examinadas.
Neste trabalho, foi realizado um estudo acerca dos textos verbal e visual
apresentados na obra de Gaiman e Mattoti, bem como dos elementos da fotografia
fílmica de Malekzaade no filme dirigido por Majidí.
Serão apresentados neste trabalho quatro duplas de imagens, que ressaltam
os laços de cumplicidade existente entre os irmãos protagonistas das obras literária e
fílmica. Essas quatro duplas são formadas por uma imagem do livro e uma imagem do

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filme, elas serão analisadas comparativamente, a partir de aportes críticos pertinentes
à literatura, especialmente, a literatura infantil, e o cinema, com enfoque no cinema
iraniano.

João e Maria (versão de Neil Gaiman) e Filhos do paraíso (direção de Majid


Majidí): Breve apresentação
A versão de João e Maria redigida por Neil Gaiman, em 2014, foi traduzida para
o português por Augusto Calil e publicada no Brasil em 2015. Essa obra recebeu, em
2015, o selo “altamente recomendável” da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.
O parágrafo inicial dessa versão situa o leitor no tempo e no espaço – “Isso
tudo aconteceu há muito tempo, na época de sua avó, ou no tempo do avô dela. Muito
tempo atrás. Naquela época, todos viviam nas margens de uma grande floresta”. (2015,
p.6)
Em seguida, o narrador apresenta “um lenhador” ao público e conta a história
desse lenhador. Por meio da história dessa personagem, o leitor compreende que o
lenhador é o pai de Maria e João – nessa versão Maria é dois anos mais velha do que
João. Esse trecho demonstra a originalidade de tal versão, uma vez que a história dos
pais de João e Maria não aparece no enredo dos irmãos Grimm. Nota-se também que
a narrativa não é concluída no retorno do casal de irmãos para casa, mas no casamento
de ambos, na idade adulta.
É notável também as sequências explicativas ao longo da obra, mais
especialmente, na parte inicial da narrativa. O narrador explicita ao leitor, por exemplo,
porque João e Maria não frequentavam a escola, qual o temperamento da mãe deles,
como era a alimentação da família de João e Maria, como e porque a guerra afetou o
lenhador, sua família e toda a sociedade da época, gerando fome e destruição em todos
os locais.
Percebe-se nessas sequências explicativas que o narrador pretende esclarecer
fatos do enredo, justificá-los e preparar o leitor para os trechos seguintes da narrativa,
a fim de tornar explícito o maior número possível de informações ao receptor da obra,
contribuindo na produção de sentido da intriga.
Além disso, o parágrafo de abertura da narrativa afirma que a história ocorreu
há muito tempo (no tempo da avó do leitor ou do avô dela), época em que as pessoas
viviam em uma grande floresta. Possivelmente, esse período tão pretérito seja
inimaginável para o leitor, sobretudo, o público infantil. Assim, as sequências

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explicativas inserem o leitor nas artimanhas do enredo e, dessa forma, o ambientam na
narrativa.
A menção à guerra é o primeiro elemento de tensão na história, pois
desequilibra a situação inicial. Apesar da significativa pobreza do lenhador, Maria e João
cresciam normalmente, brincavam bastante e não se incomodavam com o
temperamento difícil da mãe. O combate bélico insere uma situação de crueldade
extrema não apenas à família de João e Maria, mas a toda sociedade, porque guerra
gera fome, e a fome deixa as pessoas desnorteadas.
Na versão de Gaiman, é explícito que o abandono das crianças na floresta é
consequência do caos gerado pela guerra. Esse caos é mais intensificado quando Maria
diz ao irmão que os pássaros comeram as migalhas de pão deixadas pelo garoto no
caminho porque “as criaturas da floresta também estão com fome”, ou seja, além da
estrutura social, a guerra desarticula o ecossistema.
Assim, a vida torna-se apenas a busca pela sobrevivência. Isso fica evidente
quando as crianças chegam à casa da bruxa e ela os recebe com satisfação, porque é
a possibilidade de se alimentar de carne (carne das crianças), tão escassa em razão da
guerra.
Tanto a mãe quanto a bruxa representam o aspecto sombrio do ser humano.
As duas personagens, além de frisarem apenas o imediatismo da situação, não se
preocupam com a fragilidade alheia, querem resolver o próprio problema a qualquer
custo. Por isso, a jornada das crianças completa-se apenas após a morte da mãe e da
bruxa, suas inimigas.
A versão de Gaiman é a única que elenca possibilidades para a morte da mãe
– “A mãe deles morrera pouco depois de as crianças desaparecerem, e ninguém sabe
se foi porque algo a devorou por dentro, se foi de fome ou de raiva, ou por ter perdido
os filhos” (2015, p. 50). Mas, essas possibilidades são apenas mencionadas, não são
aprofundadas, visto que as crianças retornam para casa com a recompensa angariada
na casa da bruxa; dessa forma, a jornada está concluída, a situação de equilíbrio é
retomada. João, Maria e o pai vivem em total harmonia e prosperidade.
Filhos do paraíso apresenta a trajetória desenvolvida pelos irmãos Ali (nove
anos de idade) e Zahra Mandegar (entre sete e oito anos de idade) para esconder dos
pais o misterioso desaparecimento do único par de sapatos de Zahra.
A história começa quando Ali é encarregado de buscar os sapatos da irmã no
sapateiro. Todavia, no retorno para casa, passa no armazém para comprar batatas.
Deixa a sacola com os sapatos dentro de um caixote do lado de fora do recinto e,

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enquanto está entretido escolhendo as batatas, um coletador de entulhos leva a sacola
sem que Ali se dê conta.
Em casa, Zahra fica desesperada quando recebe a notícia de que seus sapatos
haviam desaparecido; Ali não sabe explicar à irmã como havia perdido os sapatos dela,
mas sente-se culpado pelo fato e tenta remediar a situação, sem que os pais
descubram.
Por isso, Ali propõe à irmã que use o tênis dele para ir à escola pela manhã.
Contrariada, Zahra aceita a proposta do irmão, já que a situação financeira da família
era muito grave – não haveria possibilidade de os pais comprarem um novo par de
sapatos para ela e, talvez, Zahra não pudesse mais ir à escola porque lhe faltaria
calçado.
Dessa maneira, os irmãos passam a dividir, sem que os pais descubram, o
único par de tênis de Ali para que ambos frequentem a escola. A negociação do segredo
que existe entre as crianças impulsiona o desenvolvimento de todo o enredo fílmico.
Na escola, Ali inscreve-se para participar de um campeonato interescolar de
corrida de rua, visando alcançar o terceiro lugar, que teria como prêmio um par de tênis.
Assim, ele poderia presentear a irmã. Mas, ironicamente, ele vence a corrida e não
presenteia Zahra.
No final do filme, Karim, o pai das crianças, compra um novo par de sapatos
para Zahra, assim que recebe o pagamento; contudo, o filme encerra sem que o pai
entregue o presente para a filha, enfatizando a tristeza e a solidão de Ali, que ganhou a
corrida, mas preferiria ter ficado em terceiro lugar.

Mattoti e Malekzaade: Entre as teias da floresta e as bolhas de sabão

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Figura 1: capa de João e Maria
Fonte: João e Maria, 2015

Figura 2: Ali e Zahra brincam no poço da vila em que moram


Fonte: Filhos do paraíso, 1997

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A figura 1 apresenta João e Maria de mãos dadas, ou seja, em entrelaçamento
no cerne de uma floresta; os emaranhados dos troncos das árvores ao redor de toda a
imagem das crianças sugere que elas foram engolidas pela floresta. Não há detalhes
de fisionomia ou corpo dos irmãos. A única luz do desenho focaliza os irmãos de perfil,
sem características peculiares. A floresta negra e bastante intrincada domina a capa do
livro, intensificando a pequenez das crianças naquele cenário. Essas características
sugerem o tom de horror e medo que perpassará a história. Aliás, o tom de horror e
medo prevalecerá em todas as imagens no interior da obra, evidenciando com mais
profundidade o contexto de guerra no qual transcorre a versão de Gaiman.
A figura 2 apresenta os irmãos Ali e Zahra brincando, fazendo bolhas de sabão,
no poço da vila em que moram, enquanto lavam o par de tênis que compartilham em
segredo.
Convém mencionar que a água é o principal elemento que constitui a
brincadeira dos irmãos. Por alguns instantes, eles não cumprem uma ordem dos
adultos, apenas realizam uma tarefa inesperada que se torna prazerosa pela
descontração que há entre Ali e Zahra.
É interessante notar que Ali e Zahra não podem deixar os afazeres da casa
para se distraírem. Durante, praticamente, todo o filme a mãe permanece em repouso
devido à hérnia de disco. Assim, Zahra dedica-se a cuidar do bebê, irmão mais novo
dela e de Ali, e realizar as atividades domésticas, ao passo que Ali executa atividades
fora de casa – a propósito, os sapatos da irmã desaparecem em um desses momentos
em que ele é responsável por algumas tarefas externas.

Mattoti e Malekzaade: A cumplicidade dos irmãos diante do inusitado

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Figura 3: João e Maria chegam à casa da bruxa
Fonte: João e Maria, 2015

Figura 4: Irmãos entreolham-se diante da descoberta


Fonte: Filhos do paraíso, 1997

A figura 4 mostra o momento em que bruxa apresenta-se para as crianças. É


visível o aspecto horrendo da bruxa; nariz e queixo extremamente protuberantes, além
dos braços e mãos muito magros não parecerem humanos. Não há luz no rosto de
nenhum dos três personagens.

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A entrada da casa sugere um chão de aspecto rugoso, similar ao antigo modelo
de “terra batida” das casas de pessoas mais carentes. O jogo entre o preto e o branco
de toda a página sugere a formação de teias intrincadas, direcionando a atenção do
leitor para os personagens (mais especialmente, para a bruxa), e aludindo à construção
de uma grande armadilha, que vai se configurando melhor no desenvolvimento da
narrativa.
A figura 4 evidencia o entrecruzamento dos olhares de Ali e Zahra. Eles se dão
conta de que os sapatos de Zahra já estão com outra garota, Roya, colega de escola de
Zahra. Assim como Ali e Zahra, Roya também é muito pobre. Depois de fazer os deveres
da escola, ela conduz o pai cego que vende doces na rua, para sobreviver.
O silêncio que perdura entre os irmãos nessa sequência é, sem dúvida,
extremamente representativo – traduz uma intimidade que dispensa palavras e um
compartilhamento de aprendizados impossíveis de serem esclarecidos verbalmente.
Por um lado, há o sofrimento dos irmãos por entenderem que será impossível
resgatar os sapatos de Zahra. Por outro lado, esses irmãos adquirem a consciência de
que estão juntos, diferentemente da personagem Roya, que guia solitariamente o pai
cego.

Mattoti e Malekzaade: o enfrentamento garante a sobrevivência

Figura 5: Maria empurra a bruxa para a fogueira


Fonte: João e Maria, 2015

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Figura 6: Ali corre no parque. Em sua cabeça, a irmã corre com ele
Fonte: Filhos do paraíso, 1997

A figura 5 mostra o momento em que Maria empurra a bruxa para dentro do


forno. A bruxa não tem sequer o delineamento facial, braços, mãos e, principalmente, a
parte inferior do corpo dela lembra um animal quadrúpede.
A sombra da bruxa projetada no chão é apenas uma mancha escura, sem
qualquer forma humana. Os braços de Maria são muito maiores do que o corpo da
menina, aludindo à força e à coragem dela. À distância, João, preso, parece tentar
acompanhar a cena; e, novamente, o jogo entre preto e branco formam teias intrincadas
que separam João e Maria, deixando-a no centro da cena.
A figura 6 mostra a corrida interescolar realizada em um parque. Destaca-se
na paisagem o ambiente bem arborizado e o lago ao fundo. São inúmeros estudantes
participando da corrida. A corrida realiza-se nos últimos 15 minutos do filme, é o
acontecimento que define a trajetória dos irmãos. Ali corre com os tênis desgastados,
que dividia com a irmã.
Diferentemente de João e Maria, em que os protagonistas realizam toda a
trajetória juntos, Ali corre sozinho porque cabe à Zahra o espaço doméstico. Contudo,
para representá-la, são recorrentes os trechos em que a corrida de Zahra pelas vielas
do bairro em que vivem sobrepõe-se à corrida de Ali. Assim, é como se os irmãos
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corressem juntos; para intensificar o sentido de união entre eles, Ali relembra Zahra
cobrando-o pela perda dos sapatos.

Mattoti e Malekzaade: A floresta e as vielas escondem o porvir

Figura 7: O pai conduz as crianças para o interior da floresta


Fonte: João e Maria, 2015

Figura 8: Os irmãos retornam para casa, depois de encontrarem Roya


Fonte: Filhos do paraíso, 1997

A figura 7 apresenta a segunda tentativa de abandono das crianças na floresta.


Nota-se que as crianças são levadas apenas pelo pai para a floresta. Pela ligeira

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inclinação da coluna do pai, parece que ele está arrastando as crianças e isso
representa um encargo muito pesado.
Percebe-se que, apesar de Maria ser mais velha do que João nessa história,
ela sempre aparece menor do que ele nas ilustrações. O pai dá a mão ao João e esse
à irmã, formando uma fila. Os três são reconhecidos apenas pelas características da
silhueta e a diferença de estatura. As árvores negras com os troncos retorcidos
acentuam o caráter assustador da floresta. Apesar de o pai estar junto com eles
fisicamente, está ausente afetivamente. Possivelmente, por isso, as crianças
representem um fardo pesado para ele. O elo ao longo de toda a narrativa é entre João
e Maria.
A figura 8 mostra Ali e Zahra no trajeto de retorno para casa após encontrarem
a casa de Roya e compreenderem a situação difícil da menina. A cena de retorno é
marcada por uma viela estreita em que Ali e Zahra transitam em silêncio. Ao fundo, há
uma janela com várias velas acesas. Essa cena se interliga à cena do início do filme,
que focaliza um guerreiro islâmico; ao fundo, queimam-se algumas velas.
Metaforicamente, lá, o menino inicia sua trajetória heroica, isto é, está partindo para o
combate; aqui, Ali internaliza-se, conscientiza-se de sua missão e caminha em silêncio
ao lado da irmã.

Considerações finais:
Neste trabalho evidenciou-se diferentes momentos em que as ilustrações de
Lorenzo Mattoti, na obra infantil João e Maria, adaptada por Neil Gaiman, e as
fotografias fílmicas de Parviz Malekzaade, em Filhos do paraíso, dirigido por Majid
Majidí, revelam a cumplicidade existente entre o casal protagonista de ambas as obras.
A partir da análise das ilustrações de Mattoti, percebe-se que a relação existente
entre imagens e texto verbal traduz o que Santaella (2012) denomina
complementaridade, ou seja, imagens e texto verbal complementam-se, integram-se na
construção do significado global da obra.
Com base nas fotografias de Malekzaade, nota-se que apesar de Zahra ocupar,
prioritariamente, o espaço doméstico, e Ali destinar-se ao espaço fora de casa, inclusive,
apropriando-se do papel do provedor de um casal, os irmãos mantém-se unidos durante
toda a trajetória fílmica. As brincadeiras longe dos pais e os olhares entrecruzados
diante das descobertas que modificam suas escolhas intensificam o enredo de Filhos
do paraíso.

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Dessa forma, percebe-se que as ilustrações de Mattotti e as fotografias de
Malekzaade são essenciais para evidenciarem ao público a cumplicidade existente
entre João e Maria, Ali e Zahra.

Referências:
FILHOS DO PARAÍSO. Direção e roteiro de Majid Majidí. Produção de Amir Esfandiari
e Mohammad Esfandiari. Intérpretes: Mahammad Amir Naji, Amir Farrokh Hashemian,
Bahare Seddigi e outros. Teerã: The Institute for the Intellectual Development of Children
and Young Adults, 1997. DVD (88 minutos), sonoro, colorido. Legendado.
Inglês/Português.

GAIMAN, Neil. João e Maria. Ilustração Lorenzo Mattotti; trad. Augusto Calil. Rio de
Janeiro: Intrínseca, 2015.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo:


Brasiliense, 2013.

MARTINS, Ferdinando. A censura e o cinema na República Islâmica do Irã. In: COSTA,


Maria Cristina Castilho (Org.). A censura em debate. São Paulo: ECA/USP, 2014.

MELEIRO, Alessandra. O novo cinema iraniano: arte e intervenção social. São Paulo:
Escrituras Editora, 2006.

SANTAELLA, Lucia. Leitura de imagens. São Paulo: Melhoramentos, 2012.


VOGLER, Christopher. A jornada do escritor. Trad. Ana Maria Machado. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2006.

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“LAGARTA ATREVIDA, BORBOLETA E VIDA”: UM CONTO
METAFÓRICO DE ALCIENE RIBEIRO

Júlia Fraga Rodrigues (CPAN/UFMS)


Rauer Ribeiro Rodrigues (CPTL/UFMS)

Grupo Temático 6 : Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

INTRODUÇÃO

Publicado pela editora Rauer Livros, de Uberlândia, MG, no ano 2000, Lagarta
Atrevida, Borboleta e Vida é um conto infantil escrito pela autora mineira Alciene Ribeiro
Leite (atualmente, ela assina seus livros somente como Alciene Ribeiro). O presente
artigo apresenta análise do conto através da estrutura de alternância entre sumário,
cena e elipse, para desse modo destacar a metáfora da vida fixada pela autora. Para
tanto, utilizamos os conceitos de metáfora propostos por Aristóteles e Horácio em A
Poética Clássica.
Nosso primeiro passo é reproduzir o conto:

LAGARTA ATREVIDA, BORBOLETA E VIDA


ALCIENE RIBEIRO LEITE

lagarta atrevida,
lagarta rajada,
borboleta dourada,
cheia de vida.

Por pouco a lagarta peluda não acaba com a alegria de Dona Glória. Nos
meados de dezembro ela inventa de armar a árvore de Natal no jardim. De boa altura,
uma planta no canteiro vem a calhar.

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A vizinhança exibe brilhos e cores, não fica atrás. Bom gosto e queda para
decoração é com ela mesmo.
Imagina um monte de anjos, um mundo de micro-lâmpadas, muita bola acesa
nas cores do arco-íris. Do topo, estrela iluminada derrama luz pela folhagem. Dona
Glória toda-toda. Ganha fácil o prêmio da prefeitura, que quer a cidade em traje natalino.
Aí, baita susto!
Uma gorda lagarta negra, rajada de branco, mede o galho da sua árvore em
espicha-esconde para lá e pra cá, passando uma rasteira na vaidade da mulher.
— Ah, não senhora, aí você não fica mesmo!… — sentenciou Dona Glória,
mas a lagarta nem deu bola, na andança para cima e pra baixo, como se tivesse perdido
alguma coisa. Na maior urgência de lagarta.
Entre nojo, raiva e medo, Dona Glória apela aos netos recém-chegados da
capital. Os dois, treze e dez anos, vivos e espertos, dariam um jeito.
—Tirem esse bicho daí, mas inteiro! — só de pensar na meleca dentro daquela
coisa, Dona Glória quase vomita. Credo! - Ponham num saco de plástico e amarrem
bem, senão ele escapole… depois, lixo!
—Por que jogar a lagarta no lixo, vó? Deixa a coitada aí, ela não está fazendo
mal a ninguém.
E fim de papo. Para menino de cidade grande um bicho nojento daquele tem
direitos humanos.
Como sair da enrascada, enfeitar a árvore? Ela não chega perto “daquilo” nem
morta. O pai dos garotos sai pela tangente e não resolve o impasse. Só põe a pulga
atrás da orelha de todo mundo; Até da lagarta, se é que a lagarta tem ouvidos de ouvir;
já a borboleta tem ouvidos de ouvir:
—A lagarta pode ser uma boa pessoa, mas talvez a borboleta não seja.
O homem propõe um quebra-cabeça dos brabos: a lagarta é inofensiva,
deixem-na aí; já a borboleta, não se sabe…
A pergunta: esperar para ver como fica ou cortar o mal pela raíz — isto é, pela
lagarta?
Mas dona Glória nem ouve a palavra borboleta. E não procura pulga em orelha
nenhuma ou piolho em cabeça de alfinete.
Planta-se ao portão, um olho na árvore, outro nos raros pedestres. Qualquer
menino de rua sumiria com a nojenta por uns trocados.

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Quem vê primeiro a surpresa é o olho de olho na árvore: camuflada numa
forquilha, a danada tece um casulo. Metade do corpo já está coberto. A cabeça move-
se sem paula, sim, sim, sim, sim enquanto a trama aparece.
A mulher quase cai das tamancas, embora calce chinelinhas baixas. Nada
contra lindas e esvoaçantes borboletas. Mas no lufa-lufa do fim de ano nem se lembrou
do sabido por deus e todo mundo: qualquer lagarta é capaz de metamorfose. Ou acaso
alguém pensa que lagarta futura-borboleta há de ser delgada e colorida?
O lado feio da história já pôs os pés na cova. Opa! Só os pés não, está inteiro
dentro, decerto caindo de sono eterno. Agora fica quieto o resto da vida e muito bem
comportado. Cabe a Dona Glória vigiar as ameaças ao casulo: crianças, curiosos,
enfeites natalinos – nem estrago no túmulo do feio, nem ferida no berço do belo. Ela
assume a gestação da borboleta no maior empenho
Em quinze dias os pelinhos da lagarta espetam-se para fora do casulo
escurecido. E quarenta e nove após o tira-não-tira da árvore, uma borboleta dá o ar da
graça.
Cansa a beleza por ali algumas horas, exibindo-se. As asas pretas bordadas
de bolinhas rosas parecem luzir douradas ao sol. Os pelinhos brancos ao longo do corpo
negro lembram plumas de algodão. E os detalhes rosa na cabeça também negra imitam
tiara de coral.
Como rainha de coroa e manto, voa sabe-se lá pra onde. Vai cumprir o seu
destino na vida. — Ah, a vida! A vida que muda, renova-se e nunca morre.

* * *

Observe-se que o conto foi republicado, revisto e renomeado, no livro


Mulher explícita, lançado por Alciene em 2019 pela Editora Pangeia, também de
Uberlândia. Entre as páginas 117 e 120 está o conto “Lagarta gente boa”. Já de início,
a quadrinha com que se abre a publicação destinada ao público infanto-juvenil não
consta nesta nova versão.
Nossa análise se centra, no entanto, no pequeno livro publicado no início do
século, embora pareça do maior interesse fazer estudo comparado entre as duas
versões, tanto por opções de linguagem como, eventualmente, para verificar se as
alterações introduzem uma nova cosmovisão, seja pela metáfora geral, seja pelos
efeitos de sentido gerados pela narrativa.

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Observe-se ainda que na primeira publicação ela assinou como Alciene Ribeiro
Leite e que no livro mais recente, assinou como Alciene Ribeiro.

SUMÁRIO
Situado no espaço do lar de Dona Glória, o conto foca na lagarta como ser
repugnante sob o olhar de Glória, que solicita ajuda de sua família, no primeiro momento
do neto, para a remoção do animal. A fábula é escrita em terceira pessoa por narrador
observador. O conto tem início com a suma do tempo do ser metamórfico caminhando
pela árvore de Natal da dona da casa e o susto e asco de dona Glória ao avistá-lo.
Durante o desenvolvimento do conto é descrito o momento de construção do
casulo e depois do nascimento da borboleta. Desse modo, dos sumários narrativos às
cenas dialogadas, o narrador mostra a mudança no tempo da personagem dona Glória.
Assim, o conto descreve a repugnância inicial, o sermão de seu filho, as brincadeiras
dos netos, e o processo lagarta-casulo-borboleta.
Nas últimas páginas do livro, o narrador sumariza o nascimento de uma bela e
admirável borboleta após os quinze dias da lagarta em seu casulo; e assim, a nova
borboleta voa para locais fora da ciência dos leitores, e o narrador comenta que é assim
que a vida nunca morre, sempre se renovando.

CENAS E ELIPSES TEXTUAIS


Verifiquemos as cenas e as elipses textuais que se alternam na construção do
conto.
O conto tem início com o susto de dona Glória ao encontrar uma lagarta negra
e rajada de branco no galho da árvore-de-natal que está enfeitando. Trata-se de um
sumário narrativo descritivo, com seis parágrafos, no qual o quinto parágrafo está em
discurso direto, mas que provavelmente seja um recurso expressivo para dar força e
peso ao que seria um discurso indireto livre da protagonista, como se ela enunciasse
em voz alta o seu pensamento. Este primeiro bloco, que introduz o enredo e define o
conflito, apresenta nas duas últimas linhas dois netos de Dona Glória, meninos “vivos e
espertos”, que “dariam jeito” naquele problema.
Comentemos o que indicia esse bloco inicial. É preciso, no entanto,
esclarecermos que esses blocos são didáticos, estabelecidos na análise, pois o conto
se dá em narrativa contínua, sem nenhuma divisão interna.
Emerge dele certo preconceito da avó, que se incomoda e quer a expulsão da
lagarta gorda e negra. Após a cena de recusa e insatisfação de dona Glória, esta solicita

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que seu neto, mais vivido, nascido e criado em cidade grande, realize a remoção do ser
ignóbil e aparentemente maléfico de sua casa, a lagarta negra, gorda e peluda. A
inferência a partir do oculto se interpreta pelo olhar de uma senhora interiorana que,
implicitamente abordado pelo narrador, expõe ironia sobre a crença na superioridade,
proposta por dona Glória, dos indivíduos criados em locais urbanos. Mais à frente será
exposto posicionamento irônico: “Para menino de cidade grande um bicho nojento
daquele tem direitos humanos”.
Na obra de Alciene surge em outros momentos essa visão da superioridade de
pessoas criadas em capital. No livro Mulher explícita (RIBEIRO, 2019), ao retratar um
homem vindo da capital, o conto “Independência e Morte” o mostra como “vivido nos
sete mares”, entre outros atributos positivos. No final, esse homem superior e rico,
educado, se mostra um homicida. A superioridade se esvai para além da ironia: não há,
talvez até seja o contrário.
No segundo bloco do Lagarta atrevida, borboleta e vida, as duas crianças, os
netos, um de treze e outro de dez anos, replicam ao pedido da avó para que retirem a
lagarta, com uma frase que iluminará todo o conto: “ela não está fazendo mal a
ninguém”. Ao que ela, desconsolada, pensa: “Para menino de cidade grande um bicho
nojento daquele tem direitos humanos”.
Eis que o diálogo rebate ironicamente o susto e medo da protagonista, pela
qual a condução da narrativa criava empatia. Há uma sequência de discursos indiretos
livres, discursos diretos, e o narrador em onisciência seletiva com foco na protagonista
termina por amplificar a ironia da situação, deixando Dona Glória na situação de quem
pedira um assassinato de um ser indefeso e inofensivo.
O filho da protagonista, pai das crianças, “propõe um quebra-cabeça dos
brabos”, pois concorda com os meninos de que “a lagarta pode ser uma boa pessoa”,
mas que, no entanto, “talvez a borboleta não seja”. A questão do bem ganha uma
nuance, e o mal, provável, quem sabe, teria de ser cortado “pela raiz”? O narrador, entre
discurso indireto livre e autoironia nos desvela as angústias que permeiam a
protagonista.
Resoluta, ela procura na rua alguém que possa tirar da “sua” árvore de Natal a
intrusa: “qualquer menino de rua sumiria com a nojenta por uns trocados”; para dona
Glória, por necessidade de “uns trocados”, os mais pobres aceitariam a incumbência.
Mas, ao voltar o olhar para a árvore, vê que “a danada tece um casulo”. Acompanha o
trabalho da lagarta se envolvendo, dando-se conta que não prestara atenção nos

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anúncios dos familiares de que ali estava uma borboleta, esquecida de que conhecia a
metamorfose de “qualquer lagarta”.
Há nesse bloco narrativo, que se inicia em “Mas Dona Glória nem ouve a
palavra borboleta” e vai até “assume a gestação da borboleta no maior empenho”,
escolhas lexicais nas quais subjazem significados cujos sentidos latejam para o leitor
infantil, mas que só luzem a partir da análise de leitor mais proficiente. O já mencionado
“danada”, por exemplo: no universo das poucas letras, trata-se de alguém que faça uma
arte – ops, e aqui arte também tem polissemia: da brincadeira infantil para o universo
estético – enquanto em um universo esotérico pode indicar, em eufemismo, o próprio
demônio. O transcendental também surge no bloco quando menciona que a lagarta “já
pôs os pés na cova” e está caindo no “sono eterno”. Estética e transcendência se unem
na imagem do casulo como “berço do belo”
As últimas “cenas” – a anterior e o fecho da narrativa, com os três últimos
parágrafos – apresentam o processo metamórfico até o final. Após tal transformação, a
borboleta é descrita como um ser de pelinhos brancos que remetem a plumas de
algodão. No começo do conto, os pelinhos da lagarta são descritos como grotescos. O
feio é igualado ao mal, o belo ao bem, no entanto um está no outro, assim é a vida, pois
é da vida em sua constante renovação que o conto trata, como o fecho, ao modo de
fábula, mas a um modo discreto, como se decorrência natural das vocalizações do
narrador intruso, irônico e palpiteiro, emerge uma moral sem moralidade: “A vida [...]
nunca morre”. Desse modo, a transcendência, julgamento do bem e do mal, na
cosmovisão de Alciene, se faz em contiguidade permanente e eterna com a vida terrena.
Ultrapassando os limites dos significados da narrativa, mas autorizados por ela,
podemos dizer que, para a ficcionista, o universo é renovação permanente em que nada
se perde, Deus sendo seu Laivosier.
Vejamos isso em detalhe a seguir.

METAMORFOSE E METÁFORA
Ao cumprir o objetivo do conto, o conto de Alciene trata da regeneração da vida.
Temos uma metáfora na metamorfose da borboleta. Temos uma parábola na
constituição estrutural do conto. Temos uma fábula na evocação de animais com fecho
em discreta moralidade. Tratemos da metáfora na clave aristotélica da verossimilhança.
Segundo Aristóteles, o imitar é natural ao ser humano, conforme uma arte imita a outra:
Por serem naturais em nós a tendência para a imitação, a melodia e o ritmo —
que os metros são parte dos ritmos é fato evidente — primitivamente, o mais bem

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dotados para eles, progredindo a pouco e pouco, fizeram nascer de suas improvisações
a poesia.
A poesia diversificou-se conforme o gênio dos autores; uns, mais graves,
representavam as ações nobres e as de pessoas nobres; outros, mais vulgares, as do
vulgo, compondo inicialmente vitupérios, como os outros compunham hinos e encômios.
(ARISTÓTELES, 2014, p. 22).
Aristóteles defende a proposta da poesia como um efeito da realidade. Ele
define a verossimilhança como a arte em que o poeta conta as possíveis ações
cometidas pelos seres humanos de modo compatível com a concretude do real. Já a
metáfora é conceituada como uma transferência analógica de um gênero a outro. Trata-
se de utilizar um termo por outro, tomar a parte pelo todo, gerar significados por
contiguidade.
Alciene Ribeiro, em Lagarta Atrevida, Borboleta e Vida, trabalha o enredo na
clave da verossimilhança, seguindo as prescrições da natureza na transição temporal
da metamorfose da lagarta em borboleta, na construção da psique de uma avó
interiorana e no modo de pensamento e expressão do filho e dos netos. As metáforas
se apresentam na polissemia de vocábulos-chave, na utilização simbólica da
metamorfose e no jogo lúdico em que os deslizamentos de sentido se sucedem, tendo
por apoio tropos da ironia e um profundo sentimento de empatia por tudo o que é
humano.
O conto encena, pois, em seu enredo, o processo metamórfico da lagarta em
borboleta. Em paralelo, o narrador desvela outro procedimento metamórfico: a
transformação de dona Glória. Após a recusa da remoção do inseto, dona Glória
“amadurece” a ideia de deixar que a futura borboleta permaneça no local, afinal, a
lagarta passará pelo processo que a levará a ser uma borboleta. Dona Glória se renova
e decide proteger o casulo do inseto miúdo:
Cabe a dona Dona Glória vigiar as ameaças ao casulo: crianças, curiosos,
enfeites natalinos – nem estrago no túmulo do feio, nem ferida no berço do belo. Ela
assume a gestação da borboleta no maior empenho. (RIBEIRO, 2001, p. 9)
A passagem, que na nossa divisão didática fecha o penúltimo bloco do conto,
sintetiza o renascimento de Dona Glória, transformada de “demônio” (por contiguidade
com o “danada” com que “nomeia” a lagarta) em “parteira” do novo, do belo, da “rainha
de coroa e manto”, como é descrita a borboleta antes de seguir seu destino. Observe-
se que a descrição da borboleta parece evocar não de uma rainha, mas as imagens de
Nossa Senhora. À maneira do iceberg de Hemingway (a propósito das proposições de

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Hemingway, ver Rauer, 2020), essa é, no conto, mais uma das evocações metafóricas
da transcendência, da vitória definitiva do Bem sobre o Mal, construída de modo
subterrâneo e magistral por Alciene Ribeiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um aspecto que não tratamos até o momento é o modo como a escritora
pontua a narrativa com números significativos, que impõem significados. O conto insere
o número quinze ao descrever a transformação da pupa. É uma escolha autoral, entre
as opções do referente natural. É relevante ter ciência de numerologia para
compreender a pretensão da contista:
O número 15 simboliza o amor e as mudanças que o amor traz à sua vida. Ele
também simboliza novos começos no amor, sucesso no amor, grandes mudanças na
vida, novas escolhas, novas ideias e novos empreendimentos criativos. (O
PROVEITOSO)*150
Após descrever a cena com o número quinze, o número quarenta e nove é
inserido. Em numerologia, o símbolo 49 tem uma história:
O número 49 é um símbolo de segurança e progresso, em primeiro lugar.
Representa continuidade, firmeza, tradição, patriotismo e persistência.( O
PROVEITOSO)*151
Estamos no antepenúltimo parágrafo, aquele que abre o bloco de fecho do
conto. Ei-lo:
Em quinze dias os pelinhos da lagarta espetam-se para fora do casulo
escurecido. E quarenta e nove após o tira-não-tira da árvore, uma borboleta dá o ar da
graça. (LEITE, 2001, p. 12)
Temos, pois, amalgamados, nas escolhas da contista para o clímax da
narrativa, o amor como renascimento, em progresso seguro, em persistente
continuidade. A vida, textualizada a seguir, está assim descrita de modo simbólico,
prévio, no iceberg das escolhas lexicais da autora.
Outra questão a ser trazida no fecho de nossa reflexão é a apreensão de que
a autora nutre empatia profunda pelas personagens e pela humanidade, o que
depreendemos ao vermos que do referente social, em que preconceitos e
estranhamento diante da alteridade é a rotina da convivência entre as pessoas. Vemos

150
In: <https://www.proveitoso.com/significado-do-numero-15-numerologia-quinze/>, acesso
em 19/09/2020.
151
In: <https://www.proveitoso.com/significado-do-numero-49-numerologia-quarenta-e-nove/>,
acesso em 19/09/2020.
809

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isso na postura entre irônica, complacente e compassiva do narrador diante do
preconceito de Dona Glória quanto à lagarta e a transformação e aceitação do outro,
mediada pela voz dos familiares, por sua observação da realidade e por sua
sensibilidade intrínseca. Em Alciene, a humanidade é acolhida amorosamente, apesar
dos seus defeitos, talvez justamente por sua imperfectibilidade, pois pode “evoluir”, pode
ser modificada, pode alcançar um novo patamar, melhor que o anterior.
Em suma, e finalizando, ao tratar da estrutura do conto, de elementos
numerológicos, de suas cenas e sumários, examinando efeitos metafóricos e
cosmovisão, verificamos que o conto Lagarta atrevida, borboleta e vida, sob a forma de
um livro para crianças, contém significados que se amplificam; desse modo, é leitura
que apraz ao público infantojuvenil e que desafia o leitor proficiente. Alciene Ribeiro,
neste conto, faz um pequeno relicário do humano: seu conto de Natal é uma obra-prima
do conto brasileiro contemporâneo. A metáfora da regeneração da vida e as sempre,
contínuas e inacabadas metamorfoses nos representam como sujeitos e como
sociedade em constante e eterna transformação.

REFERÊNCIAS:
Aristóteles, Horácio, Longino. A poética Clássica. São Paulo: Cultrix, 2014.

LEITE, Alciene Ribeiro. Lagarta atrevida, borboleta e vida. Uberlândia, MG: Rauer
Livros, 2001. 12 p. [Republicado, como “Lagarta gente boa”, em RIBEIRO, 2019].

RIBEIRO, Alciene. Mulher explícita. Organização e posfácio de Rauer Ribeiro


Rodrigues. Uberlândia, MG: Pangeia, 2019. 208 p.

RAUER [Rauer Ribeiro Rodrigues]. Hemingway: Um mergulho na “teoria do iceberg”.


Disponível em < https://editorapangeia.com.br/a-arte-de-escrever-16-hemingway-um-
mergulho-na-teoria-do-iceberg/ >, acesso em 19/09/2020. (A arte de escrever 16).

O PROVEITOSO. Numerologia. In: <www.proveitoso.com> Acesso em: 19/09/2020

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LITERATURA E HISTÓRIA EM UMA LEITURA DE ‘CONTO DE
ESCOLA’, DE MACHADO DE ASSIS.

Alessandra Maria Moreira Gimenes - Universidade de São Paulo


Camila Augusta Valcanover – Universidade Presbiteriana Mackenzie152

Eixo Temático 6: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens.

Considerações iniciais
Um dos objetivos fundamentais da escola é o desenvolvimento do hábito da
leitura. A leitura é fundamental para a formação dos sujeitos, bem como para a
construção de um conhecimento crítico para analisar e intervir na realidade. Assim, faz-
se necessário um conjunto de saberes prévios que considerem as experiências e os
conhecimentos do leitor. Soma-se a isso o fato de a literatura ser um fenômeno da
linguagem resultante de uma experiência existencial, social, política e histórica. Nessa
perspectiva, o texto literário é um objeto artístico e polissêmico que questiona
convenções e envolve o leitor num jogo de descobertas e redescobertas de sentido,
ajudando-o a compreender a si próprio, as culturas e o mundo em que vive.
É possível compreendermos que ler não é uma atividade meramente escolar.
Ler é uma atividade social, que nos move e orienta. Não é à toa que nos envolvemos
com a leitura, sobretudo com a leitura literária, e não é raro verificar que assim ocorre
também na escola.
Em um encadeamento lógico, concebemos que se trabalhamos no sentido de
melhorar a leitura, assim também o fazemos para a leitura de literatura, campo onde
também há uma série de dificuldades e limitações, tais como o inadequado trabalho com
o texto literário em sala de aula, em virtude de fatores como: a) a formação do professor-
leitor, muitas vezes incompleta; b) dificuldade de leitura, tributária de uma sôfrega
caminhada de alfabetização que, muitas vezes, faz com que os alunos se desmotivem

As autoras integram o grupo de pesquisas “Linguagens na Educação”, vinculado à


152

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP.


811

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da leitura (LAJOLO, 1982). Não raro, a experiência com a leitura e escrita na escola
pode tornar-se um gatilho para a baixa autoestima, por ser um processo difícil para
muitos estudantes.
A realização de um trabalho de qualidade com o texto literário necessita mais
que decodificar o código, é o que expõe Aguiar:

[...]. Ler, no entanto, não é apenas decifrar um código: é perceber a


interligação lógica dos significados, as relações entre eles e, o que é
mais importante, assimilar o pensamento e as intenções do autor,
posicionando-se diante dele, utilizando conteúdos ideativos adquiridos
em novas situações (AGUIAR, 1999, p. 153).

Essa definição demonstra que a atividade de leitura – porque atividade


comunicativa – requer um leitor ativo e participante. Claramente, o leitor é uma instância
necessária ao ato de ler. Em vez de mero receptor, o leitor é coconstrutor do sentido
dos textos, atualizando-os na mesma medida de seu horizonte intelectual, pessoal e
cultural, que vai se alargando com as novas leituras que incorpora ao longo da vida.
As perspectivas de Aguiar (1999) e Lajolo (1982) convergem à medida que
apontam para a necessidade de a escola repensar as práticas de leitura, fazendo com
que a leitura e a literatura desempenhem sua função social. Nesta mesma direção
Colomer afirma que “a aprendizagem da literatura se realiza em meio a um grande
desenvolvimento social de construção compartilhada do significado” (COLOMER, 2007,
p. 139).
Assim, a proposta desse artigo descrevendo a leitura e interpretação de Conto
de Escola, de Machado de Assis a partir do texto verbal e da adaptação para a
linguagem dos quadrinhos, revela a intersecção entre a história e a literatura,
compartilha experiências, constrói sentidos, incentiva à leitura e a vivência da dimensão
socializadora da literatura, proporcionando o sentimento de pertencimento a uma
comunidade de leitores com referências e cumplicidades mútuas (COLOMER, 2007).

Ler e ler na escola – o referencial teórico


Para que a obra literária se concretize é fundamental a interação texto e leitor. A
recepção do texto literário remete à Poética de Aristóteles (1981), quando o autor ao
conceber a poesia enquanto mimese reconhece que a representação das ações
humanas provoca um efeito sobre o público. O efeito do texto sobre o público, sobre o
leitor, é tema de estudo da Estética da Recepção.
Para Jauss, na leitura do texto em si mesmo, o leitor passa a ser o elemento
fundamental da História literária, estando o efeito da obra na recepção, esta coletiva,
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uma vez que “há um saber prévio, ele próprio um momento dessa experiência...”, o novo
não se apresenta totalmente desprovido de passado – as leituras, experiências
anteriores do leitor fundem-se inaugurando uma nova experiência ou como denomina o
próprio autor um “horizonte de expectativa”. Assim,

... a história da literatura é um processo de recepção e produção


estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do
leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do
crítico, que sobre eles reflete (JAUSS, 1994, p.17).

Jauss manifesta-se contra a recepção da obra literária dissociada de questões


sociais, culturais e históricas. A História é abordada do ponto de vista sincrônico, não
somente o linear apresentando uma nova perspectiva onde o passado deve ser
repensado e resgatado a partir de indagações do presente. A historicidade da obra
literária estaria em sua capacidade de ressurgir em diferentes épocas, em diferentes
leituras e em distintos leitores.

A implicação histórica manifesta-se na possibilidade de, numa cadeia


de recepções, a compreensão dos primeiros leitores ter continuidade e
enriquecer-se de geração em geração, decidindo, assim, o próprio
significado histórico de uma obra e tornando visível sua qualidade
estética (JAUSS, 1994, p.23).

Para Iser, o leitor é um indivíduo histórico, sem existência real, contudo, é, antes,
uma ficção do autor que se materializa no texto, passando a fazer parte de sua estrutura.
Textos literários ou não somente tornam-se reais ao serem lidos, contudo, nos literários,
papéis são assumidos pelos receptores no ato de leitura – o papel de leitor se define
como estrutura do texto e como estrutura do ato (ISER, 1996, p.73).
Assim, a recepção da obra é responsabilidade do leitor, uma vez que este já é
previsto pelo texto, o autor no ato de criação imagina o receptor de sua obra e o inscreve
nela, antecipando sua presença. Ao representar uma perspectiva de mundo criada pelo
autor, o próprio texto literário é uma figura de perspectiva. As diferentes perspectivas
são também centros de orientação que, relacionados formam um quadro comum de
referências e estas se tornam uma estrutura textual para o leitor que, se vê obrigado a
assumir um ponto de vista que permita produzir a integração das perspectivas textuais
(ISER, 1996, p.74).
Contudo, esse ponto de vista não se constitui em escolha livre do leitor, é antes
parte da estrutura interna do texto, somente quando todas as estruturas textuais se
convergirem em um quadro comum de referências, o ponto de vista do leitor torna-se
apropriado. Inscrito no texto, o papel do leitor implícito não pode ser confundido com a

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ficção do leitor - mais uma das perspectivas do texto pela qual deve se orientar o papel
do leitor.

Na ficção do leitor mostra-se a imagem do leitor em que o autor


pensava, quando escrevia, e que agora interage com outras
perspectivas do texto; daí se pode deduzir que o papel do leitor designa
a atividade de constituição, proporcionada aos receptores dos textos
(ISER, 1996, p. 75).

Na concepção de Iser o papel do leitor se realiza histórica e individualmente, de


acordo com as vivências e a compreensão previamente constituída que os leitores
introduzem na leitura. (ISER, 1996, p.78).
Desta forma, os diferentes leitores, de diferentes épocas, mesmo não
intencionados pelo autor no momento de sua escrita, conseguem perceber o significado
de uma obra literária de período histórico distinto. Da mesma forma, o autor – também
um leitor de sua época, termina por incutir à sua obra as condições históricas que o
influenciaram no momento da produção de seu texto. A diversidade da recepção deve-
se à subjetividade de cada leitor, indivíduo único, histórico e como tal, significa os textos
no ato da leitura de maneiras diversificadas.
Identificando-nos com a proposta da Estética da Recepção, foi que nos
propusemos a propagá-la, ainda que de forma sucinta a um grupo de professores que
conosco se aventuraram pelas páginas de “Conto de escola”, de Machado de Assis.

Conto de escola

Publicado na Gazeta de Notícias em 1884 e, posteriormente, na coletânea


Várias Histórias em 1896, “Conto de escola” é ambientado em 1840 é, na opinião de
John Gledson (2006), um dos contos mais famosos de Machado de Assis. Algumas
interpretações de críticos dizem que seu tema gira em torno da Educação e da escola;
outros, que o tema que está subentendido na linguagem que mascara a intenção,
característica machadiana, é o da corrupção e da delação.
A narrativa se inicia por meio da descrição do fragmento da memória do
estudante Pilar, protagonista e narrador, determinando o tempo e o espaço pelo qual as
personagens desenvolverão suas ações. Além das informações acerca da localização
de onde os fatos narrados ocorreram, a voz narrativa informa algo a mais, informa as
transformações ocorridas ao longo do tempo no espaço predileto para as brincadeiras,
o morro de S. Diogo e o campo de Sant’Ana, que outrora, em sua época de menino, era
um espaço com características rurais, mas que então se tornara não somente um
espaço urbanizado, mas bairro de elite. Essa transformação do espaço físico destacada

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pelo narrador revela a distância que separa o tempo narrado do tempo vivido e dá a
dimensão histórica à narrativa.
A reflexão acerca de um fato, intenção do discurso de Pilar em sua
rememoração, de um tempo passado, determina “a dialogia interna da linguagem” em
que as características textuais dependem simultaneamente “do modo de dizer um
processo reflexivo e também da consciência que elabora o discurso” (MACHADO, 1995,
p. 146). O rememorar do protagonista procura “captar – encenando – as suas próprias
impressões, reações, pensamentos e sentimentos na época em que os fatos se
passaram, seguindo a ordem de suas descobertas...” (LEITE, 1985, p. 45). Foi a
conscientização de uma experiência determinante, ocorrida no passado e então mais
bem compreendida pela personagem no presente narrativo, que desencadeou o
processo de reflexão, em que elabora uma série discursiva – um diálogo interior do
narrador Pilar consigo mesmo e com seus interlocutores: Raimundo, Curvelo e mestre
Policarpo (GIMENES, 2014, p.96).
Machado de Assis alerta o leitor para o momento político e social do fim do
século XIX: “Não esqueça que estávamos então no fim da Regência, e que era grande
a agitação pública” (ASSIS, 2004, p. 99). Pela voz do narrador, o leitor identifica o
momento histórico do final da Regência, desta forma, se mune de fatos que implicarão
em sua interpretação de um sistema escolar rígido decorrente de uma sociedade muito
conturbada.
No artigo “Conto de escola: uma lição de história”, de autoria de John Gledson,
a leitura do conto de Machado de Assis, se orienta pelo viés histórico. De acordo com o
crítico, a narrativa machadiana apresenta fatos históricos do país, que se ajustam à
antecipação da maioridade de D. Pedro, “é uma obra de arte, simplesmente pelo
realismo vívido e autêntico e por sua efetiva dramatização de uma moral explícita”,
(GLEDSON, 2006, p. 92).
A intenção de Machado de Assis pela ótica de Gledson é uma “especulação
contínua”, uma vontade extrema de compreender a “natureza da história e das
instituições políticas do Brasil do século XIX” (GLEDSON, 2006, p. 92). Interessava ao
nosso escritor oitocentista, compreender e “desvendar o sentido do processo histórico
referido, buscar as suas causas mais profundas, não necessariamente evidentes na
observação da superfície dos acontecimentos” (CHALHOUB, 2003, p. 92). O período
histórico brasileiro a que a personagem Pilar se refere é o da Regência, marcado por
inúmeras revoltas sociais e pela reestruturação das forças políticas (GIMENES, 2014,
p. 106).

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A referência a maio de 1840 é cuidadosamente escolhida. A Regência
estava acabando, em um sentido muito específico: esse foi o mês em
que uma seção do Partido Liberal propôs pela primeira vez a
antecipação da Maioridade de d. Pedro II, que faria dezoito anos
somente em 1843, mas que foi de fato proclamado maior de idade
quando tinha catorze anos, em 2 de julho de 1840 (GLEDSON, 2006,
p. 93).

A descrição do momento histórico e social é resgatada na rotina de aula imposta


pelo professor Policarpo: “Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada
dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem: começaram os trabalhos”. (ASSIS,
2004, p. 97).
A arquitetura do conto é construída a partir de oposições, como em um sistema
binário. O conto se inicia com a indecisão do personagem-narrador titubeando entre
brincar no morro ou no campo, o que se desdobra na dúvida entre brincar ou ir à escola.
As oposições estão presentes na comparação da descrição da escola como o espaço
de aprisionamento e a liberdade das ruas, gozada pelos meninos vadios. Ao se
apresentar, e ao seu colega Raimundo, o personagem-narrador também o faz por
oposições:

Chamava-se Raimundo este era pequeno, e era mole, aplicado,


inteligência tarda [...]
Reunia a tudo isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina,
pálida, cara doente; raramente estava alegre. [...]. Custa-me dizer que
eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que
era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de
excelente efeito de estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que
não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro.
(ASSIS, 2004, p.98).

A dualidade segue a progressão do conto: aceitar ou não a moeda oferecida por


Raimundo para ensinar-lhe a lição. Assim as oposições que se estabelecem: entre
delator (Curvelo) e infratores (Raimundo e Pilar), entre as gerações (pais e filhos), entre
professor e alunos, entre favor e troca, repressão e resistência, fraqueza e resiliência,
passado e presente, trazem a crítica machadiana para o universo escolar, seus métodos
e função social.
O caráter dual da narrativa é verificado na presença das duas histórias que
ocorrem simultaneamente: uma é o relato da experiência escolar do menino Pilar, que
revela o lado obscuro das relações humanas; outra é a história política do Brasil, lida
pelo professor no jornal do dia. A sala de aula abarca esses dois universos, esses dois
dramas.

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Polissêmico, o conto apresenta outras leituras possíveis. Nossa intenção, ao
apresentá-lo ao nosso público de professores-leitores, era desenvolver ao menos essas
duas possibilidades e ouvir as produzidas por sua experiência de leitura.

A leitura: lendo palavras e imagens153


A atividade de leitura de “Conto de escola” foi desenvolvida em agosto de 2019,
em formato de oficina, nossa proposta de trabalho, procurou articular o saber dos
discursos literário e histórico, delimitando suas fronteiras e valendo-se de sua
aproximação, propondo a leitura compartilhada da obra de Machado de Assis,
apresentando referenciais teóricos que oferecem práticas de leitura e modos de ler
obras literárias no Ensino Fundamental. Os professores que dela participaram, optaram
por fazê-lo através de prévia inscrição e por interesse, uma vez que foi disponibilizado
a eles ementas de oficinas e minicursos.
A prática de leitura foi organizada em dois momentos e com públicos distintos.
O primeiro, o período da manhã, contou com trinta professores (as), em sua maioria
atuantes nas séries iniciais do Ensino fundamental I e, alguns de diversas áreas de
Ensino Fundamental II. O período da tarde, contou com 27 professores (as) de Ensino
Fundamental I e Educação Infantil, atuantes, sobretudo em creches. A nossa primeira
impressão, além das características próprias e comuns da atividade da docência, foi o
manifesto interesse de ambos os grupos em entender e discutir práticas da leitura em
sala de aula.
Iniciamos com uma breve apresentação e solicitamos aos participantes que
fizessem o mesmo, na tentativa de deixá-los à vontade e de nos familiarizarmos. Os
professores (as) foram informados sobre o tema, com o cuidado de não exceder nas
informações, dada a preocupação de não possibilitar a pré-formação de ideias e de
concepções que pudessem influenciar sua participação na recepção da leitura.
Os participantes viram na proposta de formação de um grupo de leitura, além de
um espaço para ler, de diálogo, troca de experiências, um espaço de desabafo. Quanto
a nós, a impressão que tivemos neste início, foi a de um grupo de professores (as)
comprometidos (a)s com seu trabalho de educadores (as), como demonstra a sua
participação na atividade.

153
A Atividade de leitura de “Conto de escola” que passamos a descrever foi realizada por
ocasião III Colóquio Linguagens na Educação – Santos/SP (na 31ª Semana da Educação Prof.
Paulo Freire), em oficina organizada e desenvolvida pelas autoras.

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Na Sequência, passamos a apresentação de nosso referencial teórico, o estudo
da literatura a partir da perspectiva do leitor como elemento fundamental da história
literária, de Hans Robert Jauss (1994) e Wolfgang Iser (1996) e a concepção do leitor
implícito. Ao mostrar a importância que um texto pode assumir, destacamos que o
discurso presente na comunidade de leitura, é o de sua recepção, ou seja, dos sentidos
possíveis que a interpretação do leitor pode estabelecer, ressaltando uma vez mais a
importância de suas opiniões e colaboração.
Contando com a colaboração de todos, distribuímos a cada participante uma
cópia da versão integral de “Conto de escola”, e iniciamos a leitura compartilhada, que
ocorreu livremente, as pessoas, quando à vontade, seguiam a leitura antes feita pelo
colega, até que lemos todo o conto. Ressaltamos que dos 57 participantes, apenas uma
professora conhecia o conto machadiano e declarou já o ter lido com os alunos. Após a
leitura, os leitores-professores passaram a narrar as suas impressões, que se
concentraram em sua grande maioria, na comparação com as práticas cotidianas
vivenciadas no espaço da escola.
Na sequência do debate, e tentando mostrar aos professores a possibilidade da
leitura do conto em análise com alunos do Ensino Fundamental, passou-se a leitura da
adaptação, feita pelo quadrinista Silvino. Conhecendo a linguagem utilizada por
Machado de Assis, a experiência de leitura do texto na linguagem dos quadrinhos
converteu-se em uma possibilidade de exercitar a leitura de textos multimodais,
possibilitando uma experiência de multiletramento.
O termo multiletramento surgiu no intuito de englobar as atuais discussões
referentes às novas pedagogias do letramento e difere do conceito de letramentos por
este se referir à multiplicidade e variedade das práticas letradas da nossa sociedade e
aquele fazer referência tanto à multiplicidade cultural quanto à semiótica de constituição
dos textos (ROJO, 2012).
A sociedade contemporânea está inserida em um mundo multicultural, e isso
vem aumentando gradativamente. Esta sociedade se constrói sem fronteiras ou divisões
culturais, e com isso as mídias para interligar um grande contingente de pessoas
tornaram-se também multifacetadas. Ou seja, a tinta, o papel e a linguagem verbal não
dão conta, sozinhos, de veicular os vários sentidos produzidos ininterruptamente pela
comunidade global. Desse modo, é preciso capacitar os cidadãos para lidarem
efetivamente com esse “novo” mundo letrado, capacitando-o ao multiletramento que o
circunda. Segundo Rojo:

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[...] ‘multiletramento’, aqui, significa que compreender e produzir textos
não se restringe ao trato do verbal oral e escrito, mas à capacidade de
colocar-se em relação às diversas modalidades de linguagens – oral,
escrita, imagem, imagem em movimento, gráficos, infográficos etc. –
para delas tirar sentido. (ROJO, 2004, p. 31).

Durante décadas as histórias em quadrinhos foram vistas pelos educadores


como subliteratura, segundo Ângela Rama (2004) o processo de introdução das
histórias em quadrinhos na sala de aula demandou tempo, e em muito resultou do
próprio debate entre educadores sobre a introdução de novos elementos para a
dinamização do ensino:

A inclusão efetiva das histórias em quadrinhos em materiais didáticos


começou de forma tímida. Inicialmente, elas eram utilizadas para
ilustrar aspectos específicos das matérias que antes eram bastante
restritas por um texto escrito. Nesse momento, as histórias em
quadrinhos apareciam nos livros didáticos em quantidade bastante
restrita, pois ainda se temia que sua inclusão pudesse ser objeto de
resistência ao uso do material por parte das escolas. No entanto,
constatando os resultados favoráveis de sua utilização, alguns autores
livros didáticos começaram a incluir os quadrinhos com mais
frequência em suas obras, ampliando sua penetração no ambiente
escolar. (RAMA, 2004, p. 95).

Além das possibilidades de verticalização da leitura, as histórias em quadrinhos


unem formas distintas de expressão cultural: as artes plásticas e a literatura. O que se
ganha e o que se perde nessa transposição de linguagem? Sobral (2008) ressalta que
existem diversas abordagens sobre o assunto, sendo mais prudente tratar de tipos de
adaptação ou adaptações. A adaptação, segundo a autora, é um processo de diálogo
intertextual onde o material original é reconstruído, reconfigurado, em outro universo
expressivo.
Há vários modos de iniciar a leitura de uma obra. Optamos por iniciar a leitura a
partir da capa, estratégia pouco trabalhada, mas constitui uma ferramenta de extrema
importância para promover o letramento visual e aguçar o senso crítico do leitor, uma
vez que uma escolha equivocada da ilustração pode comprometer a produção de
sentidos pelo leitor. Esse primeiro contato do leitor, a partir desse elemento paratextual
persuasivo convida-o a ler o seu conteúdo na íntegra. Ou seja, o que por tempos fora
visto apenas como mera proteção do miolo (Genette, 2009), agora possui função de
persuasão literária ao leitor.
A adaptação de Laerte Silvino chega às mãos do leitor, referenciando o autor da
obra original: Machado de Assis, seguido do ilustrador Silvino. Ainda na capa, o leitor
encontra as informações de que a obra pertence à série “Clássicos em HQ” e o texto
está colocado de forma integral. O texto imagético conduz o leitor à escola, cenário onde

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as ações se desenvolvem. A moeda de prata, elemento fundamental para a progressão
da narrativa também está presente na capa.
Nikolajeva e Scott (2011) destacam que o livro ilustrado é a combinação baseada
na soma dos dois níveis de comunicação, a verbal e a visual. Assim, pode-se
compreender a ilustração na capa em um livro literário. A capa de um livro vai além da
função básica de apresentar as informações de identificação da obra; ela é elemento de
extrema importância, pois promove a junção de elementos estéticos – literários e
imagéticos – que ilustram o âmago da narrativa e atraem ou não a atenção dos leitores.
O paratexto merece atenção especial. Fernández Prieto (2009) esclarece quais
elementos constituem o paratexto e qual a importância desses elementos para a
compreensão da obra. Assim, apresentar a obra na sua concepção editorial para o leitor
é posicioná-lo diante do objeto artístico, o livro. A capa interna, ressalta o universo
escolar que perpassa o conto: algumas personagens e alguns eventos do conto
aparecem como se estivessem desenhados na lousa com giz branco. O texto da orelha
do livro recupera a biografia e a importância de Machado de Assis para a literatura
universal, conduzindo o leitor para a leitura imagética do quadrinista. As ilustrações do
paratexto são fiéis à descrição física das personagens, como apontadas por Machado
de Assis.
A adaptação, conforme já mencionado, mantém o texto integral. Assim, a
primeira página da HQ, como ocorre no texto literário, situa o leitor para o tempo da
narrativa, para a memória do narrador: o narrador conduz o leitor para a Rua do Costa,
lugar onde está a escola. As digressões machadianas, são colocadas fora dos quadros
de ilustração.
A caracterização das personagens, os trajes da época, a representação do pai,
em escala maior que a usada para ilustrar Pilar quando criança, a hierarquização da
relação aluno e professor, tudo é inserido criteriosamente, de acordo com o texto
machadiano. O sistema binário, as oposições presentes no texto verbal estão presentes
também na ilustração.
O uso das cores, contrastando o universo escolar - sombrio, frio, pouco atrativo
-, com a vida que vibra fora da escola: o céu azul, a pipa e sua liberdade. Por meio da
linguagem imagética o quadrinista dá ao leitor a dimensão do texto machadiano. Há
inclusive, a preocupação com o leitor que não conhece o vocabulário do século XIX: o
quadrinista ilustra os detalhes da descrição da roupa do professor Policarpo:

[...]. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão,


com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e
grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de
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cinquenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta
de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os
olhos pela sala [...]. (ASSIS, 2004, p 97).

A HQ percorre o conto, revelando a diferenças entre as expressões faciais e


corporais entre Raimundo (o filho do professor Policarpo) e Pilar, o narrador. A escola,
“opera uma redução castradora das possibilidades da criança” (DOS SANTOS, 2019, p.
59). O uso das cores e sombras, a palmatória, descrita por Machado de Assis e ilustrada
por Silvino “com seus cinco olhos do diabo”, o enfileiramento da sala de aula, somente
com meninos, a relevância da lição exposta: “resuma o que é sintaxe”, de modo
cinematográfico, quadro a quadro criam no texto imagético a tensão e suspense
construídos no encadeamento lógico do texto machadiano. Cada traço, cada cor
estudada e escolhida contribui para que a adaptação do texto para a linguagem de
quadrinhos seja rica e polissêmica.
O posfácio, assinado pelo quadrinista, revela a convergência do relato de
experiência escolar da personagem ficcional Pilar, descrito por Machado de Assis e as
memórias do aluno Laerte Silvino.
No final, pedimos aos professores (as) que deixassem também as suas
impressões de leitura, distribuímos cartões coloridos aos participantes, onde poderiam
escrever os sentimentos, as inquietações, enfim, as sensações provocadas a partir da
leitura de “Conto de escola”.

Conclusões
Refletindo sobre a atividade de leitura de “Conto de escola”, de Machado de
Assis, proposta ao grupo de professores (as), sinalizamos que se tratou de um momento
significativo de trocas de experiências tanto para nós, as proponentes, quanto para o
grupo. Conforme as suas devolutivas, percebemos que se apropriaram do referencial
teórico, da Estética da Recepção, compreendendo que é o leitor quem dá vida e sentido
à obra. Algo que consideramos de extrema importância, pois permite que professores e
alunos ultrapassem críticas estabelecidas e se posicionem criticamente perante o texto.
Foi possível constatar que, embora os professores considerem importante a prática da
leitura literária, percebemos que é uma atividade ainda tímida entre eles próprios.
Dentre as experiências que trocamos, destacamos a possibilidade da leitura de
clássicos no Ensino Fundamental, tanto do texto integral, como de adaptações de
qualidade, a exemplo da HQ de “Conto de escola”, de Laerte Silvino.

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REFERÊNCIAS
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BRANDÃO, Heliana M. B.; MACHADO, Maria Z. V. (Org.). Escolarização da leitura
literária: o jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

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GENETTE, G. O peritexto editorial. In: Palimpsestos: a literatura de segunda mão.


Trad. Cibele Braga et al. Belo horizonte: Edições Viva Voz, 2009, p. 21-35. SãoPaulo:
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GIMENES, Alessandra Maria Moreira. Machado de Assis e a crítica à escola de seu
tempo: uma ideia de formação nos contos “Um cão de lata ao rabo”; “O programa” e
“Conto de escola”. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2014.

GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.
ISER. Wolfang. O ato da leitura. Vol. 1. Tradução de Johannes Kretschmer. – São
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JAUSS. Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária.


Tradução Sérgio Tellaroli. São Paulo: Editora Ática, 1994.

LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: Leitura em Crise na Escola. As


Alternativas do Professor. ZILBERMAN, Regina (Org.). Porto Alegre: Mercado Aberto,
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VERGEIRO, Waldomiro. Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São
Paulo: Editora Contexto, 2004, p. 87-104.

ROJO, R. H. R. Linguagens Códigos e suas tecnologias. In: Brasil. Ministério da


Educação. Secretaria da Educação Básica. Departamento de Políticas do Ensino
Médio. Orientações curriculares do ensino médio. Brasília, 2004, p. 27-62.

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___________Pedagogia dos multiletramentos: diversidade cultural e de linguagens na
escola. In: ROJO, Roxane Helena Rodrigues; MOURA, Eduardo (Org.).
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SILVINO. Conto de escola em quadrinhos. Machado de Assis; [adaptado por] Silvino.


São Paulo: Peirópolis, 2010. – (Clássicos em HQ).

SOBRAL, Filomena Antunes. As letras no pequeno ecrã: adaptação literária para


televisão. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 31., 2008, Natal/RN.
Anais eletrônicos. Disponível em:
http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/resumos/R3-0707-2.pdf. Acesso em:
jul/2020.

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O MEME COMO MOVIMENTO ANTROPOFÁGICO DOS JOVENS
BRASILEIROS DO SÉCULO XXI

Ana Luisa Isnardis Monteiro, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Eixo Temático: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Vamos começar, né, minha filha? 154


Este trabalho busca compreender possíveis relações entre uma das
manifestações da produção literária contemporânea na internet, os memes, fenômeno
típico da esfera virtual, e o movimento literário Modernista da literatura brasileira,
produção literária que teve início nos anos vinte. O objetivo é ampliar o olhar sobre a
produção literária contemporânea, reconhecendo a produção textual jovem como parte
de um movimento histórico-literário.
Para uma maior compreensão do movimento modernista brasileiro, utilizou-se
como referencial teórico os estudos de Haroldo Campos, em sua obra Ruptura dos
gêneros na literatura latino-americana (1997), onde são apresentadas características
fundamentais desse movimento. O livro Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre
dependência cultural (2000), de Silviano Santiago, nos possibilitou compreender a
construção da literatura no Brasil e sua relação com a literatura estrangeira, presente
desde o início de sua produção.
Dentro do estudo da literatura e mais especificamente dos gêneros literários,
considerou-se os estudos de Antonio Candido em seu livro O direito à literatura (2004)
e os trabalho de Graça Paulino, Ivete Walty e Vera Casa Nova no livro Teoria da
Literatura na Escola (2006). Dentre os capítulos da obra, julgou-se de maior relevância
para este trabalho o capítulo intitulado "A questão dos gêneros literários”. Estes estudos
foram fundamentais para maior entendimento do tema.
Já em relação à teorização do conceito de meme e suas classificações, a
referência foi o projeto #MUSEUdeMEMES, desenvolvido pelo Laboratório de
Comunicação, Culturas Políticas e Economia da Colaboração da Universidade Federal
Fluminense (coLAB), grande referência na internet de acervo e estudo de memes

154
Meme “né, minha filha?” viralizado em 2020.
824

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brasileiros. Para a elaboração deste trabalho, analisamos cinco memes de diferentes
redes sociais e, em seguida, comparamos as características do movimento modernista
e os memes selecionados.

Meme o que tenho a ver155

O site do #MUSEUdeMEMES (coLAB) traz a seguinte definição de meme:

[...] meme (uma abreviação do grego μίμημα [míːmɛːma]) é um


fenômeno típico da internet, e pode-se apresentar como uma imagem
ou analogia, uma frase de efeito, um comportamento difundido, um
desafio (#MUSEUdeMEMES).

A partir dessa definição, podemos perceber que meme é um fenômeno recente,


visto que é feito na internet, rede que existe no Brasil há trinta anos, o que justifica
também o fato do termo ainda não estar presente em muitos dicionários da língua
portuguesa.
Ainda nos estudos do projeto do coLAB, considera-se que a palavra “meme” foi
utilizada a primeira vez por Richard Dawkins, etólogo estadunidense, em 1970, na
tentativa de categorizar o que ele acreditaria ser uma unidade de transmissão de
conteúdos de características socioculturais. Assim como o gene é responsável pela
hereditariedade biológica dos organismos vivos, Dawkins pensou que o meme poderia
ser o responsável pela hereditariedade de comportamentos culturais dos seres
humanos, então, inspirado no termo “mimese”, em grego, imitação, criou o termo
“meme”.
Vinte anos depois, autores ainda trabalhavam no conceito criado pelo étólogo.
Susan Blackmore, psicóloga britânica, é uma figura importante nessas pesquisas e fez
parte da criação do que seria considerado, anos mais tarde, o campo de pesquisa da
“memética”.
Blackmore acreditava que os memes sustentam ritos e padrões culturais a partir de
ideias que se propagam na sociedade (as redes sociais).
Concomitantemente às pesquisas biológicas de Dawkings, as ciências sociais
buscavam compreender a reprodução social, e Jean-Gabriel de Tarde, sociólogo
francês, se dedicou a estudar os processos nomeados por ele de “imitação social”.
Tarde pesquisava a propagação de determinados comportamentos a partir das relações
sociais e, para fazê-lo, utilizava muitas vezes termos das ciências biológicas, como

155
Meme “o que tenho a ver” viralizado em 2017
825

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“contágio”. Seu percursor, Ewald Hering (1870), chegou a utilizar o termo “Mneme” para
significar memória social.
Com a chegada da internet, haviam essas três correntes de compreensão
sobre os memes. A primeira, onde se enquadrava Dawkins, é chamada por Limor
Shifman, importante pesquisadora israelense, de “mentalista”. Esta corrente descrevia
os memes como ideias ou elemento de informação, podendo ser singulares ou
complexas. A segunda, corrente, “comportamental”, via os memes como
“comportamentos particulares ou artefatos culturais, como piadas, rimas, tendências e
tradições” (#MUSEUdeMEMES). Por fim, a terceira corrente, que mesclava as duas
propriedades, chamada “inclusiva”, pensava os memes como originadores e
propagadores de seus efeitos, sendo eles ideias e padrões estruturais.
A partir deste momento, os memes são considerados representadores da
cultura popular nos ambientes virtuais, podendo se apresentar como imagens
legendadas, vídeos ou expressões difundidas pelas mídias. É importante aqui salientar
a diferença entre memes e virais. Virais, na visão de Shifman, são produzidos por
“grandes players” e recebidos por usuários de forma massiva, diferente dos memes,
onde os usuários não apenas os compartilham, mas também se apropriam deles,
criando novos conteúdos a partir daquele (#MUSEUdeMEMES).
Há, no Brasil, um preconceito de que o meme pertença a, como diz o próprio
#MUSEUdeMEMES, “uma cultura do besteirol” ou à chamada “cultura inútil”, porém,
como observamos, é possível ver os memes como uma manifestação cultural
contemporânea, que representa e forma identidades coletivas, além de influenciar o
meio virtual e também as mídias mainstream.

Você leu Manifesto Antropófago pra falar isso, linda? 156


Agora, trataremos do movimento de ruptura dos gêneros textuais da literatura
latino-americana, mais especificamente sobre o Modernismo, movimento que marcou
essa ruptura na literatura brasileira.
O Modernismo teve seu início em 1922, quando as obras dos escritores Mário
de Andrade e Oswald de Andrade tiveram grande relevância. Essa corrente de ruptura
dos gêneros literários chegou ao Brasil após ter acontecido na Europa, onde Alphonse
de Lamartine e Victor Hugo foram alguns de seus percursores, e também na América
Hispânica, onde Ruben Dário e Vicente Huidobro tiveram importantes papéis. Esse
movimento se caracteriza pela ruptura do gênero prosa, saindo da dicotomia entre prosa

156
Meme “você leu... para falar isso, linda?” viralizado em 2017.
826

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e poesia, como afirma Haroldo Campos, em Ruptura dos Gêneros na Literatura Latino
Americana:
[...] absolem-se os limites entre poesia e prosa de um modo tão
desnorteante, que os contemporâneos de mentalidade “passadista”
não mais conseguem identificar essas produções, que lhes parecem
fruto de “paranoia”, ou “mistificação” (CAMPOS, 1977, p. 29).

As obras criadas nesta época não se encaixavam mais no conceito de


Romance, nem tampouco em algum outro. Eram marcadas pela presença de polifonia
e pela influência da oralidade em suas escritas, com presença de idioletos indígenas,
franceses e ingleses. Campos, ao dizer sobre o poema “pau-brasil” de Oswald de
Andrade, cita elementos marcantes do movimento Modernista: “caracteriza-se pela
linguagem reduzida, pela extrema economia de meios, pela intervenção surpreendente
de imagem direta, do coloquial, do humor” (CAMPOS, 1977, p. 28).
Foi neste movimento que Oswald de Andrade construiu um de seus poemas
mais famosos com apenas duas palavras, sendo uma o título e outra o texto: “amor
humor” (ANDRADE, apud. CAMPOS, 1977, p. 28), o que Campos (1977) diz ser “um
verdadeiro manifesto contra o vício retórico nacional”. Foi dentro nesse movimento de
ruptura com estruturas literárias passadas que Oswald de Andrade criou o conceito de
Antropofagia dentro da literatura, em seu livro O Manifesto Antropófago (1928). A partir
da cultura da antropofagia praticada por determinadas aldeias indígenas no Brasil pré-
colonial, o escritor pensou a literatura brasileira como

[...] aceitação não passiva, mas crítica, da contribuição europeia e sua


transformação em um produto novo, dotado de características próprias
que, por sua vez, passava a ter uma nova universalidade, uma nova
capacidade de ser exportado para o mundo (CAMPOS, 1977, p. 30).

Neste momento, pensa-se a identidade da literatura brasileira, valorizando o


processo de se fazer literatura no Brasil.

Please come to Brazil157


Há diversos acontecimentos que podem inspirar a criação de um meme, sejam
eles brasileiros ou estrangeiros. Para este estudo analisamos apenas memes inspirados
em elementos estrangeiros. O primeiro deles é o meme “In brazilian portuguese...”. Este
meme teve início na rede social Tumblr em 2013, quando um usuário escreveu:

157
Meme “Please come to Brazil” viralizado em 2009.
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Figura 1: printscreen do post no Tumblr que deu origem ao meme “in brazilian
portuguese” (2013)
Fonte: #MUSEUdeMEMES158

Escrevendo "In France, they don’t say ‘I Love You’. They say instead “cet
homme a volé un peu de pain et je vais le chasser pour le reste de sa vie avant de sortir
avec lui, je veux dire le mettre en prison”159, o usuário faz uma referência à fala entre os
personagens Javert e Jean Valjean, no filme Os Miseráveis. A partir desta frase, dois
anos depois, outro usuário do Tumblr fez uma postagem com a forma do que se tornaria
o meme: “In brazilian portuguese you don’t say i love you you say “te pago um salgado”
which means endless love and i think that’s beautiful.”160

Figura 2: Printscreen do primeiro post “in brazilian portugueses you don’t say...”
Fonte: #MUSEUdeMEMES

158
Disponível em: <http://www.museudememes.com.br/sermons/in-brazilian-portuguese-you-
dont-say/> Acesso em ago. 2018.
159
Na França eles não falam “eu te amo”. Ao invés disso eles falam “este homem roubou um
pouco de pão e eu vou persegui-lo para o resto de sua vida antes de sair com ele, quero dizer,
o colocar na cadeia (Tradução Nossa).
160
No português brasileiro você não fala eu te amo você fala “te pago um salgado” o que quer
dizer amor sem fim e eu acho isso bonito (Tradução Nossa).
828

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A partir daí, começa a surgir variações deste meme, editando-o e
acrescentando expressões utilizadas principalmente por jovens brasileiros.

Figura 3: Exemplos de
variações do meme “In
brazilian portuguese...”

Fonte: #MUSEUdeMEMES161

Também analisamos os
seguintes memes:

Figua 4: Meme da frase “CHEGA EU


NÃO AGUENTO MAIS” no lugar dos
dizeres do nome da companhia de cinema Fox

161
Disponível em: <http://www.museudememes.com.br/sermons/in-brazilian-portuguese-you-
dont-say/>. Acesso em ago. 2020.
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Fonte: Portal Onda Sul162

Figura 5: Meme de
um frame do filme
High School Musical
onde o personagem
Ryan Evans
demonstra estar surpreso com legenda em português: *impactada*

Fonte: Wattpad163

Figura 6: Meme de um frame do desenho Pica Pau onde o personagem parece estar
bravo com legenda: [AH PRONTO INTENSIFIES]

162
Disponível em: <http://www.portalondasul.com.br/falta-muito-pras-ferias/> Acesso em ago.
2020.
163
Disponível em: <https://www.wattpad.com/504533451-memes-para-qualquer-momento-na-
internet-memes> Acesso em ago. 2020.
830

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Fonte: UmComo164

Figura 7: Meme de um frame de um dos filmes da pentalogia Harry Potter com uma
legenda fazendo analogia a uma expressão brasileira (pode ter certeza) e o nome do
personagem principal (Harry Potter).

Fonte: Memedroid165

Apesar de serem em formatos diferentes, todos esses memes possuem


elementos de humor e são usados para expressar emoções ou reações. Consideramos
que a presença de estrangeirismos, elemento importante na antropofagia oswaldiana, é
uma característica onipresente nos memes apresentados, assim como a recepção

164
Disponível em: <https://tecnologia.umcomo.com.br/artigo/o-que-significa-iti-malia-
28807.html> Acesso em ago. 2020.

165
Disponível em: < https://pt.memedroid.com/memes/detail/1085652 > Acesso em ago. 2020.

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crítica do estrangeiro, que transforma o produto estrangeiro em algo novo, em um
produto brasileiro.
No exemplo da Figura 2, temos um meme todo em inglês, exceto por uma
expressão. A única expressão escrita em português traz a presença marcante da cultura
brasileira, onde percebemos que o meme foi escrito por um(a) brasileiro(a), pois ele(a)
se coloca, introduzindo elementos de sua cultura. Esses elementos podem ser variações
diastráticas do português brasileiro (como nos casos a e b da Figura 3, onde são
colocadas gírias faladas por jovens) ou elementos culturais diversos, como no caso “c”
da Figura 3, onde percebemos uma característica geográfica do país (um país tropical
que possui temperaturas muito elevadas) e uma característica econômica (não são
todas as pessoas que tem piscina em casa); ou esse elemento cultural pode ser uma
característica gastronômica, como na Figura 2, ao dizer do salgado, uma categoria de
lanche de padaria, presente cotidianamente na vida dos brasileiros e brasileiras.
No meme exemplificado na Figura 2, também é claramente identificada a
presença da oralidade, elemento importante na antropofagia dos anos vinte, que
também se apresenta nos memes dos anos dois mil. Essa característica também é vista
nos memes dos demais exemplos, onde as frases apresentam variedades diastráticas
do português, que fazem parte do universo dos jovens brasileiros. Relaciona-se, então,
a oralidade do português brasileiro com as imagens oriundas dos filmes e desenhos
estrangeiros.
É possível observar outros elementos também relevantes tanto nos memes
quanto nas obras escritas pelos modernistas, como a presença da linguagem reduzida,
economia de meios e intervenção surpreendente do humor, aspectos apresentados por
Haroldo Campos (1977). Acrescentamos mais um elemento presente nos memes: a
possibilidade e, em alguns casos, a necessidade de edição.
O meme apresentado na Figura 3 é, de acordo com o estudo de tipologia de
memes do #MUSEUdeMEMES, um meme “exploitable” (editável), o que significa que a
frase “in brazilian portuguese, you don’t say... you say... and I think It’s beautiful” precisa
ser completada e explorada, permitindo fácil reapropriação e reutilização dentro de uma
lógica própria de humor (#MUSEUdeMEMES). O fato desse meme ser editável também
diz de sua característica antropofágica, onde há maior liberdade para a criação e
recriação, sem a ideia hierárquica de fonte/influência, muito presente na análise de
obras feitas no Brasil.
Por fim, acrescentamos mais um elemento à análise: a melancolia presente
nos memes brasileiros. Observando os exemplos apresentados, identificamos a

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presença de frases majoritariamente melancólicas ou raivosas. Estes são elementos
muito comuns entre os memes, que nos possibilita compreender a realidade
sociopolítica do Brasil no momento atual e a forma com que os jovens lidam com ela.
Mostrar a realidade brasileira, em oposição à ideia estrangeira de “festa e
carnaval”, é uma forma de assumir nossa literatura e nossa identidade, como explica
Silviano Santiago: “O escritor latino-americano nos ensina que é preciso liberar a
imagem de uma América Latina sorridente e feliz, o carnaval e a fiesta, colônia de férias
para turismo cultural” (SANTIAGO, 1971, p. 26).

Já acabou, Jéssica?166
Este estudo ampliou o olhar sobre a produção literária brasileira, valorizando a
literatura contemporânea feita por jovens na internet, evidenciando as características
comuns dos memes atuais com o movimento literário Modernista dos anos vinte. A luta
pelo reconhecimento da nossa literatura ainda está presente e o desejo de falarmos por
nós mesmos continua se manifestando em diversas expressões literárias, inclusive nos
memes. Buscar compreendê-los é valorizar a produção literária contemporânea,
consequentemente, a história da literatura brasileira.

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sobre azul, 2004, p. 169-191.

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#MUSEUdeMEMES. Desenvolvido pelo Laboratório de Comunicação, Culturas Políticas


e Economia da Colaboração da Universidade Federal Fluminense (coLAB) e pelo Polo
de Produção e Pesquisa Aplicada em Jogos Eletrônicos e Redes Colaborativas (P³).
Niterói, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.museudememes.com.br>. Acesso
em: 17 ago. 2020.

PAULINO, Graça, WALTY, Ivete, CASA NOVA, Vera. A questão dos gêneros literários.
In: Teoria da Literatura na Escola. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006, p. 36-52.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural.
Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

166
Meme “Já acabou, Jéssica?” viralizado em 2015.

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LEITURA, LITERATURA E CINEMA: INTERLOCUÇÕES EM UMA
PRÁTICA DE FORMAÇÃO CULTURAL167

Samira Krupek Donaire, UNESPAR Campus de Campo Mourão


Wanessa Gorri de Oliveira, UNESPAR Campus de Campo Mourão
Aline Pereira Lima, IFSP-PEP

Eixo Temático: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O contexto atual de formação de professores apresenta-se cada vez mais
complexo, seja pelas atuais reformas educacionais, políticas de formação inicial e
continuada que marcadamente assumem características neoliberais, pelo desprestígio
social do professor e consequente desinteresse pela profissão docente, ou pelo perfil
dos alunos que hoje buscam cursar licenciaturas.
Sobre o perfil desses alunos, pesquisas têm demonstrado que (GATTI e
NUNES, 2009; GATTI e BARRETO, 2009; GATTI, 2010), quem opta pelo magistério é
em sua maioria pertencente a famílias das classes C e D, são egressos dos sistemas
públicos de ensino e que passaram por dificuldades de diferentes ordens para ingressar
no Ensino Superior.
Os futuros professores são também estudantes que, “principalmente pelas
restrições financeiras, tiveram poucos recursos para investir em ações que lhes
permitissem maior riqueza cultural e acesso à leitura, cinema, teatro, eventos,
exposições e viagens” (GATTI; NUNES, 2009, p. 14). Tais dados revelam que temos
atuado em um contexto formativo cujo repertório educacional mostra-se deficitário e o
acesso a bens culturais restrito. Essas condições, se não problematizadas e
enfrentadas, terão impacto no futuro, quando esse aluno se tornar professor, afinal, é
possível o professor ampliar o repertório cultural das crianças quando ele próprio tem
um repertório limitado? É possível ensinar aquilo que não se sabe?

167
O texto integra o resultado parcial de uma pesquisa, em nível de Iniciação Científica, intitulada
“Leitura, literatura e cinema: interlocuções em uma prática de formação cultural”, orientada pela
professora Dra. Wanessa Gorri de Oliveira.
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Considerando improvável que esse professor consiga promover experiências
culturais (em artes visuais, literatura, cinema, teatro, dança, música, etc.) que
ultrapassem seus próprios limites vivenciais, estratégias de formação cultural precisam
ser pensadas.
Sem desconsiderar a conjunção de fatores ligados à problemática, vemos “ser
importante chamar a atenção para a questão específica da formação inicial dos
professores, o que envolve diretamente as instituições de ensino superior, em especial
as universidades” (GATTI, 2010, p. 1359-1360). Isso porque, se a Universidade não
estiver atenta à formação cultural, certamente teremos professores cada vez mais
restritos em seu cabedal cultural.
A formação cultural envolve as mais distintas dimensões do desenvolvimento
humano (SILVA; ALMEIDA; FERREIRA, 2011). Bissoli, Moraes e Rocha (2014) a
definem como apropriação da cultura historicamente acumulada e, mais
especificamente, como ampliação das experiências estéticas. Trata-se do processo
formativo em que “o indivíduo se conecta ao mundo da cultura, mundo esse entendido
como um espaço de diferentes leituras e interpretações do real, concretizado nas artes
(música, teatro, dança, artes visuais, cinema, entre outros) e na literatura” (NOGUEIRA,
2008, p. 32).
A crença de que a formação cultural do professor e, em seu bojo, a dimensão
estética, deve integrar tanto a formação inicial como a formação continuada é que nos
empenhamos em investigar o potencial formador da prática do cinema aliado a literatura.
A fim de romper com as linearidades, estabelecer novas possibilidades de conhecer,
transcender as regularidades e produzir novos conhecimentos, é que se busca ampliar
as experiências estéticas entre os alunos do curso de Pedagogia, destacando a arte
cinematográfica e literária como objeto de apropriação e elemento essencial à formação
cultural. Procura-se assim contribuir para a melhoria da qualidade da formação dos
profissionais docentes.
Neste texto, apoiados nas investigações em curso, dentre elas uma pesquisa
em nível de Iniciação científica desenvolvida com alunos da Pedagogia da Universidade
Estadual do Paraná - Campus de Campo Mourão (UNESPAR/Campo Mourão),
volveremos atenção à inserção da linguagem literária e cinematográfica na formação de
professores, principalmente, no que diz respeito ao papel que tal postura adquire na
formação cultural e, mais especificamente, no envolvimento e formação de leitores.

Leitura, Literatura e Cinema

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Ler é um ato que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da
linguagem escrita, mas, como afirma Freire (1989), um ato que se antecipa e se alonga
na inteligência do mundo. É prática social, histórica e cultural em que o leitor age sobre
o texto para, nesse processo, criar leitura (ARENA, 2010).
A leitura, segundo Arena (2010), caracteriza-se por uma produção
protagonizada pelo sujeito que tenta ler. “A leitura somente ganha existência quando o
leitor a cria na relação entre o que ele é, o que sabe, e o que o texto criado pelo outro
está a oferecer” (ARENA, 2010, p. 243).
Com base no estudo do texto “A literatura e a formação do homem” (CANDIDO,
1972), vemos que a literatura é uma das manifestações artísticas do ser humano,
recriadora da realidade, pois, “[...] é sobretudo uma forma de conhecimento, mais do
que uma forma de expressão e uma construção de objetos semiologicamente
autônomos [...]” (CANDIDO, 1972, p. 85)
O texto literário propõe que o leitor se relacione com a obra lida, viva a história,
se encontre na visão das personagens e embarque em uma nova experiência
imaginária. Nesse prisma,

[...] a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais que um


conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim
sem renúncia da minha própria identidade. No exercício da literatura,
podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos romper
os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim,
sermos nós mesmos. É por isso que interiorizamos com mais
intensidade as verdades dadas pela poesia e pela ficção [...]
(COSSON, 2018, p. 17).

A literatura possibilita ao homem fugir da realidade e adentrar em um mundo


repleto de fantasias, que lhe permitirão momentos reflexivos, formativos e críticos, os
quais vinculam-se com os diversos segmentos da sociedade (CANDIDO, 1972). Esse
vínculo emerge dos acontecimentos de uma determinada época e espaço, das
representações culturais construídas e das ideologias propagadas ou repudiadas. Por
essas e outras razões, as instituições formadoras de professores e as instituições
escolares tornam-se indispensáveis para o trato da literatura como Arte formadora
humana.
As instituições supramencionadas exercem a mesma relevância para
posicionar o cinema como uma Arte, pois, os filmes elaborados expressam atos criativos
de seus realizadores e não objetos irrelevantes (BERGALA, 2008).

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Para Duarte (2009), o mesmo empenho em criar estratégias para despertar o
interesse pela literatura nos diferentes níveis de ensino, é necessário para com o
cinema. É preciso encontrar formas coerentes de impulsionar o gosto pelo cinema.
Fonte de acesso aos conhecimentos e formador de identidades, de
percepções, o cinema é uma tecnologia que produz fotogramas, em que são
apresentadas imagens de maneira rápida e cria a quem assiste uma percepção visual
de inúmeras imagens se movimentando rapidamente e de forma autônoma ou lúdica de
“sociação”. Para tanto, um filme é resultado de uma autoria e é configurado por
diferentes elementos, a saber: som musical, ruídos, imagem em movimento e sons da
fala (DUARTE, 2009).
Ler um filme não é tarefa fácil, tampouco, analisá-lo como ponto de partida às
ações educativas nos diversos níveis de ensino. Há uma diferença substancial, por
exemplo, na análise de uma obra literária e na análise de um filme. Penafria (2009) traça
uma observação quanto a essa distinção:

[...] No imediato, analisar um filme na sua totalidade afigura-se uma


tarefa quase interminável. Mas, o principal problema é o facto do filme
não ser citável; por exemplo, na análise/crítica literária são usadas
palavras que se referem a palavras, na análise/crítica de filmes são
usadas palavras que se referem a imagens e sons [...] (PENAFRIA,
2009, p. 5).

Essa observação da autora ilustra a singularidade da análise fílmica, se


comparada a análise de uma obra literária, isso porque, a forma de comunicação do
filme ocorre pela via das imagens e dos sons, os quais são recepcionados pelos
espectadores de modo diferente da recepção resultante da leitura de uma obra literária.
Tanto o cinema quanto a literatura são essenciais à formação e expressão
humana. Ambos são meios de expressão da Arte e dotados de características
específicas que podem se entrecruzar. Segundo Pereira (2009):

a relação entre literatura e cinema é antiga e ao comparar questões da


criação literária com os dilemas dos realizadores cinematográficos,
encontraremos muitos pontos em comum. Se procurarmos diferenças,
também as encontraremos, é claro. Mas a influência da literatura sobre
o cinema é inegável e pode ser facilmente comprovada no terreno das
adaptações (PEREIRA, 2009, p. 43).

O entrecruzamento da literatura com o cinema forma culturalmente e fomenta


experiências estéticas. Por exemplo, uma obra literária permite que a imaginação
crie/recrie certas características moduladas pelo autor. Já um filme, produzido com base

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em uma obra literária, recriará elementos da obra, resultando em uma feitura singular
que impulsionará as maneiras de sentir, de criar, de ver e de perceber.
Sendo assim, é permissível definir que o texto literário narra para mostrar, já o
filme, mostra para narrar. Tanto um, quanto o outro, devem ser trabalhados e ensinados,
para que os produtos culturais predominantes no texto literário e no fílmico sejam
consumidos por meio de uma leitura “adequada” (VOLMER; KUNZ, 2009).
Diante disso, vale a pena pensar no uso pedagógico do cinema e da literatura
em processos educativos que ultrapassem a rigidez e as cristalizações constituídas,
muitas vezes, pelas instituições formadoras de professores e escolares. É o que
faremos a seguir.

Literatura, Cinema e Formação cultural


Embora a importância da literatura e do cinema sejam prementes, seus usos
pedagógicos, geralmente, escapam aos propósitos estéticos e de leitura. Ancoram-se
num pedagogismo que os interpreta como recursos didáticos engavetados e limitados
à “ilustração” de conteúdos escolares.
Em sala de aula, muitos educadores abordam a literatura apenas como forma
de estudar escolas literárias, explanam sobre sua importância, apresentam
significações prontas, deixando, por vezes, de solicitar aos alunos a leitura (significativa)
das obras e impulsionar o encontro dos leitores como o texto literário (DIAS, 2016).
Há casos constantes em que a literatura é utilizada em sala de aula num sentido
moralizante, como “manual de boas condutas”. Com isso, faz-se uma assepsia do “não
adequado” e seleciona-se literaturas vislumbradas como “pertinentes” ao ensino.
A esse respeito, a função educativa da literatura na formação do sujeito é
complexa e ultrapassa o prescrito pela pedagogia oficial, “[...] que costuma vê-la
ideologicamente como um veículo da tríade famosa, — o Verdadeiro, o Bom, o Belo,
definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço da sua
concepção de vida [...]” (CANDIDO, 1972, p. 84).
A literatura ensina na medida em que se interliga com o entorno dos sujeitos.
Abordá-la na íntegra é requisito para não banir sua essência, pois “[...] é artificial querer
que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta [...]” (CANDIDO, 1972, p.4).
Dito de outra forma, a literatura não se restringe ao “ideologicamente” adequado pela
sociedade e pelas instituições de ensino.
Da mesma forma, o uso escolar do cinema se faz problemático. Há uma
tendência em atribuir sentido a um filme apenas por sua “utilidade” conteudista. Na visão

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de Bergala (2008), o filme como Arte é fruto de um ato de criação e abordá-lo em sala
de aula pressupõe, antes de tudo, considera-lo como tal.
Bergala (2008) chama atenção à tendência de muitos professores
selecionarem filmes e visioná-los, apenas, como alternativa à exploração de temáticas
e/ou conteúdos de ensino. O filme, obra criada, deve ser selecionado por aquilo que é
e expressa, caso contrário, negligencia-se sua capacidade de representar a realidade
através da própria realidade.
No âmbito pedagógico, se bem utilizado, o cinema pode atuar na maneira de
ver filmes e na ampliação das experiências culturais e estéticas que, “[...] acabam
interagindo na produção de saberes, identidades, crenças e visões de mundo de um
grande contingente de atores sociais” (DUARTE, 2009, p. 19).
Na perspectiva de Volmer e Kunz (2009), o importante é não utilizar o cinema
como ilustração, mas sim para analisar os elementos que compõem a narrativa fílmica
e observar como os efeitos de linguagem constroem sentidos. Propõem, em
concomitância, trabalhar o cinema em sala de aula como um material didático
impulsionador da análise conjunta dos conteúdos curriculares.
Um bom filme, segundo Napolitano (2019), pode ser utilizado a fim de despertar
motivação e curiosidade nos alunos e instigá-los ao debate e a pesquisa. Por meio do
filme, o aluno terá contato com uma realidade distante e conhecimento sobre um espaço
e tempo que lhe é desconhecido.
Em suma, as interlocuções entre a literatura e o cinema em uma prática de
formação cultural, como a remetida aos estudantes de pedagogia da UNESPAR/Campo
Mourão, perfila o potencial que tal formação apresentará às práticas em sala de aula na
educação básica. Dessa forma, na sequência, desbravaremos uma rota teórica e
metodológica válida à prática de formação cultural.

A Leitura e o Cinema em uma prática de formação cultural


Entrelaçar a literatura e o cinema em uma prática de formação cultural, requer
planejamento com objetivo claro, isso porque, tanto a literatura como o cinema possuem
suas peculiaridades. Devido a essas peculiaridades, a proposição de ações exige um
trato teórico-metodológico que vislumbre as suas distinções e os seus pontos de
entrelaçamento.
No nosso caso, a proposta de formação cultural pôde se dar no entrelaçamento
de práticas de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas no curso de Pedagogia da
UNESPAR/ Campo Mourão.

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No campo do ensino, empenhados no propósito de ensinar a ler (em seu
sentido amplo) interagindo com textos reais e com práticas guiadas a propósitos
efetivos, algumas estratégias de educação literária na perspectiva da experiência
estética, foram estabelecidas. Em um ciclo de ação-reflexão-ação, em que os
graduandos pudessem vivenciar a educação literária, estudar sobre ela e promovê-la
no campo de estágio, estabeleceu-se, espaços de leitura e mediação literária. As
práticas decorreram no espaço das aulas sobre leitura, numa disciplina de Fundamentos
teórico-metodológicos da alfabetização em língua portuguesa, e, especialmente, nas
orientações para práticas de estágio supervisionado dos anos iniciais do Ensino
Fundamental I. As práticas foram vivenciais com literatura adulta e com finalidades
específicas de leitura literária. No entanto, quando essas mesmas práticas foram
problematizadas no espaço de estágio, acabaram por orientar outras possíveis práticas.
Concomitantemente, e como forma de aprofundar ou estender leituras, de
permitir ao leitor posicionar-se diante da obra, identificá-la, questioná-la e expandir os
seus sentidos, no campo da extensão, ações fílmicas se deram.
No curso de Pedagogia da UNESPAR/Campo Mourão, o trato com o cinema
encontra espaço no projeto de extensão intitulado “Cine educação: olhares para a
formação docente”, coordenado atualmente pela professora Dra. Divania Luiza
Rodrigues. O projeto extensionista desenvolve ações desde o ano de 2015 e, no ano de
2020, está em sua 5a edição. Seu público-alvo envolve estudantes de licenciaturas –
especialmente os estudantes de Pedagogia -, estudantes e professores da educação
básica, egressos, idosos e demais membros da comunidade externa interessados.
O referido projeto é um dos poucos espaços de formação cultural
disponibilizado na instituição. Na visão de Gatti (2009), não há previsão consistente, nos
currículos de formação inicial de professores, de atividades culturais. Encontra-se a
previsão de algumas horas para o desenvolvimento de atividades culturais, as quais não
são especificadas e nem acompanhadas a contento. Dessa forma, no projeto, o
graduando em licenciatura encontra meios de “[...] aprender a tornar-se um espectador
que vivencia as emoções da própria criação” (BERGALA, 2008, p. 35).
O projeto propõe a exibição de filmes relacionados ao campo da educação e
articulados a ciclos temáticos. Cada ciclo temático é coordenado por um professor do
colegiado de Pedagogia, professores de outros colegiados, egressos do curso de
Pedagogia e alunos da graduação envolvidos no projeto ou em práticas de estágio.

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O planejamento das sessões que integram os ciclos temáticos, exige encontros
para discussões teóricas, estudo sobre o cinema e educação, escolha e preparação dos
debatedores/mediadores.
No ciclo temático “Leitura, literatura e cinema”, pudemos agregar a exibição de
filmes cuja base construtiva fosse uma determinada obra literária. Nesse viés, o filme
não é compreendido como mero objeto, mas, uma criação que deve ser visionado para
ampliar a sensibilidade em torno do mundo e, ainda mais, objetiva a formação de um
espectador-criador (BERGALA, 2008).
Nesse contexto, entrelaçou-se também às práticas citadas na pesquisa de
iniciação científica “Leitura, literatura e cinema: interlocuções em uma prática de
formação cultural” cujo objetivo principal consiste em investigar uma prática de formação
cultural desenvolvida a partir do cinema e da literatura com alunos do curso de
Pedagogia da UNESPAR/Campo Mourão, verificando a viabilidade desse tipo de
formação no curso. A pesquisa, focaliza, portanto, as ações desenvolvidas no curso em
torno do cinema e da literatura tendo como loco principal o projeto Cine Educação.
No percurso dessa pesquisa, além de estudar os elementos teóricos que regem
a formação cultural, literatura e cinema, compreender o perfil cultural dos alunos da
Pedagogia, pudemos nos arriscar na sistematização de caminhos metodológicos que
permitissem a outros estudiosos da formação de professores vislumbrarem práticas
possíveis.
Como estratégia que permite ao professor e ao aluno fazer da leitura literária
uma prática significativa, adotamos as proposições de Cosson (2018) para o letramento
literário, terminologia utilizada para designar a construção de sentido em uma
determinada área de atividade ou conhecimento, nesse caso a literatura. Para tanto,
indicamos as oficinas como perspectiva metodológica que permite “aprender a fazer
fazendo” e leva o aluno a construir pela prática o seu conhecimento.
As oficinas podem ser construídas a partir das sequências básica ou expandida
do letramento literário, como descritas em Cosson (2018). No nosso caso, como
alinhadas a momentos de abordagem cinematográfica, temos preferido a sequência
básica, que é constituída de quatro passos: motivação, introdução, leitura e
interpretação.
Em linhas gerais, a motivação consiste numa preparação para entrar no texto,
uma antecipação que busca estabelecer laços estreitos com o texto que se vai ler a
seguir. Segundo o autor,

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crianças, adolescentes e adultos embarcam com mais entusiasmo nas
propostas de motivação e, consequentemente, na leitura quando há
uma moldura, uma situação que lhes permite interagir de modo criativo
com as palavras. É como se a necessidade de imaginar uma solução
para um problema ou de prever determinada ação os conectasse
diretamente com o mundo da ficção e da poesia, abrindo portas e
pavimentando caminhos para experiencia literária (COSSON, 2018, p.
54).

A introdução é a apresentação do autor e da obra enfatizando as características


do autor e obra a serem lidas como também incentivar o questionamento das escolhas
e das razões que levaram a realizar no lugar de outras. Apesar de simples é preciso
cuidado para não tornar a atividade uma longa e expositiva aula sobre vida e obra do
escritor com detalhes bibliográficos que interessam mais a pesquisadores do que
propriamente ao leitor do texto. Como afirma Cosson (2018), a biografia é um entre os
outros contextos que acompanham o texto, portanto no momento da introdução é
suficiente que se forneçam informações básicas sobre o autor e, se possível, sobre
aquele texto.
A leitura é o momento de se apropriar do texto escrito como um todo. Quando
o texto é extenso, o ideal é que aconteça fora da sala de aula. O acompanhamento da
leitura é algo que acompanha essa etapa. A leitura, em espaços formativos, “precisa de
acompanhamento porque tem uma direção, um objetivo a cumprir, esse objetivo não
deve ser perdido de vista. Não se pode confundir, contudo, acompanhamento com
policiamento” (COSSON, 2017, p. 62). Trata-se mais de acompanhar as dificuldades e
ritmos de leitura. Os intervalos, algo que também acontece nessa etapa, são atividades
específicas de natureza variada, que funcionam como uma “focalização sobre o tema
da leitura e permitindo que se teçam aproximações breves entre o que já foi lido e o
novo texto” (COSSON, 2017, p. 63).
A interpretação, por fim, concretiza a construção do sentido do texto e tem
como princípio a externalização da leitura. “Trata-se de um processo afetado pelo que
se faz antes e se faz durante a leitura” (COSSON, 2017, p. 65). Nesse momento é
possível compartilhar a interpretação e ampliar os sentidos atribuídos em atividades
diversas.
Para o uso do cinema como dispositivo pedagógico formador, as propostas de
Napolitano (2019), Duarte (2009) e Volmer e Kunz (2009) foram as que nos serviriam
de suporte. Temos sistematizado as ações fílmicas em torno de: planejamento;
elaboração do roteiro de análise do filme; preparação do espectador; exibição e; debate.
Elaborar um roteiro de análise do filme ajuda a dinamizar os debates, algo
previsto para acontecer após a exibição. O roteiro não esgota possibilidades de olhares
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próprios sobre os filmes, mas ajuda na sistematização do debate e no alcance dos
objetivos da atividade. O roteiro valorizará não apenas a temática, os diálogos, mas
também outros elementos como cenários, figurinos, configuração dos personagens,
enquadramentos e ângulos (NAPOLITANO, 2019).
A preparação do espectador é o momento que antecede a exibição do filme e
acontece já na sala de cinema. Nele, questões que contextualizam a produção fílmica
são apresentadas, tais como sinopse, direção, duração, país de origem, etc. Da mesma
forma, de acordo com os objetivos pretendidos para a sessão, se sugerem questões
que possam ser observadas, lança-se provocações.
A exibição é o momento de fruição do filme, ou seja, apreciação significativa de
arte e do universo a ela relacionado. Por fim, o debate, sucessor a exibição, possibilita
que todo o público se envolva na discussão do filme. De forma a dinamizar a discussão,
o debatedor propõe algumas discussões a partir do roteiro de análise.
A articulação das duas práticas- literária e cinematográfica- pode se dar de
diversas formas. Uma delas, por exemplo, é tomar o filme no momento de motivação da
leitura, outra, nos intervalos de leitura, isso, sem desprezar os momentos de abordagem
dele como uma outra linguagem.
Independentemente de como os entrelaçamentos entre obra escrita e obra
fílmica se deem, alguns aspectos são fundamentais para tornar a prática de formação
significativa.
O planejamento é algo indispensável. Nesse caso, em que se une literatura e
cinema, a primeira coisa a fazer é selecionar o livro que será lido e discutido pela turma
e o filme que acompanhará as atividades. Já nesse momento, há de se ficar atento ao
processo de escolarização da literatura e do cinema. Isso porque pretendemos
estabelecer práticas sob outra instância da escolarização que não aquela ritualística (de
como se deve ler ou assistir) ou conteudista (que impõe conteúdos curriculares de
outras disciplinas).
É importante decidir se a obra projetada será a mesma da tomada como
referência literária, ou não. Ambas hipóteses são possibilidades, a depender do objetivo
(as vezes o objetivo estabelecer é intertextualidades entre duas obras, mas as vezes o
objetivo é ler a mesma obra sob diferentes prismas, o prisma das palavras-literatura- e
o prisma das imagens em movimentos- cinema).
Respeitar a integralidade da obra é outro ponto importante, pois se pode retirar
ou saltar partes do texto que, por alguma razão, se acha inadequado, desinteressantes
ou desnecessário.

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Decidido o momento em que o cinema incorporará a prática, a seleção dos
debatedores/mediadores é um procedimento que temos adotado, afinal, trazer alguém
que estuda determinado tema, conhece determinada obra, ou pode lançar outros
olhares sobre ela tende a enriquecer o debate.
Com vistas à preparação dos debatedores/mediadores, uma dentre tantas
alternativas, seria aproximar alguns encaminhamentos da análise de filmes em
consonância com a abordagem de Penafria (2009). A análise de filmes pressupõe
interpretar e valorizar a autoria/criação do realizador. Nas palavras da autora:

Se o analista racionalizar demasiado o visionamento de um filme o


mesmo passa a ser um objecto sobre o qual é exercido controlo e a
afectação emocional poderá sair prejudicada por esse processo
racional. O analista poderá considerar-se autor do filme e daí saírem
prejudicadas as possíveis observações sobre o lugar que o filme
instaura/reserva para o espectador. O analista poderá considerar-se
um interpretador livre, mas a partir desta sua posição o realizador, na
sua legítima situação de criador, é deixado de lado (PENAFRIA, 2009,
p. 5).

Um dos procedimentos enfatizado por Penafria (2009), significativo à


preparação dos debatedores/mediadores, firma-se na denominada “análise de
conteúdo”. A análise de conteúdo “[...] considera o filme como um relato e tem apenas
em conta o tema do filme [...] (PENAFRIA, 2009, p. 6).
Esse tipo de análise, requer, entre outras questões, estabelecer o objetivo da
análise proposta; delimitar o tema do filme; identificar seu título em português, título
original, ano, país, gênero, duração, ficha técnica, sinopse; decompor o filme levando
em consideração seu tema; selecionar a cena principal do filme; retirar fotogramas do
filme como instrumento de trabalho. No mais, “[...] apenas pela análise será possível
verificar e avaliar, efectivamente, os filmes naquilo que têm de específico ou de
semelhante em relação a outros [...] (PENAFRIA, 2009, p. 9).
Em decorrência dos limites dessa produção, optou-se pela indicação pontual
de elementos que contribuam à emergência de organizar espaços coesos que
fomentem a formação cultural de professores em formação, pela via das interlocuções
entre cinema e literatura, algo que temos adotado no curso de pedagogia da UNESPAR/
Campo Mourão.

Considerações Finais
A literatura e o cinema adensam universos subjetivos mediatizados pelo
universo coletivo. Essas formas de Arte expressam as representações produzidas pelos

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homens no decorrer dos tempos e espaços. A ficção presente nelas, abre portas à
cultura, à criatividade e ao olhar estético. Isso é enriquecedor e humanizador.
A partir do que temos desenvolvido com alunos de pedagogia da
UNESPAR/Campo Mourão, os apontamentos metodológicos esboçados buscam
impulsionar práticas de formação cultural voltadas à formação de professores. Durante
o artigo, empenhou-se em debater e defender as interlocuções entre literatura e cinema
como escopo à formação cultural dos graduandos em pedagogia, futuros professores
da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental.
A sociedade contemporânea impõe às Universidades e às escolas uma luta
constante que assegure o desenvolvimento de práticas centradas na formação cultural
e estética. Para institucionalizar práticas dessa natureza, há que se refletir e materializar
uma sólida formação docente, sem a qual, não se encontrará meios de ensinar os
alunos nas instituições escolares. Afinal de contas, o professor não pode ensinar aquilo
que não aprendeu.

Referências
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VISLUMBRANDO ASPECTOS CULTURAIS A PARTIR DE
CLÁSSICOS DA LITERATURA UNIVERSAL

Izabel Cristina Barbosa de Oliveira, IFAL - Piranhas

Eixo Temático: GT 6 – Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens

Considerações Iniciais
O ensino de línguas atualmente nos permite trabalhar de diversas
maneiras, rompendo com vários métodos utilizados ao longo de décadas,
principalmente o modelo tradicional baseado na memorização da gramática e na
tradução. Desde os anos 90 “o uso da literatura volta a ganhar espaço e, pouco
a pouco, ela começa a ser incorporada nos materiais e métodos de ensino de
línguas estrangeiras” (RIBEIRO, 2016, p. 87).
Com isso, é possível fazer um trabalho concomitante de ensino de
línguas e aspectos culturais, a fim de amenizar também o choque cultural que
pode existir quando um indivíduo resolve conhecer algum país onde se fala a
língua alvo estudada e desenvolvendo o sentimento de empatia diante daquilo
que nos é diferente. Cosson (2006, p. 20) afirma que “a literatura serve tanto
para ensinar a ler e a escrever quanto para formar culturalmente o indivíduo”.
Assim, de acordo com Albaladejo (2007 apud RIBEIRO, 2016, p. 87) “a
revalorização da literatura como instrumento didático para o ensino de línguas
estrangeiras favoreceu ao aparecimento de várias obras dedicadas à exploração
de textos literários no campo da metodologia da língua inglesa”.
Algo que não aconteceu em todos os idiomas de maneira igualitária,
porém, efetuou-se de maneira progressiva a tal ponto que, praticamente, existem
traduções e adaptações de clássicos voltados para o ensino de línguas.
Nessa perspectiva, esse trabalho teve por objetivos: estimular a leitura
dos alunos; observar as diferenças culturais presentes na obra de Jules Verne;

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refletir sobre a importância do ato de ler; e analisar como os recursos semióticos
podem auxiliar na formação do leitor.
Esse trabalho foi desenvolvido em uma turma de 2º ano do nível médio
e esperou-se que ao final do projeto os alunos pudessem desenvolver maior
interesse e gosto pela leitura; compreender as relações existentes entre leitura,
apreensão do texto e das culturas; e utilizar os diversos recursos semióticos para
a compreensão da obra.

Referencial Teórico
O ensino de idiomas não pode ser trabalhado dissociado do aspecto
cultural, principalmente quando envolvemos a leitura de textos literários como
ferramenta de ensino-aprendizagem. Para compreendermos o que é literatura e
cultura, de forma geral, Canelo (2018, p. 218) explica que

a cultura pode ser entendida como um pano de fundo vasto e dinâmico,


uma constelação de representações simbólicas através das quais os
sujeitos identificam o seu lugar no mundo através de significados que
assinalam, quando não determinam, condições de agência ou de
subalternidade. A literatura acaba por constituir uma prática de
significação incontornável, pela sua relação intrínseca com a
linguagem, um dos sistemas-chave de representação do mundo.

Desenvolver um trabalho, no ensino de línguas, a partir do uso de textos


literários é propiciar ao estudante a oportunidade de desenvolver vários
conhecimentos, não apenas o linguístico.
A leitura propicia que o estudante aprenda, meio que de forma
inconscientes, os mecanismos de funcionamento da língua. Além de aprimorar
seu senso crítico, aprofunda-se em temas atemporais, como: amor, ódio, inveja,
preconceito e outros. Tudo isso, leva-o também a ampliar seu conhecimento de
mundo.
Até os dias atuais, esses temas são inseridos nas grandes tramas de
livros para todos os públicos. Mesmo que muitos leitores não consigam fazer as
relações com as obras originais.
Para Culler (1999, p. 47) “a literatura é o ruído da cultura assim como
sua informação. É uma força entrópica assim como um capital cultural. É uma
escrita que exige uma leitura e envolve os leitores nos problemas de sentido”.
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Pode-se aprender sobre a cultura do outro a partir das leituras dos textos
produzidos em seus países e observando características existentes em suas
festas, hábitos, atitudes, roupas, crenças, modos de falar e agir.
Antonio Cândido (2004, p. 174), de forma abrangente, fala da literatura
como se fosse um “toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de
uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore,
lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das
grandes civilizações”.
Dessa forma, a literatura é uma ótima ferramenta que auxilia o estudante
a expandir seu universo de conhecimento, permitindo que ele viva novas
experiências culturais, mesmo que nunca tenha saído de seu bairro, ou
experienciado algo diferente de sua vida cotidiana.

A entrada no universo da literatura provocará grandes transformações


no leitor, que viajará pelo universo da imaginação e da recriação a
partir do real. Transformar-se-á como ser humano dotado de
conhecimentos sobre si e sobre o mundo que o cerca à medida que
suas leituras avancem, daí a importância da literatura para formação
do aluno. (CARVALHO, 2015, p. 18)

Não só a imaginação será estimulada, proporcionando aos estudantes a


capacidade de fantasiar situações, inventar as características dos personagens,
mas também, sair de seu mundo real, comtemplando novas possibilidades de se
viver, com hábitos bastantes distintos dos seus.
Corchs (2006, p. 24) salienta que

não só os textos literários trazem informações sobre a cultura de outros


países; contudo, tais textos proporcionam ao aluno um contexto e uma
linguagem que despertam o interesse em descobrir mais sobre
determinada cultura ou povo e podem confrontá-la com aspectos de
sua própria cultura. Através dos textos literários, o aluno é colocado em
um contexto diferente do que está habituado em se tratando do
aprendizado de uma língua estrangeira. Este universo com que o aluno
se depara torna-se algo novo, o que o motiva a perceber novas
informações.

Com a limitação de vocabulário dos estudantes, com a base gramatical


debilitada por terem vindo de instituições públicas de ensino e pela falta de
contato com o idioma no 1º ano do médio-integrado, foi necessário pensar em

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maneiras de mediar a compreensão da leitura pelos estudantes para se poder
desenvolver o trabalho com o livro escolhido.
Nesse contexto, foi indispensável a utilização de estratégias de leitura
presentes no inglês instrumental ou inglês para fins específicos, pois, tais
recursos auxiliaram na mediação da compreensão texto pelo aluno, levando-o
a ler a obra e se apropriar de novas palavras a partir do skimming (uma leitura
superficial e geral do texto), skanning (uma leitura mais específica e detalhada),
associações, reconhecimento de cognatos, além de outras estratégias que
auxiliam na compreensão da leitura, mesmo sem se ter um domínio completo do
idioma trabalhado.
Podemos observar que além da linguagem verbal, podemos contar com
o apoio de vários outros recursos semióticos, como cores e imagens; que ajudam
na associação/aprendizagem do novo vocabulário a ser trabalhado ao longo do
capítulo. Observe a imagem 1.
Imagem 1: Atividades pré-leitura

Fonte: Verne, 2010, p. s/n.

É possível perceber que algumas palavras em inglês são semelhantes


ao nosso idioma, o que pode nos levar a inferir seus significados. O uso desses
cognatos, ajuda não só no estímulo da leitura e na compreensão do texto pelo
aluno, mas também no processo de aquisição de vocabulário.
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Lembrando que é fundamental a diferenciação entre os cognatos e os
falsos cognatos existentes no Inglês, para que, no futuro, o estudante não se
confunda ou deixe de compreender o texto lido. Levando-o a interpretações
errôneas.
Esse primeiro contato do estudante com o texto auxilia a compreensão
da história uma vez que já contextualiza o que poderá ocorrer ao longo do
capítulo: onde os personagens podem estar, os meios de transportes utilizados
e, até, possíveis dificuldades encontradas no percurso. Esse tipo de atividade
serve como um aquecimento (warm up) para instigar os alunos a ficarem
curiosos pelo que poderá ocorrer com os personagens.
As imagens estão muito presentes na vida cotidiana da geração atual,
as mensagens são transmitidas não só com o texto escrito, pelo contrário, existe
a explicação cada vez maior de outras semioses, principalmente o texto
imagético.
Dessa maneira, trabalhar com os recursos visuais presentes ao logo do
livro, além de ampliar o vocabulário do indivíduo sem a necessidade de traduzir
os termos, também aproxima a leitura do contexto atual do jovem aprendiz que
se sentirá mais à vontade para explorar o livro a partir do apelo das imagens
presentes.
Ao longo da obra nos deparamos com vários aspectos culturais, uma vez
que o personagem principal (Phileas Fogg) viaja por diversos países ao dar a
volta ao mundo, como: França, Egito, Índia, China, Japão e Estados Unidos.
Proporcionando ao leitor o contato com distintos aspectos culturais. Na visão de
Aebersold e Field (1997, p. 165)

o texto literário muito útil para melhorar as habilidades dos alunos,


ajudá-los a compreender diferenças culturais e ampliar oportunidades
para seu crescimento pessoal. Usar vários tipos de textos desafiará e
enriquecerá tanto o professor como também os alunos.

À medida que o livro expõe o estudante a um contexto que lhe é


diferente, é possível que essa dinâmica o ajude a desenvolver uma maior
aceitação do que não lhe é familiar, desenvolvendo sua empatia, compreensão
e receptividade.
Nessa perspectiva, Carvalho (2015, p. 9) explica que
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a leitura de um livro clássico amplia nosso horizonte, questionando-
nos, enriquecendo-nos com as marcas das leituras que precederam a
nossa. Assim, ele presta ao leitor um serviço valiosíssimo, pois chega
até nós trazendo as marcas da cultura de nossos antepassados, na
linguagem ou nos costumes. [grifo nosso]

Em cada um desses lugares podemos perceber várias características


com relação à vestimenta, costumes, religião e outros aspectos relacionados aos
hábitos culturais e suas paisagens peculiares.
Porém, não só o estudante estará sendo exposto a outros hábitos de
vida, mas também, com a leitura, ele compreenderá o porquê das ações e que
acontecem na história.
A volta ao mundo em 80 dias, apresenta características peculiares da
cultura de diversos países, que sem uma leitura mais ampla não seria capaz de
se compreender de acordo com a nossa perspectiva cultural local.
Dessa maneira “a leitura da literatura, pela sua natureza e pela sua
estética, colabora significativamente para a formação da pessoa, influindo nas
suas formas de pensar e de encarar a vida” (SILVA, 1998, p. 89).
Um desses exemplos de diferença de costumes é percebido na imagem
2, logo abaixo.

Imagem 2: Chegada de Phileas Fogg no Egito

Fonte: Verne, 2010, p. 5.

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É possível visualizar a diferença nos tipos de chapéus utilizados entre os
personagens egípcios e ingleses, além do estilo em suas roupas e estampas, o
uso ou não de bigodes e a moldura da porta, todos esses detalhes nos relata
uma diferença cultural significativa. O quadro pendurado na parede também é
outro indicativo de localização geográfica, uma vez que mostra uma das
construções mais conhecidas no mundo, as pirâmides.
Com esse suporte, é necessário repensarmos o papel da literatura em
sala, uma vez que ela pode abrir as portas para refletirmos sobre a importância
de se trabalhar a cultura de outros povos nas aulas de língua estrangeira, a fim
de minimizarmos vários estigmas que são criados ao longo dos anos e que
servem de meio de propagação de preconceitos.

Olhar a literatura na sua condição de linguagem, em interface com


outras expressões culturais, pode, no mínimo, reservar-lhe o sabor de
oferecer verbo para o leitor referir e tratar a cultura, em múltiplas
linguagens, seja o cinema, as artes plásticas ou a música, por exemplo.
/.../ Aí, todavia, se coloca a contra-face problemática para o
deslocamento da literatura: o lugar da cultura tão pouco está marcado
em nossas escolas de ensino médio e em boa parte do terceiro grau
(YUNES, 2003, p. 65).

Nas aulas de Língua Inglesa do 2º ano do ensino médio integrado, temos


que iniciarmos os assuntos desde o início, uma vez que os estudantes passam
um ano sem ter contato com essa disciplina na instituição, uma vez que ela só é
oferecida a partir do segundo ano do curso.
Para tentarmos desenvolver um trabalho com gêneros textuais em sala,
os conteúdos do inglês instrumental são fundamentais para ampliar a
compreensão de texto por parte dos estudantes.
Na implementação do trabalho com o livro de Verne, observou-se que
muitos alunos, inicialmente, não conseguiam identificar os lugares a partir das
roupas ou das paisagens sugeridas nas imagens, demonstrando, em alguns
aspectos, pouco conhecimento de mundo.
É importante salientar que alguns nomes de cidades, pessoas, lugares
ou itens podem ser relativamente fáceis de serem reconhecidos por pessoas que
moram em cidades grandes ou capitais, por causa de suas atividades, maior
contato com estrangeiros ou a partir dos meios de comunicação.

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No entanto, por outro lado, esse trabalho foi desenvolvido com alunos
que habitam no sertão de Alagoas. Alguns, moram em sítios longe das principais
cidades, onde não há fácil acesso à televisão, celular, nem internet. Tornando
difícil o trabalho de identificação de várias características culturais originárias de
outros países.
Alguns problemas de identificação observados foram: a origem do
mordomo, a partir de seu sobrenome – Passepartout; as pirâmides do Egito,
apresentaram dificuldade de lembrar o nome do país; as vestes indianas, não
identificaram o suposto país; além de alguns aspectos referentes às crenças e
hábitos de outros povos.
É necessário não só ensinar uma língua, mas também, ampliar o
conhecimento de mundo dos estudantes a fim de aprimorar sua compreensão
da leitura, que está intimamente ligada ao entendimento de contextos sócio
históricos e culturais. Sem isto, o estudante lerá o texto sem a verdadeira
dimensão ligada a esta ação: a formação e o desenvolvimento do indivíduo e
ampliação do seu conhecimento de mundo.
Outro ponto importante que deve ser mencionado é a limitação a obras
literárias por parte dos alunos, ou por não conhecerem, ou por não terem como
comprá-las, uma vez que vivem em uma região mais remota. Ou mesmo por
muitos não terem condições financeiras para adquiri-las.
O acervo na biblioteca também não contempla nenhum exemplar de
livros literários em Língua Inglesa. Dessa forma, caso o livro A volta ao mundo
em 80 dias não estivesse disponível gratuitamente na internet, seria muito mais
difícil propiciar esse trabalho, unindo o processo de aquisição da língua com o
uso da mesma em contextos culturais distintos.

Considerações Finais
Ao final do projeto os alunos desenvolveram maior interesse e gosto pela
leitura; compreenderam as relações existentes entre leitura, apreensão do texto
e de várias culturas; e utilizaram os diversos recursos semióticos presentes nos
textos para compreenderem a obra.

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Alguns alunos demonstraram interesse pela leitura por causa de o livro
ser bastante ilustrado e pertencente ao gênero história em quadrinhos (HQ).
Uma leitura mais curta, direta e que se utiliza de vários recursos visuais em sua
produção. O texto adaptado ao público infanto-juvenil foi um ponto importante
para a introdução do texto literário em sala de aula.
As imagens, as cores, os termos explicativos, de forma geral, os
recursos semióticos auxiliam tanto no processo de leitura, quanto na
compreensão do texto.
Porém, ainda é necessário proporcionar atividades com as mais
estratégias de leitura para que os estudantes desenvolvam, por eles mesmos, o
interesse pelo gosto de ler.
Espera-se que com a aquisição de novos livros na biblioteca, ou mesmo,
com novos exemplares gratuitos na internet, possamos ampliar o acesso à leitura
de clássicos da literatura por parte dos estudantes. Aumentando,
consequentemente, sua aprendizagem linguística e cultural no idioma alvo.

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A LITERATURA INFANTIL DE JOÃO ANZANELLO
CARRASCOZA E A OBRA PRENDEDOR DE SONHOS (2010)

Luciana Ferreira Leal (UNESPAR – Paranavaí)

Eixo Temático 6: Literatura infantil e juvenil e as múltiplas linguagens.

Considerações iniciais
O objetivo do trabalho é apresentar a análise da narrativa infantil Prendedor de
sonhos (2010) de João Anzanello Carrascoza, que retrata a história de Zelito Traquitana,
único inventor de uma cidadezinha. Um dia, remexendo em seus velhos inventos,
encontrou a máquina de fabricar sonhos e resolveu consertá-la. Mas, por algum defeito
em seu mecanismo, em vez de produzir os seus próprios sonhos, a máquina começou
a prender os de toda a população, espalhando um clima de desencanto pela cidade. A
história de Zelito Traquitana denota, poeticamente, que sonhar é importante.
A análise desta obra faz parte de um projeto que estuda a obra de João
Anzanello Carrascoza, autor da literatura brasileira contemporânea, que escreve obras
destinadas aos públicos adulto, juvenil e infantil. Analisa-se as semelhanças e
dessemelhanças, a articulação, o diálogo, a ideologia e o projeto retórico persuasivo
nas construções narrativas e temáticas destinadas aos diferentes públicos.
Dessa forma, tem-se como foco definir se há uma poética da literatura
destinada ao público infantil e juvenil diferente da poética da literatura destinada ao
público adulto. Analisa-se a participação do leitor e em que medida a construção de
obras destinadas a diferentes públicos tratam desse público, seus anseios, problemas,
experiências e expectativas, possibilitando que o leitor se identifique com personagens
e suas vivências, aprendendo e dialogando com elas. O desenvolvimento deste projeto
de pesquisa se dá mediante pesquisa bibliográfica e documental e levantamento de
dados mediante consulta à base de dados físicos e virtuais.
Com uma linguagem fluida e poética, e por meio de experiências subjetivas e
intimistas, a prosa de Carrascoza possibilita a caminhada do leitor para o interior de sua
própria existência e olhar atento para questões esquecidas. A prosa de João Anzanello
Carrascoza não é de crítica social, mas de intimismo e por isso caminha quase que na
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contramão da literatura brasileira contemporânea. Se a tônica da literatura na
contemporaneidade é crise, medo, ansiedade e violência nos grandes centros urbanos,
por meio de um realismo exacerbado, a prosa de Carrascoza é subjetiva, as situações
são ordinárias e familiares e as relações humanas são momentos de construção de
aprendizados, de beleza e de lirismo.
A leitura, ainda que não integral das obras de Carrascoza, permite-me supor a
dificuldade de classificar em definitivo algumas obras em apenas uma categoria ou
gênero. Aquele Água Toda, livro de contos publicado em 2012, ganhou o APCA, e
também recebeu o Prêmio Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Esta
dificuldade de classificação também se evidencia em outras obras, como por exemplo,
o romance: Aos 7 e aos 40, de 2013, que recebeu a indicação “Altamente
Recomendável”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.
Muitas das personagens de João Anzanello Carrascoza são crianças, ou
adultos que rememoram sua infância, ou são pais em interação com filhos pequenos.
Segundo o autor, em entrevista concedida a Amilton Pinheiro, publicada em 2015, no
site da Eca/Usp:

As personagens crianças, certamente, revelam minha predileção


ficcional ou limitação e o meu investimento num mundo de substância
esperançosa, no qual há sempre a possibilidade de remissão e de
comungarmos com nossos semelhantes, também eles em processo de
transformação.

Plenas de poesia e lirismo, tendo como espaço social a pequena burguesia do


interior paulista, suas histórias recriam a complexidade das relações familiares:
memórias de infância, passagem do tempo e sensíveis diálogos entre pais e filhos.
Elementos como recursos da narrativa (tempo, espaço, linguagem, narrador,
temática), projeto retórico e ideologias presentes nas obras de João Anzanello
Carrascoza serão desdobrados. Para a análise de Prendedor de Sonhos (2010)
trouxemos como aporte teórico os estudos de Reis e Lopes (1988), Ceccantini (2000)
e Genette (S/d). A pesquisa se classifica, quanto aos meios, como pesquisa bibliográfica
(GIL, 2002), e quanto à abordagem, este trabalho é considerado como qualitativo
(JACOBSEN, 2009).

Elementos da Narrativa em Prendedor de Sonhos (2010)


Zelito Traquitana é o único inventor daquela cidadezinha. Conseguia dar conta
do recado e ainda atender aos pedidos dos habitantes dos povoados vizinhos. Era
adorado pelas crianças. No primeiro parágrafo temos já a caracterização de Zelito como
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herói, enquanto figura de realce no universo diegético. A caracterização dessa
personagem, a mais importante da narrativa, é relativamente elaborada, porém, não
definitiva. Traquitana também significa carro desconjuntado, calhambeque. E é assim a
sua primeira aparição, na capa do livro. Em uma motoca desconjuntada e em disparada.
Há nessa história a presença da concepção antropocêntrica da narrativa: a
narrativa existe e desenvolve-se em função de uma figura central. No entanto, Zelito,
em nenhum momento é descrito em situação de conflito interno ou de introspecção.
Suas ações, caracterizadas moralmente como criativas, não fazem refletir nessa
personagem um processo de transformação psicológica que o pudesse tornar
personagem redonda, ou seja, de complexidade psicológica que leva à transformação
do seu comportamento ao longo do enredo.
As demais personagens que se apresentam na narrativa também são planas,
uma vez que são construídas em torno de uma única ideia ou qualidade. São
personagens acentuadamente estáticas. Dentre elas, destacamos, as engenhocas que
ele criava; as crianças que lhe pediam todo tipo de maluquice; Neco, para quem Zelito
inventara o localizador de guarda-chuvas; Dona Rita, cozinheira da escola, para quem
o protagonista inventara a lavadora elétrica de panelas (um trambolho); Dona Zica, para
quem foi inventado o termômetro digital de azar; Dona Maria, que não tinha sonho na
vida; os mineiros e as mulheres dos mineiros; o carteiro; a benzedeira; o padeiro; o
japonês da quitanda; o padre; o prefeito; o Doutor Paulo. Todas as personagens dessa
narrativa não apresentam complexidade psicológica.
A partir das personagens elencadas, podemos dizer que o protagonista é do
gênero masculino, o que não destoa da maioria das obras da década de 1990 até o
momento, embora sendo a maioria de escritores femininos, o protagonista é, na maioria
das vezes, masculino, cujo intuito é, de acordo com as proposições de Ceccantini, “[...]
tentar ampliar a faixa do possível público leitor.” (2000, p. 342).
Sabemos que o bom livro literário infantil é indicado para qualquer idade, porém
a idade dos protagonistas é importante para que a obra seja classificada como infantil.
Na obra analisada, Zelito não tem idade, mas também não é uma criança. Todavia, por
sua característica inventiva e por atender com amizade os pedidos das crianças, é uma
personagem que lida com muito carinho com as crianças. Pois as suas invenções
atraem todos os públicos, sobretudo, o público infantil. O comportamento da
personagem Zelito contribui para essa classificação:

Com essa criatividade toda, Zelito traquitana só podia mesmo ser


adorado pelas crianças, que lhe pediam todo tipo de maluquice.

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Foi assim que ele criou a máquina de fazer lição de casa. Uma ótima
invenção para alunos preguiçosos, mas que foi logo proibida pelos pais
e professores. (CARRASCOZA, 2010, p.10)

Zelito era a diversão das crianças. As mais diversas e divertidas invenções


foram criadas por ele: a escova de dentes virtual, o despertador de atraso, a caixa de
arrotos, o detector de broncas. E tantos outros objetos e utensílios incríveis.
No que diz respeito ao narrador, podemos considerar que é do tipo onisciente,
situado fora da história, com irrestrito acesso tanto aos aspectos exteriores da vida das
personagens, quanto à sua interioridade. A voz narradora cede espaço, em poucos
momentos, aos diálogos entre as personagens, possibilitando o discurso direto. Trata-
se de um narrador que se empenha em narrar os fatos com certa objetividade e
distanciamento
Trata-se, todavia, de um narrador intruso que, por vezes, emite opiniões, realiza
julgamentos e, em alguns momentos, se torna cúmplice do protagonista. Essa
aproximação, esporádica, é tão intensa que se pode observar fragmentos de discurso
indireto livre. Ou seja, a voz narradora se deixa envolver à voz de algumas personagens,
mas essa presença é muito tímida.
A focalização ou ponto de vista que o narrador de Prendedor de Sonhos (2010)
assume é o do protagonista da narrativa, o que permite aproximar o leitor com a obra e
com o protagonista, mesmo sendo narrada em terceira pessoa. O narrador fora da
história também solidifica um registro próximo ao da linguagem coloquial e, ao mesmo
tempo, poética, bem iminente na narrativa analisada.
A partir dessa reflexão, podemos dizer que o narrador é heterodiegético, pois
“narra uma estória à qual é estranho” e tende a adotar uma “atitude demiúrgica em
relação à história que conta” (REIS; LOPES, 1988, p.121 e p.122). O narrador relata
uma história à qual é alheio e externo, uma vez que não integra nem integrou, como
personagem, o universo diegético em questão. O narrador heterodiegético inclina-se a
assumir um comportamento de criação e de grandiosidade em relação à história que
conta: “Um dia, sem nada para criar, ele foi remexer nos seus velhos inventos e
encontrou a máquina de fabricar sonhos, que construíra para a Dona Maria”.
(CARRASCOZA, 2010, p.16).
Várias vozes se entrecruzam no texto narrativo e justamente nessa alternância
que se constrói a produtividade semântica do texto. O discurso das personagens
aparece sempre inserido no discurso do narrador, entidade responsável pela
organização e modelização do universo diegético.

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Nesse sentido, nessa narrativa, elencamos o discurso citado, que consiste na
reprodução fiel, em discurso direto, das palavras supostamente pronunciadas pela
personagem e que constitui, por isso mesmo, a forma mais mimética de representação:
- Será alguma praga? Disse a benzedeira. – Parece que todo mundo
está com mau-olhado!
- Talvez seja um novo vírus – cogitou o doutor Paulo, médico da cidade.
- É muito azar! – comentou a dona Zica, notando o alto nível de má
sorte em seu termômetro digital. (CARRASCOZA, 2010, p.23)

Com presença marcada no texto, há também a presença do discurso


transposto, por meio do qual o narrador transmite o que disse a personagem sem, no
entanto, lhe conceder uma voz autônoma: “Como não consegui sonhar, pediu ao Zelito
Traquitana que a ajudasse, o que ele prontamente fez, inventando a tal máquina”.
(CARRASCOZA, 2010, p.17).
O discurso narrativizado, um discurso híbrido, “onde a voz da personagem
penetra a estrutura formal do discurso do narrador, como se ambos falassem em
uníssono fazendo emergir uma voz ‘dual’" (REIS; LOPES, 1988, p. 277) também aqui
se presentifica, quando o narrador resume um trecho de fala de uma personagem:

Uns poucos moradores, ainda imunes ao estranho desânimo, foram


procurar o prefeito. Era preciso dar um jeito naquilo, urgentemente, ou
a cidade inteira se afundaria no tédio.
O prefeito já andava meio desanimado e não sabia o que fazer pelo
seu povo. Mas aí teve um estalo e se lembrou de Zelito Traquitana.
Foi, imediatamente, procurar o inventor e suplicou a ele que criasse
algo para reverter a situação. (CARRASCOZA, 2010, p.23)

O espaço descrito, por sua vez, embora se aproxime de uma realidade


existente (oficina de inventos e laboratório de testes), se distância da realidade empírica
ao utilizar como elemento fantástico algumas criações, também fantásticas, de Zelito
Traquitana: o termômetro digital de azar, o abridor de cara fechada, o triturador de
pesadelos, a máquina de costurar nuvens, o redutor de preguiça, a máquina de fazer
lição de casa, etc.
A narrativa não é predominantemente espacial. O espaço, tanto o macro
quanto o micro é pouco focado na obra em questão. O espaço macro pode aqui ser
entendido como aquela cidadezinha, com referência aos povoados vizinhos: Zelito
Traquitana era o único inventor daquela cidadezinha. E nem precisava de outro. Ele
sozinho dava conta do recado. E ainda sobrava tempo para atender aos pedidos dos
povoados vizinhos. (CARRASCOZA, 2010, p. 6). Esse espaço maior sedia o desenrolar
do enredo.
A garagem da casa, onde está localizada a oficina de inventos e o laboratório
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de testes de Zelito constituem o espaço micro da narrativa. A descrição do micro
particulariza a ambientação e nos mostra detalhes, sob o aspecto do ponto de vista
físico, do local de trabalho de Zelito Traquitana, sobretudo, do que era encontrado
nesse local:

Lá as pessoas podiam encontar, no meio da bagunça, tudo que era


engenhoca que ele havia criado.
Tinha, por exemplo, localizador de guarda chuvas [...]. Tinha também
lavadora elétrica de panelas. Tinha os óculos de enxergar lá-trás,
ideais para quem só pensava no futuro e se esquecia das coisas
vividas, legais.
Tinha o termometro digital de azar [...]. (CARRASCOZA, 2010, p. 6-9)

A descrição permite que a imaginação do leitor conheça um espaço diferente do


convencional, onde a imaginação e a fantasia afloram. Podemos considerar o
predomínio do espaço fechado sobre o aberto. Pois o que há de mais emocionante na
narração se dá nesse espaço. É aqui que, sem serviço, Zelito decide consertar a
máquina de fabricar sonhos, mas esquece de desligá-la.
Na obra, percebe-se o deslocamento espacial: do laboratório de Zelito à cidade,
em que a descrição tem um importante papel de situar a ação: “Na manhã seguinte,
aconteceu uma coisa estranha na cidade. Muitas pessoas acordaram tristes, de mal
com a vida.” (CARRASCOZA, 2010, p.20).
O espaço escolar, como na maioria das obras infantiis, possui um grau
secundário de representação. Apenas a referência indireta quando Zelito cria a máquina
de fazer lição de casa, que foi uma excelente invenção para os alunos preguiçosos, no
entanto, logo proibida por pais e professores e também a criação do mágico lápis com
TV, adorado pela garotada. Quando a máquina prende os sonhos, e todas as pessoas
da cidade desanimam, as crianças também esmorecem, pois acordam e não querem ir
para a escola.
O tempo do discurso pode ser entendido como consequência da representação
narrativa do tempo da história. O tempo da história é múltiplo e a sua vivência desdobra-
se pela diversidade de personagens que povoam o universo diegético: “Nesse dia que
estava sem serviço [...]” (CARRASCOZA, 2010, p.18); “Na manhã seguinte [...]”
(CARRASCOZA, 2010, p.20).
No que se refere ao tempo histórico, a época é contemporânea. Pode-se dizer
que tempo histórico caracteriza-se pela imprecisão. A impressão que temos, ao ler
Prendedor de sonhos (2010), é a de que o tempo histórico pode ser idêntico ao da
publicação da obra. Não conseguimos reconhecer na obra a tentativa de caracterização
da época, por esse motivo acreditamos que se trata de um tempo presente e de uma
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época contemporânea. Mas também pode ser de um passado, da infância do escritor.
Ou do futuro.
Pode-se pensar que a não caracterização do tempo histórico se deve à
atualização que ocorre na literatura desde o modernismo, pela preferência pela
sugestão e o gosto pelo vago, fragmentário e descontínuo. A não caracterização
também pode estar relacionada ao público ao qual a obra se destina. Um tempo não
definido pode garantir um terreno neutro e diferenciar a literatura infantil da literatura
canônica. (CECCANTINI, 2000, p. 335-336).
A linguagem literária é constituída por uma estrutura complexa, pois acrescenta
ao discurso linguístico um significado novo, surpreendente, alusivo. A linguagem literária
é sempre polissêmica, ambígua, aberta a várias interpretações. Em Prendedor de
sonhos e em todos os livros infantis e juvenis de João Anzanello Carrascoza, a
linguagem é bem elaborada, dialoga com a produção literária adulta contemporânea.
Em nenhum momento se vislumbra a pobreza semântica que muitas vezes é atribuída
à literatura infantil. Há, em Prendedor de sonhos (2010), um excelente nível de trabalho
com a linguagem, há também diálogos espontâneos e fluentes. João Anzanello atinge
resultado consistente no tratamento dado à questão da linguagem, como mostra a
esteticidade de muitos fragmentos de linguagem poética:

O desencanto pairava no ar. E ninguém sabia explicar o motivo.


O padre acordou abatido, com seu estoque de fé em baixa.
[...] O clima de desencanto espalhava, contaminando até os animais.
Os gatos miavam baixinho pelos muros. Os cachorros latiam
tristemente. Quase nem se ouvia a cantoria dos pássaros.
(CARRASCOZA, 2010, p.26)

A capa, em tom de amarelo e cinza, traz o título do livro em destaque, na parte


superior, em cor luminosa e avermelhada. Na parte esquerda da capa, consta uma
ilustração que representa a aventura do protagonista da história, Zelito Traquitana, em
uma motoca engraçada, cheio de objetos coloridos, de óculos e uma hélice na cabeça.
Na parte inferior da capa, consta o nome do autor e da ilustradora e, mais abaixo, em
menor tamanho, o nome da editora.

Figura 1: Capa de Prendedor de sonhos (2010)

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Fonte: Acervo pessoal da autora, 2020.

Na quarta capa, nas mesmas cores da capa, há a ilustração de um cachorro,


que não é mencionado diretamente na história, mas acompanha Zelito na sua invenção
e desinvenção. Ele dirige também um carro, de uma roda só, que também se parece
com um navio. Há, na parte superior direita, um resumo em letras vermelhas que chama
a atenção para os aspectos divertidos do livro, a fim de convencer possíveis leitores.

Figura 2: Quarta capa de Prendedor de sonhos (2010)

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2020.

Nas ilustrações, encontramos personagens cheias de cores e de vida que nos


olham e nos rodeiam enquanto dançam no ar. A ilustradora, Juliana Bollini, é argentina
e há mais de 20 anos vive em São Paulo, encantando pessoas de todas as idades com
seu trabalho em papel machê.
Em sua ilustração, ela conseguiu ser espontânea e também conseguiu
resguardar o enigma e o gosto pela descoberta. Com esmero, ela nos apresenta um

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interessante projeto gráfico do livro com belíssimas ilustrações. Utiliza-se de um estilo
que poderíamos chamar de figurativo. As ilustrações são coloridas e vivas e reproduzem
desenhos que, parecem foram antes construídos com papel machê. Num traço
estilizado e bem criativo. A ilustração dialoga com o sentido do texto, acrescenta-lhe
significado e é tecnicamente realizada.
No final do livro, Juliana se apresenta lindamente e comenta sobre a ilustração
realizada: “Dar vida ao Zelito foi muito divertido. Seus cabelos foram feitos de linha de
costura e bucha de banho usada. Utilizei também papeis de diferentes tipos, tecidos,
chapinhas, sucatas e muita cola. [...]. Dedico estas ilustrações ao “inventor” que está
dentro de cada um de nós”.
A narrativa é muito divertida. Eram tantas as criações, mas nem todas davam
certo ou funcionavam como deveriam. A máquina de fazer lição de casa errou na
acentuação, não acompanhou a nova ortografia oficial e acentuou voo; o localizador de
guarda-chuvas apitava também quando chegava perto de bengalas; o identificador de
puns endoideceu:
Registrou, certo dia, quando estava reunido com a família, peidos
vindos dos quatro cantos da sala. Claro devia estar desregulado: era
improvável que todos os seus parentes ali estivessem peidando ao
mesmo tempo. E o fedor nem era tão forte – apesar de que, a gente
sabe, tem muito pum por aí sem cheiro algum. (CARRASCOZA, 2010,
p.14)

Zelito criava e aprimorava. Assim como o autor. Estamos diante de um livro


criado e aprimorado por João Anzanello Carrascoza para atrair todos os públicos. Para
encantar, divertir e também fazer pensar e, sobretudo, fazer sonhar. Porque os sonhos
nos movem além das nuvens e da máquina de costurá-las.
O clímax dessa narrativa está na máquina de criar nuvens. Remexendo nas
suas velhas criações, Zelito se depara com a máquina que criara para dona Maria, que
não conseguia sonhar. E sonhar aqui ganha uma dimensão literal e metafórica
maravilhosa. Dona Maria não conseguia imaginar em sonho.
Mas quando a máquina é consertada e Zelito a esquece ligada, ela prende todos
os sonhos dos habitantes da cidadezinha, ninguém mais possui sonhos. As pessoas
acordaram tristes, aborrecidas com a vida: os mineiros não foram às escavações; as
mulheres não quiseram tomar conta da horta e dos bichos; o carteiro não entregou a
correspondência. O desânimo só aumentava naquela cidadezinha. No outro dia, nem o
padeiro quis fazer o pão, nem o japonês abriu as portas da quitanda, até o padre
acordara com pouca fé: “O clima de desencanto se espalhava, contaminando até os
animais.” (CARRASCOZA, 2010, p.25).
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E por toda a cidade, os questionamentos não paravam de acontecer:
– Será alguma praga? – Disse a benzedeira. – Parece que todo mundo
está com mau-olhado!
- Talvez seja um novo vírus – cogitou o doutor Paulo, médico da cidade.
- É muito azar! – comentou a dona Zica, notando o alto nível de má
sorte em seu termômetro digital. (CARRASCOZA, 2010, p.23)

Depois do clímax, a busca pela solução. Para a cidade não se afundar no tédio,
o prefeito, já desanimado, lembra-se de procurar Zelito Traquitana, que, ao buscar a
solução, descobre ligada a máquina de fabricar sonhos e que não estava fabricando
sonho nenhum, mas “[...] inexplicavelmente, como balões presos a um barbante, um
punhado de sonhos estava grudado na sua cúpula em formato de antena parabólica.”
(CARRASCOZA, 2010, p. 28). A máquina estava furtando o sonho de todos os
habitantes daquela cidadezinha. Preso à máquina, Zelito viu o sonho de prefeito
(construir casas populares para os habitantes mais pobres), do padeiro (fazer um pão
mais leve e crocante), do pipoqueiro (um novo fogãozinho para estourar pipocas mais
gostosas), do doutor Paulo (curar todos os doentes da cidade), do padre (tornar-se
bispo). E assim, inventou a desinvenção. Desligou a máquina e os sonhos retornaram
à sua origem. E as pessoas foram ficando cada vez mais animadas.

O prefeito, aliviado, mandou chamar Zelito Traquitana para lhe


agradecer pessoalmente. E quando perguntou o que ele fizera para
resolver a confusão, o inventor, como se não a tivesse causado,
respondeu sorrindo:
- Nada. Só inventei uma desinvenção. (CARRASCOZA, 2010, p.31)

Render-se à ilusão, à imaginação, querer muito alguma coisa, pensar


insistentemente em algo é o que move o ser humano. Mas o sonho é individual, e as
motivações são intrínsecas e não exteriores. Os sonhos não podem ser criados por
outrem:

Quando dona Maria a ligou, os sonhos foram saindo aos montes, um


mais lindo que o outro.
Pensa que ela gostou? Nananinanão! Ela ficou mais aborrecida ainda.
Com tanto sonho bacana, não sabia qual deles escolher.
(CARRASCOZA, 2010, p. 17)

Dona Maria decidiu que seu sonho não podia ser fabricado. Tinha de ser natural
sem motivação externa, decidiu que precisava fabricar seu próprio sonho e que esse
sonho precisava ser autêntico. Ela descobriu que seu maior sonho era ter um sonho:
“Zelito sabia que, mesmo na prisão, qualquer pessoa pode sonhar, soltar a imaginação.
Mas se prendem o seu sonho, ela perde a vontade de viver” (CARRASCOZA, 2010,

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p.29).
Os conflitos humanos, como o medo de não ter sonhos e o esquecimento de
se viver o momento presente e apreciar o passado, estão aqui nessa narrativa. Zelito
inventou os óculos de enxergar lá-trás, para quem só pensava no futuro e se esquecia
das coisas vividas, legais, do passado e do presente. O passado nos constitui, o
presente nos faz e o futuro nos move, são nossos sonhos, necessários para nos manter
de pé. Passado, presente e futuro, isoladamente, não nos completa inteiramente, mas
juntos, nos fazem ser. E, também por tratar disso, as reflexões que essa obra suscita
são profundas.

Considerações Finais
Mario Vargas Llosa, em 2012, no livro A tentação do impossível: Victor Hugo e
Os miseráveis, considera que o abismo entre o que somos e o que desejamos ser
precisa ser ocupado de alguma forma e por isso e para isso existem as ficções. O livro
Prendedor de Sonhos (2010) é lindo, poético e emocionante. Ler a obra de João
Anzanello Carrascoza é ler livros muito artísticos, em que o caráter estético atinge picos
muito marcantes. E ler e pensar sobre Prendedor de Sonhos (2010) nos faz viver o
impossível, preenche o nosso abismo, possibilita incorporar o impossível ao possível.
Como Zelito Traquitana, João Anzanello Carrascoza, realizava experiências e
queria ser inventor, quando era criança, na pequena Cravinhos, no interior de São
Paulo. Já crescido, se tornou inventor da arte da palavra, “Descobri que, assim, eu podia
abrir a cara fechada das pessoas, costurar as nuvens, medir as estrelas. E o mais legal
de tudo foi descobrir que a literatura é uma máquina de fabricar sonhos que nunca
quebra”.
Conforme mencionado na introdução, a análise desta obra faz parte de um
projeto de pesquisa que estuda a obra de João Anzanello Carrascoza. O processo de
análise das semelhanças e diferenças nas construções narrativas e temáticas
destinadas aos diferentes públicos ainda está se configurando.
Questionado em entrevista por Andrea Ribeiro para o Jornal Rascunho, sobre
as diferenças da literatura infantil em relação à literatura adulta e os desafios para
escrever para o leitor em formação, Carrascoza responde:

A literatura é uma água só, que assume diferentes cores. Talvez


a literatura infanto-juvenil seja mais azul, enquanto a adulta, pela
sua profundidade, vai se tornando mais escura, às vezes de um
azul quase negro. Quanto ao público, escrever é sempre um
desafio, inicialmente, para si e, depois, para o outro. Só nos
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aproximamos do leitor se despejamos vida em nossas histórias,
se entregamos a ele textos que respiram aventura humana.
(2011)

Por ora, o que é possível considerar é que em toda obra analisada não prevalece
a orientação pedagogizante mas, contrariamente a essa proposição, o contato com a
língua é provocador, crítico, original e prazeroso.
Posto que a leitura é sempre produção de significados, consideramos que a obra
estudada prende leitores de todas as idades, porque não resta dúvida de que a leitura
de Prendedor de sonhos (2010) amplia a visão de mundo de crianças, jovens e adultos,
proporcionando sentidos, instigando a imaginação e a fantasia. Entretanto, o livro
contempla sobremaneira o público ao qual inicialmente se destina: crianças. E isso se
justifica na elaboração gráfica (ilustração, formato) e diegética (dimensão ficcional da
narrativa), conforme analisamos nesse texto.
Por fim, e importante ressaltar que, como as imperfeições do mundo real
impossibilitaria a plenitude do sonho, é por meio da literatura e, sobretudo, das
invenções de Zelito, que o enredo ganha proporções mágicas e faz o impossível parecer
concreto, promovendo uma viagem para o ideal dos sonhos de cada um de nós. Afinal:
“Ler significa tirar férias da realidade e refugiar-se numa praia de encantamentos,
significa abandonar um olhar antigo e lavar as vidraças das retinas para o sol do
conhecimento e a lua da ficção entrarem.” (RIBEIRO, 2002, p. 39).

Referências
CARRASCOZA, João Anzanello. Prendedor de sonhos. Ilustrações de Juliana Bollini.
São Paulo: Scipione, 2010.

CECCANTINI, João Luís Cardoso Tápias. Uma estética da Formação: vinte anos de
Literatura juvenil brasileira premiada (1978-1997). Tese de Doutorado. Faculdade de
Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Assis, 2000.

__________. Uma estética da Formação: vinte anos de Literatura juvenil brasileira


premiada (1978-1997). Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências e Letras de Assis –
Universidade Estadual Paulista. Anexos. Assis, 2000.

Entrevista de João Anzanello Carrascoza a Rogério Pereira. Por Paiol Literário. Texto
publicado na edição 162. Disponível em <http://rascunho.com.br/joao-anzanello-
carrascoza/>. Acesso em: 18 mar. 2019.

Entrevista concedida a Amilton Pinheiro: João Anzanello Carrascoza fala sobre sua
obra, calcada na descoberta infantil Disponível em:
<http://www3.eca.usp.br/sites/default/files/form/biblioteca/acervo/producao-
academica/002733291.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2019.
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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Tradução de Fernando Cabral Martins.
Lisboa: Vega, s/d.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2002.

JACOBSEN, Alessandra de Linhares. Gestão por resultados, produtividade e inovação.


Florianópolis: UFSC, 2009.

LLOSA, Mario Vargas. A tentação do impossível: Victor Hugo e Os miseráveis. Rio de


Janeiro: Alfaguara, 2012.

REIS, Carlos. LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo:
Ática, 1988.

RIBEIRO, Jonas. Colcha de Leituras. São Paulo: Elementar, 2002.

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GRUPO TEMÁTICO 7: TEMAS
POLÊMICOS, INTERDIÇÕES E
CENSURA NA LITERATURA
INFANTIL E JUVENIL

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A FEMINIZAÇÃO DA TERRA GALEGA NA LITERATURA
INFANTOJUVENIL

Thayane Gaspar Jorge, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Coordenação


de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Eixo Temático: Grupo Temático 7: Temas polêmicos, interdições e censura na


literatura infantil e juvenil

Considerações iniciais
Desde os contos populares de Charles Perrault, as recolhidas da oralidade de
Jacob e Wilhelm Grimm e dos contos de fadas escritos por Hans Christian Andersen é
inquestionável a frequente presença de uma personagem: a velha. Nessas histórias
percebe-se que a imagem da anciã, recorrente e poliédrica, assume geralmente
características e funções estáveis. Essa personagem participa de contos tradicionais
vastamente conhecidos no passado e no presente como A Bela Adormecida, A Branca
de Neve, João e Maria, Rapunzel, A pequena sereia e Chapeuzinho Vermelho. A velha,
nas obras em questão, assume diferentes facetas oscilando na concepção maniqueísta
entre o bem e mal. Logo, podem protagonizar papeis obscurecido pela vileza
metamorfoseadas nas bruxas, de debilidade como as avós ou como oráculos da
sabedoria universal sob a forma de anciã. Há uma flutuação entre as categorias e
características de bruxa/feiticeira/vilã, avó/terna/frágil, anciã/poderosa/sábia e rastrear
sua gênese é uma tarefa quase impraticável, por se tratar de uma crença longínqua no
tempo, remontando o culto sagrado à Magna Mater, a deusa-mãe, que assumiu
diferentes formas nas culturas primitivas (NEYRA, 2008).
Este arquétipo (JUNG, 1891) é um tema significativo na construção identitária
e imagética de países durante seus respectivos movimentos nacionalistas como o caso
irlandês e galego. A Celtic Revival foi um movimento em busca da libertação da
opressão imperialista inglesa que assolava a Irlanda. O movimento consistia no resgaste
da história, cultura e língua autóctone, reivindicações condensadas no mito histórico e
heroico dos povos celtas. No outro lado do Atlântico, a Galícia vivia um contexto atípico

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que configurava um colonialismo interno (BEIRAS, 1981) resultado da imposição
política, cultural e linguística por parte de Castela que se desenrolava desde os fins da
Idade Média.
Na virada do século XIX, A Galícia consolida a sua identificação com o
panorama da Irlanda e tem sua postura respaldada por documentos literários como
Leabhar Gabhala Éireann que alegava uma origem comum das duas nações através da
raça celta. Os movimentos reivindicativos na Galícia ao evoluírem para o nacionalismo
utilizaram a Irlanda como um paradigma. Irlanda e Galícia elegeram a figura da velha
como metáfora do resultado da exploração, submissão e marginalização do
colonialismo que experimentavam ao longo da sua história cuja salvação se daria pelo
rejuvenescimento igualmente metafórico. A figura da velha surge como uma alegoria
que premedita uma morte simbólica das culturas e das línguas irlandesa e galega.
A eleição dessa alegoria fica clara quando revisitamos os principais textos de
autores nacionalistas como o texto dramatúrgico irlandês Cathleen ni Houlihan (1902)
de William Butler Yeats e o conto inspirado nele que surge décadas depois, A velliña
vella (1925), elaborado pelo galego Vicente Risco. Em ambos os textos Irlanda e Galícia
aparecem sob a forma feminina de uma mulher velha construída pelo processo de
feminização dessas duas colônias por conta da sua origem céltica. Marjorie Howes
(1995) e Helena Miguélez-Carballeira (2014) demonstram em suas pesquisas como os
imperialistas Ernest Renan e Matthew Arnold, com a finalidade arruinarem esse
renascimento e as bases dos movimentos nacionalistas, outorgam à “raça” céltica uma
feminilidade artificial e misógina para menosprezá-la a ponto de conservar seus status
subalternos, dependentes de uma tutela “masculina” representada pelas metrópoles.
Esta resposta imperialista impacta a construção identitária dessas culturas
profundamente, forjando paulatinamente uma identificação dessas nações com o
gênero feminino. Na contemporaneidade esses tópicos sobreviveram, principalmente,
nas histórias infantis e juvenis como em Dona Galicia (1979) de Kristina Berg. Esta obra
é apenas um exemplo de como a literatura para crianças desempenha um papel fulcral
para as questões nacionais em países de língua minoritária, sobretudo para a
sobrevivência de tudo que a velha representa: o passado, as tradições, as raízes, a
mitologia, uma Galícia dignificada. Esses textos, trabalhados em perspectiva
comparada, ao lado das teorias de estudos culturais e dos estudos feministas, incitam
a discussão dos papeis de gêneros (PRESAS, 2018) e das identidades nacionais e
outorga à literatura infantil o papel de transmitir uma cultura em perigo de extinção cujo

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objetivo é a conservação e a garantia da sobrevivência da língua galega por meio do
uso e da sua transmissão aos mais novos. (PAZ, 1999).

A literatura infantil e juvenil em língua galega


A literatura galega, seja ela adulta ou infantil, gira em torno da questão da língua
assim como acontece em outras historiografias literárias de línguas minoritárias e
minorizadas. A história da língua galega é uma história social e impacta diretamente as
condições de produção, edição e recepção da literatura, principalmente a infantil e
juvenil. O contexto da história da língua é necessário, segundo Augustín Fernández Paz,
para que nos acerquemos e absorvemos o papel e a nuances deste gênero em língua
galega:

Porém a razão é muito simples: qualquer aproximação à literatura


galega (e mais infantil, como explicarei, tem que ter em conta,
inevitavelmente, as circunstâncias históricas nas que teve que se
desenvolver. E digo isto não só porque se entende melhor um texto
literário, em qualquer literatura, é necessário ter em conta o contexto
histórico no que se produziu. (PAZ, 1999, p.11) 168

A língua galega, após o seu auge de prestígio literário e social da Idade Média
com o Trovadorismo, viveu durante os séculos XVII e XVIII o Seculos Escuros,
denominação dos séculos nos quais a criação em galego foi basicamente nula e quando
se iniciou o processo de imposição e substituição do galego pelo castelhano. Neste
longo intervalo, esta língua, que um dia foi usada por reis como D. Dinis e Afonso X, foi
relegada à oralidade, à marginalidade e ao confinamento doméstico.
No século XIX após as primeiras demonstrações de interesse pela língua galega
por parte dos ilustrados como padre Sarmiento e padre Feijoo, inicia-se a etapa do
Rexurdimento — período de renascimento do idioma, da cultura e da identidade da
Galícia — o uso da língua passa a ser reivindicado e estimulado por figuras como a mãe
e fundadora da literatura galega moderna, Rosalía de Castro169, Eduardo Pondal170 e o
importante escritor popular Curros Enríquez. E a partir deste movimento literário que
demandas políticas em relação a Galícia começaram a encontrar a sua voz através de

168
Tradução nossa.
169
Rosalía de Castro é uma das maiores escritoras galegas, reverenciada tanto na literatura
galega quanto espanhola. Considerada a fundadora da literatura galega moderna, publicado
bardo cegem 17 de maior de 1863 o livro Cantares Gallegos inteiramente na língua galega dando
início à renascença literária galega após séculos de silenciamento de produção literária no
idioma. Ao lado do dos escritores Eduardo Pondal e Curros Enríquez, ela protagoniza a tríade
dos escritores mais importantes o movimento literário do século XIX chamado Rexurdimento.
170
Autor da letra do hino galego, representante máximo do celtismo e da matéria de Bretanha na
literatura galega.
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um ato bastante desconcertante para a época: escrever em língua galega. A língua foi
a principalmente reivindicação no nacionalismo galego tornando-se o fio condutor e o
alicerce de toda luta e agenda política no século seguinte.
Contudo, o século XX experenciou um período de 36 anos, entre o estouro da
Guerra Civil seguido pela longa ditadura Franquista, o status do galego se viu
novamente ameaçado por uma nova imposição de silenciamento e marginalização e
ainda mais distante de alguma normalidade e estabilidade até a proclamação do
Estatuto de Autonomia (1981) e a instituição das Políticas de Normalização Linguística
(1983) que outorgavam ao galego o status de língua cooficial do território da Galícia e
previa sua introdução no ensino e sua difusão na sociedade e na cultura. Escrever, ler
e estudar galego é uma conquista na qual a literatura infantil e juvenil desempenha um
papel central.
A literatura em galego, até as primeiras décadas do século XX, contou com
esparsas obras destinadas às crianças e as que vieram à luz dependiam de histórias de
adultos e logo eram redirecionadas ao novo público. A verdadeira história da literatura
infantil começa na década de 60 e pode ser dividida, segundo Paz (1999), em três
grandes períodos: de 1960-1978, 1978- 1988 e, por fim, entre 1988 e 1998.
É no primeiro bloco temporal época no qual os pilares da construção de uma
literatura para crianças começam a ser erguidos. Nesta época, os livros infantis e juvenis
sofriam uma clara desvantagem em termos recursos, traduções, edições e até mesmo
na recepção uma vez que a sociedade galega apresentava altos índices de
analfabetismo e também viviam um fenômeno de interrupção de transmissão linguística
intergeracional causada por anos de apagamento do galego e o acúmulo de prejuízos
quanto à língua e às situações de uso. Por séculos reverberaram a associação do
galego à fala informal, de pessoas não escolarizadas e incultas, enquanto o castelhano
era a língua da cultura, pensamento que dificultava o florescimento deste gênero
desprestigiado, assim como a sua língua.
Na década de 60, por conta do incentivo econômico e cultural, surge a edição
Castro, projeto de Isaac Díaz Pardo e Luis Seone associado a importante editora
Galaxia, inaugurando-a com a publicação de Memorias dun neno labrego (1963) de
Xosé Neira Vilas. Em 1968 a Asociación O Facho institui um concurso de contos e teatro,
incentivando e motivando a criação de histórias para este público. No mesmo ano a
tímida empresa Cartonaxes Anmi publica Os soños na gaiola de Manuel María. Além
das publicações, as colaborações com a editora catalã La galera somou-se aos esforços
de consolidação deste gênero literário, assim como o protagonismo do escritor Carlos

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Casares no âmbito da tradução de histórias para crianças a partir de 1972. Esses
primeiros passos tornaram o terreno fértil, também, para a publicação mensal da revista
infantil Vagalume (1975).
O impulso que conduz as mudanças e os cenários dos dez anos entre 1978 e
1988 na literatura em galego para crianças se deve, em boa parte, ao Decreto de
Bilinguismo (1979) e a presença do galego nas escolas. Esse decreto criou uma
necessidade de livros infantis para suprimir a nova demanda no ensino em galego e de
galego nas instituições educativas:

Ao final do período, devido às novas normas legislativas e à


oficialização e introdução regrada do galego nos ensinos primários e
secundário com o real Decreto 1979, a necessidade de materiais
didáticos aumentou consideravelmente, como se constata nos livros
de texto que começaram a publicar a maioria das editoriais, nos
métodos de leitura e escrita e nos livros formativos, nos que se
inseriram fragmentos de obras literárias, exercícios dramáticos e
pequenas peças para representar que foram o germe de muitas obras
literárias que se publicaram posteriormente. Tudo isto traduziu-se num
aumento das produções literárias para os mais novos, que ajudou a
iniciar unha adequada educação literária, imprescindível para que o
novo sistema educativo instaurado desse os frutos necessários e se
concretizasse a formação da Literatura Infantil e Juvenil. (ROIG, 2015,
p.76)171

Não resulta estranho que neste apartado de tempo a literatura infantil se


desenvolva com mais rapidez através da criação das Edicións Xerais ligadas ao grupo
Anaya172, do estabelecimento na Galícia de uma das sedes da editora catalã Sotelo
Blanco ou mesma a publicação de Contos para nenos (1979) pelo Editorial Galaxia. É
precisamente nos anos 80 em que os autores galegos começaram a serem absorvidos
pelas coleções infantis e que simultaneamente tenha sido incentivada e levada a cabo
a tradução de obras infantis universais para o galego. A tradução abriu espaço para a
colaboração de edições entre diferentes editoras e o galego começou a ser alvo de
interesse de editoras estrangeiras. São abundantes os editoriais e editoras que
começaram a se especializar para atender a este novo público e como irrompem
prêmios e concursos para atender aos novos autores como Barco de Vapor, Raíña Lupa
e Rañolas. É neste momento que apareceram os conhecidos editoriais e coleções como
Via Lactéa (1985), Tartaruga da editora Galaxia (1987), coleção Árbore (88) e a coleção
Merlín das Edicións Xerais. Foi neste promissor cenário no qual foi publicado o premiado

171
Tradução nossa.
172
Grupo editorial espanhol que surge na década de 50.
875

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livro de Paco Martín, As cousas de Ramón Lamote (1985), um livro salientado pela
originalidade e seu papel de destaque na tradição literária.
Na última etapa proposta pela divisão temporal de Paz percebemos a
consolidação da literatura infantil e juvenil no ramo editorial, tanto em número de edições
quanto de vendas, além de contar com maiores recursos para ilustrações e formatos
para tornarem a indústria do livro mais atrativa. Cumpre destacar a proliferação de
coleções galegas na área como Infantil e Xuvenil, Doce por vintedous de Sotelo Blanco,
Fóra de Xogo das Edicións Xerais e Costa Oeste de Galaxia e corroborar o papel
pioneiro e importante de coleções como Xabarín e Gaivota. A evolução dessas três
épocas culminou na importância da literatura infantil e juvenil como um tópico que incita
bastante atenção política, literária e artística pelo seu destaque tanto quantitativo e
quanto qualitativo como Blanca-Ana Roig Rechou disserta em seu texto A literatura
infantil e xuvenil galega no século XXI. Seis chaves para "entendela mellor" (2011). A
obra em análise, Dona Galicia, publicada em 1979, não conheceu as considerações que
Rechou direciona ao cenário do século seguinte, por isso esta nova etapa pouco será
explorada neste trabalho. Dona Galicia, obra de Kristina Berg, além de fazer parte do
ápice do panorama analisado por Paz (1999), exerceu um papel importante também na
transmissão da identidade e na imagem da Galícia, a protagonista do livro. A
configuração da personagem e da história da qual ela é porta-voz remonta o conflito de
gênero dentro do movimento nacional na Galícia e suas repercussões na cultura, uma
vez que o nacionalismo galego é impregnado pelo racismo, conservadorismo religioso
e misoginia.

A identidade e a literatura infantil e juvenil


A Galícia não conheceu a colonização como a Irlanda, porém Xosé Manuel
Beiras examina as dependências de estruturas econômicas e políticas que resvalam
numa própria dependência cultural em seu livro O atraso econômico da Galiza (1995).
De acordo com Beiras, a Galícia vive um colonialismo interno cujo âmago é o poder do
centralismo espanhol desempenhado por Castela.
É neste panorama complexo no qual o nacionalismo galego surge como um
reflexo do nacionalismo irlandês que ganha força na virada do século XX. Irlanda e
Galícia se enxergam como irmãs na luta pela sobrevivência contra as forças
imperialistas, uma aliança tecida desde o século XVII com as frequentes emigrações
irlandesas para a Espanha, e pela decadência e perigo iminente que sofriam ao terem

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suas línguas e culturas massacradas pelos centros de poder, Grã Bretanha e Espanha,
respectivamente.
A Galícia assegurava que as semelhanças com a Irlanda tinham uma gênese:
a raça celta da qual descendiam ambos os povos segundo o livro Leabhar Gabhála
Éireann, que almejava ser uma genealogia dos irlandeses desde as origens bíblicas e
míticas até os ciclos dos grandes reis. A própria abundante herança da Idade do Bronze
no território galego e a presença de castros173 e dolmens174 tornavam a construção
mítica do passado crível e verossímil. Os galegos aparecem em três capítulos deste
livro que foi ser usado para marcar uma diferença histórica, étnica e cultural com
Castela, além de respaldar a construção da sua identidade na força conquistadora e
belicosa da raça celta. Os celtas eram o passado glorioso, a cultura verdadeiramente
autóctone e redentora do presente decadente e passivo que a Galícia vivia no século
XX.
Entretanto, as obras de La Poésie des races celtiques (1854) de Ernest Renan
e Culture and Anarchy (1869) de Matthew Arnold lutaram contra a insurgência dessas
nações celtas atribuindo um “sexo” a elas. Os defensores do imperialismo conferem à
raça celta o gênero feminino e as características e estigmas como “intenso
sentimentalismo, exacerbada sexualidade, falta de equilíbrio”. Ao longo da história e da
construção do patriarcado, essas características faziam do homem um ser mais racional
e neste caso necessário para o governo destes países colonizados:

A feminilidade marcou a diferença do celta em relação ao saxão, mas


também a colocou em uma relação de complementaridade natural com
ele. Como homem e mulher, eles foram feitos um para o outro, e devem
aceitar os ditames da natureza e da história, combinando-se para
formar um todo mais perfeito. Tanto o celta quanto o saxão eram
radicalmente incompletos. O saxão possuía precisamente as
qualidades que o celta não tinha, e o celta, por sua vez, poderia suprir
as deficiências dos saxões que Arnold delineou em Culture and
Anarchy.. (HOWES, 1995, p. 20)175

Este processo de feminização com o intuito de enfraquecer o movimento


nacionalista e a base sob a qual foi construído gerou uma imagem e uma identidade
compartilhada entre Irlanda e Galícia. A partir do século XX são recorrentes as
denominações e as representação feminizadas da Irlanda através da personagem
Cathleen ni Houlihan ou Eirín, Mother Ireland, Dark Rosaleen e Shan Van Vocht. A

173
Os castros são construções de pedra redondas que serviam de morada para as tribos celtas.
174
Os dolmens são monumentos megalíticos tumulares associados à presença céltica.
175
Tradução nossa.
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Galícia se vê arrebata pelo mesmo recurso e é caracterizada pelo seu sentimentalismo,
pela inclinação poética, pela língua adocicada em oposição ao castelhano, língua rude
e viril (MIGUÉLEZ-CARBALLEIRA, 2014). Pululam imagens da Galícia como uma mãe
que não pode prover pelos seus filhos, ou uma espécie de donzela que precisa ser
salva.

Alguns autores têm sinalado o processo de feminização da imagem da


Galícia nestes anos, e é certo que se representa em toda a carteleria
da época como uma mulher, desde os anúncios de sabão até os
reclames da marinha. Mas isto era algo habitual na época como segue
a ser agora (isso sim, a mulher galega, como a Beccasine bretona, é
sempre labrega). Mais revelador é seguramente que essa feminização
de Galícia não foi só icônica. Em artigos da imprensa, livros de viagem
e conferências da época, Galícia parece adornada sempre com os
mesmos traços de doçura, passividade, docilidade e pureza.
Não era a maneira na que viam os escritores galegos, para os que a
sua terra padecia nesse momento um autêntico drama, o da emigração
e o empobrecimento geral. Para eles não era a Suíça, era Irlanda; não
era uma fada senão uma Cinderela. Mas esta imagem apenas
transcendia na literatura espanhola, que mesmo quando representava
a sua miséria o fazia só como licença poética. (MURADO, 2016, p. 45)
176

A pesquisadora basca Begoña Aretxaga demonstra em seu texto Xénero e


nacionalismo: a inherente instabilidade de dous conceptos (1996) a relevância da
feminização de culturas para a manutenção de papeis e controles coloniais. E os textos
Cathleen ni Houlihan (1902) de William Butler Yeats e A velliña Vella (1925) de Vicente
Risco reforçam essa teoria da feminização ao fazerem duas mulheres marcadas pela
velhice se tornarem alegorias de seus países durante sua experiência colonial e luta
nacional. Na peça de Yeats, a velha busca ajuda e ao conseguir, rejuvenesce. Seu final
é de redenção, libertação. Enquanto a velha do texto risquiano, incansavelmente, busca
ajuda de seus filhos sem êxito. No final, em aberto, a velha recorre a um dolmen, com
uma possível dupla leitura: como a protagonista não rejuvenesceu e não foi ajudada o
nacionalismo fracassou ou vai ser continuado, uma vez que a Galícia não logra uma
independência como aconteceu na Irlanda em 1921.
Se podemos insinuar uma clara inspiração do conto de Risco na peça teatral
irlandesa, a mesma alegação pode ser feita à obra de Kristina Berg, Dona Galicia
(1979). Neste texto a alegoria e feminização são explícitas no próprio título. E assim
como a obra de Risco, que foi reeditada na forma de histórias em quadrinhos em 2009

176
Tradução nossa.

878

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e ilustrada por Manuel Busto, essas duas obras infantis destacam a terra galega como
uma mulher, marcada pela velhice e pela pobreza.
Além da consolidação dessa imagem identitária, a história também se centra
na trajetória impulsionada pela busca por algum tipo de auxílio imaterial. Além do
envelhecimento característico da demografia galega por conta da ferida histórica
causada por séculos de emigração, a velha assume aqui parte da mitologia celta mas
desquitada de qualquer poder mágico, força ou empoderamento. A velhice é metáfora
da situação de exploração e submissão que as acomete na história e por representarem
o último estágio antes da morte, a ajuda consiste em serem ouvidas pelas gerações
mais novas. Álvaro Arizaga Castro (2006) disserta o lugar da velha faz no folclore galego
e sua associação aos monumentos megalíticos supostamente célticos no território
galego:

O mito da velha é como as lendas de bruxas e mouras: passam de


fadas a bruxas onde o sistema patriarcal e repressivo é mais forte,
como se pode apreciar com claridade no caso do folclore anglo saxão.
Nas próprias recolhidas decimônicas que conservamos que esconde
um pouco dessa misoginia, dessa ideologia masculina e clerical que
castiga a ideia feminina da Velha. Falta por elaborar, provavelmente,
uma releitura antropológica das lendas e das suas distinções a partir
de uma reflexão sobre o gênero e os preconceitos sociais. Á mitologia,
por sorte, não pode se submeter sem mais a uma desajeitada
racionalização científica. Entretanto, para recuperar a metáfora,
seguiremos pensando que a Velha da mitologia popular pode ser a
própria Galiza, quiçá aquela Dona Galicia de Kristina Berg. (CASTRO,
2006, p.183)

A Galicia de Kristina Berg é caracterizada como uma velha pobre e solitária que
rememora seu período de juventude e riqueza. A riqueza se esvaí numa partilha
igualitária para acabar com a situação de pobreza na sua terra e gerar condições de
trabalho, mas Dona Galicia tem sua casa usurpada pelo personagem don Felipe
Riquichado, seu antagonista masculino. É curioso o fato de que ele leve um tratamento
de respeito e o nome Felipe que parece fazer referência à longa monarquia espanhola
e por fim o sobrenome Riquichado, derivado do verbo em galego “requichar” [levantar].
A ganância deste homem gera a miséria de Dona Galicia que vive de esmola das
pessoas as quais um dia ela ajudou. O final, também elíptico como o de Risco, relata
que apesar da condição, a protagonista não se esvaí em tristeza ou desespero porque
se encontra segura de que um dia crianças virão para expulsar o don Felipe de sua
casa.
O remate revela como a literatura infantil e juvenil galega absorve discursos
nacionalistas e identitários e que este gênero requer das crianças muito mais do que

879

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sua leitura, mas um certo engajamento ao chamamento para uma espécie de luta que
não alcançou todas as conquistas esperadas no nacionalismo, e por isso se perpetua.
A literatura infantil e juvenil e a identidade galega estão intrinsicamente ligados tanto no
folclore quanto na história:

Por tudo falado, na narrativa juvenil galega se conta com um


interessante corpus de novelas que revelam a preocupação dos
criadores por incidir nos modelos identitários. Se observar, desde o
ponto de vista temporal, que nas primeiras novelas juvenis se optou
por um distanciamento consciente da realidade e a recriação de
mundos míticos, projetando na atemporalidade de um passado remoto
o ideal de futuro. (GONZÁLEZ, 2015, p.130)177

Dona Galicia (1979) é publicada num momento de impulso da literatura infantil e


juvenil galega e parece estar comprometida com as reivindicações que dizem respeito
à língua galega, ao gênero infantil e principalmente com o intento de redirecionar
discursos nacionalistas, identitários e de resistência cultural para aqueles que podem
garantir a expulsão metafórica da figura masculina e castelhana de don Felipe: as
crianças, a nova geração.

Considerações finais
A literatura infantil e juvenil cumpre um relevante papel em qualquer cultura. Ao
lado da família, da escola, os livros para as crianças formam a principal tríade de
mediadores de conhecimentos entre o mundo e a criança. Em línguas minoritárias e
minorizadas e em contextos culturais de opressão, o papel da literatura é inestimável. A
produção, edição e difusão da literatura infantil e juvenil galega é um dos tópicos de
atenção e investimentos por meio de Políticas de Normalização Linguística e
principalmente pelos educadores que ministram as suas aulas em galego. Tendo
tamanha importância é bastante instigante a presença de tópicos identitários como
assuntos de maior relevo neste gênero. Em casos como a reedição de A velliña Vella
(2009) e Dona Galicia (1979) fica evidente que as demandas nacionalistas naquela
época apostaram neste público por conta da sua percepção de que esta luta sempre
esteve nas mãos das crianças.
Nestas obras pode se observar como os assuntos centrais que permeiam a
cultura galega são trazidos à tona para que as crianças conheçam a história social da
língua, de onde vêm as suas tradições e como sua terra se construiu ao longo dos
séculos através de histórias ricas de metáforas, alegorias, simulacros da realidade

177
Tradução nossa.
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galega misturados com cenários de ficção e fantasia, disfarces da realidade. A literatura
infantil se torna, nestas obras, um instrumento pedagógico para instruir as crianças de
sua história, ou como Agustín Fernández Paz afirma, de suas raízes. Autores e autoras
como Kristina Berg atualizam as imagens, as figuras e os tópicos elaborados pelos
nacionalistas do começo do século XX e incitam o questionando dos papeis de gênero,
da construção das identidades e da longa luta pelo uso da língua natural da Galícia que
começa na mais tenra idade. Escrever e ler literatura infantil e juvenil em galego não é
somente um ato de permitir que as crianças tenham acesso às suas raízes, mas que
sejam elas as sementes que vão germinar o futuro desta língua e desta cultura se
ouvirem, com muita atenção, os ensinamentos da sua própria ancestralidade, a velha,
a Galícia.

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PRESAS, Montse Penas. Feminismo e literatura infantil e xuvenil en Galicia. Santiago


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“ISSO NÃO É ASSUNTO DE CRIANÇA”: DESMISTIFICANDO OS
TEMAS TABUS NA INFÂNCIA PELO CONTATO COM O
LITERÁRIO

Ana Luíza Silva Sanches (Universidade da Região de Joinville)


Berenice Rocha Zabbot Garcia (Universidade da Região de Joinville)
Fernanda Cristina Cunha (Universidade da Região de Joinville)
Isabela Giacomini (Universidade da Região de Joinville)

Eixo Temático: Temas polêmicos, interdições e censura na literatura infantil e juvenil

Considerações iniciais
A produção literária infantil tem, ao longo da história, explorado muito pouco
temáticas consideradas tabus, justamente porque a visão que se tinha e que permanece
em muitas situações acerca da criança é a de que ela não é capaz de assimilar e
compreender esses assuntos, ainda que eles façam parte de seu cotidiano. A literatura,
no entanto, precisa refletir aquilo que é contemporâneo, impondo-se, segundo Oliveira
(2008), com um caráter questionador, rompendo com relações de poder, de
preconceitos e com valores ultrapassados, respeitando as diferenças e, portanto,
abordando temáticas inerentes à vida humana e à compreensão da sociedade e do
mundo.
Nesse sentido, a presente pesquisa pretende investigar como os temas
relativos à morte, ao medo e ao abuso sexual, tradicionalmente interditados na literatura,
especialmente para crianças e jovens, vêm sendo abordados em produções literárias
contemporâneas, em um sentido de romper com essa proibição pelo olhar sensível
proporcionado por elas. Para isso, serão analisadas as obras “O coração e a garrafa”,
de Oliver Jeffers, “Se eu abrir esta porta agora”, de Alexandre Rampazo e “Leila”, de
Tino Freitas e Thais Beltrame, a partir da pesquisa bibliográfica e com base em Mendes
(2013), Goulart (2007) e Soma e Williams (2017).
Este artigo abordará também as questões sobre a interdição na infância, a
partir de Foucault (2000), Silva (2016) e Amarilha (2002), relacionando-a com a literatura
infantil. Será abordada ainda a análise das obras literárias mencionadas, com o objetivo
de mostrar como essas temáticas consideradas tabus são tratadas e, por fim, as

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considerações da pesquisa em relação à relevância do contato das crianças com essas
e outras obras, que revelam o olhar humano e necessário voltado ao infantil.

Os processos de interdição na infância


A abordagem de certas temáticas, tais como a morte, o medo, a sexualidade, o
preconceito, a violência, entre outras, tem sido historicamente velada ou temida em
muitas situações por estar vinculada ao que é popularmente conhecido por temas tabus.
Esses assuntos e muitos outros são tidos como proibidos em muitas ocasiões, pois
busca-se uma transparência e uma não-responsabilização do sujeito por parte de seu
discurso. Assim como afirma Foucault (2000), existem na sociedade alguns movimentos
de exclusão, sendo que entre eles está a interdição, em que:

Sabe-se que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de
tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar
de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito
privilegiado ou exclusividade do sujeito que fala: temos aí o jogo de três
tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam,
formando uma grade complexa que não cessa de se modificar
(FOUCAULT, 2000, p.9).

Nesse sentido, há assuntos que não são tratados por terem um status de tabu,
assim como lugares em que eles não podem ser veiculados e pessoas que não podem
estar envolvidas, principalmente no que se refere às crianças. Contudo, essas
interdições foram ora se transformando e ora se mantendo ao longo do tempo, fazendo
com que assuntos que eram discutidos em tempos passados já não sejam mais nos
tempos atuais e vice-versa.
Sob um olhar mais atencioso às crianças, percebe-se que os temas abordados
com elas e a própria visão que se tem sobre elas alterou muito na sociedade em alguns
âmbitos, mas permanece em outros com alguns resquícios. Em se tratando das
alterações, a mais significativa está na transformação da concepção de infância ao
longo da história, que, de acordo com Silva (2016, p.13):

A criança, até os séculos XVIII e XIX, era vista e representada como um


adulto em miniatura, assim, não havia nenhuma preocupação com a
censura de alguns temas. Considerava-se criança, apenas os bebês
indefesos, os “filhotes”. Posteriormente, ao adquirir desembaraço físico a
criança passava a fazer parte do mundo adulto, nas brincadeiras e nos
trabalhos.

Desse modo, o contato da criança com temas hoje considerados como não
recomendáveis era ignorado, pois, assim como os adultos, tinha acesso aos mesmos
materiais de leitura e aos mesmos espaços de discussão:
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Vivendo em meio a adultos, a criança naturalmente compartilhava com a
realidade destes: a morte, a violência, o assassinato, a miséria e mesmo
o sexo faziam parte integrante da vivência infantil, não havia, como hoje
se pretende, esta pseudoproteção do mundo pueril (SILVA, 2016, p.13).

No entanto, ainda que pareça que a criança tinha maior liberdade e participação
nas conversas sobre assuntos diversos, inclusive os tidos como tabus na sociedade
atual, as condições às quais eram submetidas eram degradantes, tanto em condições
de saúde, de trabalho infantil, como da própria falta de percepção de suas necessidades
específicas. A inserção da criança nesses contextos não era na verdade uma
manifestação da importância que davam a ela e à sua voz nas discussões, mas apenas
porque era compreendida como um adulto em estatura menor.
A concepção de infância passou por um longo processo até que as crianças
fossem de fato reconhecidas como seres humanos com peculiaridades e necessidades
inerentes, diferenciadas daquelas dos adultos. Um primeiro marco na modificação da
percepção da criança foi a partir da Revolução Industrial, por volta da segunda metade
do século XVIII, período no qual elas eram vistas com interesse nos centros urbanos
para obtenção de lucro, sendo necessária a criação de escolas para ensinarem
princípios básicos e técnicos a elas. Segundo Amarilha (2002, p.128): “Se a vida em
comum com os adultos, antes da Revolução Industrial, tratava as crianças com descaso,
agora [...] viver a infância passa a ser um período dominado por modelos de preparação
para ser o futuro adulto”, mas ainda com uma visão bastante desumanizada.
A autora afirma ainda que a necessidade de educar as crianças trouxe a
expansão da escola e uma abertura para produtos culturais, “dentre eles, o livro e a
literatura passam a ter um relevante interesse” (AMARILHA, 2002, p.129), surgindo
então a literatura infantil, inicialmente marcada pelo caráter pedagógico e moralizante,
sem dar a devida significância à criança no processo de leitura e ao encantamento que
poderia ser proporcionado por ela. Somente após muito tempo e decorridas muitas
mudanças na sociedade que a Literatura Infantil se consolidou para além de sua faceta
educativa, trazendo possibilidades de fruição. “O mais importante nessa mudança de
perspectiva em relação à infância é o fato de que a criança passa a produzir
conhecimento e cultura, e não ser apenas consumidora do que os adultos pensam que
lhe seja adequado” (AMARILHA, 2002, p.134).
Voltando-se ainda à história da Literatura Infantil, cabe ressaltar que as
transformações mais significativas decorreram das contribuições e visões de Hans
Christian Andersen e de Monteiro Lobato na produção de histórias voltadas e esse
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público. A partir deles, surgiram muitos outros escritores que enxergavam as crianças
como seres únicos, com voz na sociedade, mas com especificidades que as
diferenciavam dos adultos.
Porém, mesmo que as mudanças na concepção de infância tenham sido muito
positivas, ainda restam algumas marcas na produção literária atual no que se refere à
pedagogização e à tentativa de privar as crianças de certas discussões, que são ainda
consideradas tabus, em uma forma de protecionismo exacerbado. Silva (2016, p.35)
discorre que:

Na modernidade, a sociedade priva a criança dos temas essenciais à


humanidade, por não achar que elas são capazes de compreendê-los.
Diversos estudiosos vão discutir o fato de que temas considerados tabus
devem ser apresentados à criança e esse processo se dá por meio da
literatura.

Por conta disso, há no mercado editorial contemporâneo muitas obras que


tentam ocultar alguns temas, como se as crianças não fossem capazes de entender ou
como se não pudessem falar sobre isso por serem muito jovens. Entretanto, é por meio
da literatura que a criança tem a possibilidade de se familiarizar com esses assuntos,
de maneira lúdica, compreendendo-os na sociedade e sabendo lidar com eles em um
plano concreto, pois, conforme Neitzel (2006, apud OFFIAL, 2012, p.14):

[...] quanto mais acesso aos livros, mais possibilidade tem um indivíduo
de compreender o mundo e o seu contexto, pois a leitura promove
“enxergamentos” que ampliam o conhecimento e o autoconhecimento.
Quando ouvimos que ler é dar asas à imaginação, é porque a leitura tira-
nos de uma realidade para que, longe dela, possamos compreendê-la e,
consequentemente, modificá-la.

Com isso, sendo a leitura literária potencializadora dessa experiência, o contato


com ela propicia um olhar mais humanizado à criança, que, por sua vez, pode refletir e
interferir em seu meio pela imaginação. Essa capacidade de intervir, no entanto, só é
estimulada a partir das leituras de mundo que a criança faz. Desse modo, a abordagem
de temas “tabus” dentro das obras destinadas ao público infantil é imprescindível, já que
falam de temáticas fundamentais à humanidade, tanto no sentido de compreendê-las
como de transformá-las a partir de um olhar crítico-reflexivo.

Metodologia
A presente pesquisa valeu-se de três etapas centrais: a seleção das obras
literárias infantis, a análise das obras sob o viés da abordagem dos temas tabu e o
levantamento de teóricos que fundamentassem essas discussões trazidas. Todas as
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fases da pesquisa ocorreram através de encontros de leitura e discussão entre as
pesquisadoras, que, conjuntamente, puderam desenvolver um olhar mais plural e
aguçado às obras infantis.
Esta pesquisa caracteriza-se ainda como bibliográfica, pois, de acordo com Lima
e Mioto (2007, web):

A pesquisa bibliográfica possibilita um amplo alcance de informações,


além de permitir a utilização de dados dispersos em inúmeras
publicações, auxiliando também na construção, ou na melhor definição
do quadro conceitual que envolve o objeto de estudo proposto.

Com isso, o uso da pesquisa bibliográfica tornou esse processo exitoso ao


permitir um grande acesso às fontes teóricas acerca das temáticas investigadas e ao
trazer maiores possibilidades de proposição de hipóteses e de interpretações que
podem ser revisitadas por demais pesquisas desenvolvidas na área.

Análise das obras literárias infantis


Buscando proporcionar experiências dialógicas e humanizadas com a literatura
infantil, considera-se importante expor a seguir obras que abordem temas considerados
“tabus” de maneira sensível, a fim de potencializar um olhar mais amplo para as
questões daquilo que é humano.

Um olhar sensível àquilo que é (ir)reversível


O livro “O coração e a garrafa”, de Oliver Jeffers, traz a temática da morte e do
enfrentamento do luto, valendo-se do diálogo entre a linguagem imagética e verbal, que
se combinam e tornam a obra mais sensível. Nele, uma menina muito inventiva, que se
deixava levar pela imaginação nos momentos em que seu avô lia para ela, um dia
encontra a cadeira da sala vazia, onde costumavam ficar juntos. Para se esquivar de
qualquer dor ou angústia diante desse acontecimento, a menina resolveu guardar seu
coração em uma garrafa e pendurá-la no pescoço, para protegê-lo de alguma forma:
“Ela deixou de ser cheia de curiosidades sobre o mundo e já não prestava mais muita
atenção em coisa nenhuma… a não ser em como tinha ficado pesada… e esquisita a
garrafa. Mas pelo menos seu coração estava a salvo'' (JEFFERS, 2012).
A garrafa é um grande símbolo na narrativa, pois metaforiza a relação da
criança com o luto, como se este lhe fosse um processo proibido ou que devesse ser
distanciado, principalmente pela interferência dos adultos, que tendem a não explicar a

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morte para as crianças, julgando que não possuem capacidade de compreender e
discernir esses sentimentos:

A sua principal preocupação consiste em apaziguar a dor da perda (ou


desviar o foco de curiosidade da criança) de forma a, na sua perspectiva
adulta, evitar perturbações de ordem psicológica, emocional e social no
ser em crescimento, adiando assim para uma fase posterior do seu
desenvolvimento emocional e cognitivo explicações mais realistas
(MENDES, 2013, p.1114).

Esse distanciamento com a temática da morte, que se inicia na infância,


perdura até a vida adulta, sendo retratado na obra pelo crescimento da menina, que,
mesmo mais velha, ainda não consegue lidar com suas emoções ou com a ideia da não-
existência de alguém amado. Essa possibilidade de entendimento e de resgate dos
sentimentos e das memórias se dá pela conexão que estabelece com uma criança, na
qual identifica que está passando pelos mesmos processos imaginativos pelos quais
vivenciava até serem interrompidos pela morte de seu avô, visto que ele, por sua vez,
impulsionava o contato da neta com esse universo por meio da leitura.
O diálogo com a criança permite que a menina-adulta reflita sobre a
necessidade de reativar seus sentimentos, compreendendo que a morte é um processo
irreversível em um plano concreto, mas que pode ser ressignificada pela permanência
das memórias, que são revividas com um outro olhar da personagem. Nesse sentido, a
obra é significativa à medida que possibilita uma nova percepção à criança ao encarar
a morte através de um olhar sensível proporcionado pelos aspectos poéticos do livro.

A dualidade das vozes no entrelaçar da narrativa


A obra “Se eu abrir esta porta agora”, de Alexandre Rampazo, conduz o leitor
através de duas facetas da mesma narrativa. De um lado está a perspectiva do menino,
que, por meio de fantasias e hipóteses, busca concretizar a imagem de um monstro. Do
outro, o monstro, valendo-se da sua própria voz, dentro do armário, procura
descaracterizar a simbologia assustadora que os monstros normalmente têm no
repertório infantil. Essa relação só é possível pela arquitetura do livro construído em
forma de sanfona, que permite que as portas sejam abertas, independentemente de
onde o leitor inicie, rompendo com a noção tradicional de linearidade.
Sobre a visão do menino, percebe-se que ele sempre cria hipóteses de como
o monstro pode ser ou agir, temendo as consequências de abrir a porta, inicialmente
pelo medo do próprio monstro, posteriormente pela suposição de que ele poderia tomar
seu lugar e posse de suas coisas e, por fim, de como seria o enfrentamento ao abri-la.
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Seu pré-julgamento ao monstro, no entanto, não parte de um processo apenas de si
mesmo, mas de uma reprodução discursiva veiculada na sociedade e pela própria
família sobre um imaginário de monstros serem amedrontadores. Estes são ainda
usados como pretexto para que as crianças se comportem ou não tenham determinadas
atitudes, pois são tidos como figuras punitivas, assim como Goulart (2007, p.211)
pontua: "Os medos que as crianças sentem – de bruxa, de extraterrestre, de dentista,
lobo ou dragão – são utilizados pelos adultos para delas obter uma infinidade de
comportamentos socialmente desejáveis”. Isso faz com que o menino, na narrativa,
tenha medo de agir diante da ideia do arrependimento.
Em contrapartida, o monstro subverte a visão pré-estabelecida que recebe, ao
tentar criar diálogo e aproximação com o menino: “Se eu abrir esta porta agora… A
gente pode brincar que eu sou ele e que ele sou eu, e ninguém vai notar” (RAMPAZO,
2018). Essa dualidade entre as vozes proporciona uma humanização do monstro e um
olhar mais sensível ao leitor, que passa a enxergar diferentes possibilidades de
enfrentar o medo, entendido como um processo inerente à infância.

Quando o silêncio é rompido pelo encontro da própria voz


O livro “Leila”, de Tino Freitas e Thais Beltrame, faz o uso de símbolos desde
a dobradura da capa, que focaliza uma ostra dentre um conjunto delas, sinalizando que
este é um recorte de apenas uma das histórias que se repete em muitos outros lugares
e com outras ostras. Esse símbolo ilustra e acompanha ainda o cenário da narrativa - o
fundo do mar; onde a baleia Leila sai para nadar e acaba encontrando seu vizinho polvo,
Barão. A partir desse encontro, a obra toma um rumo bastante doloroso para o leitor,
que capta os sentimentos de Leila ao passar por situações de violência sexual, para si.
O abuso, no entanto, inicia marcado por alguns sinais mais tímidos, como o
pronome de tratamento usado por Barão: “minha pequena”, ao se referir à Leila. Outro
sinal percebido é a sensação de desconforto transmitida pela baleia. Posteriormente, a
situação se agrava e o polvo chega a tocá-la, a mexer em sua roupa de banho, a cortar
seu cabelo simplesmente por não gostar daquela maneira, a despejar algo podre em
seus ouvidos e a pedir que aquilo ficasse apenas entre os dois.
O modo como o abuso do polvo vai afetando Leila também afeta o leitor,
causando repugnância e uma sensação de insegurança. A baleia desiste então de
nadar, é reprimida, está confusa e angustiada, por isso, vai até o fundo do mar, onde
permanece imobilizada e aterrorizada. Ainda ali, outros animais do fundo do mar
aparecem para resgatá-la, metaforizando a necessidade da união entre diferentes

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pessoas ou seres para auxiliar na superação desses acontecimentos, ainda que eles
deixem marcas na vítima. Leila, porém, não se viu livre do polvo para sempre, mas, ao
reencontrá-lo, lembrou-se de sua força, de seus amigos e se empoderou: “O meu nome
não é pequena!... Eu não queria aquele beijo, eu sei escolher a minha roupa, eu não
gosto da sua companhia, eu decido se quero cortar meus cabelos, ninguém pode me
tocar contra a minha vontade” (FREITAS; BELTRAME, 2019).
A obra traz de uma maneira bastante explícita o movimento de empoderamento
da baleia perante a violência sexual, mostrando a importância de se unir para combater
e denunciar esse crime. Contudo, apesar de tratar de um tema tabu de uma forma mais
aberta, não é menos sensível e simbólico. As ilustrações trazem uma maior
aproximação com os sentimentos de Leila - a modificação da ostra ao decorrer da
narrativa evidencia a possibilidade de encontrar a voz que vai sendo sufocada pelo
assédio, Leila mostra que a liberdade e o poder de escolha devem ser busca de todos
e a obra faz ainda o uso de animais do fundo do mar para retratar uma realidade
presente em muitos contextos, como metáfora e alegoria para que os pequenos leitores
compreendam o abuso sexual de uma maneira mais sútil, mas não menos séria.
A obra permite que crianças e jovens enxerguem na literatura exemplos de
situações que podem estar acontecendo consigo ou que podem ser evitadas, assim
como Soma e Williams (2017, web) afirmam:

As crianças gostam de histórias e narrativas que as levem a ter contato


com diversos enredos e personagens. Dessa forma, os livros são um
importante veículo para o seu desenvolvimento emocional, visto que
trazem enredos que são facilitadores para entrar em contato com seus
próprios sentimentos e vivenciá-los de forma mais clara.

Portanto, Leila se mostra como muito necessária, à medida que trata de uma
temática tão importante, mas amplamente velada, e que pode auxiliar crianças e jovens
na compreensão e possível superação de seus próprios dilemas ou daqueles que os
cercam, valendo-se de um tom não menos poético e artístico.

Considerações Finais
As discussões levantadas através do presente artigo possibilitaram contemplar
reflexões acerca do alcance multifacetado que as obras literárias podem ter frente a
temáticas consideradas tabus quando trabalhadas na literatura infantil e juvenil. A morte
e o enfrentamento do luto, através de “O coração e a garrafa”, de Oliver Jeffers, o medo
em “Se eu abrir esta porta”, de Alexandre Rampazo, e o abuso sexual na obra “Leila”,

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de Tino Freitas e Thais Beltrame, contrariam a ideia conservadora de que tais temas
colocariam a criança em um estado de vulnerabilidade diante da ideia de que ela não
seria capaz de direcionar um olhar crítico a essa forma de arte e de abordagem.
Assim, compreender a importância do contato com obras como as analisadas,
não com um viés pedagogizante, mas sim como forma de potencializar o processo de
autodescoberta e descoberta do meio, proporcionando novos “enxergamentos”,
possibilita ao leitor um olhar sensível à arte, seja ele mediador ou receptor dessas
leituras. Para tanto, faz-se necessário o estudo das obras, de suas significações,
elementos e ilustrações, para que a ponte entre o livro e a criança seja realizada de
forma mais significativa e para que a experiência leitora seja enriquecedora, tanto
auxiliando-a a compreender temáticas mais densas, como a resolver seus próprios
dilemas.
Portanto, fica evidente a necessidade de olhar a criança e o jovem como
capazes de compreender e de discutir tais temas, desmistificando a máxima “isso não
é assunto de criança”, e assim, olhá-los como leitores legítimos de suas realidades.
Diante disso, proporcionar experiências dialógicas a partir da literatura infantil não se
configura como um regresso à uma compreensão de “adulto em miniatura”, mas sim
como uma possibilidade da criança e do jovem adquirirem um status de produtores de
conhecimento, não sendo apenas agentes passivos frente às suas realidades, fazendo-
os capazes de enfrentar assuntos e situações - não mais tabus nesse cenário - com
sensibilidade, discernimento e responsabilidade.

Referências
AMARILHA, Marly. Infância e literatura: traçando a história. Educação em Questão.
2000. Natal: EDUFRN, 2002. p. 126-137.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2000.

FREITAS, Tino. BELTRAME, Thais. Leila. Belo Horizonte: Abacatte, 2019.

GOULART, Maria Alice Hamilton. Literatura e Medo Infantil: A Produção da Criança nos
Catálogos de Livros Infantis. Contexto e Educação, Ijuí, v. 22, n. 78, p. 199-214. 2007.
Disponível em: <https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/contextoeducacao/a
rticle/viewFile/1072/834>. Acesso em: 04 dez. 2019.

JEFFERS, Oliver. O coração e a garrafa. São Paulo: Moderna, 2012.

LIMA, Telma Cristiane Sasso de; MIOTO, Regina Célia Tamaso. Procedimentos
metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica.
Katálysis, Florianópolis, vol.10, 2007. Disponível em:

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-49802007000300004>.
Acesso em: 03 jan. 2020.

MENDES, Teresa de Lurdes Frutuoso. A morte dos avós na literatura infantil: análise de
três álbuns ilustrados. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 38, n. 4, 2013. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-
62362013000400006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 04 dez. 2019.
OFFIAL, Patrícia Cesário Pereira. Formação de leitores do literário: uma experiência na
Escola da Ponte. 2012. 134 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do
Vale do Itajaí, Itajaí, 2012.

OLIVEIRA, Maria Alexandre de. A literatura para crianças e jovens no Brasil de ontem
e de hoje: caminhos de ensino. São Paulo: Paulinas, 2008.

RAMPAZO, Alexandre. Se eu abrir esta porta agora. São Paulo: SESI-SP, 2018.

SILVA, Cícero Marcos Santos da. O medo e a morte na literatura infantil e na obra inédita
de Frederico Garcia Lorca. 2016. 103 f. Dissertação (Mestrado em Letras) -
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016.

SOMA, Sheila Maria Prado; WILLIAMS, Lúcia Cavalcanti de Albuquerque. Avaliação de


livros infantis brasileiros sobre prevenção de abuso sexual baseada em critérios da
literatura. Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, v. 25, n. 3, 2017. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
389X2017000300014>. Acesso em: 03 jan. 2020.

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A TEMÁTICA DA MORTE NA LITERATURA INFANTIL: ANÁLISE
DE DUAS OBRAS

Gabrielly Doná, FCT/Unesp


Cleide de Araújo Campos, FCT/Unesp
Renata Junqueira de Souza, FCT/Unesp

Eixo Temático 7: Temas polêmicos, interdições e censura na literatura infantil e


juvenil

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Temas considerados tabus pela sociedade estão ganhando cada vez mais
espaço no universo da literatura infantil, principalmente a partir de 1970, devido a
crescente luta dos grupos antes subalternizados pela defesa de seus direitos
(KIRCHOF; BONIN; SILVEIRA, 2013). Dessa forma, houve o interesse de serem
abarcados em livros de literatura infantil, por se mostrar campo fértil para tais assuntos,
como: a violência, a agressividade, a feiura/beleza, o bullying, o racismo, a gordofobia,
a morte etc. Sobre este último, delicada e sensível para muitos, porém, há várias
abordagens diferentes desse assunto nas obras literárias.
Sabendo-se que a literatura infantil é marcada e adjetivada pela assimetria
adulto-criança, assim, parece que não existe uma possibilidade de neutralidade
completa sobre certa imagem de infância, “imagem que lança sombras ou luzes sobre
a produção cultural a ela endereçada” (SILVEIRA; KIRCHOF; KAERCHER; LIEBGOTT;
ZEN; SILVEIRA; RIPOLL; FREITAS, 2012, p. 17).
Nesse sentido, sobre a temática da morte nesse contexto, Vara (2016) aponta
que

[...] a literatura infantil pode considerar-se um instrumento adequado


para tratar o tema, apesar de que tradicionalmente as obras deste tipo
eles tendiam a disfarçá-lo ou mesmo silenciá-lo em um esforço para
superproteger a infância. Recentemente se tem levado a cabo
extensas investigações e se tem aportado diversos recursos e

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propostas metodológicas entre os que aparece a literatura infantil como
ferramenta fundamental (VARA, 2016, p. 3, tradução nossa).

Portanto, este artigo centra-se na análise de dois livros para crianças, para demonstrar
tais pressuposições de temas polêmicos na literatura infantil e com a intenção de
fornecer aos nossos leitores (geralmente professores em formação ou em serviço)
subsídios para o ensino. Nesse sentido, busca-se identificar e analisar o tema “morte”
tratado nas duas obras escolhidas: O pato, a morte e a tulipa, de Wolf Erlbruch (2007),
e Além do grande rio, de Armin Beuscher (2018), além de observar quais as abordagens
escolhidas pelos autores para alcançar um entendimento e uma sensibilização em
relação ao tema proposto.

A temática morte diante da literatura infantil


A temática morte, embora sempre retratada nos livros para crianças desde o
século XVIII, era e continua até os dias de hoje sendo apresentada e abordada de
modos muito diversos (KIRCHOF; SILVEIRA, 2018).
Na nossa civilização e “[...] na contemporaneidade, em que a morte foi exilada
para dentro dos hospitais, higienizada e afastada da vida – embora seja, desta, a única
certeza – a abordagem da temática “morte” na literatura infantil pode parecer estranha,
funérea ou extemporânea” (SILVEIRA, 2012, p. 1).
Por muito tempo esse tema se constituiu como um tabu pela sociedade para
ser trabalhada com as crianças, com o receio de ser muito difícil ou insuportável para
ser processada pelo público infantil. Porém, com o tempo essa visão mudou, como é
explicitado por Kirchof e Silveira:

[...] a morte se transformou em um tabu para o público infantil, por se


tratar de um tema supostamente difícil, com o qual se acreditava que
as crianças não estariam preparadas para lidar. Por outro lado, nos
últimos anos, ao menos no mercado editorial, tal concepção vem se
modificando radicalmente, pois a morte parece ter se transformado em
um tema não apenas aceitável, mas inclusive recomendável para ser
abordado em livros infantis (KIRCHOF; SILVEIRA, 2018, p. 60).

Além do mais, uma especificação sobre a morte que vem ganhando impulso
editorial com novos livros sobre esse assunto é em relação aos avós, porém, com uma
vertente mais próxima de querer oferecer alívio à criança. Desse modo, “[...] os livros
que abordam a morte de avós estão imbuídos da intenção de trazer algum tipo de
consolo para a criança que sofre com a perda (KIRCHOF; SILVEIRA, 2018, p. 61).

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É certo que muitas crianças têm vivido ou viverão alguma experiência referente
à morte, sendo de avós, animais ou vizinhos; visto que esse assunto se encontra em
todas as partes, sendo necessário um certo esforço para não abordá-la. Por isso que a
literatura infantil junto com vivências de triunfo, eficácia e êxito pode ajudar no
enfrentamento do sofrimento, do fracasso e da finitude (GIL; ERLE; GASENI, 2014).
Nessa vertente, “a literatura infantil [...] pode colaborar a salvar tal obscurantismo” (GIL;
ERLE; GASENI, 2014, p. 8).
Silveira (2012, p. 11) aponta que ao abordarmos esse tema, deve ser feito “sem
perder o caráter literário e enveredar pelo didatismo e aconselhamento direto
empobrecedores”. Assim, não é recomendável trabalhar tal tema com intenções
moralistas e apenas didática, descartando o literário e a essência da história. Esta
última, de certo, é interpretada de modo singular por cada criança.

Descrição analítica do livro O pato, a morte e a tulipa


O livro O pato, a morte e a tulipa, escrito e ilustrado por Wolf Erlbruch, conta a
história de um pato que se encontra com a morte, esta sempre carregava consigo uma
tulipa. O Pato a indagou sobre o porquê dela estar andando atrás dele, e ela disse: “-
Estou por perto desde que você nasceu, por via das dúvidas” (ERLBRUCH, 2007, n.p).
Eles tiveram várias conversas e passeios no lago, no qual o Pato tanto gostava. Porém,
em um dia frio, o Pato pediu para que a morte o abraçasse para o esquentar, mas logo
parou de respirar. Ela o carregou até o grande lago e colocou a tulipa em cima dele,
sumindo na água. A Morte quase ficou triste, mas lembrou que a vida era assim.

Figura 1: Capa do livro O pato, a morte e a tulipa


Fonte: Erlbruch, 2007.

Wolf Erlbruch, escritor e ilustrador alemão, não retrata a morte de um avô, como
é visto com mais frequência em obras de literatura infantil contemporâneas, mas sim do
personagem principal, representado por um pato. Além do mais, o livro desconstrói
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muitos estereótipos e tabus sobre a morte que se encontram presentes na mídia, sendo
capazes de se estabelecer no seu repertório, tanto cultural como cognitivo (KIRCHOF;
SILVEIRA, 2018).
O autor, ao colocar a palavra “morte” no título e ter como uma das personagens
principais a morte propriamente dita como uma caveira de túnica, quebra com o
eufemismo e a dissimulação presentes nos livros que abordam essa temática para
crianças, sem distanciar o leitor, mas sim dialogando uma “humanização” da
personagem morte (KIRCHOF; SILVEIRA, 2018).
Ao analisar as imagens, Kirchof e Silveira (2018) falam sobre o modo
humanizado e afetuoso que a morte é retratada, embora tenha a fisionomia
estereotipada da morte: um esqueleto. O autor desconstrói a associação dessa
personagem com medo e angústia, como é visto em suas vestimentas e seu jeito
gracioso. Além do mais, os dois abraços que ocorrem na história podem ser
considerados o clímax, por ser uma alegoria que sugestiona o afeto e o carinho entre
os dois personagens.
Para além desses detalhes, pode-se ressaltar os olhos fundos da morte, porém
serenos, e a maneira calma e tranquila em que ela se aproxima e dialoga com o pato,
como em um momento de conforto e preparo para o que estava esperando por ele.
Pode-se dizer que os dois personagens criaram vínculos afetivos de amizade; no
decorrer da história vê-se que eles se sentiam confortáveis com a presença do outro.
“Além disso, na versão de Erlbruch, ao invés da temível foice que geralmente
acompanha o esqueleto, a morte carrega uma tulipa, substituindo, dessa forma, um
objeto ameaçador por um signo que alude ao belo, ao encanto e à delicadeza”
(KIRCHOF; SILVEIRA, 2018, p. 65). Com isso, compreendemos que a obra não traz
remotas visões da morte, mas sim traz à tona uma figura doce e gentil que, se assim
podemos dizer, não passa medo nem insegurança à quem está lendo.
“O próprio desenho de ambos os protagonistas [o pato e a morte] é feito com
poucos traços e, por isso, seus sentidos conotativos são sugeridos mais pelos
movimentos realizados e pelas posições ocupadas por cada um deles nas manchas das
páginas do que por figuras ou adereços” (KIRCHOF; SILVEIRA, 2018, p. 65). Isso pode
ser corroborado ao olhar os espaços vazios com poucos cenários na página entre os
personagens da história.
Um fato interessante que percebemos é que em todo momento que a tulipa
aparece no livro ela é apresentada de posição contrária (oposta) ao pato, sempre que
ele está em pé a flor está de ponta cabeça e, quando ele estava deitado na água, a

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morte colocou a tulipa ao contrário do que o habitualmente conhecido, como é mostrado
na imagem a seguir. Quando buscamos o significado de tulipa negra não apareceu nada
relacionado à temática morte, mas sim à uma flor solitária que representa a elegância e
a sofisticação, como podemos inferir que a personagem morte seja na narrativa,
podendo ser interpretada como a própria tulipa acompanhando o pato.

Figura 2: O pato, a morte e a tulipa


Fonte: Erlbruch, 2007.

Em relação aos diálogos, Kirchof e Silveira (2018) apontam que o mais


surpreendente é que as fórmulas geralmente usadas para consolar crianças, e também
adultos, sobre a perda de pessoas queridas, não estão presentes no livro. Assim, em
nossa interpretação, o livro nos traz uma visão de naturalidade do assunto, sem que
haja alarde ou desespero.
A questão da leitura autônoma e da conexão texto-leitor proposta pelas
estratégias de leitura (GIROTTO; SOUZA, 2010; SOLÉ, 1998) instigando o indivíduo a
ter sua própria interpretação acerca da história podem ser percebidas no livro, visto que
“[...] a obra de Erlbruch se caracteriza como um contraponto, na medida em que não
fornece consolos e tampouco explicações religiosas, instigando o leitor a refletir e a
chegar a suas próprias conclusões” (KIRCHOF; SILVEIRA, 2018, p. 74).
Um fato bastante interessante é o apontamento de que “[...] simplesmente não
há respostas para a questão da morte, apenas perguntas” (KIRCHOF, SILVEIRA, 2018,
p. 66). Isso pode ser visto em alguns diálogos do livro:

- Alguns patos dizem que a gente vira anjo e fica sentado numa nuvem
olhando para a Terra lá embaixo.
- Pode ser - a morte sentou-se -, afinal asas vocês já têm.
[...]
- Alguns patos também dizem que debaixo da Terra existe um inferno
onde a gente é assado, se não tiver sido um pato bom.
- Vocês patos imaginam cada coisa, mas quem sabe?
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- Então você também não sabe! - grasnou o pato.
A morte apenas olhou para ele (ERLBRUCH, 2007, n.p).

Nesse sentido, pode-se ver que não é dada uma resposta concreta sobre o que
seria a morte e o lugar em que iríamos quando ela chegasse. Esse diálogo nos leva a
crer que cada leitor, embasado em suas crenças, pode preencher as lacunas e os
significados na conversa supracitada de acordo com suas próprias convicções sobre
vida e morte.

Descrição analítica do livro Além do grande rio


O livro Além do grande rio, escrita pelo Armin Beuscher e ilustrada por Cornelia
Haas, é uma obra que traz a questão da despedida, do luto, da busca pela coragem, do
consolo e da morte. É uma narrativa entre dois amigos (o coelho e o guaxinim) muito
intrigante num tom de despedida. A obra aborda uma leitura que que exige do leitor um
investimento cognitivo tanto na interpretação da linguagem escrita e visual para
entender a totalidade e as nuances da história.

Figura 2: Capa do livro Além do grande rio


Fonte: Beuscher, 2018.

A temática morte é tratada na obra de uma forma um pouco implícita em um


primeiro momento, onde os personagens falam de “despedida” utilizando recursos
poéticos e simbólicos de alta qualidade literária. No diálogo entre o guaxinim e o coelho
até chegar ao “grande rio” parece que o coelho vai fazer uma viagem, mas na verdade
está metaforizando a viagem com a passagem para a morte. No trecho: “tenho que fazer
uma longa viagem e não vou poder levar você comigo [...]” (BEUSCHER, 2018, p. 4) é
possível notar neste momento que o coelho em tom de despedida marca tal passagem.
Outro aspecto que vale ressaltar é que pode-se inferir que o coelho possa ter

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abandonado a própria vida, pois o amigo pede para ir junto, mas ele diz: - “Mas desta
vez tenho que seguir meu caminho sozinho. Se você quiser, pode me acompanhar até
a margem” (BEUSCHER, 2018, p. 7). Ao chegarem à margem do rio o coelho diz
novamente que tem que ir e que é para o amigo ficar. O coelho para, suspira forte e
chora dizendo – Eu tenho que ir. O momento da despedida é o mais forte de todo o
diálogo entre os amigos. A imagem da cena de despedida é a mesma da capa, onde
mostra os amigos num abraço silencioso, verdadeiro e de muita dor.
O abraço, o vazio e a despedida simbolizam a metáfora de uma jornada solitária
e sem retorno a um rio que é fundo e sem volta. A narrativa continua, e o guaxinim volta
ao encontro de seus outros amigos e conta o ocorrido com muita tristeza e também com
uma mistura de saudades e lembranças boas dos bons momentos em que viveram
juntos e, assim, termina a história com uma sensação de que é preciso vivenciar o luto
e retomar o ânimo de viver.

Figura 5: A lembrança
Fonte: Beuscher, 2018.

A obra do Beuscher (2018), trabalha a temática da morte de uma forma


humanizada, embora na leitura que fizemos, o coelho, pareça ter desistido da vida, o
que ficou foi o consolo, a lembrança e o respeito ao amigo. Na obra também pode ser
percebido a dualidade entre a vida e a morte. A morte, podemos relacionar à despedida,
à tristeza por “perder” o amigo; e a vida, por darem continuidade vivendo e trazendo à
memória os momentos felizes que passaram juntos. Nesse sentido, o autor soube “[...]
transmitir a humanidade da morte e a recordação dos seres queridos com imagens e
palavras” (MORÁN, 2004, p. 8, tradução nossa).
A narrativa se distancia do realismo e se introduz em um plano metafórico no
qual várias imagens tentam transformar o conceito de morte mais assimilável e

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compreensível. Para explicar o fenômeno, um dos desafios é a manifestação do seu
irreversível caráter, em que é retratado pela metáfora de ser uma solitária jornada sem
pretensão de retorno ao rio (VARA, 2016, tradução nossa). A respeito do rio, “este
espaço, notável por sua largura e profundidade, simboliza o abandono da vida, tantas
vezes literária em diferentes culturas e tradições” (VARA, 2016, p. 8, tradução nossa).
Na obra analisada, “se aprecia [...] uma adição estética no uso da linguagem,
corporificado em uma evocação de imagens de beleza artística como a peculiar menção
do mítico barco [...]” (VARA, 2016, p. 8); uma vez que fica implícito o seu significado por
poder levar a pessoa para longe, bem como pode resgatá-la em uma situação de sufoco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com as discussões foi possível identificar a morte de maneiras distintas, visto
que, em O pato, a morte e a tulipa, há uma abordagem de maneira mais aberta e
explícita, pois ocorre uma reflexão entre os personagens sobre as dúvidas que o Pato
tinha em relação ao tema. Já em Além do grande rio, a morte se encontra nas
entrelinhas, em um diálogo entre dois amigos, podendo tratar implicitamente,
dependendo da interpretação que se tem, sobre a questão do abandono à vida.
Não é uma tarefa fácil apresentar temas complexos às crianças na primeira
infância. Mas é importante ressaltar que a literatura ajuda introduzir de maneira artística,
temas polêmicos, sensíveis, delicados, no caso da morte que ainda é vista como tabu
em muitas culturas.
Além disso, por meio da análise da obra de Erlbruch (2007) e de Beuscher
(2018) pudemos constatar que ambas são uma boa escolha para ler com as crianças,
visto que são receptivos àquele que está lendo, sem passar insegurança ao leitor. Ainda
mais ao se considerar que este ainda é um tema complexo a ser trabalhado em sala de
aula considerando as singulares experiências que cada aluno tem com esse assunto.
Nesse viés, os temas polêmicos juntamente com a literatura infantil podem
fornecer reflexões aos leitores (geralmente professores em formação ou em serviço e
alunos), subsídios para o ensino e para apresentar e dialogar com os alunos temas que,
muitas vezes, não têm espaço em sala de aula por variadas questões, seja pelo receio
do mediador, seja pelo não conhecimento ou preparo para a abordagem dessas
temáticas. Nas descrições descritiva e analítica realizadas nas duas obras apresentadas
aqui constitui-se um exercício de leitura multimodal.
Nossa intenção é apontar mais uma maneira de interpretar as obras aqui
analisadas, visto que o significado da morte, em si, é bastante subjetivo e singular na

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interpretação de cada indivíduo. Dessa forma, de acordo com as vivências pessoais que
cada leitor tem, a ressignificação da obra acontece de maneiras diferentes, dependendo
do contexto de vida de cada um e não se esgotando nela mesma.
Sendo assim, mesmo que nosso objetivo não tenha sido apontar como trabalhar
esses livros em sala de aula com as crianças, a interpretação que trouxemos aqui é
apenas uma, não sendo a “mais correta” ou “absoluta”, mas, o professor pode se
embasar nessa possibilidade de diálogo sobre temas polêmicos nas obras aqui
analisadas.

REFERÊNCIAS
BEUSCHER, Armin; HAAS, Cornelia. Além do grande rio. Tradução de Hedi
Gnädinger. 2. ed. São Paulo: Gaudí Editorial, 2018.

ERLBRUCH, Wolf. O Pato, a morte e a tulipa. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

GIL, Javier Ignacio Arnal; ERLE, Xabier Etxaniz; GASENI, José Manuel López.
Estrategias para desmitificar la muerte a través del álbum y el libro ilustrado infantil.
Revistas Uvigo. 2014. Disponível em:
http://revistas.webs.uvigo.es/index.php/AILIJ/article/view/933/917. Acesso em: 25 maio
2020.

GIROTTO, Cyntia Graziella Guizelim Simões; SOUZA, Renata Junqueira de.


Estratégias de leitura: para ensinar alunos a compreender o que leem. In. SOUZA,
Renata Junqueira de. et. al. (Org.). Ler e compreender: estratégias de leitura.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010.

KIRCHOF, Edgar Roberto; BONIN, Iara Tatiana; SILVEIRA, Rosa Maria Hessel.
Apresentação literatura infantil e diferenças. Educação & Realidade, Porto Alegre,
v. 38, n.4, p. 1045-1052, out./dez. 2013. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/edu_realidade. Acesso em: 15 jan. 2020.

KIRCHOF, Edgar Roberto; SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. O pato, a morte e a tulipa –
Leitura e discussão de um livro ilustrado desafiador com alunos dos anos iniciais.
Educar em Revista, Curitiba, v. 34, n. 72, p. 57-76, nov./dez. 2018. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/er/v34n72/0104-4060-er-34-72-57.pdf. Acesso em: 08 abr.
2020.

MORÁN, José. Álbumes ilustrados: Don Quijote también los leería. In: LAZARILLO:
Revista de la Asociación de Amigos del Libro infantil y juvenil, ISSN 1576-9666,
Nº. 13, 2005, págs. 7-16. Disponível em:
https://pt.calameo.com/read/0005729969175b3666d7f. Acesso em: 10 set. 2020.

SILVEIRA. Rosa Maria Hessel. Velhice e morte na literatura para crianças:


apontamentos sobre o que e como se ensina a elas. Anais do IX ANPED Sul –
Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul. 2012. Disponível em:
http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/2977/
234. Acesso em: 08 set. 2020.

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SILVEIRA, Rosa Hessel; KIRCHOF, Edgar Roberto; KAERCHER, Gládis; LIEBGOTT,
Iara Tatiana Bonin; ZEN, Maria Isabel Habckost Dalla; SILVEIRA, Carolina Hessel
Silveira; RIPOLL, Daniela; FREITAS, Letícia Fonseca Richthofen de. A diferença na
literatura infantil: narrativas e leituras. 1 ed. São Paulo: Moderna, 2012.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6.ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

VARA, Alicia. El tradicional tópico de la muerte en el aula de Educación Infantil:


análisis de álbumes ilustrados. Álabe, nº14, julio - diciembre 2016. Disponível em:
http://revistaalabe.com/index/alabe/article/view/322/250. Acesso em: 25 maio 2020.

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ADOÇÃO EM FOCO: TENDÊNCIAS EMERGENTES NA
LITERATURA INFANTIL CONTEMPORÂNEA

Ana Claudia Freitas Pantoja


Universidade Estadual de Londrina, Universidade Estadual do Paraná

Eixo Temático: Temas polêmicos, interdições e censura na literatura infantil


e juvenil (7)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Até pouco mais da metade do século XX, esperava-se que livros para crianças
fossem moralistas, ingênuos, excessivos na puerilidade e imoderados no didatismo. Foi
somente a partir da turbulência explosiva dos anos de 1960 e 70 que a literatura infantil
pôde realmente variar seus temas angelicais e refletir os problemas e experiências
pungentes dos leitores do período, como afirma Colomer (2003, p. 257). E, mesmo com
toda irreverência e contestação arejadas pela contracultura, esse não foi um processo
de atualização rápido ou fácil. Boa parte dos adultos baby boomers (nascidos entre 1946
e 1964) considerava ousada demais a iniciativa de apresentar às crianças temas
polêmicos, preferindo o retorno às narrativas seguras, limitadas a uma zona de conforto
tradicional. Foi assim que conteúdos como a separação dos pais, a morte, o
envelhecimento e outras questões controversas tardaram a ganhar as prateleiras
infantis e permaneceram ainda por anos sob o esteio da esquivança.
No caso da adoção, somente na década de 1980 especialistas passam a
identificar títulos literários destinados a crianças e que abordam o abrigamento, a
institucionalização e a adoção (SCHREINER, 2001). O Portal da Adoção (acesso em 20
jan. 2020), uma das mais antigas e confiáveis referências online sobre o tema,
apresenta Neco Sol como o livro infantil mais antigo de seu acervo de sugestões, uma
obra de 1992, hoje esgotada. Nos principais Grupos de Apoio à Adoção, a situação não
é diferente. Todos esses são sinais de que, em se tratando de destinatários infantis,
escreve-se há bem pouco tempo sobre adoção no Brasil, muito possivelmente pelo
entendimento do tema como um tabu, sobretudo no âmbito familiar.
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O presente artigo inicia-se com uma breve abordagem sobre o silenciamento
social e, consequentemente, literário, em torno da adoção. Em seguida, retoma o
trabalho de pesquisa de Joice Melo Vieira (2006), que traçou um panorama da literatura
infantil sobre a adoção publicada nas duas últimas décadas do século XX. Por último, o
artigo elenca mudanças contextuais que promoveram o surgimento de novos títulos
entre as décadas de 2000 e 2010 e alcança seu problema investigativo propriamente
dito: a identificação de tendências emergentes na literatura infantil no que tange à
adoção.
Trata-se de uma pesquisa de caráter bibliográfico, com inegável viés
interdisciplinar, haja vista que o tema da adoção é indagado por teóricos da Psicologia,
da Sociologia, do Direito, das Letras, dentre outras áreas.

O TABU DA ADOÇÃO
Mesmo na intimidade das famílias adotivas, em que a filiação bioparental é
parcial ou integralmente substituída pela parentalidade afetiva, até muito recentemente
era comum que o tema da adoção permanecesse envolto em camadas de subterfúgios,
meias-verdades ou mutismo severo.
A partir da análise de prontuários clínicos da década de 1980, a psicanalista
Amina Maggi Piccini (1986) reuniu um conjunto de justificativas apresentadas por pais
adotivos para esconder a história de adoção de seus respectivos filhos: o receio de
traumatizar a criança com uma narrativa de abandono, o medo de perder o amor do
rebento, a ansiedade frente a uma possível “revolta” diante da revelação e a apreensão
de que, no futuro, o jovem deseje encontrar seus genitores. No caso da “adoção à
brasileira”, ou seja, do registro fraudulento da criança em cartório, soma-se a essas
motivações o temor da punição legal pelo ato.
Do ponto de vista social, os pais adotivos que optam pelo silenciamento da
história adotiva também se esquivam de julgamento de terceiros, que podem considerar
os laços consanguíneos mais relevantes que os vínculos de convivência, relegando a
adoção a uma condição de inferioridade, um tipo de relacionamento de “segunda
classe”, eternamente condenado ao rebaixamento frente à força genética dos formatos
familiares hegemônicos.
As consequências do sigilo em torno da adoção costumam ser graves: perda
significativa de contato social com pessoas queridas, que podem revelar a verdade ao
filho; captação de sinais de segredo ou mentiras por parte das crianças, o que mina a
relação de confiança com os pais; e a associação da adoção com uma conduta

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vergonhosa, reprovável ou indigna, o que se reflete em possível baixa autoestima de
crianças, adolescentes e adultos adotados (PICCINI, 1986, p. 118-119). Sem contar
crises de identidade decorrentes de uma descoberta tardia.
Todas essas sequelas potencialmente dolorosas, que geraram um alerta
vigoroso de psicólogos e foram retratadas pelos meios de comunicação de massa com
certa recorrência a partir dos anos de 1980, como no programa matutino TV Mulher, no
ar de 1980 a 86. A telenovela Baila Comigo, exibida em 1981, é outro exemplo. A trama
central envolvia uma rede de mentiras em torno da adoção e da separação de irmãos
biológicos, esmiuçando os sentimentos de traição e revolta dos jovens após a
descoberta da verdade. Dado o poder de penetração dos produtos teledramatúrgicos
na época, é razoável presumir que a novela e outros produtos do gênero tenham tornado
a adoção e a necessidade de sua transparência uma pauta contumaz nos jantares das
famílias brasileiras, abrindo algumas portas para a maior visibilidade do tema. Foi
exatamente neste período que a adoção começou a sair do ostracismo e ganhar as
primeiras páginas infantis no cenário literário no país.

ADOÇÃO E LITERATURA INFANTIL – ANOS 1980-1990


O início da transformação da adoção em tema recorrente na literatura infantil
brasileira foi acompanhado e analisado pelas pesquisadoras Gabriela Schreiner e Joice
Melo Vieira. A primeira publicou, em 2001, o Catálogo Bibliográfico 1000 sugestões de
leitura sobre Trabalho com Famílias, Abandono, Institucionalização e Adoção, que
quantificou boa parte da produção das décadas anteriores, revelando o crescente
interesse editorial e acadêmico pelo assunto. A segunda fez uso desse mesmo catálogo
para seleção de obras que estudaria a seguir, com o intuito de identificar os traços
comuns entre os títulos.
Quando Vieira (2006) se debruçou sobre as características dos livros infantis
voltados à temática da adoção e publicados nos anos 1980 e 90, ela destacou primeiro
o fato de muitas narrativas serem produzidas por pais adotivos, que utilizavam as
histórias como ferramentas para facilitar a “revelação” sobre a forma de ingresso das
crianças na família. Reflexos de um período em que os pais já tinham noção dos perigos
de segredos dessa natureza, mas em que a verdade ainda precisava de certa ajuda
para circular no ambiente doméstico. Os livros eram norteados pela brevidade,
simplicidade e, sobretudo, pela intencionalidade específica de facilitar o diálogo,
minimizando os aspectos de ruptura com a família biológica e reforçando os gestos de

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aceitação e construção do amor no novo núcleo parental (VIEIRA, 2006, p. 61-66). Eles
foram escritos para “o dia de contar a verdade”.
A segunda observação importante da investigadora é a insistência das narrativas
nos modelos heteronormativos de família, com exclusão de outras possibilidades de
parentesco. Pai e mãe – devidamente reunidos pelo casamento formal – eram as únicas
opções de vínculo apresentadas nas obras e o silenciamento em torno de famílias
homoafetivas, monoparentais ou constituídas por outras figuras próximas, como os
avós, era então a regra. Mesmo a vida do casal só era considerada “completa” se fosse
coroada com a existência de filhos, biológicos ou adotivos (VIEIRA, 2006, p. 67). Indícios
de um delineamento muito restrito do conceito de “realização” individual e familiar.
Joice Vieira (2006, 68) também chama a atenção para a ênfase na infertilidade
feminina nas obras em análise, apontada como o motivo deflagrador da adoção. A
infertilidade masculina é francamente ignorada nas narrativas e outras razões possíveis
para a adoção, além da interdição biológica, são integralmente descartadas. Por
exemplo, a chance de alguém conhecer uma criança maior e simplesmente interessar-
se por ela é inteiramente desconsiderada. Nesse sentido, a biologia impera na
discussão e têm-se a certeza de que, se os pais tivessem tido sucesso em uma
concepção por vias naturais, o filho adotivo jamais entraria na trajetória de ambos.
A idealização da criança e do entorno social também são marcas da literatura
infantil sobre a adoção nas décadas finais do século XX (VIEIRA, 2006, 74). O filho é
apresentado como um pequeno ser perfeito, não maculado pelas consequências da
institucionalização em abrigos, destituído de ressentimentos pelos pais biológicos, com
saúde perfeita, sem irmãos consanguíneos e quase sempre adotado ainda bebê.
Amigos e parentes do casal não são mencionados, o que dá a impressão de que o
mundo está apaziguado e não há dúvidas sobre o acerto da decisão dos pais em acolher
o neném. Nada é turbulento ou ambíguo nas relações descritas.
O apagamento de tensões durante e pós a adoção também é verificado na
inexistência de famílias inter-raciais nos livros de 1980 e 1990. Neles, as crianças
inevitavelmente compartilham a cor de quem as adota, a branca. Percebe-se assim que
“o critério da semelhança física para a identificação e reconhecimento mútuo de pais e
filhos, ou ainda, a necessidade de imitar a natureza, é uma fronteira difícil de ser
rompida” (VIEIRA, 2006, 76). Nessa tentativa de apagar as diferenças entre os novos
pais e sua prole, é lógico concluir que os genitores serão devidamente omitidos da
narrativa literária, jamais alçados a uma condição condizente com os termos “pai” e
“mãe”. Só quem cria tem espaço nas páginas do período.

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Porém, a lacuna mais grave relaciona-se à supressão de termos vinculados à
adoção em livros destinados exatamente a discutir o assunto. Substitui-se o emprego
de adjetivos de filiação não biológica por equivalentes eufêmicos, que pouco contribuem
para o avanço do debate:

esta omissão do termo dá margem para que se pense que a referência


à condição de adotado é considerada tabu. A substituição dos termos
“adotivo”, “adotado” e adoção” pode involuntariamente alimentar o
preconceito justamente porque parece haver um certo desconforto em
utilizá-los. A ênfase de que a criança adotada é um “anjo” ou é
“especial” pode ser interpretada como uma atitude compensatória que
visa combater implicitamente a ideia de inferioridade da filiação
adotiva, ainda presente no imaginário social (VIEIRA, 2006, 78).

Evidências discursivas de que, a despeito da boa vontade dos pais que se


lançaram à aventura das letras para facilitar a comunicação com os filhos, ainda existiam
zonas turvas no tratamento da adoção, obstáculos em aberto e hesitações claras no
enfrentamento dos possíveis dilemas familiares.

Figura 1: Capa do livro Mamãe: por que não nasci de sua barriga?, de Maria Salete
Domingos (1993), exemplo de obra produzida com o intuito específico de relevar ao filho
detalhes de sua adoção, de forma lúdica e da maneira menos traumática possível. O
título deixa evidente ao leitor quem é o destinatário primordial da obra e a ilustração
angélica da capa é condizente com a tendência de idealização do filho adotivo.
Fonte: Estante Virtual

O relevante trabalho de Joice Vieira elucida formas de abordagem importantes


sobre a literatura infantil dedicada ao tema da adoção em pelo menos duas décadas de
mercado editorial brasileiro. Porém, é importante destacar que, ao término deste recorte
temporal estabelecido, o cenário sofreu mudanças significativas e é preciso
compreender as novas demandas observadas na interseção entre literatura e adoção.

TENDÊNCIAS EMERGENTES NOS ANOS 2000-2010

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Acerca da adoção, do final dos anos de 1990 para cá, é factível apontar
progressos notórios no que diz respeito à transparência e à abertura de diálogo sobre o
tema, tanto na esfera familiar quanto social. Fatores como a criação de grupos de apoio
à adoção em todo o território nacional – hoje são 130 instituições legalizadas (ANGAAD,
acesso em 19 jan. 2020); alterações e reinterpretações legais que permitiram a adoção
por pessoas solteiras e casais homoafetivos; o crescimento da cobertura midiática; e o
ativismo de representantes da sociedade civil organizada fizeram com que a adoção,
paulatinamente, ganhasse visibilidade e novas leituras. Aliás, não apenas ela. Temas
anteriormente proscritos vieram à tona com renovado interesse, como o racismo,
homossexualidade, sexismo, etc. Na esteira das lutas das chamadas minorias, a adoção
entrou na pauta de reivindicações e debates, o que gerou a produção de discursos de
legitimação da filiação adotiva, de valorização dos vínculos de amor e convivência, além
do questionamento dos imperativos biológicos e consanguíneos.
Especificamente no universo literário infantil, a adoção e todo o conjunto
contestatório das minorias se materializou nas livrarias e bibliotecas não só pela força
dos movimentos civis, mas também graças a políticas públicas direcionadas, que
definiram, por exemplo, os parâmetros para seleção de obras contempladas em
programas governamentais178 dos anos 2000 em diante:

critérios que preconizam não só a qualidade das obras (em termos


conceituais, literários, estéticos, etc.) [...] mas também a inexistência
de representações preconceituosos e estereotipadas (sobre o que é
ser negro, índio, mulher, homossexual, gordo etc.), permitindo que haja
a promoção das (e o respeito às) diferenças étnicas, de gênero, de
sexualidade, de deficiência, corpóreas, etárias, etc. um dos
subprodutos e tais tendências e medidas – legais e educativas mais
gerais – tem sido a proliferação, em especial nos últimos quinze anos,
de obras de literatura infanto-juvenil deliberadamente produzidas para
suprir a demanda de abordagem de tais diferenças (RIPOLL;
SILVEIRA, 2016, p. 330).

As iniciativas públicas descritas não se restringem ao Brasil e avançam a passos


largos em outros países ocidentais, como destacam Daniela Ripoll e Rosa Maria Hessel
Silveira (2016, p. 330), fazendo com que o catálogo de títulos pró-diversidade se
amplifique e ofereça às crianças brasileiras cada vez mais opções, seja por meio de
obras de autores nacionais, seja por intermédio de traduções (SILVEIRA; KAERCHER,
2013, p. 1192).

178
Ripoll e Silveira (2016, p. 330) citam como exemplos o Programa Nacional do Livro Didático,
o Programa Nacional Biblioteca da Escola e o Programa Nacional Biblioteca da Escola.

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Embora a atual conjuntura político-partidária brasileira (era bolsonarista) indique
uma guinada conversadora rumo à negação dos direitos das minorias, também há muita
resistência por parte de instituições de ensino, do mercado editorial, dos movimentos
sociais, de educadores e de pais, que continuam investindo na literatura infantil como
um importante instrumento de inclusão social. De modo que o acesso a títulos
engajados pode ficar mais restrito nos próximos anos, sobretudo nas bibliotecas das
escolas públicas, mas não vai se extinguir por completo país afora.
Mas, afinal, que obras engajadas são essas? Que tipo de narrativa emerge e se
propaga no início do século XXI, tratando de infância e de família? Em particular, na
esfera da adoção, que rumos e inclinações podem ser identificadas e como elas
distinguem as novas obras da produção anterior?
A partir de livros como A família de Flora (2009), Flávia e o bolo de chocolate
(2015), Ganhei uma menina (2011), Golfinhos que adotaram um tubarão (2010), Igual a
eles (2016), Jamily - a holandesa negra (2014), Nascer é assim também (2014), O
Grande e Maravilhoso Livro das famílias (2011), O livro da família (2003), Somos um do
outro (2009), Qual família se parece com a sua? (2018) e de pelo menos outras 15 obras
que tratam do assunto, foram verificadas tendências importantes, que diferenciam o
tratamento da adoção em relação ao que se viu nas décadas de 1980 e 1990.
A começar pela autoria. Se pais adotivos tinham grande destaque na criação dos
livros, hoje eles dividem espaço com autores profissionais, que publicam sobre uma
ampla variedade de temas, muitas vezes sob encomenda das editoras. Esses escritores
apoiam a causa, porém não obrigatoriamente têm em suas biografias relatos pessoais
de adoção. Na verdade, a profissionalização autoral está diretamente relacionada a
outra tendência emergente, que não tem a adoção como foco exclusivo, mas sim a situa
na composição de um grande painel familiar contemporâneo, repleto de modelos
parentais e filiais diferenciados, em que a adoção seria apenas uma das muitas opções
possíveis.
Nesse sentido, os autores agora apresentam a família formada por pais e filhos
adotivos no mesmo patamar de importância e dividindo o cenário com núcleos familiares
biológicos, com casais sem filhos, com pessoas solteiras acompanhadas de seus bichos
de estimação, com casais homoafetivos que optam pela fertilização assistida, com avós
que criam os netos, com irmãos que vivem juntos e sem cônjuges... enfim, a adoção
está em meio a uma ampla variedade e formatos de parentesco, que extrapolam os
limites heteronormativos e propõem a substituição do conceito de família para o de
“famílias”, no plural, sem que haja um sentido hierárquico entre elas.

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A profissionalização da escrita também se relaciona a esse último aspecto,
porque só a experiência individual da adoção não garante necessariamente a
competência literária de conexão entre as múltiplas experiências familiares. Contar a
sua história é diferente de contar histórias, por isso, o domínio autobiográfico cede certo
espaço para o do escritor profissional, hábil em falar de si e do outro.
Nas novas produções literárias infantis, também é possível notar que a ideia de
“filho adotivo” dá lugar à de “família adotiva”. Não está em questão a retratação do
indivíduo, mas a do grupo, tanto é que boa parte dos livros não reconstitui a narrativa
de ingresso de um membro no núcleo afetivo, como visto nas obras das décadas
anteriores; as obras sequer falam do primeiro encontro com o filho, elas agora exibem
uma formação já constituída e consolidada da família adotiva, em que a criança não se
torna um participante, ela o é, assim como os demais também o são. O filho não é o
“diferente” que chega e a família inteira se assume em patamar de igualdade.
Há ainda que se mencionar o abandono da imposição de semelhança física nos
livros infantis mais recentes sobre adoção. Nas ilustrações, crianças negras, asiáticas
ou miscigenadas dão as mãos para pais de diferentes cores e feições – e tal fato não é
tratado como um problema a ser resolvido ao longo das páginas. Em boa parte das
obras, nem mesmo é possível distinguir famílias formadas por adoções inter-raciais de
núcleos biológicos inter-raciais, dado o mosaico multicolorido e multifacetado ali criado.
Também é perceptível a possibilidade de intercruzamento da adoção com outras
temáticas e questões. Por exemplo, nos livros, a criança pode ser um filho negro de um
casal branco e homoafetivo. Uma adoção tardia pode ocorrer numa família
monoparental. A adoção conjunta de um grupo de irmãos é passível de ser realizada
por um portador de necessidades especiais. Verifica-se, nesse caso, a abordagem
literária do conceito de multidimensionalidade, propagado com vigor por teóricas do
feminismo negro e que também cabe na discussão sobre adoção. A
multidimensionalidade propõe examinar a cartografia social de um indivíduo ou de um
grupo a partir de aspectos diversos de análise, não apenas sob uma ótica (RIBEIRO,
2017). Dessa forma, o gênero dialogaria com a ideia de raça, que se relaciona com a
classe social, que está ligada à geração a que a pessoa pertence, que se conecta com
o nível educacional formal e assim por diante. Todo ser humano deve ser compreendido
sob mais de uma perspectiva e a multidimensionalidade substitui um ponto de vista
unívoco pela pluralidade de experiências de ser. Vale destacar que, entre as teóricas do
feminismo negro, tal discussão normalmente está relacionada a camadas de
desigualdade social que convergem sobre um mesmo indivíduo, enquanto que, no

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
presente artigo, o conceito se relaciona à diversidade de modelos familiares
contemporâneos.
Há que se frisar ainda outra forte tendência atual na literatura infantil voltada à
temática da adoção, a produção de livros-mosaicos. Esses não constroem uma narrativa
linear convencional, com princípio, meio e fim, mas se apresentam como espécies de
“catálogos”, em que a criança é convidada a conhecer e comparar diferentes
composições parentais e filiais, muitas vezes até promovendo uma mistura própria de
personagens, para a formação de uma família similar à dela.
Essa é a proposta, por exemplo, do livro Qual família se parece com a sua?
(2018), de Felicity Brooks, com ilustrações de Mar Ferrero. Ao longo de 32 páginas, a
criança, com ou sem o auxílio de um adulto, é apresentada a vários núcleos afetivos
diversos e até mesmo à família acolhedora (aquela formada por membros temporários,
que visam a oferecer ao menor abrigo e proteção até que ele encontre pais adotivos).
Em princípio, nenhuma história em sentido convencional é desenvolvida, não há
introdução, conflito, clímax ou desfecho. Em lugar deles, um conjunto de opções
familiares é oferecido à criança como um cardápio ou catálogo, uma estratégia que,
embora possa soar pejorativa pela associação com as ideias de aquisição e comércio,
é bastante cuidadosa no design gráfico, não privilegiando um modelo familiar em
detrimento dos demais e afastando o sentido de negociação.

Figura 2: Livro Qual família se parece com a sua? (BROOKS, 2018, p. 4 e 5)


Fonte: Acervo pessoal da autora do artigo (2020)

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O livro aborda o conceito de família, as funções da parentalidade, os tipos de
composição possíveis, as mudanças a que a família está sujeita, a confecção de árvores
genealógicas, as várias formas de moradia, as diferenças de alimentação, as
possibilidades de celebração, as opções de lazer e os sentimentos vinculados à vida
familiar (inclusive os considerados “ruins”).
Pelo exemplo acima, verifica-se que o livro-mosaico permite à obra incorporar
em si as várias tendências contemporâneas anteriormente citadas: certo afastamento
da abordagem exclusivamente autobiográfica; a aposta na escrita e na ilustração
profissionais; a formação de um amplo painel familiar marcado pela diversidade; a
substituição da ideia de ‘filho adotivo” pelo de “família adotiva”; a não compulsoriedade
de semelhança física entre os familiares; e a multidimensionalidade dos indivíduos.
Há que destacar ainda a forte ênfase que o livro-mosaico precisa dar, em função
de sua própria natureza, à ilustração. Um recurso não obrigatório na literatura infantil,
porém de forte impacto junto ao público a que se destina e de extrema utilidade na
retratação da multidimensionalidade das famílias adotivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É um equívoco imaginar que tendências literárias emergentes suplantem ou
decretem a extinção sumária dos tipos de abordagem anteriores. O mais provável é que
formas diferenciadas de se tratar um mesmo tempo convivam de maneira
complementar, em uma saudável concorrência pelas atenções do público-alvo.
Narrativas de feições autobiográficas escritas por pais adotivos vão continuar sendo
lançadas, provavelmente até com maior frequência, dadas as facilidades de
autopublicação oportunizadas pelas novas tecnologias. Enquanto isso, o mercado
editorial deve investir ainda mais em obras que evidenciem os novos formatos familiares
contemporâneos, haja vista os índices de crescimento das uniões homoafetivas no
Brasil – um salto de 511% entre 2017 e 20018 (NEXOJORNAL, 13 dez. 2019) – fato
que impacta os números da adoção no país. Lado a lado, obras com características
diferentes ajudam a perceber como as abordagens sobre o tema evoluíram e agora
ultrapassam o mero aspecto de relevar ou não ao filho sua condição adotiva. Outras
nuances, desafios e possibilidades da adoção gradualmente ganham os holofotes
literários e ajudam pais e crianças a enveredarem pelos caminhos da descoberta mútua.
Ainda há muitas frentes a serem desbravadas, por exemplo, pouco se fala dos
pais biológicos que não podem ou não desejam exercer a parentalidade, também não
se discute suficientemente sobre a adoção tardia (filiação de crianças acima de três

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anos) e quase não há ainda no Brasil livros produzidos sob o ponto de vista dos filhos
adotivos. Também o enfrentamento do preconceito é abordado de maneira muito sutil,
incompatível com a realidade de discriminação descrito por adultos e crianças nos
grupos de apoio à adoção. Mas a literatura, como potência e força vital, deve ampliar
seu quinhão colaborativo na transformação dos contextos sociais, formando uma
geração mais apta a lidar com o passado de rupturas, com o presente de diversidade e
com o futuro de esperança.

REFERÊNCIAS
ANGAAD, Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção. Quem somos.
Disponível em: <https://www.angaad.org.br/portal>. Acesso em: 19 jan. 2020.

AUBREY, Annette. A família de Flora. Barueri: Editora Girassol, 2009.

BROOKS, Felicity. Qual família se parece com a sua? S.l.: Edições Usborne, 2018.

COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário. São Paulo: Editora Global, 2003.

DOMINGOS, Maria Salete. Mamãe: por que não nasci de sua barriga? Florianópolis:
IOESC/Fundação Vida, 1993.

LEITÃO, Miriam; BRASIL, Bruna Assis. Flávia e o bolo de chocolate. 3ª ed. São
Paulo: Rocco, 2015

MOURA, Cintia A. Golfinhos que adotaram um tubarão. Recife: Bagaço, 2010.

NEVES, Fabiana Nogueira. Nascer é assim também: um livro que explica a adoção
para crianças. Juiz de Fora: Editora Funalfa, 2014.

NEXO JORNAL, O aumento dos casamentos homoafetivos no Brasil. 13 dez.


2019. Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/grafico/2019/12/13/O-aumento-
dos-casamentos-homoafetivos-no-Brasil>. Acesso em: 27 jan. 2020.

PARR, Todd. O livro da família. São Paulo: Panda Books, 2003.


__________. Somos um do outro. São Paulo: Panda Books, 2009.

PICCINI, Amina Maggi. A criança que “não sabia” que era adotiva. Psicologia Teoria,
Pesquisa. Brasília, v. 2, n.2, p. 116-131, mai-ago. 1986.

REIS, Alyson Miguel Harrad. Jamily, a holandesa negra: a história de uma adoção
homoafetiva. Curitiba: Appris, 2014.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

RIPOLL, Daniela Ripoll; SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. A temática homossexual na


literatura infanto-juvenil atual. In: V CONGRESSO INTERNACIONAL EM ESTUDOS
CULTURAIS: GÉNERO, DIREITOS HUMANOS E ATIVISMOS. Anais... Aveiro, 7 e 9
set. 2016.
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ROS, Arquith; HOFFMAN, Mary. O Grande e Maravilhoso Livro das famílias. São
Paulo: SM Editora, 2011.

SCHREINER, Gabriela. Catálogo Bibliográfico 1000 sugestões de leitura sobre


trabalho com famílias, Abandono, Institucionalização e Adoção. São Paulo: Ática,
2001.

SCHIMEL, Lawrence. Igual a eles. São Paulo: Callis, 2016.

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel; KAERCHER, Gládis E. da Silva. Dois papais, duas
mamães: novas famílias na literatura infantil. Educação&Realidade, Porto Alegre, v.
38, p. 1191-1206, out./dez. 2013

YAMASHITA, Tereza; BRAS, Luiz. Ganhei uma menina. São Paulo: Scipione, 2011.

VIEIRA, Joice Melo. Era uma vez... Esta pode ser a sua história. Cadernos Pagu,
n.26, janeiro-junho de 2006, p. 59-85.

914

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TEMAS POLÊMICOS NA LITERATURA INFANTIL179

Gabrielly Doná, FCT/Unesp


Renata Junqueira de Souza, FCT/Unesp

Eixo Temático 7: Temas polêmicos, interdições e censura na literatura infantil e juvenil

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os temas polêmicos são aqueles que começaram a surgir como problemática
a ser discutida pela sociedade, especialmente nas obras de literatura infantil, a partir
dos anos de 1970, segundo Kirchof, Bonin e Silveira (2013). Tais como as lutas das
classes subalternizadas e das consideradas minorias da sociedade em busca de seus
direitos. Dessa forma, para nos aprofundarmos e elencarmos outras lutas importantes
desse tempo, que complementam o tema aqui proposto, pesquisamos mais a fundo
alguns acontecimentos sociais que ganharam força em meados de 1970.
Um marco desse período é em relação à luta do movimento negro: “[...] uma
das principais características do movimento negro contemporâneo no Brasil [...] se
constitui a partir dos anos 1970, em meio às lutas contra a ditadura civil-militar então
vigente” (PEREIRA; LIMA, 2019, p 3). Nesse sentido, a cultura africana, afro-brasileira
estão ganhando cada vez mais presença nas obras literárias.
Em relação aos campos interdisciplinares que abarcam estudos sobre gênero,
mulheres e violência contra as mulheres estão em crescimento no Brasil desde meados
dos anos 1970, dialogando com os discursos feministas (CAMPOS; SEVERI, 2019).
Assim sendo, livros que tratam sobre o empoderamento feminino e a igualdade de
gêneros também ganha impulso a partir, principalmente, da década de 70.
Podemos ver que a maioria dessas lutas se deram pela busca por direitos
reprimidos. A partir de 1970 houve um aumento de temas polêmicos presentes em livros
de literatura infantil. Podendo ressaltar vários outros assuntos que começaram a fazer
parte dos livros infantis, não mais com um fim moralizante, mas sim com o intuito de

179
Este estudo consiste em um recorte do Trabalho de Conclusão de Curso da autora Gabrielly
Doná, orientado pela professora Renata Junqueira de Souza.
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trazer discussões que estão presentes no dia a dia e que muitas vezes não chegam até
as crianças. Como exemplos estão as temáticas sobre gordofobia, bullying, violência,
morte, beleza/feiura etc.
Outro fato que também aconteceu na história da literatura infantil e juvenil foi a
censura,

[...] este controle tem sido, se cabe, mais chamativo. Com a promoção
e a censura das obras infantis se transmitem unicamente as ideias
afins ao poder e, deste modo, se busca a sobrevivência dos regimes
ditatoriais ou totalitários sobre a base de formar e doutrinar crianças e
jovens por meio de suas leituras (TORREMOCHA, 2016, p. 15,
tradução nossa180).

Davila e Souza (2013) discorrem acerca do veto aos livros infantis divulgados
pela mídia, e podem também acontecer em sala de aula, pois a escolha que o professor
faz sobre o livro baseia-se em suas crenças. Contudo, essa censura não ocorre apenas
no Brasil, mas em outros países como Espanha (1939-1976), Argentina (1976-1983),
Colômbia (século XX), Cuba (1960-1985), dentre outros (LUJÁN; ORTIZ, 2016).
Com a obra O retirante (1970), a literatura infantil começa a apontar problemas
da sociedade contemporânea brasileira. “A partir dessa obra, a tematização da pobreza,
da miséria, da injustiça, da marginalização, do autoritarismo e do preconceito torna-se
irreversível e progressivamente mais amarga” (LAJOLO, ZILBERMAN, 1987, p. 126).
Com essa e outras obras “a crítica mais radical da sociedade brasileira contemporânea,
tematizada principalmente através da miséria e do sofrimento infantil, vai desde então
se encorpando progressivamente” (LAJOLO, ZILBERMAN, 1987, p. 126).
Outro livro que alude à marginalização, à pobreza e ao sofrimento infantil é
Pivete de Henry Correia de Araújo,

[...] faz parte da Coleção do Pinto, lançada em 1975 pela editora


Comunicação: parece ter cabido a ela a consolidação [...] de uma
literatura infantil comprometida com a representação realista e às
vezes violenta da vida social brasileira. O resultado é um esforço
programado de abordar temas até então considerados tabus e
impróprios para menores (LAJOLO; ZILBERMAN, 1987, p.126).

Ademais, as autoras sinalizam várias obras que surgiram a partir desse período
que perpassam por temas como a poluição da natureza, a separação conjugal, o

180
“[...] este control ha sido, si cabe, más llamativo. Con la promoción y la censura de las obras
infantiles se transmiten únicamente las ideas afines al poder y, de este modo, se busca la
pervivencia de los regímenes dictatoriales o totalitarios sobre la base de formar y adoctrinar a
niños y jóvenes por medio de sus lecturas”.
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extermínio dos índios, o amadurecimento, a repressão social, o preconceito racial, a
marginalização dos velhos etc.
Ainda, Costa sinaliza para o aumento da publicação de obras também na
produção poética:

“A década de 1970 assistiu a um aumento significativo da produção


editorial para a infância, o boom da literatura infantil, tendência que se
expandiu até à poesia, com crescimento gradativo na década de 1980,
quando se destacaram diversos autores e obras [...]. Do final da
década de 70 em diante, a liberdade de criação poética eclodiu com
força total” (COSTA, 2010, p. 58-60).

Nesse sentido, propomos neste trabalho realizar um mapeamento de


pesquisas sobre temas polêmicos publicadas em duas bases de dados, sendo elas o
portal da Capes e o portal da Biblioteca Digital Brasileira de Dissertações e Teses
(BDTD). Teve-se como base uma revisão de literatura designada como “estado do
conhecimento”, que nos permite ter uma visão mais ampla acerca do que foi escrito e
publicado sobre essa temática, que será explorada mais adiante.

Metodologia: estado do conhecimento


Levando em consideração o intuito desse estudo em levantar o que é produzido
sobre temas polêmicos na literatura infantil nos dois portais acadêmicos, Capes e BDTD,
elegemos fazer uma pesquisa do tipo “estado do conhecimento” dos últimos 10 anos,
de 2009 a 2019. Segundo Ferreira, esse método

[...] permite realizar uma ordenação do progresso das pesquisas e de


temas emergentes e priorizados em cada período, bem como
desvendar suas características e foco, além de identificar as
contribuições e avanços encontrados pelas/os autoras/es e de divulgar
e conferir maior visibilidade as produções existentes” (MÜLLER, 2015,
p. 166).

Ainda, Müller (2015) afirma que é um método usado para dar abrangência às
pesquisas em várias áreas, além disso, deve ser utilizado com regularidade, devido a
importância do mapeamento dos campos de conhecimento e sua constante atualização.
Nas duas bases de dados utilizamos as palavra-chave “temas polêmicos” e
literatura, e o operador de Busca Booleana AND, limitamos a busca de 2009 a 2019. No
Portal da Capes selecionamos periódicos revisados por pares e escritos em língua
portuguesa. Porém, de 30 trabalhos, após lermos os resumos de cada um, apenas 2
deles realmente versavam sobre o campo de pesquisa aqui proposto. Já na BDTD
tivemos 12 resultados e selecionamos 5. Os demais focavam sobre temas polêmicos,

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mas que não tinham relação com a literatura; ou apenas sobre a leitura e escrita sem
estabelecer relação com os temas polêmicos no sentido em que aqui propusemos; ou,
ainda, sobre a literatura, mas como vertente de uma área específica do conhecimento.
Vale ressaltar que fizemos a busca nas duas bases de dados supracitadas com
o VPN Unesp ativado, assim, aumentando o campo de busca. Entretanto, alguns
documentos não foram possíveis de termos acesso no Portal Periódicos da Capes, pois
os mesmos não estavam disponíveis. Após o levantamento, organizamos os dados em
gráfico e quadros, que posteriormente foram analisados.

Resultados e discussão
Vários trabalhos apareceram em nossa busca porque tratam de temas
polêmicos, mas em suas devidas áreas, como meio ambiente, saúde etc., por isso não
os selecionamos. Alguns se aproximavam à nossa temática, por exemplo, um trabalho
versou sobre a evolução da representação familiar na televisão espanhola, porém, não
envolveu a literatura em si. Elaboramos dois gráficos categorizando em grupos de
assuntos os escritos que não correspondiam à nossa pesquisa em cada base de dados.

Gráfico 1: Trabalhos que não correspondem à nossa pesquisa – Portal de Periódicos


Capes

Política, Constituição e Legislação Saúde


Meio ambiente ou Questão agrária Feminismo
Literatura / Linguagem Sociedade e Estado
Outros

14%
7% 36%
7%

18% 7%
11%

Fonte: Elaborado pelas autoras, 2020

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Gráfico 2: Trabalhos que não correspondem à nossa pesquisa – BDTD

Dialogismo e literatura Economia


Esporte paraolímpico Desempenho ambiental e energia elétrica
Ciência e tecnologia Eutanásia
Língua

14% 15%

14% 15%

14% 14%
14%

Fonte: Elaborado pelas autoras, 2020.

Tabulamos os trabalhos que contribuem para a nossa pesquisa e os dispomos


a seguir para melhor visualização dos resultados:

Quadro 1: Portal da BDTD


Palavras-chave Trabalhos Autor(es) Ano
"Temas Encontros e desencontros na poesia: a Márcia Hávila 2010
polêmicos" AND trajetória de pai e filho em Duelo do Mocci da
literatura Batman contra a MTV, de Sérgio Silva Costa
Capparelli
"Temas Produção literária infantil e juvenil de Patrícia 2011
polêmicos" AND Walcyr Carrasco: uma análise da Elisabel
literatura construção narrativa e da representação Bento Tiuman
de grupos sociais (1979-2010)
"Temas A polêmica no espaço escolar em torno Liane Goia de 2015
polêmicos" AND do conto "Obscenidades para uma dona Araujo
literatura de casa", de Ignácio de Loyola Brandão Marson
"Temas Monteiro Lobato: Um homem célebre & Daniel Weller 2015
polêmicos" AND O engraçado arrependido - aspectos de
literatura comicidade em Cidades mortas
"Temas Conflitos pós-coloniais e resistência em Luciana Lupi 2015
polêmicos" AND O diário absolutamente verdadeiro de Alves
literatura
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um índio de meio expediente, de
Sherman Alexie
Fonte: elaborado pelas autoras, 2020.

Quadro 2: Portal de periódicos da Capes


Palavras-chave Trabalhos Autor(es) Ano
"Temas As vozes das margens na literatura de Eliane Santana 2012
polêmicos" AND recepção infantil e juvenil: reflexões Dias Debus
literatura sobre a produção de Georgina Martins

"Temas O uso de textos polêmicos em sala de Denise Davila; 2013


polêmicos" AND aula: formação e prática docente Renata
literatura Junqueira De
Souza

Fonte: elaborado pelas autoras, 2020.

Para uma melhor análise acerca do que foi publicado no período delimitado,
optamos por apresentar uma breve discussão sobre alguns trabalhos obtidos no
levantamento de dados. A dissertação intitulada Encontros e desencontros na poesia:
a trajetória de pai e filho em Duelo do Batman contra a MTV, de Sérgio Capparelli
(COSTA, 2010) conta com Introdução, Considerações finais e mais três capítulos, sendo
eles consecutivamente: Concepções de literatura, leitura literária e leitor; A poesia para
crianças e jovens; e, Uma leitura da poesia de Sérgio Capparelli. Essa dissertação tem
como objetivo “verificar em que medida a obra Duelo do Batman contra a MTV conduz
à reflexão de maneira a contribuir para a formação de leitores reflexivos e críticos”
(COSTA, 2010, p. 12). Inicialmente, na introdução, Costa (2010) discorre acerca da
poesia e da sua historicidade brasileira, perpassando por renomados poetas no Brasil
até chegar a Sérgio Capparelli (2004) com a obra Duelo do Batman contra a MTV. No
decorrer do trabalho ela destaca alguns escritos literários do autor com foco no público
infantil e juvenil e obras em versos.
De forma geral, a autora não tem como foco os temas polêmicos em sua
dissertação. Contudo, essa temática aparece na análise da obra de Capparelli, mesmo
que indiretamente, abrindo “[...] um vasto campo para questionamentos. Porém o faz de
maneira lúdica, com recursos estéticos que despertam o prazer e o imaginário do leitor,
permitindo-lhe refletir sobre a própria realidade a partir das experiências vividas pelas
personagens” (COSTA, 2010, p. 134).
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“O conjunto de obras narrativas do autor oferece um ponto de equilíbrio entre
a fantasia e a realidade. Nelas não há o predomínio do realismo nem um escapismo
exagerado” (COSTA, 2010, p. 69). Nesse sentido, há poemas que tratam sobre a
injustiça social, relação entre pais e filhos, a perda/falta da mãe, as contradições da vida,
a descoberta do jovem sobre si mesmo e seu lugar no mundo, a preocupação sobre a
aparência (beleza padronizada), a chegada da idade, a diferença entre as gerações, a
morte, o suicídio, a velhice etc.
Em suma, “de maneira poética e bem humorada são abordados assuntos
relevantes e polêmicos para a juventude, como o conflito entre as gerações, a
necessidade de autoconhecimento, a descoberta de novos caminhos na busca pela
identidade juvenil e o despertar de paixões intensas” (COSTA, 2010, p. 143).
O artigo As vozes das margens na literatura de recepção infantil e juvenil:
reflexões sobre a produção de Georgina Martins (DEBUS, 2012) traz a leitura de três
obras de Georgina Martins, sendo elas: Uma maré de desejos (MARTINS, 2005); No
olho da rua: historinhas quase tristes (MARTINS, 2004); e, O menino que não se
chamava João e a menina que não se chamava Maria (MARTINS, 1999). Debus (2012)
traz a questão da desigualdade social vivenciada pelas crianças das histórias em que
vivem à margem da sociedade, tal delineamento de análise se deu pelo espaço de
escrita.
Debus (2012) sinaliza para a pouca produção de títulos que abarcam as
desigualdades sociais envolvendo o trabalho infantil ou o abandono, mesmo após três
décadas de seu surgimento, em 1970.
A autora Georgina Martins é contextualizada, para após serem apresentados
as similitudes entre os temas das três obras:

O tema das desigualdades sociais, apresentando personagens


crianças que vivem à margem da sociedade, é uma das características
mais marcantes da produção literária de Georgina Martins. A autora
descreve uma infância que, estando à margem é marginalizada:
entram em cena, no enredo de suas narrativas, o trabalho infantil, a
ausência e abandono dos familiares, a crueza da vida nas ruas [...].
Nessas narrativas, a autora ficcionaliza uma realidade muito próxima
de uma grande parcela da população, uma realidade crua e desigual,
porém, de forma sensível, possibilita ao leitor refletir sobre as infâncias
que perambulam nas ruas das grandes e nem tão grande cidades
brasileiras (DEBUS, 2012, p. 974).

A seguir, Debus (2012) apresenta um resumo dos livros: O livro O menino que
não se chamava João e a menina que não e chamava Maria (MARTINS, 1999) é uma
história inspirada no conto clássico de João e Maria. Conta a trajetória de um menino,

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uma menina e um bebê, que fogem para buscar um lar longe de seu padrasto e os
antigos namorados de sua mãe; porém, o bebê fica doente e, sem a ajuda necessária,
vem a falecer nos braços dos irmãos. Os dois irmãos encontram um lugar e, fechando
os olhos, anseiam por aquele lugar ser bom; “o término em aberto da narrativa deixa
pistas para que o leitor preencha os vazios do texto” (DEBUS, 2012, p. 976).
No “livro No olho da rua: historinhas quase tristes (MARTINS, 2004), explicitam
o abandono da infância nas grandes cidades; o descompromisso da sociedade para
com essa infância que vagueia pelos semáforos, marquises, ruelas e ruas de nossas
cidades” (DEBUS, 2012, p. 978).
O livro Uma maré de desejos (MARTINS, 2005) conta a história de duas
crianças,

As famílias de ambos não são unicelulares, do pai de Sergiana nada


sabemos, sua mãe saiu e nunca mais voltou: teria morrido como muitas
outras mães? Aos cuidados de uma tia, a menina cumpre a tarefa de
recolher balas, balas de revólver para vender. Luciano vive com a mãe
e mais três irmãos, dois mais novos – os gêmeos vivem com uma
comadre -, sua mãe está doente, na cama. A narrativa revela uma
adultização precoce: o menino faz a comida, lava a roupa dos irmãos
(mesmo sem sabão) etc. (DEBUS, 2012, p. 979).

Para finalizar, a autora diz que “para que as narrativas que apresentam temas
polêmicos ganhem sua real dimensão, faz-se necessário que os adultos que medeiam
a leitura literária reconheçam a importância de valorizar a pluralidade de temáticas e
também levem em conta que a linguagem literária [...] pode levar o leitor a construir
horizontes mais amplos” (DEBUS, 2012, p. 981).
O artigo O Uso de Textos Polêmicos em Sala de Aula: formação e prática
docente (DAVILA; SOUZA, 2013) teve como objetivo “discutir, a partir do estado da arte,
como docentes responderam a cursos de formação continuada e utilizaram a literatura
infantil que aborda temas polêmicos” (DAVILA; SOUZA, 2013, p. 1209).
As autoras dialogam sobre o discurso dominante e a censura, ocorrendo
divulgação pela mídia ao veto à alguns livros infantis, contudo, nas salas de aula, os
professores escolhem os livros que serão trabalhados de acordo com suas convicções
e ideologias. Ainda, “a maneira como os docentes privilegiam, excluem, e/ou modificam
textos legitima a leitura literária” (DAVILA, SOUZA, 2013, p.1208).
Davila e Souza (2013) seguem a discussão sobre literatura infantil e temas
polêmicos, explicitando a relevância do aluno em ler textos diversos, bem como o
professor propor textos literários com o fito das crianças se tornarem leitores autônomos.

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Além de apontar para a formação docente crítica com reflexos para a mediação leitora
e a escolha de livros para a leitura com as crianças.
As autoras ressaltam sobre “como formadores de professores têm usado
práticas de letramento crítico para ajudar alunos e educadores a superar a censura e ler
a literatura infantil com olhos críticos” (DAVILA, SOUZA, 2013, p. 1212), com foco no
multiculturalismo; bem como apontam para a formação crítica do professor.
Ao propor uma atividade prática escolar, perpassam por indicações de vários
autores, como atividades orais e escritas; desenhos após a discussão; perguntas ao
texto, lembrando que “perguntas sobre os paratextos fornecem um ponto de partida para
os professores avaliarem criticamente os alunos e iniciarem a leitura do texto literário”
(DAVILA; SOUZA, 2013, p. 1214).
Em suma, Davila e Souza (2013) sinalizam que o trabalho sobre temas
polêmicos em textos literários deve possibilitar atividades que chamem a atenção desde
a capa, propondo diálogos abertos ou orientados por algumas questões chave. O
professor precisa se dispar de preconceitos e saber instigar o pensamento crítico dos
alunos, assim, pode ser disponibilizado textos informativos sobre temas polêmicos para
ampliar o seu repertório sobre o tema. As autoras associam as atividades supracitadas
e exemplificam-nas com o livro O Ônibus de Rosa, de Fabrizio Silei (2012). Dessa forma,
aproxima os alunos de textos multiculturais que estabelecem relação com questões
sobre diversidade e injustiças sociais.
Por fim, sobre os temas polêmicos, “a forma como este tipo de texto é
organizado exerce um efeito profundo no leitor em relação ao modo de se ver o mundo.
Ler também está relacionado a expectativas, experiências e conhecimentos prévios que
diferem entre os leitores” (DAVILA; SOUZA, 2013, p. 1217).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por mais que os temas polêmicos estejam em ascensão atualmente, as
pesquisas estão caminhando para uma evolução que abarque as diferenças e os
diferentes, bem como temas anteriormente considerados tabus pela sociedade.
Contudo, ressalta-se aqui a escassa produção, em língua portuguesa, levantada nas
duas bases de dados (CAPES e BDTD) com as palavras-chave escolhidas.
Os estudos abordam, de uma forma geral, temas que perpassam a morte/a
perda, até a questão da desigualdade social vivenciada por crianças em estado de
negligência. Além disso, também é evidenciado a questão da formação do docente,

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muito importante para poder proporcionar uma significativa mediação de textos com
essas temáticas em sala de aula.
Ressalta-se aqui que há vários sinônimos para temas polêmicos que são
possíveis para a busca em base de dados, como temas sensíveis, temas transversais,
temas complexos, temas difíceis, temas fraturantes etc. Pensando nisso, esse trabalho
não se finda aqui, é apenas um recorte do extenso levantamento bibliográfico sobre a
temática dos temas polêmicos e afins.

REFERÊNCIAS
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verdadeiro de um índio de meio expediente, de Sherman Alexie. Dissertação (Mestre
em Letras, área de concentração: Estudos Literários) - Universidade Estadual de
Maringá. Maringá, 2015. Disponível em:
http://repositorio.uem.br:8080/jspui/handle/1/4076. Acesso em: 15 set. 2020.

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crítica jurídica feminista: breve análise da produção acadêmica brasileira. Revista
Direito e Praxis, Rio de Janeiro, Vol. 10, N. 02, 2019, p. 962-990. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-
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CAPPARELLI, S. Duelo do Batman contra a MTV. Ilustrações Gilmar Fraga. Porto


Alegre: L&PM, 2004.

COSTA, Márcia Hávila Mocci da Silva. Encontros e desencontros na poesia: a trajetória


de pai e filho em Duelo do Batman contra a MTV, de Sérgio Capparelli. Dissertação
(Mestre em Letras) – Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2010. Disponível em:
http://repositorio.uem.br:8080/jspui/handle/1/4102. Acesso em: 26 ago. 2020.

DAVILA, Denise; SOUZA, Renata Junqueira de. O Uso de Textos Polêmicos em Sala
de Aula: formação e prática docente. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 38, n. 4,
p. 1207-1220, out./dez. 2013. Disponível em: http://www.ufrgs.br/edu_realidade. Acesso
em 27 ago. 2020.

DEBUS, Eliane. As vozes das margens na literatura de recepção infantil e juvenil:


reflexões sobre a produção de Georgina Martins. Perspectiva, Florianópolis, v. 30, n.
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https://doaj.org/article/a0dfb753d5a747369697869dd385b4c3. Acesso em: 26 ago.
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KIRCHOF, Edgar Roberto; BONIN, Iara Tatiana; SILVEIRA, Rosa Maria Hessel.
Apresentação literatura infantil e diferenças. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.
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Acesso em: 15 jan. 2020.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: histórias e


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LUJÁN, Ángel Luis; ORTIZ, César Sánchez (coords.). Literatura y poder: las censuras
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http://repositorio.unitau.br/jspui/bitstream/20.500.11874/797/1/Liane%20Goia%20de%2
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MÜLLER, Tânia Mara Pedroso. As pesquisas sobre o “estado do conhecimento” em


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TIUMAN, Patrícia Elisabel Bento. Produção literária infantil e juvenil de Walcyr Carrasco:
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Dissertação (Mestre em Letras, área de concentração: Estudos Literários) –
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https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UEM-10_74fbf1975bc504a88734a7335f050ed8.
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WELLER, Daniel. Monteiro Lobato: Um homem célebre & O engraçado arrependido -


aspectos de comicidade em Cidades mortas. Dissertação (Mestre em Letras) –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2015. Disponível em:
https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/URGS_0fb13501482e031d01a9ea903b81831b.
Acesso em: 21 ago. 2020.

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CASOS DE CENSURA NA LITERATURA INFANTIL NO
BRASIL181

Camila Souza Petrovitch, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas


Gerais estudante de graduação em Pedagogia
Mônica Correia Baptista, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas
Gerais, professora associada.

Eixo Temático: Temas polêmicos, interdições e censura na literatura infantil e juvenil.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Nos últimos anos, casos de censura a livros destinados a crianças vêm sendo
propagados por diferentes canais com justificativas que se apoiam em uma pretensa
necessidade de proteção dos pequenos. A censura, independentemente de ter como
autor o Estado, a Família, a Escola ou a Igreja, se mostra cada vez mais presente
combinada à tendência de controle das crianças. No entanto, é importante ressaltar que
essa não é uma prática recente. Atos de censura parecem ocorrer desde que os livros
existem como constatou Fernando Baez (2004), em seu livro História universal da
destruição dos livros: Das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Segundo este autor,
registram-se casos de destruição de livros há 5.300 anos. Por meio de levantamentos
dos casos históricos, Baez comprovou que a "mão violenta do homem" tinha como
grande motivação o desejo de aniquilar o pensamento livre.
No caso dos livros infantis, essa “destruição” está ligada ao sujeito consumidor,
a criança, antes do objeto livro propriamente dito. A autora Anne Scott Macleod, em seu
artigo Censorship and children’s literature182, afirma que o Estado e demais instituições,
baseando-se em uma concepção de que a criança é intelectualmente dependente,
passaram a disputar o controle da literatura infantil, descobrindo, assim, o alto potencial
de influência da literatura infantil na sociedade (MACLEOD, 1983). Baseando-se em
uma concepção que compreende a criança como um ser limitado, incompleto e incapaz,
justifica-se a censura como ato de proteção à inocência infantil. Ressaltam-se, assim,
nas crianças, aspectos como fragilidade, debilidade, pureza e incapacidade (PERES,

181
Esse trabalho é inspirado no projeto de monografia Casos de Censura na Literatura Infantil
no Brasil, de Camila Petrovitch, orientado pela professora doutora Mônica Correia Baptista.
182
Censura e literatura infantil. Tradução das autoras.
926

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1997), e não suas potencialidades de compreensão, interpretação, suas vivências,
interesses e desejos, menosprezando sua aptidão de ter contato com temas que a
sociedade, pela mão dos censores, julga como sendo tabus, e considera palavras e
imagens como sendo inadequadas para as crianças.
Também no Brasil, a trajetória da censura a livros remonta os primeiros anos
pós-colonização. Carneiro (2002) menciona, em seu trabalho, Livros proibidos, ideias
malditas, um índice de livros proibidos (Index Autorum e Librorum) publicado em 1559.
Esse documento revela que a censura na literatura marca uma tradicionalidade censora
brasileira, como afirma Alexandre Stephanou (2001, p. 19).
Com a ascensão da literatura infantil, não foi diferente. A necessidade de
controlar textos a que os pequenos têm acesso vem marcando a história do livro infantil.
Neste trabalho, pretende-se apresentar alguns casos de censura em livros de literatura
infantil no Brasil e classificá-los, segundo categorias construídas à luz de autores(as)
que trabalharam nessa classificação. Uma análise mais apurada dos dados encontra-
se em desenvolvimento, tendo em vista que a pesquisa ainda não foi concluída.
Antes de apresentarmos os casos encontrados até o momento, apresentaremos
uma breve análise da situação das pesquisas e das publicações sobre a temática,
ressaltando a escassez de trabalhos que abordam o tema da censura na literatura
infantil, como o levantamento parece ter evidenciado. Em seguida, apresentaremos
quais concepções de infância são predominantes nos dias de hoje e como elas
influenciam a produção literária, para então buscar compreender a censura dos livros
infantis e suas possíveis classificações. Após apresentar os dados, até então
encontrados nesta pesquisa, será feita uma breve análise dos resultados e algumas
considerações finais.

Os estudos sobre a censura na literatura infantil brasileira


Antes de apresentarmos os casos de censura catalogados por nossa pesquisa,
faz-se necessário conhecer como o tema da censura na literatura infantil brasileira vem
sendo abordado em trabalhos acadêmicos. Para isso, foram pesquisados, artigos, teses
e dissertações sobre a temática em questão, nos seguintes portais: Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT).
Aplicando-se os descritores literatura e literatura infantil, encontramos que, das
125.817 teses e dissertações sobre literatura encontradas no Portal Capes, apenas
1.207 tratavam da “literatura infantil”. Ao cruzar esse resultado com o termo “censura”,
restaram somente nove trabalhos.

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Ao realizar a busca no mesmo portal CAPES, em artigos e livros, empregando o
termo “literatura”, o número de trabalhos foi 196.156, mas somente 1.907 tratavam de
“literatura infantil”. Ao cruzar literatura infantil com o termo “censura”, novamente
observou-se uma redução significativa do número de publicações. Restaram 68
trabalhos. Desses, apenas seis eram sobre a temática no Brasil, os demais abordavam
a censura na literatura infantil em outros países.
Nos periódicos do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia –
IBICT foram encontradas 78.654 teses e dissertações sobre literatura. Dessas, 619
sobre literatura infantil, dentre as quais apenas oito abordavam a temática da censura,
e dessas, três estavam duplicadas, três já haviam sido encontradas no portal Capes e
as outras duas não se relacionavam ao tema.
Esses dados revelam como ainda são escassos os trabalhos sobre literatura
infantil e, ainda mais escassos, os trabalhos sobre a censura na literatura infantil no
Brasil. O total de nove teses ou dissertações e seis livros ou artigos encontrados nesse
levantamento indica que não há um número significativo de trabalhos acadêmicos que
discorram sobre casos de censura, no Brasil e revelou-se a escassez de estudos que
empreguem e analisem critérios usados para censurar os livros.
Em contraposição à quantidade reduzida de estudos, a circulação cada vez mais
rápida e intensa de informações, por meio das mídias e das tecnologias digitais de
comunicação e informação, vêm conferindo ao tema certa relevância, fazendo-o
alcançar maior evidência no cenário brasileiro. Acrescenta-se à maior circulação das
informações e de opiniões de leitores, a chegada da chamada “onda conservadora 183”,
descrita e analisada por estudiosos, tal como descreve Almeida (2019).
Os casos recentemente divulgados de censura à literatura infantil no Brasil
revelam que, em algumas situações, não se trata apenas de se permitir ou de se indicar
a leitura ou não de algum livro, mas de se exigir sua retirada das escolas, relembrando
os tempos de queima dos livros. Como afirma Brenman (2012), “Alguns homens têm a
ilusão de que, queimando livros, estarão apagando a história, o passado. O fogo aniquila
o físico, a ideia permanece no ar, levada pela fumaça da fogueira até o céu, para retornar
como chuva de pensamento” (p.75). No caso das crianças, o censor adulto determina o

183
Para este autor, pode-se caracterizar o movimento de setores conservadores, tal como o de
grupos evangélicos, ocorrido entre 2013 até as eleições de 2018, em quatro vetores principais:
econômico, moral, securitário e social. Seu estudo sobre o conservadorismo nos fatos sociais
traz à tona a polêmica sobre os efeitos dos textos literários na conformação do caráter e dos
comportamentos infantis.
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que deve ser ou não apresentado, baseando-se nas concepções que se têm desse
sujeito. No próximo tópico apresentaremos tais concepções.

A censura e sua relação com a concepção de criança

A análise da censura a obras destinadas à infância requer que analisemos as


concepções de infância e suas implicações para a percepção da relação das crianças
com o universo literário. Para Machado (2012),
O que chamamos de literatura infantil pressupõe uma noção de infância e a
compreensão de uma criança do tempo presente, ou seja, uma criança que vive a
plenitude da sua condição, sem que se coloque como contraponto dessa condição o
que ela virá a ser um dia no futuro. (MACHADO, 2012, p.20)
Nesta afirmação da autora, podemos distinguir duas compreensões importantes:
a noção de infância e a compreensão que se deve ter acerca da criança. A visão que
se tem das infâncias não é unânime. Anne Macleod (1983) descreve essas concepções
ao longo da história começando pela ideia das crianças como seres corrompidos pelo
pecado original, necessitados da fé e da catequese para a salvação. Em outros tempos,
a ideia de que eram seres inocentes implicava na necessidade de proteção. Houve
também a ideia de que as crianças poderiam ser boas ou ruins, mas que seu caráter
deveria ser construído antes da exposição ao mundo corrupto. Por fim, ainda havia a
visão de crianças como tábula rasa, formada apenas pela transmissão de
conhecimentos do adulto.
Hoje em dia, nas sociedades contemporâneas, observa-se certa dicotomia nas
visões de criança e de infância. De um lado, uma concepção, da qual se aproximam os
censores, estereotipada e padronizada da infância, que considera os pequenos como
seres incapazes, inocentes, ingênuos, irracionais e intelectualmente dependentes dos
adultos. De outro lado, a ideia, que parece sustentar a visão de alguns autores de livros
infantis censurados, que permite romper com uma infância “ideal e utópica” e superar
expectativas de conformidade e obediência que alguns adultos possuem acerca do
comportamento infantil. Souza (2016), ao discutir a relação das crianças com a
linguagem, contempla essa ruptura concluindo que

[...] a criança não é apenas uma etapa cronológica na evolução


da espécie humana a ser estudada – pela biologia ou pela
psicologia do desenvolvimento -, mas sim um ser que participa
da criação da cultura através do uso criativo da linguagem na
interação com seus pares, adultos e crianças, mas também com

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as coisas ou objetos que existem ao seu redor. (SOUZA, 2016,
p.16)

De acordo com essa concepção expressa por Souza (2016), a criança é vista
como alguém que interage com os objetos culturais e, a partir dessa interação, constrói
significados particulares, sendo influenciada e influenciando o processo de produção
das culturas humanas. Como afirma Ana Maria Clark Peres (1997), a criança vivencia
obstáculos, e se interessa por eles, rompe barreiras, limites, vive perdas e faltas, é um
ser desejante e singular, inventiva e apta a fazer escolhas, definir critérios e fazer
críticas.
É com essa concepção de criança e de infância que os livros infantis de
qualidade parecem querer dialogar. E como MacLeod (1983) indaga: se a vida das
crianças não é protegida, por que então mascarar a literatura infantil se ela é apenas
um retrato do cotidiano das pessoas?
Associada às concepções de infância e de criança, a gênese da literatura infantil
não só no Brasil, mas no mundo, influenciou e ainda hoje influencia, a produção literária
para crianças. Compreender as origens da literatura infantil nos ajuda a entender como,
até os dias atuais, permanecem as noções de proteção à inocência das crianças, ou de
formação do caráter nos moldes desejados por uma sociedade autoritária, injusta,
patriarcal e adultocêntrica.

Origens e finalidades da Literatura Infantil no Brasil

No Brasil, a literatura infantil surgiu entre os séculos XIX e XX. A implantação da


Imprensa Régia, em 1808, possibilitou as primeiras publicações de livros para crianças.
Entretanto, somente com o início da República, e as consequentes transformações
provocadas por ela, é que se pode dizer que a construção de um caráter literário infantil
tenha se iniciado em nosso país. (LAJOLO, ZILBERMAN, 2007). A partir da demanda
de materiais escolares para crianças, “começaram a produzir livros infantis que tinham
um endereço certo: o corpo discente das escolas igualmente reivindicadas como
necessárias à consolidação do projeto de um Brasil moderno” (p. 27). Ou seja, a
literatura infantil brasileira nasce comprometida com um viés escolarizado, com a
finalidade de formar o caráter do cidadão brasileiro moderno. Esse modelo escolar do
século XX exigia, em todas as manifestações artísticas da criança, exemplificação da
ética, da moral e dos bons costumes.
Hoje, pesquisadores afirmam que o único caráter formador de um livro de
literatura infantil deve ser o compromisso com a constituição de um leitor literário crítico,

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“que saiba escolher suas leituras, que aprecie construções e significações verbais de
cunho artístico, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres.” (PAULINO, 2004,
p.56). Nessa perspectiva, para uma educação literária é preciso abandonar a busca por
um teor instrucional e pedagógico nos livros para a infância e concebê-los como arte,
valorizando a metáfora e o simbólico como essenciais na produção literária.

A censura e suas possíveis classificações


Ao buscarmos construir categorias que nos ajudassem a compreender como
ocorreram os casos de censura encontrados por nossa investigação e suas implicações
para a literatura infantil, encontramos, no trabalho de Fromming (2014), importantes
referências. Em sua dissertação, o autor analisa seis casos de censura na tradução de
obras dos irmãos Grimm, do original em alemão para português. Apesar da
especificidade dos casos da pesquisa de Fromming, relacionados apenas à censura na
tradução, entendemos que as categorias de classificação definidas pelo autor podem
abranger também outras formas de censura.
Em sua classificação, o autor considera dois segmentos de censura: externa e
interna. A censura externa, ligada aos agentes censores, pode implicar em diferentes
tipos de censura: governamental, que há interferência do governo; editorial, editores e
revisores induzem à censura; organizacional, que diz respeito a organizações privadas
ou entidades; midiática, corte ou não veiculação de elementos; de investimento, que
consiste na rejeição de compra por adultos; escolar, do que entra ou sai da escola; e
por fim, de grupos, de pessoas do mesmo convívio.
A censura interna está relacionada à razão, ou aos fundamentos que levam à
censura. Esta pode ser: de caráter moral: religioso, dos bons costumes, de expressão
sexual; de repulsa: da morte, da violência e de asco; de ideias: ideologia, política, caráter
racial, de classe social, de gênero e de aura. Esta última representa uma característica
da personalidade do personagem.
Também o trabalho de Carneiro (2002) contribuiu para nossa construção de
categorias. Para a autora, as formas de censura se dividem em: censura preventiva,
refere-se às alterações exigidas antes de o livro ser publicado; punitiva, ocorre após a
publicação e pode ser interna ou externa ao livro, afetando seu conteúdo ou sua
circulação; autocensura, parte do próprio autor na elaboração do livro, pensando na sua
recepção pelos leitores; na tradução, muda aspectos da obra original na língua
traduzida; substitutiva, acontece quando uma obra sobrepõe a outra em determinadas
ocasiões.
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Durante as buscas, foram encontrados casos de tentativas, nos quais apesar de
haver um agente censor, a censura não alcançou o livro de forma direta, por isso não
se encaixava em nenhuma das categorias organizadas por Carneiro (2002). Para
classificar tais formas, apoiamo-nos em Luiz Costa Lima (2007) que distingue a censura
do controle. Para o autor, enquanto o controle é uma forma mais sutil de domesticação,
de ajuste às normas da sociedade e de negociação política, a censura impede, proíbe,
restringe e pressupõe uma legislação existente a ser aplicada para materializar a
proibição. Optaremos neste trabalho por nomear tais casos como forma denunciativa,
nos quais a censura não provocou consequências diretas ao livro, apenas indiretas.
Baseando-nos nas classificações de Fromming (2014), Carneiro (2002) e Lima
(2007), elaboramos a seguinte categorização para as práticas de censura encontradas
em nossa investigação.
Agentes censores – pessoas ou instituições que realizaram a prática de censura,
Tipo de instituição censora – classe da instituição responsável pela censura,
podendo ser: governamental, editorial, organizacional, midiático, de investimento,
escolar ou de grupos;
Caráter censor – natureza da censura, podendo ser de caráter moral (religioso,
bons costumes, expressão sexual); de repulsa (morte, violência ou asco); de ideias
(ideologia, política, caráter racial, de classe social, de gênero e de aura);
Forma de censura - como a censura se materializou ou que implicações a prática
de censura requereu, podendo ser: preventiva, punitiva, autocensura, substitutiva (na
tradução) ou ainda denunciativa.
Justificativa: que argumentos foram empregados para alegar o ato de censura.
A seguir apresentaremos os casos de censura até então encontrados pela
pesquisa, situados em um quadro de categorização para possibilitar melhor
visualização.

A censura na literatura infantil brasileira: uma discussão preliminar


Tendo em vista o objetivo de registrar e classificar os casos de censura na
literatura infantil no Brasil, iniciamos o levantamento de dados qualitativos a partir da
análise documental em jornais, revistas, livros, listas e outros documentos que
pudessem apresentar casos de censura. Também foram realizadas buscas em
plataformas digitais como a Hemeroteca Digital.
Para efetuar essas buscas, empregamos termos como “literatura imoral”, “má
literatura”. Também buscamos pelo nome de Monteiro Lobato, pois, a partir de
pesquisas e estudos previamente realizados, sabíamos que esse autor havia sido alvo
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de censura, em diferentes momentos históricos. Nesse levantamento, foram
encontrados, até o momento, vinte casos, sendo o mais antigo o de 1850.
No quadro 1, a seguir, relacionamos esses casos encontrados até o momento,
apresentando dados para referenciá-los: data da censura, título do livro/texto, nome dos
autores do livro/texto, bem como as categorias criadas para classificá-los e, por fim, em
qual meio físico ou digital encontramos a censura.

Quadro 1 - Casos de censura encontrados na pesquisa


Da Livro Autor Agent Instituiç Carát Forma Justifica Fonte
ta e ão er tiva
censora

18 Fábula Esopo Escola Escolar Moral Substitu Faz Artigo


50 s de s da , tiva doutrinaç
Esopo corte costu ão e
mes apresent
a lições
de moral

19 Contos Adelin Frei Organiza Moral Denunc Transtorn Livro


15 infantis a Pedro cional , iativa ao
Lopes Sinzig religio espírito
Vieira so da
criança

19 Geogra Monte Jornal Midiática Ideias Denunc Obra de Artigo/Jor


36 fia da iro Diário , iativa cunho nal
Dona Lobat da ideolo separatis
Benta o Noite gia ta

19 Peter Monte Procur Organiza Ideias Punitiva Obra de Artigo


41 Pan iro ador cional , cunho
Lobat Dr polític antinacio
o Clovis o nalista
Kruel
de
Morais

19 Históri Vários INEP Governa Ideias Denunc Estímulo Livro


44 as em autore mental , de iativa à
quadrin s aura preguiça
hos mental e
avesso à
leitura de
livros

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19 Tarzan Edgar Invent Organiza Ideias Denunc Doutrina Livro
58 ,o Rice oria de cional , iativa mento
incrível Burro Agam polític bolchevis
ughs enon a ta
Magal
hães

19 Contos Jacob Editor Editorial Moral Na Preocupa Tese


62 de Grim a , traduçã ção
Grimm me Globo costu o pedagógi
Whilh mes ca
elm
Grim
m

19 O João Famili Familiar Moral Punitiva Publicaç Jornal


72 caneco Carlos ares , ão
de Marin costu pernicios
prata ho mes a e texto
inútil

20 Caçad Monte Conse Governa Ideias Punitiva Racista Parecer


10 as de iro lho mental ,
Pedrin Lobat Nacio racial
ho o nal de
Educa
ção

20 A Paulo Janild Familiar Moral Denunc Tema Jornal/Fa


14 máquin Betan a , iativa diabólico cebook
a de cur Prata, religio
brincar mãe so
em
rede
social

20 Aparel Helen Jair Governa Moral Denunc Porta Facebook


16 ho e Bolson mental , iativa para
sexual Bruller aro (Deputad sexua pedofilia
e o, l e sexo
compa candidat precoce
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cia da
Repúblic
a)

20 Enqua Ana Minist Governa Moral Punitiva Incita o Parecer


16 nto o Maria ério da mental , incesto

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sono Moura Educa costu
não e ção mes
vem José
Carlos
Brand
t

20 Peppa Silvan Ana Midiática/ Ideias Punitiva Racista Youtube


17 a Paula Editorial ,
Rand Xonga racial
o ni/
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e-book

20 O Ana Grupo Familiar Moral Denunc Incita o Youtube


18 menino Maria s de , iativa suicídio
que Mach pais costu
espiav ado mes
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dentro

20 A Chico Escola Escolar Ideias Punitiva Autor é Jornal


18 sement Alenc de , deputado
e de ar Brasíli polític do PSOL
Nicolau a a

20 Menino Luiz Colégi Escolar Ideias Punitiva Doutrinaç Jornal


18 s sem Puntel o , ão
pátria Santo polític comunist
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RJ

20 Bolsa Lygia Verea Governa Ideias Denunc Aborda Jornal


19 amarel Botjun dor mental , iativa ideologia
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20 Vingad Allan Marcel Governa Moral Punitiva Conteúd Twitter


19 ores, a Heibe o mental , o sexual
cruzad rg Crivell costu
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criança
s

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20 Lendas Adilso Diretor Escolar Moral Punitiva Conteúd Jornal
19 de Exu n de , o do
Martin escola religio “demônio
s sa ”

20 Banho! Maria Assina Investime Moral Denunc Conteúd Jornal


20 na ntes nto , iativa o
Mass do sexua pornográf
arani Clube l ico
Quindi
m
Fonte: Elaboração das autoras, 2020.

Dos vinte casos encontrados até o momento, cinco governamentais, quatro


escolares, três familiares, três organizacionais, dois editoriais um midiático e um por
investimento.
Em relação aos fundamentos da censura, onze foram de caráter moral e nove
relacionados às ideias. Nenhum dos casos encontrados até agora foram censurados
por repulsa. Dos casos censurados pela moral, quatro foram de costumes, três foram
religiosos e dois sexuais. Os casos censurados por caráter das ideias, quatro foram
políticos, dois raciais, um de gênero, um de aura e um de ideologia. Sobre a forma de
censura, nove casos foram classificados como denunciativa, nove casos foram
censurados como censura punitiva, um caso de censura substitutiva e um caso de
censura na tradução.
Em relação às fontes onde os casos foram encontrados, oito foram em jornais,
três em livros e três em artigos, dois no Youtube, dois no Facebook e dois em pareceres
técnicos, um no Twitter e um em tese de doutorado. Alguns casos foram encontrados
em mais de uma fonte.
Importante destacar que esses registros não nos permitem estabelecer
quaisquer relações quantitativas, por exemplo, entre censura e período histórico, uma
vez que não foram levantados todo, ou pelo menos uma quantidade suficientemente
significativa, de casos de censura, desde a chegada do primeiro livro de literatura infantil
ao Brasil.
O que se pretende, no trabalho monográfico, é saber se a classificação
elaborada nos ajudará a descobrir tendências censoras em épocas históricas e, quem
sabe, vinculá-las aos respectivos contextos sociopolíticos, como também descobrir se
as instituições censoras se fundamentam em justificativas ou empregam formas de
censura similares e com que propósitos. Em suma, buscar nos dados encontrados

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similaridades ou especificidades que nos permitam compreender melhor o fenômeno da
proibição e do cerceamento da literatura infantil para o seu principal público destinatário.

Considerações Finais
Até então estes foram os casos de censura a livros infantis encontrados e
classificados. As buscas ainda estão sendo realizadas e, ao término delas, realizar-se-
á análise dos dados encontrados, tentando relacionar os casos de censura aos motivos
alegados, ao contexto social e político da época e às concepções de infância, de criança
e de educação que cada caso encerra.
Esperamos que os dados desta pesquisa permitam que se crie um histórico das
práticas de censura até então registradas, de forma a compreender os caminhos que a
censura à literatura infantil percorreu e qual foi sua influência na circulação e no
consumo destes livros. Além disso, será possível traçar um perfil dos censores e dos
motivos dos casos de censura analisados.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, Ronaldo de. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise
brasileira. Novos estudos. CEBRAP [online]. 2019, vol.38, n.1, pp.185-213. Epub May
06, 2019.

BAEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias a
guerra do Iraque. Ediouro, 2004

BRENMAN, Ilan. A condenação de Emília: o politicamente correto na literatura infantil.


Belo Horizonte: Aletria, 2012.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Livros proibidos, ideias malditas: o DEOPS e as


minorias silenciadas. 2. ed. ampl. São Paulo: Ateliê Editorial, PROIN; Fapesp, 2002.

FROMMING, Sigfrid. A influência da censura em seis traduções brasileiras dos contos


dos irmãos Grimm no século XX. 2014. Tese (Doutorado em Estudos da tradução) –
Programa de Pós-Graduação em Estudos da tradução, Universidade Federal de Santa
Catarina, 2014.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias.


6 ed. Editora Ática. São Paulo, SP. 2007.

MACLEOD, Anne Scott. Censorship and Children’s Literature. In: The library quarterly.
Vol. 53, No 1. 1983

MACHADO, Maria Zélia Versiani. A criança e a literatura. In: A criança e a leitura literária:
livros, espaços, mediações. Curitiba: Positivo, 2012.

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PAULINO, Graça. Formação de leitores: a questão dos cânones literários. In: Revista
Portuguesa de Educação. Vol 14. N 1. Braga, Portugal. 2004.

PERES, Ana Maria Clark. Desejando o livro: a essência da literatura infantil. In:
PAULINO, Graça (Org.). O jogo do livro infantil. Belo Horizonte: Dimensão, 1997.p. 33-
40.

SOUZA, Solange Jobim e. Infância e linguagem. In: Ser criança na educação infantil:
infância e linguagem. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. 1.ed. –
Brasília: MEC/SEB, 2016.

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UM PASSEIO PELOS TEMAS DIFÍCEIS: a metáfora do ciclo da
vida no livro de Pablo Lugones e Alexandre Rampazo

Mariana Amargós Vieira (FACON – Polo A Casa Tombada)

Eixo Temático 7: Temas polêmicos interdição e censura na literatura infanto-juvenil

Considerações iniciais
Este artigo tem como objetivo mostrar como a literatura infantil dialoga com
crianças e adultos sobre temas diversos, de uma maneira delicada e poética, e como o
jogo do texto e da imagem no livro O Passeio, proposta pelos autores, Pablo Lugones
e Alexandre Rampazo, podem ser um facilitador no diálogo com as emoções e
fortalecimento do vínculo afetivo.
O livro O Passeio narra a história de um pai, a princípio apenas ensinando sua
filha a andar de bicicleta, e conforme viramos as páginas acompanhamos o crescimento
da amizade, os ensinamentos, as alegrias e as tristezas, que o ciclo da vida podem nos
trazer; ora o pai conduz essa conversa, ora a filha, e a troca vai se estabelecendo entre
os dois ao longo desse percurso, em que a palavra e a imagem conduzem à narrativa.
É com essa poesia que os autores abordam um dos temas desta obra, a morte,
de forma delicada e comovente trazem à tona o que para muitos ainda é considerado
tabu dentro da literatura infantil. Brenman (2012) coloca a palavra tabu como uma
necessidade que o homem tem de se autopreservar, proibindo assim determinados
assuntos, ou seja, censurando. Neste caso está ligada a não aceitação dos sentimentos
das crianças perante a uma perda, como se dor e tristeza não fizesse parte de seu
vocabulário.
A vida e a morte estão contidas no ciclo da vida de todos os seres vivos da
terra, e Paiva (2018) defende que essas questões devem fazer parte da formação do
indivíduo desde a infância, pois coloca a criança no aqui e no agora, “vida e morte fazem
parte do nosso aprendizado diário, desde a infância até a velhice, desde o nascimento
até a morte” (PAIVA, 2018, p. 310), e não deve ser distanciada da vida da criança ou
ser falado somente quando algo nesta esfera acontece.

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A literatura infantil e a morte
As histórias sempre fizeram parte da vida das crianças, mesmo quando as
víamos como pequenos homens, os adultos já as entretinham com contos de tradição
oral e seus fundos morais as ajudavam a crescer e entender um pouco sobre o mundo
a sua volta, não havia censura com os temas abordados, eram contadas para adultos e
crianças sem concessões.
Clássicos, transcritos para o papel, ganharam espaço na vida das crianças,
com as histórias de Esopo, La Fontaine, Charles Perrault e os Irmãos Grimm. No
entanto, conforme os anos e as décadas foram passando, essas histórias foram, de
certa maneira, “higienizadas” pelos adultos (BRENMAN, 2012). Bruxas, lobos maus e
lebres astutas foram suprimidos das histórias, as crianças foram privadas desses
personagens, pois adultos ficaram preocupados com a violência que poderiam trazer
para a vida das crianças.
Lucélia Elizabeth Paiva, psicóloga com atuação clínica, hospitalar e
educacional, relata que em seus atendimentos em pronto socorro e clínica, os livros e
suas histórias foram papéis importantes para a construção dos diálogos com os
pequenos, principalmente acerca das dores emocionais “a importância das diversas
histórias: história de vida, história vivida, história inventada… história pensada, não
pensada, lembrada, relembrada… Enfim, qualquer tipo de história que nos faça pensar,
imaginar, criar, sonhar.” (PAIVA, 2011, p.19) nos ajudam a lidar melhor com as nossas
emoções e nos relacionarmos de maneira mais saudável com o mundo a nossa volta.

Muitas vezes, como o intuito de proteger a criança, o adulto


acaba gerando um novo problema. Essa questão se evidenciou
quando se percebeu que, geralmente, pensar em preparar a
criança para a morte parece ser visto como eliminar o sofrimento
que a morte provoca. (PAIVA, 2011, p.253 – grifo da autora)

Assim como cada um de nós, adultos, lidamos com o luto e com a perda de
uma maneira diferente o mesmo acontece com as crianças. Cada uma tem o seu tempo
e sua forma de lidar com as ausências sentem medo, dor, desgosto, tristeza, ansiedade,
entre outras emoções que não sabem definir. Mas através das leituras de livros infantis
elas podem se identificar com as personagens, e estas situações podem auxiliá-las a
entender melhor pelo que estão passando.

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A leveza do passeio entre texto e imagem
Na década de 1970 o livro infantil ganhou evidência no mercado editorial
brasileiro, com a publicação dos chamados livros ilustrados, livro-imagem, ou picture
books, como eram conhecidos no exterior, a palavra e imagem, ou somente a imagem
provocaram um outro olhar durante a leitura. Ou seja, ler um livro ilustrado vai além de
ler o texto e a imagem, a materialidade do livro exige uma maior atenção à leitura.

(...) Ler um livro ilustrado é também apreciar o uso de um


formato, de enquadramentos, da relação entre capa e guardas
com seu conteúdo; é também associar representações, optar
por uma ordem de leitura no espaço da página, afinar a poesia
do texto com a poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma
em relação a outra...Ler um livro ilustrado depende certamente
da formação do leitor.(LINDEN, 2018, p.8-9 - grifos da autora)

Portanto, toda essa nova relação estabelecida com o livro abre espaço para
outra conversa com a criança, outro olhar e de certa forma traz algumas reflexões. A
obra O Passeio nos mostra como a poesia das imagens se entrelaçando com o texto, a
sua materialidade, o tamanho que o livro toma ao se iniciar a leitura influencia a relação
entre livro e leitor.
Mas por que algumas histórias são deixadas de lado pelos adultos com o
simples critério de acreditarem que não é assunto para criança?
Vamos imaginar o que seria das crianças, e de certa forma dos adultos, se em
pleno 2020 não tivéssemos as histórias que conversam sobre sentimentos, perdas,
morte, para ajudar-nos a entender tudo o que estamos passando com a pandemia, como
conversar com a criança sobre a doença e a possibilidade da morte quando um familiar,
ou uma pessoa próxima à família contraiu o vírus COVID-19? Pois é neste momento
que os livros que tratam dos temas, considerados tabus por muitos ainda, como tristeza
e morte entram em cena.

Com certeza, a morte é parte da vida, para o adulto e para a


criança. As formas de atendimento é que podem ser diferentes.
No entanto, questiono se existe idade para sofrer mais ou
menos, uma vez que o que importa para a elaboração do luto é
a qualidade do apego e o suporte necessário à pessoa enlutada.
Esse suporte deverá vir do ambiente em que ela vive e das
pessoas com que ela convive. Não é a idade que predetermina
o sofrimento, mas sim a questão da relação de afeto.
Pode-se dizer que a forma de entender a situação pode variar
com a idade, mas não se pode afirmar que o sofrimento (maior
ou menor) está relacionado com a idade. (PAIVA, 2011, p.249 –
grifos da autora)

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Iniciamos este percurso pelo livro O Passeio (2017), ainda com ele fechado, na
capa vemos uma menina e um senhor andando de bicicleta de uma maneira divertida e
serena, serenidade passada também pelas paletas de cores escolhidas pelo ilustrador,
azul e rosa em um tom leve ao fundo, e em primeiro plano os personagens, cada uma
em sua bicicleta. O senhor na frente e a menina logo atrás com as perninhas esticadas
para frente nos passando um ar de brincadeira; e entre os personagens o título do livro,
O Passeio.
O tamanho do livro também é um diferencial, em um formato retangular,
fechado mede 20 centímetros de altura por 28 centímetros de comprimento, ao abrirmos
seu comprimento é dobrado nos dando a impressão de uma grande tela de cinema, este
formato “permite uma organização plana das imagens favorecendo a expressão do
movimento e do tempo e a realização das imagens sequenciais” (LINDEN, 2018, p.53).

Figura 7 - Pablo Lugones e Alexandre Rampazo, O Passeio, Editora Gato Leitor, 2017

O livro é composto de 23 duplas, na primeira dupla, somente imagem nos inicia


neste passeio. À esquerda um homem, segurando o selim da bicicleta, a menina
sentada, ouvindo as instruções que ele lhe dá e a direita a menina iniciando o seu
pedalar, ainda com a segurança do homem que a acompanha.

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Ao virarmos a página vemos esse homem no canto esquerdo, de braços
cruzados, admirando a menina pedalar sozinha, em direção à margem direita da página,
onde o leitor também encontra o texto, “Aquele dia, quando papai perguntou:
“preparada, filha”, mal tive tempo de responder e já saí a toda velocidade.” (LUGONES,
2017, s/p), conhecendo assim as personagens da história.

Figura 8 - Pablo Lugones e Alexandre Rampazo, O Passeio, Editora Gato Leitor, 2017, s/p

A cada virar de página acompanhamos o trajeto das personagens, sua


cumplicidade, a troca, amadurecimento e envelhecimento. Notamos essa passagem do
tempo não só pelo texto, mas principalmente pelas ilustrações, como por exemplo, o
céu que se inicia esverdeado, a menina ainda criança e o pai jovem; quando o céu se
torna azul claro com tons mais acentuados vemos a primeira mudança física das
personagens, e a cada mudança física novas cores vão sendo introduzidas neste céu,
um tom mais rosado, lilás, alaranjado nos mostrando um entardecer.

Figura 3 - Pablo Lugones e Alexandre Rampazzo, O Passeio, Editora Gato Leitor, 2017, s/p

O ilustrador nos dá pistas e de certa maneira vem nos preparando para a noite,
para a escuridão. Vemos o tempo passar e o inesperado acontecer. De repente à filha
se percebe sozinha sem a companhia de seu pai. E assim, em oito duplas
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completamente noturnas, ocorre uma quebra na narrativa, conduzindo nós leitores a um
silêncio, uma ausência, um luto, uma despedida; entre a filha e o pai.

Figura 4 - Pablo Lugones e Alexandre Rampazo, O Passeio, Editora Gato Leitor, 2017, s/p

Outra pista dada pelo ilustrador é o surgimento da borboleta na terceira página


dupla. Ela aparece na extremidade direita da página em meio a pequenos matinhos e
assim ela vai acompanhando todo o trajeto das personagens. A borboleta faz três
contatos expressivos com o pai e a filha na obra literária, o primeiro na décima nona
dupla temos a impressão que a ela está dando um empurrãozinho para que o pai
alcance a filha e acompanhe mais de perto sua trajetória. Na décima segunda dupla ela
toca o dedo da mão esquerda do pai e ao virarmos a página tudo muda, temos a noite,
sentimos que algo aconteceu.
Esta mesma borboleta, que em meio à escuridão, faz seu terceiro contato direto
com a personagem, mas agora com a filha. Em uma troca de olhares, borboleta e filha
se comunicam e logo em seguida percebemos uma transformação. Assim como a
metamorfose da borboleta; naquele momento a menina levanta e vai em direção a sua
bicicleta, e mesmo com medo, acende a lanterna e retoma seu trajeto.

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Figura 5 - Pablo Lugones e Alexandre Rampazo, O Passeio, Editora Gato Leitor, 2017, s/p

Assim como nesta passagem que vimos acima às imagens ao longo de todo o
livro trazem muitas informações sobre as personagens, inclusive mostrando o foco
interno de cada um deles, “os sentimentos do personagem podem ser naturalmente
transmitidos por expressão facial, posição da página, tom, cor e outros recursos
gráficos.” (NIKOLAJEVA & SCOTT, 2011, p.157). Todas essas sensações e emoções
são transmitidas às crianças de maneira sutil; muitas vezes não somos nós, adultos,
que ensinamos esse olhar à criança durante a leitura, mas sim a própria história e suas
sutilezas, são percebidas por elas, somos apenas o caminho. (PAIVA, 2011)
Durante todo o percurso, as imagens do livro ilustrado parecem estar ligadas
umas às outras no espaço da página dupla. Às mudanças de perspectiva da ilustração,
terreno plano, subidas e descidas, passam ao leitor a ideia do movimento do pedalar.

Figura 6 - Pablo Lugones e Alexandre Rampazo, O Passeio, Editora Gato Leitor, 2017, s/p

Complementar a isso podemos observar também que todas as imagens


sangram a página; elas não são delimitadas por uma moldura e sim vão até o limite das
bordas, conduzindo o virar da página em busca da continuidade da cena, ou seja,
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“quando um livro ilustrado propõe uma sucessão de imagens sangradas, a página dupla
pode então ser assimilada a uma tela: o suporte é uma moldura invariável sobre a qual
se estendem as representações.” (LINDEN, 2018, p.73) Como já citado anteriormente,
o livro O Passeio conduz o leitor a uma experiência cinematográfica através das
imagens do livro, onde acompanhamos a jornada dos personagens.

(...) Se a montagem, na sétima arte, consiste no encadeamento dos


planos, no livro ilustrado trata-se de organizar a sucessão das páginas
duplas.
(...) A leitura desencadeia literalmente um processo que se assemelha
a uma câmera realizando um travelling. Basear-se no encadeamento o
livro não implica necessariamente uma continuidade absoluta de
página para página. A repetição de um motivo, a ligação plástica entre
as imagens, o deslocamento de uma personagem são suficientes para
inserir cada dupla dentro de uma sequência.(LINDEN, 2018, p.78 -
grifos da autora).

Todos os recursos utilizados pelos autores, inclusive o projeto gráfico do livro


conversam com nós leitores de uma maneira singular. Mostrando toda a trajetória do
ciclo da vida com delicadeza e afeto, falando de temas delicados como a morte atrás da
poesia do texto e da imagem.

Considerações finais
Dentro do cenário que estamos vivendo, com o Brasil ultrapassando 100.000
mortes pela COVID-19, não falar sobre o assunto é praticamente impossível, e não só
sobre esse tema tabu, mas medo, angústia, tristeza fazem parte do dia a dia do
isolamento social das famílias e suas crianças.
Nunca foi tão necessário ter uma conversa sincera com as crianças sobre
esses temas, tanto nas escolas, agora virtuais, como em suas casas, falar sobre temas
delicados que envolvem os sentimentos se faz é necessário, pois não tocar neste
assunto é como se estivéssemos negando a vida, afinal de contas à morte faz parte da
vida, e a literatura pode contribuir para que essa conversa aconteça.

As histórias podem levar a mudanças, pois ajudam as crianças


a enxergar outras perspectivas e distinguir opções de
pensamentos, sentimentos e comportamentos, dando
oportunidades de discernimento e entendimento de novos
caminhos saudáveis para enfrentar dificuldades (PAIVA, 2011.
p. 93-94 - grifos da autora)

A obra O Passeio vem para nos mostrar o como à literatura para a infância
pode falar de todos os assuntos com a criança. Pois, em uma única obra temos a

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amizade do pai com a filha, o aprendizado que eles têm durante o percurso de cada um,
o respeito aos limites e como estar perto e presente na vida um do outro fortalece os
laços e deixam aprendizados que serão carregados de geração para geração. Um livro
que vai muito além do tema ausência e morte, tristeza e dor, nos ensinam a lidar com
tudo isso, nos mostra que o escuro pode chegar, mas as lembranças dos bons
momentos estarão sempre presentes para nos dizer “...que o passeio sempre pode
continuar.”(LUGONES, 2107, s/p)

Referências
BRENMAN, Ilan. A condenação de Emília: O politicamente correto na literatura infantil.
1. ed. Belo Horizonte: Aletria, 2012.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. 1. ed. São Paulo: SESI-SP, 2018.

LUGONES, Pablo; RAMPAZO, Alexandre. O Passeio. 1. ed. Blumenau: Gato Leitor,


2017.

NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavra e imagens. 1. ed. São
Paulo: Cosac Naify, 2011.

PAIVA, Lucélia Elisabeth. A arte de falar da morte para crianças. 3. ed. Aparecida, SP:
Ideias & Letras, 2011.

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INTERDIÇÕES NA LITERATURA INFANTIL: O TRIUNFO DA
INFÂNCIA PELAS VIAS DO LITERÁRIO 184
Marina Miranda Fiuza, PUC-SP, CAPES

Eixo Temático: Temas polêmicos, interdições e censura na literatura infantil e


juvenil

Isso não é para criança! – a tradição do debate.


A censura sofrida pela literatura destinada ao público infantil não é um evento
localizado num ponto histórico, nem mesmo restrito a determinado contexto político.
Ainda na Grécia Antiga, enquanto idealizava sua República, Platão já se preocupava
com os conteúdos oferecidos às crianças, as quais, segundo ele, eram almas facilmente
moldadas pelo que quer que lhes fosse inculcado durante os primeiros anos de vida.

Por conseguinte, teremos de começar pela vigilância sobre os criadores


de fábulas, para aceitarmos as boas e rejeitarmos as ruins. De seguida,
recomendaremos às amas e às mães que contem a seus filhos somente
as que indicarmos e procurem amoldar por meio delas as almas das
crianças com mais carinho do que por meio das mãos fazem com o
corpo. A maioria das que estão presentemente em voga deve ser
rejeitada”. (PLATÃO, 2000, p.123)

Séculos depois, a própria infância como período biológico de vida era censurada
pelas reflexões de Santo Agostinho (354 d.C. – 430 d. C.). Segundo o teólogo, a criança,
ainda impregnada pelo pecado original que a concebeu, era movida por seus desejos e
egoísmos. Sendo assim, deveriam ser corrigidas por uma educação rigorosa e precoce.
A infância, vista como um período de trevas, precisava ser superada o quanto antes
fosse possível.
Jean Jacques Rousseau (1712 – 1778) dá voz a um novo olhar sobre a infância,
o qual se diferencia tanto da volubilidade platônica quanto da demonização agostiniana.
A criança romantizada é dotada de natureza inocente, a qual deve ser protegida das

184
Parte constituinte de pesquisa em andamento, nível Doutorado, com orientação da Profa. Dra.
Maria José Gordo Palo (PUC-SP) e coorientação da Professora PhD. Elizabeth Goodenough
(University of Michigan), a qual se realiza com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).
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imoralidades da sociedade. Para conservar a pureza essencial do ser humano, é preciso
afastá-lo de tudo o que corrompe, inclusive dos livros. “Detesto os livros; só ensinam a
falar do que não se sabe” (ROUSSEAU, p. 149), desabafa o filósofo, atentando para o
cuidado que se deve ter com os conteúdos a que as crianças estão expostas: “Não
mostreis nunca à criança nada que ela não possa ver. Enquanto a humanidade
quase lhe é estranha, não podendo elevá-la ao estado adulto, abaixai para ela o homem
à condição de criança”. (ROUSSEAU, p. 149) Rousseau segue seu discurso sugerindo
como adequado para infância um único livro apenas: “Robinson Crusoe”, de Daniel
Defoe. Tal título, embora permaneça até os dias atuais como um cânone da literatura
universal, sofre severa crítica pelo cunho racista que apresenta, tal qual aconteceu em
2010, no Brasil, com “Caçadas de Pedrinho” do consagrado escritor Monteiro Lobato,
vetado pelo Conselho Nacional de Educação. Lidas no contexto atual, aspectos da
narrativa tornaram-se inadmissíveis.
Ao retomar esses três nomes que tanto refletem quanto determinaram o
pensamento de suas épocas – Platão, Agostinho e Rousseau – podemos elencar alguns
pontos de congruência importantes. O primeiro é de que a infância, seja para o bem ou
para o mal, foi entendida por eles como uma fase de vida diferenciada. Desta forma, o
que a criança tem acesso - ou o que ela é privada de acessar - determinará o seu
desenvolvimento. Ainda, os três pensadores parecem concordar que cabe ao adulto,
dotado de juízo e razão, fazer essa seleção de conteúdo. Finalmente, não apenas
aqueles que realizam a produção cultural para a infância como seus mediadores
deveriam ser vigiados e instruídos por valores capazes de diferenciar o bom livro do
livro ruim.
Passados quase vinte e três séculos, nos ocupamos desse mesmo debate. O
julgamento do livro de literatura para a criança não encontra provas cabais para
absolvição nem para derradeira condenação uma vez que as concepções de infância
permanecem em constante processo de redefinição. Assegurado por sua condição
política tanto vantajosa quanto dominante em relação à da criança, o adulto segue
decretando o que é apropriado na literatura infantil e, portanto, determinando o que é a
própria infância. Diante deste panorama chegamos a uma questão fundamental: como
e em que medida a infância pertence à literatura infantil?
Por meio de uma perspectiva emancipatória da infância buscaremos observar
como características infantis podem ser preservadas na literatura infantil, independente
da exploração de temáticas tabus ou da ousadia de projetos editoriais. Para tal,
adotamos uma concepção filosófica da infância orientada pelo conceito de “limiar” de

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Walter Benjamin. Entremeando nosso pensamento, tomaremos como objeto de análise
livros infantis cujas temáticas e projetos editoriais foram alvo de censura, mas que,
apesar das controvérsias, são exemplares de uma literatura genuinamente infantil.
Daremos especial atenção ao título “O menino que espiava para dentro”, de Ana Maria
Machado, recentemente alvo de censura.

A ampliação da censura e a redução da infância


O milenar debate sobre o que é e o que deixa de ser adequado para o público
infantil ganha, na atualidade, dimensões ampliadas. Antes de chegar ao alcance da
criança, o livro de literatura infantil passa pelo crivo de diversos grupos controladores.
Ainda na editora, a confecção do livro recebe os elementos paratextuais que
determinarão, em grande medida, seu público alvo: trata-se da capa, formato, design,
tipografia, ilustração e até mesmo dos materiais escolhidos para impressão. Os
contratos comerciais com livrarias, a curadoria de bibliotecas públicas e até mesmo a
disposição dos livros em prateleiras específicas facilitarão ou dificultarão o acesso
infantil. Tanto nas livrarias como nas bibliotecas escolares, a decisão final da
acessibilidade de uma criança à literatura infantil ainda passa pelo consentimento final
do adulto, seja ele o pai que detém o poder de compra ou o professor como autoridade
do espaço pedagógico. Em todas essas instâncias que antecedem o encontro da
criança com o livro, a obra literária está sujeita à censura de adultos imersos em suas
concepções pessoais de infância. Questionar se um livro é adequado para uma criança
significa também questionar qual é, afinal, o estatuto da infância.
A história da literatura infantil é permeada por essa dinâmica “adulto-concepção
de infância” desde seus primórdios. Se como tradição oral as histórias não faziam
distinção de audiência até o século XVIII, ao receber a roupagem das edições impressas
passaram a servir um público cada vez mais específico. Um mesmo texto escrito pelos
Irmãos Grimm, por exemplo, foi tanto enaltecido quanto rechaçado pelos “guardiões da
infância” em diferentes épocas e contextos culturais, ora julgado pela temática, ora pela
plasticidade de uma determinada edição.
É o caso de “Chapeuzinho Vermelho”, exemplar incontestável do “conto de fada”
infantil universal. O valor moral da narrativa parece ter sido aceito pelas sociedades de
todo o planeta através dos tempos e seu suposto conteúdo psicanalítico com viés sexual
passou “batido” ou foi julgado inofensivo em nome da preservação deste que é,
seguramente, um clássico da literatura infantil. Todavia, quando a premiada artista
alemã Sussane Janseen ilustra o texto original de Grimm com cores sóbrias, ângulos

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inebriantes e traços perturbadores, a história “muda de figura”, literalmente. Embora
tenha sido aclamado pela crítica – no Brasil, a edição veiculada pela editora COSAC
NAIFY recebeu, em 2005, o selo Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) – pais e professores questionaram a adequação da edição
ao público infantil. A força expressiva do texto visual foi capaz de alterar a recepção de
uma história conhecida e previamente aprovada por todos.

Firgura 1.

Fonte: fotografia da autora sobre a ilustração de Susanne Janssen na página dupla de


“Chapeuzinho Vermelho”, de Jacob e Whilhelm Grimm, em edição pela COSAC NAIFY, 2004.
p.8-9.

Percebemos, assim, que nem sempre a censura – seja ela oficializada e pública
ou exercida silenciosamente na esfera das vidas privadas – se restringe às temáticas
tabus, como é o caso recorrente da “morte” e “sexualidade”. Cada vez mais a censura
alcança diferentes nuances da produção cultural para a infância e, no caso de nossa
reflexão, do livro de literatura infantil.
No livro “Keywords for children’s literature” (2011), David Booth faz uma reflexão
sobre a censura do livro infantil, diferenciando seus diferentes níveis de atuação.
Segundo o autor, se antigamente (até os anos 60) havia um consenso de que alguns
tópicos como morte, conflito racial ou sexualidade deveriam ficar fora da literatura
infantil, a partir do século XX a censura avançou em diferentes frentes, ganhando,
inclusive, vocabulário próprio. “Desafio” (Challenge), seria a reclamação oficializada em
escolas e bibliotecas, geralmente liderada por associação de pais de alunos. “Censura
silenciosa” (Quiet-censorship) se refere à censura que acontece dentro das editoras,
cujas decisões antecipam possíveis reações negativas de um futuro público
consumidor. Há ainda a “censura velada” (Covert-censorship), onde os próprios leitores
rabiscam palavras ou imagens ou até mesmo arrancam as páginas dos livros que
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consideram ofensivas. Finalmente, Booth cita a “auto censura” (self-censorship), um tipo
de inibição sofrida pelos autores de literatura infantil durante seus processos criativos.
(BOOTH, 2011, p.27)
Observamos, assim, que a preocupação com a adequação dos conteúdos
oferecidos às crianças vem sofrendo mudanças através dos tempos. Antes, a tarefa da
censura exigia um discernimento binário de separar o bom do mau. Hoje ela enfrenta
os meandros de uma produção complexa, inserida no contexto de sociedades
globalizadas e multiculturais. Se por um lado o julgamento redutor à dois polos – o bom
livro e o livro ruim – deixou de existir, observamos a censura se compartimentar em
inúmeras categorias e níveis de valor. Até chegar às mãos da criança, o livro de literatura
infantil já passou por inúmeros filtros censores, exercidos pela dominância do adulto, de
forma que podemos nos perguntar se há, no percurso da concepção do livro infantil,
algum resquício de infância.
Julgar a adequação de temáticas, levando em consideração todos esses fatores
– valores culturais, políticos, econômicos, pedagógicos, todos transvestidos de “bom
senso” – seria uma tarefa fadada ao fracasso, como a história tem nos provado. A
opinião de Peter Hunt sobre a censura em seu país de origem se aplica também ao
nosso contexto:

A censura da literatura infantil é uma tessitura de paradoxos: entre o


controle benevolente e a repressão ameaçadora; entre as atitudes do
senso-comum em relação a palavras e sentidos e a necessária liberdade
de interpretação; entre um assunto ‘trivial’ e uma reação exagerada – e,
como temos visto na Inglaterra contemporânea, entre o explícito e o
implícito. (HUNT, 1997, p. 103, tradução nossa) 185

Para darmos um passo adiante dessa que tem se provado uma polêmica
milenar, este artigo propõe uma metodologia de leitura e análise do livro infantil no qual
a infância passa a ser reconhecida em equivalência na própria linguagem literária.
Enquanto a criança for mantida na posição de mera consumidora da literatura, situada
na extremidade de um longo caminho povoado por ações, valores e percepções adultas,
mais vulnerável o livro estará à ação de seus dominadores.

Falar à criança, no Ocidente, pelo menos, é dirigir-se não a uma classe,


já que não detém poder algum, mas a uma minoria que, como outras,
não tem direito a voz, não dita seus valores, mas, ao contrário, deve ser
conduzida pelos valores daqueles que têm autoridade para tal: os

185
“The censorship of children’s literature is a texture of paradoxes: between benevolent control
and fearful repression; between common-sense attitudes to words and meanings and necessary
freedom of interpretation; between a ‘trivial’ subject and a far-from-trivial reaction to it – and, as
we have seen in contemporary Britain, between the overt and the covert”. (HUNT, 1997, p. 103)
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adultos. São esses que possuem saber e experiência suficientes para
que a sociedade lhes outorgue a função de condutores daqueles seres
que nada sabem e, por isso, devem-lhes ser submissos: as crianças.
(PALO e OLIVEIRA, 1992, p. 5)

Afinal, censuram-se os livros infantis porque podemos fazê-lo, diz Peter Hunt ao
reafirmar a infância como uma categoria dominada e sem representatividade. (HUNT,
1997, p. 95). Acreditamos que, ao ser reconhecida no centro discursivo do texto, o
caráter infantil da literatura estará assegurado. À luz do conceito de “limiar” como
método investigativo, objetivamos emancipar a infância da hegemonia do adulto e,
assim, devolver à criança o protagonismo de sua expressão pelas vias do literário. Para
tal, tomaremos como objeto de análise o livro “O menino que espiava para dentro”, de
Ana Maria Machado.

Espiando a infância no discurso narrativo: uma proposta metodológica


Ana Maria Machado ocupa a cadeira número um da Academia Brasileira de
Letras e conta com uma extensa galeria de premiações nacionais e internacionais. No
Brasil publicou mais de cem livros infantis, traduzidos para 17 países, somando um total
de 20 milhões de livros vendidos pelo mundo afora. Qualquer brasileiro diria que Ana
Maria Machado é sinônimo de literatura de qualidade. Ou assim foi até 2018, quando
um post de facebook desencadeou uma série de debates nas redes sociais que
julgavam a adequação do livro “O menino que espiava para dentro” para o público
infantil.
A narrativa, editada pela primeira vez em 1983, conta a história de Lucas, um
menino que vivia entre o mundo real e o mundo da imaginação, em afinidade com sua
natureza infantil, como veremos a seguir. Inspirado pelos contos de fada, Lucas decide
se engasgar com uma maçã para poder ficar por mais tempo longe da realidade. Uma
vez totalmente imerso na dimensão dos sonhos, ele acaba por esgotar sua fonte criativa,
que se situa no mundo palpável, para onde ele retorna, despertado pelo beijo de uma
princesa, sua mãe. Durante 35 anos de circulação, o livro foi adotado por escolas e
encantou leitores com a personagem que transitava entre a realidade e a imaginação,
estabelecendo conexões entre essas dimensões, mesclando o repertório das narrativas
populares ao seu contexto familiar, enfim, sendo criança. Pela percepção de uma mãe,
porém, o livro era um manual de suicídio para crianças inocentes. A manifestação de
sua preocupação nas redes sociais ganhou repercussão descomunal. Alertas a pais e
professores circularam em correntes digitais, gerando um debate de nível nacional. Em
Fortaleza, um vereador se posicionou publicamente incitando uma moção de repúdio ao

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livro, no intuito de bani-lo das escolas do país. Em resposta à onda de acusações,
diversos canais de comunicação e autores manifestaram seu apoio à autora, em tom de
perplexidade. “Dias inquietantes são esses em que a literatura é vista por um único viés,
e em que livros para crianças e jovens são censurados”, escreveu Marina Colassanti
(2018) em seu blog pessoal, listando uma série de obras consagradas que foram ou
deveriam ser censuradas, se seguissem a mesma lógica limitada na interpretação de
“O menino que espiava para dentro”. Diversas editoras e incentivadores de leitura se
reuniram em uma carta de repúdio à censura.
“E Lucas fez justamente como tinha pensado. Na hora de dormir, despediu-se
de todos com boa-noite e até-amanhã e foi para cama com sua maçã. Deu uma mordida,
engasgou com um pedaço, espiou para dentro – não tinha fim seu espaço”. (MACHADO,
2003, p. 24) Lido assim, fora do contexto de experiência de leitura que o livro como um
todo oferece, a acusação poderia até parecer plausível. Principalmente se entendermos
que este é um livro de literatura infantil exclusivamente porque tem um público alvo
inteiramente passivo, capaz apenas de reagir em conformidade com a interpretação de
seu adulto dominante.
Mas a infância, sabemos, não é assim. Nem dentro do livro, nem fora dele.
Definir o estatuto da infância nos levaria de volta à discussão viciosa inicial sobre
a censura do livro infantil uma vez que concepções de infância, de literatura infantil e,
portanto, de censura sempre andaram lado a lado. Não negamos que haja uma criança,
ser social, que irá manipular este e outros livros, e que sua existência determine – em
diferentes graus - a produção e todo o caminho que o livro percorre até chegar ao seu
leitor. Nossa proposta é de que façamos um esforço para entender que o “infantil” que
caracteriza um segmento da literatura não é apenas a criança que segura o livro no ato
da leitura, mas é, principalmente, a criança reconhecida nas estruturas do texto, verbal
ou visual. Não se trata de um reconhecimento superficial, de mera afinidade com
personagens e temáticas, como frequentemente acontece na literatura, mas, sim, de
uma transposição de características da infância com o próprio fenômeno literário.
Nossa perspectiva, enfim, acompanha uma tendência internacional na crítica de
literatura infantil que se configura no afastamento da concepção de “infância” como
construção social, a qual manteria esse campo de estudos, como vimos, um constante
campo de batalhas ideológicas (NIKOLAJEVA, 2016).

Esses novos estudos exploram, de maneira mais aprofundada, a


complexa relação entre o fenômeno da percepção e suas
representações na ficção infantil; entre o corpo físico e sua
representação imaterial, linguística e ficcional; entre o espaço físico e

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ficcional; entre a identidade humana e a identidade inexistente e
enigmática de personagens ficcionais constituídos exclusivamente de
palavras. (NIKOLAJEVA, 2016, tradução nossa) 186

Inserida no mundo da linguagem, mas ainda não enclausurada pelo regimento


do simbólico, a experiência infantil é marcada pela percepção sensorial do mundo
circundante, constantemente reatualizado.

Se lhe falta a completa capacidade abstrativa que a capacite para as


complexas redes analítico-conceituais, sobra-lhe espaço para a vasta
mente instintiva, pré-lógica, inclusiva, integral e instantânea que só opera
por semelhanças, correspondências entre formas, descobrindo vínculos
de similitude entre elementos que a lógica racional condicionou a separa
e excluir. Correspondências, sinestesias. Todos os sentidos incluídos.
(OLIVEIRA E PALO, 1992, p. 7).

A partir do mundo concreto que está ao alcance dos seus sentidos – tato,
paladar, audição, olfato, visão – a criança amplia sua experiência perceptiva por meio
de jogos de semelhança onde tudo pode ser e nada ainda é em definitivo. A atividade
infantil se estabelece nesse entre mundos, o qual definiremos como “limiar”.
Diferentemente do conceito de fronteira, que delimita dois espaços diferentes, o
limiar aproxima-se da ideia de uma zona de transição entre espaços, como a soleira de
uma porta que conecta dois ambientes. É nessa zona limiar que a criança encontra
espaço para exercer sua aptidão criativa e marcada pela liberdade de pensamento. Ao
discorrer sobre o pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin, Jeanne Marrie
Gagnebin nos esclarece que:

O limiar designa, portanto, essa zona intermediária que a filosofia


ocidental – bem como o assim chamado senso comum – custa a pensar,
pois que é mais afeita às oposições demarcadas e claras
(masculino/feminino, público/privado, sagrado/profano etc.), mesmo que
haja, em alguns casos, um esforço em dialetizar tais dicotomias”.
(GAGNEBIN, 2014, p.37)

Justamente esta visão dialética foi capaz de condenar uma obra que se ocupava
de representar a pluralidade do pensamento infantil, numa narrativa em que a criança
ganha sua agência discursiva. Aumentemos nossas lentes sobre o trecho que incitou a
polêmica, na página dupla da edição ilustrada por Flávia Savary (Editora Nova Fronteira,
2003).

186
“These recent studies explore in more detail the complex relationship between perceptible
phenomena and their representations in children’s fiction; between the physical body and its
immaterial, linguistic fictional portrayal; between physical and fictional place; between human
identity and the enigmatic, non-existing identity of fictional characters made exclusively of words”.
(NIKOLAJEVA, 2016).
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A atitude da personagem coloca em evidência o recurso de metalinguagem, ao
trazer para o texto a memória dos contos de fada, em especial “Branca de Neve” que
cai em sono profundo envenenada por uma maçã. A dobra da página dupla separa as
duas dimensões da experiência do menino Lucas: do lado esquerdo, o mundo concreto,
dominado pela página branca onde se insere somente a imagem da maçã mordida. No
canto inferior da página, porém, uma pequena porta se abre, conduzindo o leitor à
experiência livre e criadora, características tanto do literário quanto do infantil. Ainda, a
sequência de despedidas – “Boa noite – Até amanhã” – que saem da maçã como um
bichinho em trajeto serpenteante, mostra a passagem gradual da posição de vigília para
o território dos sonhos. Benjamin se refere à experiência limiar como “morada dos
sonhos” onde habitam, também, a infância e a literatura.
Figura 2.

Fonte: fotografia da autora sobre a página dupla de “O menino que espiava para dentro”.
(MACHADO, Ana Maria. O menino que espiava para dentro. / Ana Maria Machado; ilustrações
de Flávia Savary. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 24-25).

A divisão das duplas de páginas, sendo um lado o da realidade e o outro da


imaginação da personagem é marcada pelas ilustrações da edição em análise e é uma
estratégia utilizada em outras duplas no decorrer da narrativa (10-11; 12-13, 20-21). Tal
recurso metaforiza o próprio fenômeno literário: é tanto no passar das páginas como no
trânsito entre o semiótico e o semântico que o ato de leitura atinge sua potencialidade.
Os signos, texto e imagens impressos no papel, oferecem apenas a porta de entrada
para uma experiência que não tem ponto de chegada, mas que se mantém em
constante ato de travessia.

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A diagramação da página, onde os parágrafos são permeados por ilustrações
que transitam entre formas inconstantes, remetem ao que o texto verbal propõe: uma
experiência sinestésica onde a profanação do impossível protagoniza a atividade lúdica.
Não só pelas experiências que descreve, mas no ritmo e sonoridade das frases, o texto
se mostra como uma experiência concreta da linguagem poética. “Viu tantos lugares,
nadou tantos mares, voou pelos ares. Viu cavalos e castelos, viu bosques e caramelos,
viu piratas e palhaços, viu vaqueiros e viu laços, viu automóveis-leões, viu parques de
diversões, viu carrossel e dragões”. (MACHADO, 2003, p. 25) Nesse trecho, vemos que
a linguagem não mais se ocupa em comunicar algo fora dela, como um referente
exterior, mas, sim, de comunicar a si mesma. Trata-se de uma comunicação que não
se limita ao teor linguístico, mas ao teor “espiritual” da comunicação, como descreveu
Walter Benjamin. “O que comunica a língua? Ela comunica a essência espiritual que lhe
corresponde. É fundamental saber que essa essência espiritual se comunica na língua
e não através da língua”. (BENJAMIN, 2013, p. 52)
O jogo sonoro de palavras acompanha o jogo mimético infantil, onde as
semelhanças são estabelecidas de acordo com a metodologia que ela, criança criadora,
decide agenciar. De acordo com Benjamin, a brincadeira infantil é a escola da
capacidade mimética do homem. “Os jogos infantis são impregnados de
comportamentos miméticos, que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas.
A criança não brinca apenas de ser comerciante ou professor, mas também moinho de
vento e trem”. (BENJAMIN, 1994, p. 108).
A capacidade mimética natural da infância, que na própria ontogênese da vida
humana determina um tempo de passagem, mas nem por isso dependente de um porvir,
a habilita para viver a experiência do literário em sua total potencialidade. Infância e
literatura aproximam-se como domínios privilegiados na experiência de limiar, a qual é
marcada pela liberdade e, jamais, pela censura.

A infância ainda sabe fruir de um tempo sem determinação, de um tempo


que não possui um fim prefixado, um tempo de espera de um
desconhecido que não pode ser antecipado por uma decisão precipitada,
mesmo quando os adultos tentam encaixar a criança numa estratégia de
previsibilidade da vida. Assim, o presente é pleno da intensidade da
descoberta e, simultaneamente, pleno de angústia e de esperança com
relação ao futuro, como se o tempo de espera (Warten) redobrasse, por
sua necessária paciência, o fervor do vivido, que não voltará mais com
essa abertura”. (GAGNEBIN, 2014, p.42)

O “fervor do vivido” se concretiza na experiência de leitura literária, no


pensamento analógico capaz de unir percepção e cognição numa dinâmica móvel e
aberta, morada da linguagem em estado nascente.
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A infância triunfante
“A infância é, pois, o país tanto das descobertas quanto dos limiares. Ela é um
tempo de indeterminação privilegiada...” (GAGNEBIN, 2014, p. 41). Como tal, a criança
não só é apta a viver a experiência de linguagem proposta pela literatura – também ela
uma zona limiar - como torna a criança um leitor favorecido por sua própria natureza.
Dentro da zona limiar, é o corpo da criança que passa a fazer as leituras do mundo
ainda não simbolizado, reatualizado à cada encontro. Dentro da zona limiar, é o corpo
da palavra-sígno que se mostra para a sensibilidade do leitor.
Se insistirmos, todavia, que a literatura infantil se caracteriza como tal porque se
destina a um público específico, a infância que reverbera na experiência do literário se
esvai. “Pode-se perceber que, seja enquanto consumidor, seja enquanto estudante, a
criança convertida em leitor (assíduo ou não) é manipulada. Igualmente importante é a
constatação de que, mesmo lidando com um tipo de linguagem, ela vem a ser privada
de seu discurso e desmobilizada...” (ZILBERMAN, 1982, p. 100). Sob a lente redutora
que enxerga a criança apenas na extremidade de um processo, como mera
consumidora de livros, também tenderemos a validar a literatura como simples produto
comercial e, portanto, suscetível aos mais variados julgamentos censores.
Se, por outro lado, entendermos a complexidade da literatura como expressão
artística, logo veremos que ela não só acolhe como inclui a infância no seu próprio fazer
estético, num jogo de alteridades entre criança-poeta e palavra-poética.

Ao elaborar histórias, crianças são cenógrafos que não se deixam


censurar pelo “sentido”. Pode-se colocar isso facilmente à prova. Que se
indiquem quatro ou cinco palavras determinadas para que sejam
reunidas em uma curta frase, e assim virá à luz a prova mais
extraordinária: não uma visão do livro infantil, mas um indicador de
caminhos. De repente as palavras vestem seus disfarces e num piscar
de olhos estão envolvidas em batalhas, cenas de amor e pancadarias.
Assim as crianças escrevem, mas assim elas também leem seus textos.
(BENJAMIN, 2009, p. 70)

“O menino que espiava para dentro”, ao contrário de ameaçar a infância com


supostas lições de suicídio, oferece à criança a expressão de sua voz, tão largamente
sufocada pelas forças dominantes do mundo adulto – essa, sim, verdadeira ameaça à
infância. Ao propor uma logicidade ao pensamento infantil, marcado pelas experiências
limiares, o livro devolve à criança o protagonismo de sua expressão pelas vias do
literário.

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Como bem escreveu Walter Kohan: “Temos sabido tanto sobre a infância, temos
discriminado tanto suas faces, temos projetado tanto seu futuro que, para fortalecer e
dinamizar as forças infantis que habitam em todos os corpos, talvez seja propício deixar
de saber, justamente... o que uma criança pode ou não pode”. (KOHAN, 2004).

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“O MONSTRO MONSTRUOSO DA CAVERNA CAVERNOSA”:
INTERLOCUÇÕES ENTRE A LITERATURA INFANTIL E OS
ARRANJOS DE MASCULINIDADE

Edimauro Matheus Carriel Ramos


Faculdades Integradas de Itararé (FAFIT)

Eixo Temático: Temas polêmicos, interdições e censura na literatura infantil e


juvenil

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
É inegável que a literatura infantil desperta uma gama de sentimentos, uma vez
que esses enredos e personagens são capazes de levar os leitores e leitoras a
canalizarem essa infinidade de emoções e buscar figuras nas respectivas histórias que
sejam representativas. No que se refere às subjetividades presentes nesses enredos,
nota-se que figuras masculinas e suas masculinidades são abordadas por diversas
obras que tensionam sua face hegemônica e patriarcal, assim como a sua face
subversiva.
Olhando atentamente para essas masculinidades hegemônicas e também
àquelas que performam maneiras distintas da norma masculina vigente e dominante,
esta pesquisa busca estabelecer e tecer interlocuções entre as nuances da
masculinidade e a literatura infantil por meio do livro “O Monstro Monstruoso da Caverna
Cavernosa” de Rosana Rios (2004). Com base nisso, a pesquisa se estrutura a partir
da inquietação: como são tensionadas, reguladas e problematizadas as masculinidades
na literatura infantil?
Com a finalidade de promover esses diálogos entre a literatura e as
masculinidades, este artigo segue o caminho metodológico da revisão bibliográfica, a
qual se ateve à análise de artigos científicos e livros. Por meio do escopo teórico
pertinente ao gênero, performatividade, masculinidades e pelo livro que dá título ao
trabalho, esta pesquisa se faz valer a partir de contribuições teóricas pós-estruturalistas
de Butler (2003; 2009), Connell (1990;1995), Grossi (2004), Muszkat (2018) e outros/as.
Nas conexões possibilitadas pela pesquisa, pôde-se constatar que a história
analisada é protagonizada por personagens que despertam e elucidam outras maneiras

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de vivenciar suas masculinidades e feminilidades, expressando e refletindo também
sobre discursos fundamentados pela masculinidade hegemônica. No entanto, as
aproximações teóricas também permitem compreender a importância de uma literatura
preocupada em problematizar padrões de gênero e apresentar em suas histórias
identidades que rompam as hegemonias de gênero, salientando o papel crítico e
reflexivo da literatura infantil.

MASCULINIDADE HEGEMÔNICA: BREVE ABORDAGEM TEÓRICA


Connell (1995) pensa na masculinidade hegemônica como um status do homem
nas relações de gênero, classificando-a como uma das inúmeras configurações que
existem, sendo possível pensar em “múltiplas formas de masculinidades” (CONNELL,
1995, p. 188). Já Oliveira (2004) compreende a masculinidade como um locus que
lapida atitudes, comportamentos e sentimentos a serem adotados e que funcionam
“como uma grande meta para qual se organizam diversos ritos de instituição ou de
consagração” (OLIVEIRA, 2004, p. 28). Connell (1990, p. 90) pontua que ela também é
construída por “práticas masculinizantes, que estão sujeitas a provocar resistência [...]
que são sempre incertas quanto a seu resultado. É por isso, afinal, que se tem que pôr
tanto esforço nelas”.
Furtado (2018, p. 29) destaca que essas faces hegemônicas da masculinidade
“podem variar de um momento para outro. Poderíamos dizer também que, dentro de um
determinado grupo social, há práticas que não são reconhecidas por outros grupos ou
têm valores diferentes”. Para Muszkat (2018), é insustentável se referir à masculinidade
como única e absoluta para pensarmos nela apenas no singular. Kessler et al. (1982)
apontam que o conceito de masculinidade hegemônica figurou nos relatórios de um
estudo de campo realizado na Austrália, o qual investigava a desigualdade social nas
escolas.
Connell (1995, p. 138) também designa a masculinidade hegemônica como
aquela que se refere aos “homens brancos, heterossexuais, de setores médios da
população, que tenderia a se configurar como o conjunto de práticas dominantes”. Para
Ribeiro et al. (2018, p. 37), ao conceber o padrão hegemônico que dialoga com a
masculinidade, diz que ele apenas não representa apenas a imposição de um modelo
de ser homem, mas vai além “ao estabelecer os limites do que é aceitável nas diversas
formas e possibilidades de viver as diferentes masculinidades”.

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MASCULINIDADE E PERFORMANCE

Grossi (2004), acredita que é possível discorrer sobre as masculinidades para


além da hegemonia, ou seja, sob diferentes aspectos de ser e performar-se homem na
sociedade. Pensar as masculinidades sob a noção de performatividade requer
reconhecer as incalculáveis configurações e enunciações de vive-las e performa-las.
Butler (2003, p. 242), nesta perspectiva, expressa que o gênero é “uma identidade
tenuemente construída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma
repetição estilizada de atos”.
Louro (2004) ratifica o que Judith Butler apresenta como repetições de atos
afirmando que todos nós nos fazemos valer de artifícios, símbolos e signos para
expressarmos e demarcarmos aquilo que somos, pois o sujeito é composto na e por
meio da performatividade (SULLIVAN, 2003). Pensar o gênero como performance,
como aponta Butler (2009, s/p), significa pensar que “existe uma determinada expressão
e manifestação, uma vez que a aparência do gênero, muitas vezes, é confundida com
um sinal de sua verdade interna ou inerente”.
As masculinidades enquanto performativas, ou seja, uma possibilidade de
“reelaboração da realidade do gênero através de novas formas (BUTLER, 2009, s/p),
pressupõem perceber que elas podem desajustar e desestabilizar os padrões
normativos que as cercam, questionando expressões que, segundo a
heteronormatividade e a ordem binária, pertencem ao gênero e ao sexo oposto. Sendo
assim, as masculinidades performativas, como descrevem Silva Júnior e Brito (2018),
não podem ser taxadas como imutáveis, objetivas, nem mesmo corresponder à história
e a cultura.
A ideia performativa do gênero se atém aos Estudos queer. Queer significa,
como descreve Louro (2004, p. 38), “colocar-se contra a normalização – venha ela de
onde vier”. O sujeito queer, como designa Louro (2001), pode ser entendido como
estranho, excêntrico, raro e/ou extraordinário. Silva (1999, p. 107) argumenta que o
queer se torna, assim, “uma atitude epistemológica que não se restringe à identidade e
ao conhecimento sexuais, mas que se estende para o conhecimento e a identidade de
modo geral”.
Conceber as masculinidades performativas como enunciações que se debruçam
sobre atos estilizados e subversivos reivindica questionar as premissas estruturadas
pela masculinidade hegemônica, a qual não abre fendas para desestabilizações de
gênero. Com isto, como apontam Couto Júnior e Brito (2018), a compreensão e

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reconhecimento das masculinidades performativas são imprescindíveis para questionar
as regulações e privilégios que algumas subjetividades masculinas possuem.

LITERATURA INFANTIL PARA ALÉM DOS DITAMES DE GÊNERO

No que se refere à literatura infantil, Kirchof, Bonin e Silveira (2013) destacam


que nas duas últimas décadas a temática das diferenças têm tomado espaço na
literatura infantil, bem como nos demais espaços educativos, rumo ao rompimento com
o caráter pedagogizante predominante do século XVIII que reforçava os valores morais
e maniqueístas. Entretanto, a nova roupagem da literatura infantil, conforme Perroti
apud Silveira (1998, p. 110), não está imune de “deixar de reconhecer que a obra literária
educa, ensina, transmite valores, desanuvia tensões etc”.
A literatura infantil, como reforça Vidal (2008) em sua dissertação, se torna um
recurso pedagógico que busca produzir verdades, subjetivar a identidade das crianças,
ensinando o que é tido como certo e errado, bom e ruim, além de reforçar, entre outros
valores, os binarismos sociais. Felipe e Ferreira (2011) assentem que os livros de
literatura infantil, sendo artefatos culturais, carregam um leque de significações que
robustecem a cultura de determinado tempo e espaço, e entre essas significações estão
as masculinidades e as feminilidades.
Porém, Vidal (2008) destaca que histórias apresentam deslocamentos entre as
representações que remetem ao tradicionalismo dos ideais de masculinidade e
feminilidade são questionadoras, pois, ora trazem princesas astutas e ativas ora trazem
príncipes tímidos, vulneráveis e com medo. Neste espectro, Martins e Brant (2016)
refletem que sendo um instrumento cultural e pedagógico o livro pode propiciar
diferentes experiências, além de corroborar para uma extensão mais crítica. A partir
disso, podemos contextualizar a arbitrariedade da literatura infantil e as identidades que
ela incorpora e pode incorporar em seus enredos e que nos permitem problematizar,
vislumbrar e ressignificar parâmetros, ou reforçá-los ainda mais.

“O MONSTRO MONSTRUOSO DA CAVERNA MONSTRUOSA”: DESTACANDO


NUANCES DA MASCULINIDADE
O livro da autora Rosana Rios foi lançado em 2004 pela Editora DCL (Difusão
Cultural do Livro) e conta com as ilustrações de André Neves em suas 32 páginas:

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Figura1: Capa do livro “O Monstro Monstruoso da Caverna Cavernosa”
Fonte: Site da Editora Travessa

A história é de um monstro nada convencional: ele não gosta de assustar e


amedrontar ninguém, muito menos raptar ou lanchar princesas. Com dois narizes, seis
orelhas, quatro braços e duzentos e dezenove dentes, esse monstro devora sorvetes
ao invés de princesas. Porém, toda essa inofensividade chamou a atenção da
Associação Associada dos Monstros Monstruosos. Na ocasião, ele recebeu uma carta
da Associação por não estar cumprindo o seu ofício de monstro:

Ficamos sabendo que o senhor não tem devorado nenhuma princesa,


como é a obrigação de todos os monstros. Por isso, pedimos que
devore uma logo, para cumprir nosso regulamento; senão, teremos de
expulsá-lo da Associação. Atenciosamente, Associação Associada dos
Monstros monstruosos (RIOS, 2004, p. 8).

Nesse primeiro excerto, vemos que a imagem de um monstro no espectro das


masculinidades e do Estudos de Gênero, é legitimado, como afirma Jeha (2007) sob a
luz da metáfora do mal, pois projeta e fornece uma visão negativa dele, ao mesmo tempo
que sua imagem estabelece o equilíbrio entre o bem e o mal na trama da literatura, ou
seja, uma perspectiva maniqueísta.

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Em seguida, ao receber tal comunicado da Associação Associada dos Monstros
Monstruosos, o Monstro se frustra e dispara: “ora bolas, devorar princesas! Elas têm um
gosto horrível! Por que não me deixam tomar sorvetes em paz? Ora bolas, bolas,
bolas...” (RIOS, 2004, p. 8). Reflexo de uma hegemonia masculina que assombra a sua
persona e que também deve ser seguida, estabelecessem-se conexões entre a
masculinidade hegemônica e a indignação do monstro, pois para Kimmel (1998), a
masculinidade tem de ser constantemente provada, questionada e deve ser provada
novamente, tornando-se uma busca sem sentido.
Ele, contudo, não queria ser expulso da Associação por não cumprir com seus
afazeres, e muito menos por ser repreendido pela sua família, principalmente de sua
mamãe, pois ela ficaria sabendo. “Mamãe Monstra não ia gostar nem um pouco se
viesse a saber... E ela ficaria sabendo!” (RIOS, 2004, p. 11).
Sobre esse fragmento em que se ilustra a expectativa depositada ao monstro
pela mãe dele, é possível ver que, como nos mostra Muszkat (2018), somos moldados
pelas expectativas que os pais e mães aprovam e estimam, o que nos faz recorrer e se
encaixar sempre nesses moldes. Caso escapem dessas balizas masculinistas ou que
expressem qualquer deslize comportamental que fuja das posturas anteriormente
impostas pela mãe ou pai, tal conduta pode fazer com que o homem, menino, ou nesse
caso, monstro, coloque a sua identidade em risco (MUSZKAT, 2018).
Buscando uma solução, o Monstro emite uma nota por pressão da Associação
e de sua família que ele está em busca de uma princesa para devorar e que as
candidatas devem se apresentar em seu estabelecimento. Obviamente, nenhuma
princesa atendeu a tal anúncio e nem compareceu à Caverna Cavernosa. No entanto,
o carteiro subiu a Montanha Montanhosa deixando uma encomenda suspeita para o
Monstro: uma princesa. Mas não era uma princesa que tinha se oferecido
voluntariamente, mas sim, uma que foi enviada para o Monstro através da Associação
que anteriormente o advertira.
Porém, tal princesa não era como as outras, pois não gostava da vida luxuosa e
requintada no castelo, o que subverte a tradição e o imaginário social. No que se refere
aos pressupostos que cercam a feminilidade ligada aos atributos de uma princesa,
Xavier (2011, p. 594) aponta que “é interessante observar como essas adjetivações
compõem as representações de gênero que demarcam a feminilidade hegemônica”. Por

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outro lado, para Carrigan, Connell e Lee (1985), a defesa de masculinidade tem mais
relevância para os homens do que a hegemonia da feminilidade tem para as mulheres.

Para salvar a princesa do inofensivo Monstro Monstruoso que prefere sorvete ao


invés de devorar princesas, um príncipe é enviado também à Caverna Cavernosa para
salva-la. Sendo inexperiente e sem jeito para herói, o Príncipe desabafa com o Monstro
e a Princesa:

– Eu não tenho muito jeito pra herói, nem gosto de machucar ninguém
com a espada, mas precisava obedecer para não ser expulso da
Associação. Vocês sabem como é...
– Se sabemos! – Respondeu o Monstro com um suspiro também. –
Estamos nesta situação por causa da Associação dos Monstros, que
vive querendo me forçar a devorar princesas.
– Recapitulando – resumiu a Princesa –, temos aqui um monstro que
não quer devorar princesas, uma princesa que não quer ser salva do
monstro e um salvador que não consegue salvar ninguém (RIOS, 2004,
p. 25).

No desabafo do príncipe, ao dizer sobre o quão é incômodo manusear armas e


apelar para uma abordagem violenta, Muszkat (2018, p. 80) analisa que o homem,
inserido na sociedade patriarcal, “é construído para ser como um deus: centralizador,
conscientemente poderoso e previamente definido”. A autora também disserta sobre a
violência associada à defesa da masculinidade:

E é aí que a violência se configura como ferramenta de controle de sua


estabilidade, usada para esconder sentimentos de mágoa, tristeza,
depressão e medo capazes de provocar sintomas de angústia e
aniquilamento. A violência é um ato que pode ir da ameaça a
consumação de um dano (MUSZKAT, 2018, p. 80).

Desta forma, vislumbra-se nesse trecho e em demais passagens desta obra da


literatura infantil que, ao olharmos para as masculinidades, mas sem deixar os fatores
da feminilidade hegemônica também esboçada, Connell (1995, p. 189) endossa que
“não devemos pensar as masculinidades como construções fixas, mas sim entendidas
como capazes de serem permanentemente reconstruídas [...] Se gênero é produto
histórico, então ele está aberto à mudanças históricas”. Bento, indo ao encontro das
contribuições de Connell para os Estudos das Masculinidades, está convencida que:

Connell deseja resgatar o aspecto dinâmico e histórico das relações de


gênero, da possibilidade de contar a história de como uma dada
configuração surge, interagindo com outras, possibilitando notar quais
os critérios definidos socialmente para a construção da masculinidade
[...] (BENTO, 2015, p. 85).
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Por fim, imersos nesse enredo que trouxe à tona modelos divergentes de
masculinidades e feminilidades que performam outras maneiras de expressar e
vivenciar suas subjetividades, Silveira (1998, p. 17) pondera que tais obras para “vêm
tomar o posto das obras pedagogizantes, castradoras e, abordando temáticas mais
próximas ao cotidiano dos leitores e menos cerceadas por preocupações moralistas”.
A escritora Rosana Rios, o ilustrador André Neves, o Monstro Monstruoso a
princesa e o príncipe, providos de muito dinamismo e encanto típicos da literatura
infantil, promovem interlocuções com a infindável abordagem teórica problematizadora
das masculinidades hegemônicas, performativas, positivas e tóxicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se debruçando sobre tais pressupostos que guiam a difusão de uma literatura
infantil mais atenta às pluralidades, a pesquisa adentra e compactua com um campo de
reflexão em que a literatura infantil objetive representar de forma consciente e reflexiva
as possibilidades identitárias e diferentes masculinidades, foco deste trabalho, e as
demais escapatórias e balizas de gênero que tomam forma na sociedade.
É impossível ignorar o fato de que estejamos vivenciando a chamada “crise da
masculinidade” na contemporaneidade, a qual tem questionado os papéis exercidos
pelos homens e meninos e o quão essas exigências e performances são tóxicas. Para
os meninos, essa carga da masculinidade é pesada, uma vez que reprimir os
sentimentos e fada-los ao silêncio é uma prerrogativa da masculinidade hegemônica.
Poderia a literatura infantil ser um mecanismo disparador de modelos de masculinidades
positivas, subversivas e saudáveis? “O Monstro Monstruoso da Caverna Cavernosa” e
o aporte teórico despertam a reflexão de que a literatura infantil pode ser uma
ferramenta essencial para a introdução e debate sobre as relações de gênero, das
masculinidades, das feminilidades na infância.
A roupagem pluralista que a literatura infantil vem assumindo mostra que o
caminho para a transformação de uma cultura sexista, machista e misógina por meio
deste artefato cultural já é uma realidade. Entretanto, tal avanço não é sinônimo de que
tais desigualdades desapareçam em sua totalidade apenas por meio de uma leitura ou
estudo de uma obra que trazem personagens transgressores de gênero, ou seja, é um
processo que demanda de propostas interdisciplinares que envolvem mais do que o
livro em si, mas que envolvam diálogos aprofundados provenientes do mesmo.
Desta forma, a pesquisa em seu alcance objetivou salientar o enlace entre a
literatura infantil e os conflitos em se inserem as masculinidades hegemônicas e
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performativas, bem como as demais performatividades de gênero que se inserem nesta
problemática. A reflexão produzida em torno da temática abordada explicita e reivindica
por uma literatura infantil que abra cada vez mais seu espaço de difusão de
conhecimento cultural e social para enredos com perspectivas subversivas.

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O TRABALHO INFANTIL NO BRASIL DOS ANOS 50 – O QUE
CONTAM AS HISTÓRIAS INFANTIS DA REVISTA CACIQUE

Rosa M. Hessel Silveira, UFRGS, CNPq


Maria Helena Hessel, Fundação Paleontológica Phoenix
Liége Freitas Barbosa, UFRGS, CNPq

Eixo Temático: 7 - Temas polêmicos, interdições e censura na literatura infantil e


juvenil

Os meninos carvoeiros
Passam a caminho da cidade.
— Eh, carvoero!
E vão tocando os animais com um relho enorme.
(...)
— Eh, carvoero!
Só mesmo estas crianças raquíticas
Vão bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingênua parece feita para eles . . .
Pequenina, ingênua miséria!
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!
(MENINOS CARVOEIROS. Manuel Bandeira)

Considerações iniciais
O poema clássico de Manuel Bandeira, do qual um excerto nos serve de
epígrafe, ilustra a presença da temática do trabalho infantil no mundo da literatura.
Escrito em 1921, o poema traz uma visão lírica que acentua a pobreza, a pequenez e a
precariedade dos elementos – burrinhos, crianças, descadeirados, raquíticas... – e lança
um olhar de ternura para com os pequenos trabalhadores, que trabalham como se
brincassem.
Mas as próprias concepções sociais – e, de forma correlacionada, legais – do
trabalho infantil sofreram historicamente mudanças, não tendo sido tal trabalho sempre
considerado como atividade prejudicial na infância. Assim, o Código de Menores
estabelecido em 1927 no Brasil proibia o trabalho para menores de 12 anos – em um
país em que o trabalho infantil era largamente explorado. Vedava também aos menores
de 18 anos o exercício de trabalhos perigosos, ‘excessivamente fatigantes’ e, para
meninos menores de 14 e meninas/moças de menos de 18 o trabalho na rua. Já a
Constituição Brasileira de 1934 elevou a idade para proibição de trabalho – 14 anos,

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mencionando ainda a proibição de trabalho em indústrias insalubres para menores de
18 anos e mulheres. A Constituição de 1967 reduziu essa idade para 12 anos, enquanto
na Constituição de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, esse limite voltou
aos 14 anos. As flutuações legais não obscurecem, entretanto, a generalidade do
problema, ainda hoje presente no Brasil, primordialmente associado à condição de
pobreza familiar. Não é de se estranhar, portanto, o fato de que o trabalho infantil tenha
constituído (como exemplificado na epígrafe) - e ainda constitua - temática de diversas
produções literárias.
Por outro lado, há que se caracterizar o objeto cultural sobre o qual nos
debruçamos: trata-se da revista infantil Cacique, publicada pela Secretaria de Educação
do Rio Grande do Sul de 1954 a 1959 (1ª fase) e 1961-1963 (2ª fase), com ampla
circulação na infância gaúcha da época (BASTOS, 1994; CAMPUOCO, 1981;
SILVEIRA, ZUBARAN e HESSEL 2019). A revista, até hoje lembrada por seus leitores,
era composta por textos ficcionais (originais ou traduzidos), poemas, HQs, cartuns,
curiosidades, textos instrucionais, passatempos, concursos, piadas e textos com caráter
abertamente instrucional.
Saliente-se a importância das revistas dirigidas às crianças durante quase todo
o século XX, numa época em que a oferta de produtos culturais para lazer infantil era
consideravelmente menor do que atualmente. Simultaneamente divertindo, ensinando
e formando, as revistas infantis foram companheiras constantes das crianças letradas
das décadas em que foram publicadas, fornecendo-lhes imagens, palavras, ideias e
valores para chorarem, rirem, se emocionarem e se constituírem como sujeitos.
Pois bem: é no cruzamento entre a temática do trabalho infantil e o produto
cultural revista infantil, que se situa o presente trabalho. Seu objetivo é analisar as
diferentes formas com que o trabalho infantil é tematizado ou referido em historietas e
contos da revista Cacique, acima descrita. A análise abrange tanto o texto verbal, com
ênfase nos personagens humanos ou antropomorfizados (caracterização, ações, falas,
função no enredo), quanto as ilustrações, verificando-se o seu diálogo com o texto
escrito. Para tal análise, inspiramo-nos em análises anteriores, com outros focos, da
própria Cacique ou de outras revistas contemporâneas, assim como de histórias da
literatura infantil (ROSA, 2002; BRITES, 2004; GOUVEA, 2004; HANSEN, 2008;
SILVEIRA e HESSEL, 2018).

Breves apontamentos sobre o trabalho infantil nas histórias para crianças

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Gouvêa (2004), em detida análise que faz de livros infantis publicados no Brasil
no começo do século XX, de 1900 a 1937, dedica uma seção ao tema ‘Infância, escola
e trabalho’. Através de vários exemplos, a autora mostra como, em suas histórias, a
escola é relacionada à criança dos estratos superiores, enquanto ‘o trabalho infantil e a
mendicância são naturalizados, compreendidos como instâncias de formação social da
criança pobre, ausente da instituição escolar’ (GOUVÊA, 2004, p.126). Acrescenta,
ainda, que o trabalho é representado como ‘salutar à formação e ao desenvolvimento
da criança de camadas populares’; tal representação, comprova a autora, encontra eco
em outras esferas discursivas, como na imprensa da época.
Já Brites (2004), em sua análise da revista Sesinho (1947-1960), em grande
parte contemporânea da revista Cacique, embora publicada pelo SESI (Serviço Social
da Indústria), mostra a grande ênfase dada, na revista, ao trabalho, com especial
interesse na diversificação de profissões, na necessária preparação das crianças para
o trabalho e no aprofundamento da dicotomia trabalho/vagabundagem. A autora
menciona, inclusive, o caso de uma ilustração da revista que “destacou aspectos do
trabalho na infância, com uma criança vendendo jornal e outra engraxando sapatos,
demonstrando perspectivas de trabalho já assumidas nessa faixa etária” (BRITES,
2004, p.65).
Passando já para o nosso século, temos o trabalho de Silveira e Quadros
(2015), que, analisando a imagem de infância presente em um conjunto de livros dos
acervos compostos pelo PNBE para anos iniciais do ensino fundamental (2012 e 2014),
identificou três obras com protagonistas infantis que trabalham. A primeira é
“Carvoeirinhos”, de Roger Mello (2009), Prêmio Jabuti de Melhor Livro Infantil de 2010,
livremente inspirada no poema de Bandeira aqui escolhido como epígrafe.
Desenvolvendo uma narrativa do ponto de vista de um marimbondo, a narrativa focaliza
e atualiza as vivências dos pequenos carvoeiros. Outra obra selecionada para os
acervos do PNBE Anos Iniciais e que tem em destaque o trabalho infantil é o conhecido
livro de imagens “Cena de rua”, de Ângela Lago, obra também largamente premiada,
com 1ª edição em 1994. Na obra, a história do menino que trabalha vendendo frutas na
sinaleira, entre automóveis, é trazida em sua singeleza e dramaticidade. Por fim, a obra
“A vendedora de chicletes” (2013), de Fabiano Moraes e Claudio Cambra, inspirada no
conto “A pequena vendedora de fósforos”, de Andersen (1845), atualiza o sofrimento da
protagonista; a personagem central, agora, é uma garota que vende chicletes na cidade
grande, sem ser notada pelos passantes, numa situação de extrema tristeza e solidão,
cujo desfecho é mimetizado do conto do autor dinamarquês.

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Observe-se, pois, que, em décadas mais recentes – seguindo tendência que
emergiu nos anos 70 no Brasil, a questão do trabalho infantil, – frequentemente
associado à pobreza, ao desamparo e, mesmo, à situação de morar na rua – aparece
na literatura infantil (ou infantojuvenil) não mais sob um olhar fatalista de aceitação da
equação pobreza-trabalho infantil. Os autores das novas obras possivelmente foram
tocados por uma concepção de criança como sujeito de direitos e por uma vontade de
transfigurar esteticamente a infância que trabalha como realidade injusta e perversa.

Histórias envolvendo o trabalho infantil na Cacique


Inicialmente, observamos que a seleção das matérias obedeceu ao critério de
identificação de histórias ficcionais em que crianças (incluindo filhotes de animais
antropomorfizados) ou exercessem uma atividade caracterizada como trabalho (com ou
sem menção à remuneração) ou escutassem alguma lição referente ao tema. Foram
localizados 15 textos que correspondiam a este critério, todos da 1ª fase da revista;
curiosamente, não houve mais de um texto sobre o tema em uma mesma edição, mas,
de qualquer forma, durante todos os anos em que ela circulou – de 1954 a 1959 –
encontramos histórias com protagonistas infantis que se engajam no trabalho. Registre-
se, ainda, que, a exemplo das demais revistas infantis da época, assim como de muitos
dos livros para crianças que então circulavam, o trabalho é um valor reconhecido e
constantemente enfatizado nas páginas da revista Cacique, dentro de um projeto de
formação que perpassa suas diferentes seções. Para apresentação dos textos
selecionados por tal critério, os agrupamos por autores.
Em primeiro lugar, selecionamos cinco textos denominados ‘A história da capa’,
dentre os 54 assim denominados, os quais, conforme Silveira e Hessel (2018), “traziam
uma narrativa relacionada com as imagens das capas” da revista. O autor da maioria
deles e dos cinco que comentaremos, é Dirceu Antonio Chiesa, conhecido escritor,
jornalista e poeta gaúcho, em geral ilustrados pelo pintor português radicado no Brasil
José Borges Correia (pseudônimo Zeco), desenhista da Editora Globo em Porto Alegre
(Fig.1).
A primeira “A história da capa” que analisaremos (edição 17, de 1955), traz uma
cena de circo, onde, na função vesperal infantil, para a plateia, ‘surgiram cinco crianças:
duas menininhas e três garotos. A surpresa foi grande. A assistência não podia imaginar
o que iriam fazer aqueles pirralhos’. Liderados pelo menino Nico, ‘os pequenos artistas’
“puseram-se a trabalhar” (sic), em números tradicionais de circo, para encanto da
criançada presente que, finda a função, se mostra impaciente para chegar em casa e

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contar o que assistiram. O circo, como veremos, pode ser um lugar legitimado para o
trabalho infantil.
Já na história de capa do no 26 (1956), Agostinho, um menino “muito estudioso”,
nas férias “distraía-se aprendendo o ofício de sapateiro com seu tio Pelópidas, embora
ele pretendesse, mais tarde, ser engenheiro”, atendendo os fregueses na sapataria do
tio. Trata-se, pois, de um trabalho eventual, que não perturbaria a escolaridade do
menino.
Na edição seguinte (no 27), um garoto descrito como “pequeno carteiro”, mas
“todo enfarpelado e de caminhar garboso” entrega uma carta a uma menina em férias
escolares, no portão da residência dela. E a singela historieta se encerra com uma
evocação de modéstia do carteirinho: “A senhorita por certo nunca imaginou que um
humilde carteiro pudesse trazer-lhe tanta felicidade”.
Na história de capa da edição de n o 40 (1957) um menino pobre, mas “gentil”,
“modestamente vestido”, pega e devolve a carteira de uma garota que a havia deixado
cair numa rua do bairro onde mora. Em seguida, “Já um tanto longe, voltou-se e disse:
- Eu sou jornaleiro e amanhã passarei aqui para vender jornal ao senhor teu pai, está
bem?” A ilustração apresenta, surpreendentemente – pois não há menção a este
aspecto no texto –, um menino negro, descalço e com vestes remendadas. É preciso
ressaltar, por outro lado, que, sobre a protagonista menina, o narrador informa: “ajudava
a mãe no serviço de casa”.
Na edição de no 45 (do mesmo ano), encontramos a história de uma menina a
quem a mãe solicita que leve uma faca para o afiador afiar na rua. Laurinha, a menina,
se surpreende ao encontrar, não o velho afiador, mas “um garôto bem apessoado e com
ares de gente grande”, o que lhe faz pensar “com seus botões: - Menino ainda e já
ganha a vida sòzinho!”. Embora descrito como “bem apessoado”, o ilustrador não deixou
de colocar um remendo nas calças do garoto, como uma espécie de marca de origem
social.

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Figura 1. Capas das edições da revista Cacique que ilustram os textos de Dirceu A. Chiesa com temática
relacionada ao trabalho infantil: no 17 (ago/1955; desenho de M.A.C.) e nos 26, 27, 40 e 45 (respectivamente
de dez/1955, mai/1956, mar/1957 e 15/06/1957, com ilustrações de José Borges Correia).

Nas cinco curtas narrativas de Dirceu A. Chiesa analisadas, vimos meninos (e


meninas, apenas no caso do circo) trabalhando, ou de forma mais contínua (jornaleiro,
afiador, carteiro) ou eventual, no caso do sapateiro, sendo que quase sempre tal
situação é associada à falta de recursos financeiros familiares. Se nos voltarmos para
as próprias figuras que ilustram os textos analisados, observa-se que elas expandem e
acrescentam interpretações que os ilustradores fizeram dos enredos. As quatro capas
de José Borges Correia (edições 26, 27, 40 e 45), mostram curiosamente o mesmo
enquadramento das personagens em pano de fundo de cores-pastel, demonstrando que
o cenário narrativo é pouco relevante (Fig.1). Além disso, há muitos elementos similares
entre elas, como: todas as meninas têm cabelos loiros, olhos azuis, vestem saias, têm
atitudes quase passivas e ficam à esquerda da ilustração; todos os meninos têm cabelos
pretos, olhos pretos, estão fazendo algum trabalho ou realizando alguma ação (ativos)
e situam-se à direita da capa. Como mencionamos, dois garotos representados têm
remendo nas calças, e o menino negro é representado descalço (sinais de pobreza). Já
a capa criada por M.A.C. (n o 17) para a cena de circo traz figuras de crianças brancas
atuando no circo e vestidas de acordo com os papéis que desempenharam na sessão
circense.
Quatro tramas incluindo o tema do trabalho infantil foram criadas pela professora
e tradutora gaúcha Iris Strohschoen. Em ‘Pompom, o coelho de Páscoa’ (n o 12, 1955;

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Fig.2a), é atualizada a trama dos animaizinhos que crescem e são estimulados por seus
pais (ou apenas um) a irem ganhar suas vidas. Neste caso, é Pompom, um coelhinho
que é encaminhado para a “Escola Superior de Coelhos de Páscoa”, pois é talentoso e
seu pai pondera com ele que “deve o coelho ter muita habilidade e, também, estudar
muito, a fim de aprender o ofício” de pintor. Depois de um ano de estudos, Pompom
presta os exames finais, elaborando e pintando um ovo de Páscoa com primor. A autora,
no seu afã moralista, apresenta, para contraste, a narrativa do fracasso de Dentuça,
outro aluno da escola, que, em vez de se aplicar à aprendizagem, come a massa dos
ovos e acaba por ser reprovado no exame final. Já Pompom conquista o diploma, a
fama e, ao voltar para casa, muitas encomendas. Ainda que não explícita, a lição do
conto é clara: o esforço e a dedicação na aprendizagem de um ofício podem ser
recompensados com um trabalho rentável.
Já em ‘O presente’ (no 21, 1955; Fig.2b), Iris Strohschoen narra a história de um
menino, filho de mãe viúva e pobre, que quer obter dinheiro para comprar um presente
de Natal para ela: “O trabalho, pensou Rogério, é sempre o meio mais digno de se
conseguir dinheiro, e eu já sou capaz disso.” (p.6). Deste modo, acertou com uma
vizinha para limpar o jardim, informando-lhe: “como só estudo pela manhã, tenho as
tardes de folga”. “Recebeu pelo seu trabalho vinte cruzeiros”; depois, vendeu jornais
velhos que encontrara no galpão de sua casa, e isto lhe rendeu “a quantia de doze
cruzeiros’. Por fim, bafejado pela sorte, encontrou na rua uma carteira “que continha
uma grande soma em dinheiro”, a qual devolveu ao dono recebendo “cinqüenta
cruzeiros como prêmio, pela nobreza de seu caráter.” Assim, ao final, tinha dinheiro
suficiente, fruto de seu trabalho, de seu bom caráter e de sua sorte - entendemos nós -
para comprar o presente de Natal desejado.
A mesma autora assina a história ‘Dunguinha’ (n o 53, out/1957, Fig.2c), que tem
como protagonista o menino Tonico, que planeja e realiza a ação de sair com seu burro
Dunguinha para vender lenha e orquídeas na vila e assim obter dinheiro para comprar
roupas para ele e sua irmã irem à escola. Assim, ele evita que sua mãe venda o burrico,
único bem da família: “Tonico e Dunguinha saíam cedinho tôdas as manhãs a juntar
lenha, vendendo-a depois na vila” (p.21); o menino consegue, por fim, a soma suficiente
para realizar sua meta, “graças à sua idéia e, conseqüentemente, ao fruto de seu
trabalho” (p.21).
A outra narrativa de autoria de Iris Strohschoen é a última de uma trilogia
publicada em 1957 com o protagonista de apelido Chocolate, descrito como um
“pretinho retinto”, “gentil com todo o mundo, sempre pronto para executar pequenos

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encargos, fazer compras na venda do sr. Manuel, entregar recados, enfim, o que viesse.
Tinha um coração de ouro sob aquela camisinha desbotada, mas limpa, pois seus pais
eram pobres e muitas vêzes faltava o dinheiro para comprar roupa nova” (n o 35, p.1).
Na história intitulada ‘Chocolate no circo’ (n o 54, 30 de outubro de 1957, Fig.2d), o garoto
quer ir ao circo, mas, sem dinheiro para pagar a entrada do espetáculo no final de
semana, consegue alguns recados para entregar, o que lhe rende o suficiente para
realizar seu intento. Fica tão entusiasmado com o que vê que, inclusive, sonha com
trabalhar no circo (como ‘domador de feras’), mas já faz uma ressalva: “iria junto com o
circo, agora que estava em férias” e “Quando se iniciassem as aulas, deixaria o circo e
voltaria para casa”. Procura o dono do circo, que o admite para serviços gerais, dando-
lhe tarefas sucessivas no primeiro dia; por fim, é quase atingido por um leão, o que o
leva a se decidir a abandonar a lida e sorrateiramente voltar para casa.

a b c

d
Figura 2. Páginas das histórias analisadas de autoria de Iris Strohschoen na revista Cacique: a - ‘Pompom,
o coelho de Páscoa (no 12, 1955, p.1; ilustrações anônimas); b - ‘O presente’ (no 21, 1955, p.6; ilustrações
anônimas); c - ‘Dunguinha’ (no 53, 1957, p.22; ilustrações de Luiz Francisco Lucena Borges); d - ‘Chocolate
no circo’ (no 54, 1957, p.16; ilustrações de Lourdes Terezinha Comparsi).

Outras quatro narrativas que incluem o trabalho infantil em seus enredos são de
mais quatro autores também gaúchos. A edição de n o 50, de 30 de agosto de 1957, traz
uma espécie de alegoria ou parábola, sob o título ‘Três temperos bons’ de autoria do

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escritor e professor Lothar F. Hessel (p.6-8; Fig.3a). Na história, um rei pernoita na casa
de um modesto lenhador e lá encontra seis crianças rosadas e felizes comendo uma
simples sopa. Perguntando a razão disso, ouve a resposta da mãe, que alude a três
temperos. O primeiro é assim explicitado: “um pouco de trabalho, todos os dias, para as
crianças; …” (p.7). Na conclusão, lê-se: “O trabalho nos alegra o corpo e a vida, e é o
melhor dos temperos na comida.” (p.8). Ainda que o tom alegórico e a contextualização
da história em tempo e lugar longínquos diminuam a concretude da referência ao
trabalho infantil, é indubitável a associação trabalho-criança.
Na edição de no 52, de 30 de setembro de 1975, encontramos ‘As sapatilhas da
Vovó’ (p.13-16; Fig.3b), de autoria da pintora, ilustradora e escritora infantil Helga Trein.
Narra a história da menina Verinha que quer saber por que sua avó usa sapatilhas tão
surradas, quando tem outras mais novas. A avó explica que as velhas sapatilhas foram
um presente de seus filhos de quando ela ficou viúva e tiveram dificuldades financeiras.
Na ocasião, Fernando, então com 12 anos, e Helena, com 11, trabalharam vários dias
limpando o jardim de um vizinho para amealhar o dinheiro suficiente para comprá-las e
assim aquecer os pés de sua mãe nos frios dias de inverno. Novamente, temos a
temática do trabalho eventual que as crianças fazem, com um objetivo específico –
neste caso, bem altruísta.
A história criada pela desenhista, ficcionista infanto-juvenil e produtora Lia
Monterra (pseudônimo de Eunice Canini) relacionada ao trabalho infantil é ‘Cacique, o
pequeno vaqueiro’, publicada na edição de n o 68 de 30 de maio de 1958 (p.11-13;
Fig.3c), e tem como protagonista um personagem criado por seu irmão Renato Canini
para histórias em quadrinhos: um indiozinho dos pampas do Rio Grande do Sul,
caracterizado como muito engenhoso e valente, nomeado Cacique (SILVEIRA e
HESSEL, 2019, p.1302). A pedido de seu pai, o pequeno Cacique vai à fazenda de um
amigo para conter um estouro de boiada. O dono espantou-se: “- A tarefa não é muito
difícil para um menino? - Eu sou pequeno, replicou o indiozinho, mas não desconheço
as lides do campo.” E reuniu facilmente todo o gado tocando um clarim. A
verossimilhança do fato de um indiozinho ter aprendido na taba (cf. o texto) a lidar e
reunir o gado não está em questão.

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a b c

d
Figura 3. Algumas páginas ilustradas de histórias aqui analisadas da revista ‘Cacique’: a - ‘Três temperos
bons’ de Lothar F. Hessel (no 50, 1957, p.6; ilustrações de Vanetti Dani); b - ‘As sapatilhas da Vovó’ de
Helga Trein (no 52, 1957, p.15; ilustrações de Vanetti Dani); c - ‘Cacique, o pequeno vaqueiro’ de Lia
Monterra (no 68, 1958, p.11; ilustrações de Renato Canini); d - ‘A aranha verde’ de Cloelcy Terezinha Pereira
(no 92,1959, p.16; ilustrações de Helga Trein).

Por fim, temos a narrativa de autoria de Cloelcy Terezinha Pereira Fortes, na


edição de no 92 (31 de maio de 1959, p.16-20; Fig.3d), classificada em 2º lugar no
Concurso Literário Infantil instituído pela revista em junho de 1958 (n o 69): ‘A aranha
verde’. Observe-se que este é o único texto infantil entre os 15 analisados, o que não
chega a lhe infundir um teor diverso do de outras histórias da revista. Conta a história
de uma pequena aranha que sustentava a si e a suas 22 irmãs órfãs fiando o dia inteiro
para fazer rendas. “Seus trabalhos eram muito procurados e bem pagos, pois aranha
verde tinha fama de boa rendeira.” (p.16). Deste modo, ela participa de um concurso de
tecelãs da floresta, vencendo-o e tornando-se a Tecelã Real.
Ainda há duas histórias cuja autoria não é identificada. Na edição de n o 2, de
maio de 1954, encontramos uma narrativa em HQ sobre ‘Pimpo no circo’ (p.19-23;
Fig.4), na qual um “negrinho moleque de cabelo encarapinhado, nariz achatado”,
bastante preguiçoso (como vemos na trama seguinte, ‘Pimpo guloso’ (edição n o 3, junho
de 1954, p.26) e curioso (em ‘Pimpo valente’, n o 4, julho de 1954, p.1), se fantasia de
leão e faz um número numa vesperal de circo, ganhando vinte cruzeiros, como já fazia
outro garoto há mais tempo.

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Figura 4. Algumas páginas ilustradas da narrativa de autoria anônima na revista ‘Cacique’ intitulada ‘Pimpo
no circo’ (no 2,1954, p.19 e 21-23; ilustrações anônimas).

Também de autor anônimo é ‘O grande pintor’ (no 64, de 30/03/1958, p.1-4), na


qual o coelhinho Joca auxilia seus familiares a pintar ovos de Páscoa. “Quando encheu
um cêsto de ovinhos, […] Seu coração bateu mais forte, ao lembrar-se que tinha
contribuído para a felicidade de outrem…” (p.3-4). E a história termina com uma
quadrinha (p.4): ‘“Prezados amiguinhos, / Sou um grande pintor! / Façam suas
encomendas/ Pois estou ao seu dispor.”
Nesses textos narrativos, quando os protagonistas são humanos, observa-se um
claro viés de gênero, com a predominância de meninos trabalhando, quer auxiliando
meninas em posição social aparentemente mais alta (diversas ‘A história da capa’), quer
buscando resolver problemas financeiros familiares (como em ‘Dunguinha’) ou atender
um desejo pessoal também ligado à falta de dinheiro disponível (por exemplo, ‘O
presente’, ‘Pimpo no circo’ e ‘Chocolate no circo’). Se meninas são mencionadas
realizando uma tarefa, em geral o fazem em companhia de um menino, como em ‘A
história da capa’ da edição de n o 17, ‘Três bons temperos’ e ‘As sapatilhas da Vovó’. A
pobreza ou a falta de dinheiro é mencionada de alguma forma em 11 das 15 narrativas,

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frequentemente motivada pela morte dos pais ou de um deles, justificando de certa
forma o trabalho infantil. …
Em relação à questão das etnias, o predomínio de personagens é branco, ainda
que, conforme o padrão da época, tal fato não fosse mencionado nos textos. Um menino
indígena, Cacique, aparece em uma história e é preciso lembrar que se trata de
personagem de aproveitamento constante nas edições da revista. Como vimos, três
meninos negros estão presentes nas histórias, ora como protagonistas (Pimpo e
Chocolate) ora por uma leitura que o capista faz da história de um menino pobre (edição
n. 40). A representação imagética de Pimpo e Chocolate (figs. 2d e 4) se alinha à
caracterização física típica de personagens negros nos quadrinhos e revistas da época,
com pele muito escura, lábios grossos e olhos esbugalhados (GOUVÊA, 2004).
O cenário das histórias são principalmente o lar, a rua do bairro ou a vila/região
onde os protagonistas residem, mas também um circo temporariamente aí instalado.
Por vezes, a narrativa traz a cena de um ambiente escolar (‘Pompom o coelho de
Páscoa’) ou de uma oficina de trabalho (‘A história da capa’ da edição n o 26). De
qualquer modo, são em geral ambientes familiares às crianças leitoras da década de
50. Na história ‘Dunguinha’ (Fig.2c), a p.22 traz ilustração importante – o menino entrega
tudo que ganha para sua mãe e ela guarda, para, ao final, contar o montante, numa
evidente lição de economia. Em relação às atividades no circo – ambiente de lazer
infantil de grande importância na época -, registre-se que, conforme Martins (2016), elas
se inserem no chamado trabalho infantil no âmbito artístico, historicamente aceito com
naturalidade pela sociedade. O trabalho infantil artístico, mesmo com amparo legal,
incide em uma ambiguidade que ainda hoje se percebe em relação às “estrelas infantis”,
por exemplo.
Para além das Histórias de capa, os desenhos que ilustram as demais narrativas,
independentemente de seu ilustrador, procuram retratar algum ou alguns
acontecimentos descritos na trama, com cenários narrativos integrais. De maneira geral,
os protagonistas aparecem realizando as tarefas descritas no texto, com exceção das
ilustrações de “Chocolate no circo” e de “Três temperos bons”. Entretanto, as
personagens singelamente figuradas expandem a história, mostrando-as alegres e
sorridentes, vestidas de forma simples, sem discriminação. Fogem a esta descrição as
ilustrações de “Cacique, o pequeno vaqueiro”, que traz o traço caricatural de Renato
Canini na representação do indiozinho de sua criação, com simples tanga e penas
vermelhas.

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Há alguns animais representados – coelhos e aranhas – e antropomorfizados,
vestindo roupas e utilizando utensílios humanos (óculos, mala, mochila, viola). Em
‘Pompom, o coelho de Páscoa’ (Fig.2a), as ilustrações laterais ao texto, com diversos
coelhos sobre ou ao lado de uma ‘estrada’, sugerem o passar dos acontecimentos
narrados. Em ‘A aranha verde’ (Fig.3d) e ‘O grande pintor’ temos ilustrações de Helga
Trein, com seus pequenos e finos traços formando figuras muito agradáveis ao olhar
infantil. Em todas as histórias, as ilustrações mostram as personagens com alegria na
azáfama de seus trabalhos.

Conclusões
O breve percurso analítico que fizemos sobre as quinze matérias da revista que
encenam ou ilustram o trabalho infantil, nos permite traçar algumas conclusões.
Observa-se, em primeiro lugar, em harmonia com publicações para crianças desde o
início do século XX até os anos 60, a ênfase no valor formativo do trabalho e no caráter
de aprendizado do mesmo para a criança, com uma glorificação correspondente; o
trabalho é visto quase como atividade ‘paradidática’, complemento da escola na
formação do caráter da criança. Há uma associação frequente entre trabalho infantil x
pobreza x necessidade; observa-se a recorrência do estereótipo da pobreza advinda da
viuvez da mãe com filhos, o que, talvez, se conecte com a escassez de leis de proteção
social na época.
Por outro lado, consistindo a revista Cacique em uma publicação da Secretaria
de Educação e Cultura do RS, a alusão à necessidade de estudo e frequência à escola
está presente em suas páginas. Neste sentido, em várias histórias em que os
personagens realizam trabalhos eventuais, há referências à conciliação entre a escola
e o trabalho: trabalha-se nas férias ou no turno inverso da escola. Não mais se observa,
como Gouvêa (2004) sublinhou em sua análise de obras do início do século XX, uma
clara dicotomia entre a escola, para crianças de classes sociais médias, e o trabalho,
para crianças de classes populares. Entretanto, em algumas Histórias da capa – como
as que mencionam os ofícios de afiador de faca, carteiro e jornaleiro desempenhados
por crianças, silencia-se a questão de escolarização destas últimas.
Outro aspecto a ressaltar é que, no caso de trabalhos eventuais, menciona-se,
em algumas histórias, a prática da poupança para uma finalidade maior, apresentando-
se o trabalho como fator formador da criança também nos hábitos de planejamento e
economia. Registre-se, ainda, a predominância de personagens meninos, reservando-
se às meninas o trabalho doméstico ou um papel coadjuvante, auxiliar dos primeiros.

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Por fim, é preciso sublinhar que não se encontra, nas matérias analisadas,
qualquer referência ao sofrimento de crianças que trabalhem ou a eventuais prejuízos
desta prática ao desenvolvimento infantil, como veio a se observar na literatura infantil
brasileira das últimas quatro décadas (SILVEIRA e QUADROS, 2015).
Vimos, assim, que, fruto de sua época e de sua inserção como produto cultural
educativo para crianças, a revista Cacique também trazia lições sobre o trabalho,
embutidas em histórias que entretinham e, simultaneamente, ensinavam.

Referências
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revista da garotada gaúcha (1954-1963). Educação [PUC/RS], Porto Alegre, 17(27): 85-
100. 1994

BRITES, Olga. Infância, trabalho e educação: a revista Sesinho (1947-1960). Bragança


Paulista: Editora Universitária São Francisco, 161p. 2004

CAMPUOCO, Antônio. Era uma vez... uma revista chamada Cacique. Porto Alegre:
Correio do Povo, p.10, 21 de junho de 1981

GOUVÊA, Maria Cristina Soares de. O mundo da criança - A construção do infantil na


literatura brasileira. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 281p. 2004

HANSEN, Patrícia. A arte de formar brasileiros: um programa de educação cívica nas


páginas da revista O Tico-Tico. In: Ana Maria Bandeira de Mello MAGALDI & Libânia
Nacif XAVIER (orgs). Impressos e História da Educação: usos e destinos. Rio de
Janeiro: 7 Letras, p.45-58. 2008

MARTINS, Lucas Podenciano. Trabalho infantil artístico: a infância por trás dos
holofotes. Ambito Jurídico. N. 153. Ano XIX. 2016. Disponível em:
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-153/trabalho-infantil-artistico-a-infancia-
por-tras-dos-holofotes/. Acesso em 18 de setembro de 2020.

ROSA, Zita de Paula. O Tico-Tico: meio século de ação recreativa e pedagógica.


Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 271p. 2002.

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel; QUADROS, Marta Campos de. Crianças que sofrem:
representações da infância em livros distribuídos pelo PNBE. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, n.46, p. 175-196, jul./dez. 2015.

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel; HESSEL, Maria Helena. Histórias para crianças
brasileiras – a revista Cacique e suas “Histórias da Capa”. Congresso Internacional de
Americanistas, Salamanca, 56, Universidad de Salamanca, Resúmenes, 2p., 2018

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel; HESSEL, Maria Helena. Diálogo de linguagens em HQs
humoristicas de Renato Canini na revista infantil Cacique – década de 50. In: Debus,
Eliane Santana Dias et alii (orgs.). (R)ex(s)istências literárias na contemporaneidade.
Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 1298-1313. 2019

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SILVEIRA, Rosa Maria Hessel, ZUBARAN, Maria Angélica; HESSEL, Maria Helena. “Só
ensina coisas úteis/proporciona alegria”: apontamentos sobre a materialidade da revista
infantil Cacique, de 1954 a 1959. MÉTIS: História & Cultura, Caxias do Sul, v.18, n.36.,
p 131-151. 2019.

Edições analisadas da revista Cacique: 2 (1954); 12, 17, 21 (1955); 26, 27(1956); 40,
45, 50, 52, 53, 54 (1957); 64, 68 (1958); 92 (1959).

Site: JORNAL DO SENADO (2015). “Até lei de 1927 crianças iam para a cadeia”.
Arquivos. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/arquivo/arquivos-
pdf/ate-lei-de-1927-criancas-iam-para-a-cadeia. Acesso em: 02 de julho de 2020.

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O ÁUDIO LIVRO DE LITERATURA INFANTIL COM
PERSONAGENS NEGROS E SUA IMPORTÂNCIA PARA A
FORMAÇÃO IDENTITÁRIA DO LEITOR

Izabel Cristina Barbosa de Oliveira, IFAL – Piranhas

Eixo Temático: GT 7 – Temas polêmicos, interdições e censura na literatura infantil e


juvenil

Considerações Iniciais
Por muito tempo observa-se uma valorização por perfis de princesas e
personagens que não seguem outros padrões a não ser os das classes dominantes,
expressando maior desenvolvimento além de impor seus estilos de beleza.
Esse padrão acabou por influenciar várias crianças a quererem se parecer com
determinada princesa, uma vez que elas sempre aparentavam estar em melhores
situação e posição social do que outras com outro tipo de perfil.
Dessa forma, cria-se o estereótipo de papéis fixos e imutáveis de acordo com
o grupo social ao qual o indivíduo pertence, incutindo a ideia de que não é possível sair
da condição social na qual ele está no momento e limitando seus anseios e
perspectivas.
Os livros infantis constituídos de apenas um padrão de referência acaba por
valorizar um modelo em detrimento a tantos outros, limitando as culturais que existem
no mundo a apenas uma, a única, a padrão, a do dominante europeu.
Esse estereótipo é fruto de uma cultura de eugenia existente no Brasil do final
do século XIX até o início do século XX, e que promoveu a exclusão da população negra
em nossa sociedade.
No entanto, aos poucos, isso vem sendo quebrando nas últimas duas décadas
a partir da introdução de personagens negros, índios e tantos outros grupos que foram
esquecidos e rejeitados por anos, tanto nos meios de comunicação de massa, quanto
na literatura infantil.

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Referencial Teórico
A literatura infantil se constituiu como gênero literário durante o século XVII
(JOVINO, 2017). Por muitos anos a literatura infantil foi produzida buscando expressar
o poder dos grupos dominantes, impondo o estereótipo cultural maioritário,
desconsiderando outros grupos étnicos como os povos indígenas e os negros,
estabelecendo o modelo branco como a projeção de uma estética perfeita (TONINI,
2002). De acordo com Turchi (2004, p.38)

a literatura infantil, como conceito, teve que romper barreiras impostas


pela hegemonia do estudo da literatura estabelecida para ganhar
algum reconhecimento. Consolidada como gênero e expandindo-se
em autores e obras, a literatura infantil faz parte do mapa da crítica
institucional e ocupa hoje um espaço importante no mercado de livros
literários.

Nessa nova perspectiva, até 1920 os personagens negros eram ausentes ou


eram sempre referidos como escravos (GOUVÊA, 2005). A partir de 1980 a literatura
infantil começa a romper um pouco com as formas de representação da personagem
feminina negra (SOUSA, 2005).
De acordo com Jovino (2004, p.4)

a literatura voltada para o público infantil e juvenil surgiu no Brasil no


final do século XIX e se difundiu no início do século XX, entretanto as
personagens negras aparecem com mais evidências ao final da
década de 1920 e início de 1930, sempre mostrando suas condições
subalternizadas e inferiorizadas

A imagem dos negros não deixou de ser vinculada a um período,


aparentemente estagnado da história, sempre menosprezando sua produção cultural e
intelectual, limitando-o a papeis secundários, subalternos e sem importância na
narrativa. Isto era decorrente, de acordo com Tonini (2002), com a imposição e
valorização de um modelo branco estético, ideal de beleza pautado na predominância
de imagens de pessoas de pele branca, seja nos livros didáticos, nas revistas ou,
principalmente, na televisão. “O modelo branco é a projeção de uma estética perfeita,
por estar associado a uma cor padrão da economia de mercado” (TONINI, 2002, p. 105).
Infelizmente, essa exclusão social não surgiu do nada. Aparentemente, no fim
do século XIX, o Brasil dava muita importância a ideia de eugenia, ou seja, um
melhoramento genético, e a “mistura racial” poderia degenerar a sociedade, convicção
criada por viajantes europeus que vinham ao Brasil e mencionada por Schwarcz (1996).
E no início do século XX se debatia sobre o processo de embranquecimento da

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população brasileira. Dessa maneira, de acordo com Sabóia (2013, p. 3) a problemática
em torno da construção da identidade negra
está diretamente ligada às ideias de eugenia, que quer dizer boa
geração. A ideia de eugenia se fez presente no final do século XIX e
começo do século XX no Brasil e teve grande repercussão na negação
e, até mesmo, na legitimação da exclusão social de uma parcela da
população brasileira, gerando consequências que repercutem até os
dias de hoje.

Romper com essa ideia incrustada na sociedade não é fácil. Sem embargo, a
literatura pode ter um importante papel capaz de transmutar essa realidade. Mostrando
que qualquer pessoa, independentemente de sua cor, pode alcançar os maiores e
melhores patamares desejados. A produção da literatura infantil com personagens
negras já demonstra o prelúdio dessa nova era.
Foi possível perceber que, quando os livros infantis com personagens de
crianças negras começam a surgir, iniciou-se a romper com um padrão hegemônico,
cristalizado ou inferiorizante de representação (HALL, 2010) do negro na sociedade.
Como complementa Debus (2012, p.143)

a relação entre o produtor do texto de recepção infantil (o adulto) e o


leitor (adulto/criança) promoveu, em seu nascedouro, uma construção
textual e um protocolo de leitura no qual a criança, compreendida como
receptor passivo, por meio de personagens modelares, absorve
exemplos de bom comportamento e valores a serem seguidos. Por
outro lado, aquele que alicerça os modelos – os protagonistas das
narrativas – apresenta características vinculadas aos grupos
mantenedores do poder, por certo não contemplando a diversidade
étnica, silenciando a representação de personagens negras,
indígenas, asiáticas, entre outras.

“A arte, incluindo-se aí a literatura, não poderia ficar imune às transformações


sociais” (JOVINO, 2017, p.3). Desta maneira, com a expansão da literatura infantil de
seus novos personagens que expõem a cultura negra e sua riqueza, é possível perceber
que os leitores agora podem criar uma identidade real, observando suas semelhanças
e valorizando suas raízes.
Para Castells (1999, p. 18)

a elaboração de uma identidade empresta seus materiais da história,


da geografia, da biologia, das estruturas de produção e reprodução, da
memória coletiva e dos fantasmas pessoais, dos aparelhos do poder,
das revelações religiosas e das categorias culturais. Mas os indivíduos,
os grupos sociais, as sociedades transformam todos esses materiais e
redefinem seu sentido em função de determinações sociais e de
projetos culturais que se enraízam na sua estrutura social e no seu
quadro do espaço-tempo.

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Podemos constatar nos livros selecionados, onde se utilizam afrodescendentes
como personagens principais nas histórias, que há várias referências as suas origens,
tradições, costumes, estilos de roupas e penteados que revelam toda uma identidade
existente nesse grupo. E que antes, era diminuída, menosprezada ou esquecida nos
livros de histórias infantis.
Nessa perspectiva, para o desenvolvimento desse estudo foram escolhidos 3
(três) áudio livros: as tranças de Bintou, o cabelo de Lelê e menina bonita do laço
de fita. O áudio livro foi escolhido uma vez que é notória a limitação do acervo de
materiais específicos nas bibliotecas das escolas públicas. Dessa maneira, o professor
pode baixá-los da internet, trabalhar as imagens, desenvolver a leitura do texto escrito
e explorar esse gênero, ainda a pouco, desconhecido pelos estudantes. Todos esses
livros encontram-se disponíveis de maneira gratuita no youtube.
É importante destacar que a questão identitária é visível desde a capa dos
livros. Podemos observar a valoração da cultura africana a partir dos penteados, dos
cabelos cacheados, das roupas e seus padrões de cores e dos personagens.
Na visão de Jovino (2017, p.6)

nos Estudos Culturais a representação é uma das práticas centrais na


produção da cultura. Referenciada nesse campo, entenda-se por
representação um sistema de significação ou atribuição de significado
a pessoas e coisas por meio da linguagem, cultural e socialmente
construídos.

A aceitação da cultura do outro, não significa que há uma desvalorização da


minha ou vice-versa. Não é também uma questão de tolerância, mas sim, um processo
de reconhecer o outro e de respeitá-lo. Na visão de Coll (2002, p. 41)

Aceitar a diversidade cultural não é um ato de tolerância para com o


outro, distinto de mim ou da minha comunidade, mas o reconhecimento
desse outro (pessoal e comunitário) como realidade plena,
contraditória, como portador de saber, de conhecimentos e práticas por
meio dos quais ele é e tenta ser plenamente.

Com a criação e propagação de livros que mostram essa diversidade cultural


existente em nosso país, espera-se que haja uma maior equidade no que se refere à
cultura, padrões e valores difundidos nas diversas mídias sociais.
Esse processo pode corroborar com a quebra dos estereótipos construídos
pela sociedade ao longo dos séculos. Se existe um padrão desejado de ser alcançado,
significa que o outro modelo disponível demonstra ter aspectos negativos para não ser
o escolhido. Na visão de Piza (1998, p. 92)

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a formulação de um estereótipo não aponta para a função apenas de
categorizar o outro, mas de compor certos traços de nossa própria
identidade. Esta identidade, que desejamos sempre positiva, vai sendo
construída por oposição a, ou partilha de, traços distintivos sustentados
pelos estereótipos com que nos reportamos aos outros.

Um dado muito relevante presente em todos os livros é a exposição do cabelo


crespo, por parte das personagens femininas, e dos penteados com tranças e “birotes”
são uma aceitação e, também, uma reação contra a postura social na qual “as respostas
aos estilos de penteado naturais usados por mulheres negras revelam comumente como
o nosso cabelo é percebido na cultura branca: não só com feio, como também
atemorizante” (HOOKS, 2005, p. 5).
Como podemos perceber nas imagens abaixo, a capa do primeiro livro a ser
analisado, as Tranças de Bintou, inicia-se um rompimento com os padrões
hegemônicos impostos por vários séculos na sociedade e na literatura infantil.

Figura 1: Capa do livro as Tranças de Bintou

Fonte: https://www.saraiva.com.br/as-trancas-de-bintou-152090.html

Na figura 1, a personagem Bintou aparece usando os seus tradicionais “birotes”


no cabelo, porém, seu sonho é utilizar tranças como sua irmã mais velha. Percebemos
que a personagem não aparece como uma escrava, mas sim, como uma menina livre
brincando com os pássaros.
Ao longo da história é possível perceber imagens muito coloridas e, assim, a
valorização das tradições africanas. Além da irmã Fatou (figura 2), outra personagem
importante é a avó de Bintou, que é muito admirada por sua sabedoria, adquirida com
a idade.
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Figura 2: Bintou e a irmã Fatou

Fonte: https://www.saraiva.com.br/as-trancas-de-bintou-152090.html

Na figura 2, podemos perceber a utilização de conchas nas produções de


bijuterias, além de compor parte das tranças da irmã, junto a pedras coloridas,
mencionadas na fala de Bintou na página anterior, como referência aos acessórios
utilizados para compor suas vestimentas e penteados.
Com a leitura desse livro é possível expor as crianças a uma multiplicidade de
diferentes pertencimentos sociais, éticos (e raciais), religiosos, familiares e gêneros
(GOUVÊA, 2006).
No outro livro escolhido para análise, Menina bonita do laço de fita, ao longo
da história, vamos nos apropriando de características, hábitos e culturas antes
relegadas a datas comemorativas, esquecidas e desvalorizadas cotidianamente.
Nas páginas, amplamente ilustradas, percebemos diversas comparações
positivas, que enaltecem o cabelo, a pele e os hábitos. Levando-nos a conhecer e a nos
aprofundar em um novo universo. Antes estávamos limitados a um modelo único,
faltando-nos essa diversidade cultural tão rica e presente em nosso país.
Na perspectiva de Coll (2002, p. 39)

quando falamos sobre a diversidade cultural estamos falando sobre


pessoas e comunidades humanas que, por razões e motivos muito
diferentes, desenvolveram modos especiais de viver, que são
criadores de sentido não apenas material e individual, mas também
espiritual e coletivo.

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Nesse contexto, podemos ver uma mudança de paradigma se estabelecendo
nas produções de livros infantis com personagens negros. Observe a figura 3, logo
abaixo.

Figura 3: Páginas do livro Menina Bonita do Laço de Fita

Fonte: https://serravallenaafricadosul.blogspot.com/2013/10/diversidade-etnico-
cultural-brasileira.html

No livro Menina Bonita do Laço de Fita, pode-se perceber a valorização das


características dos afrodescendentes: os olhos escuros, os cabelos negros e
cacheados. A personagem principal acaba sendo comparada a uma princesa ou fada
africana.
Essas comparações são de extrema importância uma vez que nos livros mais
antigos, os personagens afrodescendentes eram sempre pobres, escravos, sem
aspirações e com futuro incerto, o que levava o leitor a buscar o outro tipo, o que vencia
na vida.
Com essa mudança de perspectiva, as crianças agora podem se identificar com
qualquer personagem que acreditam ser mais interessante, independentemente de sua
cor. Na visão de Veiga-Neto (2003, p.5)

[...] mais do que nunca, têm sido freqüentes e fortes tanto os embates
sobre a diferença e entre os diferentes, quanto a opressão de alguns
sobre os outros, seja na busca da exploração econômica e material,
seja nas práticas de dominação e imposição de valores, significados e
sistemas simbólicos de um grupo sobre os demais.

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Isso já indica que atualmente existe maior preocupação não só em preservar,
mas também em ampliar a visão das pessoas sobre as várias culturas que fazem parte
de nossa sociedade brasileira em busca da igualdade social. Na perspectiva de Souza,
Sousa e Pires (2005, p.1), “a leitura da literatura infanto-juvenil pode contribuir com a
promoção da igualdade étnico-racial em ambientes educativos”.
No terceiro áudio livro escolhido, figura 4, o Cabelo de Lelê, podemos observar
ainda mais a caracterização dos personagens buscando as semelhanças com a cultura
africana a partir da narração da história e o próprio cabelo de Lelê.

Figura 4: Página do livro o Cabelo de Lelê

Fonte: https://pt.slideshare.net/naysataboada/o-cabelo-de-lele

A utilização de padrões que não mais estão se perpetuando nas histórias


infantis quebram com o preconceito implícito, no entanto, tão ensinado às crianças ao
longo da história. Na visão de Bandeira e Batista (2002) o preconceito está ligado a uma
relação social e indica um modo de relacionar-se com o outro a partir de sua negação
ou desvalorização de sua identidade e através de uma supervalorização da própria
identificação.
O sentimento de pertencimento ou estranhamento de coletividades gera
inclusões e exclusões com base naquilo que nos é semelhante e diferente. Essas, por
sua vez, representam relações hierárquicas e relações de poder que definem, de forma
maniqueísta, o belo e o feio, o bom e o ruim.

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Considerações Finais
As personagens negras dos livros infantis, atualmente, são vistas de maneira
diferentes, pessoas capazes de conquistar outros lugares na sociedade que vão além
dos estereótipos perpetuados há vários anos.
A cultura afro-brasileira é valorizada de diversas formas: pelo cabelo, pelo
modo de pensar, pelas cores, pelos nomes, pelas roupas e outros aspectos que são
mostrados e ensinados a partir da leitura dos livros infantis.
Com a quebra de paradigmas a partir da criação de personagens infantis
negros pode-se vislumbrar aspectos culturais riquíssimos de outros grupos sociais,
antes ignorados, promovendo situações de respeito e convivência igualitária, em prol da
equidade social.

Referências
BANDEIRA, Lourdes; BATISTA, Anália S. Preconceito e discriminação como
expressões de violência. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, 1º semestre de 2002.

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lendo dois títulos. Currículo sem Fronteiras, Florianópolis, v.12, n.1, pp. 141-156,
Jan/Abr 2012.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Tradução Klauss brandini Gerhardt. São


Paulo: Paz e Terra. 1999.

COLL, Agustí Nicolau. Propostas para uma diversidade cultural intercultural na era da
globalização. São Paulo, Instituto Pólis, 2002. 124p. (Cadernos de Proposições para o
Século XXI, 2)

GOUVÊA, Maria Cristina Soares. Imagens do negro na literatura infantil brasileira:


análise historiográfica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.31, n.1, p. 77-89, jan./abr.
2005.

_____. A literatura como fonte para a história da infância: possibilidades e limites. In:
FERNANDES, Rogério, FARIA FILHO, Luciano Mendes, e LOPES, Alberto (Orgs.).
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HALL, Stuart. El espectáculo del “Outro”. In: HALL, Stuart. Sin garantías. Trayectorias
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HOOKS, Bell. Alisando o nosso cabelo. Trad. Lia Maria dos Santos. Revista Gazeta de
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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
JOVINO, Ione da Silva. Personagens negras na literatura infantil brasileira de 1980 a
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racial no Brasil. 2013. Disponível em: https://acaoeducativa.org.br/confira-os-artigos-
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humanos/. Acesso em: 01 de ago. 2020.

SOUSA, Andréia Lisboa de. A representação da personagem feminina negra na


literatura infantojuvenil brasileira. In: Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei
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Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
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Brasileira: O que é? Para que Serve? Como Trabalhar? Subsídio - uma idéia para o
dirigente municipal de ensino. São Paulo: Gruhbas – Projetos Educacionais e
Culturais, p.3-4, nº 12, 2005.

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VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura, culturas e educação. Revista Brasileira de Educação.


Maio/Jun/Jul/Ago. Número 23. 2003.

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
A CRIANÇA DIANTE DA MORTE: UMA POSSIBILIDADE DE
TRABALHO COM A OBRA LITERÁRIA A MULHER QUE MATOU
OS PEIXES, DE CLARICE LISPECTOR

Mary Ellen Yurie Irisuna, IFPR


Gabriela Fujimori da Silva, IFPR

Eixo Temático: Temas polêmicos, interdições e censura na literatura infantil e juvenil

Considerações iniciais
A morte é um tema de constantes discussões. Atualmente, em meio aos ideais
capitalistas de produção e a virilidade necessária para ser aceito na sociedade, o tema
é cada vez mais distanciado dos ciclos de conversas.
Nesse contexto, falar sobre a finitude é algo problemático, especialmente
quando se envolve o público infantil que, normalmente, é rodeado por eufemismos que
podem trazer sérias consequências, como exemplifica a psiquiatra Elizabeth Kübler-
Ross, em seu livro Sobre a Morte e o Morrer. Após a morte do irmão, relataram a uma
menina que Deus o havia levado para o céu por amar as crianças. Essa menina, “ao se
tornar mulher, jamais superou sua mágoa contra Deus, mágoa que degenerou em
depressão psicótica quando da perda de seu próprio filho, trinta anos mais tarde”
(KÜBLER-R0SS, 1996, p. 19).
Assim, considerando-se a dificuldade em torno do tema e a complexidade em
se abordar o assunto com as crianças, uma linguagem trabalhada, intencionalmente
construída, pode contribuir com essa tarefa. O texto literário, nesse sentido, em suas
formas próprias de construção, pode oportunizar uma melhor discussão do tema, bem
como contribuir na construção desses saberes com o público infantil. A literatura infantil,
em sua capacidade plurissignificativa, trata de assuntos que remetem à vida cotidiana
do ser humano e, dentre as situações, estão as circunstâncias de vida e morte.
Este trabalho, de caráter teórico qualitativo, baseia-se em análises
bibliográficas, reúne estudos de diferentes áreas do conhecimento, tais como filosofia e
psicanálise, à luz da literatura, a fim de levantar informações e discutir a relação entre o
tema morte e literatura infantil. Para tanto, o trabalho está organizado da seguinte forma:

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na primeira seção, apresentam-se considerações gerais sobre o conceito de morte. Na
segunda seção, discute-se barreiras que envolvem o falar da morte para o público
infantil. Já na terceira seção, que se subdivide em duas partes, analisa-se o tema da
morte na literatura infantil e a contribuição para a clarificação do tema, bem como análise
da obra A mulher que matou os peixes (1999), de Clarice Lispector, como possibilidade
de trabalho.

A criança diante da morte


Criou-se o estigma de que morrer é ruim, seja pelas obscuras circunstâncias
que o envolvem - afinal, angustia-se o ser pela incerteza que contextualiza o tempo,
lugar e forma que a morte se dará - seja pelo contexto da vida social que exige pessoas
saudáveis, felizes, em condições de produzirem e contribuírem com a economia. No
entanto, dado que a morte é um evento inerente a vida, a negação não é benéfica.
Conforme analisa Kübler-Ross (1999), uma criança de cinco anos que perde a
mãe tanto se culpa pelo desaparecimento da figura materna, como se zanga porque
também considera ter sido abandonada. Quem morre transforma-se, então, em um ser
que a criança ama e odeia com igual intensidade por essa dura ausência.
Ainda de acordo com a psiquiatra, o fato de permitirem que as crianças
continuem em casa, aos redores do morto, e participem da conversa, das discussões e
dos temores, faz com que não se sintam sozinhas na dor, dando-lhes o conforto de uma
responsabilidade e luto compartilhados. É uma preparação gradual, um incentivo para
que encarem a morte como parte da vida, uma experiência que pode ajudar a crescer e
amadurecer.
A tomada de consciência da finitude, de que há um limitado período de vida, é
um importante passo para que a compreensão chegue até as crianças. Afinal, não há
um estabelecimento de idade mínima ou máxima para se deparar com o morrer e a
morte. Considerando-se que a expectativa de vida gira em torno de setenta anos, ainda
que pareça um curto espaço de tempo, é possível criar e viver uma história única, e
singularmente tece-se a trama da história humana (KÜBLER-ROSS, 1996, p. 27).
Isso é paradoxal a uma sociedade em que a morte é vista como tabu, em que
os debates sobre elas são considerados mórbidos e as crianças afastadas sob pretexto
de que seria “demais” para elas. Muitas vezes são encaminhadas para casa de
parentes, sendo-lhes contadas mentiras não convincentes de que “mamãe foi fazer uma
longa viagem” ou outras histórias incríveis, no intuito inicial de amenizar, evitar ou
retardar o sofrimento da perda por meio da morte. No entanto, a criança percebe algo

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de errado e, consequentemente, a desconfiança nos adultos tende a crescer conforme
novas histórias vão sendo contadas por diferentes parentes. Há ainda a tentativa de
desviar a atenção do ocorrido e evitar perguntas dando-lhes presentes como um “mero
substituto de uma perda que não pode atingi-la”. Paiva (2011, p. 19) analisa: “Por que
não se fala das coisas tristes, se elas existem? Será que se falássemos dessas coisas
não seria mais fácil enfrentá-las, pensar em soluções?”. Esse questionamento foi de sua
filha Juliana de doze anos, que a questionara o porquê de não se falar claramente sobre
a morte.
Ninguém está imune às perdas, especialmente em relação a morte, e isso inclui
as crianças. A perda pode ser de um ente querido ou, por exemplo, referente ao
acontecimento de uma circunstância não prevista; todas essas situações levam a
necessidade de apoio e auxílio contínuo por parte do adulto. Assim, educá-las de modo
que tenham consciência e controle emocional parece ser o caminho mais adequado
para que elas sejam capazes de expressar seus sentimentos.
Os adultos tendem a vivenciar emoções não tão agradáveis devido às
dificuldades enfrentadas em um contexto mais amplo de experiências. Nas crianças isso
não acontece com tanta frequência. É incomum encontrar uma criança de seis anos
refletindo sozinho, imerso em pensamentos internos que a incomodam de alguma forma
e ansiosa com questões existenciais.
Supõe-se que a inocência, assim como a inicial maturidade intelectual e as
suas preocupações, unicamente lúdicas, deveriam garantir-lhe uma alegria inquebrável.
Isso não significa que as crianças não tenham o direito de sentir-se mal. Sim, elas o
têm, e de fato, isso é mais comum do que se imagina; conveniente em certos momentos
e inevitável em muitos outros casos. Por exemplo, elas podem se sentir melancólicas
pela perda de um familiar ou de seu animal, pela mudança de colégio, por um pequeno
desentendimento com algum colega.
A morte está presente, inclusive, nos desenhos animados dos quais as crianças
tanto gostam, no entanto, assumindo como característica a possibilidade de reviver,
como observa Paiva (2011):

A ideia mágica da imortalidade aparece quando, por exemplo, o Pica-


Pau é atropelado por um trem, fica completamente estendido no chão
como folha de papel e, em questão de instantes, toma sua forma
original e sai por aí aprontando das suas. Ou nas aventuras de Tom e
Jerry —ao explodir uma bomba na boca do Tom, Jerry fica totalmente
chamuscado e logo se recupera para novas investidas contra seu rival.
Ou ainda os ídolos de filmes, como o James Bond ou Indiana Jones,
que passam por tantas aventuras, enfrentando situações de perigo

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inusitadas e saem ilesos, ainda fazendo amor com lindas mulheres. Aí
está a ideia de imortalidade. (PAIVA, 2016, p.23)

Nesse sentido da imortalidade, figurado em muitos desenhos como


exemplificado, pode-se realçar a dificuldade de lidar com as perdas ao criar um
imaginário de eterno retorno. Paiva aponta três componentes básicos do conceito de
morte, sendo eles a universalidade, que se relaciona ao fato de que todos os seres vivos
morrem; a não funcionalidade, compreendido que na morte todas as funções vitais
cessam e, por fim, a irreversibilidade, sendo o entendimento de que a morte não é
temporária, mas sim definitiva; quem morre não volta, não há mágica que faça a pessoa
“desmorrer”.

A morte na literatura infantil: Representações da morte


A leitura de histórias que abordam o tema da morte pode, sem dúvida, constituir
uma oportunidade para criar condições para que, num ambiente familiar ou mesmo
escolar, crianças e adultos possam falar sobre a morte. Paiva (2016) observa a
cumplicidade entre a criança e o adulto no ato de compartilharem uma história. Além de
que, a vida não se compõe apenas de momentos felizes e como a autora afirma, as
crianças sabem disso; portanto, os temas “pesados” devem ser abordados, até porque
estão escancarados na vida, por meio da mídia, das redes sociais, nas ruas ou nos
hospitais.
Na maior parte dos contos de fadas a morte aparece para demonstrar um
suspense, dar asas a emoção. Normalmente é colocada, mas para que depois isso seja
reversível como a história de a Branca de Neve que é salva por um beijo de amor
verdadeiro ou então Chapeuzinho Vermelho que, depois de ser devorada, é resgatada
com vida da barriga do lobo.
No entanto, há também histórias que tratam da morte da forma como
definitivamente são: inevitáveis e fatídicas, como é o caso de contos como A pequena
vendedora de fósforos, de Andersen, ou ainda a obra contemporânea de Clarice
Lispector, A mulher que matou os peixes (1999), a qual será discutida com mais
detalhes na próxima seção, a fim de evidenciar uma possibilidade de tratar da morte a
partir de uma narrativa literária. Essa obra apresenta no enredo perdas definitivas
representadas por meio da morte de animais de estimação, especialmente, ao tratar da
macaquinha Elisete, que fica terrivelmente doente e acaba morrendo.
Diante do exposto, percebe-se que a leitura do texto literário propicia ao leitor
infantil o contato com situações que são vividas dialeticamente e que são capazes de

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fazê-lo refletir sobre suas próprias vivências. Assim, a leitura é um estímulo para
desenvolver a capacidade crítica de interpretação e interação social, oferecendo um
contato com o seu mundo imaginário. Para Bettelheim, a literatura é um meio de ajudar
a criança a canalizar informações que lhes ajudam a construir suas próprias identidades:

Vi-me confrontado com o problema de deduzir quais experiências na


vida de uma criança são as mais adequadas para promover sua
capacidade de encontrar significado nela; para dotar a vida em geral
de mais significado. Com respeito a essa tarefa, nada é mais
importante que o impacto dos pais e das outras pessoas que cuidam
da criança; em segundo lugar, vem a nossa herança cultural, quando
transmitida à criança de maneira correta. Quando as crianças são
pequenas, é a literatura que canaliza melhor esse tipo de informação
(BETTELHEIM, 2002, p. 10).

Para o psicanalista, a criança ganha com a experiência da literatura ao acessar


um significado mais profundo por meio das situações narradas. Ainda analisa que, para
contribuir com esse crescimento pessoal, a história precisa estimular a imaginação
infantil: “ajudar a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar em
harmonia com suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades
e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que as perturbam”
(BETTELHEIM, 2002, p. 11).
Assim, é importante que a literatura confronte a criança honestamente com as
dificuldades humanas, atuando como um agente de socialização. Dessa forma, as
narrativas literárias colocam à disposição da criança o mundo através do livro, em que
realidade e fantasia estão ligadas; permitem a criança entrar em um mundo que ela
mesma construiu por meio da sua imaginação, oferecendo-lhe condições de se
aventurar, usar o raciocínio e cultivar a liberdade.
Para Paiva (2016), a literatura infanto juvenil tem função humanizadora. O ouvir
e o contar histórias é uma necessidade da comunicação humana, pois, conforme é
evidenciado, compartilham-se experiências, sentimentos e emoções por meio das
histórias. Constata-se ainda que podem ajudar as crianças a elaborar e superar
dificuldades psicológicas e emocionais complexas, ao permitir a possibilidade de
construção de um elo entre o mundo do livro e o a realidade externa, na qual situa-se o
leitor.
Percebe-se que é comum aos estudiosos o pensamento de que não há uma
resposta única sobre como lidar com o tema da morte com as crianças. Mas é
consensual que sejam disponibilizadas oportunidades de reflexão e diálogos sobre o
tema, pois possibilitarão questionamentos e autoconhecimento.

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O livro é interativo e o protagonista é o próprio leitor. Na tríade autor-obra-
leitor, efetiva-se a proposta que elucida Paiva e Bettelheim, na medida em que as
narrativas são construídas com essa tripla participação. As obras literárias possibilitam
uma aventura proporcionada individualmente, por meio de diferentes ações que
estimulam a criatividade e descobertas, de forma libertadora e interativa. No transcorrer
da leitura, no percorrer do “bosque”, termo utilizado por Umberto Eco ao referir-se ao
mundo que adentramos na leitura do texto literário, o pequeno leitor é convidado a fazer
uma atividade diferente, que o faz refletir sobre sua própria vida, sentimentos, desejos
e frustrações.

A mulher que matou os peixes: uma possibilidade de abordagem com a obra de


Clarice Lispector
Como evidenciado por vários estudiosos, o texto literário executa papel
fundamental na abordagem de temas complexos com o público infantil. Assim, nesta
seção analisa-se uma obra voltada para as crianças da escritora Clarice Lispector,
considerada pela crítica como uma das escritoras brasileiras mais importantes do século
XX, a qual traz como tema a problemática da perda: a despedida, a separação, a morte
definitiva.
Já no início da obra A mulher que matou os peixes, a narradora-personagem
apresenta-se como a mulher que cometeu esse ato contra os peixes: ela os matou;
ideia sugerida no próprio título da obra e que problematiza o diálogo que é colocado
com o interlocutor-leitor, quanto a perdoar ou não a narradora pelo fato: “Essa mulher
que matou os peixes infelizmente sou eu [...]. Mas prometo que no fim deste livro
contarei a vocês, que vão ler essa história triste, me perdoarão ou não” (LISPECTOR,
1999, p. 5).
A partir da situação da morte dos peixinhos vermelhos, que por descuido da
narradora acabaram morrendo, outras perdas, separações e mortes de animais são
apresentados no decorrer da história. Todas perdas significativas, que vão marcando a
vida da personagem.
O Dilermando é um dos cachorros citados. Por meio dele, ilustra-se uma
separação, que apesar de não ser necessariamente uma morte, também traz a
sensação de luto. Há o sofrimento pela perda do ente querido que, mesmo vivo, passará
a ser ausente:

Sabem como tive que me separar de Dilermando? É que eu tinha de ir


embora da Itália e ir para um país chamado Suíça. E nesse país os
hotéis não deixam entrar cachorros. Então escolhi uma moça muito boa
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para cuidar dele. Na hora de me despedir dele, fiquei tão triste que
chorei. E Dilermando também chorou (LISPECTOR, 1999, p. 11).

A narradora relata que sofreu, assim como o cachorro Dilermando, mas era
inevitável tal separação e foi preciso passar por essa dor. Por meio desse ocorrido, é
possível refletir com a criança a inevitabilidade de algumas separações e que elas são
sentidas em forma de luto. Isso pode possibilitar a discussão sobre ocorrências da vida
humana que precisam ser transpostas e que são comuns nas vidas das pessoas.
Outro caso apresentado é o da macaquinha Lisete, a perda foi ainda maior,
porque primeiro houve o estágio da doença, causando muita tristeza a todos que
acompanhavam o estado de saúde de Lisete. Depois, veio a morte, intensificando a
dificuldade de lidar com aquele complexo e doloroso momento.
Em um período de Natal, a narradora conta ter escolhido a macaquinha como
presente: “Escolhi uma miquinha suave e linda, que era muito pequena. Estava vestida
com saia vermelha, e usava brincos e colares baianos. Era muito delicada conosco, e
dormia o tempo todo. Foi batizada com o nome de Lisete” (LISPECTOR, 1999, p. 12).
Estabelece-se então um forte laço entre Lisete e a narradora-personagem,
trazendo-lhe uma enorme alegria, até que a macaquinha adoece e tudo muda:

Ah, meu Deus, como nós gostávamos de Lisete! Enrolei Lisete num
guardanapo e fomos de táxi correndo para um hospital de bichos. Lá
deram-lhe imediatamente uma injeção para ela não morrer logo. A
injeção foi tão boa que até parecia que ela estava curada para sempre,
porque de repente ficou tão alegre que pulava de um canto para outro,
dava guinchos de felicidade, fazia caretinhas de macaco mesmo,
estava doida para agradar a gente. Descobrimos, então, que ela nos
amava muito e que não demonstrara antes porque estava tão doente
que não tinha força (LISPECTOR, 1999, p. 13).

A narradora explica sobre os cuidados que foram tidos com Lisete, que então
realmente parecia estar melhor e enfatiza o amor existente em ambas as partes: da
narradora, sua família, e de Lizete. Mas quando passou o efeito do medicamento, a
macaquinha ficou ruim novamente: “O médico então disse uma coisa horrível: que Lisete
ia morrer” (LISPECTOR, 1999, p. 13).
Assim, a morte acontece de maneira inversa ao que muitas vezes aparece em
narrativas infantis, nas quais um acontecimento mágico é capaz de reverter a situação.
Na obra de Clarice Lispector, a morte chega e é definitiva, mesmo buscando
alternativas, não foi possível evitar a partida de Lisete. A morte chega como ponto final:

No dia seguinte o veterinário telefonou avisando que Lisete tinha


morrido durante a noite. Compreendi então que Deus queria leva-la.
Fiquei com os olhos cheios de lágrimas e não tinha coragem de dar

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esta notícia ao pessoal de casa. Afinal avisei, e todos ficaram muito,
muito tristes (LISPECTOR, 1999, p. 14).

Há referência ao Cristianismo, na passagem: “Compreendi então que Deus


queria leva-la [...]”, e a tristeza aparece como um sentimento natural quando se perde
quem se ama, e que acontece a todos, como ocorreu a família da narradora: “[...] todos
ficaram muito, muito tristes”. No entanto, nesse aspecto, percebe-se que esse
eufemismo vai de encontro ao que sugerem muitos especialistas ao indicarem a
negatividade de se atribuir a culpa a Deus ou inventar situações ilusórias que podem
desencadear frustrações ainda maiores com o passar do tempo.
Segundo Kübler-Ross, a criança vê a morte como algo que não é permanente,
tendo a perspectiva de que poderá voltar a ter contato com a pessoa falecida,
assimilando a situação à um divórcio, em que é possível voltar a ver um dos pais, por
exemplo: “Muitos pais se lembrarão de frases ditas por seus filhos como ‘vou enterrar
meu cachorrinho agora e ele vai se levantar de novo na primavera, junto com as flores”
(KÜBLER-R0SS, 1996, p. 15).
No entanto, com o tempo, começa-se a perceber que não há essa onipotência
e que a morte não pode ser anulada; percebemos que “nossos desejos mais fortes não
têm força suficiente para tornar possível o impossível” (KÜBLER-R0SS, 1996, p. 15),
como ocorre à Lisete, que apesar de todos os esforços, morreu.
Na fase adulta do indivíduo também é difícil falar sobre a morte e a falta de
manejo com o assunto morte e luto, acaba sendo, na maioria das vezes, a maior causa
de sofrimento, pois a pessoa enlutada acaba sendo pressionada pelo meio, às vezes
por ela mesma, a sair desta situação o mais breve possível, assumindo atitudes e
movimentos contrários ao que se sente e vive naquele momento.
Ademais, a obra de Clarice Lispector traz outras situações em que a separação
com os bichinhos de estimação, que se tornaram parte da família, foi necessária ou
mesmo inevitável. Assim, o texto permite discussões sobre a morte e o morrer, sobre
os sentimentos de angústia, medo e frustração, todas por meio de metáforas que se
relacionam a perdas de animais na vida da narradora.

Considerações finais
Diante do exposto, percebe-se que, geralmente, a morte não é assimilada
como uma questão natural e que faz parte do ciclo da vida, causando uma frequente
fuga de se falar da finitude humana, além de situações complexas que ocorrem em
situações de morte de alguém próximo. Se para os adultos o tema já causa desconforto
e distanciamento, as crianças vivem o reflexo disso e são evitadas ao máximo.
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Em meio a essa dificuldade, a literatura surge como uma importante ferramenta
para ajudar na compreensão desse tema com as crianças, sendo considerada por
muitos estudiosos como um elo poderoso, um veículo para o inconsciente. O luto não é
algo improvável, a morte não é inevitável, assim não podem ser retirados do mundo das
crianças. Ignorar os medos, frustrações e sofrimentos impede que a criança tenha
estado de maturação saudável e real.
Quando o adulto nega a morte diante da criança, dificulta a elaboração da
primeira etapa do processo de luto. Paradoxalmente, muitas vezes, o próprio adulto,
dotado de experiências e de quem se espera amparo, vive sentimentos de conflito ao
tentar evitar que a criança sofra. A discussão, reflexão e questionamento por meio do
texto literário é um caminho apontado como sugestão para promover o contato e
amadurecimento quanto ao tema da morte.
No entanto, nem toda obra literária traz a morte como efetivamente é. Os
encantamentos, a magia, em muitas narrativas, são capazes de reverter a morte. Na
perspectiva de levar a criança a questionar e refletir sobre o evento inerente à vida
humana, essas situações em que se pode alterar o percurso da morte não são
adequadas.
Já a obra literária de Clarice Lispector, A mulher que matou os peixes, conforme
demostrado, apresenta-se como uma alternativa para tais reflexões ao narrar situações
de importantes perdas e respectivos sentimentos desencadeados, por meio das
vivências da narradora.
Dessa forma, a literatura contribui com as discussões desse tema que,
definitivamente, não é banal nem fácil de lidar, a se tornar um pouco mais leve para
quem perde alguém ou algo de muito importante. Falar sobre a morte na literatura infantil
é uma alternativa para se desenvolver o tema de maneira natural, ao passo que o livro
traz representações da vida humana com seus ganhos e perdas. Por meio do modo de
construção própria e única da literatura, a linguagem plurissignificativa, as situações de
perdas e finitude humana podem ser dialogadas de maneira mais acessível a esse
público específico.

Referências
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de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

KÜBLER-ROSS, Elizabeth. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fonte, 1996.

LISPECTOR, Clarice. A mulher que matou os peixes. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é a morte. Ed. Brasiliense 1985.

PAIVA, Elizabeth Lucélia. A arte de falar da morte para crianças: a literatura infantil
como recurso para abordar a morte com crianças e educadores. São Paulo: Ideias e
Letras, 2011.

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AS BRUXAS CONTINUAM INCOMODANDO? REFLEXÕES
SOBRE INVESTIDAS RECENTES CONTRA O ‘MANUAL
PRÁTICO DA BRUXARIA EM 11 LIÇÕES’, DE MALCOLM BIRD

Edgar Roberto Kirchof, ULBRA, CNPq


Rosa M. Hessel Silveira, UFRGS, CNPq

Eixo Temático: Grupo Temático 7 : Temas polêmicos, interdições e censura na


literatura infantil e juvenil

Considerações iniciais
As bruxas são personagens fantásticas existentes na mitologia e na tradição
de várias culturas, com características peculiares a cada contexto. Na cultura ocidental,
notadamente na Idade Média, figuras históricas que se desviavam de certos padrões de
conduta eram acusadas de bruxaria e, sobre elas, recaíam perseguições. Presentes nos
contos populares de origem europeia, essas personagens foram sendo apropriadas
também pela literatura para crianças, a partir dos séculos XVII e XVIII, o que não
significa que suas características como personagens tenham permanecido constantes,
englobando apenas traços de maldade e poderes mágicos. Entre outros deslocamentos
relativos ao clichê da bruxa malvada, na literatura infantil dos anos 1980 e seguintes, as
personagens bruxas têm se constituído como fonte de humor, graças a suas trapalhadas
e ações exóticas, em obras de grande sucesso editorial. Alguns exemplos são os livros
com a personagem Bruxa Onilda (Enric Larreula e Roser Capdevila), traduzidos em
vários países, e, no caso brasileiro, obras de Sylvia Orthof e Eva Furnari, entre outras.
A partir deste breve pano de fundo histórico, este artigo pretende apresentar e discutir
a polêmica gerada pela condenação da obra ‘Manual Prático da Bruxaria em 11 lições’,
de Malcolm Bird, realizada publicamente por uma pastora evangélica brasileira, em
2016, a qual viria a se tornar Ministra de Estado posteriormente, em 2019. O vídeo que
apresenta a investida contra vários livros de literatura infantil viralizou no ano de sua
investidura no cargo, sendo então amplamente comentado.
A partir de referências à presença da personagem bruxa na literatura para
crianças, de uma análise da obra condenada e da manifestação da Ministra, assim como

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de suas repercussões nos meios culturais, pretendemos discutir a articulação entre a
investida contra a obra específica e o panorama mais geral de censura a livros infantis
com personagens fantásticos e maravilhosos, no Brasil, principalmente em função de
uma visão religiosa baseada no fundamentalismo cristão.

O ‘Manual Prático da bruxaria em 11 lições’


Malcolm Bird escreveu e ilustrou este ‘Manual Prático de Bruxaria’, com o título
original de The Witch's Handbook, publicado primeiramente em 1984, no Reino Unido,
e traduzido posteriormente para muitas línguas. Autor conhecido de tirinhas em revistas
e jornais, o autor transfere para a obra o espírito jocoso e bem humorado que geralmente
anima aquele gênero, o que se corporifica tanto nas ilustrações caricaturais e cômicas
- pelo exagero da ‘feiura’ das personagens bruxas e inserção de outros detalhes
exóticos, quanto no texto verbal que as acompanha e/ou integra. O tom parodístico e
intencionalmente humorístico perpassa a obra, o que já é, de certa forma, anunciado no
agradecimento do autor ao amigo que, tendo lhe dado a ideia de elaboração da obra,
lhe ‘proporcionou várias horas divertidas de trabalho’. Não se trata de uma narrativa,
mas de um manual sobre características e atividades de bruxas, sempre representadas
de acordo com o estereótipo de mulheres velhas, feias, narigudas e tripulando uma
vassoura. Como se pode ver na Fig. 1, que reproduz o Sumário do livro e um exemplo
de abertura de capítulo, a obra se organiza em 12 capítulos (lições), que vão desde
descrições ilustradas e bem humoradas de uma possível casa de bruxa, do jardim, da
cozinha, de roupas típicas, de passatempos, de festas (com dicas de decoração e de
brincadeiras para o Halloween, por exemplo), até algumas abordagens de possíveis
bruxarias, simpatias e feitiços, cujo potencial doutrinador dos leitores aproxima-se de
zero, como veremos.

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Figura 1: Reprodução das páginas 5, 42 e 43 de ‘Manual Prático de Bruxaria’

As bruxas trazidas no manual são mostradas como pouco sociáveis, desleixadas


(referências a sujeiras integram inúmeras figuras), egoístas, desastradas e vulneráveis;
pregam peças (que frequentemente dão errado) e interagem com seus animais
próximos: gato preto, lesmas, aranhas, minhocas, coruja, sapos e morcegos. Em muitas
páginas, a sensação de repulsa ou nojo é acionada pelas ilustrações, que contribuem
para um humor do gosto das crianças, considerando a preferência infantil pelo
escatológico. Muitas receitas ou instruções, entretanto, ainda que ilustradas por
desenhos engraçados, parecem ser factíveis. A figura 2 traz o ‘armário secreto’ da
bruxa, com seus ingredientes (alguns asquerosos), assim como um exemplo de receita.

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Figura 2: Reprodução das páginas 16 e 23 de ‘Manual Prático de Bruxaria’

Já na figura 3, temos algumas passagens que seriam mais específicas da figura


lendária da bruxa – a vassoura e os feitiços, mas é fácil perceber o enfoque jocoso dos
mesmos. Na abordagem da ‘vassoura’, o autor, depois de ensinar a montar uma
vassoura comum (que poderia servir simplesmente para varrer), tanto investe no
nonsense – o aspirador de pó, ‘vassoura moderna’, não funciona bem como meio de
transporte – quanto no apelo ao ridículo (altura do primeiro ‘voo’) e na alusão à ineficácia
da vassoura como meio de deslocamento aéreo (a bruxa se machucou inteirinha na
possível queda...). Em relação aos feitiços, todos eles são plenos de sugestões irônicas
quanto à sua efetividade, apelando à repulsa provocada por odores nauseabundos ou
a sugestões que contêm obviedades, por exemplo. Em suma: não passam de truques
inofensivos e engraçados, sem um efetivo potencial de dano real às pessoas. Observe-
se certa puerilidade nos objetivos dos feitiços (ou na interpretação que a personagem
bruxa faz deles): para fazer chover, para fazer ventar, para ficar invisível etc. Em grande
parte, o humor presente no livro emerge da subversão das expectativas que circulam
socialmente sobre o poder e eficácia das bruxarias, assim como da profusão de detalhes
engraçados nos ambientes e nas personagens representados.

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Figura 3: Reprodução das páginas 77, 48 e 49 de ‘Manual Prático de Bruxaria’

Um breve percurso por sites brasileiros ligados à leitura na rede aponta uma
percepção generalizada do tom humorístico do livro. Assim, no conhecido site Skoob,
em que leitores variados comentam suas leituras, registra-se o número de 349 leitores
da obra, e, entre os poucos comentários/resenhas, localiza-se o de um leitor que
caracteriza a obra como ‘um manual de arrepiar e matar de rir qualquer aprendiz de
feiticeiro’. Já no blog do conhecido clube de leitura A Taba, uma resenha da obra
anuncia: ‘Os leitores vão dar boas risadas com as ideias malucas deste manual que
quer mesmo é brincar com o poder nada poderoso dessas senhorinhas que aprontam
o tempo todo.’

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A polêmica desencadeada por uma pregadora fundamentalista
Em 2016, a pastora fundamentalista Damares Alves realizou palestra para uma
congregação religiosa sobre livros que estariam sendo distribuídos pelo Ministério da
Educação e/ou Governo do Estado de São Paulo, para escolas brasileiras e que, em
sua opinião, estariam propagando religiões africanas e bruxaria. Repetidamente, ela
afirma nesse encontro - gravado e divulgado amplamente através do site Youtube - que
a leitura dessas obras, nas escolas, constituiria um desrespeito à fé cristã. O vídeo
(https://www.youtube.com/watch?v=PBQUBUNovsA) com essa fala acabou viralizando,
gerando uma série de controvérsias desde então. No início do vídeo, os ataques se
dirigem ao livro Eleguá, de Carolina Cunha. Abaixo, é possível visualizar duas capturas
de tela, nas quais Alves pretende mostrar, aos seus espectadores, o livro que passa a
demonizar:

Figura 4: Capturas de tela do vídeo de Alves


https://www.youtube.com/watch?v=PBQUBUNovsA

Como se pode perceber a partir das transcrições de sua fala no vídeo,


reproduzidas abaixo, Alves, ao se referir à lei 11.645/2008, inicia fazendo uma afirmação
distorcida sobre a relação entre cultura e religião, sugerindo que existiria uma intenção
oculta na lei, a saber, ensinar, às crianças, religiões africanas, sob o pretexto de ensinar
culturas africanas:

Nós temos duas leis agora recentemente, irmãos, que foram


sancionadas recentemente, uma em 2003 e uma em 2008, que obriga
o ensino da cultura afro e da cultura indígena nas escolas. Ok. Legal.
Mas a escola tem que ensinar realmente sobre a cultura indígena e a
cultura afro, a contribuição que os africanos trouxeram para o Brasil.
Mas fomos atrás do material. Estão ensinando religião afro nas
escolas, desrespeitando a fé das crianças cristãs, e de forma
obrigatória. [...] (Alves, 2019)

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Como se não bastasse, a pregadora defende o argumento de que ler textos
que abordam religiões não cristãs ou que as tomam como pano de fundo para suas
narrativas seria necessariamente uma forma de converter o leitor para essas mesmas
religiões. Na transcrição abaixo, essa visão ingênua e equivocada sobre o poder da
leitura para converter o leitor à ideologia de qualquer texto, por parte da pregadora, fica
muito evidente:

“E olha os livros que eu estou encontrando, pais, nas escolas para falar
de cultura afro. Um dos livros, olha lá o carimbo do MEC, Eleguá. [...]
O que eu não posso aceitar é que as escolas imponham a religião afro
às crianças cristãs no Brasil. [...]” (Alves, 2019)

Por outro lado, em sua fala, Alves se sentiu muito à vontade para atacar as
crenças de origem africana para as quais Olorum seria o criador do universo. Além de
ter ignorado – intencionalmente ou por falhas de interpretação – o caráter metafórico e
lúdico do livro, Alves desrespeita a crença de quem não compartilha dos mitos bíblicos
da criação. Na transcrição abaixo, a pregadora desautoriza crenças em divindades
africanas, ao mesmo tempo em que, novamente, distorce o significado do trabalho de
leitura literária realizado nas escolas, afirmando que as crianças precisariam ‘decorar
palavras de invocação a Olorum’ e, inclusive, fazer provas sobre esse assunto.
Revelando um desconhecimento assombroso do que realmente é ensinado nos cursos
de Pedagogia e Letras sobre a leitura literária e das práticas efetivas com livros literários
na maioria das escolas, a pregadora fundamentalista afirma o seguinte:

“Com todo respeito às religiões africanas, não foi Olorum, foi Jeová que
fez todas as coisas. [...] As crianças estão tendo que decorar palavras
de invocação a Olorum para fazer prova [...]”

Após seus ataques contra as culturas e religiões de matriz africana, a religiosa


fundamentalista redireciona sua ira contra livros com personagens oriundos do universo
da mitologia europeia. Em um discurso marcado por uma oratória bastante inflamada,
Alves repete, várias vezes, “Chega!”, como se fossem ela e sua congregação que
estivessem sob ataque. Agora, a retórica belicosa se move das culturas de origem
africana na direção de supostos livros de bruxaria que estariam sendo distribuídos nas
escolas:

“Chega! Pode passar, livros dos mais terríveis. Olha aqui o que o
governo de São Paulo está distribuindo nas escolas. Olha lá o carimbo
do governo de São Paulo: o Manual prático de bruxaria.”

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Abaixo, reproduzimos uma captura de tela do momento em que o livro é
apresentado aos fiéis da pastora fundamentalista, com o título acusatório: “Bruxaria nas
escolas”.

Figura 5: Captura de tela do vídeo de Alves


https://www.youtube.com/watch?v=PBQUBUNovsA

Ao se referir ao livro, ainda de forma bastante exaltada, a pregadora


neopentecostal revela não ter compreendido sua proposta básica que, longe de ensinar
qualquer tipo de bruxaria, procura criar um ambiente lúdico e engraçado para o leitor,
conforme explanamos anteriormente. Em uma nova ofensiva, a religiosa afirma que o
livro pretende transformar as crianças em bruxas! O tom de sua fala se torna ainda mais
bizarro quando pretende fazer uma ironia em relação ao prefeito de São Paulo, o qual,
segundo Alves, teria a intenção de ensinar as crianças a fazer vassouras de bruxas para
resolver o problema do trânsito.

Isso é livro pra idade da criança, irmãos? Olha só, pode passar, ensina
como ser bruxa; e ensina como se vestir como bruxa, como fazer a
comida de bruxa, pode passar, ensina como fazer a vassoura de bruxa.
Pastor Márcio, só tem uma explicação para esse livro estar nas escolas
de São Paulo: o governador não conseguiu resolver os problemas de
trânsito, então está ensinando a fazer vassoura de bruxa. Vai que dá

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certo! Vai que dá certo! Brincadeira, irmãos. Nossas crianças estão
brincando de bruxaria em sala de aula. Pode passar, olha ali esse
livrinho ... [...]” (Damares Alves)

Comunidades interpretativas e fundamentalismo religioso


Os recentes discursos de líderes religiosos e políticos contra seres fantásticos
– principalmente bruxas –, em livros literários para crianças, geram inúmeras questões
para debate e reflexão, dentre as quais abordaremos, aqui, apenas duas. A primeira diz
respeito ao ato interpretativo, por parte de indivíduos pertencentes a certos grupos
religiosos, os quais podem ser definidos à luz do conceito de ‘comunidades
interpretativas’, cunhado pelo teórico Stanley Fish (1980). De acordo com Fish (p. 322),
“os significados não são propriedades de textos fixos ou estáveis e tampouco de leitores
livres e independentes, mas de comunidades interpretativas, as quais são responsáveis
tanto pela forma como ocorrem as atividades de um leitor quanto pelos textos que essas
atividades produzem”. Nessa perspectiva, o sujeito leitor não é definido como uma
entidade abstrata e independente, mas como um “construto social cujas operações são
delimitadas por sistemas de inteligibilidade que os informam” (p. 335); sendo assim, os
significados que o sujeito pertencente a determinada comunidade confere a um texto
não são exclusivamente seus, uma vez que sua fonte é a comunidade (ou as
comunidades) a que pertence.
No caso da leitura que Damares Alves realiza, não apenas da obra de Malcolm
Bird, mas também dos demais autores por ela criticados, há um alinhamento muito claro
com os códigos interpretativos de grupos cristãos fundamentalistas, os quais seguem
uma tradição de interpretação literal dos textos bíblicos – em detrimento de leituras que
veem as histórias bíblicas como alegorias de verdades espirituais. Tais grupos
transferem tais códigos de inteligibilidade também para textos e discursos cujo contexto
de produção, originalmente, não é de natureza religiosa. Esse código ‘literalista’ ou
‘fundamentalista’, quando utilizado para ler narrativas que contêm seres fantásticos,
mesmo que não se trate de narrativas de cunho religioso, leva os leitores a fazerem dois
principais investimentos de sentido: o primeiro é um deslocamento quanto ao próprio
gênero textual. Embora tenham sido produzidos como textos artísticos-literários – para
serem lidos como metáforas, alegorias, brincadeiras –, esses grupos leem os textos
literários como se fizessem parte de gêneros eclesiásticos ou religiosos.
O segundo investimento é de ordem semântica. Embora os seres fantásticos
que povoam os livros literários sejam propostos para serem lidos dentro de um registro
de conotação - como símbolos plurissignificativos, cujo fim é, além da própria fruição,
permitir abordar questões que estão para além da superfície das palavras –, os leitores

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fundamentalistas interpretam esses seres a partir de um registro referencial, ou seja,
partem do pressuposto de que essas histórias se referem a seres que de fato existem
no mundo. Visto que, no código religioso fundamentalista, tais seres são sempre
demoníacos, consequentemente, os livros são vistos como contendo invocações ou
elogios ao demoníaco e, portanto, precisam ser combatidos e banidos.
A segunda questão que importa ressaltar nesse contexto diz respeito aos
efeitos que essas interpretações fundamentalistas produzem quando passam a ser
propagadas de forma massiva por líderes religiosos e políticos, principalmente através
das redes sociais da internet. Antes de mais nada, trata-se de uma questão de poder,
pois esses líderes não estão apenas reforçando os códigos de legibilidade e
interpretabilidade que marcam suas próprias comunidades interpretativas – dessa
forma, realizando a manutenção da identidade que os constitui –, mas também estão
tentando impor esses códigos para além de seus muros, em direção à sociedade laica.
Como já se afirmou antes, o código de leitura fundamentalista se baseia principalmente
na interpretação literal – mesmo quando se fala em seres mágicos e mitológicos – em
detrimento de qualquer interpretação metafórica ou alegórica, e a pregação de Alves
serve como uma tentativa de persuadir mais leitores a lerem obras literárias para
crianças dessa maneira.
A principal estratégia utilizada, por esses grupos, para executar seus projetos
de poder é a produção daquilo que o teórico Stanley Cohen (1972) define como pânico
moral. Nas palavras de Cohen,

De tempos em tempos, as sociedades parecem estar sujeitas a


períodos de pânico moral. Uma condição, um episódio, uma pessoa ou
um grupo de pessoas emerge para ser definido como uma ameaça aos
valores e interesses da sociedade; sua natureza é apresentada de
maneira estereotipada e estilizada pelos meios de comunicação de
massas; e as barricadas morais são comandadas por editores, bispos,
políticos e outros sujeitos de direita; especialistas legitimados
socialmente dão seus diagnósticos e soluções, passa-se a criar ou
(mais frequentemente) apelar para certos jeitos de lidar com o
problema. (2002, p. 1)

Cristãos fundamentalistas procuram convencer tanto as pessoas ligadas às


suas igrejas quanto as pessoas que estão fora delas, de que os monstros e as bruxas
de histórias fictícias para crianças são uma ameaça para os valores da sociedade. Como
se percebeu claramente a partir da fala de Damares Alves, quando se refere às histórias
infantis, ela recorre à estilização e à estereotipia – afirmando, por exemplo, que os livros
ensinam bruxaria e obrigam as crianças a invocarem divindades africanas –, deturpando
fortemente as intenções originais das obras e seus autores. Esse discurso de pânico é

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colocado para circular não apenas nos púlpitos das igrejas, mas, atualmente, também
nas redes sociais da internet. Após produzirem esse quadro de pânico, líderes como
Alves se aproveitam para se autoproclamarem os defensores da moral que estaria
sendo ameaçada pelo novo inimigo e, além de detalharem o diagnóstico da situação,
passam também a dar as possíveis soluções, que passam basicamente por duas
principais dimensões: ações pontuais contra os livros e seus autores; ações políticas
contra todo o circuito cultural mais amplo em que esses livros e os sujeitos envolvidos
em sua produção e distribuição estão inseridos.

As repercussões
As falas de líderes religiosos – e agora também políticos, como a pastora
fundamentalista Damares Alves, têm repercussões diretas sobre as comunidades de
crentes que frequentam suas igrejas. Muitos pais, impactados pelo discurso de pânico
moral produzido por pessoas como Alves, tomam atitudes como pressionar professores
e escolas. Em uma reportagem para a Folha de São Paulo, Meireles traz os relatos de
escritores como Silvana Salerno e Penélope Martins, que receberam mensagens
indignadas de pais por causa de personagens fantásticos em seus livros, tais como uma
onça que se casa com uma mulher (no livro ‘O sol e a lua, de Salerno) ou duendes (no
livro ‘A princesa de Coiatimbora’, de Martins). Em um artigo escrito para o jornal El País,
a jornalista Joana de Oliveira (2020) reproduz o relato da escritora Rosana Rios, que
informa que a coordenadora de uma escola particular de São Paulo decidiu não incluir
um de seus livros no programa de leitura da escola – apesar de desejar fazê-lo –, porque
temia receber muitas reclamações de familiares dos alunos. O motivo é que a autora é
conhecida justamente por explorar o imaginário fantástico em seus mais de 70 livros
publicados, os quais estão repletos de personagens como dragões e bruxas.
Esse tipo de pressão por parte de pais impactados pelo pânico gerado por
pregações fundamentalistas também tem gerado efeitos políticos sobre a cadeia de
produção e distribuição dos livros. De um lado, políticos conservadores ou simplesmente
interessados em agradar eleitores evangélicos, juntamente com líderes conservadores
de instituições de ensino, passam a censurar autores e obras com personagens
fantásticos. Um caso emblemático ocorreu na Secretaria de Educação de Rondônia,
que determinou o recolhimento de 43 obras consideradas inadequadas, dentre as quais
constavam clássicos como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis,
e Macunaíma, de Mario de Andrade. O recolhimento acabou sendo cancelado.

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De outro lado, editoras e clubes de leitura e, inclusive, os próprios autores,
começam a se impor uma autocensura, temerosos de ver prejudicadas as vendas dos
seus livros. Um caso recente de autocensura é o do maior clube brasileiro de assinatura
de livros infantis, o Leiturinha. Como esclarece Meireles (2019), em um edital de
fevereiro de 2019, o clube afirmou que “não aceitaria inscrições de obras que tivessem
‘seres mágicos, como bruxas, fadas e duendes como temática central na história’”.
Devido à repercussão negativa dessa limitação do edital entre seus assinantes, o clube
acabou recuando. Mas essa atitude por parte do Leiturinha integra uma reação presente
em todo o mercado livreiro voltado para livros infantis no Brasil atualmente. Meireles
(2019) relata que a Companhia das Letras vem recebendo reclamações constantes
quanto a livros sobre bruxas por parte de alguns colégios confessionais e, mesmo, de
leigos. Uma das maiores preocupações é com o fato de o poder público, na esfera
federal, ser hoje controlado por um governo fortemente ligado a grupos neopentecostais
e fundamentalistas. Na entrevista para o El País, a escritora Rosana Rios afirma: “Com
um Executivo apoiado por grupos neopentecostais, eles querem produzir seu próprio
material. O editor que quiser publicar uma obra com bruxas vai pensar 30 vezes antes
de fazê-lo, porque sabe que ele não será comprado pelo poder público”.
Para finalizar, é importante chamar atenção para o fato de que grupos de
fundamentalistas cristãos existem não apenas no Brasil e, nos últimos anos, têm se
tornado bastante expressivos e influentes politicamente, principalmente nos EUA.
Vários desses grupos se voltam contra obras literárias povoadas por seres fantásticos,
através de manifestações aguerridas, como protestos, processos judiciais e, em alguns
casos, conseguem inclusive impor a censura. Dentre as inúmeras obras censuradas
recentemente, podemos citar aqui o caso da série de livros Harry Potter, publicados pela
escritora britânica J. K. Rowling. Nos Estados Unidos, apesar do sucesso estrondoso
da série entre leitores infantis e juvenis, vários grupos conservadores e organizações
cristãs – como o Focus on the Family, o Family Friendly Libraries, o Freedom Village
USA e o Eagle Forum – fizeram pressão e moveram processos judiciais para retirar
esses livros das escolas, afirmando que eles seriam “perigosos para as crianças porque
promovem ocultismo, satanismo e temas que são contra a família, incentivando a
bruxaria e o uso de drogas”. (Karolides; Bald, 2011, p. 232). Como resultado, entre os
anos 2001 e 2003, vários desses grupos queimaram ou rasgaram publicamente os livros
da série em cidades norte-americanas no condado de Butler, Pennsylvania, Lewiston,
Maine, Alamogordo, New Mexico, Michigan. Além disso, o livro também foi banido de

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várias escolas cristãs não apenas nos Estados Unidos, mas também na Austrália, Grã-
Bretanha e Suécia.
Assim sendo, é importante ressaltar, novamente, que a produção de pânico
moral em torno de seres mitológicos presentes em obras de literatura para crianças, por
parte de comunidades de cristãos fundamentalistas, faz parte de um projeto mais amplo
de poder almejado por tais grupos, que pretendem não apenas manter a identidade de
suas próprias comunidades, mas também desejam estender sua visão de mundo para
toda a sociedade. Trata-se de um projeto de poder totalitário – pois apenas a visão
fundamentalista é aceita, excluindo-se outras visões de mundo; eurocêntrico, na medida
em que são excluídas e demonizadas culturas de origem não europeia, como as
africanas; pré-iluminista e medieval, pois os fundamentalistas acreditam piamente na
existência física e concreta de fadas, bruxas, gnomos, contra os quais estão em guerra
franca.
Após a análise de três obras – João e Maria, dos irmãos Grimm; Uxa ora fada,
ora bruxa, de Sylvia Orthof, e Carona na vassoura, de Donaldson & Scheffler, com
protagonistas bruxas, Américo e Belmiro (2018, s/p) concluem: ‘Assim como a literatura,
a personagem bruxa também transcende aos padrões, aos preconceitos, e também aos
tempos.’ Se atravessaram os séculos tornando mais sedutores e interessantes tantos
contos, ora correspondendo a seus estereótipos, ora revisitadas como boazinhas,
atrapalhadas, cômicas, as bruxas, entretanto, correm o risco de encerrar sua carreira
de sucesso, sucumbindo a leituras estreitas e à intolerância religiosa, e privando as
futuras gerações de crianças deste encontro fascinante com o imaginário.

Referências
AMÉRICO, Anna Carolyna Franco; BELMIRO, Célia Abicalil. A representação da
personagem bruxa nos livros de literatura infantil contemporâneos. Anais do XII Jogo do
Livro e II Seminário Latino-Americano: Palavras em Deriva, Belo Horizonte, 2018.

BIRD, Malcolm. Manual prático de bruxaria em onze lições. São Paulo: Editora Ática,
1996.
COHEN, Stanley. Folk Devils and Moral Panics: The Creation of the Mods and the
Rockers. 3. ed. London & New York: Routledge, 2002.

FISH, Stanley. Is There a Text in This Class? The Authority of Interpretive


Communities. Cambridge & London: Harvard University Press, 1980.

KAROLIDES, Nicholas J.; BALD, Margaret; SOVA, Dawn B. 2º ed. 120 banned books:
censorship histories of world literature. New York: Checkmark Books, p. 2011.
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MEIRELES, Maurício. Damares inspira caça às bruxas e seres mágicos na literatura
infantil. Folha de São Paulo, 26 jul, 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/07/bruxas-gnomos-e-seres-magicos-de-
livros-infantis-entram-na-mira-de-religiosos.shtml

OLIVEIRA, Joana. ‘Caça às bruxas’ de Damares provoca autocensura no mercado


literário infantil. El País, 13 fev, 2020. https://brasil.elpais.com/cultura/2020-02-13/caca-
as-bruxas-de-damares-provoca-autocensura-no-mercado-literario-infantil.html

Sites:
https://www.skoob.com.br/livro/resenhas/39293/edicao:42964

https://blog.ataba.com.br/manual-pratico-de-bruxaria-em-onze-licoes/

http://www.malcolm-bird.co.uk/

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MARIA CLARICE MARINHO VILLAC: A QUESTÃO ÉTNICO-
RACIAL EM SEUS LIVROS INFANTOJUVENIS

Priscila Kaufmann Corrêa – Secretaria de Educação da Prefeitura do Município de São


Paulo
Eixo Temático 7: Temas polêmicos, interdições e censura na literatura infantil e
juvenil

APRESENTAÇÃO
No ano de 2010 houve uma polêmica em torno do livro Caçadas de Pedrinho,
escrito por Monteiro Lobato, ao ser incluído no Programa Nacional Biblioteca na Escola
apesar de trazer várias passagens racistas. Na época, antes das obras de Monteiro
Lobato entrarem em domínio público, a obra Caçadas de Pedrinho questionada naquele
momento era a publicação da editora o Globo, que conseguira o direito de publicar as
obras da Editora Brasiliense da versão de 1947.
Tal falta de cuidado remete a uma situação que gerou mal-estar em 2010 com o
livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Nilma Lino Gomes, conselheira do
Conselho Nacional de Educação do Ministério de Educação à época, elaborou um
parecer sobre esta obra indicando que há passagens racistas. Tal questão gerou um
problema, pois o livro compõe o Programa Nacional Biblioteca na Escola e tais obras
devem não podem trazer preconceitos e estereótipos, isto é, uma educação antirracista.
Grande parte da imprensa entendeu que parecer Conselho Nacional de Educação
estava censurando a obra, sem compreender o contexto que o livro estava sendo
analisado.
Na realidade, o parecer aponta que há passagens racistas, especialmente
voltado à personagem Tia Anastácia sem haver qualquer nota explicativa a este respeito
na obra da Editora Globo. O livro apenas traz uma nota sobre os animais silvestres, algo
que não se mostra suficiente, uma vez que:

[...] a editora responsável pela publicação [deve realizar] a inserção no


texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos
ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de
estereótipos raciais na literatura. (GOMES, PARECER CNE/CEB Nº:
15/2010, 2010, p. 05)

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Neste sentido, o caso trouxe à tona o quanto um escritor altamente reconhecido
trazer um tom pejorativo quando se trata de personagens negros e o quanto este
aspecto ser incorporado ao ponto de ninguém questionar até aquele momento. Se o
Programa Nacional Biblioteca na Escola tem como prerrogativa trazer obras com
ausência de preconceitos ou estereótipos, o livro supracitado não poderia ser distribuído
para as escolas, ainda mais quando não se atenta e sinaliza para passagens que trazem
preconceito.
Desde lá a questão étnico-racial continua em pauta e precisa ser constantemente
discutida e debatida, especialmente quando se trata de livros dedicados à infância e à
juventude. Contudo, muitas obras acabam sendo relançadas sem um olhar mais
cuidadoso com palavras e passagens dos livros e demostra que a editora que publica
os livros compactua com este preconceito se não traz indicações. No caso do livro de
Monteiro Lobato, as passagens racistas foram analisadas e a editora precisa se colocar
e apresentar que a publicação possui termos racistas. Um autor famoso no âmbito da
literatura infantojuvenil ganha destaque e a mídia se colocou frente a este debate,
sinalizando que havia censura à obra, sem perceber que os livros possuem sim, termos
racistas e que precisam ser explicados em notas explicativas ou pelas pessoas que vão
ler ou indicar esta publicação às crianças.
Outras obras que foram publicadas no início da década de 30 e 40 do século XX
e posteriormente publicadas em 1980 e nos anos 2000 não trouxeram esta polêmica,
até porque não foram indicadas para os programas do governo federal para o estímulo
à leitura nas escolas. Este é o caso dos livros infantojuvenis da escritora Maria Clarice
Marinho Villac, que publicou seus livros na mesma época em que Monteiro Lobato
ganhava sua fama.
Monteiro Lobato reconheceu os livros de Maria Clarice ao visitar uma biblioteca
pública na cidade de São Paulo (MONTEIRO LOBATO DISPUTA COM WALT DISNEY.
Folha da noite, 8 de junho de 1946). As obras de literatura infantojuvenil de Maria
Clarice foram bastante difundidas e algumas delas foram relançadas na década de 1980
e no início dos anos 2000. As novas impressões não trazem notas explicativas e este é
um aspecto que será apresentado neste trabalho.
Pertencente à aristocracia rural, a escritora nasceu em Itu (SP), foi estudante no
Colégio Progresso em Campinas no regime de internato e nas férias ficava nas fazendas
de seu avô, um barão do café. Casou-se e mudou para São Paulo, ficando viúva aos 27
anos, quando tinha 5 filhos. A partir deste momento começou a se dedicar à literatura e
os livros que tiveram maior difusão foram Clarita da pá virada, de 1939 e Clarita no
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colégio, de 1945. A primeira edição de Clarita da pá virada possui ilustrações coloridas
em papel laminado, além de imagens em papel comum, já a primeira edição de Clarita
no colégio possui ilustrações, porém em impresso comum.
O colégio em que Maria Clarice estudou mantinha os livros da escritora em seu
acervo na biblioteca e era indicado como livro de leitura para os estudantes, inclusive
as reimpressões da década de 1980. A publicação dos livros da escritora foi noticiada
em alguns jornais, trazendo uma resenha e observações sobre as obras.
A publicação Clarita da pá virada conta a história de Clarita e sua condição de
menina arteira. A narrativa apresenta as vivências de uma criança inserida em família
ampliada - com mãe, pai, irmãos e o convívio com avós, tios e primos - e passagens
pela escola. Já no livro Clarita do colégio, o texto traz as situações entre o internato e
os períodos de férias em que passava nas fazendas do avô materno.
A família de Clarita contava com muitos empregados negros, que, após a
abolição da escravatura, continuaram vivendo nas fazendas do avô de Clarita. A autora
apresenta os resquícios de uma organização familiar caraterística de seus
antepassados do Brasil colonial. Mesmo no livro referente ao colégio, há situações que
trazem os empregados, especialmente aqueles que preparam os alimentos no colégio,
que são negros.
A discriminação tanto pela narrativa, quanto pelas ilustrações fica bastante
marcado, porém as versões recentes não colocam nenhuma nota explicativa sobre o
preconceito que existe nas falas e nas ilustrações. As filhas de Maria Clarice pediram
ao editor da La Cruce que a nova versão do livro publicado em 2008 fossem retirada as
indicações sobre a religiosidade no colégio, pois achavam ser muito exagerada a
questão da religião católica, mas as passagens que trazem racismo foram mantidas sem
qualquer sinalização.

A literatura atua em nossas vidas para unir os mitos fundamentais da


comunidade, de seu imaginário ou de sua ideologia. Na literatura
brasileira, no entanto, o negro é a palavra excluída, ocultada com
frequência, ou uma representação inventada pelo outro, sendo sempre
o elemento marginal. (THEODORO, 2005 p. 86)

As personagens negras nos livros de Clarita são marginalizadas em diversas


passagens, com tom de ironia, uma vez que estes empregados em geral não
compreendem o que está acontecendo. No que se refere às ilustrações, o aspecto
destas personagens sempre traz um olhar de espanto, incredulidade e as cores são
sempre mal representadas, num tom grotesco. É um outro aspecto que Clarita e sua
família não enxergam, não conhecem.

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Os livros trazem, pois, uma representação de como os empregados deveriam se
portar, sendo obedientes e bons serviçais. Como bons serviçais, os espaços destinados
a eles é rigorosamente discriminada na casa, ou no colégio e cada um sabe o lugar a
ser ocupado sem interromper as atividades dos patrões. A narrativa apresenta os
resquícios do racismo caracterizados pela marca da propriedade sobre os sujeitos e
subsistem em algumas das expressões usadas ao referir-se a eles, seja no texto, seja
nas ilustrações.
A análise das obras pela abordagem da história cultural permite perceber não
somente marcas fortes de distinções étnico raciais assentadas em diferenças físicas e
cognitivas, como permite perceber a ausência de miscigenação entre os personagens,
uma vez que cada um se mantém em seu lugar. As personagens brancas têm um
comportamento diferente frente aos personagens negros, em geral em tom de chacota
e as ilustrações corroboram com o texto.
Nos livros de Maria Clarice as passagens racistas indicam que o racismo está
presente na sociedade daquela época e que se perpetua até a contemporaneidade. O
racismo estrutural se difunde em toda a ordem social e perpassa nas relações políticas,
econômicas, jurídicas e familiares (ALMEIDA, 2019, p. 50). Ele também está presente
nas publicações da escritora e mesmo sendo difundida por um longo tempo, o racismo
nos livros não é devidamente analisado.
Esta pesquisa procura analisar a concepção da diversidade racial e cultural do
período de sua escrita e, bem como nas reedições que é fruto de uma tese de doutorado
no qual a obra da escritora Violeta Maria e a vida da autora Maria Clarice Marinho Villac
são colocadas em relação, analisadas com referências da história cultural (CHARTIER)
e constituem as bases da construção sociocultural (CASTORIADIS187) de uma escrita
feminina para a infância (CORRÊA, 2017).
O Colégio Progresso Campineiro foi uma importante referencial cultural na vida
da autora, que desenvolveu sua escrita sempre aludindo ao fato de ter sido uma boa
aluna. A dedicação aos estudos foi importante para que Maria Clarice se encorajasse a
escrever seus textos e buscar editoras para publicá-los. Entretanto, sua condição de
pertencimento à classe social mais abastada permitiu acesso a distintos bens culturais,
importantes para que ela se dedicasse a produzir literatura infantojuvenil. Todavia, o
motivo de ela haver adotado um pseudônimo, fato em que não há maiores informações
até o momento, demostra algum tipo de tensão entre a Maria Clarice mãe e viúva, e a

187
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro (RJ):
Paz e Terra, 1982;
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Violeta Maria, a autora que ganha alguma notoriedade no meio literário, mesmo que
esta tenha sido bastante discreta. O certo é que suas publicações ganharam visibilidade
e, tal fato, garantiu que os livros que tem Clarita como protagonista, pudessem ser
republicados ao longo do tempo.

CLARITA DA PÁ VIRADA E CLARITA NO COLÉGIO TRAZENDO A


QUESTÃO ÉTNICO-RACIAL
Os dois livros supracitados têm Clarita como protagonista, pois é ela que chama
a atenção por se mostrar rebelde e travessa, causando confusão entre os adultos. Em
Clarita da pá virada, ela traz suas vivências nas fazendas do avô, com muitas
brincadeiras entre as crianças e as atividades dos adultos. A família de Clarita contava
com muitos empregados negros, que, após a abolição da escravatura, continuaram
vivendo nas fazendas do avô de Clarita. A autora apresenta os resquícios de uma
organização familiar caraterística de seus antepassados do Brasil colonial, trazendo a
discriminação dos patrões com seus empregados. Tais vestígios se mostram não
somente no texto autoral, mas também nas imagens que a ilustram.
Logo no início da estória de Clarita da pá virada nos é apresentada uma
empregada negra que procura pela criança, que estava escondida por ter comido ovos
das galinhas do irmão de uma das empregadas. Tal personagem aparece na estória
como se estivesse entrando em cena, em uma perspectiva teatral, como se houvesse a
intenção de provocar uma apreensão de interesse de leitura pela criança em relação ao
desenrolar dos acontecimentos. Violeta Maria a descreve como “... mucama, alta e
magra rapariga, mulata clara, toda falante e gesticuladora, antiga empregada da casa,
ótima criatura”. (VIOLETA MARIA, 1939, p. 7).
Nota-se que a empregada é chamada de mucama, mesmo que seja um texto
escrito mais de três décadas após a abolição da escravidão e, a cor de pele dela é
destacada pela autora, com conotação de minimizar a sua origem negra, revelando ao
leitor uma composição um tanto hierárquica de cores de pele. A origem negra não chega
a ser ocultada, mas é colocada em evidência ao leitor, em processo de clareamento.
Os termos permanecem entre as representações sobre o negro. Atualmente,
entretanto, os substantivos mucama188 e mulata189 podem ser interpretados como

188
Mucama, segundo o dicionário Houaiss (p. 304), “escrava negra jovem que fazia os serviços
domésticos”.
189
Mulata, segundo o dicionário Houaiss (p. 304), é “mestiço de branco e negro”, “que tem a cor
da pele escura”. Contudo, este termo tem sido debatido, especialmente pelos grupos do
Movimento Negro, que argumentam que o termo mulato deriva de mula e se mostra ofensivo.
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referências discursivas racistas. Entretanto, destaca-se que mesmo tendo grande parte
da discussão já avançado na teoria social, e mesmo no mercado editorial para crianças
e jovens, em versões mais recentes da obra, republicadas nos anos de 1980 e 2006,
estes termos não são questionados ou relativizados em notas editoriais.
A versão de 1980 é da editora Fermata, o livro foi reimpresso com texto original,
porém sem as ilustrações em papel laminado e sem haver qualquer nota sobre o
vocabulário utilizado pela escritora, até comum em outras épocas, porém hoje
discriminatório. A versão mais recente, de 2006, na publicação da editora La Cruce,
essas palavras também não são sinalizadas nas notas de rodapé. Nota-se o racismo
não é percebido pelas editoras, está na estrutura das instituições, nas relações da
sociedade e acabe nem sendo notada. Como a escritora é branca e fala de um
determinado lugar privilegiado, não percebe a maneira preconceituosa que trata dos
empregados. E quem publica também não se dá conta.
Em Clarita no Colégio, há um capítulo chamado “Super-delicadezas”, mostrando
que a protagonista não suportava ver fiapos nos pratos e copos no refeitório do colégio:
“E como Clarita há de tomar café com cabelinho...?! Oh! É nojento mesmo! E cada
pixainzinho tão enroladinho, e alguns tão pequenininhos que seria um microscópio para
percebê-los...” (VIOLETA MARIA, 1945, p. 172)
A menina arteira se comporta de maneira ofensiva, pois no fragmento acima, ela
descreve o cabelo enrolado como “nojento” na xícara. Sabe-se pelo texto, que as
cozinheiras são negras e que seu cabelo que eventualmente pudesse cair na louça é
chama a atenção pela protagonista, que não deixa passar este evento na instituição
escolar como algo divertido. A diretora acaba advertindo o comportamento da criança,
mas esta situação rende um capítulo inteiro sobre a atitude da criança que precisa
analisar cada prato e copo.
Nas novas impressões o trecho se manteve e também não houve nenhuma nota
explicativa sobre a maneira como a escritora narra sobre os momentos do refeitório do
colégio. “Os estereótipos geram os preconceitos, que se constituem em um juízo prévio
a uma ausência de real conhecimento do outro.” (SILVA, 2005, p. 24).
De certa forma, são estes os estereótipos que perpassam os livros de Maria
Clarice, seja pelo cabelo, pela cor da pele, pelas palavras utilizadas para mencionar as
personagens negras. Além dos estereótipos, há a representação de como os
empregados devem se portar perante os patrões, aos quais devem demostrar respeito
e subordinação.

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A relação de representação é assim turvada pela fragilidade da
imaginação, que faz com que se tome o engodo pela verdade, que
considera os sinais visíveis como índices seguros de uma realidade
que não existe. (CHARTIER, 2002, p. 75)

A representação sobre o negro bom e submisso está presente em outros


momentos, como a festa junina. Durante a festa, os empregados ficam no terreiro em
torno da fogueira e começam a sambar. As crianças, como Clarita, acham a dança
engraçada e um dos tios joga um fogo de artifício no meio da roda, o que assusta os
negros. “Mas os bons dos pretos não se zangaram com isso, não, até acharam
engraçado!” (VIOLETA MARIA, 1939, p. 81). Os negros se resignam e aceitam que
homens brancos façam chacota de sua dança, parecendo a situação engraçada, sendo,
no entanto, mais uma violência com sua cultura de origem. Dentro esta representação,
as pessoas devem aceitar, se submeter às maneiras como a elite encara o negro.
Além do texto, há ilustrações que foram realizadas pelo ilustrador Manuel
Romano, conhecido como Manolo, que nasceu em Campinas (SP) e trabalhou em
diferentes periódicos. Era caricaturista e Maria Clarice o contratou para que desenhasse
as figuras em seus livros. A escritora mostrou fotografias para que Manolo utilizasse em
suas ilustrações. Nota-se que as imagens caricaturais, além de comporem
esteticamente com o texto, abrindo-lhe um ar de gracejo e humor, também apresentam
determinadas representações socioculturais. Há pessoas de tamanhos maiores e
menores e crianças que parecem tão altas quanto os adultos e com tipos de penteados
muito parecidos, denotando o ambiente familiar da história.
Em uma das passagens ilustradas, há a preparação para a festa junina e, o
cozinheiro, Simplício, que veio do Rio de Janeiro, “(...) para fazer fortuna nas famílias
paulistas, como cozinheiro de forno e fogão” (VIOLETA MARIA, 1939, p. 15), estava
preocupado com as preparações da festança, como todos os doces a serem
aprontados. O cozinheiro não fez fortuna, mas se dedicava intensamente ao trabalho e
queria tudo perfeito até o momento da festa. Na ilustração abaixo, em papel laminado
da edição de 1939, Simplício, junto com outras empregadas negras são representadas:

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Figura 1: VIOLETA MARIA, 1939, entre às pp. 74/75.

Nota-se que, na imagem, o cozinheiro possui um chapéu de cozinha e suas


assistentes são mulheres, sendo uma delas ainda criança. A cozinha traz uma mesa e
um fogão, com a criança retirando uma forma de assados de dentro dele. As mulheres
usam camisas brancas e saias rosadas. Simplício está com os olhos esbugalhados, com
gestos de preocupação, porém de uma maneira cômica: “(...) consternado, as mãos na
cabeça... e termina num gesto teatral” (Ibidem, p. 74). A cor de pele dessas personagens
é grotesca, demostrando que a cor negra não é bem representada (talvez pelo tipo de
material usado, porém, autora e ilustrador consideram que estaria bom assim), uma
interpretação sutil de que o negro é grotesco, um tanto abobalhado e sem um bom
controle do tempo (este dado é aliás reiterado nas ilustrações, e como se sabe, o
controle do tempo e a realização das tarefas a bom termo, é característica de eficácia
na sociedade capitalista). Compondo com o texto de Maria Clarice, o cozinheiro, ao
demonstrar preocupação, parece uma pessoa engraçada, que não sabe de seu ofício.
Texto e imagem indicam que o negro é tolerado por realizar o trabalho na cozinha, mas
mesmo neste lugar, ele parece ser bobo.
Em Clarita no colégio, há um capítulo que trata de uma greve das alunas maiores
por não querem comer miolo de boi no momento da refeição. Às quintas-feiras a diretora
decide oferecer miolo de boi para as estudantes. Clarita descreve a conversa entre as
colegas: “Que é isso?! Que azêdo falatório é esse?! Por que êsses negros
comentários?!...” (VIOLETA MARIA, 1945, p. 139, grifo nosso) Os comentários são
descritos pela escritora como “negros”, no sentido de ser muito ruins. A representação
de que negro é ruim, maldoso, perpassa nas falas, nas narrativas dos textos, como se
a palavra “negro” trouxesse um sentido de maldade, de algo ruim. Segundo Sílvio
Almeida, “nossa visão sobre a sociedade não é um reflexo da realidade social, mas a
representação de nossa relação com a realidade”. (ALMEIDA, 2019, p. 66) Há, pois,
uma representação que se relaciona com a realidade e a representação traz que a cor,
a cor da pele, a pessoa negra, não podem trazer coisas boas. De maneira inconsciente
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a escritora traz a palavra com uma conotação negativa e as editoras Fermata e La
Cruce, que republicaram e, ao não trazer notas explicativas sobre estas passagens,
acabam condescendendo com os termos racistas.
O capítulo segue sobre o dia em que turmas das maiores e das médias recusam
o miolo servido em uma determinada quinta-feira: “E a servente, com a terrina
fumegante, volta para a cozinha, intrigada. Que será isso?! Ninguém, das mesas das
grandes e das médias, quer miolo hoje...! Por quê será? Só as pequenas quiseram! Que
engraçado!” (VIOLETA MARIA, 1945, p. 140)

Figura 2: VIOLETA MARIA, 1945, entre às p.140.

Na cena a cozinheira demostra espanto, pois ninguém quer comer do miolo,


trazendo um tom de ironia mais uma vez no rosto da personagem. A cor de pele da
personagem, demonstra pouco cuidado do ilustrador, deixando a boca com uma cor
branca e o corpo com um aspecto inverossímil. Segundo a pesquisadora Heloísa Pires
de Lima (2005, p. 102), “a imagem age como instrumento de dominação real através de
códigos embutidos em enredos racialistas, comumente extensões das representações
das populações colonizadas”. Neste sentido, a ilustração não é só uma caricatura, ela
representa o que a elite acredita ser o negro e difunde isso para todas as classes sociais,
inclusive os negros.
Por meio do texto e das imagens, os leitores constroem uma representação do
que é uma família da elite brasileira e sua relação com os empregados negros. Existe
uma expectativa de como o empregado deve se portar, especialmente no que se refere
ao comportamento. Por outro lado, sua cor de pele ainda pode ser vista como algo ruim,
diferente do branco, que é bom e quer o bem. O leitor conhece e pode, eventualmente
se reconhecer nesses textos e, por outro lado, questionar as atitudes perante os
empregados descritos ao longo da obra. É preciso olhar com mais atenção e sinalizar
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estas passagens para estes leitores. Mesmo sendo um livro escrito em época em que o
pensamento eugênico já passava por fortes questionamentos, e mesmo considerando
o lugar social de origem da autora, a obra precisa ser contextualizada e deve-se
perguntar porque ela foi tantas vezes reeditada, sem qualquer cuidado em atualizar seus
conteúdos.

Considerações finais
Clarita da pá virada e Clarita no colégio, de Maria Clarice Marinho Villac, traz
em seus textos várias referências aos empregados que trabalhavam nas fazendas do
avô ou sinaliza para os empregados do colégio. Maria Clarice indica que os empregados
deveriam ser subservientes e respeitar os senhores brancos e em vários momentos traz
situações num tom irônico, distanciando-se das pessoas negras e mostrando como sua
aparência e seus gestos não fossem legítimos. Em vários momentos esta representação
está presente nos livros.
Maria Clarice traz, de sua vivência aristocrática, aspectos claramente
hierárquicos, por vezes em tom negativo, sobre a população negra que habita suas
histórias. Estas representações precisam ser questionadas e debatidas ao republicar
estas obras. Os livros publicados da década de 1980 e nos anos 2000 trazem os textos
sem cortes e sem demonstração de estranhamento. O presente estudo buscou
apresentar alguns aspectos da diversidade racial no livro e como a imagem do negro se
mostra negativa, seja pelo texto, seja pelas ilustrações.
Se em 2010 houve a polêmica em torno do livro de Monterio Lobato, pouco se
observou que o livro de uma escritora na mesma época publicava um livro com termos
racistas tão graves quanto do autor famoso. Nota-se que as editoras não tomem um
cuidado maior com os textos e as narrativas apresentadas.
A análise das obras, pela abordagem da história cultural, nos permite perceber
não somente marcas fortes de distinções étnico raciais assentadas em diferenças físicas
e cognitivas, como permite perceber a ausência de miscigenação entre os personagens,
uma vez que a estrutura social está assentada no racismo. Nas obras, cada pessoa
sabe seu lugar na estrutura da casa ou do colégio e na estrutura social. No caso dos
empregados, são constantemente humilhados e maltratados pelas pessoas brancas,
seja pelo riso, seja pela expressão no rosto que é vista nas ilustrações.
O professor Kabengele Munanga (1996, p. 215) trata do racismo silenciado e
aponta que:

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O racismo brasileiro na sua estratégia age sem demostrar a sua
rigidez, não aparece à luz, é ambíguo, meloso, pegajoso, mas
altamente eficiente em seus objetivos.

Neste sentido, Maria Clarice, em sua narrativa, traz esta uma representação de
como o negro deveria ser, a partir da perspectiva de uma elite aristocrática. O livro tem
passagens racistas e tal escrita foi elaborada para divertir os leitores mirins, trazendo a
vivência infantil da escritora como criança, sem amenizar ou dialogar com essa sua
infância. As passagens racistas mostram este racismo brasileiro que é ambíguo,
meloso, que parece sufocar, além de tratar mal as pessoas por sua cor de pele, de
diversas maneiras, pois está arraigado no tecido social, uma vez que o racismo no Brasil
é estrutural e perpassa todos os segmentos da sociedade.
Esta breve pesquisa traz algumas luzes para os livros de Maria Clarice, que foi
publicado duas vezes, sem haver um cuidado maior com esta narrativa. Novas
perspectivas podem ser desenvolvidas futuramente, especialmente para ampliar os
olhares.

Referências Bibliografias
ALMEIDA, Sílvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019;

DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Míni Houaiss. Rio de Janeiro (RJ):


Objetiva, 2001;

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: entre incertezas e inquietude. Porto Alegre


(RS): Editora Universidade. 2002;

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GOMES, Nilma Lino. Parecer CNE/CEB Nº: 15/2010. Brasília: 2010. Disponível em:
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MUNANGA, Kabengele. “As facetas de um racismo silenciado”. In: SCHWARCZ, Lilia


Moritz e QUEIROZ, Renato da Silva (orgs.) Raça e diversidade. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo: Estação Ciência: Edusp, 1996, pp. 213 – 229;
1030

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THEODORO, Helena. “Buscando caminhos nas tradições”. In: MUNANGA, Kabengele
(org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005, pp. 83 - 99,
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/racismo_escola.pdf>,
acessado em 08 de novembro de 2018;

SILVA, Ana Célia da. “A desconstrução do livro didático”. In: MUNANGA, Kabengele
(org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005, pp. 21 – 38,
Disponível em <http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/racismo_escola.pdf>,
acessado em 08 de novembro de 2018;

VIOLETA MARIA. (Maria Clarice Marinho Villac). Clarita da pá virada, São Paulo:
"Revista dos Tribunais", 1939190.

VIOLETA MARIA. (Maria Clarice Marinho Villac). Clarita no colégio, São Paulo: Cristo-
Rei, 1945.

190
Obra encontrada na Biblioteca Municipal Hans Christian Andersen, em São Paulo (SP).
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UMA ANÁLISE LITERÁRIA DE MAUS: A HISTÓRIA DE UM
SOBREVIVENTE (1980)

Carlos Eduardo de Araujo Placido, UFMS

Eixo Temático: Grupo Temático 7: Temas polêmicos, interdições e censura na literatura


infantil e juvenil.

Considerações iniciais
A Graphic Novel, Maus (1980) do artista gráfico estadunidense Art Spiegelman
é considerada um divisor de águas nas publicações desse gênero. De forma serializada,
Spiegelman constrói Maus (1980) para retratar temas e motivos intrinsecamente ligados
à guerra e aos conflitos bélicos. O próprio Spiegelman realizou uma entrevista profunda
com seu pai a fim de poder reconstruir as mazelas e os horrores sofridos por esse como
um judeu e polonês da época da Segunda Guerra Mundial. O pai de Spiegelman foi um
dos poucos sobreviventes do Holocausto. Como resultado, seu testemunho possui
grande certificação histórica e humanística.
Por meio de uma perspectiva pós-moderna, Spiegelman relata intensamente as
barbáries sofridas por seu genitor. Entretanto, é por meio da personificação que esse
cartunista reconstrói as diversas barbaridades do Holocausto. Seu protagonista é um
roedor, seus inimigos são uns felinos e, por fim, seus antagonistas são uns suínos.
Desta forma, Spiegelman metaforiza o judaísmo nas vestes de praticamente um
discromia epidérmica do rato, o nazismo nas vestes de um exantema maculopapular e
a discriminação no eritema infeccioso.
Em uma narrativa claramente hodiernamente pretérita, Spiegelman reconta as
memorias falíveis, mas inapagáveis, de seu pai a partir de sua infância até seus
momentos mais aterrorizantes passados nos Campos de Concentração de Hitler.
Maravilhosamente escrito, Spiegelman tenta com Maus (1980) recompor seu
relacionamento defectivo com seu genitor paterno de forma o mais verossímil possível
dentro dos conceitos pós-modernos. Isto porque, Spiegelman desenha sua relação com
seu pai de forma obtusa e indireta. Em vários momentos de Maus (1980), o leitor se
perde ao tentar entender se a relação exposta é harmoniosa ou conturbada. Inclusive,

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há momentos que o rato pai é acusado por crimes que não cometeu como, por exemplo,
a morte da mãe do rato filho. Na realidade, ela se suicidou devido às sequelas provindas
de sua estadia nos Campos de Concentração nazistas.
Segundo o próprio Spiegelman, Maus (1980) não deve ser lido como uma
literatura ipsis litteris, mas como um relato, uma perspectiva sobre um relacionamento
extremamente conturbado entre um filho e seu pai. Interessantemente apontado por
Spiegelman, Maus (1980) apresenta um desenho minimalista para retratar assuntos tão
delicados e controversos de uma das épocas mais horripilantes da humanidade, a
Segunda Guerra Mundial, e de uma das personalidades mais nefastas que já tentaram
reescrever o curso dessa humanidade, Adolf Hitler.
Em consonância, os traços pensativos e conscientes de Spiegelman vão além
de qualquer aquarela gráfica para questionar os atos, frequentemente questionáveis, de
seu pai e a constante dialética da ausência/presença de sua mãe. Devido a uma pletora
de horrores enfrentados durante sua passagem pelos Campos de Concentração
Nazista, ela acabou por se suicidar quando seu filho tinha apenas 20 anos de idade.
Consequentemente, o pai destrói todos as reminiscências da mãe em uma tentativa
perdida de apagar o imensurável. De fato, os feitos de Maus (1980) transcendem a
literatura e em 1992, Spiegelman se torna o primeiro cartunista a receber Prêmio
Pulitzer.
Como pode ser verificado, a obra Maus (1980) de Art Spiegelman vem sendo
solidificada como uma das mais importantes histórias em quadrinhos (BAKHTIN, 2010;
MAINGUENEAU, 2016; RAMOS, 2010), ou Graphic Novels, já produzidas até o
momento. Isto porque Spiegelman (1980) consegue unir artisticamente esse medium
artístico e temas tão relevantes para a se compreender melhor a nossa
contemporaneidade como, por exemplo, o nazismo e a relação pai-filho. Portanto, o
objetivo dessa pesquisa acadêmica é a de analisar literariamente como o nazismo
(BYTWERK, 2008; KOENEN, 2009; SAFRANSKY, 2007) é representado em Maus
(1980) de Spiegelman, além de investigar suas influências inimagináveis e
consequências arrasadoras na relação pai-filho contida nesse texto.

Histórias em quadrinhos: um gênero.


Histórias em quadrinhos (Comic Books, em inglês) pode ser definido como um
tipo de revista cuja construção textual, circulação e consumo ocorrem por meio de
quadros e/ou painéis habilmente justapostos e organizados sequencialmente a fim de
poderem expressar uma determinada narrativa, no geral, diegética. Sendo assim, as

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histórias em quadrinhos podem ser classificadas como gêneros na medida em que os
gêneros bakhtinianos se configuram de forma relativamente estáveis e constantes.
Segundo Bakhtin (2010), para um tipo determinado de texto ser classificado como
gênero, ele deve apresentar história e configurações persistentes, mesmo que
imprecisas ou potencialmente delineáveis. Por conseguinte, as histórias em quadrinhos
apresentam ambas características.
Por outro lado, criticamente a Bakhtin, Maingueneau (2016) prognostica que o
termo Comic Books seria uma tipificação guarda-chuva. Em outras palavras, o conceito
“históricas em quadrinhos” abarcaria diversos outros subconceitos, ou melhor,
subgêneros. Como resultado, todos esses subgêneros compilados poderiam ser
conceitualizados como histórias em quadrinhos. Em consonância, ainda para
Maingueneau (2016), as histórias em quadrinhos seriam na verdade um hipergênero
por abraçar uma pletora de gêneros e subgêneros. Desta forma, as histórias em
quadrinhos não deveriam ser apreendidas diferentemente dos gêneros do discurso, mas
sim um tipo organizacional específico de coerções frágeis.
Na mesma esteira conceitual, e diretamente baseado nos ditames heurísticos e
críticas contra as proposições sobre gênero de Bakhtin tecidas por Maingueneau (2006),
concomitantemente com os prognósticos desse último sobre o hipergênero, o
pesquisador acadêmico, Paulo Ramos (2010), propõe um tipo de organização, ou
melhor, compilação textual. Conforme Ramos (2010), as histórias em quadrinhos seriam
de fato um termo guarda-chuva que abarcaria tanto os considerados cientificamente
como gêneros quanto os considerados cientificamente como subgêneros. Baseado em
sua compilação, Ramos (2010, p. 21) elabora o seguinte quadro conceitual:

Charge Histórias mais curtas (até quatro quadrinhos), de caráter


sintético e geralmente humorístico, normalmente publicadas em
jornais diários (MENDONÇA, 2002, p. 197). A charge costuma
satirizar fatos atuais que normalmente saem nos noticiários. Ela
recria o fato de forma ficcional, estabelecendo com a notícia uma
relação intertextual (ROMUALDO, 2000).
Cartum Relata, ao contrário da charge, um fato atemporal, universal que
independe do contexto de uma época ou cultura. De acordo com
Ramos (2010, p. 23), “não estar vinculado a um fato do noticiário
é a principal diferença entre a charge e o cartum”; no mais, os
dois são muito parecidos.

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Graphic Novel Narrativas “mais longas e completas, publicadas em livros de
capa dura ou cartonada, com 100 páginas em média”; são
produtos “mais bem acabados e voltados para o público adulto”
(ROSA, 2014, p. 50). HQs (comics, nos EUA) – São sequências
narrativas com personagens fixos (MENDONÇA, 2002, p. 197),
publicadas em suportes (gibis, comic books) que permitem uma
condução narrativa maior e mais detalhada que as tiras. No
entanto, em relação às graphic novels, são narrativas mais
breves, de curta duração.
HQs (ou comics, nos EUA) – São sequências narrativas com
personagens fixos (MENDONÇA, 2002, p. 197), publicadas em
suportes (gibis, comic books) que permitem uma condução
narrativa maior e mais detalhada que as tiras. No entanto, em
relação às graphic novels, são narrativas mais breves, de curta
duração.
Tiras Cômicas (ou tirinhas) – Histórias mais curtas (até quatro quadrinhos), de
caráter sintético e geralmente humorístico, normalmente
publicadas em jornais diários (MENDONÇA, 2002, p. 197).
Possuem formato retangular e com poucos quadrinhos, o que
deu origem a seu nome. Suas principais características são:
temática atrelada ao humor; texto de curta extensão (devido à
restrição do formato, que é fixo), construído em um ou mais
quadrinhos; presença de personagens fixos ou não; narrativa
com desfecho inesperado no final (RAMOS, 2010, p. 24).
Tiras seriadas (ou tiras de aventuras) As tiras seriadas estão ligadas a uma
história maior, só que é narrada em partes, assim como ocorre
com as telenovelas. Cada tira traz um capítulo diário interligado
a uma trama maior; se as tiras forem acompanhadas em
sequência, funcionam como uma história em quadrinhos mais
longa (HQ). Por isso, é muito comum o material ser reunido
posteriormente na forma de revistas ou livros (RAMOS, 2010, p.
26). Esse gênero quase não existe no Brasil, embora já tenha
sido muito popular no país; ainda é produzido nos Estados
Unidos e, até alguns anos atrás, na Argentina (op. cit., p. 27).

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Tiras cômicas “Fica na exata fronteira que separa a tira cômica da tira seriada”:
seriadas trata-se de um texto que usa elementos próprios às tiras
cômicas, como o desfecho inesperado da narrativa e o efeito de
humor, mas, ao mesmo tempo, a história é produzida em
capítulos, assim como ocorre com a tira de aventuras (op. cit., p.
27).
Literatura em São adaptações de obras literárias em histórias em quadrinhos.
quadrinhos Cirne (1990, p. 31) ressalta que a transposição da literatura para
o mundo dos quadrinhos “implica uma série de questões ligadas
à intersemioticidade das propostas semânticas, estéticas,
informacionais”, ou seja, transpor uma obra literária para os
quadrinhos significa assumir os códigos de uma outra
linguagem.
Quadrinhos (ou webcomics ou HQtrônicas) – Quadrinhos publicados na
eletrônicos internet, ricos em diferentes recursos de linguagem. São
“trabalhos que unem um (ou mais) dos códigos da linguagem
tradicional das HQs no suporte papel, com uma (ou mais) das
novas possibilidades abertas pela hipermídia”, definição que
exclui as HQs que são simplesmente digitalizadas (FRANCO,
2012, p. 233). De acordo com Franco (op. cit., p. 234-235), tais
quadrinhos podem apresentar: animação, interatividade,
diagramação dinâmica, trilha sonora, efeitos sonoros, tela
infinita, narrativa multilinear.
Mangá Nome dado às histórias em quadrinhos de origem japonesa, que
são “caracterizadas por suas tiragens astronômicas e por um
estilo peculiar de desenho e produção” (LUYTEN, 2012, p. 9).
Nas últimas décadas, o mangá, de origem oriental, tem cada vez
mais ganhado notoriedade no mundo ocidental. De acordo com
Luyten (2003), foram os desenhos animados, os animês, que
deram grande difusão ao conhecimento dos mangás, quando as
editoras japonesas e os estúdios de cinema e animação
começaram a fazer contratos em grande escala com vários
países ocidentais.

Tabela 01: O hipergênero história em quadrinhos (RAMOS, 2010)

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Uma análise literária de Maus: uma história de sobrevivente
A narrativa hodiernamente pretérita de Maus (1980) se inicia de forma amena,
quase insignificativa. Um jovem rato patina com seus “amigos” por entre os espaços
embaçados de Rego Park, em uma talvez manhã de outono ou tarde de inverno. De
repente, ele se acidenta sem seriedade. Entretanto, seus amigos continuam a patinar,
mas o jovem rato para suas atividades e decidi retornar a casa. Já em sua moradia, o
jovem rato se depara com seu genitor, Vladek. Este por sua vez o indaga sobre suas
emoções entristecidas. Como resposta abruta, o jovem reclama que fora deixado para
trás por seus amigos. Neste momento, a narrativa minimalista de Spiegelman (1980) se
funde com reflexões inquietantes do rato pai:

Figura 1: Rato pai e rato filho (SPIEGELMAN, 1980)

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Por meio das falas do rato pai, o leito pode perceber o quão inquietante são seus
sentimentos, principalmente em relação ao outro. O rato pai indaga seu filho diretamente
sobre a seriedade e veracidade da amizade que ele proclama ter com aqueles
denominados amigos. Interessante de notar que o próprio Art Spiegelman tentou várias
vezes se relacionar com o seu pai na realidade, mas sem sucesso. Sem sucesso,
segundo às próprias palavras de Spiegelman, seu pai sempre se mostrou alguém
distante e inofensivo. Segundo Safransky (2007) a linguística nazista é sanguinária , ou
seja, ele enfatiza a relevância dos discursos para se compreender melhor as
atrocidades vividas pelos judeus nesse período histórico.

Figura 2: Gato nazista e rato judeu (SPIEGELMAN, 1980)

Nesse quadro aterrorizante, Spiegelman (1980) consegue expressar nitidamente


uma das diversas atrocidades experienciadas pelo pai rato e outros ratos durante as
estadias forçadas nos Campus de Concentração da Alemanha Nazista. O gato soldado
representa um oficial de Hitler e, por ordens diretas ou indiretas, exerce a força
descomunal e promulga o medo incessante entre aqueles sem voz. A falta de voz do

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rato oprimido é tão clara que a arma do gato soldado está apontada diretamente a sua
boca. Como resultado, esse quadro expressa a opressão descarada do modus operandi
nazista acerca do silenciamento da humanidade. De acordo com Safransky (2007), os
diversos atos judeus durante nazismo são um claro exemplo da resistência do indivíduo
à opressão, ao desumano e à destruição da vida.

Figura 3: Ratos aprisionados (SPIEGELMAN, 1980)

Nesse quadro excruciante, Spiegelman (1980) desenha a desnudez humana


pelos olhos dos gatos nazistas. Para o leitor, é um pouco difícil diferenciar habilmente
os ratos uns dos outros, na medida em que estão todos de uniformes de presidiários,
com expressões escurecidas em suas faces, fortalecidas por traços esbranquiçados que
denotam olhares desnudos, sombrios e entristecidos. Para Bytwerk (2008), os nazistas
fizeram de tudo possível e impossível para aprisionar as mentes daqueles considerados
diferentes, mormente os judeus. Já para Koenen (2009), um dos principais objetivos
dos nazistas era o expurgo e a homogeneização da sociedade para que os
arianos retomassem seu posto de soberania humana. Para se atingir essa meta,
os não arianos deveriam ser aprisionados mental e fisicamente como demonstra
o quadro acima de Spiegelman (1980).

Considerações finais
A obra artística Maus (1980) de Art Spiegelman vem se solidificando como uma
das histórias em quadrinhos mais relevantes de nossa atualidade. Isto porque ela nos

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ajuda a entender um pouco melhor nossa contemporaneidade e as diversas atrocidades
decorrentes dos atos mais inimagináveis possíveis. Para Spiegelman, o ser humano é
capaz de uma

pletora de atos horripilantes. Entretanto, ele também desenha traços de esperança


quando, por exemplo, o rato filho tenta reconstruir sua relação familiar com o rato pai. A
esperança parece não ser apenas a última que morre, mas também a última a ser
derrotada.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Paulo Bezerra. Organização, Tradução,
Posfácio e Notas. Notas da edição russa: Seguei Botcharov. São Paulo: Editora 34,
2010.

BYTWERK, Randall. Landmark Speeches of National Socialism. Texas A&M University


Press, 2008.

KOENEN, Gerd. Utopia do Expurgo: o que foi o comunismo. Ijuí-RS: Editora Unijuí,
2009.

MAINGUENEAU, Dominique. Genre, hypergenre, dialogue. In: Calidoscópio. São


Leopoldo: UNISINOS, maio/agosto de 2016. v 3. n 2. p. 131-137.

RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2010.

SAFRANSKY, Rüdiger. Romantik – Eine deutsche Affäre. Munique, Carl Hanser Verlag,
2007.

SPIEGELMAN, Art. Maus: a história de um sobrevivente. Ilustrações do autor; trad.


Antonio de Macedo Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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GRUPO TEMÁTICO 8:
LITERATURA INFANTIL E ENSINO

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TODOS CONTRA DANTE: RODAS DE LEITURA E A
SENSIBILIZAÇÃO PARA QUESTÕES SOCIAIS

Ana Clara de Araújo Marques (UFPB)


Layne Maria dos Santos Batista Lira (UFPB)
Joaes Cabral de Lima (UFPB)

Eixo Temático: Literatura infantil e ensino

Considerações iniciais

Muitas vezes nos deparamos com a literatura desvinculada do leitor como ser
subjetivo, sensível e sujeito histórico-social. Estamos acostumados a práticas voltadas
para preencher critérios pré-determinados e a subjetividade tende a ficar perdida entre
fichas e avaliações.
A partir de uma pesquisa qualitativa descritiva, mostraremos, nesse artigo, que
o leitor pode e deve ser um sujeito pensante e sensível. Para que essa finalidade seja
atingida, escolhemos trabalhar a partir das rodas de leitura, que instiga reflexões e
questionamentos, sobre a obra Todos Contra Dante (2008), que narra a história e as
consequências da agressão ao protagonista, Dante, e a forma que cada agressor teve
de refletir sobre a repercussão de seus atos.
Esse livro foi escolhido não só para sensibilizar, como conscientizar acerca dos
impactos que o bullying tem em cada indivíduo, também tenta mostrar ao leitor que você
pode e deve pedir ajuda se for uma vítima e que suas ações têm consequências, caso
seja o agressor, além de apontar que seu silêncio torna-se cúmplice, e que tudo há um
limite, então, não seria melhor repensar nas atitudes antes que não haja mais tempo?

Todos Contra Dante: considerações sobre a obra

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A obra Todos Contra Dante (2008), da autoria de Luís Dill, nos traz o enredo que
é construído a partir do final, ou seja, a obra não segue uma linearidade. A partir de
trechos de conversas, telefonemas, postagens em redes sociais, blogs, etc., podemos
edificar a história de Dante, um menino negro, pobre, que muda de cidade e passa a
frequentar uma escola particular em que, aparentemente, todas as personagens são
socialmente privilegiadas, o que acaba por causar um choque muito grande entre nosso
protagonista e os antagonistas dessa história.
Vítima constante de bullying, Dante era autor de um blog que usava como diário
para relatar seu dia-a-dia; a saudade que sentia de sua vizinha, por quem ele era
apaixonado; a violência que sofria de todos os seus colegas da escola, em especial,
àquelas oriundas das ações de um grupo específico, composto por quatro crianças que
serão descritas detalhadamente por ordem de aparição.
A história inicia-se com uma menina muito nervosa e ansiosa fazendo uma
ligação para um amigo, ela se chama Manoela, e sente-se mal devido às possíveis
repercussões acerca da sua participação no ocorrido. Antes de tudo acontecer, ela era
uma menina dócil, honrada, querida e praticava Jiu-Jitsu. Ela telefona para James, um
menino racista, machista e dissimulado que tem um forte papel no bullying cometido
contra Dante. Então, teremos Davi que é um jogador de tênis, que sente-se mal pela
sua participação no ocorrido, na maior parte da história, se mostra ansioso, mas
mantém-se racional. E por fim, Cauã, que é o líder nas agressões, ele é um personagem
frio, competitivo, inconsequente e sente orgulho de suas façanhas violentas contra os
demais.
Juntos eles serão responsáveis por transformar a vida de Dante em um grande
tormento. Iniciaram por apelidos como o principal que sempre o perseguia: Koisafeia e
comentários maldosos; depois uma comunidade na rede social, Orkut, é criada e
chamada de Eu sacaneio o Dante em que há a postagem de diversos fóruns em que
acontecem vários debates negativos sobre o menino, como o “doença ou feiura
mesmo?” e “qual a melhor maneira de torturar o koisafeia?” entre vários outros.
As discussões seguiam sem limite, sem cuidado e sem zelo; chegam a fazer um
abaixo-assinado para expulsar o menino da escola por conta de sua pobreza e sua
“feiura”; até culminar na violência física que é a causadora da ansiedade de todos os
nossos antagonistas. O grupo descrito acima se reúne para bater em Dante. São 4
contra 1. Deixaram Dante inconsciente no chão.
Toda a agonia e desespero gira em torno da pergunta: Dante está morto ou vivo?
Eles não haviam ficado para conferir, mas sabem que o menino foi encontrado e está

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no hospital. Todos os alunos da escola suspeitam deles que seguem firmemente
negando, até a notícia que os faz quebrar a união (no momento em que Cauã diz que
está cada um por si). Dante teve uma morte cerebral e a família decidiu desligar os
aparelhos. Eles o assassinaram.
Entre diálogos, fóruns e links, temos os relatos trazidos a partir dos trechos do
blog que Dante escreveu, enquanto ainda estava vivo, e podemos perceber que ele era
uma criança dócil e que estava sofrendo por amor, era apaixonado por sua vizinha, mas
não era correspondido, sentia falta dela e queria revê-la; que o pai abandonou a ele,
seu irmão e sua mãe e como ele havia ficado sensibilizado depois dessa atitude; como
ele se sentia mal devido a toda violência direcionada contra ele.
Como ele se chama Dante e sofre, acaba sentindo forte apreço pelo Inferno, de
Dante Alighieri, e utiliza em suas postagens, diversos trechos que combinam com os
momentos de sua vida ao longo da narrativa, inclusive, ele escreve o blog com o estilo
de carta endereçada ao grande autor italiano. Apesar de toda a simpatia e carisma,
Dante acaba por virar mais uma manchete de jornal e um símbolo de luta para aqueles
que não querem mais permanecer silenciados.

Rodas de Leitura em obras contemporâneas

Quando pensamos em literatura na escola, somos imediatamente carregados


para a lembrança das fichas de leitura, das provas com interpretações pré-determinadas
e análises gramaticais. Também podemos lembrar dos cânones da literatura e como era
difícil sentir algum prazer ou conexão com a leitura. Muitos pendiam para a típica
resposta “eu não gosto de ler”, mas será que se os métodos e referências tradicionais
sofressem uma renovação, uma transgressão, a resposta continuaria a mesma?
Diante disso, começamos a pensar tanto em obras quanto em metodologias que
poderiam tornar essa prática mais prazerosa e que possam fazer com que os discentes
passem a entender que “a leitura tem de ser pensada não apenas como procedimento
cognitivo ou afetivo, mas principalmente como ação cultural historicamente constituída”
(EVANGELISTA E BRANDÃO, 1994, p. 84 apud SILVA, 2003, p. 515), então, o objetivo
é fazer com que os alunos, além de sentir afeto e entender a história, também entendam
as obras como uma ação cultural que não só existiu, como ainda existe. É uma forma
de compreender seu contexto histórico.
Sabendo disso, pudemos concluir que uma das funções primordiais do professor
de literatura é instigar o aluno, fazer com que o mesmo reflita, compreenda, estude e

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pesquise o que está sendo lido, porém, como fazê-lo sem que seja de forma monótona?
Como escapar dos fragmentos expostos pelo livro didático?
“É durante a interação que o leitor mais inexperiente compreende o texto: não é
durante a leitura silenciosa, nem durante a leitura em voz alta, mas durante a conversa
sobre aspectos relevantes do texto.” (Kleiman, 1996, p. 24 apud SILVA, 2003, p. 516),
ou seja, através do diálogo, da discussão, que o leitor terá uma melhor noção acerca do
que foi lido, a partir das reflexões e interpretações realizadas ao longo da leitura. A partir
dessa troca de ideias, haverá uma interpretação e entendimento mais aprofundado da
obra escolhida. Também vale acrescentar que esse é um dos maiores desafios que o
docente pode ter ao longo do ensino, como afirmam Beach, Marshall e Silva:

[...] o desafio do professor é ajudar os alunos a elaborar ou rever suas


interpretações iniciais, sem descartar totalmente suas primeiras
leituras. O professor deve colaborar com os alunos, visando à
construção/reconstrução de interpretações e não simplesmente
apresentando leituras já prontas. Conforme esses autores (1991: 09),
uma das formas de mapear alguns problemas relacionados ao ensino
de literatura é considerar a interação entre professor, alunos e texto.
(Beach e Marshall, 1991, p. 39 apud SILVA, 2003, p. 520 e SILVA).

Tendo essa noção edificada de que uma das melhores maneiras de construir
leitores críticos é a partir do diálogo, vem a pergunta: como ele seria conduzido? De que
forma ele se daria? Rouxel (2013) aponta que há diversos saberes acerca da literatura
e um deles é denominado de “saberes sobre si” em que haverá a expressão mais
voltada para um pensamento pessoal e de julgamento de gosto, também é a afirmação
de uma subjetividade motivada através da leitura. Essa subjetividade e discussão seria
veiculada a partir da prática de rodas de leitura.
A roda de leitura se constitui na ideia da divisão de “tarefas” acerca do texto/obra
escolhido (a) e a discussão girar em torno dos dados coletados, mas mais que uma
atividade realizada em sala de aula, a roda de leitura terá o papel de estreitar os laços
sociais, reforçar a identidade e a solidariedade (COSSON, 2014, p. 139).
Pensando na solidariedade e sensibilidade, a obra escolhida para ser trabalhada
foi Todos Contra Dante (2008), de Luís Dill, que a partir dessa prática terá um impacto
e influência sobre seus leitores após a discussão. Segundo Cosson (2014) a roda de
leitura se dividirá em nove funções. Sabendo disso, discutamos sobre elas,
relacionando-as à obra escolhida.
1) Conector – este será responsável pela conexão entre obra ou trechos com a
vida e momento. Neste tópico, o leitor poderá narrar suas próprias vivências, se assim
como Dante foi vítima de bullying ou se foi um agressor, poderá aproveitar esse
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momento para narrar o que o motivou, o que foi feito e como se sente depois de
contemplar o lado da vítima.
2) Questionador – este terá a função de organizar perguntas sobre a obra para
seus colegas responderem, o que acaba levando a uma discussão e reflexões, essas
perguntas, geralmente, são de cunho analítico, por exemplo: por que Cauã agia com
uma frieza evidente em diversos trechos do livro? Qual foi o impacto do bullying na vida
de Dante? Isso o mudou de alguma forma? Aqui, o responsável pelos questionamentos,
terá que instigar a turma a ponderar sobre a leitura realizada.
3) Iluminador de passagens – este escolherá uma passagem para mostrar a
turma, pode ser porque é bonita, porque é difícil, porque é essencial. Por exemplo, uma
passagem essencial é a do momento em que Dante decide não continuar submisso e
ocorre uma mudança dentro dele.
4) Ilustrador – este levará imagens para representar, ilustrar, o livro. Por
exemplo, o aluno poderá pesquisar fotos que o remetem a história de Dante, poderá
desenhar como era a vida do personagem em meio às situações às quais ele era
submetido e escolher a forma que mais se adequa a seu estilo para mostrar a turma.
5) Dicionarista – este levará os significados das palavras difíceis e ou relevantes
para o livro. Sendo assim, os alunos buscariam em Todos contra Dante, palavras que
provavelmente dificultariam a leitura e que necessitariam de significados para que a
leitura acontecesse de maneira mais satisfatória e compreensível.
6) Sintetizador – este terá a responsabilidade de fragmentar e resumir o texto.
Ele dividirá a obra em momentos, para contar a turma, por exemplo: primeiramente,
temos a entrada de Manoela que é dada através de um telefonema entre ela e James,
ela está apreensiva por sua participação na agressão contra Dante...
7) Pesquisador – este será responsável por fugir da subjetividade a qual fomos
contemplados até então. Aqui haverá a responsabilidade de pesquisar o contexto
histórico e outras informações que são relevantes para a leitura do livro, como o fato da
obra ter sido baseada em fatos reais.
8) Cenógrafo – este descreverá as cenas principais. Por exemplo, poderá narrar
como foi o momento em que Dante estava sendo espancado pelos colegas.
9) Perfilador – este traçará o perfil das personagens mais intrigantes, mais
importantes. Por exemplo, aqui será destacado que Dante é uma pessoa dócil e
sensível, mas há um momento em que sua personalidade não suporta mais a violência
e decide mudar para quebrar com o padrão de submissão ao qual vem se sujeitando.

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A partir da roda de leitura, podemos perceber que os alunos lerão a obra para
cumprir suas funções, refletirão a partir de seu papel, assim como, pensarão e discutirão
acerca das contribuições de seus colegas. Maior parte das percepções são de natureza
subjetiva, mas algumas das funções são voltadas para o contexto histórico, mostrando
assim que nem só de interpretações vive o texto, afinal, também se faz necessária uma
ambientação do mesmo. E além de ser uma experiência com potencial para formar
leitores mais críticos e interessados, a roda de leitura também tem a função de
sensibilizar acerca da temática proposta na obra, que nesse caso é o bullying.

A sensibilidade infantil: a temática do bullying em Todos Contra Dante

Primeiramente, definamos o que seria o bullying: comportamentos agressivos


que são praticados por um indivíduo ou por grupos que podem ser atos físicos como
bater, ou psicológicos como xingar, humilhar, extorquir, difamar, discriminar, excluir, etc.
Sabendo de que o bullying se constitui, podemos perceber infinitos momentos
em que Dante enfrentará esses comportamentos por parte de seus colegas de escola.
É constante, é um preconceito acerca de seu físico, como o nariz proeminente, a cor de
sua pele, seu padrão de beleza que quebra com o convencional, assim como também
há o forte preconceito contra a sua condição social. Todos os outros têm uma boa
posição social. São ricos e por isso se acham no direito de fazer o que quiserem sem
que haja consequências. É algo incômodo de se ver. Eles não levavam em consideração
a forma que o menino deveria se sentir depois de toda a violência que lhe foi
direcionada.
As agressões contra Dante parecem progredir ao longo da história. Começou
com os apelidos maldosos, como o “koisafeia”, depois uma comunidade foi criada, até
culminar na violência física que acaba por resultar na morte do personagem. A
humilhação em grupo contra o menino, realizada através da internet, é muito forte.
Primeiramente, a comunidade chamada de “Eu sacaneio o Dante” posta diversos fóruns
e depois ocorre o debate acerca do tópico sugerido. Todos os comentários são
negativos, ninguém tenta defendê-lo, e alguns são de natureza perturbadora, como a
insinuação que Dante tinha relações sexuais com a sua própria mãe, observemos no
fórum abaixo:

Fórum: por que o pai do koisafeia caiu fora?


IRON MÁRCIO: quando viu o bebê que tinha feito...
QUEIMO TUDO: não é que pai do koisafeia tenha se mandado. é que
o cara tá enjaulado no presídio central.
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SOL&MAR: porque a mãe do koisafeia é uma mala.
#*!§*#: gente, o koisafeia não tem pai. ele surgiu da união de um monte
de dejetos, rastejou para fora de um esgoto, e a mãe dele ficou com
pena e resolveu pegar pra criar.
GLAMOURGIRL: o pai do koisafeia se mandou porque tem vergonha
do filho, lógico.
XANDRINHA: ueba! finalmente uma pergunta que posso responder. a
mãe do koisafeia não sabe quem é o pai [link] então, o koisafeia nunca
vai saber quem é o pai dele, e o pai do koisafeia nem deve saber que
tem um filho. bom,
melhor pro cara, né?
zzzzz: dizem que o koisafeia teve um lance com a própria mãe, aí o
cara ficou muito indignado e se mandou. (DILL, Luís. 2008, p. 83).

Como pôde ser visto no trecho acima e no conceito previamente citado, o bullying
não se limita a um grupo de pessoas batendo na outra, mas também envolve
humilhações em seus mais diversos veículos, como a internet, por exemplo. Também
podemos observar que os agressores tendem a fazer o possível e impossível para
atingir a vítima, inclusive insultar seus familiares, que para a vítima em questão é a pior
coisa que poderia ser feita contra ele, como pode ser visto num trecho de postagem em
seu blog “mas o pior de tudo foi terem falado tanto da minha mãe e do meu pai” (DILL,
Luís. 2008, p. 87).
Sem se importarem, os agressores estavam minando a confiança, a alegria, o
prazer de viver desse menino. Ele não queria mais ir para a escola, foi se isolando e se
tornando melancólico, possivelmente depressivo, por conta de tudo que estava sendo
feito contra ele “Vim para esse colégio pra me preparar melhor pro vestibular, segundo
disse a minha mãe. Esse foi meu único pecado. Começo a gostar da ideia do exílio.
Gosto da ideia de viver fora, como tu, meu velho amigo.” (DILL, Luis. 2008, p. 63).
É impossível não se sensibilizar a tudo que o personagem tem de vivenciar
durante a sua história e a seu desenvolvimento consequente de tudo o que ele é
obrigado a viver. A forma que ele precisa de ajuda, mas não pede para não deixar sua
mãe triste; que ele tenta levar as coisas de uma maneira tranquila, como brincadeira; o
momento que ele decide tomar uma atitude e enfrentar seus agressores:

Dizem que basta uma gota d’água para romper um dique. O episódio
de hoje foi a minha gota d’água. Eu poderia muito bem contar tudo pra
minha mãe e pro meu irmão. Principalmente pro meu irmão. Ele é um
cara meio estourado. Aposto que se eu contasse ele iria no colégio e
quebraria a cara de todos e de todas as riquinhas que me enchem o
saco. Mas não vou fazer isso. Eu mesmo vou mostrar pra eles. De
agora em diante nada mais vai ficar sem resposta. (DILL, Luís. 2008,
p. 71).

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Aí podemos presenciar a mudança do garoto dócil, para cansado e vingativo. Ele
vai em busca de justiça com as suas próprias mãos, uma vez que em momento algum
quis pedir ajuda. Então, ele procura o grupo de amigos antes mencionado (Manoela,
James, Davi e Cauã) que são os responsáveis pela última agressão contra ele. O
momento em que ele decide se defender e enfrentá-los, eles se juntam e depois de um
chute nas costas, espancam-no até a morte.

O celular de Cauã vibra em seu bolso. Ele está subindo as escadas em


direção à sala de aula. Número desconhecido.
- Alô?
- Presta atenção.
- Alô? Quem é?
- Aqui é o cara que vai acabar com a tua vida. Agora escuta com muita
atenção.
- O quê?
- Eu vi tudo. [link]
- Viu o quê, meu? Quem tá falando?
- Vi a voadora.
- ...
- O Dante caiu de cara no chão.
- Alô?
- Deve ter quebrado umas costelas dele. A espinha também.
- Meu, quem tá falando?
- O cara que foi excluído daquela comunidade idiota e que agora vai
acabar contigo, porque eu vi tudo. Depois da tua voadora, foi a vez do
James, do Davi e da Manu...
- Não sei de nada, meu!
- ... terminaram o serviço.
- Não vi nada, meu!
- Quatro contra um...
- Vou desligar.
- ... que covardia. (DILL, Luís. 2008, p. 77).

Nesse trecho somos contemplados com a descrição do espancamento de Dante


a partir da perspectiva de uma testemunha que se revolta e decide tomar uma atitude,
tendo em vista que eles haviam saído impunes de todos os demais crimes, pois, a escola
sempre os protegia, mesmo consciente dos comportamentos dos garotos.
Depois da leitura dessa obra, podemos perceber a importância do respeito ao
próximo, da empatia, assim como a necessidade de se impor e pedir ajuda quando
necessário. Também podemos nos conscientizar acerca dos impactos do bullying que
foi tirando a alegria de viver de uma criança por meio das humilhações que lhe
aconteciam. Aprendemos que o silêncio também é uma forma de agressão e que toda
ação tem sua consequência.
A parte mais dura é saber que a obra foi baseada em um caso real e toda essa
dor e sofrimento acabam se transformando em apenas mais uma manchete de jornal,
como é apontado no livro. Até que ponto a violência chegará antes da consciência?

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Considerações Finais

Por meio deste artigo, pudemos conceituar e explicitar a importância da


realização da roda de leitura em salas de aula, pois, a partir dela o leitor pode ser
redirecionado, de modo a tornar-se mais crítico e reflexivo, assim como um sujeito
sensível ao que lhe é apresentado, o que leva diretamente para a outra função
primordial de, a partir da obra Todos Contra Dante, haver uma reflexão acerca das
dimensões as quais o bullying pode alcançar e as consequências que vêm com ele,
neste caso foi a morte da vítima.
Então, a roda de leitura com esse livro provoca não só uma atitude ou relato por
parte da vítima, mas também questionamentos para o agressor que pode estar agindo
sem pensar no que aquilo provoca no outro. Portanto, por meio dessa roda de leitura,
fica evidente a presença da sensibilização, no que concerne às questões sociais no
contexto, principalmente do ambiente escolar, e aqui posto a partir da realidade de uma
criança, nos fazendo refletir acerca de questões que permeiam a sensibilidade no
universo infantil.

Referências

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2019.
Ed. 1. p. 137 – 148.

DILL, Luís. Todos contra D@nte. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Pereira, B. O., Neto, W. B., Zequinão, M. A., & Silva, I. P. (2015). Prevenção do
Bullying no Contexto Escolar: Implementação e Avaliação de um Programa de
Intervenção. In P. Pereira, S. Vale, & A. Cardoso (Eds.). Livro de Atas do XI Seminário
Internacional de Educação Física, Lazer e Saúde (SIEFLAS). Perspectivas de
Desenvolvimento num Mundo Globalizado (pp. 535-544). Porto: Escola Superior de
Educação, Instituto Politécnico do Porto.

ROUXEL, Annie. Aspectos metodológicos do ensino da literatura. 2003.

SILVA, Ivanda Maria Martins. Literatura em sala de aula: da teoria literária à prática
escolar. In: PG LETRAS 30 ANOS, 2003. p. 514-527.

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POLÍTICAS PÚBLICAS DE LEITURA: A DISTRIBUIÇÃO DA
LITERATURA PELO PNBE E PNLD LITERÁRIO

Israel Niwton da Costa Pereira, PIBIC/UFPB


Ana Magally Pereira de Freitas, PIBIC/CNPq
Daniela Maria Segabinazi, UFPB

Eixo Temático: Grupo Temático 8: Literatura infantil e ensino.

Considerações iniciais
Existem no Brasil ações que têm por objetivo a distribuição de obras literárias
para as escolas públicas, sejam por ações de incentivo à leitura pela iniciativa privada,
ou através dos programas desenvolvidos pelo governo. Até 2014, foi o Programa
Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) que mais distribuiu acervos de literatura para as
escolas públicas de educação básica, o programa passou por interrupções e somente
em 2018 é que uma nova proposta para distribuições de obras literárias às escolas de
educação básica foi apresentada através do decreto presidencial nº 9.099 de 18 de julho
de 2017, que o substituiu pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD
Literário).
Programas de distribuição de livros nas escolas públicas em nosso país
deveriam ser uma política de estado, isso porque ações desse tipo devem ultrapassar
a marca de meros programas governamentais, então, ao tratarmos desses dois
programas faremos nossa crítica sobre uma política de distribuição de obras literárias
que ganha nova roupagem com mudanças de governos, mas que ainda se faz presente
nas ações do poder público, muito embora nos últimos anos tenha apresentado
problemas bastante peculiares, os quais alguns serão apontados ao longo deste
trabalho.
Ao entrarmos neste campo das políticas públicas, somos muitas vezes
instigados a militar e advogar em defesa daquilo que realmente acreditamos. É diante
de trabalhos como este que questionamentos fortes precisam ser apresentados. Em
tempos sombrios em que as artes, inclusive a literatura, passam a ser censuradas, onde
os investimentos sociais são cada vez mais sucumbidos, passamos a nos perguntar se
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realmente dispomos de uma efetiva política pública de distribuição de livros de literatura
para as escolas de educação básica.
Este estudo tem por objetivo apresentar e discutir dados sobre os programas de
distribuição de obras literárias no âmbito das escolas públicas brasileiras, PNBE e PNLD
Literário, especificamente as últimas ações dos programas para turmas de séries iniciais
do ensino fundamental. Utilizamos uma abordagem quantitativa e qualitativa de dados.
Inicialmente apresentamos e discutimos dados referentes aos investimentos feitos com
os programas nos últimos anos. Em seguida, trouxemos outros dados que nos
direcionaram a verificação da chegada dos livros às escolas, bem como seus
posteriores efeitos de utilização nesses espaços.
Também analisamos os editais para o PNBE 2014 (Edital 04/2012 – CGPLI) e
PNLD Literário 2018(Edital 02/2018 – CGPLI), especificamente os processos de
inscrição, avaliação, seleção e distribuição de obras de literatura destinadas às escolas
dos anos iniciais do ensino fundamental.
Para isso, tivemos como referências os dados estatísticos disponibilizados pelo
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FNDE), além de dois estudos
que investigaram o programa no interior das escolas, um organizado pela pesquisadora
Aparecida Paiva (2012) nas escolas da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, o
outro, realizado por nós nas escolas da Rede Municipal de Ensino de João Pessoa.
Através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, realizamos
a pesquisa “Da seleção ao ato de ler: os livros do Programa Nacional do Livro e do
Material Didático (PNLD/Literário 2018 e 2020)”, que serviu de partida para este
trabalho, bem como nos forneceu dados para discussão mais precisa e próxima da
realidade das escolas com esse novo programa em a sua primeira edição.
Aparecida Paiva, professora do programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais, realizou diversas pesquisas sobre os
desdobramentos do PNBE, dentre elas uma de suas grandes divulgações que reúne
quatro dessas pesquisas foi titulada de Literatura fora da caixa: O PNBE na escola –
Distribuição, circulação e leitura (2012). Por ser um grande estudo que adentrou os
espaços de efetivação do PNBE, foi essa uma de nossas principais referências ao
tratarmos desse programa.
Sendo assim, foi possível refletir a partir disso, os futuros caminhos dessa
política pública de distribuição e incentivo à leitura literária, seus modos de
implementação e efetivação.

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Investimento público em distribuição de acervos literários para as escolas de
educação básica: uma análise dos dados do FNDE
Desde 1998 o governo brasileiro realizou ações em distribuições de obras
literárias que tiveram como objetivo constituir, renovar e qualificar os acervos das
bibliotecas das escolas públicas de educação básica. Estas ações que se caracterizou
como uma política de estado foram reunidas em um único programa que ultrapassou
fronteiras de mandatos governamentais. O PNBE, desde então, foi o programa que mais
promoveu o acesso ao livro, à leitura e a literatura no interior das escolas.
O FNDE disponibiliza dados das distribuições com os programas no site:
https://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro. É possível visualizar
informações sobre os investimentos, bem como o número de alunos e escolas atendidas
e algumas especificidades dos programas. Nós resumimos informações sobre o PNBE
para que fosse possível destacar a continuidade e expansão desse programa ao longo
de suas edições, conforme destacamos abaixo na tabela cronológica.

Tabela 1 - Dados estatísticos das distribuições do PNBE entre 1998 e 2012

QUANTIDADE DE
PROGRAMA FINANCEIRO
LIVROS DISTRIBUÍDOS
PNBE 1998 3.660.000 livros R$ 29.830.886,00
PNBE 1999 3.924.000 livros R$ 24.727.241,00
PNBE 2000 3.728.000 livros R$ 15.179.101,00
PNBE 2001 60.923.940 livros R$ 57.638.015,60
PNBE 2002 21.082.880 livros R$ 19.633.632,00
PNBE 2003 49.034.192 livros R$ 100.843.633,30
PNBE 2005 5.918.966 livros R$ 47.268.337,00
PNBE 2006 7.233.075 livros R$ 45.509.183,56
PNBE 2008 8.601.932 livros R$ 65.283.759,50
PNBE 2009 10.593.491 livros R$ 77.498.631,10
PNBE Especial 1.241.458 livros R$ 9.869.621,25
PNBE Professor 6.983.131 livros R$ 59.019.172,00
PNBE 2010 22.191.131 livros R$ 77.827.225,79
PNBE 2011 17.115.844 livros R$ 101.962.988,98
PNBE 2012 22.251.253 livros R$ 4.684.684.860,76
Fonte: FNDE (c2017)

Verificamos com esses dados, que ao longo dessas edições, houve uma
regularidade na distribuição de obras para as escolas. Também foi possível constatar
uma expansão do público de atendimento. O PNBE durante seu período de vigência fez
em média distribuições a cada dois anos. Em 2000, foi feita uma distribuição de

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materiais pedagógicos voltados para a formação continuada de professores e, a partir
de 2003, o programa passou a incluir esses materiais em uma subcategoria classificada
de Biblioteca do Professor; no mesmo ano, outras ações de incentivo à leitura foram
inseridas, foram elas: Literatura em Minha Casa, que atendeu estudantes de 4ª e 8ª
série com livros para uso individual; Palavra da Gente para os estudantes da Educação
de Jovens e Adultos (EJA); Casa da Leitura que distribuiu acervos de bibliotecas
itinerantes para uso comunitário nos municípios; e o Biblioteca Escolar contemplando
as ações do programa. No ano de 2004 foi dada continuidade nas ações de 2003.
(FNDE, c2017)
Nos dados do PNBE 2005 há um destaque que inserem informações referentes
as especificidades da distribuição, até então não mencionado nas últimas edições. São
dados sobre materiais de inclusão para surdos que foram distribuídos naquele período,
a coleção “Clássicos da Literatura em Libras em CD-ROM’s”. Segundo o FNDE, “No
âmbito desta ação, foram beneficiados 36.616 alunos, em 8.315 escolas. O
financiamento, em aquisição e distribuição, totalizou R$ 686.000,00.” (c2017).
Até o ano de 2006, a sigla do programa seguida do ano se referia ao período de
aquisição, mas a partir 2007 o nome do programa passou a se referir ao ano de
atendimento. Em 2010 o programa promoveu mais três grandes ações, além da
distribuição regular, foram distribuídos acervos com o PNBE do Professor e o PNBE
Especial; a partir deste mesmo ano o programa também passou a adquirir periódicos
para distribuição às escolas.
A partir disso, podemos concluir que o PNBE buscou ser o mais inclusivo
possível, nota-se a preocupação de não só distribuir obras literárias destinadas aos
diversos níveis de ensino, mas também de distribuir materiais que promovem o
conhecimento e a cultura, equipando e qualificando as bibliotecas das escolas públicas.
Além disso, a democratização do acesso ao conhecimento e à literatura aos poucos
foram se consolidando, como exemplo, o caso da inclusão de distribuição de obras
acessíveis. Conforme coloca Fernandes:
Convém frisar que a cada nova edição do PNBE, os editais ampliaram a abrangência do
público-alvo, iniciando apenas para o Ensino Fundamental e, gradativamente, estendendo para
a Educação de Jovens e Adultos, Educação Infantil e Ensino Médio. Outro aspecto digno de nota
é o fato de o PNBE atravessar três governos – Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma – e
prosseguir sem interrupções, constituindo-se numa política de Estado. Em 2008, as mudanças
ocorridas também foram em relação aos critérios de atendimento, pois o programa ampliou sua
abrangência. (FERNANDES,2012, p.327)

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Além do que foi apresentado, ainda há outros dados que precisamos discutir, os
do PNBE/2014 e os da primeira edição do PNLD Literário/2018. Até a submissão deste
trabalho, o FNDE não disponibilizou os dados dos investimentos feitos com o novo
programa, sendo assim, observamos outros dados que indiretamente nos apontaram
esses investimentos, como por exemplo os dados do quantitativo de livros de cada
acervo, juntamente com o número de acervos distribuídos pela quantidade de
estudantes de cada escola. Para uma discussão posteriormente mais precisa, optamos
aqui em trazer apenas um recorte desses dados, expondo e discutindo apenas as
informações referentes as categorias das séries iniciais do ensino fundamental com
base nos editais e outros documentos que regeram as duas edições, do PNBE 2014 e
do PNLD 2018 Literário.
Chama-se de categoria, a subdivisão de turmas feitas nos editais para organizar
a avaliação e a distribuição dessas obras. No “Edital de convocação para inscrição e
seleção de obras de literatura para o Programa Nacional Biblioteca da Escola PNBE
2014” as turmas de séries iniciais do ensino fundamental são representadas pela
“Categoria 3”, já no “Edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de
obras literárias para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático PNLD 2018
Literário” estão representadas pelas categorias 4 e 5. Os critérios para distribuição do
PNBE 2014 já estão disponíveis na parte estatísticas do site do FNDE, os dados
referentes aos PNLD 2018 Literário foram coletados do Guia Digital. Apresentamos na
próxima tabela os critérios de distribuição para o nível de ensino.

Tabela 2 - Critérios de distribuição do PNBE 2014 e do PNLD 2018 Literário


Ano de Segmento de Quantidade Quantidade de Obras por
aquisição Ensino de Obras Acervo

Categoria 3
4 tipos de acervos com 25 títulos
PNBE 2014 Turmas de 1º ao 100
diferentes cada
5º ano

Categoria 4 3 acervos com 35 títulos para


Turmas de 1° ao 105 sala, um para cada turma,
PNLD 2018 3° escolhidos por seus professores
Literário 2 acervos com 50 títulos para
Categoria 5
100 biblioteca, um para cada turma,
Turmas de 4° e 5°
escolhidos por seus professores
Fonte: FNDE (c2017) e Guia do PNLD 2018 Literário (2018)

Depois de quase cinco anos sem que as escolas recebessem novos títulos, o
governo quase que duplicou o número de obras por acervos, além desses outros 2

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títulos foram distribuídos para uso individual do aluno para as turmas de 4º e 5º ano,
seguindo a regra de reutilização já especificadas para o uso dos livros didáticos.
Era mais do que justo que depois de quase cinco anos sem essas distribuições
o governo reparasse os anos em que deixou de distribuir. Mesmo assim, ainda é
importante considerar que o governo não cumpriu com seus prazos de distribuição.
Segundo os resultados de nossa pesquisa apenas em 2020 é que a maioria das escolas
começaram a receber os títulos do PNLD 2018 Literário.
Chegando a esses dados também precisamos discutir outras questões,
estarmos atentos aos investimentos realizado pelo governo na distribuição de obras
literárias é primordial para garantir o acesso a literatura, mas é preciso também nos
aprofundarmos em outras questões que nos fornecem reflexões mais severas sobre a
qualidade dos títulos e a sua utilização nas escolas, somente distribuir não basta para
formamos bons leitores. No próximo tópico abordaremos algumas questões que
envolvem a qualidade das obras distribuídas e outras que se voltam para a utilização
delas nas escolas.

O PNBE e o PNLD Literário: da inscrição e avaliação à escolha e chegada dos


livros nas escolas
Antes da chegada e utilização dos acervos nas escolas, há um processo
burocrático e de análise dos materiais que serão distribuídos para incentivo à leitura de
nossas crianças e jovens. Tanto o PNBE quanto o PNLD Literário abriram chamadas
através dos editais já mencionados anteriormente para inscrição de obras por escritores
e editoras.
No que se refere aos objetivos de cada edição, o PNBE e PNLD possuíam
basicamente os mesmos, sendo uma novidade a inclusão de obras em língua inglesa
conforme coloca o texto do edital do PNLD 2018 Literário:

Este edital tem por objeto a convocação de detentores de direitos


autorais para participar do processo de inscrição e avaliação de obras
literárias, em língua portuguesa e língua inglesa, destinadas aos
estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º anos) e
do Ensino Médio (1º ao 3º anos) das escolas públicas federais e as que
integram as redes de ensino federal, estaduais, municipais e do Distrito
Federal e aos estudantes da Educação Infantil (creche e pré-escola),
das escolas da educação básica pública, das redes federal, estaduais,
municipais e do Distrito Federal e das instituições comunitárias,
confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o
poder público, conforme condições e especificações constantes neste
edital e seus anexos.

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Os detentores de direitos autorais submetiam suas obras através dos processos
de pré-inscrição, inscrição, seleção, habilitação e contratos. No PNBE 2014 uma
instituição era designada para realizar a avalição das obras com base em critérios
estabelecidos em edital, no PNLD 2018 Literário foi uma comissão de especialistas que
julgou os critérios da seleção nas obras.
No PNBE, as obras em cada categoria formavam acervos padrão que eram
distribuídos às escolas de acordo com os critérios de distribuição estabelecidos pelo
FNDE. Com o PNLD 2018 Literário, os acervos passaram a ser diversificados de acordo
com a escolha dos professores e de cada escola, o programa apenas disponibilizou as
obras de cada categoria para que as escolas julgassem quais matérias seriam
indicados, somente após indicação das escolas é que o FNDE realizou a entrega dos
acervos. As escolas que não indicaram títulos também receberiam acervos, desde que
assinado o termo de adesão ao programa.
Além de investigar a seleção dos títulos, nós acompanhamos as chegadas dos
acervos nas escolas públicas municipais de séries iniciais de João Pessoa-PB. Nossa
pesquisa investigou 80 das 88 escolas que ofertavam a modalidade de ensino na época.
Além de informações repassadas pelos dirigentes e equipe pedagógica das escolas,
também fizemos uma coleta de dados através de questionários respondidos por
professores que participaram da seleção na edição do programa. Gostaríamos de
explicitar alguns desses dados, especificamente os que apresentaram informações
referentes a participação das escolas na indicação de seus títulos e a chegada e
recepção dos acervos nas escolas investigadas.

Gráfico 1 - Participação das escolas de municipais de João Pessoa na seleção dos títulos do
PNLD 2018 Literário

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Fonte: Dados da Pesquisa (2020)

Sobre a chegada das obras do PNLD 2018 Literário nas escolas, temos uma
variante. Antes de encerramos a coleta no primeiro semestre de 2020, ainda em 2019,
constatamos que poucas escolas haviam recebido os títulos no referido ano, ao
retornarmos em 2020 a constatação de recebimento se tornou mais frequentes em
nossas visitas. No último semestre de 2019, de 25 escolas visitadas, apenas 13 delas
receberam alguns títulos do programa, sendo estes os que eram designados ao uso dos
estudantes, nenhum dos acervos de sala e biblioteca havia sido entregue na época. O
próximo gráfico apresenta os dados finais da distribuição das obras nas escoas visitada.

Gráfico 2 - Escolas que receberam os acervos do PNLD 2018 Literário

Fonte: Dados da pesquisa (2020)

Com esses dados, constatamos falhas nas distribuições dos títulos. Além do
atraso na distribuição, um número bastante considerável de escolas não recebeu
nenhum acervo até o encerramento da coleta de dados. Esse é um dos problemas que
encontramos no que se refere a distribuição, mas também é preciso evidenciar outas
questões que nos fazem retomar as discussões sobre o PNBE e que Paiva (2012) em
sua pesquisa nos induzia a algumas reflexões. A seguir, traremos para o texto essas
questões, algumas sobre problemas no uso dos materiais nas escolas e a garantia de
seu acesso, outras sobre a mediação e o ensino de literatura infantil.

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Virando páginas: avaliação e reflexões acerca dos impactos dos programas no
interior das escolas
“são escassas as ações que visam ultrapassar a distribuição pura e
simplesmente desses acervos.” (PAIVA, 2012, p. 17)
No livro Literatura fora da caixa, Paiva (2012) concluiu que as ações de
distribuições do PNBE para as bibliotecas das escolas públicas da Rede Municipal de
Ensino de Belo Horizonte, foram bem sucedidas, no entanto, havia problemas maiores
se pensarmos em um política pública de formação de leitores, e não de uma única ação
que envolve apenas o ato de distribuir.
Foi constatado um certo distanciamento dos servidores das bibliotecas quanto
ao conhecimento integral do programa. Consequentemente, as ações que promoviam
o incentivo a leitura no interior desses espaços eram insuficientes para formação leitora,
pois desviavam da atividade principal que se caracteriza pelo ato de leitura dos livros.
(PAIVA, 2012, p.60). Ademais, foi verificado que havia caixas totalmente fechadas e que
ainda não estavam com os acervos disponíveis para comunidade escolar.
Não diferente do que se observa nos dados da pesquisa de Paiva (2012) acerca
do PNBE, nós também nos deparamos com algumas questões que nos fazem refletir
se realmente dispomos de uma efetiva política pública para formação de leitores.
Ao investigarmos essas 80 escolas no município de João Pessoa, nos
deparamos com algumas inquietações ao longo de nossas visitas. Certa vez, uma
servidora responsável pela coordenação pedagógica de uma determinada escola,
negou a existência do programa e que nós estaríamos confundindo o PNLD Literário
com o PNBE; nos informou com total certeza de que as obras não eram selecionadas
pelos docentes, mas enviadas diretamente pelo FNDE sem indicação. Com muito
diálogo e com a comprovação através de relatos dos docentes daquela escola,
conseguimos convencê-la de que houve alterações na política de distribuição de obras
literárias pelo governo federal.
Obviamente esse acontecimento foi o mais problemático que nos deparamos a
respeito do conhecimento dos envolvidos sobre o programa, no entanto, a atitude da
servidora, resume que grande parte de nossos professores e servidores das escolas
ainda não conhecem muito bem as ações realizadas no âmbito dos programas e seus
principais objetivos, muitas das vezes nos deparávamos com relatos de que o docente
ficou “sabendo do programa” apenas com a solicitação de suas escolhas,
caracterizando uma participação passiva e que não contribui para o alcance dos

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objetivos propostos pelos editais, uma vez que espera-se desses uma verdadeira
parceira para formar novos leitores.
Sobre espaços dedicados à leitura, identificamos que quase não há servidores
bibliotecário nas bibliotecas escolares do município da capital paraibana. Os servidores
desses espaços eram muita das vezes professores adaptados, ou técnico
administrativos, ou auxiliar de serviços gerias. Também observamos que 5% das
escolas não possuem biblioteca escolar, das 91% que possuíam, algumas eram salas
de leitura, além disso também encontrávamos alguns problemas na infraestrutura
desses espaços.
Outro dado o qual encerramos este tópico, é sobre os acervos entregues às
escolas. Assim como verificou Paiva (2012), também encontramos muitos livros ainda
em suas caixas de envio, inacessíveis às crianças que seriam beneficiadas com sua
leitura, em alguns casos em que nos informavam que a escolas não havia recebido os
títulos verificávamos uma incoerência a respeito da informação prestada, pois ao
dirigirmos às bibliotecas encontrávamos caixas ou títulos com o selo do programa.
Essas questões que juntamente com os dados de Paiva acabamos de evidenciar,
refletem alguns problemas a serem observados nos futuros caminhos de uma política
nacional de incentivo à leitura e de formação de leitores.

Considerações finais
Este trabalho pretendeu discutir os investimentos nas políticas públicas de
distribuição de livros literários para as escolas de educação básica, verificando através
de pesquisa própria e dialogando com outras pesquisas os efeitos desses investimentos
nas escolas atendidas pelos programas.
Foi possível verificar inconsistências na distribuição dos acervos e interrupções
das ações que levou anos para retomada. Também constatamos que os mesmos
problemas já evidenciados no PNBE em outras pesquisas, ainda persistem com o PNLD
Literário: o desconhecimento do programa por parte das escolas e a não
disponibilização dos acervos para a comunidade escolar, consequentemente a não
utilização dos materiais.
O estudo se torna relevante para os avanços de nossa pesquisa de iniciação
científica uma vez que nos forneceu dados e reflexões acerca da subárea das políticas
públicas de leitura, os investimentos da receita pública. Torna-se importante também
aqui a divulgação dos resultados de nossas investigações realizadas nas escolas da

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capital paraibana. Esperamos que este trabalho acrescente as suas contribuições para
os estudos desses programas e para o ensino de literatura.

Referências
BRASIL. Decreto 9.099 de 18 de julho de 2017. Dispõe sobre o Programa Nacional do
livro e do material didático. Disponível em
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2017/decreto-9099-18-julho-2017-
785224-publicacaooriginal-153392-pe.html> Acesso em 18 de abril de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Edital PNBE 2014. Disponível em:


>https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/consultas/editais-
programas-livro/item/3982-edital-pnbe-2014> Acesso em: 16 de agosto de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.


Programa Nacional do livro e do Material didático – literário. Editais. Disponível em
<http://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro/consultas/editais-programas-
livro> Acesso em: 16 de agosto de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Programa Nacional do livro e do Material didático –


literário. Guia PNLD2018-Literário PDF. Disponível em
>https://www.fnde.gov.br/index.php/centrais-de-conteudos/publicacoes/category/125-
guias?download=13455:guia_pnld_literario_2018> Acesso em: 16 de agosto de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Programas do Livros. Dados Estatísticos. Disponível


em: >http://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-
livro/legislacao/item/9698-dados-estatisticos> Acesso em: 10 de agosto de 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Programas do Livros. Histórico. Disponível em:


>https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/biblioteca-na-
escola/historico> Acesso em: 16 de agosto de 2020.

FERNANDES, Célia Regina Delácio; CORDEIRO, Maisa da Silva Barbosa. Os critérios


de avaliação e seleção do PNBE: um estudo diacrônico. Educação, vol. 35, núm. 3,
septiembre-diciembre, 2012, pp. 319-328. Disponível em:
>http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=84824567005>. Acesso em: 14 de agosto de
2020.

PAIVA, Aparecida (org.). Literatura fora da caixa: o PNBE na escola – distribuição,


circulação e leitura. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.

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A IMPORTÂNCIA DA LEITURA LITERÁRIA COMO ELEMENTO
DE MOTIVAÇÃO PARA O TRABALHO DO ALFABETIZADOR

Eliana Guimarães Almeida, Centro Pedagógico - UFMG


Patrícia Barros Soares Batista, Centro Pedagógico - UFMG
Maria Carolina da Silva Caldeira, Centro Pedagógico - UFMG
Kely Cristina Nogueira Souto, Centro Pedagógico - UFMG

Eixo Temático: 8 – Literatura infantil e ensino

Considerações iniciais
A proposta deste texto é trazer algumas reflexões e análises acerca de um
projeto de extensão que tem a literatura como tema. O projeto é desenvolvido no Centro
Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais (CP-UFMG) e suas ações são
direcionadas a professores que atuam na rede municipal de ensino de Belo Horizonte.
A importância da literatura para a formação do sujeito tem sido frequentemente
apontada por pesquisadores que destacam o potencial do texto literário para alargar
horizontes, ampliar o senso de alteridade e levar o indivíduo a refletir sobre si mesmo e
sobre a realidade à qual pertence (COSSON, 2014; 2006; COMPAGNON, 2009; PETIT,
2013; 2009; ZILBERMAN, 2008; ROSENBLATT, 1938/2002). Diante disso, o projeto de
extensão denominado “Círculo de leitura” surgiu visando promover experiências efetivas
voltadas para o letramento literário.
A partir da demanda apresentada por cursistas do eixo “Alfabetização e
Letramento”, do Curso de Pós-graduação Latu Sensu Residência Docente para
Formação de Educadores da Educação Básica, de uma formação capaz de oferecer
subsídios para as docentes da educação infantil e dos anos iniciais do Ensino
Fundamental atuarem como mediadoras de leitura literária nesses segmentos
específicos, foram implementadas algumas propostas pautadas na metodologia que
intitula o referido projeto, criada por Rildo Cosson (2014). Como as cursistas realizavam
reflexões relacionadas ao trabalho de alfabetização para desenvolver projetos de ação
efetiva a serem implementados em suas turmas, algumas passaram a integrar as ações
do Círculo de Leitura aos referidos projetos, o que resultou em um enriquecimento das

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estratégias e no fortalecimento do lugar da literatura nesse processo de ensino-
aprendizagem da leitura e da escrita.
Além de Cosson (2014), que traz de forma mais explícita a metodologia adotada
na proposta de formação aqui apresentada, apontando percursos teóricos que
respaldam as escolhas que ele considera importantes na condução do processo de
mediação da leitura literária, outros autores que abordam essa temática também trazem
contribuições importantes para as análises que propomos neste texto. Entre eles,
destacamos as contribuições de Zilberman (2003), que faze uma reconstrução histórica
acerca do lugar da literatura infantil, mostrando que sua vinculação com a escola não é
nenhuma novidade e que, ao contrário disso, seu surgimento esteve desde o princípio
vinculado à instituição escolar.
Segundo Zilberman (2003), a literatura infantil, em seus primórdios, tinha como
missão a inculcação de valores para a infância, que somente naquele momento passou
a ser reconhecida como uma etapa específica de formação humana. Atualmente, é
sabido que a literatura infantil, como obra de arte, cumpre um importante papel na
formação da criança, não cabendo-lhe, contudo, esse lugar de mero instrumento de
transmissão de valores ou de desenvolvimento de aprendizagens. Desse modo, é
importante destacar que, embora tenhamos ciência de que a literatura infantil possa
também educar a infância, nossa proposta de formação dos mediadores de leitura está
voltada para a potencialização do papel do professor como um profissional capaz de
fortaleceer a relação entre o leitor e o texto literário (CADEMARTORI, 2009; COSSON,
2014; ROSENBLATT, 1938/2002) promovendo, assim, uma experiência de leitura que
promova a sensibilidade e a reflexão.
As contribuições de Soares (2006) sobre a escolarização da literatura infantil
também são importantes para que possamos compreender o lugar da escola nesse
movimento necessário de formação do leitor. Para a autora, “não há como evitar que a
literatura, qualquer literatura, não só a literatura infantil e juvenil, ao se tornar ‘saber
escolar’, se escolarize” (SOARES, 2006, p. 21), assim como se deve evitar atribuir
conotação pejorativa à expressão “escolarização”, pois segundo ela, “isso significaria
negar a própria escola.” (idem). Dessa forma, a autora defende que, sendo inevitável
escolarizar a literatura, é importante que se descubram meios de que tal escolarização
ocorra de maneira adequada, isto é, sem deturpar, falsificar, distorcer a literatura, em
atitudes que gerem o afastamento do leitor, ao invés de aproximá-lo.

Literatura infantil e alfabetização

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É intrínseco à literatura infantil o seu potencial de atuar como espaço para a
imaginação, de modo que os livros infantis podem alcançar sem grandes dificuldades
as expectativas das crianças que se encontram nos anos iniciais de escolarização. Por
que então nem sempre toda essa potencialidade é explorada em sala de aula? Nas
situações em que as docentes participantes do Círculo de leitura eram instigadas a
discorrer sobre os desafios encontrados na prática docente, a literatura era
constantemente apontada pelo grupo como algo difícil de se trabalhar.
Diferentes estudos no âmbito da formação docente mostram que a leitura literária
se constitui em um desafio para os professores (BORDINI e AGUIAR, 1993; SOUZA,
2000; PAIVA, PAULINO et al, 2006; ZILBERMAN, 1991). Seja no sentido de formar
leitores literários na escola, seja no sentido de constituir-se como leitor, os docentes
apresentam demandas diversas no que se refere à prática de leitura no cotidiano da
sala de aula e em suas vidas. A ausência de formação específica para esse fim
frequentemente gera inseguranças em relação ao trabalho com a literatura. Outro fator
que também reduz as chances de que o alfabetizador explore mais o texto literário é o
foco no desenvolvimento de habilidades específicas da aprendizagem da leitura e da
escrita e a preocupação em dar acesso aos mais variados gêneros textuais que circulam
socialmente. O que muitos professores não percebem é que é perfeitamente possível
associar o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita e o contato com gêneros
textuais variados sem perder de vista a formação do leitor literário.
Reyes (2014) destaca a importância de que sejam criadas as condições
necessárias para que os livros e os leitores possam se encontrar. De acordo com a
autora, o caminho de formação do leitor não se constrói de uma única maneira ou por
uma metodologia específica, entretanto, sinaliza que a inserção subjetiva do próprio
mediador pode ser um modo de alcançar êxito nesse processo. Assim, compreendemos
que para inserir a literatura infantil na rotina da sala de aula é importante que o professor
faça sua própria imersão nesse campo, adotando aos poucos, junto com as crianças,
modos de ler que ultrapassem a relação pragmática com o texto. Além disso, o resgate
– ou construção – de sua própria história com a leitura literária pode ser um elemento
favorecedor nesse percurso.
As professoras que participaram do Círculo de Leitura em 2019 haviam
recuperado parte dessa história por meio da escrita de um memorial em que descreviam
suas trajetórias desde os tempos em que aprenderam a ler e a escrever, passando pelas
experiências docentes que já tiveram e chegando ao momento atual. A leitura desses
memoriais nos mostra que diferentes histórias com a leitura podem levar a práticas

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semelhantes, a partir de uma tomada de consciência sobre a importância da literatura
associada a uma formação prática voltada para esse trabalho. Analisamos, neste texto,
as experiências desenvolvidas por duas professoras alfabetizadoras da Rede Municipal
de Ensino de Belo Horizonte, participantes do Círculo de Leitura, – que denominaremos
como professora 1 e professora 2. Ambas trabalhavam com turmas de terceiros anos
em duas escolas municipais diferentes e enfrentavam dificuldades em consolidar
algumas habilidades de leitura e escrita com as crianças. Até o momento em que
iniciamos as ações do círculo de leitura em suas escolas, nenhuma delas havia inserido
a leitura literária dentro da rotina semanal das crianças. Uma delas possui histórico de
relação e interesse pela leitura literária, viabilizado sobretudo por suas vivências
familiares e outra não tinha a literatura como elemento constitutivo de suas vivências,
excetuando as vivências que teve no espaço escolar quando criança. Suas memórias
em relação à leitura literária, ainda que distintas, conduziram a práticas escolares que
não priorizavam a formação do leitor literário, como mostraremos a seguir.

Memórias de formação literária e os desafios da prática docente


A professora 1 havia relatado em seu memorial a sua inquietação a respeito de
algumas crianças as quais ela não conseguia alcançar com suas estratégias de ensino.
Ao mesmo tempo, sinalizava em suas memórias que a presença da literatura fez
diferença em sua vida, indicando, contudo, sua dificuldade em proporcionar aos seus
alunos algumas vivências a que ela própria teve acesso, apesar de todas as dificuldades
materiais enfrentadas. Conforme podemos conferir no trecho a seguir, o encantamento
pelos livros já havia sido cultivado desde sua infância:

Desde pequena tive muito contato com crianças, pois minha família era
grande, incluindo primos, primas e vizinhos. Quando interagíamos era
prazeroso, divertido e encantador. Vivi realmente a minha infância,
pude aflorar a imaginação descobrindo o mundo dos contos de fada, o
contato com a natureza; brincar, correr, gritar, chorar, compartilhar,
aprender novos conhecimentos, ter muitos amigos, ir à escola.
Brincávamos até o anoitecer sempre ao cuidado de um adulto. Lembro-
me muito bem que quando anoitecia, não havia luz elétrica em nossa
casa, tínhamos que usar lamparinas a querosene. Era assim, iluminada
por lamparina, que eu era escolhida para ler grossos livros do armário
de minha mãe. Armário que foi fabricado por meu pai. Foram usados
caixotes velhos, onde minha mãe guardava suas relíquias, que eram
seus livros. Guardados a sete chaves. (Trecho do memorial da
Professora 1).

A Professora 1 teve acesso a livros e a leitura literária por meio de sua família
que, mesmo sendo não tendo muitas posses, incentivava a leitura. Sua mãe era
professora e tinha livros “guardados a sete chaves”, por meio dos quais incentivava a
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imaginação e a vivência da leitura literária na infância da professora. Ela proporcionava,
assim, uma leitura literária entendida como aquela capaz de desenvolver “a dimensão
imaginária, em que se destaca a linguagem como foco de atenção, pois através dela se
inventam outros mundos, em que nascem seres diversos, com suas ações,
pensamentos, emoções” (PAULINO, 2014). Ao lembrar-se do armário feito com caixotes
e dos livros-relíquias de sua mãe e associá-los à sua infância permeada pela
imaginação e pelo mundo dos contos de fadas, a Professora 1 aciona esse sentido da
literatura vinculando-a à criação de outros mundos e a uma imagem afetiva ligada a
essas vivências.
Uma experiência diferente foi vivenciada pela Professora 2, cujo contato maior
com a leitura literária se deu na escola, como se pode ver no excerto a seguir, extraído
de seu memorial:

Lembro-me bem que a professora Auxiliadora (lembrando da sua


professora alfabetizadora) nos incentivava visitar à biblioteca da
escola, com frequência. Essa prática possibilitou que eu tivesse uma
leitura compatível para uma criança de 7 anos de idade e na 1º série
do Ensino Fundamental. O estímulo à leitura se dava apenas na
escola. Em casa circulava somente um gênero textual, as cartas
recebidas por meus pais, com notícias dos parentes que moravam em
outra cidade ou estado. Nesse caso, somente os adultos tinham
acesso, ou seja, podiam ler os escritos. Mas contrariando toda
escassez de gêneros textuais ou portadores de textos que circulava
em minha casa, aquele ano eu fui uma aluna exemplar e obtive as
melhores notas. (Trecho do memorial da Professora 2).

A Professora 2 relata em seu memorial o pouco contato com materiais escritos


e literários em sua casa. Pelo seu memorial, é possível perceber que a cultura escrita,
entendida como “o lugar – simbólico e material – que o escrito ocupa em/para
determinado grupo social, comunidade ou sociedade” (GALVÃO, 2014), vivenciada em
sua família se restringia às cartas que seu pai recebia. Essas cartas eram de acesso
exclusivo aos adultos e ela era, portanto, excluída de sua leitura. A escola, por sua vez,
aparecia como uma importante instância promotora do acesso à literatura. Sua
professora alfabetizadora era a mediadora nesse processo. É interessante observar que
a Professora 2 não associa a leitura literária e a literatura à imaginação, tal como a
Professora 1 faz, mas sim à certa noção de sucesso escolar, representado por ser uma
“aluna exemplar” que sempre tinha “as melhores notas”. A Professora 2 avalia que a
experiência escolar relacionada à literatura influencia sua prática atual, como evidencia
o excerto a seguir:

Entendo que a experiência por mim vivida, tem impactado no exercício


da minha vida profissional, fato é que venho tentando despertar nos
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alunos o gosto pela leitura, a fluência e compreensão de vários tipos
de textos e seus portadores, bem como diversas obras literárias. Desse
modo oportunizo aos alunos a construção da sua própria
aprendizagem promovendo o desenvolvimento, a autonomia e
consequentemente o desenvolvimento cognitivo deles. (Trecho do
memorial da Professora 2).

Cabe registrar que, assim como ao relembrar sua relação com a leitura literária,
a Professora 2 associa o trabalho com a literatura em sala de aula à “construção da sua
própria aprendizagem promovendo o desenvolvimento, a autonomia e
consequentemente o desenvolvimento cognitivo”. Embora esses sejam aspectos
fundamentais em uma prática escolar, em sua fala o aspecto da fruição da leitura
literária aparece em segundo plano, tendo destaque apenas quando menciona o “gosto
pela leitura”. Assim, ainda que incluísse gêneros textuais diversos em sua prática,
alguns aspectos relativos à literatura ainda poderiam ser incrementados.
Dessa forma, a análise dos memoriais das duas professoras no que se refere à
literatura mostrou a necessidade de ampliação dos modos de trabalhá-la no contexto da
sala de aula. As ações do Círculo foram, então, voltadas para a formação do leitor
literário, como mostramos a seguir.

A prática do Círculo com as crianças


A estratégia de formação de mediadores a partir do projeto de extensão Círculo
de leitura ao longo do ano de 2019 se deu a partir de encontros entre todas as
formadoras e cursistas, realizados mensalmente no Centro Pedagógico/UFMG. Na
sequência, as formadoras foram até as escolas em que as professoras cursistas
participantes do projeto atuavam, para a iniciação do Círculo junto com as crianças que
compõem a turma dessas professoras. O projeto prevê que elas possam, de maneira
mais autônoma, dar continuidade ao processo de realização do círculo em suas turmas.
Foram realizadas quatro inserções diretas nas escolas, com as professoras formadoras,
sempre em duplas, realizando a leitura com as crianças na presença da professora
cursista, regente da turma visitada. As práticas posteriormente foram desenvolvidas
pelas professoras cursistas e relatadas nas ações de formação do Círculo de Leitura.
Ao construir seu projeto de ação, a professora 1 procurava encontrar modos de
trabalhar a intervenção pedagógica a partir da literatura. Assim, buscou, junto com a sua
orientadora, articular meios para que lhe fosse possível desenvolver as capacidades de
alfabetização desejadas e, ao mesmo tempo, contribuir para a formação de leitores
literários. Sua intenção era proporcionar uma relação de prazer com a leitura,
especialmente buscando “fisgar” aquelas crianças que, em geral, não se interessavam

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muito pelas atividades propostas em sala de aula, as quais estavam no grupo dos nove
educandos – de um grupo de 25 – que não havia ainda consolidado o processo de
aprendizagem da leitura e da escrita. Outro desafio colocado diante dessa professora
foi o trabalho com gêneros textuais, que ela precisava desenvolver a partir da proposta
pedagógica construída coletivamente na escola. O trabalho com os gêneros poema,
carta e conto ainda precisava ser realizado e ela não visualizava meios para integrá-los
com sua ideia inicial de trazer a literatura para sua rotina com as crianças. A Professora
1 parecia ver poucas possibilidades de articulação entre as dificuldades vivenciadas e
a formação de leitores literários. Com o início das ações do Círculo de Leitura, ela
passou a vislumbrar maneiras de unir as duas coisas, pois percebeu que as crianças
haviam despertado o interesse a partir das estratégias adotadas pelas formadoras, as
quais descrevemos a seguir.
Na escola da Professora, 1 a obra literária a ser lida foi escolhida previamente
por ela, por fazer parte do kit escolar distribuído pelo poder público municipal e por ter
sido um livro que gerou insegurança nas professoras, por ser composto somente de
imagens. O livro lido nesse primeiro encontro foi o Jornada, de Aaron Baker, publicado
pela editora Galera Record em 2019. A dinâmica de leitura realizada pelas formadoras
ocorreu da seguinte maneira: demos início à interação a partir de um desenho no
quadro, com caneta vermelha, remetendo indiretamente ao conteúdo do livro. As
crianças foram convidadas a deduzir o porquê de nossa presença ali e, em seguida,
foram convidadas a se assentarem sobre um tecido florido com o qual havíamos forrado
a parte da frente da sala. Iniciamos pela exploração da capa e seguimos incentivando a
realização de inferências no decorrer de toda narrativa construída por imagens. As
crianças participaram ativamente com bastante interesse, pois a obra oferece uma
grande abertura à fantasia e à imaginação. A professora cursista surpreendeu-se com
a participação de seus educandos, inclusive aqueles que, segundo ela, geralmente não
costumam se interessar pelos eventos que acontecem na sala de aula.
A partir desse primeiro momento, a professora desenvolveu seu projeto de ação
articulando as etapas nele previstas à rotina estabelecida pelo Círculo de leitura – que
previa a leitura de um livro uma vez por semana, seguida de registro por meio de
desenho, escritas coletivas e/ou individuais. Orientada pelas estratégias de leitura de
Solé (1998), no planejamento por sequências didáticas (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004)
e na proposta de atividades diferenciadas, a professora conseguiu alcançar grande
parte de seus objetivos, estabelecendo um vínculo de afeto entre as crianças e a leitura,
proporcionando o acesso às obras literárias pela via da criatividade e da imaginação,

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tendo a participação ativa das crianças e ampliando, indiretamente, suas possibilidades
de atuação como alfabetizadora. Assim, ainda que esse não seja um objetivo específico
do Círculo de leitura, a docente notou que partir desse trabalho que articulou a
intervenção e a leitura literária, a docente pôde verificar um avanço significativo em seis
das nove crianças que apresentavam mais dificuldade de aprendizagem da leitura e da
escrita. Ela relata que mesmo as três crianças que não conseguiram desenvolver tanto
quanto os demais suas capacidades na alfabetização passaram a demonstrar mais
interesse em sala de aula, o que, para ela, já foi um ganho significativo.
Cabe destacar a importância de o livro de literatura infantil não seja
transformado em mero instrumento pedagógico, com usos promovidos unicamente com
finalidades voltadas para aprendizagens escolares. Esse é um cuidado que ressaltamos
durante as formações e as ações do projeto, contudo, compreendemos que a obra
literária pode ser uma importante aliada nesse processo de aprendizagem da leitura e
da escrita, uma vez que tem o potencial de despertar na criança o desejo de ingressar
de forma mais autônoma nesse universo de fantasia que é intrínseco à infância. Soares
(2006, p. 47), defende que a escolarização da leitura literária “é inevitável, porque é da
essência da escola a instituição de saberes escolares, que se constituem pela
didatização ou pedagogização de conhecimentos e práticas culturais”. Entretanto, ela
propõe que seja feita uma distinção entre o que chama de escolarização adequada e
escolarização inadequada:

adequada seria aquela escolarização que conduzisse eficazmente às


práticas de leitura literária que ocorrem no contexto social e às atitudes
e valores próprios do ideal de leitor que se quer formar; inadequada é
aquela escolarização que deturpa, falsifica, distorce a literatura,
afastando, e não aproximando, o aluno das práticas de leitura literária,
desenvolvendo nele resistência ou aversão ao livro e ao ler. (SOARES,
2006, p. 47).

Considerando o acompanhamento que fizemos das ações da Professora 1,


ainda que ela própria tenha percebido uma relação entre as ações do Círculo de leitura
e os avanços obtidos quanto às questões de aprendizagem de algumas crianças de sua
turma, é possível perceber que as ações voltadas para a formação do leitor literário
foram bem-sucedidas. Ao inserir práticas de leitura literária em sua rotina usando o
suporte original em que o texto literário se encontra – que é o próprio livro – explorando
a materialidade da obra, oferecendo espaço para a participação ativa das crianças na
escolha dos títulos a serem lidos, promovendo a participação subjetiva nas discussões
orais e nos registros escritos e imagéticos, a professora 1 realizou uma escolarização
da literatura que podemos considerar adequada. Tal percepção que ficou evidenciada
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principalmente pela mudança relatada pela professora na relação das crianças com os
livros. Segundo a professora 1, a partir do Círculo de leitura, as crianças passaram a
querer ler os livros e a querer participar das conversações sobre a leitura, passando,
assim a ter uma relação mais próxima tanto com as obras lidas como com a própria
mediadora.
Em sentido semelhante ao da Professora 1, o relato da Professora 2 também
mostra avanços na sua prática cotidiana com a leitura literária em sua turma, conforme
sinalizado pela cursista:

O Círculo de Leitura na sala do 3º ano B, foi muito enriquecedor.


Percebi o interesse de alguns alunos em participar, interagir e até
apresentar os seus conhecimentos prévios sobre os assuntos tratados
no livro.As atividades de leitura em sala incentivadas por mim para os
alunos eram esporádicos. Depois da visita das formadoras, os alunos
pediram que eu lesse um livro para eles. “Lê pra gente do jeito que ela
leu”. Então percebi a importância da leitura feita pela professora, como
leitura para deleite. Pude ver o quanto uma leitura pausada, com
entonação, participação dos alunos é enriquecedora. Diante dos
pedidos dos alunos e sugestão das orientadoras, farei a cada semana
a leitura de um livro. A escolha do livro “O carteiro Chegou” trouxe
encantamento em cada página. O livro é belo e traz uma série de
elementos e alguns tipos de textos que envolvem o leitor. (Trecho do
texto de autoavaliação feita pela cursista).

A conquista da voz crítica do leitor diante da leitura de textos literários é um dos


mais revigorantes resultados da experiência, dissolvendo a ideia, por vezes
naturalizada, de que a literatura é para poucos, no caso aqui analisado, para aqueles
que já sabem ler com autonomia. Ao apropriar-se de conhecimentos que levem à
ampliação de suas próprias competências literárias (COSSON, 2006), o professor de
educação básica dota-se de ferramentas capazes de favorecer o desenvolvimento das
mais variadas práticas de leitura nas escolas em que atua, possibilitando, assim, o
trabalho de mediação que possa aproximar cada vez mais o leitor infantil do universo
literário. Desse modo, busca-se oferecer subsídios para a dessacralização da literatura
e, consequentemente, para a democracia cultural (SOARES, 2004), garantindo-se a
circulação e o acesso aos livros literários.

Considerações Finais
A leitura literária apresenta uma grande capacidade de provocar mudanças que
vão além do entretenimento e “tornar-se leitor é processo que ocorre ao longo do
tempo.” (CADEMARTORI, 2009, p. 24). Ler literatura requer uma série de habilidades
específicas do leitor, habilidades essas que podem ser trabalhadas desde a primeira

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infância. O letramento literário é uma prática social e, como tal, responsabilidade da
escola (COSSON, 2006, p. 23). Assim, cabe a ela proporcionar experiências literárias
que deem “sentido ao mundo por meio de palavras que falam de palavras,
transcendendo os limites do tempo e do espaço.” (SOUZA; COSSON, 2011, p.103).
Nesse sentido, é impreterível pensar especialmente nos docentes como
mediadores de leitura, visto que, notadamente na escola, quando a criança/jovem ainda
não lê sozinha(o), a leitura se configura como um trabalho em parceria e o adulto
(professor/a) é quem vai dando sentido às páginas por meio de sua presença e de sua
voz. Assim, o trabalho voltado para a formação de mediadores da leitura literária na
escola é de fundamental importância, pois, para formar leitores é preciso, antes, ser
leitor e saber como mediar adequadamente a leitura a fim de conseguir contribuir para
a formação de leitores críticos e autônomos, o que é um desafio para as instituições
escolares e, que suscita muitas reflexões e questionamentos.
Cosson (2014) afirma que os círculos de leitura promovem o desejo de ler, a
formação do leitor e a prática da leitura literária, alcançando, portanto, uma amplitude
que vai além da escola. O autor também aponta que “ler não tem contraindicação,
porque é o que nos faz humano” (COSSON, 2014, p.179). Ao ler de forma
compartilhada, uma comunidade de leitores se configura como um espaço de
reconhecimento de nosso lugar como membros dessa comunidade. Esse sentido do
pertencimento de grupo e de momentos compartilhados de leitura literária proporcionam
experiências que ultrapassam as vivências isoladas do cotidiano de um leitor. Esse é
um dos sentidos da humanização que a literatura promove, pois ela potencializa a
realização de trocas intersubjetivas entre os participantes de um determinado círculo de
leitura.
Assim, a análise das relações estabelecidas por duas professoras
alfabetizadoras com a leitura literária por meio da ação estruturada do Projeto de
Extensão Círculo de Leitura se mostrou bastante significativa para a formação docente
continuada. Ao retomar a importância do próprio vínculo com a literatura e apresentar
outros modos de compreendê-la com base na perspectiva do letramento literário, foi
possível trazer para a sala de aula uma prática significativa voltada para a mediação de
leitura. Além disso, a proposta estruturada de um projeto de intervenção que articulava
a alfabetização com ações de letramento literário, mostrou que quando temos objetivos
claros e instigamos a participação efetiva dos educandos, a formação do leitor fica
favorecida. Assim, mesmo que o objetivo não seja desenvolver capacidades específicas

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da alfabetização, esse processo pode ser facilitado ao se trazer para a sala de aula a
imaginação, a fruição e a reflexão que a literatura permite estabelecer.

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A MATERIALIDADE DO LIVRO INFANTIL A PARTIR DA
LEITURA DE O CARTEIRO CHEGOU

Joaes Cabral de Lima (UFPB)


Siomara Regina Cavalcanti de Lucena (UFPB)
Ana Clara de Araújo Marques (UFPB)
Layne Maria dos Santos Batista Lira (UFPB)

Eixo Temático: Literatura infantil e ensino

Considerações iniciais
A leitura, como bem explicita Freire (1989) e tantos outros estudiosos, é uma
prática libertadora, porém não pode ser limitada apenas à nossa relação com o texto
escrito, pois ler é o exercício do apuro dos sentidos para o todo que nos cerca. Prática
ancestral que ajudou os nossos antepassados a sobreviverem e a aprenderem com o
mundo, domando-o e assim construindo a história, perpetuando os saberes e práticas
até os nossos dias.
Essa relação de leituras com o mundo e com o outro, nos leva mais uma vez ao
pensamento de Freire (1989, p. 13), “a leitura do mundo precede sempre a leitura da
palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquela”, sendo assim, ler é
também um eterno aprendizado, pois tanto o mundo como a própria palavra estão em
constantes transformações.
Da oralidade e do gestual passando pelos tabletes de argila e rolos de
pergaminhos até chegar no suporte do livro que hoje conhecemos, o registro da palavra
percorreu um longo caminho, cada um destes modelos representando não apenas a
inventividade humana, mas também o modelo de cada civilização.
Ao nos depararmos com a imagem de um papiro com hieróglifos ou mesmo de
tomos medievais de um monastério repleto de iluminuras, somos logo remetidos ao
tempo vigente de cada um destes suportes textuais, através do distinto conjunto de
características físicas desses objetos, passamos a inferir automaticamente todo um
cabedal de informações ligadas a cada uma dessas civilizações, que tanto estão ligadas
ao conhecimento histórico, como à cultura de massa, ou seja, o papiro egípcio vai nos
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remeter às pirâmides, à estrutura de governo dos faraós, à importância do Rio Nilo,
como também vai nos levar para o cinema e suas representações artísticas da história
e cultura desse povo. Ou ainda, um livro infantil em cujo projeto gráfico fornece uma
carga dialógica que colabora com a narrativa ou mesmo se vindo a suplantar a mesma.
Desta forma, compreendemos que as características particulares do objeto,
neste caso o suporte do texto, o livro independente de sua época, nos propicia,
dependendo do conhecimento de cada indivíduo, um conjunto de informações prévias
que de certa maneira nos conecta com elementos significativos que tanto podem estar
relacionados ao texto, como também, do contexto histórico do objeto em si.
Sendo assim, este trabalho objetiva discutir acerca da materialidade do livro
evidenciando a interação leitor e livro, este enquanto objeto. Tal discussão também está
centrada na prática em sala de aula, a partir da utilização da obra O carteiro chegou
(2007), de Allan Ahlberg (1938-1994).

A materialidade do objeto livro e a discursividade além do texto


Para o leitor, ter um livro em mãos é se deixar levar não apenas pela história em
si, mas por um conjunto de sensações: da textura do papel, do corte da capa, do
perfume que ele possui, do brilho que ele emana no escuro, da tipologia usada, etc,
estímulos que despertam ainda mais a nossa relação com a leitura e também com a
nossa memória afetiva, pois, sempre que folheamos uma obra literária, é possível
sermos transportados para as nossas mais antigas lembranças de contato com a leitura.
Não se trata apenas de lembrarmos da narrativa, mas de todos os elementos que
envolvem a obra, construídos a partir do seu projeto gráfico.
Muito mais que simples complemento ou adorno, o uso do designer, na obra
literária, revela-se também rico em narratividade, seja completando os sentidos do texto
ou indo para além deste, fato que nos permite tratar o próprio ilustrador ou designer
como co-autor da obra. A este conjunto de aspectos que instigam os nossos sentidos a
partir do estético, conceituamos como materialidade.
De acordo com Zuza (2020), em entrevista para o grupo A Taba, ao tratar de
materialidade, “é preciso pensar o que é o livro” a partir de sua totalidade física, pois na
maioria das vezes que remetemos a este suporte erroneamente o consideramos como
“um receptáculo (...) passivo para receber o texto”, porém vários outros elementos que
compõe a obra, carregam narrativa, ainda palavras da escritora e também doutoranda
pela Universidade de Coimbra, a relação texto e paratextos torna-se equilibrada.

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O precursor da estética da materialidade do livro como objeto é o escritor e
ilustrador Peter Newell (1862-1924) em sua obra O livro inclinado (1910), ele nos
apresenta contornos dialógicos tanto no aspecto físico do corte da capa, totalmente
inclinada correlacionando-a como história, como no empregar uma narrativa
sequenciada que nos mostra um carrinho de bebê desgovernado, deslocando-se por
uma movimentada avenida. Embora a referente obra seja bastante citada entre os
pesquisadores é possível constatar em trabalhos anteriores a este, do referente autor,
a sua destreza para construir através da imagem, uma narrativa rica e divertida.
Porém, de acordo com Zuza (2020), é apenas a partir da segunda metade do
século XX que o conceito de livro como objeto, vem a ser pontudo por artistas e
designers gráficos, um conceito que a princípio passou a vigorar mais em livros para
adultos e que posteriormente veio a ser inserido nos livros para crianças. Artistas
tornaram-se autores como no caso de Léo Lionni (1910-1999), primeiro artista a usar
colagens para ilustrar uma obra infantil, mais precisamente em sua obra de estreia Little
Blue e Little Yellow (1959).
Ora repleto de um intenso abstracionismo, ora com contornos geométricos ou
com ilustrações, preenchendo páginas em sua totalidade, além de fazer uso de outros
recursos que ampliam o repertório sensorial de experiências entre o leitor e a obra.
Propostas narrativas que permitem um novo olhar acerca do que comumente
conhecemos por narrativas, sempre ligada ao registro escrito da palavra, o livro infantil,
espaço onde a construção da materialidade se mostra bem mais intensa, torna-se uma
ferramenta de imersão que convida o leitor a participar ativamente da narrativa.
Para a ilustradora e escritora tcheca Kveta Pacovska, em documentário
produzido pelo grupo El Balcon de Matéo (2020), o livro ilustrado é o primeiro contato
da criança com uma galeria de arte, um lugar onde ela molda, a partir de seu contato
com formas, cores, texturas e cheiros, a sua compreensão da narrativa. Pensamento
este que conecta-se diretamente com a sua proposta literária, que leva o leitor a ler
através dos cinco sentidos, influindo os significados. Para a ilustradora também é
necessário que a criança aprenda a forçar o olhar para compreender a imagem, evitando
estagnar-se na superfície da mesma sem poder tirar qualquer significado.

O livro-objeto é, amiúde, entendido como um produto estético que se


realiza por meio de manipulação. Essa visão tende a enfatizar o livro-
objeto como material manual destinado às crianças. (…) A verdadeira
inovação do livro-objeto está na quebra de paradigmas das normativas
do livro e da narração: novas possibilidades de articulação do material,
novas informações, rejuvenescimento das capacidades linguísticas. O
livro-objeto é hoje a hipótese de estratégia discursiva e artística que,
para evitar o perigo de estabilização, antes afirmada por Bakhtin,
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configurar-se-ia como um aspecto finalmente “totalizador” da própria
literatura, e não como um aspecto redutor, que enfatizaria, mais uma
vez, certa marginalidade canônica. (D’ANGELO, 2013, p. 33)

Segundo Zuza (2020) alguns livros que trabalham com a materialidade


necessitam de uma mediação, por parte de professores e pais, devido a sua
complexidade dialógica distribuída em todo o seu corpo físico: imagens, texto, formato,
paratextos, etc. A leitura, neste caso, necessita de um leitor cuidadoso com o seu olhar,
para perceber com mais apuro as muitas camadas do texto, além do mais uma obra que
trabalha a materialidade não esgota-se com uma única leitura, esta, ao ser revisitada
pelo leitor vai apresentar novas nuances de sua história.
Rampazo (2020) explicita que a materialidade trabalhada em uma obra não é
por acaso, ela funciona como elemento da narrativa, contribuindo para dar um sentido
maior a mesma. De acordo com o escritor o simples passar de uma página ou mesmo
uma página em branco possui um sentido, “o nada que é tudo”, como bem esclarece,
possui também, uma mensagem a ser decodificada pelo leitor. E aqui voltamos ao livro
de Newell (1910), o corte da capa em muito se relaciona com o postulado de Rampazo
(2020), a inclinação serve para direcionar o olhar do leitor, levando-o a participar de toda
ação, transportando-o para o livro como uma das personagens.
Assim como na obra de Newell (1910), em Se eu abrir esta porta agora (2018),
Rampazzo também coloca o leitor como personagem, ao levá-lo a abrir, repetidamente,
a porta do armário e a se deparar com vários outros personagens que configuram em
uma galaria do imaginário, do medo, mitos folclóricos ou monstros do cinema. A obra,
sem qualquer lombada, possuí um projeto gráfico sanfonado que dá ao leitor uma
segunda leitura, na perspectiva de quem está dentro do armário, desta vez o uso da
materialidade nos leva a dialogar com a criança que sem medo, abre a porta do armário
a imaginar o amigo que de lá pode vir a sair.

Os livros-ilustrados possuem fulcral papel para a renovação e


consolidação da literatura destinada a jovens e crianças como
experiência estética e não como instrumento pragmático de
aprendizagem, sendo a ilustração um elemento primordial para essa
mudança. É possível dizer que os livros-ilustrados permitiram à
literatura infanto-juvenil uma frutífera reafirmação como arte literária.
(ZUZA, 2013, p. 7)

Newell e Rampazo, cada um à sua maneira, e em épocas distintas, realizam uma


experiência estética com os leitores a partir do emprego da materialidade em suas
obras, estes são arrebatados de suas casas para emergirem como personagens, porém,
enquanto o primeiro escritor faz uso da velocidade sem sequer conceder tempo para
que o leitor venha a refletir acerca do passar de página, o segundo permite uma reflexão
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e uma escolha antes do virar de página, Rampazo rompe a quarta parede e passa
trabalhar com o tempo real, do leitor, fugindo do tempo da narrativa.
Neste sentido a materialidade do livro é uma porta de entrada que nos possibilita
trazer a narrativa ficcional para a nossa realidade ou ainda, sermos capazes de nos
inserirmos nela, tudo isso dependendo de nossa bagagem como leitores, do nosso
comprometimento com a obra lida, aguçando o nosso olhar a cada linha do texto e a
cada imagem que encontramos nas páginas que se apresentam a nós, leitores iniciantes
ou veteranos.

A intertextualidade na materialidade trabalhada na obra O Carteiro Chegou


Ao postularmos acerca da materialidade, observamos a força exercida pela
estética do livro, desenvolvida a partir de uma proposta gráfica literária, que dá ao leitor
uma maior possibilidade de imersão e diferentes ângulos de leitura da narrativa. A leitura
é neste sentido um exercício constante, desta forma, para uma melhor compreensão do
texto é necessário aprofundar o nosso olhar e os demais sentidos, pois cada livro, que
faz uso da estética da materialidade, evidencia uma estrutura distinta nos fornecendo
pistas do texto a ser lido e ao mesmo tempo, se interconectando com as nossas
lembranças e bagagem de leituras.
Embora, de acordo com Zuza (2013, p. 4), “a ilustração costuma ser aplicada
como iscas para as crianças” esse mesmo elemento nem sempre se efetiva apenas
como mero adorno, mas como recurso de discursivo, principalmente nos livros de
imagens. Porém, as obras que mesclam o texto escrito com a imagem, trabalham a
discursividade de maneira que os não ditos pelo texto sejam pontuados na arte, mas ao
contrário do que se pensa, tais informações se encontram cifradas necessitando do
leitor, uma atenção maior, além de uma boa bagagem de leituras.
Na obra O Carteiro chegou (2007), de Janet e Allan Ahlberg, obra que integra
uma coleção que teve início em 1986 e que conta com mais três livros, a materialidade
se constrói a partir de três nuances narrativas, o texto principal, a intertextualidade nas
ilustrações e os elementos paratextuais que funcionam como suporte de gênero. Trata-
se de uma obra que necessita de uma mediação, principalmente devido ao seu rico
conteúdo de extratextos que evidenciam narrativas infantis, tanto conhecida,s como
desconhecidas do grande público brasileiro. Outro fato importante que deve ser
ressaltado é no que se refere à adaptação da obra para o idioma alvo, neste caso, do
português, que indigeniza palavras para evitar o estranhamento por parte do leitor, mas

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infelizmente tal ação não acontece com as imagens que tendem a permanecerem fiéis
à ideia original.
Dito isso, comecemos a discorrer sobre a ilustração e a intertextualidade
existente nela. Observando a capa, notamos que ela fornece ao leitor uma prévia da
história, na sua composição temos diversos personagens dos contos infantis lendo
cartas, o leitor iniciante reconhecerá algumas das personagens, como o Gato de Botas,
um dos três Porquinhos e o Patinho Feio além de uma senhora idosa que pode ser
tomada pela avó de Chapeuzinho Vermelho.
Já o leitor de nível médio não terá dificuldades, além dos já citados personagens,
de realizar uma conexão com as duas crianças que compõe o conjunto de imagens
como os irmãos João e Maria e o casal de ursos da história de Cachinhos Dourados.
Porém, apenas os leitores com uma bagagem mais rica, serão capazes de identificarem
as demais personagens que não fazem parte do fluxo de leituras dos brasileiros, por
integrarem a cultura literária infantil inglesa, ou mesmo o seu folclore, como é o caso
das personagens da canção de ninar Hey Diddle Diddle, onde podemos ver na ilustração
a Colher, o Prato, o Cachorro, a Vaca e a Lua, canção essa que nos leva a um contexto
histórico bem distante e desconhecido do leitor brasileiro, mas que faz todo sentido
para os leitores ingleses.
Por fim, ainda na capa, temos a Aranha, que nos traz à lembrança da
personagem Charlotte do livro de Charlotte's Web (1951), do escritor Elwyn Brooks
White (1899-1985) que também escreveu Stuart Little (1945), ambas as obras foram
levadas para o cinema e TV. Na história escrita por White, a aranha Charlotte era a
amiga do porquinho Wilbur e sempre escrevia mensagens otimistas para ele, usando
sua teia. Outras referências a uma cultura estrangeira seguem-se também no interior da
obra como o Monstro do Lago Ness, o conto da Velha que morava no sapato com os
seus filhos e outra canção de ninar intitulada Pat-a-cake, pat-a-cake, baker's man, todas
estas, referências dispostas no cartão-postal que o gigante recebe do carteiro.

É importante observar, no entanto que nem sempre as imagens podem


ser consideradas como ilustrações em livros infantis. Se admitirmos
que uma ilustração deve ser uma imagem concebida pela
interdependência entre códigos (não necessariamente implicando em
subordinação de uma das partes), é preciso que tenha sido pensada
em função de um texto (a posteriori ou em paralelo) ou de alguma outra
linguagem (por exemplo, de uma linguagem não verbal como a música,
por que não). (TEIXEIRA 2010, p. 21)

Não apenas na capa, mas também no interior da obra, a quantidade de


intertextos existentes, dá ao leitor muito mais do que a simples história de um dia de

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trabalho do carteiro, porém, a intertextualidade trabalhada na referente obra, necessita
de uma mediação, principalmente no que diz respeito ao leitor brasileiro, para que a
narrativa seja apreciada e compreendida em sua totalidade por ele.
Um dos mais famosos exemplos de obra literária voltada para o público infantil,
que erroneamente classificada como tal, haja vista a sua carga de intertextos, é a obra
Alice no País das Maravilhas (1865), que somente com o auxílio de paratextos é
possível obter uma compreensão de sua narrativa, que ora está ligada à passagens de
sua época, o séc. XIX, ora diz respeito a textos apenas de conhecimento entre o autor
Lewis Carroll (1832-1898) e a pequena Alice Linddell (1852-1934), para quem a obra foi
particularmente escrita, como bem explicita o pesquisador Gardner (2013) em prefácio
da referente obra.
Além dos intertextos que a obra de Ahlberg e Ahlberg (2007) nos oferece através
das ilustrações, os paratextos inseridos em cada uma das visitas do Carteiro aos
moradores da Comarca de Mata Dentro, neste caso a carta descontraída e de próprio
punho; o cartão-postal, a mala direta, a boneca de um livro a ser lançado; uma carta de
cunho mais formal e o cartão de aniversário, suporte de gêneros textuais, que as
personagens recebem e que são manuseadas pelos leitores, retiradas dos respectivos
envelopes e lidas, possibilitando uma quebra da quarta parede levando o leitor a
interagir com a narrativa como se dela participasse. A cada carta o leitor se torna o
destinatário ou até mesmo um amigo do personagem, lendo a mensagem para ele.
Cada uma das cartas mostra ao leitor que os personagens dos contos infantis
após as suas histórias famosas, seguiram com suas vidas, em novas aventuras, ou
mesmo vivem uma rotina tão semelhante à deles próprios. Na primeira carta, Cachinhos
Dourados escreve um pedido de desculpas para os três ursos lamentando ter quebrado
a janela da casa e por ter comido todo o mingau. Em outro momento, a Bruxa Malvada
recebe um catálogo com ofertas de um empório.
Neste último elemento narrativo, o suporte que se destaca e é manuseado pelo
leitor como um brinquedo, não deve ser tratado pelo mediador como o único recurso
relevante da obra, apenas para tratar de gêneros textuais, explicitando a sua
funcionalidade, estes meios de comunicação antes da era digital, proceder desta forma
é limitar os recursos da materialidade existente em todo o livro. E foi pensando na
multiplicidade de narrativas e na ideia de imersão na história que realizamos uma prática
de mediação de leitura com a obra O carteiro chegou, ação que discutiremos no tópico
seguinte.

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Mediação de leitura na sala de aula com a obra O Carteiro Chegou e a imersão na
narrativa
Toda mediação tem como objetivo principal, ampliar a percepção do aluno em
relação ao texto, levando-o a exercitar o olhar sobre o mesmo, aprendendo a se
aprofundar cada vez mais na história e no seu entorno, com os elementos paratextuais:
capa, ilustração, notas de rodapé, índice, resumos de capítulo, etc. Ler, como já
postulamos é além de uma prática libertadora, é um constante aprendizado, pois as
leituras que realizamos ao longo de nossa vida, sempre enriquecem o nosso arcabouço
de conhecimento.
Sendo assim, estruturamos o nosso trabalho de mediação literária com a obra O
Carteiro chegou (2007), em três momentos, valendo-nos de um aporte teórico
metodológico a partir do postulado por Girotto e Sousa ( 2010, p. 50) que destaca uma
estrutura em etapas que principia com a ativação de conhecimentos prévios a partir de
discussões e leituras que envolvem elementos existentes na narrativa principal, pois
segundo as autoras, “reconhecer e compreender uma palavra depende da memória do
leitor, a qual armazena seu conhecimento prévio”, um saber que se constrói na medida
que ele mantêm uma prática constante do ler, da mesma forma tal postulado é válido
para a leitura da imagem que também é um espaço narrativo.
Dessa maneira, tratamos a princípio, de construir sentidos com elementos que
norteiam a história existente no livro, a partir do resgate da lembrança de leituras já
realizadas em sala como: Cara Sra. Leroy. Cartas da escola de obediência (2004) de
autoria de Mark Teague que tanto ilustra, como escreve a história do cãozinho Sam,
que depois de muitas travessuras é mandado para uma escola de adestramento e lá
para tentar reconquistar a sua dona, ele escreve cartas para ela. Outra obra também
retomada foi A carta (2013), de Carolina Michelini, que tem uma relação de proximidade
com a obra de Teague, que é a tentativa de conquistar, de chamar atenção do outro
através das cartas.
Porém, a dúvida se concretiza em como as cartas vão e vem, na primeira obra
essa questão é irrelevante, já na segunda narrativa a carta se transforma em aviãozinho
pelo apaixonado remetente, que a lança na esperança de que a menina de seu interesse
venha a recebê-la. Evidenciar e esclarecer quem faz e como são feitas as entregas foi
o segundo momento de trabalho em sala, no qual levamos as crianças a construir um
diorama jogo que representasse o bairro, onde elas inseriram o nome de suas
respectivas ruas, e assim através do lúdico, criamos rotas de entregas de cartas, que
foram escritas e endereçadas pelos próprios alunos, lidas em voz alta, procurando não

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apenas evidenciar a importância do gênero, mas também, as histórias que cada carta
pode conter.
Desta forma, neste segundo momento através de uma pequena brincadeira,
trabalhamos a orientação espacial da criança como também, estabelecemos um diálogo
com os textos já lidos em sala, instigando a conectividade entre todos os participantes.
De acordo com Girotto e Sousa (2010, p. 54) “a criança forma-se como leitora, ao
construir seu saber sobre texto e leitura, conforme as atividades que lhe são propostas
pelo mediador durante o processo de planejar, organizar e implementar atividades de
leitura literária”.
Como já evidenciamos, a obra O carteiro chegou (2007), possuí uma forte
intertextualidade no conjunto de suas imagens, algumas destas, remetendo às
narrativas distantes do conhecimento de nossos alunos, sendo assim, ao iniciarmos na
apresentação e leitura do referente livro, neste terceiro momento de nossa mediação
literária, para que pudéssemos observar quais conexões seriam realizadas ao longo da
leitura. Assim que apresentamos a capa, os alunos estabeleceram uma ligação com
livros anteriores, porém, ao se depararem com o título e com as personagens segurando
cartas, eles explicitaram que a história trataria de um carteiro indo de casa em casa
entregando cartas.
Das imagens de capa apenas o Gato de Botas, a vovó de Chapeuzinho
Vermelho, o Patinho Feio e um dos três porquinhos foram reconhecidos. Porém, sempre
que durante a leitura eles viam os personagens da capa nas páginas ressaltavam o fato.
Quando a primeira carta foi apresentada e lida, eles perguntaram quem era a
Cachinhos Dourados e por que ela invadiu a casa da família urso, desta maneira,
ocorreu a primeira contação de histórias desmembrada da narrativa trabalhada. Quando
a segunda visita do Carteiro aconteceu, na casa da Bruxa Malvada, os alunos
lembraram do Harry Potter, ao invés de ligar o fato da personagem viver em uma casa
de pão de mel e ser a bruxa da história de João e Maria. Quando o cartão-postal do
gigante do pé de feijão, cuja história foi prontamente lembrada, foi mostrado aos alunos,
apenas a Pequena Sereia foi evidenciada e o gato que toca violino foi tomado
erroneamente pelo Gato de Botas.
No conjunto da obra, somente a personagem Cinderela deteve um
reconhecimento maior, pois as crianças ficaram admiradas com a vida depois do
casamento e perguntaram porque uma princesa estava usando avental se ela não era
mais empregada. Nesta parada do Carteiro os alunos discutiram que foi o único lugar
onde deram a ele uma bebida diferente, pois as outras só tinham chá e diante disso

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perguntaram o porquê. Esclarecemos que os autores da obra são ingleses e que
naquele país o chá é uma bebida de grande consumo, tradicional. Na chegada do
Carteiro na casa da vovó os alunos discutiram entre si sobre o fato do Lobo ser o mesmo
das histórias dos três porquinhos, alguns acreditavam que sim, outros achavam que era
outro, porque não tinha só um lobo no mundo.
Ao final da jornada do Carteiro, na casa de Cachinhos Dourados, apenas os três
porquinhos foram reconhecidos, alguns personagens foram lembrados por estarem na
capa e os outros não tiveram nenhuma citação relevante dos alunos. Quando
finalizamos a leitura, retornamos à capa e passamos a informar a eles acerca das
personagens que não foram reconhecidas. No tocante aos gêneros textuais
relacionados aos Correios, apresentamos aos alunos diferentes modelos dos que foram
trabalhados pelo autor do livro, informando a eles as usas caraterísticas e
peculiaridades.
Em um quarto momento de leitura da obra O carteiro chegou (2007), procuramos
ampliar ainda mais o espaço de interação e participação dos alunos com a obra literária,
prática essa que segundo Cosson (2019), amplia a relação e a discursividade com o
texto, nesta intenção, solicitamos aos alunos que confeccionassem, textos diferentes do
que foi recebido pelas personagens e que no curso da nova leitura seriam lidos no lugar
das que estavam no livro, desta forma, observamos o envolvimento de toda a turma com
a história trabalhada da mesma forma que procuramos orientar a todos para olharem
com mais apuro para os detalhes de cada espaço existente nas páginas do livro.

Considerações Finais
Livro objeto ou livro arte, é difícil para o leitor chegar a um consenso, haja vista,
o cuidado estético que a obra apresenta e que não está ali por acaso, mas para provocar
todo um conjunto de sensações no leitor, assim se resume a materialidade na obra
literária que redefine a forma de ler, tendo o texto apenas como epicentro da narrativa.
Imagens, cheiros, forma, textura, diagramação de texto, etc cingem alma ao livro em
seus muitos intertextos.
A necessidade do exercício do olhar como bem postula Zuza (2020) é uma
prerrogativa na literatura infantil contemporânea mais do que necessária, como bem
evidenciamos na obra O carteiro chegou (2007), livro que embora não evidencie um
corte diferenciado, carrega em suas imagens, um rico repertório de narrativas que
mesmo sem palavras instigam o leitor a recontá-las para o pequeno ouvinte, que
também faz grande proveito dos elementos paratextuais destacáveis que compõe a

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obra. Mas se a materialidade em O carteiro chegou (2007) nos enriquece com diferentes
perspectivas do ler no conjunto de sua materialidade, a mesma, em se tratando de uma
obra adaptada ou traduzida não consegue evitar os estranhamentos que as imagens
causam, com elementos distantes da cultura do país onde essa passa a figurar.
Desta forma, compreendemos a necessidade de uma mediação literária entre
pais, professores e alunos, para que exista uma compreensão maior de todo o corpo
narrativo do livro que não pode ser mais limitado ao texto, à decifração do código
linguístico. A leitura dentro da estética da materialidade extrapola as barreiras que nos
separam das nossas construções mentais, que fazemos ao imaginar todo um mundo de
fantasia criada pelo autor e reforçada pelo ilustrador e designer gráfico, mas esse
mesmo romper de barreiras entre mundos deve ser antes de tudo, reconhecível para se
tornar real.

Referências
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Paulo, 2007.

CARROLL, Lewis. Alice: aventuras de Alice no país das maravilhas; & através do
espelho. Introdução e notas de Martin Gardner. Zahar, Rio de Janeiro 2013.

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IPOTESI, Juiz de F ora, v.17, n.2, p. 33-44, jul./dez. 2013. Disponível em:
https://docplayer.com.br/16246927-Entre-materialidade-e-imaginario-atualidade-do-
livro-objeto.html acesso 27/08/2020.

El balcon de Matéo. “El álbum ilustrado es el primer museo que el niño descubre” Kveta
Pacovska. 2020. (03m28s). Disponível
em:https://www.youtube.com/watch?v=GGp_RQn4Hv0 acesso 25/08/2020.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: Três artigos que se completam. Autores
Associados. Coleção Polêmicas do Nosso tempo n. 4. São Paulo, 1989.

GIROTTO, Cyntia Graziella Guizelim Simões. SOUZA, Renata Junqueira de. Ler e
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NEWELL, Peter. The slant book. Harper & Brothers, New York, 1910. Disponível em:
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RAMPAZO, Alexandre. A materialidade do livro como elemento da narrativa. FronteiraZ.


Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária, [S.l.],
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<https://revistas.pucsp.br/fronteiraz/article/view/49394/32336>. Acesso em: 25 ago.
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TEAGUE, Mark. Cara Sra. Leroy. Cartas da escola de obediência. Editra Globo. São
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acesso 25/08/2020.

ZUZA, Júlia Pereira. O papel da ilustração no livro-ilustrado: uma discussão sobre


autonomia da imagem. Anais do SILEL. Volume 3 n. 1 Uberlândia, EDUFU, 2013.
Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/wp-
content/uploads/2014/04/silel2013_759.pdf Acesso 25 ago. 2020.

ZUZA, Júlia Pereira. Entrevista sobre: Cores, fontes, formatos e texturas: a importância
da materialidade no livro infantil. Entrevista concedida a GUILHERME, Denise. Bate-
papo A Taba. Disponível em: https://blog.ataba.com.br/bate-papo-taba-cores-fontes-
formatos-e-texturas-importancia-da-materialidade-no-livro-infantil/ acesso 25 ago. 2020

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FORMAÇÃO CONTÍNUA DE PROFESSORES: POSSIBILIDADES
DE DESENVOLVIMENTO HUMANO PELA LITERATURA
INFANTIL

Dra Eloiza Elena da Silva, Universidade Estadual de Maringá


Dra. Gizele Aparecida Ribeiro Alencar, Universidade Estadual de Maringá
Ma Dalva Linda Vicentini, Universidade Estadual de Maringá
Pollyanna Kéroly da Silva Freitas, Universidade Estadual de Maringá

Eixo Temático: Literatura Infantil e Ensino

Considerações Iniciais
A Formação Contínua de Professores de Educação Infantil não pode ser
compreendida desvinculada da compreensão do homem enquanto ser histórico. O ser
humano se relaciona socialmente e, nas condições objetivas de vida e forma de
organização do trabalho, produz os bens materiais, as instituições e a própria
consciência (KOSIK, 2002; 2014; MARX, 2017). Assim, as relações de produção
impulsionam as mudanças na organização da economia e do trabalho, modificam as
condições da vida humana, transformam instituições e também projetos educativos,
com vistas à formação do homem que necessita para a manutenção da estrutura da
sociedade como um todo.
Dentro desta concepção dialética marxista de produção da vida material é
possível entender a gênese histórica e política da Formação Contínua de Professores
de Educação Infantil, bem como a relação intrínseca entre educação, formação do
trabalhador e universalização da educação como expressão de sua função na
sociedade capitalista (MÉSZÁROS, 2008; 2009; 2017).
Analisando as proposições da legislação brasileira sobre educação, observamos
que, historicamente, as constituições federais e as demais leis em educação, instituíram
uma política de formação de professores baseada em um modelo educativo centrado
no desenvolvimento de competências para a empregabilidade, e numa lógica e atuação
profissional determinada para legitimar o ensino para a subserviência (CHAVES, 2019).
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Este modelo, que contribui sobremaneira para a manutenção das condições postas pelo
sistema capitalista, está distante de configurar-se como possibilidade do homem ser
educado ou educar-se, como condição de humanização, apreendendo-se como ser
histórico (ARENDT, 1972).
Nesta perspectiva, justifica-se a relevância deste estudo que, a partir de uma
abordagem qualitativa, tem como objetivo apresentar questões afetas à Formação
Contínua, indagando sobre quais são as possibilidades da implementação e
concretização de uma Formação Contínua de Professores de Educação Infantil
enquanto estratégia de desenvolvimento para professores e crianças (SILVA, 2020).
Acreditamos que a educação não pode fundamentar-se no desenvolvimento de
competências, mas, sim, na vivência de experiências que propiciem um aprendizado
efetivo e significativo, capaz de formar o cidadão autônomo, crítico, pronto e responsável
para fazer escolhas e tomar decisões.
Neste sentido, Chaves (2019) e Moraes (2001) colocam a necessidade de que
os professores das séries inicias se oponham a lógica do capitalismo e passem a atuar
em uma perspectiva de ampliação e construção de sentidos de vida, com vistas à
humanização do homem enquanto ser histórico, conforme já destacado por Arendt
(1972). Assim sendo, experiências cotidianas, produtivas e exitosas de Formação
Contínua de Professores de Educação Infantil devem ter como suporte as proposições
da Teoria Histórico-Cultural, desenvolvida por Vigotski e colaboradores (1896-1934).
Esta teoria permite compreender o desenvolvimento humano, em toda sua
complexidade, e assim possibilita ao professor escolher conteúdos e temas
significativos, que despertem a curiosidade e o interesse da criança, visando realizar
intervenções no processo de ensino-aprendizagem, bem como organizar uma prática
cotidiana educativa coerente com os objetivos propostos, potencializando o
desenvolvimento integral do educando (CHAVES; FAUSTINO, 2007; CHAVES;
TIXEIRA; FAUSTINO, 2008; CHAVES; LIMA; FERRAREZE, 2012; DUARTE, 2008;
2010; LIBÂNEO, 2004; MARTINS; DUARTE, 2010; MORAES, 2001; MOURA, 2018).
Apropriando-se desta teoria, professores tornam-se capazes de caminhar rumo
à mobilização, intencional e planejada, de estratégias e recursos didáticos e
pedagógicos, que instiguem a curiosidade e maximizem a criatividade das crianças.
Também, instrumentalizam-se para selecionar e conduzir a exploração de conteúdos
ricos em elementos das ciências, das artes e da literatura, num espaço escolar coletivo
e colaborativo, que propicie aprendizagens significativas para o desenvolvimento pleno
e integral de todas as crianças.

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Educação como direito de todos

Em 5 de outubro de 1988, no art. 205, a Carta Magna do brasileira dispôs que:


“A educação, direito de todos e dever básico do Estado e da Família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988). Isto significa
que o direito à educação é um dos mais importantes preceitos do sistema jurídico pátrio,
pois através dele o cidadão pode ter acesso a outros direitos fundamentais como, por
exemplo, o trabalho e a moradia.
O art. 208, da mesma Constituição, dispôs que o dever do Estado com a
educação seria efetivado mediante “a garantia de Ensino Fundamental obrigatório e
gratuito”, mas o acesso de todas as crianças foi confirmado somente com a Emenda
Constitucional (EC) nº 59/2009 (BRASIL, 2009) que previu a universalização do
atendimento na educação infantil e no ensino médio, ao ampliar a obrigatoriedade aos
alunos entre 4 e 17 anos.
Um pouco antes, em 2006, dispositivo da EC nº 53/2006 determinava entender
por educação infantil o atendimento realizado em creche e pré-escola, às crianças até
5 (cinco) anos de idade (BRASIL, 2006). Tratava, portanto, do ensino desde as primeiras
experiências escolares, visto que, na política educacional brasileira, a educação é
associada ao pleno desenvolvimento humano. Os primeiros anos de vida de uma
criança são representativos de um período em que ela aprende todos os conhecimentos
basilares, para o seu desenvolvimento escolar futuro, assim como para a vida, o que
pode gerar impactos mais positivos na macroeconomia (CARVALHO, 2016;
MELHUISH, 2013).
Este entendimento, aceito por muitos estudiosos (CARVALHO, 2016;
HECKMAN, 2012; MELHUISH, 2013; SANTOS; FERREIRA, 2014) das teorias
constantes das publicações referentes ao Desenvolvimento da Primeira Infância (DPI),
elaboradas em 2010/2011 pelo Banco Mundial (BM), coloca em debate e discussão a
importância que a Formação Contínua de Professores de Educação Infantil tem e a
necessidade de se dar atenção prioritária a essa etapa do ensino-aprendizagem das
crianças dos primeiros meses aos 5 (cinco) anos de idade.

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Destacamos que, na CF/88, a educação é concebida como um direito
inalienável, obrigando o Estado a promover os meios para a efetivação desse direito a
todos os brasileiros, o que implica em que professores de todos os níveis de ensino
tenham acesso à formação contínua em serviço, como pressuposto para seu
aprimoramento pessoal e profissional e, também, condição para que possam promover
o desenvolvimento integral das crianças nas escolas de Educação Infantil.

A formação contínua de professores


Marx (2017, p. 157) considera que “o modo de produção da vida material
condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral”. Isto implica na
transformação de toda a estrutura econômica da sociedade que tem por base o trabalho,
produtor de riquezas e de bens e produtos necessários à sobrevivência humana.
De acordo com o marxismo, o trabalho, fator fundamental à vida humana e
premissa do processo de humanização (algo inalienável compreendido como garantia
de sobrevivência), na sociedade capitalista, transformou-se em mercadoria, moeda de
troca (algo estranho destinado a satisfazer interesses dos donos dos meios de
produção).
Essa dupla e contraditória característica do trabalho humano, sob a égide do
capitalismo, resulta em um movimento dialético: de um lado, de racionalidade
econômica, e de outro, do trabalho como instrumento de sociabilidade. Isto tem
implicação importantíssima na formação de professores, posto que os educadores têm
a função de educar enquanto uma imposição social e com um aspecto da natureza
humana, pois a ação docente pressupõe o aluno.
O aluno, seja criança ou adulto, se encontra em uma condição ainda não
desenvolvida e passível de ser transformada por intermédio da ação docente. Nesta
perspectiva, Marx (2017) assevera que a educação, como ato de trabalho concreto dos
professores, possui condição de modificar a natureza humana, possibilitando que se
adquira habilidade e aptidão em determinada função ou ramo de trabalho.
Destacamos, a partir do pensamento marxista, a importância e as implicações
da Formação Contínua de Professores da Educação Infantil, profissionais que vão
formar futuros trabalhadores para fazer frente aos desafios impostos pela globalização
da economia. A partir da década de 1990, com o desenvolvimento tecnológico, e a
consequente reestruturação e flexibilização das atividades produtivas capitalistas, a
educação segue a tendência de ser um exercício de formação contínua, permanente.
Isto porque, para adaptar-se às mudanças do mundo do trabalho, o trabalhador deverá

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estar apto a ocupar postos de trabalho que exigem habilidades específicas e, ao mesmo
tempo, estão em constante modificação (PAIVA, 2014; SENNETT, 2006).
Diante destas novas exigências do capital, depois da Conferencia Mundial de
Educação para Todos, realizada em Jontien, Tailândia (UNESCO, 1990), sob a
orientação e o controle dos organismos internacionais (BIRD, BM, FMI), no Brasil, em
sintonia com a CF/88, são aprovados decretos, leis, diretrizes, estatutos, pareceres e
resoluções para regulamentar o sistema educacional.
No âmbito da Formação Inicial e Continuada de Professores, a educação
mercantilizou-se com as parcerias entre Estado e iniciativa privada, e a formação foi
aligeirada com a expansão e adoção do Ensino a Distância (EaD), pois as reformas
educativas foram desenvolvidas basicamente como expressão das transformações na
organização do trabalho e para atender aos interesses do capital (DEL PINO, 2002;
DOURADO, 2016; SILVA JÚNIOR, 2002). Sob o discurso da aparente valorização,
gerada pela aprovação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9.394/1996), aprofundou-se
o quadro de desvalorização dos professores em razão da flexibilização e aligeiramento
da formação (FREITAS, 2002; 2007).
Deu-se prioridade a Educação Básica, mas especificamente ao Ensino
Fundamental, em detrimento da Educação Infantil, visando proporcionar
conhecimentos, habilidades e competências necessárias para garantir a
empregabilidade e a subserviência aos sujeitos. Nessa direção caminhou então a
Formação Continuada de Professores de Educação Infantil, sem que os professores
adquirissem a capacidade de atuar amparados em conhecimentos científicos para
tornarem-se capazes de ensinar o conhecimento socialmente acumulado aos alunos e
formar cidadãos aptos a compreender, agir e transformar a realidade em que vivem
(KUENZER; GRAVOWSKI, 2006).
Mas, acreditamos que a Formação de Professores de Educação Infantil se impõe
como necessidade, que deve avançar para além de cursos e palestras, seguindo ao
longo de toda carreira docente, pois o desenvolvimento profissional permanente é
necessário, se queremos uma educação de qualidade, o que é possível, somente a
partir do desenvolvimento das potencialidades de aprendizagens de todas as crianças
das escolas infantis.

Experiências de formação contínua de professores através da literatura infantil


Atualmente, temos regulamentado um conjunto de decretos, diretrizes e leis que
ressaltam a valorização do docente e a Formação Continua. Para a etapa da Educação

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Infantil, os avanços implementados com a LDB nº 9.394/1996, significam a possibilidade
de favorecer o desenvolvimento continuado, fortalecer a identidade profissional e
investir em melhores salários (SILVA, 2020), que lhe permitam acesso a bons livros,
filmes, teatro, e não obrigue o docente a uma jornada de trabalho em diferentes
instituições para aumentar seus ganhos e ter condições mínimas de sobrevivência.
Somando-se a essas conquistas formalizadas em Lei, professores que, como
Chaves (2014; 2019), acreditam que a formação não pode resumir-se à somatória de
horas, sobrenomes de palestrantes e ministrantes de cursos ou a um encontro no início
do ano letivo e outro no segundo semestre, desenvolvem estudos e experiências
significativas que mobilizam trabalhos pedagógicos, visando ampliar as vivências
cotidianas de adultos e crianças e instigar a curiosidade, e usando a Arte e a Literatura
como temas centrais.
Fundamentadas na Teoria Histórico-Cultural de Vigotski, muitas dessas
propostas de Formação Contínua de Professores foram idealizadas e coordenadas pela
pesquisadora Dra. Marta Chaves e o Grupo de Pesquisa e Estudos em Educação Infantil
(GEEI)191, da Universidade Estadual de Maringá.
Destacamos neste artigo experiências realizadas no Estado do Paraná, nos
municípios de Indianópolis, Presidente Castelo Branco, Paiçandu e Telêmaco Borba.
Uma das ações realizadas pelo Grupo de Pesquisa e Estudos em Educação Infantil
(GEEI), é investigar a Formação Contínua de Professores, e esta pesquisa é um
desdobramento dos trabalhos desenvolvidos vinculados a esse Grupo que culminou na
tese de doutorado de Silva (2020) sob orientação da Dra. Marta Chaves.
No município de Presidente Castelo Branco (PR), o curso sob o tema
“Professores Repensando a Prática: propostas, objetivos e conquistas coletivas” foi
desenvolvido no período de 2004 a 2006, com a participação de 17 educadoras de dois
Centros de Educação Infantil (1 a 6 anos) e 21 professoras de duas escolas do Ensino

191
O GEEI, é formado por discentes e docentes da UEM, e pesquisadores de IES do Paraná,
São Paulo, Rio de Janeiro e Rondônia. Seus objetivos concentram-se em estudos afetos à
formação dos profissionais atuantes com crianças pequenas e investigações sobre as práticas
pedagógicas realizadas nas instituições de Educação Infantil. Os membros do Grupo realizam
pesquisas e atuam em cursos de formação continuada junto a Secretarias Municipais de
Educação do Estado do Paraná e outras unidades da Federação. Além da participação em
eventos, estudos e vivências diversas, há a elaboração de recursos pedagógicos que auxiliam
na efetivação de intervenções pedagógicas humanizadoras, tais como: Caixas de Encantos e
Vida, Caixas que Mostram Telas, Caixas que Contam Histórias, Livretos e Dicionários. Os
pressupostos do marxismo e da Teoria Histórico-Cultural norteiam e amparam as intervenções
pedagógicas dos integrantes a fim de instrumentalizar a organização de um ensino de
excelência, que se caracteriza por ter como prioridade as máximas elaborações humanas
(CHAVES, 2011b; CHAVES, 2012).

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Fundamental (1ª a 4ª séries), de ministrantes de diferentes instituições de ensino
superior e de diversas áreas do conhecimento, assim como do Grupo de Estudos em
Educação Infantil da UEM e da Secretaria Municipal de Educação. Um dos temas
abordados foi literatura infantil. Em 2006, as professoras da 4ª série do Ensino
Fundamental, juntamente com a equipe pedagógica, tiveram uma experiência de
formação integrada com educadores da Escola Municipal Cecília Meireles, da cidade de
Indianópolis (PR), oportunidade que foi abordada a temática indígena (CHAVES;
TIXEIRA; FAUSTINO, 2008).
Todo o processo, organizado e sistematizado de forma dialogada, possibilitou
chegar a resultados coerentes com o uso da Teoria de Vigotski. Nos encontros
observou-se o interesse dos professores em discutir os temas (especialmente os
relacionados ao curso sobre a teoria histórico-cultural) e os conteúdos abordados, bem
como em aprofundar conhecimentos, especialmente no campo da educação especial e
no aspecto da diversidade cultural/inclusão social. Com relação aos alunos, as práticas
desenvolvidas (organizadas intencionalmente e a partir de conteúdos que despertassem
a curiosidade e o interesse real das crianças) possibilitaram a criação de um espaço de
aprendizado efetivo, capaz de levá-las á internalizar qualidades humanas e a
desenvolver suas potencialidades (CHAVES; TIXEIRA; FAUSTINO, 2008).
No município de Indianópolis (PR), o Evento de extensão “Estudos e Práticas
Educativas para a Educação Infantil: desafios e conquistas de professores e crianças”,
realizado nos meses de setembro e outubro de 2006, possibilitou a exposição de alguns
estudos realizados por docentes dos Departamentos (Teoria e Prática da Educação,
Fundamentos da Educação e Psicologia) da Universidade Estadual de Maringá e
Universidade Estadual Paulista, da cidade de Marília (SP). As atividades do Evento
também tornaram possível a socialização das conquistas de professores (resultado de
uma primorosa capacitação iniciada em 2002) e crianças do Centro Municipal de
Educação Infantil (CMEI) Curumim. Neste evento, que contou com a participação de
dezenas de acadêmicos do curso de Pedagogia, professores e coordenadores da rede
municipal, estadual e particular de Maringá e região, os estudos e reflexões mobilizaram
para a avaliação de práticas efetivadas nas Instituições de Educação Infantil tanto
públicas como privadas (CHAVES; FAUSTINO, 2007).
No Evento em Indianópolis um dos temas abordado foi literatura infantil, com
destaque para o desenvolvimento infantil e a formação de professores com relação a
questão deficiência e literatura infantil. Tendo em vista o referencial teórico que
embasou as experiências, as contribuições da teoria histórico-cultural de Vigotski para

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a formação de professores e para as práticas educacionais na infância, bem como para
a educação especial em tempos de prática social coletiva, também foram objeto de
estudos e reflexões (CHAVES; FAUSTINO, 2007).
No município de Paiçandu (PR), as experiências de formação continuada de
professores, apresentadas na obra “Teoria Histórico-Cultural e a formação de
professores: estudos e intervenções pedagógicas humanizadoras”, foram
desenvolvidas em cinco Centros de Educação Infantil, com o objetivo de proporcionar
aos professores de toda a rede de ensino uma formação voltada para as especificidades
de cada grupo de escolares. Organizada a partir do diálogo entre professores,
coordenadores e a equipe da Secretaria Municipal de Educação, as atividades,
desenvolvidas entre os anos de 2011 e 2012, tiveram a participação dos professores da
rede municipal e de convidados ministrantes de diversas áreas do conhecimento, que
atuam em instituições do Estado do Paraná, de São Paulo e do Rio de Janeiro
(CHAVES; LIMA; FERRAREZE, 2012).
Os temas objeto de reflexão das experiências foram basicamente os
relacionados à literatura infantil e arte: A arte de contar e encantar; Os encantos da
literatura infantil no processo de ensino e aprendizagem; Tatiana Belinky: literatura
infantil como prática humanizadora no desenvolvimento da criança; Uma viagem com
Ana Maria Machado; Monteiro Lobato: uma possibilidade de encanto e aprendizagem
(CHAVES; LIMA; FERRAREZE, 2012).
No município de Telêmaco Borba (PR), as experiências de formação de
professores de Educação Infantil foram desenvolvidas no período de 2013 a 2016, sob
o título “Teoria Histórico-Cultural e Intervenções Pedagógicas: realizações
humanizadoras de professores e crianças”, sob a orientação da Professora Dra. Marta
Chaves, coordenadora do Grupo de Pesquisa e Estudos em Educação Infantil (GEEI)
da UEM, e com a participação de coordenadores da Secretaria Municipal de Educação,
coordenadores das unidades de ensino e professores da rede pública de ensino na
definição da temática, visando o desenvolvimento de uma conduta de pesquisadores
nos docentes que participaram das atividades desenvolvidas. Para a condução dos
estudos, professores de Instituições de Ensino Superior, se disponibilizaram a compor
o grupo de formadores por um período de, no mínimo, 2 (dois) anos. A temática
abordada relacionou-se a Arte, Música e Literatura: brinquedos e brincadeiras, poemas
e canções de Vinícius de Moraes e Toquinho; poemas e histórias de Tatiana Belinky,
Ruth Rocha e José Paulo Paes; músicas e cantigas do cancioneiro folclórico; estudos

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da obra de pintores modernistas Tarsila do Amaral, Candido Portinari e Aldemir Martins
(MOURA, 2018).
De acordo com os princípios presentes no referencial teórico adotado, à medida
que a formação contínua de professores se desenvolvia, observou-se que a
compreensão dos docentes em relação à prática de educar crianças, orientada a partir
dos pressupostos teóricos de Vigotski e colaboradores, foi ampliada. Os professores
passaram a compreender a importância do trabalho com Literatura no desenvolvimento
integral da criança pequena. Assim, destacamos que, o estudo coletivo, cooperativo,
coordenado de maneira efetiva e científica, é capaz de possibilitar aprendizagens e
desenvolvimento a professores e crianças.

Considerações finais

Neste artigo, consideramos que a educação, enquanto produto da ação do


homem, é um processo que começa ao nascimento e continua por toda a vida. A partir
da perspectiva do materialismo histórico, compreendemos que tanto a educação
institucionalizada e o aprendizado, assim como a formação profissional, têm suas bases
legais definidas e elaboradas para formar o cidadão que venha a atender às demandas
da produção capitalista, e não visando o desenvolvimento dos professores e das
crianças.
Neste contexto, salientamos a necessidade da implementação de uma
Formação Contínua de Professores para Educação Infantil amparados em teóricos que
atestam os estudos e a utilização da teoria histórico-cultural como possibilidade diante
das práticas pedagógicas difundidas na atualidade, imbricadas de valorização do
conhecimento tácito dos estudantes, incapazes de avançar para além de sua condição
de vida.
Partimos do pressuposto de que a escola tem sua função social definida pela
transmissão e assimilação dos mais aprimorados conhecimentos historicamente
sistematizados, e de que a Formação Contínua de Professores em Educação Infantil
representa possibilidades de acesso à arte e à ciência, como estratégia de superação
de práticas que não privilegiam o máximo desenvolvimento dos estudantes, sobretudo
na Literatura.
A Educação Infantil atende à criança e, assim, a escola deve atuar de forma
encantadora e lúdica, favorecendo intervenções educativas capazes de despertar o

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interesse e a criatividade, promovendo experiências de formação significativas e em um
ambiente coletivo de colaboração.
Dessa forma, acreditamos que é possível desenvolver realmente as capacidades
intelectuais das crianças, como a atenção, a memória, a linguagem, além de possibilitar
o despertar da sensibilidade para o que é belo, assim como o acesso à cultura e o gosto
pela arte e literatura infantil.

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A LITERATUA INFANTIL INDÍGENA: PRÁTICAS ESCOLARES
DO 1º AO 5º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL EM UMA
ESCOLA PÚBLICA192

Adrielli Freitas da Silva (FMP)


Ivanir Maciel (UFSC)

Eixo Temático: Literatura infantil e ensino

Diálogos iniciais
Esta pesquisa teve como objetivo analisar as práticas de leitura referentes ao
uso da literatura infantil indígena em sala de aula e em uma biblioteca de uma escola
pública no município de Palhoça/SC. Dessa forma, verificaram-se como os professores
faziam uso deste acervo. Visou ainda, identificar se há um acervo étnico racial indígena
na biblioteca da escola, se ele é utilizado e, como as professoras do 1º ao 5º Ano do
Ensino Fundamental, fazem uso da literatura infantil indígena.
Para que pudéssemos elaborar as análises aplicamos questionários para sete
docentes dos anos iniciais e realizamos uma entrevista com a bibliotecária da instituição.
Ao longo desta pesquisa a bibliotecária entrevistada revelou-se protagonista, pois os
seus relatos, informações e práticas foram ao encontro do que versa parte do nosso
trabalho.
Embasamos-nos em pesquisadores como Eliane Debus (2017), Daniel
Munduruku (2017) Graça Graúna (2013), dentre outros – assim como a legislação
corrente –, dessa forma, procuramos compreender e analisar o contexto dessa temática.
Dentro da educação básica brasileira o gênero literário é algo que ainda precisa
ser mais explorado. Houve investimento do Governo Federal como o Programa Nacional
Biblioteca na Escola (PNBE), que foi desenvolvido em 1997, possibilitando o envio de
acervos às escolas públicas. Infelizmente é um projeto que foi suspenso em 2015 e
cancelado em 2016.

192
Esse artigo faz parte de um recorte da monografia intitulada “A literatura infantil indígena:
práticas escolares do 1º ao 5º Ano do Ensino Fundamental em uma escola pública”, orientada
pela Profª Me. Ivanir Maciel.
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A Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008 que “Altera a Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena’.”, a qual foi/é uma grande conquista para promover a produção e procura de
livros de literatura que contemplem a temática afro-brasileira e indígena. Sabendo disso,
podemos considerar que materiais sobre esta temática, precisam e devem constar no
repertório didático dos professores e das instituições de ensino, para que assim, se
tornem efetivos.
Dessa forma, o problema desse estudo é: Como a literatura infantil indígena é
trabalhada em uma escola do Município de Palhoça/SC? Podemos então ter um
vislumbre se está, ou não, sendo usufruída na referida escola. Refletimos aqui sobre o
trabalho de mediação pedagógica que se faz necessário para o sujeito leitor.
Referenciamos Vygotsky (1991), ao dizer que a mediação é um processo dinâmico,
ocorrendo nas formas superiores da consciência humana, o sujeito tem a capacidade
de se relacionar com o mundo a partir das práticas sociais mediadas pela linguagem,
memória e signos. Portanto, buscamos entender este processo de mediação alicerçado
nesta perspectiva.

A literatura infantil indígena


Vimos necessidade em estudar este tema, por acreditar no reconhecimento da
identidade dos povos originários do Brasil. A literatura como ferramenta empoderadora
e transformadora, tem um papel de resgate e preservação muito significativa para
(re)estabelecer a cultura indígena. “O texto literário partilha com os leitores,
independente da idade, valores de natureza, social, cultural, histórica e/ou ideológica
por ser uma realização da cultura e estar integrado num processo comunicativo”
(DEBUS, 2017, p. 28). De acordo com Debus podemos verificar a importância da
literatura na transformação do sujeito em busca da cidadania, emancipação e com
consciência crítica acerca dos acontecimentos da sociedade.
Ponderamos como profissionais da educação que a nossa contribuição é válida
ao ampliar o conhecimento das diferentes culturas em nossa sociedade, mediando e
ressignificando conflitos causados pela indiferença, preconceito, discriminação e
intolerância.
Estamos inseridos em uma sociedade dita de ascendência europeia que se
constituiu em nossa sociedade enquanto cultura dominante, visto que, historicamente

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expandiu-se usurpando vidas e terras de povos nativos por serem considerados povos
inferiores. Dessa exploração empreendida pela visão eurocêntrica, cresceu a exclusão
e a discriminação acerca desses povos que se propagam até a atualidade. Uma questão
importante que destacamos aqui é o equívoco cometido acerca da terminologia utilizada
para identificar os indígenas, a qual está impregnada por uma história de dominação
dos europeus que aqui chegaram. Como diz a autora Maria Martins (2009),

A afirmação de que a imagem das populações autóctones do território


que hoje definimos como brasileiro foi constituída – tanto pela
historiografia mais tradicional, quanto pelos livros didáticos que a
reproduzem –, de modo simplificador e estereotipado e não se constitui
em matéria de discussão (MARTINS, 2009, p. 154).

Por consequência esses estereótipos materializam e propagam


equivocadamente o modo de vida de povos originários. Assim, pode-se afirmar que a
luta dos mesmos é necessária e urgente. Temos uma preocupação enquanto
professores pesquisadores, que a constatação desses estereótipos presentes em certos
livros didáticos, apesar dos esforços de estudiosos e movimentos indígenas, ainda
expressam discursos agressivos e carregados de preconceitos em relação à temática
indígena no interior das escolas.
Em consideração a esta problematização presente na nossa sociedade há muito
tempo Daniel Munduruku (2017), nos ensina que a terminologia “índio” está equivocada,
assim remetendo ao que os colonizadores estabeleceram desde quando aqui
chegaram. O correto é incluirmos em nosso vocabulário a palavra “indígena”, sendo
que, este pertence a um povo específico, por exemplo, Daniel Munduruku pertence ao
povo Munduruku, Cristino Wapichana ao povo Wapichana. De acordo com Munduruku
(2017, p. 15), “nomear alguém com essa palavra era qualificá-lo aquém dos demais
seres humanos e enquadrá-lo em um passado imemorial, que já não existe”, isso
colocava-os em um patamar muito inferior aos dominadores. Com esta terminologia
errônea, podemos perceber um pensamento europeu pejorativo no tocante a esse povo.
Torna-se importante destacar aqui o que está disposto aos leitores em
produções literárias propriamente indígenas. Essa disposição é comentada por Graça
Graúna (2013), quando fala que a literatura indígena e sua crítica literária são
fundamentais em:

a) afirmar e problematizar a cultura e os direitos indígenas e assim


contribuir para a ampliação do processo da construção nacional
multicultural; b) retificar as distorções do discurso hegemônicos cujos
estereótipos definem os indígenas por meio de uma categoria de
exotismo, primitivismo e/ou desumanidade (GRAÚNA, 2013, p. 13).

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Dessa forma, podemos perceber a partir das palavras da autora que as
produções literárias feitas por indígenas servirão para a construção de uma sociedade
baseada em respeito à alteridade, conforme a perspectiva de compreensão do outro,
trazendo as legítimas problematizações sobre esses povos e expondo as distorções
colonizatórias de sua cultura.
Destacamos o que diz Munduruku (2017, p. 23): “[...] é preciso conhecer toda a
diversidade cultural e linguística se quisermos ser justos com todos esses povos que
habitam nossa terra brasileira desde tempos imemoriais”. Quanto mais conhecermos,
mais atitudes de alteridade teremos em relação às culturas distintas. Apenas
conhecendo a história real é que podemos transformar essa realidade.
Como responsabilidade social é preciso destacar aqui a diferença entre a
literatura indígena que é escrita por indígenas e a literatura de temática indígena, essa
escrita por um não indígena. É importante que nos apropriemos deste saber, ao se falar
de literatura indígena, para que não haja equívocos. Essas literaturas apresentam-se
distintas, contudo, muitas vezes tratadas como se fossem iguais, pois a temática
indígena está presente em ambas, porém não coincidem. Devemos destacar que os
termos literatura indígena e literatura de temática indígena ainda são categorizações em
fase de reflexão e estudos, por isso à priori importamos em nosso estudo o que Debus
(2017) incumbiu em seu estudo sobre o termo “literatura africana e afro-brasileira e
literatura de temática africana e afro-brasileira” referenciando Duarte (2008). A literatura
produzida por não-indígenas acaba por carregar um olhar externo à cultura indígena o
que a diferencia da sensibilidade, da vivência do escritor indígena ao enunciar pela
palavra escrita a literatura indígena propriamente.
A autora Graça Graúna (2013) enfatiza que a literatura indígena na
contemporaneidade vem sendo utópica e é permeada pela sobrevivência cultural. Isso
porque, é uma literatura ainda em construção e com uma presente luta por
reconhecimento. Sabemos que na maior parte dos casos a literatura indígena chega às
mãos de leitores de forma aleatória.
Mesmo lutando por reconhecimento e resistindo há cinco séculos, as histórias e
contos ancestrais que sempre fizeram parte da tradição oral de todos os povos e para
os povos indígenas, verificamos que vem sendo expressa há aproximadamente trinta
anos. Passando de geração em geração ela vem sendo transmitida por todo esse
período, para que não se “esfarele” com o tempo. Por meio dessas histórias, os mais
velhos ensinavam/ensinam suas crianças, sobre a vida, a natureza, a cultura e dessa

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forma as maravilham com seus contos. Por meio da oralidade a literatura indígena se
objetiva pela escrita e chega às mãos de leitores não indígenas.
De acordo com Graúna (2013), essas histórias também podem ser classificadas
como oratura (oralidade + literatura). Atualmente, essa ancestralidade pode e deve ser
propagada também por meio das palavras e imagens presentes nos livros de literatura
indígenas. É dessa maneira que a cultura dos povos ancestrais vem sendo preservadas
e endereçadas às novas gerações.
Podemos dizer que devido ao resistente modelo eurocêntrico em nossa
sociedade, ainda há muito o que ser conquistado enquanto visibilidade no mercado
editorial. Graúna (2013, p. 15) afirma que existe “[...] uma minoria que semeia outras
leituras possíveis no universo de poemas e prosas autóctones.”. Embora, ainda poucos,
esses conseguem preservar o caráter de ancestralidade de suas narrativas tradicionais.
Não basta sermos simpatizantes à cultura e movimentos indígenas, é preciso
que nós, não-indígenas, sejamos contra qualquer retirada de direitos ou propagação
errônea do senso comum, ou injustiça, seja nas escolas ou nos demais ambientes. “Ao
longo de sua história, a literatura brasileira (em muitos casos) tem maltratado as vozes
exiladas e a imaginação criadora com que os nativos nomeiam os lugares, as pessoas
e os elementos sonhados.” (GRAÚNA, 2013, p. 44). Por conta disso, muitas obras
literárias não indígenas acabam por tratá-los de forma subalterna e marginalizada.
Algumas obras literárias infantis apresentam a tendência de representar o nativo de
forma folclórica. Isso explorado dentro das escolas implica em processo formativo do
sujeito sem possibilidade de reflexão crítica dos termos.

Tecendo conhecimentos sobre as práticas leitoras em temáticas étnico


raciais indígenas na escola
Aqui faremos a interlocução com as profissionais mulheres elencadas para a
pesquisa, cujos dados nos impacta de maneira a nos fazer refletir sobre a pertinência
deste estudo.
Esta pesquisa foi realizada em uma Instituição do Ensino Fundamental do
Município de Palhoça em Santa Catarina, localizada em um bairro periférico do
município. Tal instituição é uma referência em termos de biblioteca, pois a mesma foi a
primeira escola da rede municipal a efetivar uma bibliotecária escolar. Além da
entrevista com a bibliotecária, onze questionários foram entregues às professoras de 1º
ao 5º Ano, destas, sete professoras nos deram a devolutiva.

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Silva (1986), em seus escritos se apoia na ideia de que seria inviável uma
educação com a isenção de literatura. Para tanto, a figura da bibliotecária é de suma
importância para o processo de efetivação dessa prática dentro da escola. O autor
também expõe que “o gosto pela leitura, que sem dúvida resulta de práticas de leitura,
também é produzido socialmente e, por isso mesmo, também se sujeita às regras
encontradas no conjunto da estrutura social [...]” (SILVA, 1986, p. 45). É por isso que
muitas vezes a biblioteca, é vista como uma estagnação de livros. O gosto pela leitura
acaba sendo associado ao processo mecânico de se ler, apenas o que é oferecido às
crianças, conforme os critérios gerais de qualidade literária contrariando a
democratização. Percebemos ao longo da entrevista que a bibliotecária se coloca
oposta a isso. O espaço criado por ela contribui para o fascínio dos leitores, dando
oportunidades para escolher os livros que querem ler.
A maior parte do acervo da biblioteca foi obtida mediante aos programas
vinculados às políticas públicas do livro e da leitura do governo federal. Mas não há uma
política que efetive a participação de compra e doação na comunidade. Isso até
acontece, porém em situações esporádicas.
Percebemos que quem utiliza o acervo possui autonomia e liberdade mediadas
por uma intervenção da bibliotecária, consistindo na escolha dos níveis que se sentirem
atraídos. Assim, enfatizamos o papel de mediação desta, quanto ao direcionamento dos
alunos, com relação aos níveis de leitura, ao nos dizer que “[...] não distribuo por idade,
não gosto de limitar a leitura do aluno, porque às vezes um aluno do 5º Ano, não tem
uma leitura fluente para ler um livro que é pro 5º Ano, então eu deixei isso aberto, eu
não fico limitando.” (Entrevista, 2019). Vale acrescentarmos a esse olhar acolhedor da
bibliotecária que a literatura infantil e juvenil produzida hoje é de qualidade, e isso,
desencadeia nos leitores, o desejo de lê-la, independentemente da idade ou etapa de
ensino.
Nóbrega (2002, p. 120), diz que “[...] o acervo como termo mais geral para
representar a ideia do lugar e também da ação com os variados ‘textos’ do mundo.”. O
acervo de uma biblioteca reúne, enquanto ideia e espaço físico, vários aspectos do
mundo literário. Indo ao encontro do que Nóbrega (2002) fala, a bibliotecária organiza e
compõe o espaço físico de maneira em que essas categorias de acervo possam estar
compreensíveis aos olhos das crianças que ali se constituem leitores. Mesmo não
sabendo o que cada uma delas é, elas começam a compreender o que cada categoria
proporciona por meio de seu experienciar o acervo.

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Corroborando com o que afirma Nóbrega (2002) a biblioteca, assim como toda
a instituição escolar, precisa ser laica para que possamos garantir saberes e
conhecimentos dentro do contexto da formação e constituição dos(as) leitores(as).
Podemos perceber a evolução das bibliotecas.
Em uma parte da entrevista com a bibliotecária, esta colocou com grande ênfase
a sua insatisfação em relação à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a qual não
inclui em momento algum o papel da biblioteca e da bibliotecária, ainda assim, inclui a
questão da importância da leitura como parte fundamental na vida da criança na escola.
Como acontece na instituição pesquisada e em outras instituições, a biblioteca é o local
em que os estudantes vivenciam parte da sua formação leitora. É ali que a interação
com o mundo literário acontece.
Lembramos que a criança desde a mais tenra idade é um ser social e não está
alheia aos acontecimentos que a cercam. Em seus escritos, Freire (1989, p.11-12),
ressalta que “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura
desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade
se prendem dinamicamente.”. Dessa forma, podemos refletir sobre uma visão de mundo
que se propõe à criança na ampliação de repertório cultural na qual, a partir da leitura
de mundo, materializa-se em forma de palavras e imagens. Portanto, a biblioteca é uma
das bases para promover a leitores(as).
A literatura de temática indígena conforme respondido pela bibliotecária em
entrevista estão ali desde 2011, sendo que a última remessa se deu no ano de 2017 por
meio do PNBE. O registro dos livros desta temática ainda está em processo de
cadastramento na biblioteca da escola, por isso não conseguimos verificar a informação
exata do número existente no acervo que foram distribuídos pelo programa. Porém, de
acordo com a bibliotecária, estima-se que há no acervo junto às caixas, um mínimo de
100 livros (não necessariamente 100 títulos). Esse acervo possui um lugar específico,
conforme diz a bibliotecária: “Fica separado [...] Não que tenha uma procura, mas como
é um assunto bem definido, pertinente para nossa cultura brasileira, eu acho que faz
parte ter uma área temática.” (Entrevista, 2019). Os livros estão em uma prateleira
própria para esse gênero literário.
Ainda assim, no âmbito das pesquisas cresce o interesse acerca dessa temática,

Sem dúvidas, o surgimento de um novo interesse pela história dos


índios contribui, também, para ampliar a sua visibilidade, sendo a
constituição destes novos grupos étnicos, sua categorização e
dinâmica, um tema que desperta grande interesse por parte dos
especialistas. (MARTINS, 2009, p. 161).

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A questão das temáticas indígenas, apesar de estarem ainda “invisíveis” e a
procura pelo saber dentro da área acadêmica vêm tomando espaço por conta dos anos
de resistência desses povos. Contudo, esse interesse não pode ser restringido às áreas
de pesquisa, pois necessita ser difundido, tanto nas escolas que a (des)conhecem,
quanto na sociedade que trata os povos indígenas de forma excludente.
Ao questionarmos a bibliotecária se haviam mediações por parte dela ou do
corpo docente para com os livros de literatura infantil indígena, ela nos disse que nunca
havia proposto tal mediação. Porém o dia da consciência negra a fazia refletir
criticamente do porquê não propor a temática indígena também. O desejo se faz
presente.
Ao analisarmos o questionário devolvido pelas docentes, há um dado que nos
impacta, pois de sete professoras, quatro não utilizam a temática étnico racial em sua
prática, o que nos leva a refletir: quais são os motivos que fazem com que a Lei nº
11.639/2008 ainda não esteja de fato sendo exercida? Em continuidade de nossa
interlocução e reflexão, cuja questão foi: “Você já utilizou ou utiliza algum livro de
temática indígena com a turma?”, apenas uma professora trabalhou as literaturas
Palavras e mundo indígenas e Curumim.
Outras três professoras nos relataram nos questionários que o trabalho com a
temática indígena apenas era utilizado com o suporte do livro de História e o livro
didático. Todavia, sabemos que apesar destas professoras não se valerem dos livros
de literatura indígena, estão em acordo com o Art. 26 – A da Lei nº 11.645/2008 que diz,
“Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados,
torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.” (BRASIL,
2008). Dessa forma, devemos nos indagar: como se efetiva a legislação na prática em
torno desta temática, visto a importância dela para com as crianças? O que estamos
propondo aqui é uma reflexão e não juízo de valor em relação à prática das professoras,
porém é um dado relevante e que nos faz (re)pensar a nossa prática docente. Sendo
assim, as respostas nos encaminham para a percepção de que há a necessidade de se
ofertar aos professores formação permanente, que possibilitem práticas pedagógicas
que venham a contribuir com a formação do(a) leitor(a). Assim, poderemos exercitar a
práxis docente em seu princípio.
Ao abordarmos sobre a importância da literatura indígena para a
formação/constituição do leitor, obtivemos duas respostas contrárias ao que estivemos

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defendendo ao longo deste estudo, pois duas professoras não visualizavam essa
importância para a sua prática docente e para a formação do leitor.
Enfatizamos aqui uma posição muito relevante da bibliotecária: “Mas a gente tem
que explorar se tem na biblioteca, tem que ser explorado, se tem no acervo, tem que
ser conhecido porque é a nossa origem né.” (Entrevista, 2019). Ela demonstra
sensibilidade ao compreender a importância de dar visibilidade e expressão à temática
indígena por meio da literatura. Também ressalta a “exploração” desses livros que estão
disponíveis no acervo, possivelmente sedentos para serem realmente explorados.

Considerações Finais
Com base nos dados da pesquisa pudemos visualizar que ainda há muito que
investir para que se efetive uma formação de professor consciente da utilização das
temáticas culturais, étnico raciais e sociedades originais. Sociedades essas, como parte
da nossa história e que devem constar no repertório de conhecimento das nossas
crianças. A Lei nº 11.645/2008 acaba sendo ofuscada e não cumprida. Constatam-se
resquícios presentes em livros didáticos e mediações esporádicas.
Ressaltamos que a literatura é uma ferramenta com poder de formação crítica
do indivíduo, bem como a sua emancipação. Em uma sociedade com grande
desigualdade, a escola acaba por ser um espaço propício para o desenvolvimento
biopsicossocial, aquisição de repertório literário e a leitura da palavramundo.
A literatura indígena dentro das escolas proporciona uma contribuição
significativa para o futuro de uma sociedade com mais consciência do valor cultural e
preservação dos direitos dos povos tradicionais que não devem estar à margem da
sociedade. Como vimos essa literatura sobrevive com base em muita luta e resistência.
Como educadores poderemos de forma interventiva, difundir e mediar essas obras nos
ambientes escolares, contribuindo com práticas efetivas na constituição de leitores que
vão ao encontro da literatura infantil indígena.

Referências
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em:
<https://mpma.mp.br/arquivos/CAOPDH/Leis_10.639_2003__inclus%C3%A3o_no_cur
r%C3%ADculo_oficial_da_Hist%C3%B3ria_e_Cultura_Afrobrasileira.pdf>.

_______. Lei nº 11.645 de 10 de março de 2008. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm>.

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_______. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2019. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wpcontent/uploads/2018/02/bncc-20dez-
site.pdf>. Acesso em: 3 de nov. de 2019.

DEBUS, Eliane. A temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura para


crianças e jovens. Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2017.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São
Paulo: Cortez, 1989.

GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo


Horizonte: Mazza Edições. 2013

MARTINS, Maria Cristina Bohn. As sociedades indígenas, a história e a escola.


Antíteses, Rio Grande do Sul, v. 2, n. 3, p.1-15, jan.-jun, 2009.

MUNDURUKU, Daniel. Mundurukando 2: sobre vivências, piolhos e afetos. São Paulo:


UK’A Editorial, 2017

NÓBREGA, Nanci Gonçalves da. De livros e bibliotecas como memória do mundo:


dinamização de acervos. In: YUNES, Eliane (Org.). Pensar a leitura: complexidade.
Rio de Janeiro: Loyola, 2002, p. 120-135.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Literatura na escola e na biblioteca. 2. Ed. São Paulo:
Papirus, 1986.

VYGOTSKY, Lev Semyonovich. A formação social da mente. 4. Ed. São Paulo:


Maartins Fontes, 1991.

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OLHOS AZUIS CORAÇÃO VERMELHO: REFLEXOS DA
REJEIÇÃO QUE CULMINA NA SENSIBILIDADE INFANTIL

Layne Maria dos Santos Batista Lira (UFPB)


Ana Clara de Araújo Marques (UFPB)
Joaes Cabral de Lima (UFPB)

Eixo Temático: Literatura infantil e ensino

Considerações iniciais
A literatura infanto-juvenil apresenta diversos aspectos importantes para o
universo da leitura. Cada vez mais é possível perceber que os livros estão sendo
formatados em estruturas que despertam a atenção das crianças e dos jovens, incluindo
com maior proporção, questões do cotidiano.
Além disso, é importante perceber que o olhar do leitor não se limita ao senso
estético do livro, pelo contrário, é o que ele encontrará de conteúdo que pode modificar
totalmente o seu campo de visão de leitura. Portanto, sabe-se que os livros estão sendo
desenvolvidos cada vez mais sob a perspectiva de questões sensíveis, que estão
presentes em situações diárias, tornando-se, assim, um elemento interessante para que
as crianças e os jovens possam, além de apreciar a obra; conseguir refletir; adquirir uma
visão crítica do que foi abordado; de analisar a situação através de como ela foi imposta.
Para isso, é necessário que os autores saibam como trabalhar com essas
questões ao formatarem os livros. Na escola, esse fato precisa ser discutido pelos
professores, para que, dessa forma, a mensagem central da obra seja repassada da
melhor maneira, trazendo o principal: a reflexão, e também ajudando a construir uma
identidade crítica-literária para cada um dos alunos, além de promover uma maior
interação uns com os outros.

[...] cabe a escola e aos educadores em especial buscar incluir no


acervo da escola, literaturas voltadas ao tema da inclusão para que
dessa forma este leitor em formação, que vai se deparar e dialogar com
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o conteúdo desses livros possam encontrar neles possibilidades e
modos de vida diferentes do padrão que lhes é imposto como certo,
principalmente pela mídia televisiva. (CONFESSOR, 2014, p.8).

A produção da literatura infanto-juvenil está diretamente ligada a aspectos da


nossa sociedade, o que acaba por torná-los sensíveis, como é o caso do livro que será
analisado neste trabalho: Olhos azuis coração vermelho (2005), de Jane Tutikian.
1. Entre olhos e corações: um olhar na obra de Jane Tutikian
Olhos azuis coração vermelho, obra de Jane Tutikian, fala sobre Júlia, uma
menina que está passando por transformações na sua vida, devido a chegada da fase
da adolescência. Junto a esse processo, ela começa a expressar suas angústias e
receios por não ter todas as respostas que achou que já teria ao chegar nessa fase. Os
sentimentos dela vão se moldando cada vez mais ao passar por algumas situações:
virar mocinha, festa com as amigas, o primeiro amor, o beijo, os conflitos com a família,
e, principalmente, sua relação com a irmã, a pequena Titi.
A sensibilidade da obra vai sendo construída a partir das ações de Júlia, que se
sente excluída devido ao fato de seus pais darem mais atenção à sua irmã, além de se
envergonhar ao estar perto de Titi, devido ao modo diferente de como ela se
comportava, como podemos observar no trecho abaixo:

Aquele nenê que, depois, foi ficando uma criança feia, de olhos azuis
puxados, que demorava em fazer tudo, para andar, para falar e que
vivia babada e resmungando alto um monte de coisas
incompreensíveis e, de repente, ria por nada e chorava por nada,
aquele nenê sem nenhuma graça ficou sendo o dono do meu pai e da
minha mãe. (TUTIKIAN, 2005, p. 26).

A partir disso, é possível observar que depois da chegada de Titi, a dinâmica da


família mudou completamente, pois ela necessita de uma atenção maior. Mas, no
pensamento de uma criança que está em transição para a adolescência, é difícil de
compreender e aceitar esse fato, e isso nos mostra tanto a questão de como a falta de
atenção exclusiva por parte dos pais afeta em sua vida, assim como o olhar vergonhoso
para a irmã dela.
Titi é uma menina com síndrome de down, e Júlia passa por todo um processo
até amá-la e aceitá-la. A partir da adolescência e da forma como as coisas vão
acontecendo na vida de Júlia, não é só o corpo dela que se transforma, mas o modo de
pensar, agir e perceber as coisas ao seu redor também ganha novas perspectivas. Todo
esse processo leva um tempo, até Júlia perceber completamente que tudo que Titi
precisa é de cuidado, carinho, atenção e amor. Ela vai observando esses detalhes a

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partir do momento que começa a se sentir triste quando sua irmã mais nova aparece
perto dela e vai embora com medo. O desejo agora é que ela fique.
Ou seja, ela começa a observar que a menina tem afeto por ela, e vai construindo
esse sentimento de forma recíproca, porém com muita resistência. O que une, de fato,
esse sentimento de irmã para irmã é uma festa na escola de Titi, que para Júlia, foi o
ponto que faltava para entender que não existe disputa por atenção, que Titi não é feia
ou estranha, e que as atitudes dela não eram vergonhosas. A partir dali, Júlia
compreendeu que tudo que deveria fazer era ajudar sua irmã e estar presente em todos
os momentos de sua vida.

Os reflexos da rejeição na infância


Uma das temáticas trabalhadas no livro Olhos azuis coração vermelho (2005),
de Jane Tutikian é a questão da rejeição, que possui grandes consequências, pois
causa trauma desde a infância. Titi sempre se mostrou com um afeto muito grande por
sua irmã, mesmo que ela tivesse vergonha de mostrá-la para seus amigos, ou ainda, ao
não aceitá-la. Esse ponto é interessante para percebermos a sensibilidade, pois a
rejeição pode causar danos que provavelmente não serão revertidos, principalmente ao
se tratar de uma criança que possui uma particularidade, como é o caso de Titi, que tem
síndrome de down.
Na obra, pode-se perceber logo de início a irritação de Júlia com a irmã: “Mentira,
de novo. Eu sabia. Queria estar sozinha quando a Titi chegasse do colégio e viesse me
espiar, como sempre fazia e me irritava.” (TUTIKIAN, 2005, p.14). Titi sempre ia espiar
a irmã no quarto, mas essa era a forma que ela tinha de demonstrar carinho, afeto e
preocupação pelas pessoas. Percebemos que, durante várias vezes, ela tenta chamar
a atenção da irmã, demonstrando que gostaria de estar com ela, mas Júlia tinha sempre
reações totalmente opostas.
A rejeição na infância faz com que o indivíduo não ache que é bem-vindo a lugar
algum. Em Olhos azuis coração vermelho encontramos algumas dessas situações,
como por exemplo, o fato de que todas as atitudes de Titi são julgadas como
vergonhosas para sua irmã. A pequena Titi já se acostumou ao fato de que sua irmã
não a quer por perto, então ela aparecia algumas vezes no mesmo lugar de Júlia, mas
sabia que, automaticamente, tinha que ir embora, pois sua presença não era bem vinda.
Ou seja, Titi se sentia rejeitada.
Aqui encontramos a temática da sensibilidade, e quando colocada numa
perspectiva infantil, abre portas para novas reflexões desde muito cedo. É perceptível

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que muitos traumas e atitudes ficam registrados na vida de alguém que passa por essa
rejeição, principalmente quando é uma criança:

Diversas são as consequências causadas pela falta desse vínculo


afetivo nos primeiros 6 anos de vida da criança, principalmente nos
aspectos cognitivo e afetivo. Os abalos emocionais diante das
privações vividas podem causar à criança um transtorno de conduta,
psicose e até mesmo a depressão. (RAYANE; SOUSA, 2018, p.92).

A sensibilidade infantil e a mudança de ciclo


O livro já começa com a situação de Júlia não ir à escola porque estava com
cólica. E é a partir do seu primeiro fluxo menstrual que a vida dela começa a mudar: “-
Uma mocinha, disse minha mãe me olhando com ternura, uma mocinha de 13 anos, a
minha filha!” (TUTIKIAN, 2005, p.11). Após essa situação, podemos observar que a
menina se sentia cada vez mais perdida e confusa. Ela achava que quando esse
momento chegasse, ela teria respostas para todas as suas perguntas, mas percebeu
que não foi isso que aconteceu. A mãe dela logo conta para todos, muito feliz, assim
como as amigas de Júlia, que para comemorar esse fato, decidem fazer uma festa.
Percebemos no começo dessa história, a questão psicologicamente sensível
que existe na narrativa. Júlia está em uma fase de incertezas, dúvidas, um novo
caminho, uma nova forma de enxergar aquilo que a rodeia. Essa sensibilidade consegue
atingir um público muito forte, principalmente por ser tão recorrente, e, portanto, ajuda
a trabalhar em como tentar se manter no eixo diante de mudanças que acontecem ao
longo de nossas vidas.
Logo em seguida, é abordada a relação de Júlia com sua família. Quando ela
descobriu que ia ganhar uma irmã, ficou muito feliz, assim como quando ela nasceu.
Porém, com o passar do tempo, algumas coisas mudaram na família de Júlia, a atenção
de seus pais se voltou completamente para Titi, pois ela necessitava de um cuidado
maior, e isso acabou interferindo na relação dela com Júlia:

[...] eu descobri um dia que não gostava da Titi, e, depois disso, nunca
mais gostei, mesmo quando soube que ela era doente e que a doença
se chamava síndrome de down [...] Para falar a verdade, um dia eu
também quis ter isso, porque pensei que isso podia me devolver meu
pai e minha mãe, mas tudo o que conseguia era arranjar, vez que outra,
uma gripe e ganhar uns pacotes de biscoitos. (TUTIKIAN, 2005, p. 27).

Ao longo da narrativa, percebemos que a postura e o olhar de Júlia em relação


a Titi muda, mas ela se recusa a pensar naquilo que sente como uma coisa boa. Os
novos olhares da adolescência e a tomada de consciência de que sua irmã é uma

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pessoa da qual ela tem que ter orgulho vai sendo construída aos poucos, mesmo que
no início haja um recuo ante essa ideia:

Olhando para Titi, assim, com purpurina nos cabelos, no rosto, na


língua, uma idéia meio absurda me passou pela cabeça: será que ela
tem alguma coisa de anjo, mesmo? Bobagem!, meu grilo brabo, de mal
com o mundo, gritou no meu ouvido, e eu ouvi. (TUTIKIAN, 2005, p.40).

Essa temática é muito importante de ser discutida principalmente com o público


jovem. A relação familiar e o nível de atenção que os pais dão aos seus filhos afeta, de
forma direta, o desenvolvimento deles enquanto seres sociais, assim como em suas
atividades diárias. Júlia, por exemplo, sente que a sua atenção por parte dos pais é
ameaçada devido à irmã. Muitas vezes, essa situação gera diversas consequências,
como a falta de confiança em falar com os pais, o fato de se sentir sozinho, atos de
rebeldia e afins.
Por isso, é importante analisar a forma sutil por meio da qual a autora escreve
sobre esse assunto, que vai de uma raiva tomada por Júlia, até um processo de parar
para olhar sua irmã e começar a entender porque ela requer uma atenção especial, e
passar a vê-la não como uma concorrente de atenção em sua família, mas sim, alguém
que está ali somando para aquele lar. Aos poucos vamos vendo essa relação sendo
trabalhada, inclusive, junto às temáticas que envolvem a própria fase da adolescência,
como festas e namoros.
Outra característica da personagem, Júlia, é que ela costuma ser uma pessoa
dura e inflexível, difícil de mudar a opinião sobre algo. Observa-se que quando ela vai
compreendendo um pouco mais sobre sua irmã, se sente triste pelo fato de não ter
entendido antes.

Está bem!, de novo. Alguma coisa que andava meio escondida dentro
de mim [...] ficava, agora, me dizendo que ela era pequenininha e
precisava mais deles do que eu, do que o meu irmão grande. Por que
só agora eu pensei nisso? (TUTIKIAN, 2005, p. 60).

A sensibilidade é pertinente de ser trabalhada, pois ela ajuda no


desenvolvimento pessoal. Através dos livros pode-se perceber que o universo da leitura
não deve ser circunscrito apenas na ideia do livro didático ou da leitura obrigatória para
exercícios e provas, a leitura precisa ser prazerosa, pois auxilia no fato de termos cada
vez mais leitores no mundo. Inclusive, é através da leitura que se pode aprimorar a
imaginação e a criatividade, perspectiva defendida por Nigre ao afirmar que:

Apreciar a literatura infantil é arte que nutre a leitura, o imaginário, a


criatividade. Conduz a separar o que faz parte da realidade e o que é
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da ordem do imaginário, do jogo simbólico e então desenvolvem a
imaginação e criatividade, tem-se a liberdade de inventar, criar,
explorar e expor ideias, aprendizagens, medos, angústias, alegrias e
desejos (NIGRE, 2012, p. 17).

Quando pensamos na perspectiva infanto-juvenil, é preciso ressaltar a


importância de fazer essa iniciação com os livros e com seus temas desde muito cedo.
O costume e a forma como as pessoas vão crescendo são diferentes, portanto, através
desse processo de desenvolvimento, cada um consegue se identificar com aquilo que
mais gostou, que tipo de leitura causa mais efeito, que tipo de leitor é, etc. Tratar de
temas sensíveis em um espaço como o livro, abre portas cada vez maiores para que as
questões sejam debatidas em conjunto e em espaços que são pertinentes.

Neste sentido, quanto mais cedo a criança tiver contato com os livros
e perceber o prazer que a leitura produz, maior será a probabilidade
dela tornar-se um adulto leitor. Da mesma forma através da leitura a
criança adquire uma postura crítico reflexiva, extremamente relevante
à sua formação cognitiva. Portanto, se esta mesma criança tem contato
com uma literatura inclusiva, a probabilidade de, nessa formação, se
tornar uma pessoa mais tolerante é grande. (CONFESSOR, 2014, p.
4)

É preciso se sensibilizar levando em consideração o geral, a história contada de


cada um, a historicidade e a autonomia. O livro é um mundo de histórias, emoções,
sentimentos e interpretações. Quando colocamos essa obra principalmente para o
público jovem, percebemos que muito mais que a mensagem que ela quer passar, fica
a reflexão sobre quantas vezes as pessoas se sentem sós, principalmente nesse
período conturbado da adolescência, sozinhos e envergonhados de situações que de
nada devem atingir em nenhum eixo da vida. Além disso, é interessante perceber que,
mesmo o livro sendo considerado para o público infanto-juvenil, os próprios adultos
externam as sensações, as emoções e a sensibilidade que a narrativa desperta em nós.
Nas páginas de Olhos azuis coração vermelho, vemos a postura da personagem
que passa de uma pessoa insensível com a irmã para uma pessoa que consegue
enxergar cada vez mais, nos mínimos detalhes, toda beleza que ela representa em sua
vida, que, na verdade, sua irmã Titi ama-a muito e sente falta da presença afetiva de
Júlia em sua vida, que tudo que ela precisa é de carinho e cuidado:

Como uma boba, comecei a rir sozinha, quando senti que alguém me
espiava. Era a Titi, para variar, era a Titi. Olhei para ela e contive o
impulso de mandá-la embora, como sempre fazia.
Perguntei:
- O que é?
-Tu não dormiu aqui na casa, eu chorava. Eu chorava muito.

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Como não tivesse resposta, disse o que sempre dizia de tanto que a
mandei embora nesses sete anos:
-Zá vou indo, então. Então zá vou indo. - e saiu correndo pelo corredor,
imitando a buzina de um carro.
Olhando para o teto, disse que não precisava mais chorar, que eu não
ia sair dali. (TUTIKIAN, 2005, p. 68-69).

Ao fim da narrativa, temos o verdadeiro significado de sensibilidade nos sendo


transmitido. A mãe de Júlia pede para que ela leve Titi à escola para uma apresentação
que ocorrerá, pois vai se atrasar. Júlia fica com muita raiva, mas acaba tendo que ir. E
é no espaço da escola de Titi que tudo se encaixa e faz sentido para que Júlia pudesse
compreender o mundo de sua irmã:

[...] olhei para trás e vi um outro mundo, havia dezenas de Titis, uns
maiores, outros menores. Os mesmos olhos puxados, escuros e claros,
o mesmo jeito de falar e de cantar. As mesmas palmas. A mesma
alegria. (TUTIKIAN, 2005 p. 76).

Outro ponto de grande relevância da narrativa é a inclusão social. A inclusão é


um tema importante e sensível, porque vai lidar com a inserção de indivíduos em
espaços nos quais eles acreditam que não tenham vez e voz.

A inclusão é um processo que acontece gradualmente, com avanços e


retrocessos isto porque os seres humanos são de natureza complexa
e com heranças antigas, têm preconceitos e diversas maneiras de
entender o mundo. (CONFESSOR, 2014, p.5).

Essa temática é abordada na obra ao percebermos que Titi estuda em uma


escola que todos os alunos também têm síndrome de down, fazendo com que ela se
sinta bem e incluída naquele espaço, ainda que em meio às suas limitações.

Considerações Finais
A rejeição de uma criança, bem como mudanças na forma de pensar devido à
adolescência, analisadas em Olhos azuis coração vermelho, de Jane Tutikian, nos faz
perceber que muitos livros destinados ao público infanto-juvenil, estão colocando em
prática a reflexão sobre como tratar o próximo e como lidar com situações peculiares ao
entrar em contato com a realidade de outra pessoa. Esse processo colabora para que
desde a leitura na infância, seja presente a ideia de promover criticidade.
Na obra analisada, a rejeição passou por um processo até chegar à aceitação,
e percebemos que a irmã mais nova, Titi, sempre demonstrou muito carinho pela irmã
mais velha, Júlia, principalmente no desfecho da história. Júlia, por sua vez, ao chegar
a adolescência, foi refletindo dia após dia sobre o modo como tratava Titi e foi moldando
esse pensamento até entender que não tinha motivo de ter vergonha ou raiva de estar
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com ela. A forma singela e sincera que a autora trabalha sensibiliza o público, além de
ensinar isso de modo objetivo, sempre com cuidado e respeitando as particularidades
de cada um.

Referências
CONFESSOR, R. S. G. A Literatura infantil como recurso de inclusão social nas
escolas. Disponível em:
<http://editorarealize.com.br/revistas/cintedi/trabalhos/Modalidade_1datahora_10_11_
2014_09_57_00_idinscrito_1510_c3564 b3858d541e73778b636cc883d73.pdf>.
Acesso em: 24 de agosto de 2018.

RAYANE, D. B.; SOUSA, D. H. A. V. Privação afetiva e suas consequências na


primeira infância: um estudo de caso. Inter Scientia, vol. 6, n. 2, p. 1-22, out., 2018.

TUTIKIAN, J. Olhos azuis coração vermelho. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 2005.

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O TEXTO LITERÁRIO EM SALA DE AULA: UMA ALTERNATIVA
PARA O DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA
SOCIOEMOCIONAL

Karina Torres Machado, UFSJ


Débora Luz Squilante, FAMEESP

Eixo temático: 08 – Literatura infantil e ensino

Introdução
A literatura dedicada às crianças surgiu no século XVII com as fábulas de La
Fontaine e, no século seguinte, a publicação do livro Contos da Mamãe Gansa, de
Charles Perrault, concederia ao conto de fadas uma preferência entre os gêneros
literários destinados à infância e a disseminação da produção de leituras infantis em
outros lugares da Europa. Em seguida, diante de todas as mudanças promovidas pela
Revolução Francesa, em 1789, a preservação da criança como valor e meta, marcou o
início de uma nova condição social dessa classe, bem como a uma produção cultural
destinada a ela. No entanto, os conceitos que vigoraram são os de indivíduos frágeis,
desprotegidos e dependentes dos adultos, que necessitam da escola para instruir-se e
amadurecer-se para enfrentar os desafios do mundo.
A imposição da Inglaterra como potência industrial e naval faz a literatura
destinada às crianças sair do cenário aristocrático francês e saltar para a condição de
mercadoria, estreitando as relações entre escola, livro e criança, ampliando o consumo.
Laços que exigem o letramento do leitor/aluno e engendram atividades pragmáticas e
utilitárias com o livro, revelando o caráter fragmentário, provisório e impreciso da
literatura infantil e juvenil (Ceccantini, 2010). Pensamentos e atitudes que perfilam ainda
hoje, por meio de algumas práticas educacionais tradicionais e usos utilitários do texto
literário que não prezam o contexto e os conhecimentos trazidos pelos alunos, carência
de acesso aos bens culturais, que promovem práticas de leitura infantil como subsídios
das ações educacionais, funcionando como recurso paradidático do ensino, como
pontua Lídia Cademartori, (2012).

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Por compreender a função da literatura e do hábito de ler como ação individual
e como entretenimento, subjetividade, ludicidade, fantasia, para uma formação para o
mundo, por reordenar as vivências humanas e, por buscar ações que ressignifiquem a
ação de ler e o contato entre livro e leitor, é que este artigo foi vislumbrado. Objetivamos
assim, a partir da análise do conto “Boné vermelho”, de Alciene Ribeiro Leite, elucidar
práticas literárias mais significativas ao processo de ensino-aprendizagem, que pelas
habilidades socioemocionais advindas de sua leitura, oportunizam aos leitores
caminhos para driblar as adversidades da vida e lograr a liberdade trazida pela leitura.
A inserção do conto de Alciene, por meio de linguagem direta e acessível, dos
problemas cotidianos abordados, da transição (criança – adolescência) vivida pela
personagem representam um espaço de confluência em que o texto literário “educa e o
leitor tende a enriquecer graças a seu consumo” (FARIA, 2016, p. 24).
As habilidades socioemocionais permeadas pela trama narrativa de Alciene
propiciam ao mediador escolar momentos de identificação e de constatação de
sentimentos intrínsecos e indispensáveis à vida humana, que precisam ser
desenvolvidos nas crianças e nos adolescentes. Ao selecionar obras que atendam às
necessidades específicas do público conquistam a plenitude pelas abordagens plurais
do mundo real e de suas mazelas. Sendo, um caminho para a inserção de textos
literários em sala de aula, que pelas competências socioemocionais abordadas, podem
promover um encontro entre autor-texto-leitor significativo e motivador.

Literatura e ensino: uma mediação para a formação social


A história da literatura infantil, até meados do século XX, no Brasil, esteve
estritamente arraigada ao processo de industrialização em que as moralidades sociais
figuraram como projetos educativo e ideológico, a fim de transformar crianças em
adultos. Enquanto o restante do mundo produzia obras literárias para crianças que
exploravam a aventura, o conto de fadas, histórias fantásticas e a vida diária do
cotidiano da criança – mercado consumidor bastante influente na Europa, nos séculos
XVIII e XIX – o Brasil engatinhava em manter uma imprensa mais atuante e influente na
sociedade, com a publicação esporádica de traduções de obras voltadas para a criança.
Com o advento da República a produção de obras destinadas à criança possui como
tema principal abordado nos livros as questões morais e éticas, necessárias para a vida
adulta. Percebe-se que as produções infantis escritas por esses autores não prezavam
o caráter literário, estavam, antes de tudo, preocupadas em veicular o pensamento da
classe dominante, como forma de instruir sobre as maneiras de manter-se na sociedade.

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À escola, transmissora desses ensinamentos, competia, por meio dos livros, educar a
sociedade rural nas regras e nas condutas da sociedade urbana, a fim de modelar o
futuro do país.
A inserção das obras infantis de Monteiro Lobato rompe com o paradigma
vigente, por conceder a criança voz, em livros em que o lúdico, a fantasia, as vivências
características da infância funcionavam como metáforas integrantes e indispensáveis
para discutir a moral, a individualidade, a obediência, o preconceito, a questão do
gênero, de maneira flexível e consciente. Diante disso, ainda há muito por descobrir, no
entanto, compreender os vazios é uma forma de melhor articular leitura e ensino, leitura
e habito de ler, para a promoção de uma nação letrada e engajada. À escola cabe,
nesse sentido, “explorar a capacidade de diálogo e a riqueza de detalhes dos livros para
crianças, adotando-se preferencialmente a perspectiva do leitor-professor e sua
necessária relação com o leitor-iniciante (o aluno)” (FARIA, 2016, p. 11), interligados
pelas relações polissêmicas provocadas pelo texto.
Neste contexto, a obra de Alciene Ribeiro Leite, mineira, nascida na cidade de
Ituitaba, em 1939, Alciene, obrigada a largar a escola para trabalhar, encontra na escrita,
anos mais tarde, forma original de expressar vários dilemas que perpassam a sociedade
e compreendem a vida humana. Em seus textos, a problematização da existência é
colocada em cheque por meio de um linguajar conciso e, altamente sugestivo, do
diálogo sincero, do silêncio representativo, da crise das relações, dos temas cotidianos,
da mulher e da constante busca pela liberdade que a move. Temáticas que tratam de
questões fundamentais para apreender o ser humano e nele encontrar formas de driblar
as intempéries da vida diária.
A escolha do conto “Boné vermelho”, 1988193, de Alciene Ribeiro Leite, é tão
representativa no que diz respeito ao olhar para a promoção da leitura literária infantil
na sala de aula, por discutir temas pertinentes aos jovens, por meio de metáforas que
ocasionam questionamentos e tomadas de atitude diante da realidade circundante. A
intertextualidade com os contos de fadas resgata o imaginário coletivo, aproximando
realidade e ficção, vida e personagens, despertando nos leitores a criatividade, a
sensibilidade, reveladora do modus vivendi da vida e, consequentemente dos sujeitos.
A leitura do conto em sala de aula apresenta-se como “alternativa a uma realidade dura,
como criação de um mundo paralelo, que não é fuga, mas compreensão do ‘tumulto do
mundo’” (CADEMARTORI, 2012, p. 11), para reimaginá-lo, transpô-lo ou transformá-lo
no essencial de nós. Representa também uma alternativa para discutir situações sociais

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Conto publicado na obra “Um jeito vesgo de ser”, de 1988.
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e emocionais difíceis de serem manejadas, principalmente, quando a criança apresenta
experiências sociais adversas.
Assim, o conto “Boné vermelho” revela um universo literário que fala das origens
“do mundo e das lutas eternas entre o bem e o mal” como o mesmo universo “que fala
do infinito mundo inferior realizado em cada um de nós, tanto nas individualidades e
características que identificam cada sujeito com sua singularidade, como também
dentro dos estados e sentimentos que universalizam a experiência humana.
(CAVALCANTI, 2014, p. 41-42).

Competências socioemocionais e ensino


O cenário social e mundial se encontra caracterizado por disposição de
tecnologia de ponta e altamente diversificada, ao mesmo tempo que, pelo utilitarismo
imposto, reduziu a relação com o simbólico, equalizando o olhar e tornando os
indivíduos telespectadores de sua vida, e, consequentemente, menos reflexivos e
críticos, em que a experiência humana nem sempre é considerada, exposta ou
verbalizada.
Nesse sentido, na análise de Jacques Delors (2012), a sociedade do século XXI
passou a ser vista como uma oportunidade de renovação cultural, com a imposição de
mudanças aceleradas e constantes, exigindo preparo educacional de crianças e jovens
para o enfrentamento de demandas atuais. Fato que envolveria a oferta de condições
que visassem ao desenvolvimento de competências necessárias para o sucesso
acadêmico, profissional e pessoal. O autor acrescenta que a Educação deverá se tornar
pluridimensional e capacitada a lidar com a diversidade dos grupos sociais e para tal a
unidade escolar e os professores devem buscar oportunizar contextos de leitura, em
que os envolvidos possam vivenciar uma experiência simbólica por meio da palavra, da
imagem, que represente o questionamento do mundo capaz de significar a vida.
Na mesma direção, Anita Abed afirmou a urgência de fortalecer, nas crianças e
nos jovens, um conjunto de competências, que lhes permitam dar conta dos desafios
socioeconômicos do século XXI, como “motivação, perseverança, capacidade de
trabalhar em equipe e resiliência diante de situações difíceis” (2014, p.109). E a partir
dessa compreensão, as competências socioemocionais passaram a ser valorizadas,
lado a lado, às competências cognitivas, ultrapassando a dimensão mais puramente
racional e consciente dos processos de aprendizagem, que apontavam o domínio do
paradigma cognitivo como único responsável pela aquisição de conhecimentos
acadêmicos (MIRA, 2004).

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Dessa forma, compete a educação a necessidade de organizar e de se fazer
valer um currículo educacional apropriado para alcançar o desenvolvimento global de
crianças e adolescentes, considerando, como citou Jacques Delors (2012), que todo
processo educacional poderá ser ocasião para a aprendizagem e desenvolvimento de
talentos individuais, coincidindo a realização pessoal com a participação da vida em
sociedade, a fim de formar sujeitos com autonomias dinâmicas, preparados para
cenários rapidamente mutáveis, como os enfrentados por Boné, no conto de Alciene. A
inserção do conto “Boné vermelho”, como leitura sala de aula, apresenta-se como uma
alternativa para tais questões por abordar e ampliar o universo interior característico das
crianças na transição para a adolescência, suas lutas internas e o complexo conjunto
de sentimentos envolvidos.
Para melhor compreensão do que seria o desenvolvimento global, recorre-se a
Papalia e Feldman (2013) que esclareceram que esse conceito se concentra no estudo
científico dos processos sistemáticos de mudança e estabilidade que ocorrem nos
indivíduos, abrangendo aspectos físicos, cognitivos e psicossociais. Diante disso, caso
o professor ou o sistema educacional ignore a mutualidade de influências, há maior
probabilidade de ofertar uma aprendizagem sem significado, pois não será atribuído,
pelo aluno, um sentido pessoal à aprendizagem (MIRA, 2014). Assim, contextos
educacionais que não estão capacitados a mediar uma aprendizagem significativa, a
partir do encorajamento do aluno e da aquisição do conhecimento como algo intrínseco
ao indivíduo, estão em risco de não conseguirem promover uma mudança estrutural a
nível cognitivo e motivacional de seus alunos (FEUERSTEIN, FEUERSTEIN e FALIK,
2014), e como consequência surgirá o insucesso escolar e o desencontro entre
conteúdos pedagógicos e outras dimensões da vida. Alciene, com o conto “Boné
vermelho”, soube explorar tais vazios e promover uma narrativa repleta de experiências
cotidianas, capazes de auxiliar, pela identificação gerada, o desenvolvimento de
habilidades socioemocionais, mostrando-se uma abordagem significativa para
promover a leitura literária em sala de aula e o desenvolvimento das competências
socioemocionais.
A educação socioemocional tem especial significado no processo educacional,
já que nele ocorrem os primeiros contatos da criança com um grupo, oferecendo espaço
para desenvolver a capacidade de controlar emoções e de serem mais compreensivas
com os sentimentos, desejos e anseios de outras pessoas. Assim, acreditamos que o
contato com a literatura e a imersão em contextos de leitura devem ser presentes em
todas as etapas educacionais dos estudantes, como forma de auxiliar na compreensão

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de tais processos externos e internos, por ser a literatura leitura do mundo e forma de
expressão “que tem por objetivo ampliar a visão de mundo da criança, resgatando-lhe
um sentido de vida maior, no qual ela possa sentir-se valorizada e estimulada a buscar
outros graus de maturidade espiritual” (CAVALCANTI, 2014, p. 11-12).

“Boné vermelho”: a busca da reinvenção do olhar


A escritora Alciene Ribeiro Leite publica seu primeiro livro no final da década de
70 e, nos anos seguintes, escreve contos, romances e novelas. O conto em análise,
“Boné vermelho”, foi publicado no livro Um jeito vesgo de ser, em 1988, e narra a
história de uma menina, que se vê como menino, e encontra em um pedido feito por sua
mãe – levar doces para sua avó – o enfrentamento com o mundo externo, gerador das
dúvidas, receios, medos, imposições, que precisam ser desenvolvidos para transpor as
intempéries impostas socialmente e, assim, estar pronta para a próxima fase de sua
vida, a adolescência. A chegada à casa da avó simboliza a ressignificação de sua
existência, após sobreviver as amarguras de um dia tortuoso.
As obras de Alciene abordam e funcionam como denúncia das mazelas sociais
(violência feminina, abandono, questões de gênero), principalmente, as cometidas às
crianças e às mulheres. Como pontua Carmo, (2018, p. 100) “Alciene Ribeiro faz da
literatura um meio de denúncia social, e a tensão do olhar da criança é que faz a
focalização gerar a denúncia que é a função da literatura”. Tais provações relevam os
desvarios que a humanidade pode purgar como forma de esperança, de um “momento
novo que signifique o fim das amarguras pretéritas” (CARMO, 2018, p. 101). A inserção
do conto “Boné vermelho”, em sala de aula, como momento de fruição de leitura reforça
o percurso desenvolvimental das habilidades socioemocionais, possibilitando ainda
aperfeiçoá-las por meio do modelo que oferece quando lidam, individualmente, com
seus próprios sentimentos (GOLEMAN, 2007).
Assim, o questionamento acerca do título é a chave propulsora dos encontros e
desencontros que o texto pode criar em cada estudante pela exploração da metáfora
imposta pelo título que apresenta uma das simbologias do conto. “Boné vermelho”,
instiga a associação com o conto de fadas de Chapeuzinho Vermelho de forma presente
e atualizada, uma vez que no lugar do “chapéu” temos um “boné” e Alciene faz a ficção
ganhar a cena como forma de discutir os valores e as imposições sobre a questão de
gênero veiculadas pela sociedade “[N]ão sou garoto, mas me chamam “Boné vermelho”.
Conforme a pressa, ou a preguiça, só Boné. É que não tiro meu boné da cabeça por
nada desse mundo. Durmo com ele, tomo banho. E vivo de calção, igual menino”

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(LEITE, 1988, p. 81). No primeiro parágrafo do conto, somos arremessados para a
atualidade e a clara dicotomia entre feminino e masculino

- Menina encapetada!
- Mulher macho!
Anestesiado assim, meu escutador de lorotas nem liga.[...]
- Que isso, menina, feito moleque você não vai, não. O que a vovó vai
pensar. (LEITE, 1988, p. 81)

Dicotomia que o professor pode explorar em sala de aula, a fim de destacar os


dilemas que envolvem a puberdade, ação que despertará e motivará os alunos, pela
identidade estabelecida, uma vez que a transição da infância para adolescência gera a
perda da autoestima e um salto na autoconsciência, além de uma crise de identidade,
que faz com que durante a adolescência, sejam lançados os alicerces para lidar com a
vida adulta e diante disso, são levantadas questões voltadas para a ocupação e adoção
de valores. Aventuras e transformações que influenciarão e determinarão a jornada de
Boné, como, por exemplo, as imposições feitas pela mãe “Não passe pelo centro da
cidade, é perigoso, vou ficar preocupada – mamãe me despachou com um beijo na
testa” (LEITE, 1988, p. 82).
O contexto “casa” e “casa da avó” são particularmente significativos. De acordo
com Goleman (2007, p. 208), “a vida em família permite aprendermos como nos sentir
em relação a nós mesmos e aos outros e avaliar esses sentimentos e a reação social
gerada”. Essa aprendizagem emocional é ofertada por meio do modelo que os pais
dispõem ao lidar com suas próprias situações sociais, familiares e psicológicas. De
posse de tais informações e da leitura da primeira parte do conto, o professor pode
suscitar os seguintes questionamentos em seus alunos: Como vocês avaliam o
comportamento da mãe? Como era a relação entre mãe e filha? O que Boné pensou e
sentiu ao dizer que a mãe a havia despachado?
Além disso, no conto “Boné vermelho”, observa-se a relação entre mãe e menina
através de comandos e instruções, aparentemente já conhecidos pela criança. Destaca-
se o surgimento de estereótipos relacionados a gêneros “mulher-macho” e herdados por
contextos familiares “o que a vovó vai pensar” - e a formação da identidade como um
constructo histórico, social e individual que ora se aproxima de regras impostas, ora de
desejos íntimos – “é que não tiro meu boné...”. As autoras Papalia e Feldman (2013)
esclarecem que os pais moldam as diferenças de gênero através de exigências de
comportamentos esperados para uma determinada cultura e tempo histórico.
Pensamentos que circulam na sociedade determinando a existência dos indivíduos e
dos pré-conceitos que tolhem a ingenuidade característica da infância.

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A saída de casa pela primeira vez, desprotegida e desamparada pela figura
materna representa o contato com o diferente, com as frustrações, com o medo e
também com a força que há em cada um de nós, como sinônimo da esperança para
driblar todas as adversidades da vida. Boné as encara uma a uma, revelando a
determinação, que existe dentro de si, desconhecia por ela até então. Primeiro, em
relação a influência do discurso do outro sobre nossas ações e depois em relação à
desigualdade social:

- Olha aí meu ônibus.


- Xi, logo esse?
- Que que tem?
- Só dá periferia, olho de fome, seus bolinhos, ó... – polegar para baixo
– adeus!
- Será?...
- Vai por mim, lá dentro tem até pivete.
- E o que que tem?
- O problema são os bolinhos, Boné, não sobra um, vai ver. Se fosse
você ia lá no outro. (LEITE, 1988, p. 83).

Segundo, com o vislumbre de Boné, que “protegida” dentro de casa, não


conhece os dissabores do mundo nem sua realidade:

- Mamãe falou que não, o centro é perigoso.


- Que perigoso... é a mesma coisa. Está tudo ruço, mas se quer levar
os bolinhos para a velha, tem de ser.
- Na cidade então não vão pedir? Besteira!
- A fome do centro não dói.
- Por quê?
- Ô Boné, nasceu hoje? Quem vai para a cidade é empregado, volta do
almoço, barriga cheia de angu ou farinha. O resto é periferia, passeia-
pingente para tapear a fome. Vai, boba.” (LEITE, 1988, p. 83)

No discurso do amigo de Boné, Alciene define que o percurso da casa de Boné


até a casa da avó simbolizará o seu nascimento, a sua inserção social e pessoal,
responsável por tirá-la da infância e conduzi-la à adolescência. Caminho que, a cada
passo, envereda-a para um novo panorama da sociedade do século XXI, cobrando dela
atitudes e posicionamentos diante de fatores como a exclusão social, a pedofilia, o
assédio

Minha saia rasgou.


- A gente disfarça assim no cinto, ninguém vê – os dedos desajeitados
do velho roçam-lhe a carne. [...]
A menina é boazinha para a vovó, bolinho gostoso – ele engole o resto,
o gogó dançando, vai e vem. – E para o vovô – ri malicioso, a mão
áspera e sebosa no joelho dela – vai ser boazinha também?
- O senhor não repare, vou indo – Boné tenta se erguer.
- Espera aí, menina, acaba caindo – ele a força contra o acento. Quer
balinha? [...] Fica aí, menina, senão cai – as mãos grudentas, agora

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nos ombros, descem pelos braços. [...] - Ô diacho, a menina é arisca!
– o velho nem tem tempo de reagir. (LEITE, 1988. p. 84-86)

A passagem acima elucida os enfrentamentos e as violências sofridas pelo sexo


feminino na sociedade, ressaltando que nem o estar em casa, sobre proteção de alguém
é a forma mais segurança e tranquila de viver. Nesse sentido, Boné, mesmo sendo uma
criança, empodera-se e opta por enfrentá-lo. Mais uma vez a narrativa de Alciene revela-
se atual ao olhar, atentamente, para as relações sociais e questionar a necessidade de
reinventar a maneira de ser como busca para a liberdade. Longe do seu bairro vive um
momento epifânico ao descobrir que o nada a representa, a insignificância a define, tal
descoberta engendra a motivação para um vir a ser e, mesmo desamparada pela
multidão que a cerca, decide se “embuchar de desaforos” e continuar sua missão.

Aperta-se na parede, tenta passar despercebida de tropeços novos. E,


com raiva, nota os olhos molhados, mas se propõe vencer a prova. A
tarde avança, e ela se concede a lágrima solitária, lava a cara lambida
de vergonha.- O que me avexa mais é eu carecer do jogo de cintura
acostumado. Fiquei babaca, foi só sair de debaixo da saia da mamãe.
Pareço caipira perdida na cidade, capiau na roça. (LEITE, 1988, p. 89-
90)

O olhar da criança diante da selva de pedras, da correria diária da vida


capitalista, do distanciamento social imperioso das pessoas que logram concluir sua
jornada, é poético pelo modo como focaliza a inadequação da criança nesse mundo de
e feito para adultos, no qual a única forma de vencer é tornar-se um adulto também. O
dialogismo instaurador de novos sentidos, criado por Alciene, conecta presente – “Boné
vermelho” – e passado – Chapeuzinho Vermelho –, a fim de evidenciar que o fado
opressor, vivido pelo sexo feminino na sociedade, ainda continua vigente. A trama
representa, assim, as amarras sociais vivenciadas pela criança/jovem/mulher na busca
contínua de sua emancipação, que ao rever os paradigmas ideológicos da tradição,
possibilita novas interpretações para ressignificá-lo.
Leitura literária influenciadora e influenciável, pois permite ao indivíduo, “sentir[-
se] participante de uma humanidade que é a sua e, deste modo, pronto para incorporar
à sua experiência mais profunda o que escritor lhe oferece como visão da realidade”
(CANDIDO, 2002, p. 92). Boné acredita estar fortalecida, no entanto o aliciamento
sofrido com o personagem da mulher oxigenada, com o trânsito caótico, resgatam o
sentimento de abandono, fazendo-a sentir-se sozinha diante da realidade, que é maior
do que ela pode suportar e, por isso, explode “em soluções secos, doídos e continuados.
Revive a aventura desde o bairro, rol de ameaças, o velho, trombadinhas, bêbados,
loucos, a loira oxigenada, o trânsito ensandecido” (LEITE, 1988, p. 91). Em meio ao

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desespero sentido, sabe que já não é mais a mesma menina que saiu de casa para
levar pães à avó, multiplicidade literária que a faz continuar sua jornada de
consequências e transformações em prol de confrontar o leitor com novas realidades
para compreender que “todas as criaturas precisam aprender que existem predadores.
Sem esse conhecimento, a mulher será incapaz de movimentar com segurança dentro
de sua própria floresta sem ser devorada” (ESTÉS, 1999, p. 65).
Desta forma, Boné vermelho, amadurecida pelo medo encontra no afeto de outra
mulher esperança para continuar o caminho até a casa da avó “Só a moça ao lado deu
fé, entendeu o pânico da menininha perdida no burburinho. Passou a mão na sua
cabeça, tentou ajudar, sorriu de leve. – Não foi nada” (LEITE, 1988, p. 91) e entende,
nesse momento, que “predador significa torna-se um animal maduro pouco vulnerável
à ingenuidades, inexperiência ou insensatez” (ESTÉS, 1999, p. 65), “resolvida a
questão, seguem viagem, o ônibus batendo lataria, esvaziando-se aos poucos de
passageiros aliviados. Último ponto, só o gorducho e Boné, carregada de receio”
(LEITE, 1988, p. 92). Adquirindo sua autonomia, Boné retornará para a casa não mais
como a criança que saíra, o contato com o mundo possibilitará um crescimento pessoal
que transporá a ordem e as percepções da personagem.
O encontro com a avó solidifica a visão que perpassa a obra de Alciene: a de
que as mulheres estão presas ao espaço, trancafiadas em suas vontades,
enclausuradas pelas amargas e limitantes ideologias sociais, que não consentem,
mesmo na velhice, gozar de um momento de liberdade, de tranquilidade, estando em
estado constante de vigília “Ah, não vamos comentar com a mamãe, preocupá-la à toa,
não é?” (LEITE, 1988, p, 96). Nesse contexto, Mira (2004) pontua que a representação
da avaliação afetiva que uma pessoa possui em um determinado momento é embasada
no autoconceito e na autoestima, que são elementos que configuram o sistema do eu e
são responsáveis pela organização de interpretações pessoais sobre a própria
experiência e com isso, influencia positivamente ou negativamente a sua conduta diante
as demandas do processo de ensino e aprendizagem. Assim, a leitura e socialização do
conto em sala de aula permite elucidar alguns dos principais aspectos que determinam
a dimensão afetiva e emocional de uma situação de aprendizagem - a representação e
a avaliação de si mesmo e dos padrões atributivos de êxitos e fracassos.
O conto, pelos sentidos suscitados pela leitura, permite ao professor, juntamente
com os alunos, construir uma representação das características dos outros, incluindo
ideias sobre suas capacidades, motivos e intenções. Sua exploração em sala de aula
além de incentivar o contato individual com o texto, despertar o gosto pela leitura,

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propiciar momentos de simbolização e ressignificação da vida, também ajuda a
desenvolver as habilidades socioemocionais por considerar a criança em
desenvolvimento como um ser global, o que inclui “aspectos físicos, cognitivos e
psicológicos e sociais” (PAPALIA; FELDMAN, 2013, p. 37), favorecendo a mediação
significativa da aprendizagem.

Conclusão
A leitura do conto “Boné vermelho”, de Alciene Ribeiro Leite, insere-se em um
momento histórico em que a literatura infanto-juvenil busca elucidar o realismo, a vida
nas ruas, os desfavorecidos, o abandono. Em sua obra, seus personagens retratam a
dureza da vida, do feio, do insólito, das violências e necessidades daqueles que não
possuem voz e nem vez na enorme redoma social; personagens que lutam
constantemente pelo seu direito a uma vida mais digna, livre e libertadora. As figuras
infantil e feminina tornam-se, nesse intuito, recorrentes, visto representarem o
movimento cíclico da vida. Pelo uso preciso, conciso e sugestivo da linguagem, pelos
temas escolhidos, pela vivacidade da obra, pelas abordagens sociais e, principalmente,
pelo choque de realidade que busca romper o olhar, para reimaginar e reinterpretar o
presente, a obra de Alciene insere-se no período do Boom da literatura infanto-juvenil,
período em que o livro Um jeito vesgo de ver foi publicado.
O contato em sala de aula com as obras da autora e com o conto em análise
promoverá a função primeira da literatura que, “sendo arte, a literatura de Alciene
permite que a discussão sobre a vida e os conflitos humanos sejam expostos e
discutidos [...] levando a compreensão do cotidiano e do contemporâneo.” (GOMES,
2019, p. 168), como forma de “denúncia que [...] são gritos por socorro de uma
sociedade oprimida pelos desmandos causados pela infelicidade do ser, para que possa
mudar sua história de angústias e anseios e possa ter uma vida próspera e feliz.
(CARMO, 2018, p. 95). A inserção de habilidades socioemocionais como um dos
objetivos da educação não desconsidera ou atribui menor valor aos aspectos cognitivos
ou a transmissão formal do conhecimento, já que ambas as aprendizagens são
necessárias para sucesso no desempenho acadêmico e vida futura, tais
intertextualidades convidam os alunos a expressarem a experiência vivida em sala de
aula, que pelas metáforas, que são capazes de, integrar o pensamento, o sentimento e
a imaginação, considerando, ainda, o contexto social do grupo escolar e dos estilos
pessoais de cada aluno (ABED, 2014).

Referências
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PAPALIA, D. E.; FELDMAN, R. D. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artmed,


12ª ed. 2013.

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HORA DA LEITURA: UM OLHAR SOBRE A MEDIAÇÃO DE
LEITURA DOS PROFESSORES ALFABETIZADORES

Ana Paula Carneiro (CELLIJ/FCT/Unesp)


Renata Junqueira de Souza (CELLIJ/FCT/Unesp)

Eixo Temático: Grupo Temático 8: Literatura infantil e ensino

Considerações iniciais
A Hora da leitura é uma atividade no qual o professor proporciona aos alunos o
contato com a literatura. Essa atividade pedagógica compõe a rotina dos professores
em sala de aula definida pela Secretaria de Educação de Presidente Prudente/SP
(SEDUC).
Entendemos que tais atividades são relevantes para desenvolver a autonomia,
o exercício da escuta e, consequentemente o gosto pela leitura nos alunos. No entanto,
para que atividades de mediação de leitura literária sejam elaboradas e executadas e
possam contribuir para que sejam desenvolvidas mediação de leitura que contribuam
efetivamente com a formação do leitor literário, a prática pedagógica precisa ser
intencional e planejada anteriormente, antecipando questões relevantes ao texto
escolhido de maneira que leve os alunos à compreensão leitora e ao deleite.

Nas salas de aula em que a literatura é empregada com frequência,


crianças e professores praticam atividades de leitura todos os dias. O
professor seleciona uma história, que pode ou não estar relacionada
com matéria do currículo escolar; a seguir, escolhe uma maneira de ler
para a turma e se prepara para isso (SOUZA, 2016, p. 4).

Quando pensamos nas leituras literárias realizadas durante a Hora da leitura,


indagamos também como o professor planeja suas ações e quais são os seus reais
objetivos. É o professor quem planeja o que será feito antes, durante e após a leitura, o
que é essencial para desenvolver a compreensão leitora, uma atividade cognitiva
complexa e que ajuda o leitor a compreender o texto escrito, para que os alunos não
passem de meros ouvintes, mas que a partir de seus conhecimentos prévios, se tornem
capazes de dialogar com o texto literário lido em voz alta pelo professor. A partir das
discussões feitas por Souza (2016), entendemos que a leitura do texto literário,
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associada às ações envolvidas nas estratégias de compreensão leitora, pode
proporcionar um ensino de leitura diferenciado, por sugerir o uso de diversos tipos de
textos literários e modos de estimular o ato de ler.
De acordo com os programas Ler e escrever e o Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa(PNAIC) que norteiam o trabalho ao longo da Hora da
leitura no Estado de São Paulo, entendemos ser efetivo que o professor realize
intervenções que levem seus alunos a estabelecer previsões acerca do texto
desenvolvendo estratégias que os auxiliem na compreensão leitora, para que ao longo
do tempo consigam usá-las autonomamente.
Entendemos como necessário analisar dentre as práticas dos professores quais
são os objetivos na Hora da leitura. Para tanto, abordaremos nessa pesquisa a
concepção de leitura a partir de Smith (1989, p. 72) destacando que “os leitores devem
dar significado ao que eles leem, empregando o seu conhecimento prévio do assunto e
da linguagem do texto”.
Dessa maneira, partimos do pressuposto que o professor é um modelo de leitor
proficiente e pode ser um motivador de leituras, se ele não sente prazer em realizá-las
é bem provável que seus alunos também não o sintam.
Podemos ainda afirmar que a leitura tem diferentes funções em nossas vidas,
ensinar essas habilidades por meio de diferentes modos de ler como, em voz alta,
coletiva, individual, silenciosa e compartilhada são um caminho para o desenvolvimento
da aprendizagem significativa.

Metodologia da pesquisa
Considerando a relevância que a leitura literária infantil possui na formação do
leitor, a perspectiva dessa pesquisa se baseia em um olhar investigativo sobre as
práticas de leitura realizadas em salas de aula de uma escola do município de
Presidente Prudente/SP durante a Hora da leitura e como as professoras tem planejado
essa atividade com as crianças.
As observações em sala de aula desse estudo de caso objetivou diagnosticar as
práticas e mediações de leitura realizada pelos professores durante a Hora da leitura
que contribuíram para a formação do leitor literário.
Para as observações Lüdke nos mostra que,

o que cada pessoa seleciona para “ver” depende muito de sua história
pessoal e principalmente de sua bagagem cultural. Assim, o tipo de
formação de cada pessoa, o grupo social a que pertence, suas
aptidões e predileções faz com que sua atenção se concentre em
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determinados aspectos da realidade, desviando-se de outros (LÜDKE,
1986, p. 35).

Neste sentido, nossas observações foram direcionadas na mediação de leitura


com os textos literários realizadas pelas professora e se justificou pelo fato de termos
uma atenção e um olhar minucioso para a o desenvolvimento do trabalho com essas
obras.
Para que a observação se tornasse um instrumento válido nessa pesquisa,
planejamos e estruturamos como seriam realizadas as observações em sala de aula,
delimitando o olhar em torno da mediação de leitura realizada pela investigadora na
turma de 1º, 2º e 3º ano. Deixamos claro para as professoras e para os alunos
participantes desde o início das observações qual era a intenção da pesquisa.
Os registros foram realizados durante as observações em um diário de bordo
com anotações de todas as salas de aula observadas. Ao mesmo tempo foi feita a
filmagem para garantir a coleta dos dados assegurando detalhes que não foram
contemplados durante os registros escritos. Deixamos claro para as participantes da
pesquisa que as imagens das filmagens não seriam divulgadas, a coleta de dados pelas
filmagens foi apenas um recurso para separar as informações mais importantes dos
detalhes desnecessários, bem como complementar algo que não conseguimos articular
naquele momento no diário de bordo.
A relação que a professora estabelece em sala de aula com o texto e o livro
literário e como medeia essa atividade para os alunos, é fundamental para
compreendermos se tal ação contribui para a formação de leitores literários. De acordo
com André (1984, p. 53) “o pesquisador se propõe a retratar a situação pesquisada em
suas múltiplas dimensões, ele vai buscar nos informantes a variedade de significados
que eles atribuem a essa situação”.
Diante disso, utilizamos instrumentos de coletas de dados. Esta foi uma
investigação de abordagem qualitativa, na qual utilizamos a revisão bibliográfica,
questionário, estudo de caso, análise documental e entrevista com a intenção de
aprofundar as observações em torno da Hora da leitura de maneira a retratar as
situações reais sem prejudicar sua dinâmica natural.
Nessa perspectiva, utilizamos o estudo de caso como eixo norteador. Como nos
mostra Lüdke:

Tanto quanto a entrevista, a observação ocupa um lugar privilegiado


nas novas abordagens de pesquisa educacional. Usada como o
principal método de investigação ou associada a outras técnicas de
coletas, a observação possibilita um contato pessoal e estreito do
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pesquisador com o fenômeno pesquisado, o que apresenta uma série
de vantagens (LÜDKE, 1986, p. 26).

Sob o ponto de vista de Lüdke, entendemos as vantagens que a entrevista e a


observação têm para essa pesquisa, mas também sabemos que um estudo como este,
não representa a realidade de uma rede tão complexa como Presidente Prudente, mas
que nos fornece indícios de mediações que podem vir a acontecer em outras unidades
de ensino.
Desta maneira, um recorte foi necessário para definir a população a ser
analisada, por se tratar de uma rede de ensino numerosa, investigaremos apenas um
grupo de professores que atende do primeiro ao terceiro ano do ensino fundamental,
caracterizando o ciclo de alfabetização de uma única escola.
Justificamos, então, esse estudo de caso a partir de Lüdke,

sendo o principal instrumento da investigação, o observador pode


recorrer aos conhecimentos e experiências pessoais como auxiliares
no processo de compreensão e interpretação do fenômeno estudado.
A introspecção e a reflexão pessoal têm papel importante na pesquisa
naturalística (LÜDKE, 1986, p. 26).

Em concordância com o autor e partindo dos conhecimentos e experiências


prévias da pesquisadora, escolher a escola em que trabalha para as observações, se
deve ao fato de não ter se afastado das funções como gestora na mesma unidade,
sendo difícil em um período curto de tempo desenvolver um estudo como esse em
outras unidades escolares. Dessa maneira, a reflexão e as análises dos dados
representam uma introspecção mais concisa dos mesmos.
A pesquisa foi realizada em uma escola pública do município de Presidente
Prudente/SP, em que delimitamos um grupo de professoras e inicialmente convidamos
aquelas que atendiam os anos iniciais e que estavam dispostas a participar
voluntariamente da pesquisa para responder a um questionário.
Segundo Lakatos; Marconi, a aplicação de questionário é o instrumento que mais
atende a necessidade deste tópico da pesquisa, os autores afirmam que “questionário
é um instrumento de coleta de dados, constituído por uma série ordenada de perguntas,
que devem ser respondidas por escrito e sem a presença do entrevistador” (LAKATOS;
MARCONI, 1985, p. 178).
Nesse sentido, utilizamos o questionário para alcançarmos um de nossos
objetivos, compreender o panorama das práticas de leitura em sala de aula a partir dos
professores respondentes desse instrumento.

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A opção por esse instrumento, nesse ponto, foi para que as docentes se
sentissem à vontade para participar. A proposta de participação da pesquisa foi feita
para as 14 professoras que lecionavam do primeiro ao terceiro ano no período da tarde
na instituição escolar, local da pesquisa. Apenas 5 se voluntariaram a responder o
questionário. Esse instrumento nos ajudou a definir quais as professoras que seriam os
sujeitos de nosso estudo de caso.
Podemos refletir alguns pontos que nos chamaram atenção a respeito dessa
seleção. Levamos em consideração de a pesquisa ter ocorrido na escola em que a
pesquisadora ocupava o cargo de vice-diretora, o que torna um fator relevante na
escolha desses sujeitos. Nesse sentido, além do fato de ter uma pessoa realizando uma
pesquisa dentro da sala, poderiam se inibir, visto que tratava-se da investigação da vice-
diretora.
Nesse sentido, o peso da observação seria muito maior nessa pesquisa. Primeiro
pelo fato da pesquisadora, via universidade estar analisando a prática da professora e
segundo a gestão da escola também estar a avaliando seu trabalho. Isso justifica a
proposta ser lançada para todos os professores do primeiro ao terceiro ano e apenas 5
aceitarem participar.
O critério utilizado para a seleção das professoras que seriam observadas levou
em consideração a docente que atua mais tempo no magistério em cada ano. Nesse
sentido selecionamos uma professora do primeiro ano com 5 anos de experiência, uma
do segundo ano com 20 anos de experiência e no terceiro ano uma com 12 anos de
docência.
As observações foram realizadas em um período de dois meses, sendo previsto
dez dias para o estudo de caso em cada sala de aula.
Trabalhar no local a ser observado, garantiu a priori já conhecer o grupo a ser
investigado, sua realidade e suas particularidades. Não foi preciso fazer um
reconhecimento e aproximação da pesquisadora e do objeto de pesquisa, já que havia
uma relação anteriormente estabelecida entre ambas as partes.
O fato de ser gestora e pesquisadora na própria escola talvez tenha sido um dos
motivos que diminuiu a adesão do total de professas que aceitaram responder o
questionário. Também durante as observações percebemos uma tensão na leitura dos
textos em algumas salas, que pode ter inibido o trabalho das docentes. Talvez
pudessem ter desenvolvido uma melhor prática sem a presença da pesquisadora, ou ao
contrário, com a presença foram forçadas a desenvolver um melhor planejamento do
que aquele que costumam fazer diariamente.

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Ainda a respeito da observação, autores como Lakatos; Marconi a consideram
como:

Uma técnica de coleta de dados para conseguir informações e utiliza


os sentidos na obtenção de determinados aspectos da realidade. Não
consiste apenas em ver e ouvir, mas também encaminhar fatos ou
fenômenos que se desejam estudar. [...] A observação ajuda o
pesquisador a identificar e a obter provas a respeito de objetivos sobre
os quais os indivíduos não têm consciência, mas que orientam seu
comportamento. Desempenha papel importante nos processos
observacionais, no contexto da descoberta, e obriga o investigador a
um contato mais direto com a realidade. É o ponto de partida da
investigação social (LAKATOS; MARCONI, 1985, p. 169).

Da mesma forma, os conteúdos observados basearam-se na abordagem


qualitativa, utilizando a técnica de coleta de dados nas observações das três salas de
aula e suas respectivas mediações de leitura literária, cada uma apresenta
características e particularidades singulares registradas no diário de bordo.
Pautadas nas definições de Lüdke (1986) em relação aos aspectos a serem
observados, tentamos garantir em todas as salas de aula alguns pontos em comum:
Descrição dos sujeitos: maneira como as professoras falavam e agiam durante
as mediações de leitura, as escolhas das palavras e como apresentavam o livro aos
seus alunos;
Reconstrução dos diálogos: em algumas situações transcrevemos literalmente a
fala da professora ou dos alunos para justificar o contexto da análise;
Descrição do local: foi importante situar o leitor ao local onde ocorreram as
observações das mediações de leitura, quais os espaços da sala de aula que a
professora utilizou para realizar as atividades. Esse aspecto foi importante, pois foi
possível perceber quais os cuidados que cada professora tomou em suas mediações,
como organizaram o espaço físico na Hora da leitura e se houve um local destinado
para a leitura na própria sala de aula;
Descrição de eventos especiais: durante as observações ocorreram muitos
imprevistos, interrupções, adiamentos das observações que foram importantes para
contextualizar o leitor e para a análise dos dados;
Descrição das atividades: foram registradas a ordem das atividades realizadas
o que precedeu a leitura, como ela ocorreu e se houve ou não comentários ou atividades
depois desse momento;
O comportamento do observador: foi muito comum as conversas que as
professoras e as crianças faziam com a pesquisadora durante as aulas, tudo foi
registrado no diário de bordo.
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As observações ocorreram em dez dias de análise em cada turma, com as
devidas especificidades para cada uma, que exigiu tempo e dias diferentes, porém,
garantindo uma mesma quantidade de horas.
Quanto ao registro reflexivo das observações,

a parte reflexiva das anotações inclui as observações pessoais do


pesquisador, feitas durante a fase da coleta: suas especulações,
sentimentos, problemas, ideias, impressões, preconcepções, dúvidas,
incertezas, surpresas e decepções (LÜDKE, 1986, p. 31).

Durante as observações foram realizados registros reflexivos baseados na ideia


do autor:
Reflexão analítica: percebemos que a “leitura em voz alta” não foi a única
maneira de garantir a formação das crianças.
Reflexões metodológicas: os procedimentos metodológicos ao longo da
pesquisa foram repensados, a princípio não utilizamos os cadernos de planejamento
das professoras, depois as requisitamos esses registros e, essa análise documental nos
ajudou a interpretar como planejaram, se planejaram e como organizaram e definiram a
Hora da leitura. Alguns aspectos observados em campo nos ajudaram a decidir sobre o
melhor momento para realizar as entrevistas;
Dilemas éticos e conflitos: muitas vezes por conta da vida profissional da
pesquisadora e sendo uma das gestoras da escola foi necessário replanejar o dia com
as salas a serem observadas.
Mudança na perspectiva do observador: antes de iniciar as observações,
supunha que se as professoras lessem em voz alta diariamente ou com certa frequência
os textos literários, isso ajudaria a formar o leitor literário, e ao longo das observações
essa expectativa foi sendo refutada, pois percebemos que em algumas salas a leitura
das professoras não garantia que essas crianças lessem os livros com autonomia, os
manipulassem ou fossem motivadas para buscar o livro na biblioteca ou no cantinho da
leitura.
Esclarecimentos necessários: durante as observações foram importantes os
pontos anotados como dúvidas e esclarecimentos no diário de bordo, dúvidas que
seriam retomadas no final da observação do dia ou tiradas nas entrevistas ou até
mesmo a partir do aprofundamento teórico.
As entrevistas foram realizadas após o período de observação da prática com
as 3 professoras selecionadas. O objetivo foi compreender e avaliar melhor os dados
observados. Elas foram gravadas para garantir uma melhor análise dos dados e
posteriormente transcritas para selecionarmos os eixos temáticos para da pesquisa.
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Após o período de observações das mediações de leitura em sala de aula
realizamos as entrevistas semiestruturada que para Lüdke (1986, p. 34), “se desenrola
a partir de um esquema básico, porém não aplicado rigidamente, permitindo que o
entrevistador faça as necessárias adaptações,” para melhor esclarecer e analisar as
observações registradas no diário de bordo, pois muitas vezes ficavam algumas dúvidas
em relação aos procedimentos adotados pelas professoras em sala de aula e as
concepções teóricas e metodológicas imbuídas em algumas atividades de sala de aula.

A grande vantagem da entrevista sobre outras técnicas é que ela


permite a captação imediata e recorrente da informação desejada,
praticamente com qualquer tipo de informante e sobre os mais variados
tópicos. Uma entrevista bem-feita pode permitir o tratamento de
assuntos de natureza estritamente pessoal e íntima, assim como temas
de natureza complexa e de escolhas nitidamente individuais. Pode
permitir o aprofundamento de pontos levantados por outras técnicas de
coleta de alcance mais superficial, como o questionário (LÜDKE, 1986,
p. 34).

Na última etapa analisamos os dados levantados e comparados a partir das


observações e entrevista sobre as práticas de leitura realizadas pelas professoras
alfabetizadoras da Secretaria Municipal de Educação de Presidente Prudente/SP que
podem ou não contribuir para a formação do leitor literário.
Por se tratar de uma pesquisa que observou apenas um recorte da aula do
professor em que realiza a leitura de textos literários aos alunos, não é possível afirmar
que tudo o que foi observado levará a formação do leitor literário, percebemos ao longo
desse processo que não é só durante a Hora da leitura que as professas lêem, existem
outras atividades de leitura e que não eram o foco dessa pesquisa, mas que também
podem contribuir para a formação do aluno leitor.
Para análise dos dados obtidos nessa pesquisa, André nos mostra que,

ao desenvolver o estudo de caso o pesquisador faz uso frequente da


estratégia de triangulação, recorrendo para isso a uma variedade de
dados, coletados em diferentes momentos, em situações variadas e
provenientes de diferentes informantes. Ele pode usar também a
triangulação de métodos – checagem de um aspecto, questão ou
problema, através do uso de diferentes métodos. E pode recorrer ainda
a triangulação de investigadores – dois ou mais observadores
focalizando o mesmo objeto. Finalmente ele pode usar a triangulação
de teoria, isto é, analisar os dados à luz de diferentes pontos de vista
teóricos. E ainda, ele pode combinar os diferentes tipos de triangulação
no mesmo estudo (ANDRÉ, 1984, p. 52).

Por meio da triangulação dos dados obtidos com os questionários, observações


e entrevistas, tivemos uma análise da realidade escolar.

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A partir do levantamento de dados analisamos se a atividade da Hora da leitura
tem valor para o docente como ferramenta pedagógica e ainda pudemos comparar a
resposta da professora com a prática observada em sala de aula.
Assim, acreditamos que foi possível perceber nuances como: se a professora
atuava com a Hora da leitura por obrigação curricular ou se fazia porque realmente
acreditava em uma prática pedagógica significativa, isso comparado às respostas
anunciadas no questionário e com sua entrevista nos deu condições de analisar e
discutir teoricamente.
A triangulação dos dados com teorias que discutem leitura, a formação do leitor,
mediação de leitura e boas práticas de leitura, tornou possível a verificação dos eixos
de análises da pesquisa, bem como a análise e o resultado que provou nossas hipóteses
iniciais. Ou seja, foi possível por meio da triangulação comparar se o que as professoras
trouxeram na entrevista como conceito de leitura era condizente com sua prática e seu
planejamento.

Considerações Finais
As escolas são organismos vivos, com suas histórias e suas necessidades
próprias de cada unidade, não é possível fazer generalizações, mas é possível, de
acordo com os dados apresentados, chegar a algumas conclusões com base nas pistas
e nos indícios oferecidos por esse estudo:
a) O perfil docente, seu tempo de trabalho em sala de aula, sua formação inicial,
os cursos formação continuada, as relações com a leitura na vida adulta e na infância e
as influências leitoras que as docentes experenciaram ao longo de suas trajetórias
pessoais e profissionais definem como elas desenvolvem a Hora da leitura.
b) A falta de parâmetros e diretrizes teórico-metodológicas, assim como a
ausência de referenciais de leitura literária no município e de documentos orientadores
específicos da SEDUC para a Hora da leitura, comprometem parcialmente as ações das
professoras. As diretrizes de leitura do município não garantem um efetivo ensino de
leitura literária, então programas estaduais e nacionais como o Ler e escrever e o Pacto
Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) contribuem parcialmente com o
dialogo a respeito dos textos literários, porém é importante ressaltar que nem todas
participaram desses programas. No Plano Municipal de Educação – PME, a literatura
aparece muito pouco, apenas nos conteúdos e habilidades de leitura, mas de forma
superficial, sem aprofundamento teórico, por isso, encontramos os termos mais variados
possíveis para definir a Hora da leitura nas salas observadas.

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c) As concepções de leitura que cada docente possui direcionam suas práticas
e seus modos de ler a literatura infantil, e esses conceitos são construídos ao longo de
suas trajetórias nos cursos de formação.
d) A mediação de leitura é um processo importante para a formação do leitor
literário e o professor é um dos principais mediadores dessa aprendizagem e, portanto
a mediação se torna significativa quando há a conversa literária com as crianças.
e) O planejamento adequado de práticas de leitura literária na escola contribui
para a formação do leitor literário, e por isso é necessário definir critérios para a seleção
dos livros, gêneros, suportes e autores de literatura infantil, assim como pensar na
importância das ilustrações presentes nas obras para a compreensão leitora.
O ensino da leitura pode e necessita ser compartilhado e mediado desde muito
cedo, e acreditamos ser a Hora da leitura uma atividade muito oportuna para
desenvolver uma situação de aprendizagem relevante, pois as crianças imitam os
adultos lendo, nesse sentido, ela pode ser significativa para o desenvolvimento das
aprendizagens de estratégias e de mecanismos de leitura.
Finalizando a trajetória dessa pesquisa, salientamos que na escola é possível
ensinarmos estratégias de leitura que contribuem para a formação do leitor. Além do
mais, concluímos que essa prática precisa ser planejada e intencional, com objetivos
muito bem definidos, sendo a mediação do professor a chave para uma aprendizagem
significativa do ensino da literatura.

Referências
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São Paulo, n.º 49, p. 51-54, maio. 1984. Disponível em:
http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/1427. Acesso em: 30
setembro 2018.

LAKATOS, E. M.; MARCONI M. de A. Fundamentos de metodologia científica. São


Paulo: Atlas, 1985.

LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São


Paulo: E.P.U., 1986.

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aprender a ler. 4 ed. Porto Alegre: Artmed, 1989.

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O PROTAGONISMO DA LEITURA LITERÁRIA NO PROCESSO
DE ADAPTAÇÃO CURRICULAR: EXPERIÊNCIAS EM ESCOLAS
DE ENSINO BÁSICO

Profª. Drª. Patrícia Cardoso Soares, Secretaria Municipal de Educação


Araçatuba/SP (SME); Faculdade da Fundação Educacional de Araçatuba/SP
(FAC-FEA).
Prof. Dr. Fernando José Fraga de Azevedo, Universidade do Minho
(UMinho)/Portugal.

Eixo Temático 8: Literatura Infantil e Ensino.

Introdução

“Pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro”.


Heródoto

“Se queres conhecer o passado, examina o presente que é o resultado; se queres


conhecer o futuro, examina o presente que é a causa”.
Confúcio

Considerações Iniciais
Há sempre uma relação íntima do momento histórico presente, com épocas
passadas, para projeções futuras. Assim, o tema identitário do VI Congresso
Internacional de Literatura Infantil e Juvenil do CELLIJ nos possibilita uma analogia ao
presente estudo aqui apresentado e nessa linha vamos caminhar quando nos referimos
à adaptação curricular no âmbito da escola básica.
Discutiremos aqui a presença e os aspectos da leitura literária de recepção
infantil no processo de adaptação curricular em duas escolas municipais do Ensino
Fundamental I, em Araçatuba/SP. Os projetos, de maneira distinta, foram desenvolvidos
para atender alunos com dificuldade de aprendizagem (1º e 2º anos) na escola que
denominaremos "Terra de Oz"; e a alunos com bom desempenho acadêmico (3º e 4º
anos) em escola denominada, doravante, como "Terra de Nárnia". Os projetos
aconteceram nos anos de 2018 e 2019, sob a supervisão da autora, no âmbito de sua

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atuação como supervisora de ensino e coordenadora institucional do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID).
O mote para tal ação foi oportunizar projeto para adaptação curricular,
contemplando a leitura literária, considerando a diversidade de aprendizagem, nos dois
contextos de atuação, possibilitando o avanço no aprendizado, tanto dos alunos com
dificuldade de aprendizagem, bem como, dos alunos que apresentavam bom
desempenho acadêmico. Neste caso, permitindo a aquisição de conhecimentos
elaborados mais complexos.
Reconhecemos que, no campo da supervisão de ensino, com histórico de
trabalho voltado a “fiscalizar” as escolas e as aulas, ou aplicar medidas disciplinares a
alunos, ter uma atuação dialógica com a coordenação, professores e às práticas
pedagógicas, causou estranheza.
Cabe-nos esclarecer que, segundo Saviani (2008), refletir sobre a função
supervisora, torna-se imprescindível em razão do termo estar, implicitamente, ligado às
origens da ação educativa. No Brasil, desde o período dos jesuítas à atualidade, o termo
sofreu modificações nos diferentes tempos históricos. Contornos mais técnicos iniciam-
se no período de industrialização do país, tendo a função semelhante aos supervisores
das fábricas, com atribuições voltadas ao controle e melhoria da quantidade e da
qualidade da produção.
Rangel (2010, p. 76), no intuito de esclarecer sobre a função do supervisor de
ensino, coloca que na supervisão, o prefixo “super” une-se à “visão” para o ato de “ver”
o geral. Sinaliza que

para possibilitar a visão geral, ampla, é preciso “ver sobre”; e é este o


sentido de “super”, superior, não em termos de hierarquia, mas em
termos de perspectiva, de ângulo de visão. Para que o supervisor
possa “olhar” o conjunto de elementos e seus elos articuladores. (Idem)

Na Secretaria Municipal de Educação (SME) em Araçatuba/SP, o termo


“supervisor de ensino” está ligado à função que a autora entende por “supervisor
educacional”, ou seja, a ação supervisora alcança o nível macro, extrapolando as
atividades da escola para alcançar os aspectos estruturais e as questões sistêmicas. E
foi observando o todo, que esta supervisora de ensino, também acumulando cargo como
professora de ensino superior e, à época, coordenando o PIBID verificou a necessidade
de ressignificar e revalorizar à sua atuação como supervisora de ensino, “de modo a
compreendê-la na sua ação de natureza educativa e sociopedagógica, no campo
didático e curricular do seu trabalho”. (RANGEL, 2010, p. 75)

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Entre os aspectos observados, por meio da visão sistêmica, indicado por Rangel
(2010), verificaram-se os resultados das avaliações internas e externas de níveis de
alfabetização dos alunos do município. Os resultados que corroboram com índices
nacionais, principalmente no ensino da leitura. Tomando por referência os índices
percebidos na avaliação ANA de 2013, 2014 e 2016 observou-se que os alunos, em sua
maioria, são capazes de localizar informações explícitas no texto e fazer conexões
simples, com pouco domínio das estratégias de compreensão. Problema comum às
duas unidades escolares.
Assim sendo, em nível de escola, o foco voltou-se à elaboração de projetos que
ressignificassem a prática pedagógica do professor no processo de ensino e de
aprendizagem da leitura pelo suporte literário.
Ação que, nos fez pensar o passado para compreender a necessidade de
ressignificar as práticas escolares e a ação da supervisão de ensino no contexto atual.

O processo de adaptação curricular no fazer pedagógico


Nos dois projetos aqui discutidos, com o objetivo de ressignificar as práticas
escolares para o ensino da leitura, o termo inclusão e adaptação curricular194 voltou-se
aos alunos que não eram público alvo do Atendimento Educacional Especializado
(AEE)195. Concentrou-se em duas situações: 1) nos alunos de 1º e 2º ano da escola
Terra de Oz que apresentavam manifestações de dificuldade de aprendizagem na
escola, de forma contínua; 2) nos alunos de 3º e 4º ano da escola Terra de Nárnia que
apresentavam bom desempenho acadêmico, tendo o direito de ampliar e consolidar os
conhecimentos já adquiridos, de forma contínua, por meio de ensino e práticas mais
complexas.
Dessa forma, ressalta-se que, para atender o contínuo das circunstâncias aqui
descritas, requereram-se respostas educacionais adequadas a cada contexto,
envolvendo graduais e progressivas adaptações curriculares– (re)inventando as
práticas pedagógicas. A adaptação curricular, aqui utilizada, tem por base as Diretrizes
Curriculares Nacionais Para a Educação Básica196, por pesquisas e pelos diálogos com

194
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN - Lei 9394/1996); Lei Brasileira de
Inclusão (Lei 13146/2015).
195
Diretrizes operacionais da educação especial para o atendimento educacional especializado
na educação básica. Brasília: MEC, 2009. Disponível no Portal do MEC <
http://portal.mec.gov.br>.
196
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) são normas obrigatórias para a
Educação Básica que orientam o planejamento curricular das escolas e dos sistemas de
ensino. Elas são discutidas, concebidas e fixadas pelo Conselho Nacional de
Educação (CNE). Mesmo depois que o Brasil elaborou a Base Nacional Comum
1140

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as equipes escolares. Chegou-se ao entendimento de ser compreendida como
possibilidades educacionais de atuar frente às necessidades dos alunos, mediante as
capacidades e habilidades apresentadas, tornando-se apropriada às peculiaridades dos
alunos. A intenção foi o de estabelecer uma relação proporcional entre as necessidades
do educando e a programação curricular vigente, observadas no Projeto Político
Pedagógico (PPP) e nos Planos de Ensino (PE) dos professores. No entendimento de
Glat (2007), permitindo uma ressignificação do processo de aprendizagem em relação
ao desenvolvimento humano para beneficiar o desenvolvimento pessoal e social dos
alunos.
Os projetos tiveram por base, o interesse do aluno, amparados na reflexão de
Fernández (1991) entendendo que, “[...] o pensamento é como uma trama na qual a
inteligência seria o fio horizontal e o desejo o vertical. Ao mesmo tempo acontecem a
significação simbólica e a capacidade de organização simbólica” (p. 67).
A partir dessa(s) reflexão(s), pautamo-nos pela busca da ressignificação da
atuação profissional, planejou-se a feitura dos projetos, em parceria com as equipes
pedagógicas das duas unidades escolares e da faculdade. Amparou-se, ainda, nas
experiências vivenciadas em contexto lusitano, por meio de Estágio Sanduíche 197
realizado na Universidade do Minho em Braga/Portugal, sob a orientação do Prof. Dr.
Fernando Azevedo. Estágio que nos permitiu compartilhar vivências e proposituras, com
vistas à formação do leitor literário em âmbito internacional, mormente em visitas às
escolas de educação básica portuguesa e entrevistas realizadas com os professores do
ciclo alfabetizador. Verificou-se que as práticas docentes nas escolas promovem leitura
diária em sala de aula de livros de literatura infantil; atividades de expressão com livros;
encontro com autores; jogos; concursos; prêmios; envolvimento de pais; feiras de livro.

Presença e aspectos da leitura literária infantil no processo de adaptação


curricular
Diante desse contexto macro, observou-se que a educação no século XXI,
segundo, Calçada (2007, p. XI) coloca-nos desafios múltiplos e complexos para as quais
a escola “tem de encontrar as respostas adequadas na forma e no tempo”. No texto do

Curricular (BNCC), as Diretrizes continuam valendo porque os documentos são


complementares: as Diretrizes dão a estrutura; a Base o detalhamento de conteúdos e
competências. (Fonte: site todospelaeducacao.org.br/)
197
A autora realizou Estágio Doutorado-Sanduíche no Exterior (PDSE/CAPES) no Instituto de
Educação (IE) na Universidade do Minho em Braga/Portugal, no Departamento de Estudos
Integrados de Literacia, Didática e Supervisão (DEILDS).
1141

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prefácio da obra - “Formar leitores: das teorias às práticas”198, a autora nos faz refletir
sobre a necessidade de os educadores ressignificar as práticas pedagógicas voltadas
às práticas de leitura e escrita que reduzem o sentido do que é lido, escrito e vivido.
Revela a responsabilidade da escola e dos educadores no entendimento e reflexão
sobre a necessária associação/relação das competências tradicionais de leitura com as
novas competências literácicas que subjazem aos ambientes digitais e à quantidade
massiva de informações que nos chegam todos os dias.
Dessa forma, na atual conjuntura social, política, cultural, surge-nos um tipo de
leitor com perfil e características incertas, repercutindo diretamente no trabalho
realizado na escola de Ensino Fundamental I, que, conforme orientações curriculares
nacionais é o período em que se espera que a formação leitora seja iniciada e
consolidada. Esse novo leitor, segundo Calçada (2009) exige responsabilização dos

diferentes mediadores de leitura – Família, Escola e outros agentes


sociais – para uma intervenção que, necessariamente, se quer mais
precoce, e que permita que a formação de leitores se faça de forma
consistente, dada a maior complexificação e exigência que as
competências literácitas199 vêm assumindo nos nossos dias. (p. 7)

Entre as competências literácitas apontadas por Calçada, o letramento literário,


como um dos usos sociais da escrita, proporciona um modo privilegiado de inserção na
cultura letrada, uma vez que conduz ao domínio da palavra por ela mesma (SOARES,
2004; COSSON, 2006; LOMAS, 2006). É um tipo de letramento singular, pois tem uma
relação diferenciada com a escrita, sendo definido por Lomas (2006) como uma
capacidade específica que possibilita tanto a produção de estruturas poéticas, como a
compreensão dos seus efeitos.
Diante de tais premissas e amparados em Azevedo (2006), citando Bourdieu
(1982 e 1994), consideramos a leitura literária, capital simbólico fundamental, pois
contribui para a formação intelectual dos sujeitos, numa perspectiva que supere o ensino
bancário e meramente instrumental da leitura (FREIRE, 1983). O trabalho com textos

198
AZEVEDO. Fernando. (Coord.) Formar leitores: das teorias às práticas. Lisboa: Lidel, 2007.
199
Termo usado em Portugal (país de origem e onde vive a pesquisadora Maria Teresa Calçada)
para definir conhecimentos sobre a linguagem oral e escrita, incluindo a educação literária.
Moraes (2013, p. 19) observa que “O conceito de literacia tem sido central num debate que
envolve, de maneira geral, as aprendizagens e a formação do indivíduo na sua relação com a
sociedade e em que se opõem orientações epistemológicas, metodológicas e ideológicas. São
os chamados modelos cultural, do capital humano e das capacitações”. No Brasil, a literacia
corresponde ao termo letramento.

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literários promove a construção de sentido quando da integração das dimensões
estéticas, de recepção e fruição que caracterizam a linguagem literária (REIS, 2015).

Fundamentação Teórica
Os projetos se fundamentam na abordagem Histórico-Cultural de Vigotsky e na
teoria Construtivista de Piaget, por meio dos esquemas de assimilação, de ação e de
operações mentais que se modificam como resultado do processo de maturação
biológica, experiências, trocas interpessoais e transmissões culturais. Com viés
sociointeracionista (PALANGANA, 2015; VYGOTSKI, 1989 e 2001) consideram e têm
por base os elementos biológicos e sociais que não podem ser dissociados, exercendo
influencia mútua no processo de desenvolvimento do sujeito. Desta forma, constrói
conhecimentos e se constitui a partir de relações intra e interpessoais. (VIGOTSKY,
1989).
Ampara-se nas competências gerais da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), articulando-se na construção de conhecimentos, no desenvolvimento de
habilidades e na formação de atitudes e valores, nos termos da LDBN.
Também tem como direcionamento o prisma pedagógico e avaliativo que
subsidia as avaliações externas no Brasil, o Sistema de Avaliação Municipal da
Educação Básica (SAMEB) e avaliações internas das escolas, segundo o PPP (Projeto
Político Pedagógico) de cada unidade escolar.
Os projetos também foram inseridos no contexto de atenção voltada à
alfabetização prevista no programa Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa
(PNAIC)200, abordando sobre as dimensões primordiais no ciclo alfabetizador: a)
apropriação do Sistema de Escrita Alfabética; b) desenvolvimento de
habilidades/capacidades de produção e compreensão de textos orais e escritos; c)
inserção em práticas sociais diversas, com base no trabalho de produção, compreensão
e reflexão sobre gêneros textuais variados; d) reflexão sobre temáticas relevantes por
meio dos textos. Essas quatro dimensões do ensino são tratadas como direitos de
aprendizagem em uma perspectiva de currículo inclusivo:

200
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic). Instituído pela Portaria nº 867, de 4
de julho de 2012, o Pacto constitui um compromisso formal assumido pelos governos Federal,
do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios de assegurar que todas as crianças estejam
alfabetizadas até a conclusão do Ciclo de Alfabetização. A partir da instituição do Pacto, o
Ministério da Educação pretende apoiar os sistemas públicos de ensino na alfabetização e no
letramento dos estudantes até o final do 3º ano do ensino fundamental, em escolas rurais e
urbanas.
1143

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Os princípios da inclusão, tendo em vista a realização de um currículo
calcado no reconhecimento das diferenças entre os sujeitos e no
esforço conjunto de todos os envolvidos no processo para a
consecução de um fim, pode nos ajudar no trabalho pedagógico. O
termo esforço neste texto é bastante apropriado uma vez que a tarefa
de trabalhar a favor da inclusão de todos no processo de ensino-
aprendizagem requer do professor uma ação cuidadosamente
planejada e que precisa ser constantemente retro-informada, ou seja,
necessita de avaliação frequente para que seja possível re-
encaminhamentos que propiciem a inclusão juntamente à garantia do
ensino da leitura e da escrita. (BRASIL, 2012a, p. 8).

Os projetos, os sujeitos, a metodologia e os resultados

A necessária intervenção pedagógica aos alunos das duas unidades escolares


supervisionadas pela autora estruturou-se em dois projetos específicos:

 Escola Terra de Oz (1º e 2º ano/alunos com dificuldade de aprendizagem).


Projeto “Oficina de leitura na escola”, oriundo do subprojeto “Leitura literária na
formação e prática docente: da elevação do pensamento ao protagonismo dos
sujeitos” que integrou o projeto institucional do Programa Institucional de Bolsa
de Iniciação à Docência (PIBID). Uma parceria entre a Faculdade da Fundação
Educacional de Araçatuba (FAC-FEA), junto à Secretaria Municipal de Educação
(SME), da mesma cidade. O projeto foi desenvolvido no período de agosto de
2018 a outubro de 2019, com o objetivo de incentivar e desenvolver a formação
do leitor literário, por meio do ensino de estratégias de compreensão textual,
através de oficinas de leitura. Contou com a participação de 30 (trinta) alunos do
curso de Pedagogia (alunos de Iniciação à Docência); 04 (quatro) professores
supervisores da escola; 01 coordenadora institucional do PIBID e; 102 (cento e
dois) alunos de 1º e 2º Anos. As crianças estavam em período de alfabetização
e apresentavam dificuldade de aprendizagem contínua. A dinâmica pautou-se
em dois âmbitos: na faculdade: orientações e formação aos alunos de Iniciação
à Docência e aos professores supervisores que atuavam nas salas de aulas
envolvidas sobre o PIBID; sobre a Proposta Pedagógica do Curso de Pedagogia
e da Escola Terra de Oz; orientações sobre as competências gerais da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), em especial, a competência nº 3,
reconhecendo a importância da ampliação do repertório cultural, do
desenvolvimento da competência literária, da fruição estética e da participação
dos alunos em práticas diversificadas da produção artístico cultural. Estudos e
reflexões sobre o letramento literário (COSSON, 2006), no que se refere ao
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processo de escolarização da literatura, refletindo sobre sua presença na escola
e no seu uso de forma adequada (SOARES, 2011). No âmbito da escola: a
formação continuada dos professores supervisores e toda a equipe escolar
através da Coordenação Institucional do PIBID em encontros presenciais, como
em momentos do Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) e do Horário
de Trabalho para o Desenvolvimento de Projetos e Pesquisas (HTPP). Junto aos
alunos da escola, foram desenvolvidas oficinas de leitura semanais, conforme
estrutura modular adaptada à realidade brasileira pelos pesquisadores Renata
Junqueira de Souza, Cyntia Graziella Girotto, Dagoberto Buim Arena e Ana
Maria dos Santos Menin. Esses autores tiveram por base a proposta norte-
americana de Harvey e Goudvis (2008) que prevê:

Figura 1 – Quadro explicativo da estrutura modular de uma oficina.

OFICINA DE LEITURA
(60 MINUTOS)
Aplicação da
estratégia em
situação autêntica de
leitura

Aula introdutória
Modelação do professor
5 a 10 minutos

Prática guiada Leitura independente

35 a 50 minutos

Partilha em grupo e avaliação


(05-10 minutos)

Fonte: (GIROTTO e SOUZA, 2010, p. 61).

Essa dinâmica, por meio das oficinas de leitura, previam o contato dos 30 alunos de
Iniciação à Docência em 2 (duas) horas de encontros semanais, na escola, em sala de
aula para observação, acompanhamento e auxílio ao professor supervisor em
acompanhamento à prática pedagógica e contato com as crianças. Momento para a
escolha dos livros de literatura infantil, junto aos leitores. Escolhia-se o livro em semana

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anterior à aplicação das oficinas. Os alunos de iniciação à docência preparavam as
oficinas, com o apoio da coordenadora institucional e professores supervisores.

Resultados e discussões:
 Aproximação da instituição de ensino superior à escola de ensino
básico, associando a teoria à prática escolar para a formação inicial
(graduandos) e continuada (professores supervisores) como ação
geradora de conhecimentos.
 Análise e acompanhamento das atividades diárias por meio da
observação e dos registros no caderno de bordo dos alunos de
iniciação à docência.
 Conhecimento da dinâmica (e das mazelas) do ambiente
escolar, incluindo a comunidade onde a escola está inserida, por
meio da participação em reuniões de pais, eventos comemorativos e
pedagógicos.
 Verificação em avaliações internas e externas de que os alunos dos
1º e 2º anos demonstraram melhora no desempenho da leitura de
diferentes gêneros textuais/literários, na compreensão leitora e
(re)escrita dos textos. A concentração dos educandos também
melhorou significativamente. Foi possível identificar nas crianças uma
ampliação do repertório linguístico, considerando-se a especificidade
de cada uma: é nesse quesito que acreditamos ser/ver o ganho mais
significativo - a possibilidade de cada criança ter a atenção
individualizada.
 A Escola Terra de Oz carecia de acervos literários de qualidade e de
espaços específicos, além da sala de aula, para o incentivo à leitura
literária.
 Observou-se que é na rotina, nos espaços, na organização de horário
e na formação/gosto e predisposição dos professores e equipe que
acontece e se organiza ambiente favorável à prática leitora. “Uma
ambientação intencionalmente planejada” (SOUZA, 2010, p.129)
torna-se condição essencial à formação do leitor literário.

Escola Terra de Nárnia (3º e 4º ano/alunos que apresentavam bom desempenho


acadêmico).

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Projeto “Águias” – teve por objetivo, oportunizar aos alunos com bom
desempenho acadêmico, adquirir conhecimentos elaborados mais complexos, numa
perspectiva interdisciplinar, conforme as competências e habilidades que
apresentavam, possibilitando o avanço nas aprendizagens. Foi desenvolvido no período
de abril a dezembro de 2018, totalizando 15 (quinze) encontros. Atendeu alunos de 3º
e 4º anos, uma vez que se pretendeu maior consolidação dos saberes alcançados no
1º e 2º ano escolar. Nas reuniões de Conselho de Ciclo, analisou-se que o atendimento
ao 3º e 4º ano deveria sanar possíveis lacunas que poderiam ser preenchidas num
atendimento mais individualizado e, assim, propiciar a esses discentes, chegar ao 5º
ano, ainda mais preparados, com os conhecimentos, realmente, consolidados. Para a
participação no projeto, os alunos de todas as salas de 3º e 4º ano foram selecionados,
mediante rendimento e desempenho nas avaliações bimestrais. Montou-se duas
turmas, uma no período da manhã e outra no turno da tarde, tendo a média de 30 (trinta)
alunos por grupo. As aulas foram desenvolvidas em ambiente diferenciado ao da sala
de aula com mesas por agrupamentos de alunos, suporte de mídias digitais
(computador, internet, datashow, tela de projeção). Os encontros eram a cada 15
(quinze dias), com duração de 5 (cinco) horas/aulas, durante o horário de aula em que
o aluno estava matriculado. Os conteúdos eram trabalhados, por meio de sequência
didática, de forma interdisciplinar, tendo como princípio norteador oficinas de leitura,
como no formato da Escola Terra de Óz, desenvolvendo-se estratégias metacognitivas
para compreensão leitora com base na leitura literária. Os conteúdos e atividades eram
selecionados e planejados por uma professora da unidade escolar, em aulas que
complementavam a sua jornada de trabalho. Atendiam-se os componentes da base
curricular nacional: Língua Portuguesa (foco na leitura), Matemática (foco na resolução
de problemas), História, Geografia, Arte, Ciências, Enriquecimento Curricular, tendo
como subsídio, os documentos “Elementos conceituais e metodológicos para definição
dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento do ciclo de alfabetização (1º, 2º e 3º
Anos) do Ensino Fundamental” (BRASIL, 2012b) e no “Caderno de Apresentação do
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC” (BRASIL, 2012a). Ao
término de cada aula, era recolhida, pelo professor, a folha contendo os registros
individuais dos alunos para análise do desenvolvimento e apropriação do conteúdo para
devolutiva posterior. No encerramento de cada encontro, era feito pelo docente, um
registro escrito sobre o desenvolvimento da aula, constando considerações importantes
por parte dos alunos, bem como as necessárias intervenções posteriores com suporte
da equipe gestora da unidade escolar (direção e coordenação pedagógica), docentes

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das salas regulares e supervisora de ensino. Esse registro era compartilhado com a
equipe no intento de socializar as informações sobre o desempenho dos alunos. Como
avaliação de entrada, consideraram-se as provas bimestrais (componentes de Língua
Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciências, Enriquecimento Curricular) e
aplicação de uma reescrita de texto. Os alunos passaram por mais dois momentos de
avaliação (outubro e dezembro) a fim de avaliar e monitorar o desempenho dos
mesmos. Antes de iniciar o projeto, foi realizada reunião com os pais/responsáveis e
com os alunos, tendo o propósito de esclarecer sobre os objetivos, bem como de obter
ciência e a autorização, por escrito, dos pais/responsáveis. Ressalta-se que a razão do
público alvo deste projeto voltar-se aos alunos que apresentavam bom desempenho
acadêmico decorreu da percepção, em reunião de Conselho de Ciclo, de que, estes
discentes, em fase de consolidação de aprendizagem (3º e 4º ano), acabavam por não
ter oportunidades favorecedoras para ampliar os conhecimentos já adquiridos, por meio
de ensino e práticas mais complexas. Situação que feria o princípio da isonomia, pois,
ao se priorizar o atendimento aos alunos que apresentam dificuldades de
aprendizagem/baixo desempenho, não se percebia a real necessidade de práticas e de
um ensino mais desafiador aos alunos com bom desempenho.

Resultados e discussões:
 Por meio da análise e acompanhamento das atividades diárias, do
caderno de bordo e dos registros escritos sobre o desenvolvimento das
aulas, demonstraram que o desempenho dos alunos em leitura, escrita,
matemática e na atenção, obtiveram melhoras significativas. Foi possível
identificar, também, que as crianças desenvolveram e ampliaram
repertório de ideias e habilidades, considerando as especificidades de
cada um. Melhoraram o comportamento e o relacionamento interpessoal
com colegas, professores e demais profissionais da escola. Os
pais/responsáveis também sinalizaram a melhora comportamental e a
responsabilidade com os assuntos escolares, mantendo rotina de estudo,
reservando horário para as tarefas em domicílio e para a leitura dos livros
de literatura indicados pela professora do projeto. Passaram a se
responsabilizar e a se comprometer com os estudos e pesquisas.
Tomaram gosto pela leitura.
 Criação de um portfólio coletivo com imagens das aulas e da participação
dos alunos nas atividades, pois se considerou importante a avaliação da

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aprendizagem dos estudantes, onde o professor também foi
protagonista.

Considerações Finais
Quando direcionamos o olhar às singularidades e necessidades de cada criança
possibilitamos a ampliação do universo de referências culturais e das práticas de
letramento, em diferentes áreas de conhecimento, (BRASIL, 2012a)
Desta maneira, entendemos que refletir sobre a realidade e necessidade
educacional da escola podem definir caminhos para que o direito à educação assegure
o direito à aprendizagem. O ato de refletir, nesse sentido, precede o agir, em um
movimento contínuo de reflexão-ação-reflexão (FREIRE, 1983). Este processo, embora
complexo, quando integrado às ações metodológicas da escola, incorpora-se à prática
do professor permitindo a adaptação do currículo para atender as especificidades dos
alunos (ampliando, aprofundando e consolidando o seu aprendizado). Possibilita, ainda,
o acompanhamento do desempenho de cada criança, possibilitando mudanças na
prática pedagógica do professor.
Desta maneira, torna-se premente implementar ações com o propósito de
assegurar o direito de aprendizagem de todos os alunos (que apresentam, ou não,
dificuldade de aprendizagem).

É preciso que gestores de sistemas, de escolas, professores, de modo


mais objetivo, desenvolvam estratégias para melhorar e ampliar a
aprendizagem dos discentes e, consequentemente, a qualidade do
ensino.

Assim sendo, as práticas e metodologias desenvolvidas nos projetos aqui


apresentados procuraram possibilitar um olhar diferenciado, e o quanto pode mais
individualizado, trabalhando, inclusive, a autoestima dos alunos, valorizando-os como
sujeitos ativos e construtores do seu conhecimento, levando-os a descobrirem o
potencial que existe em si mesmos e o quanto suas ações refletem, inclusive, no
contexto social ao qual estão inseridos.
Em relação à leitura literária, é sabido que o Brasil sofre com a descontinuidade
de políticas públicas em torno da democratização do acesso aos livros e aos conteúdos
literários, promotores de uma formação leitora crítica e estrategista. A maioria das
crianças, em período de alfabetização, é cerceada da experiência literária.
Nossa análise é a de que o desenvolvimento de projetos específicos, mediante
a realidade do contexto escolar, tem sido positivo. Da mesma forma, quando a equipe
da escola se permite ressignificar/adaptar o currículo, incluindo a leitura literária nas
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práticas diárias de sala de aula, desenvolvendo estratégias de leitura para a
compreensão leitora, essa equipe poderá possibilitar a consolidação da alfabetização e
do letramento ativo ainda nas séries iniciais.
Ao promover momentos de deleite às crianças, oportuniza-se o gosto pela leitura
literária, desenvolvendo, além da leitura fluída e fruitiva, um olhar crítico acerca do
mundo. Criam-se condições favorecedoras da formação de leitores literários, capazes
de compreender o texto escrito e o contexto em que se inserem, como condição
essencial para o exercício da cidadania.
Não deixamos de ressaltar a importância de investimentos e políticas voltadas à
formação inicial (e continuada) do professor, pois ao proporcionar aos estudantes de
ensino superior presencial a oportunidade de vivenciarem o espaço escolar e a prática
pedagógica antes de sua formação, programas como o PIBID configuram-se, em nosso
entendimento, em um aliado na formação do professor para o incentivo às práticas que
envolvem a literatura na escola.

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____. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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A LITERATURA INFANTIL ALINHADA AO TRABALHO
INTERDISCIPLINAR: HISTÓRIA DOS PINGOS E AS SEMENTES

Caroline Elizabel Blaszko, UNESPAR- Campus de União da Vitória


Nájela Tavares Ujiie, UNESPAR- Campus de Paranavaí

Eixo Temático: 8. Literatura infantil e ensino

Introdução
A pesquisa ora apresentada traz reflexões sobre a importância da literatura
infantil para a formação do hábito da leitura e de novas aprendizagens. Evidencia a partir
de uma obra literária possibilidades de explorar a literatura infantil de maneira
interdisciplinar, promovendo a integração de conteúdos de diferentes disciplinas
contribuindo para a aprendizagem significativa.
Frente ao exposto a problemática que norteou esta pesquisa foi: Quais são as
possibilidades de trabalhar a obra literária “Os pingos e as sementes” de maneira
interdisciplinar no terceiro ano dos anos iniciais do ensino fundamental?
Neste intento a pesquisa buscou respaldo teórico nos estudos de Ujiie (2017),
Silveira et.al (2012), Kobashigawa et.al (2008), Faria e Dias (2007), Saraiva (2001),
Coelho (2000), Resende (1997), Bamberger (1977), entre outros. Nos anos iniciais do
ensino fundamental é de suma importância o contato com obras de literatura infantil, o
que justifica a relevância deste estudo, visto que vem demonstrar que os livros podem
ser explorados e trabalhados de maneira lúdica, prazerosa e interdisciplinar,
abrangendo, por exemplo, os conteúdos das disciplinas de português, matemática,
ensino de ciências, geografia, artes e educação física.
Em relação ao delineamento metodológico da pesquisa, está se configura como
levantamento teórico-bibliográfico visando efetivação prática. O artigo aborda no
primeiro momento conceituações e reflexões sobre a literatura infantil, a importância da
prática educativa lúdica e diversificada visando despertar no educando o desejo por
novas aprendizagens e num segundo momento contempla reflexões, possibilidades e
diversidades de atividades que podem ser desenvolvidas a partir do livro “Os Pingos e

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as Sementes” dos autores Mary França e Eliardo França, enfocando os seus contributos
para o desenvolvimento e aprendizagem das crianças em fase de escolarização.

Literatura Infantil e Interdisciplinaridade: conceituações e reflexões


Para Coelho (2000, p. 27): “A Literatura Infantil é, antes de tudo, literatura; ou
melhor, é arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida,
através da palavra”. Nesta perspectiva a autora ressalta que a Literatura Infantil tem
dupla função: 1) artística, a qual contempla o labor com a linguagem e entretém pela
mística lúdica que dela emana encantamento, e, 2) pedagógica, a qual ensina mesmo
que não tenha intencionalidade direta no ato criativo que a deu origem.
Neste sentido, a literatura infantil consiste em um caminho que contribui para
que a criança construa sentidos, significados e conhecimentos que podem ser levados
para o seu cotidiano. Assim, desde os primeiros anos do processo de escolarização é
importante que a criança tenha contato com as obras de literatura infantil, podendo
manusear os livros, observar as ilustrações, imaginar, viver emoções, criar e recriar a
história (FERREIRA e UJIIE, 2019).
Oportunizar o contato das crianças com os livros “[...] é cultivar nela uma relação
prazerosa, agradável e afetiva com o que ele veicula de valioso, em emoções e
fantasias, para a interioridade humana” (RESENDE, 1997, p.122).
Segundo Saraiva (2001, p. 23) a literatura infantil torna-se um recurso estratégico
que pode contribuir para os processos de leitura e escrita e “[...] a escola assume a
responsabilidade de iniciar a criança no processo de alfabetização e de, paulatinamente,
aperfeiçoar sua leitura”. A autora ainda enfoca que a literatura infantil contribui para a
integração do leitor ao meio sociocultural, conduzindo ao estabelecimento de relações
interpessoais e possibilitando inclusive à autocompreensão e a tomada de consciência
de si.
A literatura infantil “[...] surge como recurso pedagógico no processo
educacional, já que proporciona o contato com os mais variados conteúdos e
desenvolve na criança a sensibilidade, a atenção, a curiosidade e a ampliação da
linguagem e do vocabulário” (UJIIE, 2017, p. 97).
Conforme Silveira et. al. (2012, p. 15) é necessário apontar “[...] a estreita
relação entre a literatura infantil e o campo pedagógico e, de maneira mais ampla ainda,
entre as concepções de infância e os livros a ela endereçados, relação esta que se
concretizou historicamente de diversas formas”.

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Considerando a estreita relação entre literatura e o campo pedagógico, é
importante que os professores no contexto escolar proporcionem espaços para que os
alunos possam participar das práticas leitoras de maneira significativa. Para tanto é
necessário que “[...] se ofereça grande quantidade de leitura capaz de interessar e
deliciar os alunos, conduzindo não só a capacidade maior, mas também a um hábito
permanente de leitura” (BAMBERGER, 1977, p. 30).
Ainda segundo o autor supracitado, os professores no decorrer das aulas, devem
ministrar aos alunos “pequenas doses” da importância da leitura articuladas com
atividades criativas e interessantes, assim terão com naturalidade, despertado o gosto
pela leitura, a qual contribuirá consecutivamente para a formação intelectual, pessoal e
social dos alunos.

A literatura vem ao encontro das necessidades educacionais das


crianças ainda na infância criando novas expectativas a cada leitura. O
contato com a literatura infantil faz com que a criança de um salto em
sua aprendizagem, pois a concepção de mundo, o desenvolvimento da
imaginação e o emocional acontecem através dessa relação com a
literatura, sendo ela estimulada, em casa ou na escola. Assim, a
criança começa a criar seus próprios conceitos com relação ao mundo
e o ambiente que está inserida, aperfeiçoando o seu senso crítico e
vivendo novas experiências através imaginação, em um mundo aonde
tudo é possível: o mundo literário (FERREIRA e UJIIE, 2019, p. 118).

Muitas das obras da Literatura Infantil possibilitam um trabalho Interdisciplinar,


abrangendo diferentes áreas de Ensino, contribuindo direta ou indiretamente para a
explanação e construção de novos conhecimentos relevantes para mudança de
posturas em prol de um mundo melhor. Entre as diferentes áreas de ensino, destacamos
que é possível aliar a Literatura Infantil ao ensino de Português, Matemática, Artes,
Ciências, Geografia, História, Educação Física de maneira lúdica, prazerosa e efetiva.
Assim, a partir das obras literárias é possível trabalhar os conteúdos de maneira
interdisciplinar, sendo imprescindível o papel do professor como mediador e
responsável pelo desenvolvimento de práticas pedagógicas que contribuam para o
desenvolvimento dos educandos, para a estruturação dos conhecimentos, o
desenvolvimento da criatividade, da imaginação, da criticidade, do gosto pelo científico,
pela leitura de mundo e a formação de pessoas hábeis, capazes de fazer escolhas
responsáveis.

[...] a literatura infantil dá esse suporte de conhecimento, pois suas


obras são próprias para ampliar a criatividade, a interação social e o
desenvolvimento intelectual, aproxima o mundo da fantasia com o
mundo real sem perder sua essência, e pode contar com a contribuição

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da escola e do professor para que haja um contato maior com os livros
(FERREIRA e UJIIE, 2019, p. 120).

É importante o desenvolvimento de ações pedagógicas que incentivem, seduza


e envolva os alunos nas atividades interdisciplinares provocando encantamento e
desejo pela participação, realização de atividades e construção de aprendizagens.
Nesta perspectiva, é necessário o professor propor diferentes estratégias didáticas para
trabalhar os conteúdos e a leitura de maneira lúdica, criativa e interessante aos alunos.
Ao tratar sobre as estratégias de leitura Girotto e Souza (2010) elencam várias,
dentre elas: a ativação de conhecimentos prévios pertencentes ao mundo do educando,
as conexões que são relações possibilitadas pelo diálogo com o texto, a visualização
que é a possibilidade de inferir por imagem mental entendimentos, os questionamentos
que são indagações interpretativas, a inferência que é a reflexão indagativa da leitura
composta por previsões e conclusões, a sumarização que é o alcance das ideias
centrais, a essência do texto, e por fim, a síntese que exprime a correlação
compreensiva, compilando via modelagem a informação e o pensamento, ápice
interpretativo.
Vale ressaltar que o trabalho com os conteúdos de maneira interdisciplinar “[...]
exige do professor primeiramente o conhecimento desta prática, para somente após
isso, construir uma ação pedagógica capaz de fazer relação entre as áreas do
conhecimento” (SOARES, 2014, p. 42). Evidencia-se a importância dos professores
buscarem conhecimentos, compreendendo a interdisciplinaridade como abordagem
pedagógica e estratégia de ação docente. O professor deve buscar compreender o que
é a interdisciplinaridade e por conseguinte alinhar seus conhecimentos englobando os
conteúdos que são apresentados pela proposta curricular nos níveis que leciona e as
atividades didático-pedagógicas.
Pontuamos a partir de nossas pesquisas que as obras de literatura infantil são
molas propulsoras da ação interdisciplinar, uma vez que as tomando como ponto de
partida é possível elaborar sequências didáticas com os conteúdos articulados de modo
interdisciplinar. Segundo Kobashigawa et.al. (2008) a construção de sequências
didáticas, consiste em um conjunto de estratégias, intervenções e ações planejadas
detalhadamente pelo professor visando contribuir para a aprendizagem dos conteúdos
trabalhados pelos alunos.
De acordo com Faria e Dias (2007, p. 113) as sequências didáticas ou sequência
de atividades como as autoras nominam, “[...] podem envolver experiências diversas e
conhecimentos de diferentes áreas” o que favorece a construção do conhecimento e a

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ampliação do repertório constitutivo de saberes aos envolvidos na ação pedagógica que
compartilhe deste delineamento didático-pedagógico.
Com relação às sequências didáticas, importante destacar que são guiadas por
uma temática, por objetivos e aprendizagens a serem alcançados pelos alunos. Assim,
podem abranger ações educativas lúdicas, diversificadas envolvendo os conteúdos de
maneira interdisciplinar.

Literatura Infantil e Prática Pedagógica Interdisciplinar


Buscando demonstrar a possibilidade de trabalhar uma obra de literatura infantil
de maneira interdisciplinar, apresentamos uma sequência didática com base na história
dos pingos e as sementes. Neste trabalho a proposta didática está direcionada aos
alunos do terceiro ano do ensino fundamental anos iniciais, mas vale ressaltar que o
livro pode ser trabalhado nos diversos níveis de ensino e desde que as atividades sejam
adaptadas considerando o nível de desenvolvimento da criança.
Na tessitura do trabalho apresentamos no quadro que segue uma breve síntese
da obra literária, conteúdos e atividades articulados de modo interdisciplinar.

Quadro 1: Sequência Didática: Os Pingos e as Sementes

Livro: Os Pingos e as sementes – Mary & Eliardo França

Breve Sinopse da História: Destaca o tempo de plantar, as diferenças entre sementes. Os


cuidados com preparo do solo, adubação para posterior plantio. A importância do sol e da
água para crescimento e desenvolvimento e produção dos alimentos. Produção de alimentos
e a nutrição com base na alimentação saudável.

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Disciplinas Conteúdos Sequência Didática
Ensino de - Meio ambiente; 1. Possibilitar aos alunos o contato com livro
Ciências -Tipos de sementes e Os pingos e as semestres;
seus respectivos 2. Leitura Oral/ Contação e discussão da
alimentos. história;
- Plantio, cultivo e colheita 3. Dialogar sobre o plantio e a colheita
dos alimentos; alimentos;
- Solo; 4 Pode ser realizado inclusive a experiência do
- Água; plantio da semente do feijão no copo com
- Sol; algodão;
- Vento;
- Tipos de adubação do
solo;
- Alimentos;
- Cenoura, milhos,
vitaminas e benefícios à
saúde.
- Higiene alimentar;
-Possibilidade de plantio 5. Construção de uma horta artificial para
e consumo dos próprios brincar de faz-de-conta;
alimentos.

Português -Contação de história


-Leitura
-Produção textual

6.Trabalhar as cores dos alimentos, as cores


primárias, secundárias e terciárias;
7. Com tintas guaches possibilitar que os
alunos façam misturas de cores, formando
novas cores que podem ser usadas para

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Educação - Brincar de faz-de-conta colorir desenhos realizados pelos alunos
Física - Caminhada orientada relacionado a história trabalhada;
(estudo do meio)
- Movimento consciente
- Esquema corporal
- Coordenação Dinâmica
Global
- Atividade Rítmica
8. Realizar estudo do meio em espaço
geográfico fora da sala de aula: visita a horta;
9. Criação de uma horta na escola, escolher
um espaço e demonstrar como preparar o solo
para o plantio, em seguida plantando as
sementes ou mudas.

Matemática - Classificação e
seriação.
- Cálculo do tamanho dos
10. Comparar tamanho das sementes, por
canteiros para plantio das
exemplo entre semente de milho e cenoura;
sementes.
- Cálculo número de
sementes plantas.

Geografia - Estudo do Meio (aula


passeio na Horta);
- Leitura do espaço
geográfico de
pertencimento 11. Medir e realizar o cálculo do tamanho do
canteiro;
12. Realizar cálculo do número das sementes.

Artes - Cores primárias,


secundárias e terciárias;
- Fazer artístico (horta
artificial, desenhos,
fantoches de vara e teatro
de reconto);
13. Acompanhar o processo de crescimento
das plantas e a produção dos alimentos;
14. Após o milho crescer e produzir, colher
junto com os alunos e realizar procedimentos
adequados de higiene.

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15. Colher o milho e com auxílio do professor
realizar o cozimento e consumo;
16. Pode-se explicar que com o milho e
realizado a polenta;
17. Trabalhar a atividade rítmica música: “La
bela polenta”
18. Estimular as crianças a produzir os
fantoches;
19. Teatro: Alimentação Saudável

20. Estimular as crianças a fazerem registros


escritos sobre os alimentos e personagens
que fazem parte da história (produção textual).
21. Síntese integradora: convite de outra
turma da escola para visitar a horta e
conversar acerca das aprendizagens
construídas
Fonte: Organização das autoras.

Ressalta-se que a partir do livro e da literatura infantil, podem ser desenvolvidas


diversas atividades educativas e pedagógicas diversificadas que contribuam para o
desenvolvimento e aprendizagem dos alunos. Dentre as atividades que podem ser
desenvolvidas com base no conteúdo de um livro infantil Ujiie (2017, p. 98) destaca “[...]
manipulação do alfabeto móvel, bingo das letras, rimas, parlendas, trava-línguas,
adivinhas, fórmulas de escolha, jogos simbólicos, jogos dramáticos, músicas,
brincadeiras cantadas, forca, roda sequenciada, construção do enredo, teatro da leitura,
dentre outras atividades”. Algumas proposições evidenciamos no quadro acima, outras
deixamos em aberto para planejamentos futuros.

Considerações Finais

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Constatou-se que a literatura infantil contribui para despertar nos alunos dos
anos iniciais do ensino fundamental o interesse pela leitura, o hábito de ler e
aprendizagem significativa nas mais diversas áreas do conhecimento.
O trabalho pedagógico com obras literárias pode ser mola propulsora da ação
interdisciplinar no âmbito da sala de aula, podendo enriquecer o processo de ensino e
oportunizar aos educandos aprendizagens significativas. A partir da história “Os Pingos
e as Sementes” elaboramos uma sequência didática ilustrativa da ação pedagógica no
campo do ensino da língua portuguesa, da matemática, das ciências, da geografia, das
artes e da educação física, de maneira interdisciplinar, lúdica e prazerosa.
Ressalta-se que as sequências didáticas tornam-se aliadas para a construção
de ações educativas significativas, congregadoras de aprendizagens de diversas
naturezas e matrizes do conhecimento.
Evidencia-se que as atividades pedagógicas desenvolvidas a partir de uma
determinada obra da Literatura Infantil precisam estar adequadas ao nível de
desenvolvimento do educando, articuladas aos seus saberes prévios e o professor
precisa ter objetivos e intencionalidade visando contribuir para que os alunos possam
progredir em suas aprendizagens.

Referências

BAMBERGER, Richard. Como incentivar o hábito da leitura. Tradução de Octavio


Mendes Cajado. SP: Cultrix,1977.

FARIA, Vitória Líbia Barreto de; DIAS, Fátima Regina Teixeira de Salles; O currículo
na educação infantil: diálogo com os demais elementos da proposta pedagógica.
São Paulo: Scipione, 2007.

FERREIRA, Alessandra Ap. Barbosa; UJIIE, Nájela Tavares. Aulas de Literatura


Infantil nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental: a experiência do município de União
da Vitória-PR. In: JUNGES, Kelen dos Santos; ANSAI, Rosana Beatriz. A Pesquisa
no Curso de Pedagogia: disseminando e compartilhando conhecimento. Curitiba-
PR: CRV, 2019, p. 113-127.

GIROTTO, Cyntia Graziella Guiselim Simões; SOUZA, Renata Junqueira de.


Estratégias de leitura: Para ensinar alunos a compreender o que leem. In: SOUZA.
Renata Junqueira de (org.). Ler e Compreender: estratégias de leitura. Campinas,
SP: Mercado de Letras, 2010, p. 45-114.

KOBASHIGAWA, Alexandre H. ; ATHAYDE, Beatriz A. C. de Castro; MOZENA, Erika


R.; BORGES Rita de Cássia P.; FALCONI, Simone. Estação ciência: formação de
educadores para o ensino de ciências nas séries iniciais do ensino fundamental. In: IV
Seminário Nacional ABC na Educação Científica. São Paulo, 2008, p. 212-217.

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RESENDE, Vânia. Literatura infantil & juvenil: vivências de leitura e expressão
criadora. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

SARAIVA, Juracy Assmann. A situação da leitura e a formação do leitor. In J. A.


Saraiva (Org.), Literatura e alfabetização: do plano do choro ao plano da ação. Porto
Alegre: Artmed, 2001, p.23-27.

SILVEIRA, Rosa Hessel [et.al] A diferença na literatura infantil: narrativas e leituras.


São Paulo: Moderna, 2012.

SOARES, Adriane de Fátima da Luz. Sequência didática como estratégia de


ensino interdisciplinar: uma experiência com alunos deficientes intelectuais.
Dissertação. Ponta Grossa-PR: UTFPR, 2014.

UJIIE, Nájela Tavares. Literatura infantil e a ação educativa: a arte de contar histórias
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O PNLD/LITERÁRIO 2018 NAS ESCOLAS DA REDE MUNICIPAL
DE JOÃO PESSOA: SELEÇÃO E DISTRIBUIÇÃO

Ana Magally Pereira de Freitas (UFPB)


Israel Niwton da Costa Pereira (UFPB)
Daniela Maria Segabinazi (UFPB)

Eixo Temático: GT 8: Literatura infantil e ensino.

Contextualização da pesquisa
O presente trabalho tem por objetivo apresentar os dados recolhidos na pesquisa
de iniciação científica Da seleção ao ato de ler: os livros do Programa Nacional do Livro
Didático e do Material Didático (PNLD/LITERÁRIO 2018), no tocante a seleção e
distribuição das obras nas escolas de rede municipal do Município de João Pessoa-PB,
que ofertam os anos iniciais do Ensino Fundamental. Nesse sentido, a pesquisa
aconteceu a partir da coleta de dados quantitativos por meio de um questionário
realizado com os professores em oitenta (80) escolas da rede, dentre as 88 instituições
distribuídas em 9 polos, entre os meses de setembro de 2019 e interrompida em março
de 2020, em razão do isolamento social imposto pela pandemia da COVID-19. Logo,
apesar da pesquisa não envolver a totalidade de escolas foi possível coletar dados
quantitativos significativos para a análise qualitativa e avaliação desses resultados.
Assim, a partir de leituras e estudos sobre políticas públicas de leitura, avaliação
e seleção de obras elaboramos o questionário que serviu de instrumento para a
captação de dados durante as visitas, questionário esse que foi respondido de maneira
não obrigatória pelos professores que participaram do processo de escolha e seleção
das obras do programa. Além disso, recolhemos também de maneira não obrigatória,
os documentos (atas de escolhas, comprovante de indicação das obras, e arquivos de
registros de escolha) de registro dessas escolhas com a direção de cada escola, assim
como permitia a autorização nos dada pela prefeitura. Com isso, obtivemos 169
questionários respondidos e 29 documentos de registro, porém, apenas 26 documentos

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foram considerados relevantes para a coleta de dados, isso porque os demais estavam
com informações incompletas.
Após quatro meses de coleta de dados, leituras bibliográficas e encontros
semanais com o grupo de pesquisa em questão, começamos a análise dos dados, que,
inicialmente, foram organizados em tabelas, gráficos e planilhas. Os dados recolhidos
no questionário estavam relacionados no que diz respeito a orientação recebida para o
processo de escolha; a divulgação do programa no âmbito escolar, a forma como
ocorreu o momento da escolha e seleção das obras literárias; e a existência de
bibliotecas nas escolas visitadas. Além disso, com o apoio dos documentos apanhados
nas escolas, conseguimos obter os resultados das obras mais escolhidas para cada ano
da primeira fase do ensino fundamental, tanto no que diz respeito ao acervo destinado
a biblioteca escolar, quanto as obras destinadas para o aluno, que são os casos do 4º
e 5º ano do Ensino Fundamental.
Diante disso, apontamos alguns questionamentos que nos acompanham desde
o início da pesquisa: quais os critérios de seleção para as escolhas das obras literárias
o programa em questão utilizou? A partir de quais critérios e auxílios teóricos ou não os
professores se apoiaram para fazer a escolha das obras literárias? O processo de
seleção na escola foi bem orientado? Como essas obras chegaram até a escola e,
respectivamente, aos alunos? E, por fim, por que, mesmo com a inserção de programas
e projetos de fomento à leitura ainda existe um grande déficit de formação de leitores
no país, como aponta os dados do Instituto Pró-livro (2016), no qual afirma-se que 73%
da população gosta de ler, mas apenas 56% são leitores? Frisando que esse resultado
não significa 56% de alunos leitores.
Para a discussão dssas e outras questões ao longo da pesquisa, nos
debruçamos sobre os documentos oficiais ofertados pelo Programa, o edital e o guia
online, e também sobre aportes teóricos que abarcam tais temas. Ressaltamos que o
guia online, disponível na página https://pnld.nees.com.br/pnld_2018_literario/inicio, foi
uma referência fundamental para essa discussão, especialmente porque foi o principal
documento de orientação e informação para o processo de escolha dos títulos das obras
a ser realizada pelos professores. Além disso, como dissemos, os estudos e leituras
teóricas de Bajour (2012Colomer (2007; 2017); Gladys (2003); Paiva (2012; 2012); entre
outros autores, foram essenciais para a análise dos dados aqui apresentados.

Etapas de seleção das obras

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No que diz respeito a seleção das obras literárias no PNLD Literário 2018,
podemos afirmar que elas foram feitas em duas etapas: a primeira, com dois momentos,
foi realizada pelo programa PNLD/LITERÁRIO do Ministério da Educação (MEC), a
partir das inscrições feitas pelas editoras e triagem do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE) em acordo com as normas do edital, e,
posteriormente, as avaliações aprovadas no FNDE seguem para a equipe de avaliação
do programa e se realiza a partir dos critérios da avaliação pedagógica elencados no
guia online e respaldados também pelo edital. A segunda etapa é realizada pelos
professores das escolas, a partir da leitura dos títulos e das resenhas das obras,
disponibilizadas no guia online (disponível também em PDF), além de outras
informações como categoria, tema, gênero e autores também expostas no guia.
Destacamos essas etapas porque são essenciais para compreender todo o
processo da seleção até o livro chegar à escola, nas mãos dos professores e alunos; e
que antes passa pela distribuição, realizada pelo FNDE para todas as escolas do Brasil.
Ainda, porque nessa cadeia são muitos sujeitos envolvidos na avaliação e seleção, bem
como são muitos e variados os critérios usados, que ora já estão especificados no guia
online e ora são parâmetros dos docentes em cada escola. Desse modo, como
dissemos, alguns critérios para a escolha dos livros foram estabelecidos pelo programa
ao avaliar o conjunto de obras que compõe o guia online, tanto para o momento da
inscrição por parte das editoras interessadas, quanto para a avaliação dessas obras
inscritas. Assim, no primeiro momento da primeira etapa, para as inscrições, foi
necessário que as editoras indicassem a categoria das obras, isto é, a qual nível escolar
estava destinada, uma vez que o PNLD/LITERÁRIO 2018 atendeu ao alunado da
Educação Infantil, aos anos iniciais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Além
disso, precisaram designar a temática, o gênero e o idioma da obra em questão, uma
vez que o programa também selecionou obras em língua inglesa.
Quanto a temática, o edital sugeriu temas de acordo com adequação às
categorias, as quais estão relacionadas aos anos das turmas. No que diz respeito aos
anos iniciais, elas foram divididas entre duas categorias: para a categoria 4 eram
destinadas obras para o1º ao 3º ano e para a categoria 5 livros para o 4º e o 5º ano. No
que se refere ao ao gênero literário, foram selecionados sete, classificados e divididos
em: a) poema; b) conto, crônica, novela, teatro, texto da tradição popular; c) romance;
d) memória, diário, biografia, relatos de experiências; e) obras clássicas da literatura
universal; f) livros de imagens e livros de histórias em quadrinhos; e g) livro-brinquedo.
Outro critério bastante relevante e que gerou muitas críticas ao programa se relaciona

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às especificações do material que compõe o projeto gráfico da obra, ou seja, elementos
paratextuais como capa, folha, acabamento e formato do livro. Esse critério foi avaliado
na primeira triagem de seleção, já no ato da inscrição pelo FNDE.
No segundo momento, ainda da primeira etapa, ou seja, o da avaliação das
obras por parte da equipe de avaliação do programa, as obras passaram por dimensões
de critérios, divididos em: 1. Qualidade de texto; 2. Adequação de categoria, de tema e
de gênero literário, 3. Projeto gráfico-editorial, e 4. Qualidade do manual do professor
digital. Contudo, esse último, foi considerado um material facultativo para o PNDL
Literário 2018, como mencionando no Edital: “4.2.1. O material digital de apoio ao
professor é facultativo e sua avaliação não condiciona a aprovação ou a reprovação da
obra impressa à qual esteja vinculado.” (BRASIL, 2018, p. 2), logo, nesse quesito só
seria avaliado se houvesse a inscrição desse material por partes das editoras.
Dentre os critérios utilizados pelo programa, é possível percebermos algumas
restrições e incongruências que alguns possuem; por exemplo, aqueles ligados a
questão temática, ao gênero e também ao material gráfico. Em relação ao material
gráfico ou projeto editorial e gráfico do livro, o Edital delimita e estabelece um formato
único para as obras ao definir os atributos físicos nas especificações técnicas das obras
no Anexo II, como formato, papel para a capa e miolo e acabamento do livro, o que
compromete a leitura e a fruição estética da obra. Ademais, muitas obras não podem
ser adaptadas e adequadas às exigências do Edital, pois correm o risco de perder
elementos essenciais para os sentidos do texto, bem como perdem em qualidade na
experiência leitora com o objeto livro, em que o material usado na escolha da folha ou
o tamanho e formato do livro instituem protocolos de leitura que ampliam a compreensão
e interpretação da obra. Como afirma Colomer,

Os elementos materiais de alguns livros infantis apresentam


características particulares. Pode ser que estes aspectos obedeçam
simplesmente a critérios de publicação editoriais. Mas pode ocorrer
que tenham sido escolhidos para contribuir à interpretação da obra em
estreita interdependência uns com os outros. (COLOMER, 2017, p.
272)

Como podemos constatar, o projeto gráfico foi abalado pela imposição e


obrigatoriedade que o Edital determinou para a concorrência. Lamentavelmente é
possível que muitas obras deixaram de concorrer em razão dessa restrição e prescrição
do Edital.
No tocante a questão temática, segundo Bajour (2012), podemos entender que
trazer o tema como um critério no momento da seleção de um livro literário, pode vir a

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comprometer o processo de ensino da formação leitora, tendo em vista que, se o
assunto existente na obra for o foco da escolha e/ou mediação, a literatura será
substituída pela predominância da ação didática, impedindo o aluno de ampliar seu
repertório estético, literário, artístico e muitas vezes linguístico.
Isso porque quando se prioriza a temática, o que está se priorizando, na verdade,
é o assunto que ela traz e a mensagem que pode ser transmitida dela, como por
exemplo, o bullying, as questões éticos-raciais, formação da família, etc., e com isso
está se deixando para trás o que realmente importa em uma boa mediação da leitura e
em um processo de escolha e seleção: a própria literatura. É claro, é possível debater
sobre esse e outros assuntos que venham a surtir em algum momento da leitura, até
porque a literatura traz diversas possibilidades de ver o outro, a sociedade, as
mudanças, e afins, porém, esse não deve ser o foco principal quando estamos
mediando uma leitura, ou quando estamos ensinando sobre literatura. A temática é
apenas uma das possibilidades dentro dela, e como critério não pode avaliar se
determinada obra é de boa qualidade literária ou não, como critério, ela exclui a
literatura.
Quanto ao gênero, a limitação acontece no instante em que eles são misturados
e categorizados em grupos, trazendo duas possíveis consequências. A primeira, diz
respeito a própria literatura, uma vez que, por exemplo, trazer as histórias da tradição
popular como “texto da tradição popular”, corre o risco de se estar reduzindo a
importância e a vastidão que possui esse gênero, pois podemos encontrar contos, mitos,
lendas, poemas que trazem esses tipos de narrativas. Diante disso, como podemos
simplificar e substituir a existência de todos esses gêneros pela palavra “texto”?
Passando à segunda etapa da seleção, realizada pelos professores, de acordo
com o Edital e o guia online, os docentes eram os responsáveis por escolher os livros
que seriam destinados ao acervo da biblioteca e ao acervo destinado aos alunos. Esse
processo ocorreu entre os dias 18/10/2018 a 31/10/2018, e foi feito junto com os outros
professores, uma vez que os livros não poderiam ser repetidos entre os anos, ou seja,
os livros escolhidos para o alunado do 1º ano não poderia ser escolhido para o alunado
do 2º e 3º ano, etc. e vice-versa.
O acesso às obras, previamente selecionadas pela equipe de avaliação do
MEC, só foi possível via a leitura do guia online ou em PDF para download; ainda assim,
delimitado por leituras de resenhas, visão da capa do livro e informações provenientes
do filtro que a página permitia, como podemos verificar na figura a seguir:

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Figura 1 – imagem da tela do guia online

Fonte: Disponível na página https://pnld.nees.com.br/pnld_2018_literario/etapa-ensino/2018-


literario_ensino_fundamental

Além dessas informações, o guia esclarecia e orientava o processo de seleção


e avaliação das obras antes de serem distribuídas, o que poderia ter proporcionado uma
ampliação de conhecimentos e esclarecimentos para quem o leu por completo,
qualificando melhor a seleção das obras por parte dos professores.
Outrossim, o guia indicava também o passo a passo de como fazer a escolha no
próprio sistema, integrando também as normas de conduta que garantiam a integridade
do processo, trazendo assim, o que seria uma obrigação e uma proibição às escolas.
Como exemplo de obrigação estava o sigilo sobre os dados de acesso ao sistema de
registro de escolha, e como proibição era vedada a aceitação de qualquer presente,
brinde ou permissão de visitas de representante das editoras que estavam participando
do programa.
Explicitadas as etapas do programa, passamos para algumas considerações a
partir do levantamento de dados do questionário aplicado nas escolas e que são uma
pequena amostra das respostas dos docentes sobre suas escolhas.

A seleção dos professores: critérios e orientações


Para as discussões e análises que trazemos aqui, partimos de algumas
respostas dos professores ao questionário, o qual continha as seguintes questões
concernentes ao processo de seleção na escola: a) Para a avaliação e escolha dos
títulos você recebeu algum tipo de orientação? b) Quem o/a orientou? c) Quais
orientações recebeu? Descreva dando detalhes. d) Como se deu a escolha dos títulos
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(obras literárias) do PNLD 2018? Além de suas considerações pertinentes para este
questionamento, responda indicando: Se seu julgamento foi individual ou em conjunto;
ou quais critérios foram observados nas avaliações e seleção dos títulos. e, por fim e)
Quais obras você selecionou para sua(s) turma(s)? (Indicar os títulos selecionados,
opção dos títulos, ano e turma em que serão trabalhados).
Outras limitações aconteceram durante o processo de escolha por parte dos
professores, como por exemplo, a respeito dos critérios que eles utilizaram. Na análise
dos dados que obtivemos, pudemos chegar aos seguintes resultados: 70% dos
professores escolheram o critério “faixa etária”, 31% pela temática das obras, 23% pelo
título/autor, 20% pelo guia online, 19% pelo projeto gráfico, 18% pelas ilustrações, 15%
não respondeu à questão, 14% por gênero, 13% deram outras respostas, como por
exemplo, tamanho de letra, texto fácil/simples, etc., e 12% pelo conteúdo.
Dentre os critérios expostos, podemos perceber que a maior parte dos
professores optaram pelo critério faixa etária, no entanto, como já foi apresentado, o
próprio programa já fazia essa divisão por categorias, por esse motivo, alguns
questionamentos surgem, como por exemplo, será que os professores receberam as
orientações adequadas para esse processo? Será que leram o guia online antes de
fazerem a seleção? Quanto as temáticas, também já discutimos a sua limitação diante
da obra literária, e neste caso, ela não muda quanto as suas possíveis problemáticas.
Da mesma maneira se aplica ao critério gênero, que também já foi discorrido quanto
aos seus conflitos.
Passando ao critério projeto gráfico e ilustrações, esses, não eram possíveis de
ocorrer segundo as informações encontradas no guia, uma vez que para se fazer essa
análise seria necessário ter acesso a leitura integral da obra, e também tê-la de maneira
física, pois, como seria possível analisar as ilustrações a partir da resenha
disponibilizada no guia? Ou observar seu projeto gráfico pela foto da capa do livro? Além
desses critérios não possíveis, outros se destacam de maneira não menos problemática,
como por exemplo, a escolha pelo título/autor e pelo conteúdo da narrativa, o que no
primeiro, não garante a qualidade literária e nem estética da obra e, no segundo, ocorre
a anulação da literatura em relação ao ato didático do ensino pedagógico. Para Gladys
(2003)

[...] Deve-se buscar que os livros que chegam as mãos das crianças e
dos jovens, permita-os ampliar suas fronteiras pessoais, enriquecer
seu mundo interior, adquirir melhores elementos para se relacionar
com o mundo que os rodeia, ao mesmo tempo que cultivem neles um
bom gosto pelo estético e literário. (p. 75. Tradução nossa).

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Ou seja, o ato do selecionar não deve ser feito acerca de deduções, ou
propósitos que se distanciem do literário, porém, apesar das orientações
disponibilizadas para auxiliar os professores no processo de escolha, podemos
perceber diante do exposto que os critérios utilizados para esse momento divergem do
que foi sugerido pelo programa.

Distribuição das obras


No edital, algumas regras são postas quanto ao processo de distribuição, como
por exemplo, a taxação de multas por atrasos dos editores, gerando, por esse motivo,
a suspensão da participação na edição seguinte do programa (BRASIL, 2018). Além
disso, outras regras são expostas na clausula destinada a distribuição, inclusive a
observação de que, as escolas que não participaram do processo seletivo receberiam
as obras mais escolhidas do seu polo.
Com a função de substituir o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), o
PNLD/Literário 2018 contou com uma equipe vasta para o processo de seleção e
avaliação das obras inscritas pelas editoras. Tal equipe era composta por profissionais
das áreas de linguística, literatura e educação, e se dividiram em: coordenação
pedagógica, coordenação adjunta, equipe responsável pela avaliação de recursos e
comissão técnica. As obras inscritas pelas editoras passaram por cada grupo avaliativo,
com o objetivo de que houvesse uma boa seleção e distribuição de livros literários, que
viessem a contribuir na formação leitora dos alunos de escolas públicas de educação
básica (Educação Infantil, anos iniciais do Ensino Fundamental e Ensino Médio), de
instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas.
O programa, é executado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE) e pelo Ministério da Educação (MEC), optou pela distribuição em
categorias. Nas categorias aqui discutidas, de acordo com o guia online, tiveram o
seguinte indicativo para a seleção e posterior distribuição: Categoria 4: 35 obras
literárias por turma, para compor o acervo destinado a sala de aula, e na categoria 5: 50
obras para compor o acervo da biblioteca, além de 2 obras para cada aluno. Essas
obras deveriam ser distribuídas de acordo com o número dos alunos, e deveriam ser
reutilizadas nos anos subsequentes até a próxima seleção. Além disso, segundo o guia
“Os professores também receberão os mesmos exemplares dos livros destinados aos
alunos para conduzir as atividades pedagógicas.” (BRASIL, 2018, p.22)
Diante do exposto, é possível perceber que houve uma preocupação por parte
do programa no que diz respeito ao processo de seleção e avaliação dos livros literários,

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no entanto, apesar disto, constatamos em nossas visitas às escolas, que não houve
uma preocupação em fiscalizar a coerência entre os livros selecionados e os recebidos,
nem se houve a entrega dos livros destinados aos professores, e, principalmente, se os
livros recebidos foram retirados das caixas e se estavam sendo utilizados. Isso porque,
distribuir livros não garante uma melhor educação literária, nem muito menos garante a
construção da formação leitora e a inserção do aluno ao hábito da leitura. Assim, como
afirma Paiva (2012):

Quando não se investigam a visibilidade, o grau de conhecimento, a


capilaridade dessas políticas no chão da escola, desconsiderando em
que medida e de que maneira esses materiais são recebidos e usados
pelos profissionais da escola, esvazia-se uma ação que poderia
repercutir enormemente no processo de formação de leitores. Desse
modo, nossa primeira iniciativa deve ser a divulgação da política e a
insistência cotidiana para que os profissionais responsáveis pelo
processo de formação de leitores dela se apropriem. (2012, p. 17)

Dessa forma, é valido ressaltar também a importância de um acompanhamento


e fiscalização por parte do programa, não somente durante o período das escolhas das
obras nas escolas, mas também em um momento posterior, afim de não só observar se
as obras chegaram e estão sendo utilizadas, mas também quanto a recepção dos
alunos com essas obras, uma vez que todo esse processo investigativo pode servir
como respostas ao programa, bem como saber se foram alcançados os objetivos
iniciais, e se esses foram positivos ou não. Além disso, tal analise pode servir também,
de norte para os futuros editais do PNLD Literário.
No tocante à prazos, o programa não estabeleceu um tempo determinado para
a entrega desses livros nas escolas. No entanto, apesar disso, acreditava-se que pelo
fato do processo ter ocorrido em 2018, a distribuição feita pelo FNDE ocorreria em 2019,
tendo em vista também, que a intenção seria de que esses livros fossem utilizados em
um período de 4 anos, ou seja, só seriam substituídos em 2022. Mas, em nossas visitas
às escolas percebemos que a maioria delas ainda não tinham recebido nenhum livro no
final do ano de 2019, somente algumas delas tinham recebido livros avulsos. Ao
iniciarmos nossas visitas no início do ano letivo de 2020, percebemos que os livros
estavam chegando, apesar de boa parte deles ainda estarem dentro das caixas, e/ou
nas bibliotecas quando deveriam estar em sala de aula. Sobre esses dados pudemos
obter os seguintes resultados ao final de nossas visitas201: 54% das escolas tinham
recebidos os livros, 33% ainda não haviam recebido e 13% não souberam informar.

201
As visitas às escolas ocorreram entre o final de setembro de 2019 a 17 de março de 2020,
com exceção dos meses de dezembro e janeiro, totalizando assim, um período de 4 meses.
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Esses dados podem ter sido alterados, tendo em vista que os livros podem ter
chegado depois do momento em que visitamos as escolas, e/ou, depois da interrupção
das visitas. Contudo, ainda assim podemos perceber diante das informações expostas,
que ocorreu atraso por parte do programa, e que boa parte das escolas só receberam
os livros em 2020.
No entanto, nos cabe uma última reflexão: quem poderíamos apontar como
responsáveis, e quais consequências possíveis poderia ocorrer devido aos atrasos de
distribuição por parte do programa? Será que isso poderia culminar em uma
desestimulação e/ou uma queda de credibilidade da comunidade escolar quanto aos
programas de políticas públicas de fomento à leitura do nosso país? Esse poderia ser
um outro problema a ser observado?

Considerações finais
Para Chambers (2007) toda boa leitura começa por uma boa seleção, e toda
seleção depende do que se tem disponível para escolher, logo, trazendo essa ideia para
esta discussão, podemos dizer que o ato da seleção carrega em si não só a
responsabilidade do que se vai escolher, mas também, carrega a responsabilidade do
que tal escolha vai proporcionar. Por esse motivo, quanto mais possibilidades
disponíveis de escolha e de busca por melhores resultados, mas eficiente será todo o
processo de escolha e seleção.
Durante o percurso de toda pesquisa, pudemos perceber que os fatores que
contribuem para a perpetuação dos conflitos e das problemáticas existentes no
programa, circundam a falta de uma boa organização e fiscalização por parte dele, bem
como, a preocupação de não só selecionar e distribuir, mas também de buscar saber
como esses livros estão sendo recebidos e utilizados nas escolas. Dessa forma, o dever
de fiscalizar, acaba se tornando também o de aprender, o de renovar e o de buscar
respostas e soluções para ações futuras.
Da mesma maneira, acontece com os membros da escola, neste caso, a direção
e os professores, que necessitam de uma formação adequada para um processo de
escolha e seleção, como também precisam ter disposição, entendendo que sempre
haverá dificuldades e obstáculos durante processos como esse. Além de, ser necessário
possuir um bom aparato teórico e literário:

Falo de uma escuta alimentada com teorias, já que para reconhecer,


apreciar e potencializar os achados construtivos se torna produtivo o
manejo de alguns saberes teóricos por parte do mediador. Não me
refiro à teorização como uso de terminologias ou discursos específicos

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da teoria literária ou da retórica da imagem como etiquetas “corretas”
de achados interpretativos. (BAJOUR, 2012, p.49)

Por fim, é válido refletirmos também a respeito das limitações existentes durante
todos os processos seletivos, isto é, desde a inscrição das obras no programa, até o
processo que ocorre nas escolas, tendo em vista que a padronização gráfica, por
exemplo, não só impossibilita a ampliação de um bom repertório de leitura, como
também limita a formação do sujeito leitor, e/ou uma seleção sem bons critérios, que
não só perpetua erros, como também perpetua a ideia de que “leitura não é para todos”.

Referências
BAJOUR, Cecília. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura.
Tradução: Alexandre Morales. Editora Pulo do Gato. São Paulo, 2012.

BRASIL. Edital PNLD Literário. Ministério da Educação. Fundo Nacional de


Desenvolvimento da Educação. Programa Nacional do Livro e do Material Didático –
Literário. Disponível em: < https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-
do-livro/consultas/editais-programas-livro/item/11568-edital-pnld-liter%C3%A1rio>
Acesso em: 20 de abril de 2020.

_______. Guia literário PNLD 2018 LITERÁRIO: Ensino Fundamental. Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação. Ministério da Educação. Disponível em: <
https://pnld.nees.com.br/assets-pnld/guias/Guia_pnld_2018_literario_2018-
literario_ensino_fundamental.pdf> Acesso em: 20 de abril de 2020.

CHAMBERS, Aidan. El ambiente de la lectura. Tradução: Ana Tamarit Amieva. Editora


FCE. México, 2007.

COLOMER, Teresa. Critérios de avaliação e seleção de livros infantis e juvenis. In.:


_______. Introdução à literatura infantil e juvenil atual. Tradução: Laura Sandroni.
Editora Global. São Paulo, 2017.

GLADYS, Lopera Cardona. Sellección de libros infantiles y juveniles: critérios y


fuentes. Editora Académica. Colombia, 2003.

PAIVA, Aparecida. Selecionar é preciso, avaliar é fundamental: acervos de


literatura para jovens leitores. Educação, Porto Alegre, v. 35, n. 3, p. 301-307,
set./dez. 2012.

_________. Políticas públicas de leitura: Pesquisas em rede. In.: ________.


Literatura fora da caixa: o PNBE na escola – distribuição, circulação e leitura.
Editora Unesp. São Paulo, 2012.

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CONTRIBUIÇÕES DOS GÊNEROS LITERÁRIOS PARA A
CRIAÇÃO DE NECESSIDADES DE ESTUDO E DE CRIAÇÃO
TEXTUAL NAS CRIANÇAS 202

Érika Christina Kohle, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho -


Unesp – Campus Marília, Capes

Eixo Temático 8: Literatura infantil e ensino

Considerações Iniciais

Tendo em vista que as relações da criança com a cultura são primordiais para
seu desenvolvimento, visto que cada geração começa a sua vida no mundo criado pelas
gerações precedentes. (LEONTIEV, 1978). Desse modo, ela se apropria das riquezas
deste mundo, participando das diferentes formas de atividade social e, assim,
desenvolve as condutas especificamente humanas, a criança ao apropriar-se desses
instrumentos culturais, participa de sua produção não como simples reprodutora, mas
como criadora.
Desse modo, buscamos propor um caminho de ensino-aprendizagem que
articulasse os conteúdos, os modos de aprender dos alunos e as práticas socioculturais
advindas de seu dia-a-dia em prol do “[...] acesso aos conhecimentos culturais e
científicos como meio de promoção e ampliação do desenvolvimento dos processos
psíquicos superiores dos alunos, em estreita articulação com suas práticas
socioculturais e institucionais, e como condição de superação das desigualdades
educativas” (LIBÂNEO, 2016, p. 38, tradução nossa).
Entretanto, nos limites deste texto enfocamos apenas dois dos inúmeros
momentos em que os gêneros literários, no processo de implementação do experimento
didático-formativo, auxiliaram as crianças a criarem necessidades de estudo e se
motivarem para estudar os gêneros discursivos página de diário pessoal.

Metodologia

202
Esse texto contém dados de uma tese, em elaboração, do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Unesp de Marília, financiada pela Capes, intitulada “O desenvolvimento da
capacidade de criação textual nos estudantes por meio da atividade de estudo”, orientada pela
Professora Doutora Stela Miller
1173

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Este texto enfocou um aspecto de uma pesquisa se materializou por meio de um
experimento didático-formativo, para que as crianças vivenciassem, durante o trabalho
de produção escrita, o processo de apropriação e de objetivação do gênero discursivo
página de diário pessoal, por meio de uma visão dialógica e dinâmica da linguagem
verbal consubstanciada nos enunciados organizados em gêneros do discurso, e,
consequentemente, ofereceram elementos para o ensino de atos de escrever inseridos
em situações de criação de enunciados com função social.
O experimento didático-formativo foi escolhido por ser uma proposta
metodológica que impulsiona o desenvolvimento apoiado na organização e na
reorganização de propostas de ensino para a formação nas crianças de capacidades
indispensáveis para a apropriação do pensamento teórico, interferindo em suas ações
mentais de forma que estas se tornem mais elevadas.

Gêneros literários como auxiliares na criação de necessidade de estudo pelas


crianças
Para ajudar as crianças a criarem a necessidade de estudar uma página de diário
e se motivarem para esse estudo fizemos coletivamente a leitura do livro o “Diário de
uma Aranha” de Doren Cronin, ilustrado por Harry Bliss – Companhia das letrinhas –
2008.
Para que as crianças se envolvessem na atividade de compreensão e fossem
capazes de se posicionar em relação ao que liam, tentamos criar um ambiente favorável
para o diálogo, uma vez que os atos de ler devem ser instrumentos do pensar que se
ampliam por meio de trocas verbais. E, ainda, para que a experiência leitora fosse
sentida como necessária e a mais rica possível, mobilizamos a rede intertextual da obra
para que ela começasse a ser investigada por meio dos seus próprios paratextos –
elementos, tais como o título e as ilustrações, que provocam nas crianças atitudes
responsivas necessárias para que ela mobilize seu conhecimentos sobre o tema em
debate, porque todos os elementos que compõem a obra, quer os textuais, quer os
paratextuais, fazem parte de sua narrativa e guardam informações essenciais para sua
compreensão (NIKOLAJEVA & SCOTT, 2011). Por isso, é importante que as crianças
aprendam a observar o livro em sua totalidade durante todo o tempo envolvido no ato
de ler.
Além disso, desde o início da leitura, por meio de questionamentos feitos por
ambos, pesquisadora e crianças, as crianças foram levadas a perceber que ler é fazer
perguntas e encontrar respostas. E, ainda, com intuito de obter a compreensão da
história, as crianças precisam, no diálogo com o professor e com a obra, mobilizar as
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informações presentes em suas massas aperceptivas, porque a compreensão se dá na
relação entre essas informações e as encontradas no texto escrito. Chamamos de
massa aperceptiva a expressão de Jakubinskij (2015) para designar o conjunto de
saberes e de experiências anteriores dos sujeitos que possibilitam a eles à
compreensão, à interpretação de um enunciado. Por essa razão, quanto maior a
quantidade de informações do leitor sobre determinado tema, mais chance ele tem de
compreender uma história com base nele, visto que além dos limites do conhecimento
linguístico da criança, os atos de ler circunscrevem-se aos limites de seu conhecimento
sobre o assunto.
Assim, durante a leitura, por meio da observação dos elementos paratextuais da
obra fizemos perguntas para as crianças.

Pesquisadora: - O que vocês acham de ler esse livro?


Lucas: - Legal.
Pesquisadora: - Que informações traz a capa?
Mariana: - O diário de uma aranha.
Pesquisadora: - E o que isso quer dizer?
Mariana: - Vai ter coisas da vida dela aqui?
Pesquisadora: - Vocês acham interessante textos que falam da vida de
alguém?
Kátia: - Sim.
Pesquisadora: - Também é legal escrever sobre nossa vida?
Mariana e Kátia: - Sim. É.
Pesquisadora: - Vocês acham legal contar as coisas que fizeram para
alguém?
Lucas: - Acho.
Pesquisadora: - No diário podem contar as coisas da vida de vocês. O
que acham que vai ter da vida da aranha?
Mariana: - Alguém da família dela?
Pesquisadora: - Pode ser. Tem que ter as pessoas com as quais ela
convive, não tem?
Kátia: - Tem.
Pesquisadora: - Vocês acham que a personagem é uma aranha
menina?
Igor: - Não, é menino.
Pesquisadora: - Por que vocês acham isso?
Igor: - Porque ele está usando boné.
Pesquisadora: - Só por causa disso?
Kevin: - Sim, porque boné é coisa de menino.
Pesquisadora: - Vamos procurar no livro alguma pista que nos diga que
se a aranha é menina ou menino?
Kevin e Lucas: - Sim.
(Diálogo de19/03/2019)

Em busca de ajudá-los a formar a necessidade da leitura da obra em questão e


para motivá-los a ler o livro, propusemos alguns desafios para as crianças. Em nosso
caso, usamos duas estratégias, 1) valorizar o gênero a ser estudado e propor um desafio
a ser solucionado por meio do conhecimento do conteúdo do livro. Desse modo, a partir

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da detecção da necessidade das crianças de contar aspectos interessantes de suas
vidas – suas aventuras, seus segredos, seus afazeres diários durante os meses
anteriores da investigação, valorizamos as possibilidades discursivas do gênero em
questão tanto para ajudar as crianças a criarem a necessidade de estudá-lo ou de
manterem essa necessidade de estudo, quanto para ajudá-las a criar ou a manter a
necessidade de criar textos do gênero textual diário pessoal. Além disso, desafiamos as
crianças a buscar pistas concretas no texto que indicassem que a aranha protagonista
do texto fosse um menino, porque acreditamos que, pela via da satisfação de suas
necessidades de conhecimento da realidade, a crianças se inserem em atividade e, por
meio dessa conduta, conseguem se apropriar dos conhecimentos e dos modos de ação
construídos ao longo do processo de evolução da humanidade. (LEONTIEV, 2004).
Assim, no processo dialógico entre as crianças, a obra – objeto de leitura – e o
professor, este pode contribuir para o estabelecimento da compreensão da criança
acerca do significado global do enunciado, por meio do planejamento da análise a ser
feita sobre as imagens da narrativa visual, bem como sobre certos elementos textuais
da obra que podem conduzir a questões de cunho hipotético, avançando possibilidades
de continuidade do enunciado, enfatizando os aspectos não explícitos no texto verbal
da obra e estimulando o pensamento criativo do aluno no que concerne à dinâmica do
desenvolvimento da narrativa. Pela utilização dessas estratégias, a criança é capaz de
fazer previsões, observando e analisando as ilustrações, bem como trechos do
enunciado, desde a primeira capa até a quarta, ao final do livro.
Ao longo do ato de ler as crianças foram levadas a refletir sobre os enunciados
e a fazer suas próprias perguntas a eles, utilizando, para isso, as relações que as
crianças estabelecem com a obra que possibilitam-lhes a integração das novas
informações com o seus conhecimentos anteriores, “[...] para aumentar seus
entendimentos das situações, personagens e ideias na ficção.” (GIROTTO & SOUZA,
2010, p.74).
Por tudo isso, continuamos propondo que as crianças fizessem perguntas para
o texto, com o intuito de que elas permanecessem em atividade, focadas na leitura.

Pesquisadora: - O que vocês acham que vai acontecer com a aranha?


Kevin: - Ela vai sair pelo rio na folha.
Pesquisadora: - Será que é isso mesmo?
Mariana: - Acho que não. Acho que vai ter a família dela.
Pesquisadora: - Quem mais acha que vai aparecer a família dela?
Tina e Igor: - Eu.
Pesquisadora: - Podemos começar a leitura do diário agora?
Crianças – Sim.

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Pesquisadora: - Quem está com curiosidade para saber o que
acontece aqui dentro? (mostrando o livro fechado em uma das mãos).
Todas as crianças: - Eu!
Pesquisadora: - O que tem aqui nas guardas do livro?
Crianças: - Fotos dele.
Lucas: - Muitas fotos.
Pesquisadora: - Com quem?
Mariana: - Com a família.
Pesquisadora: - Com um bebezinho.
Kevin - É ele bebezinho.
Pesquisadora: - O que mais?
Igor: - Foto com a minhoca.
Pesquisadora: - Sim, vocês acham que elas são amigas?
Igor: - Sim.
Tina: - Coisas que ele gosta.
Pesquisadora: - Isso mesmo. Será que atrás tem mais fotos?
Crianças: - Sim.
Pesquisadora: - Vamos ver?
Crianças: - Tem.
Pesquisadora: - Isso mesmo. Uma hipótese de vocês se confirmou,
tem fotos na parte de trás, agora vamos para a história ver se ele é
realmente um menino como vocês estão falando.
(Diálogo de19/03/2019)

Continuamos a leitura do livro que conta fatos importantes da vida da aranha até
aparecer uma pista do gênero do protagonista da história. Nesse momento,
estabelecemos o seguinte diálogo:

Igor: - Ele é menino, porque as meninas usam laço na cabeça.


Pesquisadora: - Onde?
Igor: - Aqui na sala de aula. (mostrando a imagem do livro das aranhas
estudando)
Lucas: - As meninas têm laços e os meninos têm bonés.
Pesquisadora: - Tem razão, mas vamos buscar mais pistas durante a
leitura do livro?
Crianças: - Sim.
(Diálogo de19/03/2019)

Continuamos a leitura até aparecer outra pista em relação ao gênero do


protagonista da história.

Pesquisadora: - O que está escrito no cartão postal?


Kevin: - Querido Aranha. Está vendo? Querido! Quer dizer que ele é
menino.
Pesquisadora: - Ótimo, aqui comprova que ele é menino porque está
escrito querido aranha.
Kevin: - Não é querida!
Pesquisadora 1: - Isso mesmo, Kevin. Você tem razão.
(Diálogo de19/03/2019)

A tentativa de descoberta do gênero do protagonista do diário, levou as crianças


a prestarem a atenção nos detalhes da obra, por meio da busca por uma informação

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que supostamente estaria no texto e isso manteve o enfoque delas na obra até
terminarmos sua leitura.
Por meio dos atos de leitura, a criança torna-se paulatinamente capaz de
estabelecer, de um ponto de vista mais geral, relações cada vez mais amplas com a
cultura e, de modo particular, uma relação cada vez mais próxima com os enunciados
envolvidos nesses atos, pois o desenvolvimento da capacidade leitora possibilita a ela
a compreensão de debates universais sobre a vida humana, e, além disso, a conduz à
construção de uma compreensão de si mesma, desenvolvendo “[...] uma consciência
daquilo que é e de onde ela está situada no tempo e no espaço” (THOMPSON, 1998,
p. 46).
Desse modo, preocupamo-nos, portanto, em permitir às crianças saírem do
plano meramente formal de leitura, que a reduz a uma técnica de vocalização de
sílabas, e ingressarem na constituição de significados e sentidos vitais para o escrito,
podendo, nesse processo, levar aos enunciados escritos suas experiências de mundo
e de outras leituras já feitas para mais amplamente compreendê-los, mobilizando, para
isso, o que Jakubinski (2015) chama de massa aperceptiva, ou seja, o conjunto de seus
saberes e de experiências, incluindo também suas emoções, pensamentos, e outros
elementos do psiquismo humano, que lhes possibilitam a compreensão e a
interpretação de uma ação ou de um enunciado.
Nesse processo de busca de sentido para o que se lê, pistas semióticas são
usadas para compreender os diversos enunciados, em um constante movimento no qual
perguntas são feitas pelo leitor e, no encontro de suas respostas, novas perguntas são
formuladas (ARENA & DUMBRA, 2011), e, nessa busca permanente de respostas a
indagações, o leitor ganha em agilidade na construção dos múltiplos sentidos possíveis
para o estabelecimento da compreensão do objeto de leitura.
Após o término da leitura, protagonizamos o seguinte diálogo.

Pesquisadora: - Gente, o que não pode faltar em um diário?


Lucas: - As coisas da vida da pessoa.
Pesquisadora: - Alguém aqui tem um diário?
Kátia e Valentina: - Eu.
Kevin: - Ela tranca com um cadeado.
Pesquisadora: - Porque lá sua irmã guarda os segredos dela.
Kátia: - Sim.
Lucas: - De quem ela gosta...
Pesquisadora: - O que vocês gostariam de escrever sobre vocês em
um diário?
Igor: - Quando fui na praia.
Lucas: - No dia que saí com meu cachorro.
Mariana: - Os dias felizes.
Kátia: - Quando a gente foi para a fazendinha.

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(Diálogo de19/03/2019)

A possibilidade de expor suas opiniões sobre a obra e sobre o que gostariam de


escrever, auxiliou as crianças a não só assumirem posições responsivas diante dos
enunciados com os quais têm contato, como também a posicionarem-se ativamente no
mundo de forma única e a compreenderem a necessidade de agir sobre ele de modos
cada vez mais conscientes.
Em seguida, com o objetivo de levar as crianças a perceberem não apenas a
diferença entre o que é essencial no gênero diário em suas manifestações particulares,
mas também os conteúdos que podem compor a sua essência, levamos diferentes
páginas de diário para que eles notassem o que é essencial nesse gênero discursivo
por meio da análise dos seus conteúdos.
Para isso, fizemos a proposta de leitura de uma página do Diário de Anne Frank,
tendo em vista que a descoberta do novo tem virtualmente um componente que pode
levar ao surgimento da motivação: o desejo de saber do que se trata esse novo. E o
desejo de saber pode gerar na criança a necessidade de aprender e, no caso específico,
de ler o texto para saber o que aconteceria nessa nova história, visto que conhecido o
objeto que pode satisfazer essa necessidade, a criança encontra nele o motivo para
entrar em atividade.

Pesquisadora:- O que acham de conhecermos bem as páginas de


diário para depois escrevermos uma?
Kátia: - Bom!
Mariana: - Eu já sei o que vou escrever no meu diário!
Pesquisadora: - Vocês gostam de contar o que acontecem com vocês?
Crianças: - Sim.
Pesquisadora: - Vocês não contaram o dia em que foram à fazenda
com a escola?
Lucas: - Sim.
Pesquisadora: - Então. Só que no diário vocês vão contar essas coisas
por escrito. Entenderam?
Crianças: - Sim.
Pesquisadora: - Agora, tenho uma proposta. Vamos conhecer um
diário de uma menina que viveu há mais de 70 anos?
Mariana, Kátia e Igor: - Sim.
Pesquisadora: - Ela era uma menina como vocês. (mostradno a foto de
Anne na capa do livro). O nome dela era Anne Frank – uma garota
judia. Vocês sabem o que acontecia com uma judia ou com um judeu
na época do nazismo?
Lucas: - O que é isso.
Pesquisadora: - Aqui está a Alemanha. Estão vendo? (mostrando a
Alemanha no globo terrestre para as crianças).
Crianças: - Sim.
Pesquisadora: - Fica bem distante de nós.
Igor: - Tem que ir de avião?

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Pesquisadora: - Sim. Esse país aqui (apontando para a Alemanha) era
governado pelo Hitler uns oitenta anos atrás. Sabem o que ele fazia
com quem era judeu como a Anne?
Crianças: - Não.
Pesquisadora: - Perseguia. Sabem para quê?
Lucas: - Para prender.
Pesquisadora: - Isso mesmo. O povo judeu que morava na Alemanha
ou nos países que ficavam lá perto. (mostrando os países perto da
Alemanha no globo terrestre para as crianças) sofreram perseguição,
muitos foram presos, escravizados e morreram por causa disso.
Mariana: - Nossa. Que triste!
Pesquisadora: - Sim. Isso é muito triste, para não serem encontrados
pelos alemães e escravizados, muitos judeus fugiram de lá ou se
esconderam.
Igor: - Como? Em um esconderijo?
Pesquisadora: - Sim. Como a Anne. Ela e sua família moravam aqui.
(apontando para a Holanda).
Igor: - É bem pequeno.
Pesquisadora: - Sim, Igor! É um país bem pequeno, e, infelizmente fica
bem perto da Alemanha. Estão vendo.
Mariana: - Está bem do lado.
Pesquisadora: - Por isso, nesse país também teve perseguição do
povo judeu.
Igor: - Os alemães prendiam essas pessoas lá?
Pesquisadora: - Sim, por isso Anne e sua família tiveram que morar,
durante anos, escondidos dos alemães em um quartinho no fundo de
um escritório. Sabem o que aconteceu com ela depois de tantos anos
escondidos?
Crianças: - Não.
Igor: - Ela morreu?
Pesquisadora:- Ela foi encontrada pelos alemães.
Mariana: - Com sua família?
Pesquisadora: - Sim. Eles foram presos e a Anne, sua mãe e irmã
morreram na prisão, porque lá não tinha condições de higiene, nem
alimentação adequada e tinha muita doença.
Mariana: - E o pai dela?
Pesquisadora: -Ele sobreviveu.
Mariana: - Ficou sozinho?
Pesquisadora: - Sim. Sabe o que aconteceu com o diário que a Anne
estava escrevendo nesse tempo de perseguição?
Crianças: Não.
Pesquisadora: - Ele foi publicado em forma de livro; e, isso fez com que
o mundo todo conhecesse a história de Anne.
Mariana: - Todo mundo?
Pesquisadora 1: - Sim, quase todo mundo. O diário dela é um dos livros
mais lidos no mundo.
Kátia: - Nossa.
Pesquisadora 1: - E por incrível que pareça, nesse diário ela escreveu
que seu maior sonho era ser escritora. Agora, vocês querem ler uma
página desse diário?
Crianças: - Sim.
Pesquisadora 1: - O que vocês acham de ler uma história que
realmente aconteceu?
Mariana: - Muito Legal.
Kátia: - Interessante.
Lucas: - Acho bom.
(Diálogo de 26/03/2019)

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Por meio da história de Anne aguçamos a curiosidade das crianças em relação
ao diário para que se sentissem motivadas a ler uma de suas páginas a partir da
necessidade de conhecer mais sobre a história dessa menina que tinha sofrido tanto,
mas que tinha se tornado conhecida por muitas pessoas por meio da publicação de seu
diário.
Assim, ao propor a leitura em duplas para fomentar o debate entre seus
membros, buscamos promover um processo de leitura tendo como norte o conceito de
ler com um ato de compreensão e não como decifrar e oralizar o que está escrito, uma
vez que essa concepção dá ao professor a possibilidade de ajudar as crianças a
desenvolverem, desde o princípio, suas capacidades para discernir entre os diversos
gêneros discursivos, suas características constitutivas, o estilo de cada um e sua função
social.
Em adição a isso, essa visão de leitura como compreensão dialógica dos
enunciados orientou-nos a organizar os processos de ensino e de aprendizagem de
modo a inserir as crianças em situações de interação com seus pares, estimulando as
trocas verbais, fomentando o diálogo entre todos os participantes da aula, consoante à
visão de linguagem como troca verbal, em que o sistema da língua é meio para a
organização dos enunciados que são lidos e também escritos por elas.

Figura 1 – Página do livro O diário de Anne Frank


Fonte: FRANK, A. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2014.

Pesquisadora: Com foi a leitura da página do diário de Anne Frank?


Mariana: - Consegui ler tudo.
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Pesquisadora: - Ótimo. Eu vi. Quase todos conseguiram.
Kevin: - Nós também lemos tudo.
Pesquisadora: O que vocês acharam do diário?
Lucas: - Legal.
Pesquisadora: - Que parte você achou mais legal, Lucas?
Lucas: - A parte do recreio.
Pesquisadora: - O que ela nos contou?
Kevin: - Que ela fez aniversário.
Mariana: - Gostei da parte dos presentes de aniversário.
Igor: - Ela ganhou esse diário.
Pesquisadora: - Por que ela acordou tão cedo em um domingo?
Mariana: - Ela estava ansiosa por causa do aniversário dela.
Valentina: - Ela ganhou presentes e dinheiro.
Pesquisadora: - O que ela ia comprar com o dinheiro?
Valentina: - Livros.
Pesquisadora: -Isso. O que mais ela conta para o diário?
Mariana: - Que ela levou o que sobrou para escola e deu para seus
amigos.
Pesquisadora: - Exatamente, Mariana! Com quem ela foi para a
escola?
Lucas: Com a Lies.
Pesquisadora: - Existe uma página de diário sem os acontecimentos,
os pensamentos, os segredos ou os planos para o futuro da pessoa
que o escreve?
Lucas: - Não.
Kevin: - Lógico que não.
(Diálogo de 26/03/2019)

Além de auxiliarem as crianças a criarem necessidade de estudo e a se


motivarem para estudar o gênero discursivo página de diário, as páginas das obras lidas
pelas crianças ajudaram-nas a encontrar a essência desse tipo de texto – o
desenvolvimento, por meio da compreensão dos conteúdos das manifestações de diário
as quais foram analisadas pelas crianças com ajuda da pesquisadora.
Ademais o estudo das páginas de diário aqui apresentadas motivou as crianças a
elaborarem suas próprias páginas de diário após se apropriarem de seus elementos
essenciais.

Considerações Finais

A atividade de leitura tem uma importância fundamental para a formação da


criança, pois esta, por meio da leitura, tem a chance de conhecer as marcas deixadas
por outras gerações nas diferentes épocas da história, adquirindo conhecimentos,
refletindo sobre os fatos, os acontecimentos, as ideias presentes no material escrito,
bem como desenvolvendo sua capacidade de compreensão não apenas acerca do
conteúdo lido, mas também de si mesma e seu papel no mundo em que vive.
Além disso, os gêneros literários podem ser usados como exemplo da cultura
elaborada para que as crianças tenham condições de desvelar o conceito de
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determinado gênero discurso por meio do estudo de manifestações de boa qualidade
desse gênero.
Por meio da análise de gêneros literários com as crianças, professores podem
levá-las a descoberta de sua essência e, consequentemente, se as crianças desejarem,
na elaboração de sua própria manifestação do gênero discursivo apropriado por elas.

Referências
ARENA, A. P. B; DUMBRA, C. N. P. Comportamento do leitor virtual: a produção de
texto em foco. In: LONGHINI, M. D. (Orgs.). O uno e o diverso na educação.
Uberlândia: EDUFU, 2011, v. 1, p. 47- 59.

CRONIN, D. Diário de uma Aranha. ilustrado por Harry Bliss. Rio de Janeiro:
Companhia das letrinhas, 2008.

FRANK, A. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2014.

GIROTTO, C. G. S.; SOUZA, R. J. Estratégias de leitura: para ensinar os alunos a


compreender o que leem. In: SOUZA, R. J. (org.). Ler e compreender: estratégias de
leitura. Campinas: Mercado da Letras, 2010. p.45-114.

JAKUBINSKI, L. Sobre a fala dialogal. Trad. Dóris de Arruda da Cunha e Suzana Leite
Cortez. 1.ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

LEONTIEV, A. N. Actividad, conciencia y personalidad. Buenos Aires: Ediciones


Ciencias del Hombre, 1978.

LEONTIEV, A. N.O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro, 2004.

LIBÂNEO, J. C. Finalités et objetifs de l’éducation et action des organismes


internacionaux au Brésil. In: LENOIR, Y.; ADIGUZEL, O.; LENOIR, A.; LIBÂNEO, J. C.;
TUPIN, F. (orgs.). Les finalités éducatives scolaires: une étude critique des approches
théoriques, philosophiques et idéologiques. Saint-Lambert (Quebec, Canadá): Group
éditions Editeurs, 2016.

NIKOLAJEVA, M.; SCOTT, C. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: Cosac
Naify, 2011.

THOMPSON, J. Mídia e modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes,


1998.

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REPRESENTATIVIDADE NEGRA NA LITERATURA PARA A
INFÂNCIA

Erica Correia Temponi Rodrigues, A Casa Tombada.

Eixo Temático 8: Literatura Infantil e Ensino

Considerações iniciais
O presente artigo tem como objetivo realizar uma breve explanação sobre como
a cultura negra é representada nos livros infantis brasileiros, a partir da análise histórica
da literatura infantil no País e de sua representatividade ao longo dos anos, até chegar
aos dias atuais, 17 anos depois da implantação da Lei nº 10.639. Utilizando uma
pesquisa realizada com professores de Educação Infantil e Ensino Fundamental 1 e o
pressuposto de que a representatividade negra no livro para a infância é pouco
explorada atualmente nas salas de aula, apresentarei neste artigo alguns livros que
abordam a temática e seu uso pelos professores. Este trabalho também busca trazer a
reflexão sobre como o racismo se consolidou na literatura infantil e de que forma o uso
de livros que contemplem a representatividade negra pode favorecer e contribuir com
as práticas pedagógicas, fortalecendo uma pedagogia menos desigual, que seja capaz
de abarcar a pluralidade cultural e o respeito às diferenças.
As contribuições de Leonardo Arroyo, Nilma Lino Gomes, Rosa Margarida de
Carvalho Rocha, entre outros autores, foram fundamentais para pensar o panorama
histórico brasileiro da literatura infantil e para refletir sobre como as contribuições das
literaturas africanas e afro-brasileira na prática pedagógica podem favorecer o diálogo
intercultural e, consequentemente, a superação de preconceitos e estereótipos.

A literatura infantil brasileira


Segundo Leonardo Arroyo, a literatura infantil brasileira não seguiu padrões
rígidos de evolução. Seu progresso foi complexo e diversificado, devido às inúmeras
áreas culturais abarcadas pelos livros. Porém, como lembra o autor (através da citação
de Fernando Azevedo em seu livro A educação e seus problemas), ele foi marcado
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pelas “modificações de estrutura econômica e social e suas repercussões no próprio
sistema de relações sociais, no grupo doméstico, que favorecem a formação de um
‘novo público’ para escritores”. A partir dessa citação, pode-se refletir sobre como a
literatura começou a decorrer das condições sociais da sua época.
Ainda nessa perspectiva, o lastro cultural íntimo entre o ensino escolar e a
literatura infantil no desenvolvimento cultural brasileiro criou e fortaleceu as condições
para o aparecimento do livro especialmente dedicado à infância. Deste modo, criou-se
espaço para um leitor infantil no Brasil: aquele público escolar que visava o predomínio
de uma literatura propriamente didática. Ao longo do tempo, este fato acarretaria um
problema complexo para a literatura que foi (e ainda é) o “abuso da pedagogia”.
Estou citando aqui o momento em que a literatura infantil tornou-se mais
fortemente ligada às modificações de estruturas econômicas e sociais. Apesar disso, é
importante dizer que a literatura infantil já existia antes, principalmente na forma da
literatura oral, chegada ao Brasil predominantemente por meio dos marinheiros
portugueses, acrescida da mitologia, das tradições indígenas e fortemente enriquecida
pelas contribuições africanas.
Essas contribuições de culturas tão variadas que se estabeleceram no Brasil,
tanto do ponto de vista da oralidade quanto das referências escritas, deram espaço a
um processo de aculturação. Nesse contexto, a literatura infantil foi tomando forma.
O início dessas transformações que ocorreram na literatura infantil brasileira foi
especialmente marcado por três grandes desbravadores da área: Carl Jansen,
Figueiredo Pimentel e Olavo Bilac. Sem esses autores, os livros nacionais demorariam
a aparecer (Zilberman, 2005). Seguindo esse núcleo original está Monteiro Lobato, que
é considerado por muitos um patrimônio literário e é “quase um sistema literário inteiro”
(op. cit.,p 33). Zilberman declara que, graças à atividade de escritor em tempo integral
e à poderosa capacidade fabulosa de Lobato, a literatura infantil apareceu no universo
das editoras como um negócio rentável.
Nesse cenário rentável, surgiram outros escritores contemporâneos de Lobato.
Alguns com características semelhantes e outros com características próprias. O fato é
que a partir de 1945, enquanto muitos autores continuaram elaborando seus principais
livros e numa época em que se sentia a ausência de Monteiro Lobato, o País começou
a sentir o cenário político desfavorável para a cultura. A literatura adulta não escapou
de um período de repressão e censura. A literatura infantil, por sua vez, com menos
visibilidade na época, teve espaço para manifestar suas ideias e conquistar leitores
através dos produtores culturais.

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Na década de 70, algumas mudanças ocorreram também na área da educação.
O país passou pela Reforma do Ensino de 1º e 2º Graus (Lei 5.692/71), que ampliou a
obrigatoriedade do ensino de quatro para oito anos e trouxe algumas consequências ao
sistema educacional. A grande quantidade de alunos que, a partir de então, começaram
a frequentar as escolas trouxe a necessidade de recrutamento de novos professores.
Tal situação acarretou uma formação pedagógica rápida e de certo modo ineficiente.
Diante dessa realidade, os professores fizeram uso de livros didáticos como suporte
para facilitar a ação pedagógica.
Entre equívocos e reparações, o incentivo conferido à literatura infantil foi um
dos benefícios do período de reforma educacional e houve um estímulo à presença de
obras literárias nas escolas.
Ainda segundo Zilberman, nesse panorama histórico, alguns professores
utilizavam em sala de aula um misto de literatura infantil e narrativas direcionadas ao
público adulto. Pesquisas realizadas na época apontavam que a escolha dos
professores com relação aos livros de literatura para crianças muitas vezes incluía
autores atuantes nos anos 40 e 50, como Monteiro Lobato, Érico Veríssimo e Maria José
Dupré. Os autores da época não correspondiam às expectativas desses professores
(submersos numa visão conservadora no Brasil) porque, através da literatura,
contestavam o processo de repressão, dialogavam diretamente com o leitor criança e
proporcionavam novas formas de narrar e de lidar com a tradição. A literatura infantil
brasileira começava a recontar sua história e a traçar caminhos que se abriam à sua
frente.
Voltando ao contexto escolar e às mudanças no cenário educacional, mais
especificamente no uso do livro dentro das escolas, obras com caráter formador,
vinculadas a objetivos pedagógicos começaram a ganhar espaço. O legado de Lobato
e sua estética literária foi ficando longe desse espaço.
Essa preocupação pedagógica silenciou nos textos questões relativas às
diferenças, conflitos e outras questões existenciais e muitas vezes não abria brechas
para interrogações. Além disso, a reforma curricular de 1971, de cunho
profissionalizante, fez com que o foco humanístico fosse deixado de lado para dar lugar
ao preparo dos indivíduos para o trabalho na indústria.
Esse brevíssimo e suscinto panorama histórico busca demonstrar um pouco de
como a literatura infantil se constituiu no País e tenta compreender como o atual
contexto brasileiro conserva os valores de um profundo condicionamento histórico que
ainda vigora nos tempos atuais.

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A representatividade negra
Para começar a pensar como a representatividade negra aparece no contexto
do livro para a infância, faz-se necessária uma breve e importante retomada histórica
de como o povo negro foi marcado por uma cultura excludente no âmbito da educação.
Voltar o olhar para esse passado é fundamental para desvelar mecanismos
determinantes nesse processo de exclusão e, assim, ter a oportunidade de ressignificá-
los.
No livro Educação das Relações Étnico-Raciais, Rosa Maria de Carvalho Rocha
traça esse panorama histórico de forma didática e relata como a educação popular não
foi uma preocupação do poder público brasileiro desde o Período Colonial até a
República. A grande maioria dos escravos não frequentou a escola e a legislação
brasileira oficializou essa exclusão através de um decreto (nº. 1331, de 17 de fevereiro
de 1854) que estabelecia que as escolas públicas do país não admitiriam escravos.
Pouco mais de 20 anos depois, outro decreto estabeleceu que os negros
poderiam estudar apenas no período noturno, o que permitiria o ingresso apenas de
maiores de 14 anos de idade e essencialmente homens.
Esse quadro desumano permaneceu e os negros tiveram que enfrentar, além do
preconceito atroz e da discriminação perversa, um panorama escolar marcado por
absoluta marginalização.
Aliando a cultura de valorização eurocêntrica - que permeava a sociedade
brasileira no século XIX -, o reforço negativo de estereótipos sobre a população negra
e o protagonismo da nação sendo exercido por brancos, foi-se introduzindo na
sociedade uma hierarquização das raças que culminou com um projeto de
branqueamento da nação. O lugar do negro na sociedade foi então agravado nesse
cenário pungente que o impediu de viver a sua cidadania plena. Como resultado, a
desigualdade impera até hoje em todas as esferas sociais do País. E aqui chega o ponto
mais importante desse trabalho, que é o olhar para o contexto escolar.
No início do século XX, a esfera educacional passou por um processo de
construção da educação como direito social, porém ainda como privilégio dos brancos,
que consequentemente instaurou o obscurantismo e o silenciamento da história e da
cultura da população negra. A escola, nesse sentido, também se tornou um lugar de
fortalecimento e valorização da cultura eurocêntrica.
Durante muitas décadas, o mito da democracia racial, que afirmava a existência
de relações harmônicas entre brancos e negros, tentou minimizar o problema , enquanto

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crianças e jovens negros sofriam dentro das escolas com uma reprodução declarada do
racismo.
Demorou muito para o racismo se tornar um crime inafiançável e imprescritível.
Após anos de muita luta e resistência, os movimentos sociais negros criaram estratégias
para mudar esse cenário engajando-se de forma política e ativa na busca principalmente
de respeito à diversidade cultural e à estética negra. O Movimento Negro é um exemplo
desses movimentos. Apesar de atuar em várias esferas, o Movimento tinha a educação
como pauta prioritária, pois via o analfabetismo e a lenta inserção do povo negro nas
escolas como um dos principais problemas dessa população.
Os movimentos sociais perceberam que o racismo nas escolas não estava
presente apenas nas práticas dos relacionamentos sociais: os livros didáticos também
estavam permeados por estereótipos raciais. A partir dessa demanda, começaram a
desenvolver pedagogias e currículos específicos com enfoque multirracial e popular. Era
necessária uma mudança radical no campo do conhecimento e um rompimento com a
estrutura racista secular perpetuada pela escola.
A maior parte das referências literárias do início da história da literatura infantil
brasileira era europeia. A figura do negro praticamente inexistia. O negro apareceu
representado na vasta obra de Monteiro Lobato. Infelizmente, os estereótipos que ali
estavam retratados não eram positivos. Há um grande debate acerca deste tema,
inclusive sobre como essas obras foram ressignificadas no contexto atual, mas o fato é
que essas referências fizeram parte de um contexto histórico e inúmeras crianças
tomaram posse da leitura dessas obras, inclusive dentro das escolas.
Na década de 70, seguidores de Lobato vez ou outra inseriam personagens
negros em suas produções. É importante citar que essa inserção não necessariamente
significa que havia qualidade literária nas obras ou qualquer representatividade positiva
da figura negra. Ainda assim, essas obras merecem destaque por referendar o negro
(por vezes sem o reforço de estereótipo negativo) mesmo antes de surgir uma legislação
que tratasse dessa obrigatoriedade.
Na década de 80, temos referências como: A botija de ouro (1984), , O Saci e o
Curupira (1986) e Dudu Calunga (1986), de Joel Rufino dos Santos; O menino marrom
(1986), de Ziraldo; Menina bonita do laço de fita (1987), de Ana Maria Machado; O
almoço (1989) e Passaralindo (1989), de Mario Vale.

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Figura 1 – Representatividade negra nos livros infantis publicados na década de 80

Segundo reflexões de Sueli de Souza Cagneti e Cleber Fabiano da Silva no livro


Literatura infantil juvenil: diálogos Brasil-África, tais livros apresentam referências
negras com representações distintas entre si: em alguns há uma intencionalidade maior
na representação do negro como protagonista e em outros aparentemente não há uma
intencionalidade na representação para tratar a temática da inserção.
Sueli lembra ainda que a inserção do negro na literatura, quando menos aponta
para aquilo que quer demonstrar, melhor o faz, pois, apresentar o negro naturalmente
na obra contribui para uma real inserção no meio que lhe é devido. A problemática da
inserção é que na maioria das vezes as representações aparecem reforçando
estereótipos na forma não padronizada em relação aos modelos de beleza. Há obras
que acabam potencializando aquilo que se pretende abolir do imaginário coletivo.
Torna-se necessário possibilitar o protagonismo negro fortalecendo
procedimentos estéticos que o insiram em contextos onde normalmente não estão
representados.
Quarenta anos depois, em 2020, o panorama da literatura infantil já mudou
muito. Há inúmeras referências no mercado editorial e as questões de
representatividade são muito diversas.

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Figura 2 – Representatividade negra e diversidade nos livros atuais

Após a implantação da Lei 10.639/2003, que prevê o estudo da História da África


e das culturas africanas e/ou afrodescendentes, a publicação de livros que abordam a
temática da representatividade negra aumentou significativamente. Desse modo, é
possível que os alunos tenham contato com concepções africanas, sua maneira de
compreender o mundo, suas diferentes manifestações e comportamentos culturais, sua
arte e suas atividades intelectuais, superando as visões estereotipadas que permeiam
o imaginário de muitos educandos.
Manifestações culturais, políticas e sociais da sociedade civil também foram
fundamentais para mudar esse cenário. Autores se voltaram para a questão trazendo
para suas narrativas a estética literária que priorizasse uma visão positiva da
diversidade étnico racial, a diversidade de gêneros textuais, traços da cultura, religião,
linguagem e etc. Infelizmente, os livros didáticos não progrediram na mesma proporção.
Segundo Debus, no mercado editorial brasileiro da literatura infantil, os títulos
estão divididos em três categorias: Literatura que tematiza a cultura africana e afro-
brasileira (aquela que traz como temática a cultura africana e afro-brasileira); literatura
afro-brasileira (aquela que é escrita por escritores afro-brasileiros); e literaturas
africanas (aquela que aborda a multiplicidade linguística da África, as literaturas de
Língua Portuguesa, que contempla subcategorias como as vinculadas à oralidade -
lendas e fábulas - e a literatura contemporânea). A primeira categoria é a que sobressai
na produção editorial atual, embora as outras estejam em um movimento crescente.
Em 2020, realizei uma breve pesquisa através de um formulário eletrônico para
coletar informações a respeito do conhecimento dos professores sobre os livros que
contemplam a representatividade negra. A pesquisa, intitulada de A representatividade
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negra nas histórias infantis, foi respondida por 133 professores de diversas regiões do
Brasil e ocorreu entre os meses de fevereiro e março de 2020. Compartilho algumas
respostas coletadas durante a pesquisa.

Gráfico1:

Gráfico 2:

Outra pergunta sugeria aos entrevistados que indicassem um livro que


consideravam que incluía a representatividade negra. Foram citados alguns livros de
grande qualidade estética e literária. Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria
Machado, lançado na década de 80, recebeu um grande número de votos, provando
que o título é bastante conhecido pelos professores e, já tendo passado por várias
reedições, ainda se mantém vivo dentro das escolas.
Diante de tantos livros no mercado editorial, é possível perceber que muitos
ainda não são explorados. Outro dado importante da pesquisa é que 62,3% dos
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professores consideraram que as escolas não se preocupam o suficiente com as
questões de representatividade nos seus contextos.

Gráfico 3:

No gráfico acima, 51,9% dos professores indicaram que a presença dos negros
nos livros acontecia ocasionalmente, ou seja, “às vezes”. Já na pergunta abaixo, 84,5%
reconheceram os negros como protagonistas nas histórias que leram.

Gráfico 4:

Diante desta amostragem, ainda que pequena, podemos perceber que o


trabalho com a representatividade negra ainda não é unanimidade entre os professores,
mesmo que exista uma lei que respalda a questão.

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Considerações Finais

Este artigo faz parte de um trabalho que ainda está em fase de pesquisa. Seus
resultados não estão concluídos. Portanto, as considerações finais permitem apenas
suscitar algumas reflexões.
Aos professores, mediadores de leitura e outros profissionais que atuam com o
livro para crianças no Brasil, em especial no contexto escolar, que reforçou e reproduziu
estereótipos e preconceitos por muitos anos, cabe estar em constante atualização, em
contato com o estudo sobre o livro, a representatividade negra e a cultura e temática
africanas. É preciso que o professor seja capaz de tecer um olhar para além da
abordagem temática das obras e de selecionar livros que apresentem elementos
estéticos e culturais que saiam do exotismo. É preciso contribuir com o fortalecimento
de práticas antirracistas, especialmente no livro para a infância, para favorecer uma
sociedade que assuma sua identidade multiétnica. Cabe produzir coletivamente um
cenário de visibilidade, respeito e ressignificação.

Referências
AMÂNCIO, I. M. C.; GOMES, N. L.; JORGE, M. L. S. Literaturas africanas e afro-
brasileira na prática pedagógica. Autêntica Editora, 2014.

ARROYO, L. Literatura Infantil Brasileira. São Paulo, SP: Editora Unesp, 2011.

CADEMARTORI, L. O que é Literatura Infantil. São Paulo, SP: Brasiliense, 2010.

CAGNETI, S. S.; SILVA, C. F. Literatura infantil juvenil: diálogos Brasil-África. Belo


Horizonte, MG: Autêntica Editora, 2013.

DEBUS, E. A temática da literatura africana e afro-brasileira na literatura para crianças


e jovens. São Paulo, SP: Cortez Editora, 2017.

GOMES, N. L. O Movimento Negro educador: saberes construídos na luta por


emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

ROCHA, R. M. C. Educação das Relações Étnico-Raciais. Belo Horizonte, MG: Mazza


Edições, 2007.

ZILBERMAN, R. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro, RJ:
Objetiva, 2005.

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PROTOCOLOS DE LEITURA EM PETER PAN, DE MONTEIRO
LOBATO

Joaes Cabral de Lima (UFPB)


Siomara Regina Cavalcanti de Lucena (UFPB)
Morgana de Medeiros Farias (UFPB)

Eixo Temático: Literatura infantil e ensino

Considerações iniciais
De acordo com Martins (1989, p. 11) a leitura é uma ação intrínseca a nós seres
humanos, desta forma, como bem explicita a autora, exercitamos esta prática a partir
dos “nossos primeiros contatos com o mundo”, neste novo habitat extrauterino, a
princípio um conjunto desordenado de sons, cheiros e sensações que aos poucos os
nossos sentidos vão domando e assim aprendemos a nos guiar, até atingirmos uma
maturidade de percepção tanto do meio como de todos os sujeitos que nos cercam, e
desta forma damos “os primeiro passos para aprender a ler”.
O ato de ler não limita-se apenas à mecânica da decodificação das palavras,
mas indo além desta, a leitura é acima de tudo, uma busca pela máxima essência
existente nas várias camadas do texto, sendo a mesma neste sentido, um ininterrupto
aprendizado. Um aprendizado que embora tenha a mediação do professor é também
na visão de Martins (1989) uma descoberta solitária que decorre da nossa vivência, do
exercício do nosso olhar, indo além de nosso contexto pessoal.
Ler uma obra literária não se trata apenas de direcionar o nosso olhar para o
texto em sua profundidade semântica, mas também, para todo um conjunto de
elementos que contribuem para ampliar a nossa compreensão e apreensão do que é
lido, estes elementos são denominados pelos estudiosos de protocolos de leitura. De
acordo com Chartier (1990) tratam-se de recursos gráficos, tipográficos que não se
limitam ao interior da obra, mas também ao espaço externo, ou mais precisamente à
capa, com sua estética gráfica elaborada, que como bem evidencia Lima (2020) é um
interessante espaço de narratividade, que já fornece uma prévia da obra a ser lida e/ou
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como em alguns casos é usada como primeira página da narrativa, além de ser também,
um importante recurso promocional que seduz o leitor/consumidor.
Além da arte interligada ao texto, quer seja na capa ou nas ilustrações internas,
o livro ainda possuí um conjunto de ferramentas periféricas, que norteiam certos
elementos contidos em sua estrutura, dando significados do próprio léxico e
ambientando o leitor no espaço da narrativa (fazendo uso de mapas e notas explicativas
que podem ser inseridas de acordo com o projeto gráfico proposto pela editora e/ou pelo
autor).
Sendo assim, este trabalho procura discutir de forma sucinta, o conjunto dos
protocolos de leitura que cercam a adaptação de Peter Pan, de Monteiro Lobato na
estrutura de seu projeto gráfico, procurando também evidenciar as significativas
mudanças ocorridas nas várias edições que se seguiram desde que a obra de J. M.
Barrie foi transportada para o português, em 1930, e o seu universo narrativo foi
incorporado ao universo fabuloso do Sítio do Pica-pau Amarelo

Peter Pan na voz de Dona Benta


De acordo com Gomes (2016, p. 20) “adaptar não indica uma fidelidade ímpar
para com a obra fonte”, trata-se nas palavras do autor de uma domesticação do texto
original, onde o tradutor/adaptador vai adequar a obra para um público-alvo, levando
em consideração, diferentes questões como: escolaridade, faixa etária, poder aquisitivo,
tipo de suporte (livro físico ou digital) e desta forma, realizará mudanças significativas
na obra original com o intuito de facilitar a apreensão do leitor. Bunn (2012, p. 110),
autora e tradutora de obras infantis explicita que “a adaptação é uma opção que pode
aproximar o leitor do texto, quando se quer evitar um estranhamento que, por sua vez,
não é, de forma alguma, negativo em vários contextos”, procedimento este que em
muitas das vezes parte do tradutor/adaptador e em outras, como bem postula a
escritora, em comum acordo com a editora., cujas resoluções sempre são “tomadas
pensando sobretudo no leitor em formação e no lugar específico de difusão dessas
histórias”, Bunn (2012, p. 104).

Tanto uma tradução quanto uma adaptação resultam de estratégias e


escolhas tradutórias feitas pelo tradutor ou adaptador, porém enquanto
a tradução é considerada o resultado de um processo em que o texto
alvo tem uma relação mais estrita com seu texto fonte, a adaptação é
vista como uma representação do texto fonte que estabelece com este
uma relação mais frouxa ou distante. Esse afastamento do original
pode se dar por omissões, acréscimos e alterações formais e /ou
semânticas com o objetivo de alcançar o propósito especifico de
determinada adaptação. (OLIVEIRA, 2014, p. 33)

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Ao adaptar Peter Pan, em 1930, Monteiro Lobato rompe com o cânone literário
e editorial, com uma estrutura narrativa que se distanciava do léxico lusitano e também
da formalidade, aspectos tão comuns ainda em princípios do séc. XX em obras
abarcadas pelo público infanto-juvenil, clássicos da literatura universal como A ilha do
tesouro, Robson Crusoé, As viagens de Gulliver, Os três Mosqueteiros, entre outros,
cuja narrativa aventuresca, encantava os jovens da época.
A atitude de Monteiro Lobato, tanto editor como autor, um duplo perfil
indissociável, lhe permitiu tanto por meio da sensibilidade da escrita, como também do
olhar, conseguir perceber as necessidades do público leitor de sua época, tão carente
de literatura e tão distante do objeto livro. De acordo com Lima (2020) Monteiro Lobato
ressignifica o mercado editorial, eliminando as distâncias entre o leitor e o livro e também
entre a própria linguagem literária, ou como ele bem preferia classificar no seu projeto
editorial, o abrasileiramento da literatura.
Embora este trabalho se restrinja em sua discussão à adaptação de Peter Pan,
se faz necessário evidenciar que o modelo de adaptação empregado na referente obra
foi primeiramente utilizado, em 1927, por Monteiro Lobato, na obra As aventuras de
Hans Staden, publicação esta que também faz parte da sua coleção infantil e que se
trata de uma adaptação/tradução da obra Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil,
realizada pelo próprio Lobato, em 1925.
Tanto na adaptação de 1927, como também em Peter Pan, Lobato trabalha a
mesma estrutura narrativa, concedendo a D. Benta, seu alter ego, o direito de
adaptar/contar a história para os seus netos, resumindo a narrativa, alterando nomes e
expressões de caráter arcaico, para permitir que os seus netos acompanhados dos
leitores, desfrutem da história, tecendo ao longo de toda ela, diversas discussões, que
mostram a vontade dos ouvintes, que também são leitores, em modificar o que lhes é
narrado, sendo assim, Lobato quebra com outro tabu, de que a obra literária não é
estática em sua estrutura, a narrativa pode ser transformada pelo leitor, neste caso o
adaptador/tradutor que é D. Benta.

Os livros lidos por Dona Benta muitas vezes podem estar escritos em
linguagem difícil, chamada pelo próprio Lobato de " literária", com
conotação negativa, ou então podem estar escritos em outra língua e
serem traduzidos por Dona Benta, que é uma leitora e uma tranmissora
[sic] da leitura. No momento em que conta a história, procura envolver
os ouvintes com o texto, aproximando-o do quotidiano destes. Assim,
a história contada por ela sofre mudanças em função dos ouvintes, que
ajudam em sua recomposição. (VIEIRA, 1998, p. 114)

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De a acordo com Mastrobertti (2008, p. 1) toda obra literária é “suscetível às
transformações realizadas em sua própria natureza”, então, para a autora, toda obra
literária é mutável, porém estas mudanças não são limitadas ao textual, mas a todo o
conjunto estrutural do objeto livro, o projeto gráfico propriamente falando (capa,
contracapa, folhas de rosto, ilustrações, tipografia, texto de apresentação, sumário,
etc.), ainda segundo a autora, todo este processo atende às necessidades de cada
geração de leitores e do próprio sistema de leitura.
Bem antes de ser adaptado por Lobato, o personagem Peter Pan fez pequenas
aparições no Sítio de D. Benta, de acordo com Vieira (1998) tais aparições ocorrem nas
seguintes obras Memórias da Emília (1936), “obra na qual Peter Pan surge no Sítio
como um visitante”, em seguida, “O Picapau Amarelo (1939), e posterior a publicação
de 1930 a personagem de Barrie retorna ao Sítio no conto Pena de Papagaio, também
publicado no mesmo ano, no entanto, neste conto que foi anexado à Reinações de
Narizinho, a dúvida paira entre os netos de D. Benta acerca da real identidade da
personagem que se realmente se tratava ou não de Peter Pan ou de seu irmão e a este
é dado o nome de Peninha, pelas crianças. Neste sentido, podemos observar que
Lobato não apenas adapta a obra de Barrie, mas se apropria da mesma, inserindo-a em
seu próprio universo da fantasia.
No primeiro parágrafo do primeiro capítulo da adaptação de Peter Pan, realizada
por Monteiro Lobato, edição de 1930, figura 2, nos é dada uma indicação da passagem
de Peter Pan pelo Sítio do Pica-pau Amarelo, a referente informação destaca-se no
corpo do texto em caixa alta e faz referência ao conto Circo de Escavalinhos, publicado
em 1929. Na segunda edição da adaptação, datada de 1935, a referente indicação é
modificada, com a inserção no lugar do título de Novas Reinações de Narizinho,
antologia que reuniu diversos contos avulsos, e com nota de rodapé, neste mesmo título,
informando ao leitor que a referente obra faz parte da coleção infantil do autor, figura 2.

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Figura 2- Capitulo 1, primeira
Figura 1- Capitulo 1, Primeira
página, adaptação de Peter Pan, 2ª
página adaptação de Peter
ed. 1935
Pan, 1ª ed. 1930

Fonte: Peter Pan, adaptação


Fonte: Peter Pan, adaptação
Monteiro Lobato, 1ª ed. 1930
Monteiro Lobato, 2ª ed. 1935

Dessa maneira, podemos perceber não apenas a modificação de informações,


haja vista que a coleção infantil de Lobato havia sofrido modificação no espaço de tempo
entre as edições, fato que necessitava ser informado ao leitor. Um outro ponto que
também coaduna com o postulado de Mastrobertti (2008) diz respeito à própria
diagramação da primeira página, do capítulo um, que faz uso da imagem que toma
quase toda a página, achatando o texto inicial e também do recuso da moldura que ao
longo de toda edição mantém o texto aprisionado.
Posteriormente, ambos elementos são retirados, permitindo que o texto respire,
que aparente leveza na leitura. No decorrer desta pesquisa, observamos também, que
na 20ª edição da adaptação de Peter Pan, de 1977, a nota de rodapé se mantém,
contudo, o título da antologia de contos é modificado, esta tem a seguinte legenda em
aspecto resumido Reinações de Narizinho. Como já evidenciado, os protocolos de
leitura são antecipadores da narrativa, estes podem ser encontrados no corpo do texto,
em espaços periféricos na página, no início e no final da obra, dentre os protocolos
existentes na adaptação de Peter Pan é interessante explicitar o subtítulo que passa a
incorporar a obra, a partir da publicação da segunda edição, de 1935, figura 3.

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Figura 3- Capa Peter Pan, Figura 4- Folha de guarda, Figura 5- Cap, 1, 1ª pág.
adaptação, 2ª ed, 1935 Peter Pan, adaptação, Peter Pan, adaptação
15ª ed, 1968

Fonte: Peter Pan, adaptação


Fonte: Peter Pan, adaptação Fonte: Peter Pan, adaptação 36ª ed, 1994.Editora
2ª ed, 1935.Companhia 15ª ed, 1968.Editora Brasiliense
Editora nacional Brasiliense

Na edição de 1935, figura 3, podemos observar um layout arrojado e bastante


inovador para a época, logo abaixo do título da obra destaca-se o subtítulo que já nos
revela a premissa da narrativa “A história do menino que não queria crescer, contada
por Dona Benta”, que também atiça a curiosidade do leitor, levando a questionar acerca
da personagem-título: quem é esse Peter Pan que se recusa a crescer? Como ele faz
para continuar uma eterna criança?
Com o passar do tempo, novos projetos gráficos são desenvolvidos para toda a
coleção, sendo assim, o subtítulo passa a ser inserido em diferentes espaços da obra,
na 15ª ed., de 1968, figura 4, o mesmo é posto na folha de guarda, na 36ª edição, de
1994, o subtítulo encontra-se na primeira página do primeiro capítulo, entre o layout com
o título e nome do adaptador/autor e o texto inicial, é necessário frisar que na 20ª edição
de 1977 a referente escrita protocolar inexiste. Com o advento da obra Lobatiana caindo
em domínio público, outras editoras assumiram a publicação e desta forma, cada uma
delas desenvolveu o seu próprio projeto gráfico, como é o caso da Editora Globo, que
em 2009, publicou sua 1ª edição da adaptação de Peter Pan, realizada por Monteiro

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Lobato. Na versão editada pela Ed. Globo, o subtítulo é inserido em uma página dupla
ilustrada, antecedendo o texto inicial que se encontra na página seguinte.
Além das várias mudanças tipográficas, visuais e estéticas nas diversas edições
da adaptação de Peter Pan, devemos lembrar que é D. Benta o grande trunfo nesta
adaptação, pois é ela quem indigeniza a narrativa de Barrie ao abrasileirar os nomes
das personagens, dando uma nova forma aos diálogos, ressignificando passagens e
resumindo a obra original. De acordo com Vieira (1998, p. 21) D. Benta, da mesma forma
que os narradores tradicionais, emprega na sua oralização da história de Peter Pan,
uma fala espontânea e simplória que torna a “leitura inteligível para a criança”.
Na adaptação de Peter Pan, podemos perceber elementos dessa oralização
simplória, a clássica expressão usada pelos contadores de histórias, o “Era uma vez”
dá início a narrativa contada por D. Benta, que logo em seguida, evidencia as
personagens e o espaço onde estas habitam de forma resumida, a família Darling é ali
apresentada sem maiores detalhes, inclusive, ao sobrenome do pai é apresentada uma
explicação sem sentido, “os três tinham o sobrenome Darling, porque o pai se chamava
não sei quê Darling”, nesta passagem a narradora, D. Benta, deixa claro ser
desnecessária uma explicação maior do sobrenome do personagem para o andamento
da narrativa. Acerca disso Lima (2029) esclarece que o Editor Monteiro Lobato tinha em
mente o desenvolvimento de um projeto literário diferenciado, que excluísse os
aforismos e as longas divagações, tão comuns nas obras de sua juventude, suavizando
as obras tanto traduzidas como adaptadas.
Tratando-se de uma obra inglesa, repleta de expressões estrangeiras ao jovem
leitor da época, e tentando seguir o seu projeto de uma literatura mais de acordo com o
público leitor brasileiro, Lobato insere a explicação de algumas palavras no corpo do
texto, na voz simplória de D. Benta, eliminando assim, as notas de rodapé com seus
itens explicativos que tornariam a leitura cansativa para os pequenos. D. Benta, mulher
estudada, que leu a obra de Barrie em Inglês é quem não apenas traduz, explica as
palavras desconhecidas para os seus ouvintes, mas também, abrasileira os nomes das
personagens. Um exemplo claro de tal maestria na indigenização dos nomes das
personagens é o da fada Tinkerbell que na adaptação Lobatiana passa a ser a fada
Sininho.

A imagem como premissa textual


Da mesma forma que lemos os gestos e as expressões das pessoas que nos
cercam, o que nos possibilita compreender os implícitos de suas palavras como as suas

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dores, angústias, desejos e alegrias, o exercício do olhar, como ferramenta do ler
propicia também um maior apuramento da arte, por conseguinte a imagem, a arte visual
como bem evidencia Silva (2020) “é viva e sempre se renova e se adapta ao meio
social”, por isso a necessidade de estarmos aprendendo constantemente a ler a
multiplicidade de sentidos e narrativas que a arte nos propicia. No espaço literário, tanto
o texto como a imagem, são elementos que não devem ser decodificados
mecanicamente, mas interpretados de forma mais profunda e discursiva. Em especial,
no tocante à imagem ou ilustração, é preciso que exista uma maior sensibilidade do
leitor, para que este consiga perceber com maior apuro o elo narrativo entre a arte e o
texto.

No que se refere à imagem, sobretudo imagem fixa, o critério mais


determinante será, portanto, o da narratividade: a imagem narra antes
de tudo quando ordena acontecimentos representados, quer essa
representação seja feita no modo do instantâneo fotográfico, quer de
modo mais fabricado e mais sintético (…). (AUMONT, 2006, p. 246).

Porém da mesma forma que o texto possui uma multiplicidade de sentidos, a


imagem e a ilustração também se permitem uma carga dialógica quando inseridas em
uma obra literária, possibilitando uma extrapolação da narrativa, tornando-se um
segundo texto, concedendo ao leitor uma imersão ainda maior em sua leitura. A capa
do livro é o primeiro espaço de discursividade com o qual todo leitor tem contato,
questão essa que vem de encontro ao que evidencia Martins (1989, p. 33) quando
explicita que “a leitura se realiza a partir do diálogo do leitor com o objeto lido seja
escrito, sonoro, seja um gesto, uma Imagem, um acontecimento”. Para Lima (2020) a
toda arte visual está repleta de narratividade, o que possibilitando a todo o indivíduo
construir, cada um à sua maneira, novos significados, refletindo as imersões e
compreensões que cada um destes faz do texto. Portanto, de acordo com Lima (2020)
a imagem inserida em uma obra literária tem a mesma força dialógica que uma obra de
arte e não podem de forma alguma ser considerada, da mesma forma que no passado,
como meros adornos infantis.

A ilustração não é privilégio do texto destinado à criança. Ela aparece


em diferentes mídias, como na publicidade, visando a dar um caráter
de verdade e auxiliar na recepção do objeto. Acreditamos, porém, que
a ilustração não deva somente dar brilho à palavra, pois estaria na
condição de texto de apoio. Ela, juntamente com [sic] a linguagem
verbal, forma um texto ilustrador, que é visto como um fenômeno
apreendido pelo receptor e é constituído pelo enlace visual e verbal.
(ARANTES, 2009, p. 12)

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Sendo a capa do livro, o primeiro contato do leitor com a obra, como já posto, é
nela que o projeto gráfico se concentra de forma bem mais intensa, pois embora os
protocolos de leitura sejam elementos que norteiam e direcionam a história a ser lida,
com suas notas de rodapé, índices, prefácios, resumos de capítulos, mapas, ilustrações
internas, notas introdutórias, etc, eles também são usados como ferramenta
mercadológica, para seduzir e incitar o leitor/consumidor na aquisição do livro enquanto
mercadoria. E é na estética da capa com um layout arrojado e textos de apresentação,
na quarta capa, de autores renomados e críticos conceituados que o projeto gráfico
editorial se concentra, tentando através da arte do designer, extrair a essência, ou
melhor dizer a alma que obra possuí.
De acordo com Lima (2020) e Carvalho (2019), autores que em seus trabalhos
evidenciaram o processo de evolução da capa do livro, levou-se muito tempo para que
tanto os leitores, como também os editores, percebessem o real valor deste invólucro
do texto. Em seu trabalho como editor, Monteiro Lobato rompeu com o cânone estético
das capas dos livros padronizados das editoras estrangeiras presentes em solo
brasileiro. Segundo o bibliófilo Midlin (1998), Lobato procurou fugir do padrão das
edições publicadas na época, dessa forma, buscou se distinguir das demais editoras a
partir do uso de “ilustrações em quase todas as obras” de sua editora, “tornando o livro”
“atraente já pela apresentação material e não só por causa do texto”. Sendo assim,
como explicita Lima (2020, p. 68) ao “modificar o panorama editorial como um todo,
Lobato não apenas como editor, mas também como autor dá um sopro de vida na
literatura infantil” e de certa forma em toda a estrutura literária da época.
Embora a publicação de sua adaptação da obra de J. M. Barrie tenha ocorrido
em 1930, com um mercado editorial brasileiro a pleno vapor, no que se refere também
à arte de capa das obras literárias, Monteiro Lobato publica sua versão de Peter Pan
em uma edição com um projeto gráfico simplório, com uma paleta de cores limitada, a
isso Lima (2020) nos diz se dever ao alto custo da impressão em cores na época, razão
pela qual as ilustrações internas são decalques da arte original, elaborada por uma
artista inglesa, assim como a imagem de capa, figura 6, de acordo com Lima (2020), as
ilustrações de Woodward foram largamente utilizadas por Lobato nas edições de Peter
Pan que se seguiram, porém não nos foi possível apurar o real motivo pelo qual a
referente artista não teve o seu nome creditado nas obras.

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Figura 6- Capa, adaptação Peter Pan,
1ª ed, 1930

Fonte: Peter Pan, adaptação, 1ª ed,


1930. Companhia Editora Nacional

Ao compararmos as capas da 1ª edição e a da 2ª edição podemos perceber, a


princípio, a simplicidade que a primeira delas nos passa, embora em sua arte, o leitor
possa perceber aspectos da história que ainda lhe é desconhecida, como a reunião de
crianças que escutam atentamente e com expressões de surpresa, uma jovem a lhes
contar algo. Fora o título, a imagem não dá ao leitor qualquer indicação de que o Peter
Pan faz parte da cena, este usa uma blusa e sapatos vermelhos, com calça de malha e
um gorro azul. Para o leitor atual preso a concepção Disney, que muito influenciou tanto
os ilustradores como o próprio cinema. Porém, a capa da edição de 1935, embora
possua um arrojado projeto gráfico, também não põe em sua arte de capa o
personagem-título em evidencia maior, da mesma forma que a sua antecessora o que
se põe em destaque é apenas uma passagem isolada da narrativa.
Segundo Lima (2020) a coleção infantil Lobatiana teve diversas edições, desde
obras em capa dura até mesmo de cunho mais simplório, ou por assim dizer, mais barato
para o público, desta forma seus projetos gráficos abraçaram diferentes artes, porém foi
na arte de capa de Augustus que a adaptação de Peter Pan veio a ganhar maior
dinâmica, mesmo ainda carregando referências da concepção da artista inglesa Alice
B. Woodward. Na atualidade com a obra lobatiana em domínio público, os projetos

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gráficos tornaram-se mais infantilizados e cartunescos, mas conseguindo maior
autonomia na arte e na sua ligação prévia do texto.

Considerações Finais
Neste trabalho pudemos perceber que a leitura requer um aprendizado
constante, não apenas de suas nuances textuais, mas também dos elementos que
cercam o próprio texto, os protocolos de leitura. Estes norteadores, não apenas nos
auxiliam no trânsito narrativo, mas no seu aprofundamento, como notamos na
adaptação de Lobato para a obra de Barrie, Peter Pan. A imagem é um dos protocolos
de leitura de maior destaque, pelo seu apelo estético tanto internamente como
externamente no espaço da capa, esta usada com maior apuro e destaque por se tratar
de um chamariz de venda, pois é com este recurso que a obra se destaca à primeira
vista, servindo como premissa do texto que ela envolve.

Referências
ARANTES, Rita de Cássia Batista. O processo ilustrador do livro infantil à luz do diálogo
palavra e imagem em obras de Eva Furnari: concepções e práticas possíveis. PUC-SP,
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Fig. 2: LOBATO, Monteiro. Peter Pan. 2ª ed. Cia Editora Nacional, São Paulo, 1935
Fig. 3: LOBATO, Monteiro. Peter Pan. 2ª ed. Cia Editora Nacional, São Paulo, 1935
Fig. 4: LOBATO, Monteiro. Peter Pan. 15ª ed. Editora Brasiliense, São Paulo, 1968
Fig. 5: LOBATO, Monteiro. Peter Pan. 36ª ed. Editora Brasiliense, São Paulo, 1994.
Fig. 6: LOBATO, Monteiro. Peter Pan. Cia Editora Nacional, São Paulo, 1930. Biblioteca
Infanto Juvenil Monteiro Lobato, São Paulo, SP, 2019.

Referência de vídeo

LOBATO, Monteiro: Furacão na Botocúndia. Direção: Roberto Elisabetsky, Produção:


Michele Mifano. Videoimagem, 1998. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=dlci4_ISXrE. Acesso em: 03 mai. 2019.

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A LITERATURA INFANTIL NO CURRÍCULO DO ENSINO BÁSICO
EM MOÇAMBIQUE: UM OLHAR SOBRE ENSINO DA LEITURA E
FORMAÇÃO DO LEITOR 203

Micaela Sílvia Simão Fondo Covane

Eixo Temático: Literatura infantil e ensino.

Considerações Iniciais204
O discurso sobre a literatura infantil ganha espaço no mundo com o
reconhecimento da criança como um ser diferente do adulto. É nos finais do século
XVIII e princípio do século XIX que surgem os primeiros livros de literatura produzidos
especificamente para criança cujas temáticas estavam dirigidas à educação da criança.
Mas até essa altura, os textos infantis procuravam incutir na criança apenas aspectos
moralísticos, entendidos como ensinamentos sobre a conduta como o respeito aos mais
velhos dentro da sociedade em que está inserida (ZIBERMAN, 2003; COLOMER, 2014).
Nessa perspectiva, a literatura infantil não tem importância para a formação do leitor
propriamente dito, aqui entendido como leitor responsivo.
É para esse âmbito que pretendo orientar a minha reflexão, partindo da
consideração de que em Moçambique os discursos sobre a literatura infantil e a
formação do leitor nos documentos oficiais e nos livros didácticos do ensino primário 205
são recentes, datando a partir do ano de 2017 após a revisão pontual dos programas
do ensino primário do 1º ciclo, porque, ao que tudo indica, ainda subsiste a ideia de que
a literatura infantil serve para ensinar a conduta e o respeito, sem muita preocupação
com a formação do leitor.

203
Corte da Dissertação em andamento, intitulada: orientações didácticas e ensino da literatura
infantil: leitura e formação de leitor no ensino Básico em Moçambique, sob a orientação da
professora Doutora Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto.
204
O texto está escrito com base na ortografia oficial utilizada em Moçambique, excepto as
citações.
205
Para situar o leitor brasileiro, o ensino primário é o mesmo que ensino básico e no Brasil
corresponde ao Ensino Fundamental 1.
1206

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A formação de leitores em Moçambique constitui um dos maiores desafios que
o sistema educativo e a sociedade moçambicana enfrenta (MINEDH, 2017), no entanto
é preciso compreender qual a concepção que o discurso oficial do Ministério da
Educação de Moçambique elabora sobre a leitura, uma vez que continuamos a ver
alunos que concluem o ensino primário sem saber ler e escrever. A mim, como
professora de português em Moçambique, mesmo não actuando directamente no
ensino primário chegam-me alunos no ensino secundário que não sabem ler, preocupa-
me bastante o modo como professores encaram a questão da leitura, como
decodificação de sinais gráficos desprovidos de sentido.
Penso que o reconhecimento da literatura infantil como género cultural e sua
leccionação adequada na escola, isto é, sem desagarrá-la da cultura da criança pode
contribuir para a formação adequada do leitor, uma vez que insere a criança no mundo
da linguagem escrita.
O presente artigo traz parte das reflexões tecidas na minha dissertação em
andamento, desenvolvida na Universidade Estadual Paulista, campus de Marília, e
pretende analisar alguns contos infantis e as actividades propostas no livro de Português
“Vamos ler e escrever” da 2ª classe do ensino primário em Moçambique, a fim de discutir
como a literatura infantil é compreendida nesse material à luz da análise de enunciados
proposta pela filosofia marxista da linguagem.
O texto divide-se em duas partes. A primeira traz contribuições teóricas sobre a
literatura infantil, leitura literária e a linguagem na perspectiva dialógica. A segunda e
última, faz a discussão dos dados a partir da análise de dois contos com o título “o
pássaro, a formiga e o cão” e “o sapo e a lagarta” Propostos no livro didático de
português da 2ª classe em Moçambique.

Literatura infantil e a formação do leitor literário na perspectiva dialógica da


linguagem
Os estudos de Mikhail Bakhtin (1875-1975), Valentin Volochínov (1895-1936) e
Pável Medviédev (1891-1934) têm suscitado discussões de grande relevo na
actualidade, ao propor, a linguagem como uma prática social e constitutiva dos sujeitos.
Geraldi (2009, p. 18), reflectido sobre a linguagem nesse sentido, entende que

O sujeito se constitui como tal à medida que interage com os outros


sua consciência e seu conhecimento do mundo resultam como
“produto sempre inacabado” deste mesmo processo no qual o sujeito
internaliza a linguagem e constitui-se como ser social e histórico seu e
dos outros e para os outros e com os outros que ele constitui, isto
implica que não há um sujeito dado, pronto, que entra em interação,
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mas um sujeito se completando e se constituindo nas suas falas e nas
falas dos outros.

Desse modo, se o sujeito se constitui nas relações sociais com os outros, não
há espaço para a escola continuar a insistir na decodificação, porque a linguagem não
é um objecto pronto e acabado. Significa quando a criança entra em contacto com ela,
lê o texto da literatura infantil está já interagindo com os outros e aos poucos se vai
constituindo socialmente.
Na perspectiva filosófica da linguagem, a troca verbal entre os indivíduos é feita
por enunciados que podem ser (orais ou escritos) funcionando como elo entre outros
enunciados, nesses termos, Bakhtin (2016, p. 162) afirma que:

[...] o enunciado é um elo da cadeia da comunicação discursiva, não


pode ser separado dos elos precedentes que o determinaram tanto de
fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e
ressonâncias dialógicas. Como elo do processo de trocas culturais, o
enunciado une passado, presente e futuro, pois “não está ligado
apenas aos elos precedentes, mas também aos elos subsequentes da
comunicação discursiva”, formando, assim, um continiuum na cadeia
histórica da cultura. [grifo do autor].

O enunciado como elemento fundamental na troca verbal não pode ser


compreendido fora das relações do próprio homem, o que significa dizer que a literatura
infantil como linguagem deve ser ensinada, levando em consideração a própria cultura
da criança, pois dela se constitui. No entanto, muitas vezes a escola faz o contrário,
desintegra o texto literário da cultura da criança.
A linguagem é uma actividade humana e responsável pela inserção do próprio
homem no mundo da cultura. Sob essa compreensão, é preciso que a escola reconheça
a importância da literatura infantil como instrumento por meio do qual a criança se insere
na cultura escrita. A respeito dessa compreensão Bakhtin declara que:

A literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora


do contexto pleno de toda a cultura de uma época. É inaceitável
separá-la do restante da cultura e, como se faz constantemente, ligá-
la imediatamente a fatores socioeconômicos, por assim dizer,
passando por cima da cultura. Esses fatores agem sobre a cultura no
seu todo e só através dela influenciam a literatura (BAKHTIN, 2018, p.
360)

Compreender a literatura fora da cultura é retirar a historicidade do homem, é


silenciar e reduzi-lo a um objeto, coisa morta. Nesses termos, a literatura infantil como
fruto dessa historicidade não pode ser oferecida às crianças fora das suas construções
ideológicas. É assim que Medviédev afirma,

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A literatura insere-se na realidade ideológica circundante como sua
parte independente e ocupa nela um lugar especial sob a forma de
obras verbais organizadas de determinado modo e com uma estrutura
específica própria apenas a elas. Ela, como qualquer estrutura
ideológica, refrata à sua maneira a existência socioeconómica em
formação. Porém ao mesmo tempo, a literatura, em seu “conteúdo”,
reflete e refrata as reflexões de outras esferas ideológicas (ética,
cognitiva, doutrinas políticas, religião, e assim por diante), ou seja, a
literatura reflete, em seu “conteúdo”, a totalidade desse horizonte
ideológico, do qual ela é uma parte (MEDVIÉDEV, 2012, P. 59)

A literatura como qualquer criação ideológica não só reflete uma realidade, mas
também refrata outra. Por isso que insisto em dizer que a literatura infantil desempenha
um papel de destaque na medida em que permite aprender muitos aspectos da vida.
Por exemplo, ao ler um texto literário, dialogamos, inevitavelmente, com o autor e sua
cultura.
É nessa linha também que Girotto e Souza se posicionam, ao afirmar que “a
literatura é o pulmão da psique, na medida em que a deixa respirar de outra maneira”.
(GIROTTO; SOUZA, 2016, p.19). É interessante a forma como autoras falam sobre a
importância da literatura infantil, ao referir metaforicamente à literatura como pulmão,
fica evidente a ideia de que a literatura infantil é vida e energia, ou seja, a literatura não
só introduz a criança na cultura, ela acompanha a criança, ao longo de toda a vida.
Arena (2010) compreende o ensino da literatura infantil em duas vertentes:

A primeira, por entender que a literatura medeia a relação da criança


com a cultura da sua época, mas transcende a ela, tanto para o
passados, quanto para o futuro; a segunda, porque a criança, imersa
em um contexto cultural, necessita desse contexto para se apropriar
da cultura que encharca o gênero literário a que tem acesso (ARENA,
2010, p.15).

Os dois eixos apresentados pelo autor para o ensino da literatura infantil na


escola permitem a criança compreender, dialogar, valorar e produzir sentidos. Portanto,
é impossível formar leitores que inferem e questionam o texto sem os conhecimentos
culturais da literatura infantil.
Para que o leitor em formação se torne dialógico, a escola como instituição
responsável pela integração e socialização dos indivíduos deve trazer nos livros
didácticos, textos que exploram essa sociabilidade cultural de modo a possibilitar a
criança o espírito de questionar o texto e obter resposta que lhe proporcionariam à
produção de sentidos. (GIROTTO; SOUZA, 2010; FOUCAMBERT, 2014; ARENA,
2015).

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Numa altura de muitas vicissitudes, ensinar a criança os actos de ler a literatura
infantil é habilitá-la à vida, é libertá-la das amarras tradicionais fixadas pela escola,
proporcionando-lhe a capacidade de imaginação de modo a transformar o mundo real
por ela vivenciada.
Ler um texto da literatura infantil significa compreender o enunciado do outro e
dar-lhe o sentido. É desse modo que Volóchinov (2017, p. 232) entende por
compreender o enunciando:
Compreender um enunciado alheio significa orientar-se em relação a
ele, encontrar para ele um lugar devido no contexto correspondente.
Em cada palavra de um enunciado compreendido, acrescentamos
como que uma camada de nossas palavras responsivas.

É possível compreender que a leitura não se limita apenas em reproduzir ou


identificar os enunciados do outro passivamente. Por excelência, a criança é um sujeito
responsivo, que fala, concorda e discorda e sendo assim não há espaço para ser
reprodutora passiva de enunciados.
Além disso, ler

É ampliar as possibilidades de interlocução com pessoas que jamais


encontraremos frente a frente e, por interagirmos com elas, seremos
capazes de compreender, criticar e avaliar seus modos de
compreender o mundo, as coisas, as gentes e suas relações.
(GERALDI, 2009, p. 66)

Partindo dessa concepção, é preocupante compreender que a leitura ensinada


à criança na escola primária tende a afastar-se da cultura que só a literatura infantil pode
oferecer porque isso limita a criança de dialogar com o outro e ampliar o seu horizonte.
É preciso que aprofunde a concepção acerca da leitura na escola, percebendo-
se que a leitura de um texto não deve ser confundida com o processo de reconhecimento
de sinais. Reconhecimento e compreensão são dois conceitos bem distintos,
reconhece-se um sinal que não vale nada. Desse modo, entender a leitura como
decodificação, que corresponde a reconhecer sinais, não tem interesse para o leitor. Ao
contrário, a linguagem como signo se compreende (VOLOCHÍNOV, 2017), o que
significa atribuir sentido ao que se lê.
Nesse sentido, a escola deve ensinar a criança a compreender os enunciados,
o que significa que essa tarefa deve ser iniciada o mais cedo possível por meio da
literatura infantil.
Ao apresentar essa breve exposição, o meu objectivo era o de entender o que é
ler. Após essa compreensão, passo, em seguida, a apresentação dos resultados
preliminares da análise que faço no livro didáctico do ensino primário, da 2ª classe

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Primeiros resultados
Os dados aqui apresentados são analisados à luz do objectivo deste artigo que
procura discutir como a literatura infantil é compreendida nesse material. Antes, porém,
é preciso referir que analiso os enunciados como vozes encarnadas pelo autor desse
material e a minha voz se junta a elas para compreender, provisoriamente, a leitura. A
linguagem é arena de vozes. Nesse sentido, esta análise traduz-se fim a cabo numa
disputa de vozes do sujeito autor e da minha voz pessoal, também como sujeito da
pesquisa, e das vozes que incorporo dos outros, porque a linguagem é arena de vozes
sociais.
Para tal, seleccionei duas fábulas do livro didáctico de português da 2ª classe
com o título “vamos ler e escrever”. Bakhtin (2016) diz que a linguagem se efectua por
enunciados que se organizam em gêneros relativamente estáveis e esses enunciados
refletem ao campo da atividade humana em que eles são produzidos. Desse modo,
compreendo o livro como um gênero escolar secundário no qual atravessa uma
multiplicidade de vozes que disputam espaço de ensino da literatura infantil e da leitura.
Além disso, Bakhtin diz que a linguagem não é algo acabado e os enunciados
não aparecem soltos, porque são banhados de outros enunciados que os precedem e
os antecipam. Desse modo, quero entender que a análise que faço não é definitiva, é
simplesmente uma leitura possível e espera responder a alguns e antecipar dos outros
e ainda meus, no futuro.

Literatura infantil e simbologia contida nos nomes dos personagens na cultura


moçambicana
Dentre todos os itens que compõem o livro didáctico analisado, detenho-me,
agora, da compreensão sobre a simbologia contida nos nomes dos personagens na
cultura moçambicana, a atitude do autor sobre a escolha de papéis dos personagens,
bem como a concepção do sujeito autor na orientação didáctica das tarefas para os
alunos. Para depois, compreender a concepção do sujeito autor sobre a leitura e
formação do leitor.
Para essa compreensão, começo pela fábula “o pássaro, a formiga e o cão”, que
é, como a segunda, uma narrativa curta, típica das fábulas tradicionais, do ponto de
vista de extensão e de número limitado de personagens para facilitar a oposição entre
virtudes/defeitos, bem/mal (ARAÚJO, 2012). Nessa pequena narrativa, que aborda a
questão do bem e do mal, parece que a escolha dos personagens para desempenhar

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papéis teve a ver com a forma como esses animais são encarados na cultura
moçambicana.
Ora vejamos, a formiga é, geralmente, vista como força de trabalho e energia. O
pássaro, geralmente, a rola, o pombo, simboliza a natureza, paz e harmonia. Nas
celebrações das datas importantes, como dia da independência nacional, 25 de junho e
dia da paz, 4 de outubro, os governantes costumam lançar ao ar a pomba branca a voar.
O mesmo não se pode dizer em relação ao cão. Ainda que em algumas culturas
tradicionais e rurais o cão represente força de trabalho como caçador, noutras,
sobretudo, nas zonas urbanas e atuais, representa protecção. Mas, na maioria, dos
casos, o cão tem conotações muito negativas: é sujo, ladrão, vadio e prenuncia
presságio, de tal ponto que quando atravessa uma casa, todo o mundo deseja atirar-lhe
pedra.
E na segunda fábula, também aparece o sapo como símbolo de desobediência
e de máfia, por isso, muitas vezes, ele aparece a ser castigado. Enquanto a lagarta
simboliza a beleza natural e o bem.
Ao analisar atitude do autor nas duas fábulas, é possível observar, com
frequência, dois comportamentos em relação às personagens. Na fábula, o pássaro, a
formiga e o cão, a narração sugere ao favorecimento do comportamento das
personagens “o pássaro e a formiga” e ao desfavorecimento do comportamento do
personagem “cão”. O mesmo sucede na segunda fábula “o sapo e a lagarta” em que se
atribui à lagarta bom comportamento e mau comportamento ao sapo, por ter
desobedecido às instruções da lagarta.
De qualquer modo, o que me chama a atenção é que há em cada fábula um
parágrafo final que não parece fazer parte da narrativa: a primeira fábula termina com
um parágrafo que diz. “Esta história ensina-nos que a ajuda mútua é importante”
(MINEDH, 2018, p.73); e a segunda com “Por isso que o sapo tem a pele cheia de
borbulhas, porque não escutou os conselhos da lagarta até ao fim” (MINEDH, 2018, p.
99). Esses parágrafos remetem à ideia de fixação de sentidos, como afirma Geraldi
(2009).
Concordo com o autor, na escola o texto sempre esteve presente, porém ele tem
sido “transformado em objeto de fixação de sentido” (GERALDI, 2009). Segundo o autor,
os sentidos que o professor ou algum outro leitor privilegiado tenha dado ao texto
passam a ser os sentidos do texto. E conclui dizendo que esse tipo de práticas responde
a qualquer interesse do próprio leitor, neste caso o aluno.

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É impossível compreender quem é o autor das fábulas analisadas, uma vez que
não aparece a identificação, o que me leva a atribuir a autoria dessas fábulas ao sujeito
autor do livro. Dessa forma, afigura-me também, tacitamente, atribuir esses parágrafos
ao autor do livro. Analisando, de perto, esses parágrafos já afirmam o que o aluno-leitor
deve saber, o bem e o mal e as consequências que podem advir em caso de
desobediência. Dessa forma, aí não há espaço para o leitor, partindo das suas
experiências, suas vivências, massa aperceptiva, construir seu próprio sentido.
Conforme afirmei, ler é dialogar com o texto onde o leitor infere seus
conhecimentos da cultura (ARENA, 2015; GIROTTO; SOUZA, 2010). Nesse sentido,
por meio daqueles parágrafos, não há para isso.
Os animais representados, quer numa quer noutra fábula, são bem conhecidos
pelos alunos. Conforme mostrei, por exemplo, o cão é também um companheiro,
protector. No entanto, essa dimensão não foi explorada, nem na fábula em si, nem nas
questões que acompanham a fábula para os alunos, o que torna o texto um código,
lembrando que, para Bakhtin (2011, p. 383), “[...] o código é acabado [...] um meio
técnico de informação, não tem significado [...] um contexto deliberadamente
estabelecido, amortecido.”
O mesmo pode dizer-se, se analisarmos as perguntas que acompanham
as fábulas. Não permitem ao aluno ler no sentido bakhtiniano como construção de
sentido. Todas elas remetem ao acto monológico. Ora vejamos: quer numa seja noutra
fábula, questiona-se “Qual é o título da história?” (op. cit. 99) “Qual é o título do texto”
(op. cit. 73). Aqui o aluno não precisa de esforço, porque a resposta já se encontra no
próprio texto. Assim como para todas as perguntas, as quais se transcrevem abaixo, as
respostas estão à vista no texto.

Quadro 1: Perguntas extraídas do livro didáctico de português, 2ª classe


Texto 1 Texto 2
Qual é o título do texto? Qual é o título da história?
De que animais fala o texto? O que perguntou o sapo à lagarta?
Que animais são amigos? O que respondeu a lagarta?
O que é que aconteceu à formiga? O sapo ouviu todo o conselho da lagarta?
Quem salvou a formiga? O que fez o sapo ao chegar a casa?
O que é fez a formiga para ajudar o O que aconteceu ao sapo? Por quê?
pássaro? O que é que este texto nos ensina?
O que é que nos ensina o texto?
Fonte: A própria autora
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A leitura é fundamental no desenvolvimento da consciência do aluno, no entanto
ela deve ser orientada pela escola de forma eficaz. Segundo Volóchinov (2017), é
importante que a linguagem seja orientada para o interlocutor e é o elo entre duas
extremidades do eu e do interlocutor. Significa que a escola, por meio dos textos de
literatura infantil, deve preparar os alunos a saber ler, que é dialogar com o outro.
Conforme afirmei, a literatura infantil insere a criança no mundo da cultura e no
mundo da linguagem escrita. Nesse sentido, o que a escola deve fazer é permitir que o
aluno leia o texto e ele próprio avaliar a situação narrada no texto e decidir o que
interessa para ele. Submetê-lo a um sentido elaborado, além de não permitir a leitura
em si, é reduzir a criança a um estado de objecto, coisa morta, conforme diz Bakhtin.
Deixá-la falar dos personagens, ressignificar os papéis dos personagens é a
melhor forma de ensinar a literatura infantil. Por exemplo, conforme apontei, o cão, para
alguns, é protector, e para outros, trabalhador e caçador, certamente que nem todas as
crianças falariam dele como feio e mau, porque, para elas é um animal de estimação.
A fixação de sentidos num texto de literatura infantil impede a criança de
desenvolver os aspectos, criativos e imaginativos de modo a inferir e recuperar o não
dito, por exemplo, podia se usar o texto o pássaro, a formiga e o cão, para mostrar o
lado positivo das personagens e incentivar a criança saber estar perante várias atitudes
que for encontrar na sociedade em que está inserida, mas pelo contrário procura afastá-
lo da vida quotidiana.
Sabendo que um texto destinado para crianças principalmente o da literatura
infantil a imaginação é tida como actividade principal que permite a inserção da criança
nos diferentes campos da vida cultural, Vigotski (2018), o professor na sala deve propor
questões que suscite o desenvolvimento dessa imaginação na criança através das
pistas que o próprio texto dá de modo a levar a criança a se interessar pela sua cultura
e desenvolver a sua própria autoria durante a leitura do texto da literatura infantil.

Considerações finais
A necessidade de ampliar o debate sobre o ensino da literatura infantil para a
formação do leitor dialógico, criativo e imaginativo no ensino primário em Moçambique
analisando dois contos no livro didáctico da 2ª classe, constitui o meu foco, pelo que o
artigo não tem o carácter acabado, mas um ponto de partida para muitos debates.
Nesses termos os resultados obtidos dessa análise mostram que a leitura e a
literatura infantil como componente cultural, no livro didáctico apresentam uma
abordagem muito deficiente, são necessárias mais discussões de modo a que se
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compreenda que ela é uma ferramenta para inserir na vida e no mundo da linguagem
escrita.
Um dos aspectos muito importantes que pude verificar nos textos é a presença
dos aspectos culturais que levariam a criança a desenvolver a imaginação, mas esses
aspectos não são levados em consideração nas perguntas colocadas ao texto, no caso
concreto das fábulas analisadas, o cão tem um papel especial na sociedade
Moçambique que não seja a de fazer mal como foi representado. No entanto, essa
dimensão foi ignorada.

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CONTANDO ENCANTANDO E PRODUZINDO

Denise Mendonça Barbosa


Pedagoga pela Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora da rede municipal de ensino de
Juiz de Fora
E-mail: denisemb2009@gmail.comTel:(32)99809-9615

Eixo Temático:8 (Literaturas infantil e ensino)

Considerações iniciais
Este texto se propõe a compartilhar um relato de experiência vivenciado com
alunos do primeiro ano do ensino fundamental. Acreditando que a literatura é arte e por
isso nos encanta, e deste modo percebemos como a escola tem uma grande
responsabilidade em provocar emoções nas crianças. Para isso é preciso uma formação
dos alunos com o letramento literário. Desta forma, ampliando o conhecimento de
mundo dos alunos que possibilite interagir, em sociedade, usando os meios de
circulação de materiais impressos existentes.
A escola é, hoje, a principal instituição responsável pela imersão e participação
de crianças e adolescentes em práticas sociais de leitura e de escrita, pois a
aprendizagem dos estudantes está fundamentada em tais práticas. Considerando,
portanto, que a leitura é uma prática cultural, que amplia as possibilidades dos sujeitos
exercerem sua cidadania letrada, formar leitores se constitui uma tarefa central das
instituições de ensino.
Para tanto, importa-nos ressaltar que a prática de leitura literária, aqui abordada,
está alicerçada em uma compreensão de leitura, como prática cultural integrante do
processo de formação do indivíduo, que traz novas formas de interação. Sendo assim,
a leitura literária ocasiona a possibilidade de experimentarmos realidades diferentes e
vivermos em culturas diversas, além de nos despertar sentimentos que engendram
novas formas de pensar, de estar e de ser no mundo. Por abrir a possibilidade de dar
sentido ao que vivemos, e de podermos compreender o mundo através das palavras,
que consideramos que a literatura precisa ter o seu lugar realçado nas escolas.

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Acredito na formação do aluno como apreciador de literatura; um ouvinte ativo
que se tornará, no futuro, um leitor de literatura capaz de escolher suas leituras e se
envolver com tais leituras. Conseguindo ultrapassar os muros da escola e incorporar a
literatura em sua vida adulta. Para isso, é necessário superar o didatismo que ainda
persiste nas atividades com o livro literário.
Na escola, dispomos de diversos materiais que são específicos para desenvolver
trabalhos de formação como: os paradidáticos, que são apropriados para desenvolver
projetos sobre os mais variados assuntos escolares.
Já os livros literários precisam ser vistos como obra de arte, que merecem ser
apreciados, eles nos inspiram em nossa formação humana, nos sensibilizando e nos
fazendo refletir sobre nossa existência. A literatura faz a mediação entre a relação da
criança com a cultura. Assim, Arena nos aponta:

[...] a criança com o estatuto de aluno- como apropriante da cultura


humana, por meio das obras literárias que redesenham e reinterpretam
a realidade. Esse movimento de apropriação, contudo, não é
simplesmente receptivo porque sua própria natureza mobiliza as trocas
culturais entre a obra e seu leitor. Na verdade, a pequena criança-
aluna-leitora posiciona-se como o outro no diálogo, no movimento de
apropriação cultural e, por essa razão, aprende e apreende o modo de
atribuição de sentido em sua relação com o gênero literário e, ao
posicionar-se, atende à incompletude dos enunciados e a eles
responde em atitude própria de um ser outro em relação dialógica.
(ARENA, 2010, p.15)

Deste modo, a literatura nos possibilita uma imersão na cultura humana, para
que possamos viver experiências de outras épocas. Segundo Arena, é através do
mediador que as crianças irão atribuir sentido aos textos lidos, “o mediador espera que
a obra possa manter uma relação dialógica histórica e cultural com o leitor”. (ARENA,
2010, p.17)
Como caminho para partilhar a experiência vivida por mim e pelos alunos, busco
organizar esse texto a partir de um entrecruzamento, entre a prática e a teoria, trazendo
a experiência de leitura literária realizada e as reflexões teóricas que a fundamenta. No
primeiro momento, apresento os fundamentos teóricos, acerca da leitura literária e do
letramento literário que sustenta a prática. No segundo, apresento o relato das práticas
desenvolvidas na sala. Para finalizar, faço algumas considerações sobre o trabalho
desenvolvido.

Fundamentações:

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Para discussão sobre leitura temos que falar de mediação. Entre todas as
funções que a escola assume, destaco a sua estrutura, como sendo um espaço
privilegiado de mediação de leituras literárias.
Para que o trabalho desenvolvido com a leitura literária alcance êxito, o encontro
entre o livro e as crianças acontecerá através de mediações marcadas, não somente
pela busca de informações, mas principalmente, pela vivência de modo a promover a
apropriação do texto, o reconhecimento de suas especificidades e a atribuição de
sentidos ao que se lê; buscando o desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos. Os
professores são os mediadores que se apresentam como os principais sujeitos na
formação do leitor.
Portanto, é o professor, neste lugar de mediador, que criará condições para que
o leitor se coloque em interação com o texto e, assim, sejam produzidos novos sentidos
que podem ser expressos, através de opiniões e comentários. Dessa forma, podemos
considerar que dentre os vários espaços que compõem a escola, a sala de aula e os
demais espaços escolares, se apresentam como importantes instâncias de divulgação
da cultura escrita e da leitura literária.
A respeito da discussão, acerca das mediações com o texto literário, no contexto
escolar, da biblioteca e da organização desse espaço, Vigotski diz:

[...] da necessidade de ampliar a experiência da criança, caso queira-


se criar bases suficientemente sólidas para a sua atividade de criação.
Quanto mais a criança viu, ouviu e vivenciou mais ela sabe e assimilou;
maior é a quantidade de elementos da realidade de que ela dispõe em
sua experiência; sendo as demais circunstâncias as mesmas, mais
significativa e produtiva será a atividade de sua imaginação.
(VIGOTSKI, 2018, p. 25)

Acredito que é função da escola promover estas experiências com a literatura,


despertado e ensinado aos alunos, através de mediações escolares de leitura literária,
que apontem ao leitor para que observe os sentidos implícitos do texto, relacionar os
elementos verbais e não verbais, inferir, dentre outras intervenções, pois os textos se
completam, através das experiências prévias adquiridas pelo leitor nessas
circunstâncias, na interlocução entre a obra e o leitor mediada pelo professor.
Desta forma, cabe a escola e ao professor promover vivências necessárias às
crianças, para que possam perceber a literatura como um processo de humanização.
Convém destacar que a literatura é uma fonte primordial de humanização e
sensibilização, por isso, precisa estar voltada para a formação do sujeito leitor, mais
pelo viés estético do que o pedagógico. Assim, quanto mais significativas forem as
mediações de leitura literária vivenciadas no contexto, maiores as oportunidades das
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crianças se aproximarem da literatura e se tornarem leitores desse gênero, para além
do contexto escolar. A esse respeito, Antônio Cândido fala que a literatura é: “(...) ela é
fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua
humanidade.” (CANDIDO, 2011, p.177). Para Cândido, a literatura faz parte dos direitos
humanos tão necessários quanto todos os demais direitos. Pensando nas palavras
deste autor, podemos sentir como a escola precisa aproximar as crianças das vivências
literárias, pois se os alunos, em especial os alunos de escolas públicas, que em sua
maioria fazem parte das classes menos favorecidas, não tiverem acesso aos livros neste
ambiente escolar dificilmente terão em outros ambientes.
Pensando desta forma, como fala Cândido, procuro trabalhar a literatura de
modo que os alunos possam captar os sentidos das coisas não ditas, de preencher os
espaços deixados nos textos literários, para que o leitor possa completá-los com sua
subjetividade.
Durante a leitura de história, as crianças ouvem com atenção a narrativa,
interagindo com ela e dialogando com as ilustrações; vivenciando sensações de alegria
e de medo durante a história. Realizando desta forma, o chamado pacto ficcional 206 que
nos possibilita viver uma experiência literária. Esse pacto ficcional é criado quando,
através da leitura, as crianças mergulharam na história, interagindo com ela;
estabelecendo uma relação entre o leitor e o texto, onde os alunos entram em uma
viagem, dando asas à imaginação, podendo se transformar nos seus personagens
favoritos, vivenciando uma experiência estética.
Essa experiência estética está relacionada aos sentidos, que cada leitor ou
ouvinte do texto vão construindo, dependendo de seus conhecimentos prévios com
leitura. Assim nos esclarece Pacheco sobre estética:

A estética, antes de ser apologia ao belo, às formas perfeitas, a um


estado contemplativo-passivo de apreciação de uma obra de arte ou
um estado de pura inspiração para sua execução, antes de tudo isso,
estética está associada aos sentidos, à percepção através dos
sentidos. Estética tem sua origem em estecia, ou seja, sensação,
sensibilidade, sentido (PACHECO, 2009, p.211)

206
Segundo Correa, “pacto ficcional é o acordo que se estabelece entre leitor e texto, no sentido
de não se questionar o estatuto fantasioso de uma obra. Esse pacto se realiza tanto a partir da
leitura de obras literárias escritas em prosa, como contos novelas e romances, dirigidos a adultos
jovens e crianças, como também a partir de obras em linguagens que mesclam o verbal e o
visual, como novelas e séries televisivas, filmes, histórias em quadrinhos, tirinhas de jornal,
desenhos animados e outras produções de vários gêneros”. (Glossário Ceale). Disponível em:
http:<//ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossário ceale/verbetes/pacto ficcional>. Acesso em:
14/08/2020

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Desta forma, vemos a literatura como arte e não somente no sentido de deleite,
de beleza, mas também, no sentido de provocar experiências impactantes, que nos
provoca. Causando incômodos que nos auxilia na elaboração da nossa subjetividade,
contribuindo para compreensão da realidade.
Sobre conhecimentos prévios, concordo com Vigotski, e acredito que sua
importância é fundamental, para ampliarmos as experiências das crianças,
possibilitando seu acesso aos livros e materiais impressos, que circulam na sociedade.
Segundo o autor:

Quando acompanhamos a história das grandes invenções, das


grandes descobertas, quase sempre é possível notar que elas surgiram
como resultado de uma imensa experiência anterior acumulada. A
imaginação origina-se exatamente desse acúmulo de experiência.
Sendo as demais circunstâncias as mesmas, quanto mais rica é a
experiência, mais rica deve ser também a imaginação (VIGOTSKI,
2018, p24)

Assim, temos a constatação que não criamos ou inventamos do nada, para se


criar algo é preciso ter observado antes, a criação acontece, a partir de experiências
anteriores. Deste modo, a escola tem o compromisso de possibilitar que as crianças,
mesmo as bem pequenas, tenham acesso as mais variadas experiências, através das
diferentes linguagens: corporais, artísticas, matemáticas, digitais, verbais e gráficas.
Cabe a escola oferecer atividades que envolva estas outras linguagens, para que os
alunos possam se expressar de outras formas e não apenas com a linguagem escrita,
que é a mais valorizada nas escolas, até os dias de hoje.
Ao vivenciar esta experiência de leitura com os alunos, pude notar como as
crianças já estavam se apropriando de algumas habilidades leitoras, como a observação
da capa do livro, a pergunta pelo nome do autor e ilustrador, observações sobre os
aspectos gráficos da obra. Acredito, que ao oportunizar estas experiências com os
livros, vamos formando os alunos no letramento literário. Como fala Paiva, estes
aspectos gráficos só são possíveis de serem observados no contato direto com o livro.
Para que ocorra o letramento literário é necessário que haja a interação com o livro.

Ela pode ser usada para o processo de ensino e aprendizagem que


envolve aspectos da linguagem, mas deve também garantir que se
conjuguem essas atividades às possibilidades de leitura da literatura
no suporte livro. A interação com o livro é necessária ao letramento
literário que envolve o conhecimento das características matérias do
objeto, aspectos paratextuais que remetem à autoria, à editora, ao
projeto gráfico que institui o diálogo entre as imagens e o texto verbal,
enfim, a uma série de aspectos passíveis de serem experimentados
somente com o contato direto com o livro (PAIVA, 2008, p.110-111)

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Segundo Cosson (2014), mais que uma forma diferenciada de uso da escrita, o
letramento literário é, assim, uma instância fundamental de qualquer processo de
letramento, porque é por meio dele, que construímos o nosso ser na escrita. Se o
letramento literário é tão importante para a nossa inserção no mundo da escrita, ele não
pode deixar de estar na escola e, uma vez estando, precisa ser escolarizado
adequadamente. De acordo com esse autor, o letramento literário não pode deixar de
fazer parte do processo de letramento, em geral, empreendido pela escola, mas é
necessário manter os seus princípios para que funcione como tal. Princípios, estes, que
podem ser ameaçados não só pela forma como a escola, hoje, está organizada com
seus tempos e currículos, como também pela tradição de escolarização da literatura,
atrelada a essa organização. Como menciona Soares (2006), é necessário que o
professor realize uma mediação adequada de leitura literária, que privilegie o texto no
seu suporte original, ou seja, o livro, respeitando a obra na sua totalidade, sem recorrer
a fragmentos, e que não transforme o que é literário em pedagógico, com o excesso de
didatismo. Dessa forma, o aprendizado literário poderá ser construído através do
contato e acesso ao livro e, sobretudo, pela participação em práticas de leitura literária,
que promovam uma formação de leitor, que torne permanente o seu interesse pela
leitura. Para a autora uma escolarização adequada da literatura desenvolveria no aluno
o conceito de autoria, de obra, de fragmento de obra. A autora comenta ainda sobre:
como a escola, ao trabalhar o texto literário fora de contexto, não motiva o aluno a
futuras leituras. E até mesmo afastando o aluno das práticas de leitura literária, criando
uma relutância ao ler literatura.
Portanto, é preciso atenção e sensibilidade ao propor atividades relacionadas à
leitura de textos literários, para evitarmos que os alunos tenham o sentimento de repulsa
em relação a leitura. E desta maneira, a escola não afaste os alunos do gosto pela
leitura.
Para trabalhar o conceito de alfabetização e letramento, apoio-me nas
discussões realizadas por alguns autores, que tratam este tema com muita clareza e
precisão, valendo se de muitos estudos que foram realizados, que me fazem acreditar
em uma prática, que valorize as dimensões sociais da leitura e da escrita. Assim nos
aponta Maciel e Lúcio.

Compreendemos que, para alfabetizar letrando, é preciso que o


professor assuma certas posturas, de modo que a prática pedagógica
seja conduzida no sentido de viabilizar a formação de um sujeito que
não apenas decodifica/codifica o código escrito, mas que exerça a
escrita nas diversas situações sociais que lhe são demandadas. Assim,
cabe ao professor realizar o trabalho de aquisição da tecnologia da
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escrita, somando à interação com diferentes textos escritos, bem como
criar situações de aprendizagem que se aproximem do uso real da
escrita fora da escola. O modo como o professor conduz o seu trabalho
é crucial para que a criança construa o conhecimento sobre o objeto
escrito e adquira certas habilidades que lhe permitirão o uso efetivo do
ler e do escrever. (MACIEL E LÚCIO,2008 p.32)

Acreditando na força humanizadora que a literatura possui e em seu poder de


sensibilizar o homem ajudando-o na compreensão do mundo. Nas palavras de Soares
democratizando o ser humano tornando o mais compreensivo e tolerante o que a autora
chama de democracia cultural segundo Soares:

A leitura literária democratiza o ser humano porque traz para seu


universo o estrangeiro, o desigual, o excluído, e assim nos torna menos
preconceituosos, menos alheios às diferenças - o senso de igualdade
e de justiça social é condição essencial para a democracia cultural...
elimina barreiras de tempo e de espaço, mostra que há tempos para
além do nosso tempo, que há lugares, povos e culturas para além da
nossa cultura, e assim nos torna menos pretensiosos, menos
presunçosos - o sentido da relatividade e da pequenez de nosso tempo
e lugar é condição essencial para a democracia cultural.
(SOARES,2008. P31-32).

E deste modo, podemos contribuir com a formação de cidadãos mais sensíveis,


que tenham empatia pelo outro. Portanto, somos responsáveis por esta formação, que
precisa ser democrática, dentro do ambiente escolar. E nesta perspectiva, a literatura é
uma aliada ao nosso trabalho, com esta formação de pessoas mais sensíveis,
contribuindo assim, para uma formação mais humanizada.

Desenvolvimento do trabalho:
Este trabalho começou através da observação do gosto das crianças, em brincar
com os personagens das histórias lidas. Como os alunos sentem-se motivados e
empolgados no momento que é anunciado, que vamos ouvir a história do dia.
Os alunos desta turma, de primeiro ano, estavam acostumados a ouvirem
histórias, esta atividade de contação fazia parte de nossa rotina. Sempre iniciamos
nossas aulas com a organização dos alunos e seus materiais. Em seguida, vamos para
a história escolhida para o dia.
Percebo, em suas falas, como estão se apropriando deste universo, do
letramento literário, como ao passar do tempo, estão apresentando um comportamento
de leitor, mesmo estando ainda, em processo de alfabetização. Percebo esta
maturidade, quando questionam por exemplo:
“Aluno: - Tia, quem é o autor desta história?”

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“Aluno: - Quem fez as ilustrações?”
Em alguns momentos, os alunos reconhecem os autores de outros livros:
“Aluno: - Olha, esse autor é o mesmo que escreveu o outro livro que a gente já
leu.”
As crianças vão formando seu repertório de leituras e autores, através desta
experiência com o objeto livro. É interessante observar o momento que os alunos vão
escolher os livros que levarão para casa. Como é grande a preferência, em levar para
casa, os livros que foram lidos na escola.
Para estes momentos de leitura com os alunos, procuro variar o ambiente,
algumas vezes fazemos esta atividade na sala de aula, ou em outros espaços da escola.
Neste dia, as crianças foram acomodadas na sala de vídeo, por ser a mais espaçosa e
possibilitar que todos sentem-se em círculo, para participar da leitura da história.
Começamos fazendo um levantamento das hipóteses das crianças, sobre que história
iríamos ouvir, naquele dia. Através da observação da capa do livro, os alunos foram
falando: que falaria de bruxa, que era de terror, que estavam com medo. Fiz a leitura do
título, e algumas crianças se manifestaram de imediato dizendo que era uma história de
terror, ou talvez uma festa à fantasia.
Comecei a ler a história, e à medida que lia, as crianças foram participando,
repetindo o refrão. Pois, se trata de uma história acumulativa “vem a minha festa” Ao
término da leitura, perguntei se as hipóteses levantadas por eles, no início, foram
concretizadas. Responderam-me com um sonoro “não”. Questionadas se sentiram
medo, disseram que não, “os personagens eram todos bonzinhos”.
Como encaminhamento, perguntei quem eles convidariam para uma festa. Cada
um foi dizendo que convidaria seu personagem preferido do livro, que foi lido.
Em outro momento, já em sala de aula, perguntei o que eles achavam que seria
necessário para fazer uma festa. Fui anotando as sugestões: lista de convidados,
convites, comidas, bebidas.
O interesse por preparar uma festa foi tão grande, que solicitei que fizessem uma
lista de convidados, pensando em uma festa real, que seria a festa junina da escola.
Cada aluno fez sua lista com minha ajuda. Foi um momento de escrita (espontânea) e
de colocarem em prática suas hipóteses de escrita.
No outro dia, levei para sala vários convites: casamento, aniversário e formatura,
e distribui para as crianças, perguntei se sabiam o que era se já tinham recebido ou
enviado algum convite, a maioria tinha recebido algum tipo de convite. Alguns disseram
que entregam os convites de aniversário para seus familiares, em mãos, e para as

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pessoas que estavam distantes, elas convidariam por mensagem de whatsapp. Propus
que confeccionássemos os convites para a festa junina, para entregar aos pais. Distribui
pedaços de papel recortado, para que pudessem escrever os convites. Conversamos
sobre o gênero convite, nesta oportunidade mostrei a eles o que precisaríamos escrever
em um convite (a estrutura textual).
Desta forma, ampliamos os estudos dos gêneros textuais com a turma, por meio
da escrita da lista de convidados e a confecção de convites, dando destaque para a
especificidade de cada gênero: o formato e a função social que possuem na sociedade.
Como já foi dito anteriormente, o objetivo com este trabalho era aproximar os
alunos com os textos que usamos em nosso meio social. Fazer com que percebessem
a necessidade de produzir um texto, que seria lido, não somente pelo professor, com
objetivo de avaliar, mas que cumprisse uma função social, que era convidar os pais a
participarem da festa junina, onde as crianças iriam fazer apresentações de danças.
A atividade de escrita foi feita com muito empenho pelos alunos, demonstrando
assim, que a produção escrita, neste contexto, foi valorizada, pois perceberam a real
utilidade para realizar a atividade solicitada.

Considerações Finais
Este relato de experiência procurou mostrar uma possibilidade de fomentar nos
alunos, uma vivência com a leitura e escrita. Na perspectiva de um letramento literário,
que provoca-se e desperta-se, nos alunos, gosto pela leitura. Esta proposta esteve
aliada ao trabalho com a leitura e a escrita, buscando trazer a escrita para seu meio
social, uma escrita real, discutindo e propondo aos alunos a escrita de convite, que faz
parte da sociedade letrada e não preenchimento de fichas, que não circulam em meio
social. Tentamos desta forma, trabalhar o livro, valorizando no máximo seu aspecto
lúdico, e estético e os desdobramentos que surgiram foram de interesse dos alunos.
A literatura como arte apresenta múltiplos sentidos possíveis de serem
interpretados, isso vai depender de vários fatores, dentre eles os conhecimentos prévios
de cada leitor, as experiências individuais de cada um.
Deste modo, é papel fundamental da escola promover momentos de formação
dos alunos, para que amplie suas experiências. Foi com este intuito, que realizei esta
atividade de leitura. Buscando ampliar a inserção das criança na cultura letrada.

Referências
ARENA, Dagoberto Buim. A literatura infantil como produção cultural e como
instrumento de iniciação da criança no mundo da cultura escrita. In: SOUZA, Renata
1225

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
A LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA PARA A FORMAÇÃO
CULTURAL DAS CRIANÇAS NA DÉCADA DE 1970

Franciele Ruiz Pasquim, Faculdade FACCAT

Eixo Temático: (Literatura Infantil e Ensino)

Considerações iniciais
Fora dos limites escolares, os livros destinados às crianças passaram a circular
também nas bibliotecas infantis e bibliotecas escolares, o que contribuiu para a
inauguração de um novo circuito desse gênero literário no Brasil. Esses livros passaram
a ser avaliados por professores, bibliotecários e demais autoridades de ensino, não
apenas pela sua intencionalidade educativa, mas, sobretudo, pela sua contribuição para
formar o hábito e despertar o gosto pela leitura nas crianças.
No âmbito de um projeto de difusão da cultura, destaca-se a atuação do poeta
Mário de Andrade, diretor do Departamento de Cultura do município de São Paulo, que
convidou a professora e bibliotecária Lenyra Camargo Fraccaroli (1908-1991) para
organizar a Biblioteca Municipal Infantil de cidade São Paulo-capital. Essa biblioteca foi
criada em 1936, em cumprimento ao decreto de lei nº. 861, de 30 de maio de 1935, a
fim incentivar a cultura para as crianças que não tinham acesso ao livro devido ao seu
alto custo.
Fraccaroli, em decorrência de sua atuação em prol das crianças, dos livros e das
bibliotecas, elaborou o catálogo Bibliografia de literatura infantil em língua portuguêsa207,
publicado em 1953. Esse catálogo contribuiu diretamente para a constituição de acervos
de bibliotecas infantis, e indiretamente para fomentar a produção do mercado editorial
de livros de literatura infantil.
A vida de Fraccaroli pode ser sintetizada quanto à criação de bibliotecas infantis,
que representavam o melhor caminho para o desenvolvimento moral e intelectual das
crianças, pressupostos tematizados por muitos educadores, em especial os receptivos
aos ideais do da Escola Nova.

207
Por se tratar de pesquisa histórica, nesta e nas demais citações e títulos de livros
manterei a ortografia de época.
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Entre as décadas de 1950 e 1960, de acordo com Perroti (1990), houve o
aperfeiçoamento dos “[...] processos de produção, circulação e consumo do livro infanto-
juvenil” (PERROTI, 1990, p.14). No entanto, os maiores “consumidores” dessa produção
ainda continuavam sendo os professores, por utilizarem o livro infantil “[...] com
finalidade de ensinar às nossas crianças, de maneira mais agradável, valores morais e
sociais, assim como padrões de conduta [...]” (MORTATTI, 2001, p.12).
Na década de 1970, conhecida como o “boom” da literatura infantil brasileira
(CADEMARTORI, 1986), houve um crescente incentivo à leitura e, a fim de atender esse
objetivo, o mercado editorial brasileiro passou a produzir uma literatura menos didática.
Apesar da importância do hábito pela leitura, muitos estudiosos sobre esse gênero
passaram ainda nessa década a problematizar a qualidade estética e literária dos livros
escritos pelos escritores brasileiros (PERROTI, 1990). Esses aspectos relacionados às
necessidades educacionais da escola e às inúmeras tentativas de popularizar os livros
para o maior número de pessoas impulsionou a criação de

[...] campanhas de distribuição de livros, congressos, seminários


internacionais, regionais e locais, publicações especializadas, feiras de
livros, cursos de formação, criação de entidades, associações, enfim,
um conjunto de ações em constante crescimento, com o objetivo de
aproximar as crianças e jovens do livro e da leitura [...] (PERROTI,
1990, p. 13).

É como bibliotecária educadora, Fraccaroli também se tornou especialista nos


assuntos relacionados à literatura infantil, tendo sido homenageada por muitos centros
educacionais e bibliotecas, voltados para a promoção de livros para infância e para a
juventude. Diante do exposto, com o objetivo de compreender a contribuição da
professora e bibliotecária brasileira, Lenyra Camargo Fraccaroli (1908-1991), para a
história da literatura infantil no Brasil, enfoca-se sua concepção de literatura infantil, que
foi formulada ao longo de 50 anos de sua trajetória profissional, como bibliotecária
educadora, em prol da formação cultural de crianças, por meio da criação de bibliotecas
infantis no estado de São Paulo.

1.1. Lenyra Camargo Fraccaroli (1908-1991)208: aspectos da vida e atuação


profissional

208
Para mais informações sobre a atuação da professora Lenyra C. Fraccaroli, ver,
especialmente: Pasquim (2017).

1228

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Filha de Francisco Arruda Camargo e Leonor Rodrigues Torres de Arruda
Camargo, Lenyra Camargo Fraccaroli nasceu em 21 de abril de 1908, no interior
paulista, na cidade de Rio Claro.
Formada professora pela Escola Normal de São Paulo, em 1932, e bibliotecária
pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1940, atuou como bibliotecária
na Biblioteca Infantil “Monteiro Lobato” em São Paulo – capital durante 25 anos e, após
sua aposentadoria, como membro de diferentes instituições relacionadas à leitura, ao
livro e às crianças.
Na Escola Normal de São Paulo desempenhou a função de bibliotecária entre
os anos de 1933 e 1935. Ainda nesse período, formou-se em Administração pelo
Instituto "Caetano de Campos", e nessa instituição exerceu a função de inspetora no
ano de 1935.
Em 1936, Lenyra Fraccaroli organizou a Biblioteca Municipal Infantil de cidade
São Paulo-capital. Na Biblioteca Municipal Infantil ocorriam diferentes atividades, tais
como: sessões de cinema sonoro, exposição de selos e moedas, concurso infantil de
pintura, hora do conto e exposição de um jornal feito pelas crianças (ANDREOTTI, 2005;
VIDAL, 2013).
Em 1940, Lenyra Fraccaroli diplomou-se bibliotecária, pelo curso de
Biblioteconomia da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Nesse período, Lenyra
Fraccaroli destaca-se pela orientação na criação de bibliotecas infantis na capital
paulista. Nesse período, Lenyra Fraccaroli destaca-se pela orientação na criação de
bibliotecas infantis na capital paulista.
Entre 1950 e 1961, Lenyra Fraccaroli acumulou a função de chefe da Divisão de
Bibliotecas Infanto-Juvenis do Estado de São Paulo (SP). É possível perceber que, por
meio de suas iniciativas em prol da criação de bibliotecas infantis, ela tornou-se
referência entre professores, bibliotecários e autores de livros para crianças sobre esse
assunto.
Em 1956, visitou a América do Norte, a convite do governo americano. Nessa
oportunidade visitou Canadá e as bibliotecas infantis de Toronto, Quebec e Montreal.
Quatro anos depois, em 1960, viajou para Europa, tendo visitado bibliotecas e
associações do livro e da leitura pertencentes aos seguintes países: Portugal; Espanha;
França; Áustria; Itália; Inglaterra; Suíça; Alemanha; e o Condado de Luxemburgo
(ABLIJ).
Em 1961, ano em que Lenyra Fraccaroli se aposentou da função de chefe da
Divisão de bibliotecas infanto-juvenis e da Biblioteca Municipal Infantil, inaugura-se o

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um novo ciclo na vida dessa bibliotecária, tendo em vista a quantidade de aulas, cursos,
palestras e congressos que ela passou a participar.
Em 1975, Lenyra Fraccaroli foi sócio-fundadora do CELIJU- Centro de Estudos
de Literatura Infantil e Juvenil, no qual também se tornou conselheira. Entre 1978 e
1979, ela foi presidente de Honorário e Vitalício da Academia Brasileira de Literatura
Infantil de São Paulo (ABLIJ), da qual foi fundadora.
Lenyra Fraccaroli faleceu no dia 17 de janeiro de 1991 na cidade de São Paulo,
tendo recebido inúmeras homenagens e condecorações pelo seu trabalho intenso em
prol da criação de bibliotecas infantis, com o objetivo de contribuir para a formação
cultural das crianças e dos jovens brasileiras.

1.2 “Como despertar na infância o prazer pela leitura, tornando-a um hábito”


(1975)
No tópico anterior deste texto, foi possível perceber as diferentes dimensões da
atuação profissional de Fraccaroli, uma normalista que aprendeu empiricamente o ofício
de bibliotecária e que, nessa profissão, promoveu a cultura em diferentes frentes
voltadas, sobretudo, para a infância. É como bibliotecária educadora, Fraccaroli também
se tornou especialista nos assuntos relacionados à literatura infantil, tendo sido
homenageada por muitos centros educacionais e bibliotecas, voltados para a promoção
de livros para infância e para a juventude.
Seu trabalho em prol das bibliotecas revela uma mulher que soube aprimorar
seus conhecimentos práticos, com os conhecimentos adquiridos em suas viagens e
intercâmbios, tendo inovado de forma muito significativa à forma como compreendemos
ainda hoje as bibliotecas infantis e bibliotecas escolares.
O olhar de Fraccaroli era de alguém interessada em organizar e sistematizar
técnicas para bibliotecários e professores interessados em empreender maiores
esforços na leitura destinada para as crianças, por ser um dos caminhos para a
formação cultural do povo brasileiro. Entre as décadas de 1930 e 1960, destacam-se
suas tematizações, respectivamente sobre a organização e funcionamento de
bibliotecas infantis e bibliotecas escolares, tornando-as espaços complementares ao
ensino escolarizado e ao mesmo tempo independentes, por considerar o interesse das
crianças como ponto de partida.
Se na primeira edição do catálogo o formato era mais parecido com uma lista de
referências de livros organizado em ordem alfabética do sobrenome do autor, na
segunda edição desse catálogo foi possível perceber mudanças significativas no que se

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refere à apresentação das referências de livros, classificadas segundo a faixa etária da
criança a quem o livro se destinava.
No entanto, após a década de 1960, Lenyra Fraccaroli passou a defender e criar
possíveis soluções para os problemas relacionados à literatura infantil, apontados por
muitos estudiosos desse assunto e autores desse gênero no Brasil, tendo em vista a
sua iniciativa de criação da Academia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil (ABLIJ),
no final da década de 1970.
Nessa condição de especialista em literatura infantil, Fraccaroli participou de
muitas palestras e ministrou aulas e cursos sobre a importância das bibliotecas para o
desenvolvimento do gosto pela leitura pelas crianças. Dentre suas tematizações em prol
das bibliotecas infantis e da literatura infantil, destaca-se o texto “Como despertar na
infância o prazer pela leitura, tornando-a um hábito” (1975) e “Bibliotecas Infantis:
organização e funcionamento” (1976), nos quais considero que ela reitera e sintetiza
sua concepção de literatura infantil, de biblioteca infantil e de biblioteca escolar.
O texto “Como despertar na infância o prazer pela leitura, tornando-a um hábito
(1975)” nos anais do ao 1º. Encontro de Bibliotecas Públicas e Escolares do Estado de
São Paulo e 3º. Encontro de Bibliotecas Públicas e Escolares do Interior do Estado de
São Paulo, concomitantemente realizados no dia 6 de dezembro na cidade de
Araraquara (SP).
Esse texto contém 18 páginas datilografadas, com capa. No topo da capa, há a
sigla e o nome por extenso da Associação Paulista de Bibliotecários (APB), seguida das
seguintes informações: Grupo de Trabalho em Bibliotecas Públicas; e Grupo de
Trabalho em Bibliotecas em Educação Infanto-Juvenil (GEIJ). Presumivelmente, o texto
de Fraccaroli foi resultante de sua palestra na abertura dos eventos acima mencionados.
Nesse texto, há informação de que Fraccaroli fez sua apresentação na condição
de membro do Conselho da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e
conselheira do Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil (CELIJ), ambas as
instituições promotoras da leitura e da literatura infantil no estado de São Paulo e em
outros estados brasileiros.
Em relação à organização interna do texto “Como despertar na infância o prazer
pela leitura, tornando-a um hábito” (1975), embora Fraccaroli não o apresente em duas
partes, considero que é possível fazer essa divisão, em vista dos assuntos por ela
abordados nos tópicos que apresentarei a seguir.
Na primeira parte desse texto, que é relacionada à literatura infantil, Fraccaroli
apresenta os seguintes tópicos: “Como despertar na infância o prazer pela leitura,

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tornando-a um hábito”; “O livro infantil”; “Qual o gênero mais apropriado”; “As estórias
de fadas, os contos fantásticos, os relatos aventurescos, despertam boas ou más
qualidades”; “Qual a forma mais indicada para levar a criança da leitura recreativa à
leitura com objetivos utilitários?”; “Interesse pela leitura”; e “Quantas horas por dia
consegue uma criança ler?”.
Na segunda parte desse texto, que está mais diretamente relacionada à
biblioteca infantil, Fraccaroli apresenta os seguintes tópicos: “Bibliotecas infantis
brasileiras”; “organização”; “secção fixa”; “secção circulante”; “secção de referência”;
“secção de gravuras”; “secção de revistas”; “jogos educativos e recreativos”; “secção de
arte”; “discoteca”; “secção para as crianças cegas”; “jornal”; “cinema”; “palestras
educativas”; “comemorações”; “exposições e propagandas”; “filatelia e numismática”;
“teatro infantil”; “hora do conto”; “teatro de fantoches”; “estatísticas”; “encadernação”;
“bibliotecas escolares”; “a formação de pessoal para as bibliotecas escolares”; e “livros
mais recomendados”.

1.3 A leitura como hábito


De acordo com Fraccaroli (1975), para o desenvolvimento do hábito da leitura
nas crianças seria necessário apresentar livros que sejam “[...] atrativos, com
ilustrações de preferência em cores vivas e alegres, revistas infantis com desenhos e
caricaturas” (p.1).
A ideia de que as crianças (mais novas) precisavam de livros que contém
gravuras e figuras coloridas pode ser percebida na classificação da produção editorial
de literatura infantil por faixa etária feita por Fraccaroli nas edições do catálogo
Bibliografia de literatura infantil em língua portuguêsa (1ª.ed. 1953; 2ª.ed.1955).
Fraccaroli indicava para as crianças de 3 a 6 anos, álbuns de gravuras e de figuras,
além de livros de panos, ou seja, livros que desenvolvesse a leitura de uma forma
divertida.
Como recurso auxiliar, Fraccaroli (1975) destacava a importância da “Hora do
Conto”, que deveria ser realizado por uma “pessoa especializada”, professor e/ou
bibliotecário, o qual se dedicará a leitura de um livro, com a finalidade de despertar o
interesse das crianças pelo livro e pela leitura.
Receptiva aos estudos da psicologia infantil e, sobretudo, aos debates
educacionais sobre a leitura, Fraccaroli ressaltava a “[...] necessidade da satisfação dos
desejos inconscientes e a tendência da imitação” (p.1). A esse respeito, o livro Guia
dos pais na escolha dos livros para crianças, de Nancy Larrick, mencionado por

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Fraccaroli no tópico “livros mais recomendados”, especialmente, no que diz respeito ao
desenvolvimento do hábito da leitura num momento em que a televisão, o rádio e o
cinema são os responsáveis por proporcionar o entretenimento da população.
Nessa perspectiva, segundo Fraccaroli (1975), se as crianças tiverem
bons livros, adequados à idade e conviverem com bons leitores para que elas possam
imitar, para o desenvolvimento do hábito pela leitura. A biblioteca infantil como “centro
de cultura” seria o espaço ideal para que as atividades de leitura nela realizadas
contribuíssem para o “progresso da mente infantil” (p.1) e a “curiosidade até então
adormecida” (p.1).

1.4 O livro infantil e seus problemas


No tópico intitulado “O livro infantil”, Fraccaroli (1975) destaca que por diversas
vezes as crianças prefiram ler livros para adultos. Um dos problemas a esse respeito se
refere ao escritor, que é um adulto escrevendo histórias para crianças.
Esse problema já tematizado no livro Problemas da literatura infantil (1951), de
Cecília Meireles, foi retomado por Fraccaroli, que dele extrai a seguinte indagação
“Como determinar como seria um livro adequado para as crianças?”. A resposta dada
por Fraccaroli a essa indagação, é parecida com a que foi formulada por Cecília Meireles
em 1951.
Para Fraccaroli (1975), o livro infantil seria aquele que “[...] uma criança
livremente descobriu, pelo qual se encantou e [...] esqueceu as horas” (FRACCAROLI,
1975, p. 2). No entanto, não basta à leitura ser apenas mais que um “passatempo”, pois,
segundo Fraccaroli (1975) ela é “nutrição”. Nesse sentido, os livros de mistério, seriam
os mais indicados para despertar o hábito da leitura e a “intuição” das crianças.

1.5 A leitura adequada a idade cronológica


No tópico “Qual o gênero mais apropriado”, Fraccaroli (1975, p.2) afirmou que,
apesar da classificação dos livros por idade cronológica serem importantes para a
orientação da leitura, é possível que o interesse pela leitura “variava de criança para
criança” (p.2). Nesse aspecto, apesar de Fraccaroli considerar o interesse e o gosto das
crianças por determinadas histórias, apresenta algumas características do gênero mais
apropriado para cada idade, dos três aos 11 anos

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Tabela 1. As crianças e seus interesses de leitura, segundo Fraccaroli
IDADE DAS CRIANÇAS GENERO
Desde os dois anos “Gravuras coloridas” e “estórias contadas”
Dos três aos cinco anos “Estórias de animais” e “pequenas
dramatizações”
Dos seis aos sete anos “Contos de fadas” e “gênios sobrenaturais”
Dos nove aos 11 anos “Aventuras, viagens e histórias da vida real”
“Grandes feitos da humanidade, a vida de
Dos 12 aos 14 anos grandes homens das ciências, das letras e
das artes; usos e costumes de outros povos”
Fonte: A propria autora, 2020.

Conforme as informações sintetizadas no Quadro 1, é possível constatar que,


Fraccaroli (1975) defende a ideia de que leitura está relacionada ao desenvolvimento
da “mente infantil”. Assim, quanto mais nova a criança (desde os dois anos), mais figuras
e a necessidade de um adulto, no caso de um professor ou bibliotecário.
Dos três aos cinco anos, seria preferível histórias com animais, pois despertam
a curiosidade da criança e “[...] constituem admirável atração para os petizes dos jardins
da infância” (FRACCAROLI, 1975, p. 2). Segundo Fraccaroli (1975), nessa faixa etária,
as crianças seriam capazes de representarem pequenas dramatizações sobre as
histórias lidas, o que propiciará maior encantamento pelos livros e pelas histórias.
Fraccaroli (1975) afirma que, dos seis aos sete anos, as crianças passariam a
se interessas por “contos de fadas e gênios sobrenaturais” (p.2), justamente por essas
histórias auxiliarem a criança a “expandir sua fantasia” (p.2) e “distinguir o bem do mal”
(p.2). Aqui é possível perceber nitidamente a relação da literatura infantil com o ensino
e a escola, ler para aprender.
Em relação aos contos de fadas, Fraccaroli (1975) acrescentava a importância
desse gênero literário para o desenvolvimento do caráter infantil, uma vez que a criança
observará os atos dos heróis na luta do bem contra o mal. De acordo com Fraccaroli
(1975, p.3), seria por meio da leitura dessas histórias nas quais consta a “dualidade
entre o bem e o mal”, que seria formada a “almazinha pura e ingênua da criança”,
despertando-a para o bem.
Outro aspecto interessante, porém justificável para o momento histórico, é com
relação ao destaque dado por Fraccaroli (1975) quanto à figura do herói que, segundo
ela, contribuiria “[...] para o engrandecimento da Pátria, com homens bravos e
justiceiros” (p.3).

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Segundo Fraccaroli (1975), na faixa etária, dos nove aos 11 anos, as crianças
“[...] tendem para as aventuras, viagens, histórias da vida real. Começa, nessa idade, a
diferenciação do interesse segundo o sexo” (p.3).
Em relação à diferenciação de preferências de leitura, entre o sexo masculino e
sexo feminino, Fraccaroli (1975) enfatizou que na faixa etária dos doze aos 14 anos era
possível constatar que “[...] as meninas só querem romances estórias sentimentais; os
meninos continuam procurando livros de ciências, as biografias, as viagens, as
aventuras” (p.3). Esses interesses e preferências de leitura gradativamente “[...] vão se
tornando cada vez mais individuais e especializados” (FRACCAROLI, 1975, p. 4).

1.6 A leitura recreativa e o interesse infantil


Fraccaroli (1975) destacou a importância da leitura recreativa para “fins
utilitários” que, segundo ela, dependem da faixa etária da criança. A leitura recreativa,
ou seja, leitura para desenvolver o gosto pelos livros deveria ser inserida desde os
primeiros anos da infância, o que possibilitaria gradativamente que as crianças tivessem
“[...] interesse pelas leituras de nível mais elevado” (FRACCAROLI, 1975, p.3).
As “leituras de nível mais elevado”, como as de livros sobre “Grandes feitos da
humanidade, a vida de grandes homens das ciências, das letras e das artes; usos e
costumes de outros povos” seriam mais indicadas para as crianças na faixa etária de 12
e 14 anos que já estão habituadas à leitura. No entanto, Fraccaroli (1975) problematizou
“[...] a influência da época, da vida que levam: o rádio, a televisão, o cinema [que] não
permitem que a criança sinta os mesmos interesses, atrações e aspirações das
gerações passadas.” (p.4).
Fraccaroli (1975) acrescentava a questão o “gosto infantil” ao interesse das
crianças por determinados livros, apresentando três fichas de leituras feitas por leitores
diferentes. Essas crianças, após lerem o livro Dois anos de férias, de Júlio Verne,
escreveram a seguinte avaliação sobre esse livro: “desinteressante”; “ótimo”; e “regular”.
Além dessa primeira constatação de que o “gosto infantil” varia de criança para criança
em relação ao mesmo livro lido, Fraccaroli (1975) constatou que

[...] o livro lido por maior número de consulentes, varia de acordo com
o interesse do momento. Assim o cinema influe poderosamente na
preferência da leitura. Temos notado que [...] filmes- cujo enredo foi
aproveitado para a literatura infantil, esses livros são vencedores do
mês, como obras mais lidas. Tal aconteceu com o Saci, Branca de
Neve, Alice no país das Maravilhas, etc.- (1975, p.5, grifos meus).

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A esse respeito, Fraccaroli (1975) destaca que há duas pesquisas que foram
desenvolvidas pela psicóloga Betti Katzenstein e que foram, presumivelmente,
publicadas nos artigos “Algo do que as crianças gostam de ler: estudo de dois livros
preferidos por meninos e meninas”, em coautoria com Beatriz Ferreira, e “O cinema e o
mundo infantil do Departamento de Cultura” que foram publicados, respectivamente, em
1941 e 1949, na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo.

1.7 O tempo destinado para a leitura


Um dos aspectos interessantes apontados por Fraccaroli (1975) foi com relação
ao tempo destinado à atividade de leitura que, segunda suas observações, não passaria
de duas horas. Para constatar essa informação, Fraccaroli (1975) mencionou sua
atuação como bibliotecária na Biblioteca Infantil “Monteiro Lobato” de São Paulo-capital,
extinta Biblioteca Infantil Municipal de São Paulo, em 1955,
Para que esse tempo pudesse ser mais ampliado, Fraccaroli (1975) sugeria que
nos intervalos da leitura fossem oferecidas “atividades recreativas” tais como “[...] teatro
escolar, sala de jogos e revistas, discotecas e secções cinematográficas” (p.5). Com
relação ao teatro escolar, Fraccaroli destacou que, as representações infantis durante
a escolarização [...]tem por tema o conteúdo de livros que lhes são lidos pelos pais e
mães, livros esses contendo histórias fantásticas, com personagens ficitícios como
fadas, animais falantes, monstros alados[...] (p.13)

Considerações finais
Na condição de especialista em literatura infantil, Fraccaroli contribuiu para
formação cultural da infância brasileira, tendo em vista suas crianças, à produção de
literatura infantil de autores brasileiros e à permanência de um modo de indicar e orientar
leituras para crianças, ainda presente nos dias atuais.
Com base no interesse e no gosto da criança, Fraccaroli defendia a ideia de que,
os livros de literatura infantil deveriam ser adequados ao desenvolvimento do psiquismo
infantil, tendo contribuído para a permanência de modo de conceber a literatura infantil
defendida pelo educador e psicólogo Lourenço Filho (1897– 1970).
A partir da inter-relação desses aspectos, é possível compreender a concepção
de literatura infantil de Lenyra Fraccaroli, baseada nas contribuições da renovação
educacional proposta pela Escola Nova, sobretudo, pela defesa dos direitos das
crianças às bibliotecas, ao livro e à leitura.

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Concluiu-se que, na condição de especialista em literatura infantil e em defesa
dos direitos das crianças às bibliotecas, ao livro e à leitura, Fraccaroli contribuiu para
formação cultural da infância brasileira, tendo em vista sua significativa contribuição no
que se refere ao aperfeiçoamento do mercado de livros para crianças, à produção de
literatura infantil de autores brasileiros e à permanência de um modo de indicar e orientar
leituras para crianças, ainda presente nos dias atuais.

Referências
ANDREOTTI, A. L. O acervo de documentários da Biblioteca Infantil de São
Paulo (1936-1960): testemunho de uma época revelando sua diversidade.
Acervo, Rio de Janeiro, v.18, n.1-2, jan./dez.,161-170, 2005.

CADEMARTORI, L. O que é literatura infantil. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

FRACCAROLI, L. C.. Como despertar na infância o prazer pela leitura, tornando-a um


hábito. São Paulo: Associação Paulista dos Bibliotecários (APB), 1975.17p.

MORTATTI, M. R. L. Os sentidos da Alfabetização: São Paulo 1876/1994, São Paulo:


Ed. UNESP, 2000.

MORTATTI, M.R. L. Leitura crítica da literatura infantil. Itinerários, Araraquara,


17: 179-187, 2001

PASQUIM, F. R.. Lenyra Camargo Fraccaroli (1908-1991) na história da literatura infantil


brasileira: contribuições de uma bibliotecária educadora. 244f. Tese (Doutorado em
Educação) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília,
2017.

PERROTI, E. Confinamento cultural, infância e leitura. 2 ed. São Paulo: Summus


editorial, 1990.

VIDAL, D. Experiências do passado, discussões do presente: a Biblioteca Escolar


Infantil do Instituto de Educação Caetano de Campos (1936-1966). Perspectivas em
Ciência da Informação, v.19, número especial, (195-210), out./dez.

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A PSICOPEDAGOGIA E LITERATURA INFANTIL: UM
INSTRUMENTO ESTIMULADOR DO DESENVOLVIMENTO DA
CRIANÇA COM DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM
Caroline Elizabel Blaszko, UNESPAR- Campus de União da Vitória
Nájela Tavares Ujiie, UNESPAR- Campus de Paranavaí

Eixo Temático: 8. Literatura infantil e ensino

Introdução
A presente pesquisa traz reflexões sobre a importância do trabalho do
psicopedagogo e suas possíveis formas de atuação com as crianças que apresentam
dificuldades de aprendizagem e frequentam os anos iniciais do ensino fundamental.
Neste estudo, objetivou-se demonstrar que é possível o psicopedagogo trabalhar
com as obras da literatura infantil, as quais se tornam aliadas para a superação das
dificuldades de aprendizagem e para a construção de novos saberes.
Diante do exposto, a problemática que norteou este estudo consistiu: Como o
psicopedagogo pode utilizar a literatura infantil nas intervenções psicopedagógicas
visando contribuir para a superação das dificuldades de aprendizagem?
O respaldo teórico que norteia esta pesquisa é embasado nos estudos de
Blaszko (2020), Pessoa et.al (2017), Ujiie (2016, 2017), Gómez e Terán (2014), Fini
(2008), Sisto et. al. ( 2008), Barone (2007), Bock et. al. (2001), Fonseca (1995) entre
outros.
Em relação ao delineamento metodológico da pesquisa, está se configura como
um estudo teórico-bibliográfico pautado numa experiência prática. O artigo aborda no
primeiro momento a intervenção psicopedagógica frente às dificuldades de
aprendizagem e no segundo momento traz reflexões sobre as estratégias de ação do
trabalho psicopedagógico com a literatura infantil, para finalizar apresenta
considerações tangíveis a temática em pauta atendimento psicopedagógico aliado a
literatura infantil no processo de superação das dificuldades de aprendizagem.

A intervenção psicopedagógica frente às dificuldades de aprendizagem

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A intervenção psicopedagógica é realizada pelo profissional denominado
psicopedagogo que conforme Bock et. al. (2001, p. 11), é um “[...] profissional que tem
habilidades e conhecimento para, a partir de uma atividade aparentemente simples,
poder fazer uma leitura abrangente a respeito da relação da criança com o saber e com
o processo de aprendizagem”.
Ressalta-se que para atuar no cargo de psicopedagogo é necessária uma
formação específica que ocorre em curso de graduação e/ou em curso de pós-
graduação em Psicopedagogia (ABPp, 2019).
O profissional psicopedagogo atua no campo da Psicopedagogia, área que
congrega Educação e Saúde em prol de garantir a aprendizagem humana, tendo, pois
sua experiência e atuação comprometida com a aprendizagem de si e do outro em um
cenário que é múltiplo e plurissignificante (UJIIE, 2016).
Neste sentido, Sisto et. al. (2008, p.9) evidenciam que a “[...] Psicopedagogia é
uma área de estudo diretamente relacionada à aprendizagem escolar no que tange a
seu decurso normal ou com dificuldades”. Ainda segundo os autores, é necessário
compreender a relação do aluno com o conhecimento, os elementos do sistema
cognitivo e emocional que utilizam para aprender, bem como os aspectos que
influenciaram para o rendimento escolar apresentado pelos educandos.
Entende-se por dificuldade de aprendizagem, de acordo com Gómez e
Terán (2014) todo e qualquer distúrbio que afeta a capacidade de aquisição de
conhecimentos, sendo de maior destaque as dificuldades de lectoescrita e matemática.

[...] o termo dificuldades de aprendizagem englobaria um grupo


heterogêneo de transtornos que se manifestariam em dificuldades em
tarefas cognitivas, podendo ocorrer em pessoas normais, sem
problemas visuais, auditivos ou motores, além de, aparentemente,
estarem relacionados a problemas de comunicação, atenção,
memória, raciocínio, entre outros, ou se manifestarem
concomitantemente a eles. Podem ocorrer ainda dificuldades
momentâneas e/ou em áreas específicas, abrangendo várias áreas de
conhecimento (BARTHOLOMEU, SISTO e RUEDA, 2006, p. 139-140).

Para Gómez e Terán (2014, p.95): “Uma criança com dificuldades de


aprendizagem é aquela que não consegue aprender com os métodos com os quais
aprendem a maioria das crianças, apesar de ter as bases intelectuais apropriadas para
a aprendizagem”.
As dificuldades de aprendizagem podem surgir em diferentes áreas do
conhecimento ocasionando déficit motor, de percepção, de controle corporal,
dificuldades de equilíbrio, de coordenação, de movimento, de lectoescrita ou na
compreensão lógico-matemática. Fonseca (1995, p. 252) evidencia as principais
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características dos alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem, dentre elas
temos:

[...] dificuldades de aprendizagem nos processos simbólicos: fala,


leitura, escrita, aritmética, etc., desenvolvimento (saúde, envolvimento
familiar estável, oportunidades sócio-culturais e educacionais, etc.) A
criança com DA manifesta uma diversidade de comportamentos que
podem ou não ser provocados por disfunção psiconeurológica.
Manifesta frequentemente dificuldades no processo de informação
quer no nível de recepção, quer ainda no nível interativo e expressivo.

O autor pondera ainda que vários fatores como envolvimentos familiares pobres,
relações criança-adulto distorcidas, problemas de ensinagem, expectativas negativas,
erros pedagógicos, situações de aprendizagem limitadas, entre outros podem
desencadear a dificuldade de aprendizagem.
Klein (2010) afirma que quando falamos em dificuldades de aprendizagem é
necessário levar em consideração não apenas o educando como ser isolado, mas
considerar o grupo ao qual pertence, analisando o contexto social, histórico, econômico,
cultural e educativo realizando uma avaliação psicopedagógica e interventiva.
Compreendemos por dificuldade de lectoescrita as dificuldades com habilidades
específicas de linguagem, relacionada ao processo de leitura e escrita, alfabetização e
letramento, podendo ser identificada como falta de consciência fonética e fonológica,
dislexia, disgrafia, disortografia ou mesmo problemas de ensinagem. No que tange as
dificuldades lógico-matemáticas identificamos como dificuldades relacionadas ao
pensamento e percepção matemática, capacidade de contar, classificar, seriar,
desenvolver noções topológicas e espaciais, nominada como discalculia. Pontuamos
que seja qual for a dificuldade ou problema de aprendizagem a ação psicopedagógica
associada à ação docente e parceria familiar poderá promover a superação e consolidar
aprendizagem significativa.
Com relação às dificuldades de aprendizagem, Fini (2008, p.64) enfoca que “[...]
no Brasil, um grande número de alunos tem apresentado dificuldades de diferentes tipos
e rendimentos insatisfatórios em relações a padrões definidos pela escola”. Fato que
contribui para a ampliação no número de alunos que necessitam de atendimento
psicopedagógico e aumenta a demanda por psicopedagogos capacitados para atuar em
equipe multidisciplinares nas secretarias municipais, bem como nas escolas,
promovendo avaliação psicopedagógica e atuando de modo preventivo na orientação
dos profissionais da escola via formação e diversificação de ações psicopedagógicas
direcionadas as crianças de modo geral.

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Ressalta-se que no decorrer das intervenções psicopedagógicas o
profissional psicopedagogo necessita desenvolver e ampliar os olhares “[...] para o
aprendiz, objetivando identificar as capacidades de cada sujeito e as possibilidades
existentes de aprendizagem em qualquer situação, a fim de planejar e criar condições
para que o aprender ocorra e seja ressignificado” (BLASZKO, 2020, p. 45).
Segundo Barone (2007) no decorrer da intervenção psicopedagógica, o
psicopedagogo pode utilizar a literatura infantil, a qual favorece sua intervenção ao ser
amplificadora do olhar da criança para o mundo e ao produzir identificação e
significações variadas, que oportuniza o diálogo amplo e significativo. Ainda de acordo
com a autora, a literatura contribui para que a criança possa tomar consciência da sua
realidade externa e interna, passando inclusive a compreender melhor a si e ao mundo.
O trabalho com obras da literatura infantil deste os primeiros anos do processo
de escolarização é de grande importância para o desenvolvimento do educando, visto
que pode contribuir para despertar a imaginação, encantamento, criatividade,
curiosidade favorecendo a construção de novas aprendizagens (UJIIE, 2017).
Pessoa et. al. (2017) relatam alguns aspectos sobre uma criança
atendida pelo setor psicopedagógico que no decorrer das sessões de intervenção foi
realizado um trabalho utilizando a literatura infantil, o qual possibilitou que a aluna
atendida pudesse ser mais confiante, entrar no mundo da fantasia das mais diversas
leituras, trabalhar a sua percepção, autonomia, leitura, escrita, contribuindo para a
superação das dificuldades de aprendizagem e para que a aprendizagem ocorra de
maneira lúdica, criativa e significativa.
Ainda segundo os autores supracitados, no decorrer das intervenções
psicopedagógicas, a cada semana é possível trabalhar livros diferentes e atividades
diferenciadas abrangendo pinturas, desenhos, colagens, histórias narradas pela
criança, tentativa de escrita entre outras ações interventivas e avaliativas.
Com relação ao uso da literatura infantil no atendimento psicopedagógico
Pessoa et. al. (2017, p.195) afirmam que “[...] é de suma importância para a formação
de uma pessoa nos mais diversos aspectos” e inclusive contribui para que o paciente e
o profissional psicopedagogo possam realizar reflexões sobre os motivos das
dificuldades de aprendizagem e a necessidades de intervenções de acordo com as
demandas dos educandos.

Estratégias de ação do trabalho psicopedagógico com literatura infantil

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Busca-se neste tópico compartilhar experiências práticas abrangendo a literatura
infantil como aliada do trabalho psicopedagógico para a superação das dificuldades de
aprendizagem. Desta feita organizamos um quadro com obras literárias sugeridas para
atuação interventiva e detecção relacionada às dificuldades de lectoescrita e lógico-
matemática.

Quadro 1: Sugestões literárias para avaliação e intervenção psicopedagógica


Lectoescrita Lógico-matemática
 Era uma vez um gato xadrez  Clact...Clact...Clact (Autoras:
(Autora: Bia Villela) Liliana Iacocca e Michele
 Chapeuzinho Amarelo (autor: Iacocca)
Chico Buarque)  Os dez sacizinhos (Autora
 Quem sou eu (Ana Maria Machado) Tatiana Belinki)
 O aniversário dos Pingos (Autores:  A casa sonolenta (Autora:
Mary França e Eliardo França) Audrey Wood)
 Lolo Barnabé (Autora: Eva Furnari)  A lua cheia na casa sonolenta
 Alfabeto de histórias (Autor: Gilles (Autora: Audrey Wood)
Eduar)  A formiguinha e a neve (Autor:
 Palavras, muitas palavras (Autora: Braguinha)
Ruth Rocha)  Os sete cabritinhos (Autor: Xosé
 O alfabeto dos bichos (Autor: José Ballesteros – adaptação)
Jorge Letria)  A galinha ruiva (Autor: António
 Bichodário (Autora: Telma Torrado)
Guimarães)  E o dente ainda doía (Autora:
 Cada letra uma aventura (Autora: Ana Terra)
Marilene Godinho)  As três Partes (Autor: Edson
 A paixão de A e Z (Autor: Alonso Luiz Kozminski)
Alvarez)  As centopeias e seus sapatinhos
 O aniversário do seu alfabeto (Autor: Milton Camargo)
(Autor Amir Piedade)  A revolta dos números (Autora:
 A festa das palavras (Autores: Odette de Barros Moot)
Cecília Meireles e Josué de Castro)  Ovo meu será seu? (Autora:
Lêda Aristides)
Fonte: Organização das autoras, pautada na experiência prática.

A Psicopedagogia de acordo com Ujiie (2016) tem caráter terapêutico quando


atua junto aos aprendizes a partir de encaminhamento e queixa inicial, desencadeando
um processo de avaliação psicopedagógica, entrevista com os responsáveis,
diagnóstico, sessões sucessivas de intervenção psicopedagógica, para elaboração de
um prognóstico, ou seja, elaboração de ação interventiva nas diferentes matizes de
pertencimento do sujeito aprendente.

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Desta feita, certa vez recebemos uma criança de dez anos encaminhada pela
escola e acompanhada pela mãe com queixa inicial relacionada a dificuldades de
lectoescrita, não discriminação de letras e sílabas e dificuldades na aquisição da leitura
e escrita. Seguimos os imperativos éticos e profissionais preenchimento dos termos de
autorização e compromisso, realização de anamnese com a responsável e
implementação de testes e procedimentos de avaliação psicopedagógica aliado à
utilização de obras literárias.
Em sessão psicopedagógica inicial com a criança dialogamos para saber se esta
tinha noção do que a trazia para este atendimento a mesma relatou que frequentava
pelo terceiro ano consecutivo o terceiro ano do ensino fundamental e disse: “_Sabe,
tenho dificuldades para ler e escrever, me esforço, mas não entendo as explicações da
professora”. Foram realizadas sessões abrangendo as etapas da avaliação,
estabeleceram-se diálogos com a aluna e ações interventivas, buscando compreender
como ela percebia as suas dificuldades com relação à aprendizagem.
Foram realizadas observações da aluna na escola e nos diversos ambientes que
a aluna frequenta como sala de aula, recreio, aulas de educação física. No decorrer das
observações constatou-se que a aluna sentava na última carteira na sala, dificilmente a
professora realizava explicações individuais e geralmente as atividades envolviam
leitura, cópia e questionários. Como a aluna apresentava dificuldades na leitura e
produção textual, realizava somente a cópia.
Ressalta-se que além da avaliação psicopedagógica, a aluna foi avaliada por
especialistas da área de psicologia, fonoaudialogia e neurologia, sendo que os mesmo
em seguida se reuniram para apresentar os dados da avaliação e elaborar um parecer
diagnóstico. Constatou-se que a aluna não apresenta limitações cognitivas para a
aprendizagem, mas que apresenta dificuldades que estão atreladas ao processo de
ensino.
Perante o diagnóstico, a psicopedagoga entrou contato com a escola orientando
que a aluna deveria ser direcionada a uma nova turma e com outro professor, visto que
durante três anos consecutivos teve aula com a mesma professora.
Importante destacar que foram realizadas algumas orientações aos professores,
dentre as quais que: a aluna deveria ficar próxima ao regente da turma, que as
orientações dadas ao grande grupo da sala, devem ser retomadas individualmente com
a criança que tem dificuldade, que é oportuno utilizar estratégias e materiais
pedagógicos diversificados que contribuam para o processo de alfabetização,
letramento e para a construção de novas aprendizagens.

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No decurso das sessões de atendimento psicopedagógico e intervenções realizamos
trabalho educativo com diferentes obras literárias, das quais selecionamos duas para
apresentar no quadro 2 a seguir.

Quadro 2: Exemplificação de sessões interventivas com uso da literatura infantil


Lectoescrita Lógico-Matemática

Sinopse: O livro conta a história de João


Sinopse: A história natureza em
que vivia espantado com a gama de
números faz uma relação dos numerais e
coisas que havia no mundo, porém não
os elementos da natureza, animais,
entendia o que estava escrito nos
objetos e as partes do corpo da criança.
cartazes, produtos, ônibus, placas e etc.
Na escola João passou a entender as
letras, os sons e seus significados e
quando voltava para casa passou
perceber e identificar que muitas letras
estavam desenhadas em cartazes, na
caixa de sabão, na pasta de dentes etc.
Atividades Propostas: Atividades Propostas:
- Contação de história por simples - Leitura da obra;
narrativa; - Diálogo sobre a história e interpretação;
- Interpretação verbal; - Trabalho com a relação número e
- Registro em desenho do que mais quantidade estabelecida no texto;
gostou na história; - Na caixa de areia trabalhar o traçado
- Recorte das letras, para elaboração do dos numerais;
alfabeto móvel; - Com massinha de modelar trabalhar o
registro número e quantidade;

- Trabalho com a identificação das letras,


sílabas e a construção de palavras - Classificação e seriação;
articuladas a história por meio do alfabeto - Realização de operações de adição e
móvel; subtração simples.

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- Escrita da palavra menino, João e do
seu próprio nome a partir de recorte letras
de jornais e revistas.
Fonte: Organização das autoras, pautada na experiência prática.

É importante destacar que no decorrer das intervenções psicopedagógicas


permeadas pela literatura infantil, é importante que o psicopedagogo desenvolva
atividades diversificas e lúdicas que possibilitem ao educando o acesso aos
conhecimentos de forma prazerosa. Ressalta-se que além de trabalhar com a literatura
infantil, o psicopedagogo necessita desenvolver um olhar para com o aprendente,
observando-o por meio das atividades suas dificuldades, as demandas e
potencialidades de cada um, para, por conseguinte, realizar as intervenções de acordo
com cada caso.
O psicopedagogo ao trabalhar com obras da literatura infantil no decorrer da
avaliação, atendimento e intervenção psicopedagógica poderá perceber se a criança
gosta de ouvir histórias, apreciar, narrar diversas histórias dentre muitas outras nuances
relacionadas à compreensão de mundo do sujeito aprendente.
Para além da utilidade psicopedagógica da literatura infantil reiteramos pautadas
nos estudos de Ujiie (2017) que esta desponta como um recurso pedagógico
diversificado a ser inserido no universo escolar, uma vez que pode abordar conteúdos
e temáticas variadas, desenvolvendo na criança a sensibilidade, a atenção, o
imaginário, a curiosidade, a ampliação da visão de mundo, a alfabetização científica, a
aquisição vocabular, a leitura de mundo e da palavra. Assim, indicamos também o uso
da literatura infantil na prática pedagógica dos anos iniciais do ensino fundamental como
fonte de diversificação e enriquecimento do processo de ensino e aprendizagem.

Considerações Finais
Conclui-se por meio desta pesquisa, que a literatura infantil pode ser utilizada
pelo psicopedagogo no decorrer das sessões e intervenções psicopedagógicas.
Ressalta-se que as atividades englobando as obras da literatura infantil devem ser
diversificadas e adequadas ao nível de desenvolvimento da criança.
Constata-se que no campo da psicopedagogia a literatura infantil contribui para
o desenvolvimento das crianças e para a superação das dificuldades de aprendizagem
lecto-escrita e matemática, tendo sua utilização como recomendada nos processos
terapêuticos psicopedagógicos e também na práxis educativa cotidiana de sala de aula
das escolas de anos iniciais do ensino fundamental.

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2019. Disponível em:
https://www.abpp.com.br/documentos_referencias_codigo_etica.html. Acesso em: 27
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BLASZKO, Caroline Elizabel. O Psicopedagogo na rede pública municipal em sete


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Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba-PR, 2020.

BARONE, Leda Maria Codeço. Literatura e Construção da Identidade. In: Revista


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BARTHOLOMEU, Daniel; SISTO, Fermino Fernandes; RUEDA, Fabián Javier Marin.


Dificuldades de aprendizagem na escrita e características emocionais de crianças. In:
Psicologia em Estudo. Maringá, v. 11, n. 1, p. 139-146, jan./abr. 2006. Disponível em:
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BOCK, Ana Mercês Bahia et al. Regulamentação da profissão de Psicopedagogo. In:


Revista Psicopedagogia, São Paulo, v. 19, n. 54, p. 4-28, 2001.

FINI, Lucila Diehl Tolaine. Rendimento escolar e psicopedagogia. In: SISTO, Fermino
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FONSECA, Victor da. Introdução as Dificuldades de Aprendizagem. 2 ed. Porto


Alegre: Arte Média, 1995.

GÓMEZ, Ana Maria Salgado; TERAN, Nora Espinosa. Dificuldades de Aprendizagem:


detecção e estratégias de ajuda. São Paulo: Cultural, 2014.

KLEIN, Roseli Bilobran. O fator emocional e o fraco resultado escolar: um diagnóstico


através de técnicas gráficas e verbais com as crianças que apresentam dificuldades de
aprendizagem. In: Revista Pedagogia: 50 anos de Vida e História. União da Vitória-PR:
Kaygangue, 2010, p. 61-72.

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PESSOA, Patrícia dos Santos; ANDRADE, Márcia Siqueira de. BARONE, Leda Maria
Codeço. A Literatura na Intervenção Psicopedagógica. In: Revista de Graduação da
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SISTO, Fermino Fernandes et.al. Atuação psicopedagógica e aprendizagem


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UJIIE, Nájela Tavares. Psicopedagogia Clínica e Institucional: nuances, nexos e


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UJIIE, Nájela Tavares. Literatura infantil e a ação educativa: a arte de contar histórias e
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95-109.

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POSSIBILIDADES E DESAFIOS DO LETRAMENTO LITERÁRIO
NA ESCOLA DO CAMPO EM RORAIMA

Hellen Cris de Almeida Rodrigues, Colégio de Aplicação da Universidade


Federal de Roraima – CAp/ UFRR
Emanuella Silveira Vasconcelos, Colégio de Aplicação da Universidade Federal
de Roraima – CAp/ UFRR
Jamile Rossetti de Souza, Colégio de Aplicação da Universidade Federal de
Roraima – CAp/
Leuda Evangelista de Oliveira, Universidade Federal de Roraima – UFRR,
Centro de Educação – CEDUC/UFRR

Eixo Temático 08: Literatura e ensino

Considerações Iniciais
A importância da escola no que diz respeito a possibilitar o contato dos alunos
com Literatura é indiscutível. A leitura é um bem cultural produzido socialmente que a
criança tem direito como cidadão a ter acesso garantido. Além do mais, é necessário
que o professor saiba trabalhar, neste caso a leitura, de forma correta, ou seja, utilizando
como já foi dito, textos variados e abordagens de atividades que incitem os novos
leitores
Colomer (2007) afirma que muitas crianças em idade escolar, entre oito ou
nove anos dizem não ter apreço pela leitura e chegar em processos mais exigentes de
compreensão leitura, acabam por fracassar. É, portanto, papel da escola a
transformação de tais visões, por meio de práticas democráticas de leitura, sendo
momento de deleite e encantamento, para além da compreensão restrita do código
escrito. Somente por meio do conhecimento possibilitado através da leitura, sendo esta
literária, será possível que a sociedade que compreenda seus direitos e deveres, e
busque a transformação social.
Diante do exposto, a presente pesquisa objetivou analisar o desenvolvimento de
práticas de mediação de leitura a partir da abordagem de letramento literário em uma
escola do campo localizada na região norte do estado de Roraima. O presente trabalho
situa-se no campo das investigações qualitativas, por conseguinte descritivas e

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interpretativas. A construção de dados foi realizada em um ambiente escolar com duas
professoras do 1º e 2º ano do Ensino Fundamental. Por meio da pesquisa, buscou-se
compreender as possíveis práticas de letramento literário como possibilidade de
formação social do indivíduo, além de verificar o uso da literatura infantil numa
perspectiva de letramento literário.

Reflexões sobre letramento e letramento literário


A palavra letramento é considerada um termo novo no vocabulário da
Educação e das Ciências Linguísticas. Surge nos discursos dos especialistas da área
na metade dos anos 80 “sob a influência do inglês literacy, que, até a década de 90 era
traduzido por ‘alfabetização’” (MORTATTI, p.160, 2007). Autores como Mary Kato
(1986), Leda Verdiani Tfouni (1988), entre outros realizam estudos acerca do letramento
a partir de uma perspectiva de prática social. A partir dessas abordagens o termo parece
ter se tornado mais frequente nos discursos dos estudiosos. Ressalta-se que o termo
letramento resulta das inserções das práticas sociais de leitura e escrita transcendendo
a simplista habilidade da decodificação de códigos.

[...] resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de


leitura e escrita. O estado ou condição que adquire um grupo social ou
um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de
suas práticas sociais. (SOARES, p. 39, 2001)

A condição da pessoa que sabe ler e escrever e responde as demandas sociais


pelo uso pleno da leitura e escrita, se encontra em uma condição de letrado. Entende-
se dessa forma que não basta saber ler e escrever, mas saber fazer uso dessas
habilidades continuamente frente às exigências da sociedade, daí o surgimento do
termo letramento (SOARES, 2001).
Com relação à dimensão social, o letramento é uma prática social coletiva e
não individual. A forma com que o sujeito utiliza suas habilidades de leitura e escrita em
seu contexto específico se relaciona com os valores que envolvem todo um contexto
social. Vale ressaltar que o termo letramento aparece como uma forma de responder ao
esgotamento das possibilidades do termo alfabetização. O conceito se torna significativo
à medida com que as condições do sujeito alfabetizado e a escolarização básica tornam-
se visíveis e novas compreensões dos fenômenos envolvidos passam a ser
compreendidos (MORTATTI, 2007).
Ao tratar sobre letramento literário, faz-se necessário compreender a relação
da criança com esse processo. Para Zilberman (2007) para que a criança seja imersa
ao mundo da escrita, é imprescindível a tecnologia da alfabetização e do letramento.
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Soares (2003, p. 90) conceitua estes como “o desenvolvimento de competências
[habilidades, conhecimentos e atitudes] de uso dessa tecnologia em práticas sociais que
envolvem a língua escrita”. O letramento supera a alfabetização à medida que utiliza a
habilidade da leitura e escrita de forma efetiva em seu contexto social.
Cosson (2014) nos leva a refletir sobre a literatura nos espaços escolares
sendo usada de maneira inadequada. Para o autor, a relação entre a literatura e a
educação está longe de ser pacífica. Pesquisas de estudiosos da área da Letras
acreditam que educação literária só está presente nas escolas por força da tradição,
uma vez que é um produto do século XIX e não deveria existir no século XX. Assim,
para o autor, há uma discrepância na compreensão e no espaço ocupado pela literatura
que justifica as relações frágeis entre literatura e educação.
Ainda para Cosson (2014, p. 23) “o letramento literário é uma prática social e,
como tal, responsabilidade da escola.” O autor adverte que não é uma questão de a
literatura ser escolarizada ou não, mas a descaracterização que impede a sua
capacidade de humanização. Para ele, a maior resistência para que ocorra o letramento
literário na sala de aula é a capacidade de simplesmente ler, pois há uma dissociação
entre leitura e literatura desdobrando no senso comum.
A promoção do letramento literário transcende uma leitura simplista. Zilberman
(2007, p. 247) afirma que,

[...] o letramento literário efetiva-se quando acontece o relacionamento


entre um objeto material, o livro, e aquele universo ficcional, que se
expressa por meio dos gêneros específicos, a narrativa e a poesia,
entre outros, a que o ser humano tem acesso graças à leitura.

A escola por ser um ambiente de educação formal, precisa compreender e


incitar o aluno a explorar a literatura de maneira adequada e não reafirmar a barreira
entre as obras e o leitor como vem ocorrendo durante esse tempo. O espaço escolar
deve compreender que a leitura por mais que seja um ato solitário, sua interpretação é
um ato solidário. O ato de ler deve transcender a decodificação de códigos, mas,
sobretudo, o processo de compartilhamento de diferentes visões de mundo do homem
em cada espaço e época.
Ao tratar sobre leitura literária e/ou análise literária estamos falando sobre
letramento literário. Por ser o inverso da leitura convencional, o termo em debate faz
referência a uma literatura que responda as inquietações do autor, haja vista que é um
processo de comunicação. Além disso, convide o leitor a vivenciar experiências
diferentes e explorá-las em variadas situações. Dessa forma, haverá a possibilidade de
falar em leitura literária ou letramento literário.

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De maneira geral, compreende-se que a formação de leitores capazes de
perceber e vivenciar a função humanizadora da literatura é necessário, não apenas ler.
Esse tipo de leitura esconde em si as verdadeiras intenções que o texto carrega em si.
O letramento literário é imprescindível no processo educativo justamente pela
superação da leitura simplista. Ao falar sobre letramento literário estamos tratando sobre
o conhecimento do mundo e a forma com que ele age sobre nós.

Percurso metodológico
O trabalho situa-se no campo das investigações qualitativas, por conseguinte
descritivas – estudos de opiniões ou projeções, por caracterizar-se frequentemente
como estudos que procuram determinar status, opiniões ou projeções futuras nas
respostas obtidas e interpretativas, que tem como foco as experiências de vida que
alteram e moldam a atribuição das pessoas a elas e às suas experiências. É importante
frisar que esse tipo de investigação geralmente é posto em questão, uma vez que Vilela
(2003) salienta haver a “impossibilidade de se apresentar uma definição fechada [da]
pesquisa qualitativa” (p.458).
Para a realização deste estudo pesquisa foram selecionadas duas professoras
do 1º e 2º ano do Ensino Fundamental em uma escola situada no campo. As
professoras-participantes foram identificadas através de códigos (PA e PB), por
desenvolverem atividades na turma A (1º ano) e turma B (2º ano). Para a coleta das
informações foi utilizado o instrumento questionário com perguntas abertas e fechadas
para as duas professoras participantes da pesquisa, permitindo assim que elas
pudessem expressar suas percepções dentro do contexto da abordagem e também para
que fosse possível recorrer aos fatos observados, para o estabelecimento das conexões
com as teorias próprias do tema em estudo.
Segundo Thomas, Nelson e Silverman (2007, p. 29),

[...] o uso do questionário é a necessidade de obter respostas das


pessoas, com frequência, em uma ampla área geográfica. Usualmente
o questionário é a tentativa de conseguir informações sobre práticas e
condições atuais e dados demográficos. As vezes utiliza-se essa
técnica para pedir opiniões ou expressão de conhecimentos.

Dessa forma, foi entregue um questionário para as professoras participantes


compostos de seis questões, mas neste trabalho trataremos apenas de uma questão.
Foram registrados dados construídos no cotidiano da sala de aula e anotados em um
caderno de campo. Entendemos que as conversas e a escuta de relatos registrados no
caderno de campo foram revelando informações que não são possíveis de perceber nos
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questionários, mas possibilitaram a reflexão que repercutiu na análise de dados. Para
Eco (1986), esta forma de anotação permite a leitura das entrelinhas e não somente das
linhas. Ressalto que houve a preocupação da pesquisadora em não se deixar influenciar
apenas pela subjetividade durante a interpretação dos dados
As construções de dados e vivências no lócus da pesquisa foram realizadas
durante 5 meses. Ressaltamos que as aulas de turma A eram pelo período matutino e
a turma B, no período vespertino, não comprometendo assim a participação da
pesquisadora nas salas durante as aulas.

Análises dos dados


O letramento literário aproxima o leitor do texto, além de destacar a leitura
prazerosa, a fruição estética, a construção de novos sentidos e a ampliação do universo
cultural (BRANDÃO; ROSA, 2005). Veja agora a análise das práticas de letramento
literário desenvolvidas na escola da pesquisa de acordo com os dados fornecidos no
instrumento de coleta de dados. A resposta abaixo corresponde a PA:

Trabalhei um projeto com texto que tem o título (Menina bonita do laço
de fita) de um livro de literatura infantil. Para obter sucesso ao trabalhar
literatura infantil, eu precisei planejar as aulas. Ao optar por escolhas
de livros de literatura infantil, fiz comentários iniciais valorizando a....
como organizar a sala de aula para a dramatização acontecer, partindo
da história (Menina Bonita do Laço de Fita). Procurei enfatizar a
importância da literatura infantil em sala de aula e verifiquei várias
possibilidades de se trabalhar com.... o preconceito, o poema, a
parlenda, dramatização, leitura coletiva do texto. Nesta dramatização
todas as crianças da sala participaram; foram realizadas várias
atividades dentro da história contada e dramatizada. (PA, 2017)

As práticas descritas por PA não foram desenvolvidas durante o período em


que foram realizadas as construções de dados deste estudo. Ambas as professoras
pediram que fossem executadas intervenções com obras literárias junto aos discentes,
o que caracteriza que o trabalho com a literatura sempre está relacionado com os
conteúdos programáticos. O relato da professora revela uma tentativa de possibilitar aos
alunos vivências que desencadeiem o letramento literário. Mas, entendemos a partir da
resposta descrita no questionário e das observações feitas in loco, que sem uma
compreensão da importância dessa abordagem de ensino, os impactos nas mediações
não serão significativos.
O livro Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado209, narra a história
de uma menina negra e um coelho. O animal vislumbrado pela beleza da criança faz

209
COLOCAR REFERENCIA DO LIVRO
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questionamento a fim de descobrir o motivo de ela ser tão “pretinha”. Esta por sua vez,
conta pequenas histórias buscando justificar a cor de sua pele. Em conversa com PA, a
respeito do uso da obra nas aulas, a mesma garantiu que fora os objetivos descritos em
sua resposta, vislumbrou ampliar a reflexão acerca do preconceito, temática essa que
pode ser evidenciada na obra utilizada. Observa-se ainda o planejamento feito de forma
a abarcar variados gêneros literários, tais como: poema e parlenda; além da
dramatização e leitura coletiva de textos.
Como havia uma preocupação de atividades sistemáticas na busca da
alfabetização, questionou-se se o uso da literatura infantil não se tornaria atrativo para
as crianças, levando-as à reflexão de seu contexto, além da apreensão dos
conhecimentos requeridos pela docente. A justificativa da professora se deu em relação
ao atraso do início das aulas na escola e o grande número de conteúdos que deveriam
ser ministrados em tempo hábil.
Vejamos agora a resposta de PB, quando solicitada a descrever as práticas
desenvolvidas utilizando a literatura infantil.

Sempre desenvolvo minhas aulas com atividades diversificadas. Utilizo


muito os livros literários, pois considero muito importante o contato das
crianças com diferentes gêneros textuais. “O desafio da mãe natureza”,
essa foi uma história que eu li para os meus alunos, o gênero textual
era o repente. Esse livro foi tão interessante que as crianças ficaram
entusiasmadas. Através dessa obra pude trabalhar os animais em
extinção, a poluição dos rios e o lixo, onde os alunos fizeram pesquisa
de campo, confeccionaram cartazes, paródias. Enfim, a participação
dos alunos durante as atividades foi bastante proveitosa. O modo de
trabalho propiciou a integração de diferentes áreas do conhecimento.
(PB, 2017)

No relato de PB é exemplificado na prática o que se compreende por


escolarização adequada da literatura infantil, além de apontar indicações para o trabalho
interdisciplinar. PB demostra ter valorizado o conhecimento prévio dos alunos e o
entusiasmo com que manifestaram no decorrer da leitura da obra. A escola atende
crianças moradoras da vila e das viciais circunvizinhas. Os alunos residem em um
contexto de florestas, rios, igarapés e animais selvagens. As histórias contadas por
estes sempre são compostas por situações de aventura que trazem em sua essência
os temas relatados por PB, como poluição dos rios, animais que foram vistos
machucados no caminho da escola, entre outras coisas mais.
Concordamos com Brandão e Rosa (2005), ao destacarem a importância que
o diálogo oportuniza ao leitor, sobre a obra que escuta ou lê. Em outras palavras, é
preciso depreender do aluno, que a leitura se configura como uma atividade de
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construção de significados, ao mesmo tempo em que há uma interação com o texto.
Apesar disso, é notória em algumas salas de aula e na escola, a promoção da leitura
dissociada do significado, no oferecimento de textos vazios e sem sentido e na
valorização de conteúdos que se pretendem ensinar.
Neste sentido é importante frisar que o professor, sendo este o mediador de
práticas de leitura literária, deve buscar possibilitar a conexão entre as vivências sociais
dos alunos e o texto que será lido, objetivando o desenvolvimento da leitura polissêmica.
As práticas de letramento literário devem transcender a decodificação. Assim, devem
ser desafiadoras, ou seja, incitar o aluno a indagar, relacionar e estabelecer relação
entre o lido e o vivido e assim construir novos saberes, explorando sua subjetividade.
Para Kleiman (2004), a compreensão não está imbricada ao ato de ler. Dessa
forma, são importantes práticas desafiadoras que incitem o leitor à formação de
questionamentos. Por conseguinte, observo a importância da mediação do professor
junto aos alunos, tendo em vista que nem sempre o que o aluno lê é compreendido.
Indica certeza a tentativa de PB de assegurar práticas de incentivo à leitura ao
ler o relato acima. No entanto, inúmeros são os desafios a serem superados no cotidiano
da sala de aula, não só pela escola situada no campo, mas ainda as que estão
localizadas na cidade.
É comum a professora passear entre as cadeiras para corrigir as tarefas que
foram enviadas para casa. Faz parte da rotina das crianças a distribuição de fragmentos
de textos para que os alunos “ensaiem” a leitura em casa e depois leiam na escola. A
professora diz que é uma forma de “ver” como está a leitura dos alunos. Esse tipo de
prática, geralmente é seguida por exercícios de estudo de texto ou, como apontado
pelas crianças, a construção de um “textão”.
De acordo com Silva (2009, p. 106), por intermédio da leitura, é possível que o
aluno descubra não só sentido do texto, mas, ao ser desafiado, é impulsionado a
solucionar problemas e tomar decisões. “Seus desejos, [...] preferências, sentimentos e
emoções, juntamente com sua história de vida e o que determina como se relacionara
com seu mundo exterior”. Assim, intervenções de práticas de letramento literário
possibilitam ao sujeito, que atribua novos significados ao vivido, a partir da interação
que mantém com o texto em determinada situação, ou seja, pela relação do vivido com
o lido.
O letramento literário é uma prática social e se configura como
responsabilidade da escola (COSSON, 2014). Os participantes da escola precisam
conscientizar-se dessa tarefa sem descaracterizar a literatura como vem ocorrendo e

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garantir a sua função de humanizar. A partir do momento em que os atores da escola
compreendam as implicações do desenvolvimento dessas habilidades, apropriação da
leitura e escrita e o uso social, para os sujeitos e a necessidade de práticas que
provoquem essa formação, poderemos pensar em escolarização adequada, citada por
Magda Soares.
Evidencio que as práticas de leitura que são consolidadas em parte das escolas
não valorizam a função humanizadora da literatura. É comum a promoção de eventos
escolares, no qual a leitura está longe de ser uma prática social tornando-se apenas um
momento de exercício. Geraldi (1985, p. 78) afirma que “[...] na escola não se leem
textos, fazem-se exercícios de interpretação e análise de textos, e isto não é mais que
simular leitura”.
Ao refletir sobre práticas de letramento na escola, devemos tomar cuidado ao
culpar somente o professor. É preciso analisar todo o processo educativo e as condições
de formação continuada dos professores. Geraldi (1985) ressalta que existem
“modismos” nas escolas, sendo estes desdobramentos da má formação em que o
docente se embasa teoricamente e mesmo na contínua formação.
As práticas de leitura na perspectiva do letramento literário podem se configurar
como possibilidade de formação de sujeitos capazes de transcender as habilidades da
leitura. No entanto, se escolarizada de forma inadequada, se consolidarão apenas como
instrumentos moralizadores e sistemáticos, desvalorizando a sua verdadeira função e
não promovendo a reflexão, o desejo, a imaginação e o prazer (ALLEBRANDT; FEIL;
FRANTZ, 1999).
Zilberman (2003) aponta, que em muitas situações escolares, a literatura tem
se apresentado na escola como ensinamento, conforme a visão de mundo feita pelo
adulto. A autora evidencia que muitas vezes o livro tem sido usado como manual de
instruções do adulto, mas não ocultando o sentido pedagógico. O que a autora propõe
é a escola e literatura como espaço de reflexão de condição pessoal e construção do
sentido da palavra.
As práticas apontadas pelas participantes da escola precisam ser repensadas,
contemplando o processo de letramento literário e não apenas leitura da obra de forma
sistemática. Considerando que a literatura pode ter função social, deve ser
compreendida de forma significativa pelos alunos. Dessa forma, é papel do professor
enquanto mediador o fortalecimento para essa disposição crítica, a fim de ultrapassar a
leitura simplista de obras literárias (COSSON, 2014).

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Considerações Finais

Ficou notório que a escola, enquanto local de formação do leitor, precisa de


preparação para possibilitar e desenvolver práticas pedagógicas que reconheçam a
importância da literatura de desencadear nos sujeitos, sensações múltiplas e
significativas. No entanto, é preciso esclarecimento teórico que embase o fazer docente,
de modo a formar para o letramento literário, sendo a formação continuada um dos
caminhos para superação das dificuldades conceituais existentes.
Por fim, os resultados do presente estudo objetivaram analisar as práticas de
letramento literário desenvolvidas no lócus da pesquisa. Nessa abordagem, buscamos
dialogar com os termos que estão imbricados às habilidades das competências da
leitura. Dessa forma, propomos e defendemos práticas de leitura que promovam a
formação de um leitor capaz de posicionar-se diante de obras literárias, que transcenda
a simplista decodificação dos textos, ou seja, um leitor literário. É necessário repensar
o fazer docente, o aprendizado crítico da leitura literária, que não é possível sem a
interação do sujeito com a obra e o texto, sem o letramento literário.

Referências

ALLEBRANDT, L.I.; FEIL, I.S.; FRANTZ. L,M. O valor da literatura na sala de aula e na
vida. In: ________ O tecer da linguagem no cotidiano escolar: reflexões sobre o
ensino e a aprendizagem da linguagem nas series iniciais do ensino fundamental. 2 ed.
Ijuí, Rio Grande do Sul: UNIJUI, 1999. p. 83-102.

BRANDÃO, Ana Carolina P.; ROSA, Ester C.S. Literatura na Educação infantil: que
história é essa? In: Brandão, Ana Carolina P.; ROSA, Ester C.S. (Orgs.). Leitura e
produção de textos na alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global,
2007.

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2014.

ECO, U. Lector in fábula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. São Paulo:
Perspectiva AS, 1986.

GERALDI, J. W. (Org.). O texto na sala de aula. 2 ed. Cascavel: Assoeste, 1985.

KLEIMAN, A. B. Oficina de leitura: teoria e pratica. 10 ed. Campinas: Pontes, 2004.

KLEIMAN, A. B. Contribuições teóricas para o desenvolvimento do leitor: teorias


de leitura e ensino. In: KLEIMAN, A. B.; ROSINF, T.; BECKER, P. (Orgs.) Leitura e
animação cultural. Repensando a escola e a biblioteca. (Edição bilíngue). Passo Fundo
(RGS): UPF, 2002. p. 27-68.

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MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Teorias e práticas de letramento. In: SCHOLZE,
Lia. ROSING, Tania M. K. (Orgs). Letrar é preciso, alfabetizar não basta...mais?
Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2007.

SILVA, E. C. Individualidades e subjetividades em foco. Boletim / Centro de Letras e


Ciências humanas, UEL, Londrina. n. 57. p. 89-112 - jul./dez 2009.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três géneros. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora
Autêntica, 2001.
______________. Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, Vera Masagão (Org).
Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003.

THOMAS, J. R.; NELSON, J. K.; SILVERMAN, S.: Métodos de pesquisa em atividade


física. Tradução de Denise Regina de Sales, Márcia dos Santos Dornelles. – 5. Ed. –
Porto Alegre: Artmed, 2007.

TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. – 2 ed. – São Paulo: Cortez,


1997.

VILELA, R. A. T. O lugar da abordagem qualitativa na pesquisa educacional:


retrospectiva e tendências atuais. Perspectiva, Florianópolis. v. 21. n. 2. p. 431-466,
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ZILBERMAN, Regina. Teorias e práticas de letramento. In: SCHOLZE, Lia. ROSING,


Tania M. K. (Orgs). Literatura infantil e a introdução à leitura. Brasília: Instituto
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POSSIBILIDADES DE LEITURA PARA O CONTO “A COBRA
QUE ERA UMA PRINCESA”, DE JOSÉ LINS DO REGO

Ana Paula Serafim Marques da Silva, Universidade Federal da Paraíba


Hildenia Onias de Sousa, Universidade Federal da Paraíba
Morgana de Medeiros Farias, Universidade Federal da Paraíba
Irany André Lima de Souza, Universidade Federal da Paraíba

Eixo Temático: 8 - Literatura infantil e ensino

Introdução
Sabe-se que a leitura de um texto literário no Ensino Fundamental II pode ter
muitos desafios, a começar pela grade curricular da etapa que não desfruta da referida
disciplina. Dessa forma, as aulas costumam ser orientadas somente pelo livro didático,
com limitação ao uso de fragmentos de textos para ensino da gramática normativa. Tais
adversidades acompanham toda a educação básica e o processo do ensino de literatura
vem sendo alvo de muitas pesquisas. Nessa direção, abordaremos questões sobre a
literatura popular e sobre uma metodologia de aplicação da categoria em sala de aula.
Assim, o objetivo geral desta pesquisa é descrever e analisar como o conto
popular pode ser apresentado por meio de estratégias de leituras em turmas iniciais do
Ensino Fundamental II. Como objetivos específicos, propomos discutir como a literatura
popular aparece nos livros da coleção Português: Linguagens (CEREJA; MAGALHÃES,
2015). Ainda, buscamos apresentar, de forma breve, alguns autores e suas produções
de textos populares em terras pessoenses e propor uma sequência didática para o
trabalho em sala de aula com o conto “A cobra que era uma princesa”, de José Lins do
Rego (1901-1957).
Em termos teóricos, o trabalho encontra-se ancorado, principalmente, nas
ideias sobre a cultura popular de Simonsen (1987), de literatura infantil/juvenil Colomer
(2003), de Zilberman (2014) e de Azevedo (2001; 2003; 2007) e nas discussões sobre
estratégias de leitura de Solé (1998) e de Girotto e Souza (2010).
Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo-
interpretativo, conforme Gil (2002, p. 133), que define o referido método como “[...] uma

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seqüência de atividades, que envolve a redução dos dados, a categorização desses
dados, sua interpretação [...]”.

Vínculos entre a cultura popular e a literatura infantil/juvenil


Os contos populares/de fadas/maravilhosos não foram inicialmente dirigidos à
infância. No entanto, posteriormente, o material de recolha dos contos orais produzido
pelos irmãos alemães Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), por exemplo,
passou a ter como público as crianças. Desde então, em grande parte do material
bibliográfico da literatura infantil/juvenil sempre há a presença de elementos do folclore
(ZILBERMAN, 2014). Tais fatores culminaram na estreita vinculação entre a literatura
de tradição oral e a literatura direcionada aos pequenos e jovens leitores, bem como
sua perpetuação no imaginário coletivo das sociedades contemporâneas, pois “[...] o
folclore como forma literária viva está enraizado essencialmente na literatura infantil e é
parte da descrição deste fenômeno.” (COLOMER, 2003, p. 55).
O conceito de “conto” variou muito ao longo dos anos. Alguns folcloristas
afirmam se tratar de um relato, de uma lenda, de uma história etc. A estudiosa Michèle
Simonsen (1987, p. 6) afirma que o conto pertence à tradição oral popular e à literatura
escrita, sendo assim, ele se constitui como “[...] um relato em prosa de acontecimentos
fictícios e dados como tais, feito com finalidade de divertimento”. Também há os contos
cordelizados. O conto popular é aquele que, em algum momento da história, foi dito e
transmitido oralmente; acaba se relacionando com outras diversas histórias, pois,
comumente, motivos e temas se adaptam a diferentes países e culturas, encantando
gerações de ouvintes/leitores.
Nessa perspectiva, Luis da Câmara Cascudo (1984, p. 34-35) diz que “[...] as
estórias mais populares no Brasil não são as mais regionais ou julgadamente nascidas
no país, mas aquelas de caráter universal, antigas, seculares, espalhadas por quase
toda a superfície da terra.”. Partindo dessa premissa, abordaremos, em seguida, a
contribuição literária, principalmente, popular de alguns escritores paraibanos à
literatura infantil/juvenil.

A literatura popular infantil/juvenil à moda paraibana


A história da literatura infantil/juvenil brasileira recorre desde sua aurora a
elementos da cultura popular. No contexto paraibano, citaremos alguns autores e obras.
José Lins do Rego é da cidade de Pilar-PB e é considerado uma importante
referência em romances regionalistas. Dentre sua vasta produção, publicou, em 1936,

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o exemplar, objeto do presente estudo, Histórias da velha Totônia, obra que o torna
principal expoente da literatura popular paraibana e que ele dedica “Aos Meninos do
Brasil”. Ademais, o exemplar contribui para a perpetuação de nossas histórias populares
ao trazer como temática a recuperação de contos folclóricos que fazem parte do
imaginário popular brasileiro e, sobretudo, adaptados para a cultura local. É possível
perceber na obra que o autor “[...] se mostra atravessado pelas vozes do contador
popular, figurado na velha narradora, pode-se pensar a Totonha da sua infância como
metáfora do próprio processo narrativo do romancista [...].” (COUTINHO, 2006, p. 46).
Rego inspira-se em costumes e símbolos já conhecidos para construir suas
narrativas. Enxerga-se, pois, o aproveitamento da cultura popular presente no processo
de sua criação. Desse modo, o livro Histórias da velha Totônia (1936) é composto por
quatro contos recolhidos da sabedoria popular: “O macaco mágico”, “A cobra que era
uma princesa”, “O príncipe pequeno” e “O Sargento Verde”, os quais também foram
reunidos por Sílvio Romero (1851-1914), pioneiro na disseminação de material folclórico
no Brasil. Assim, os contos presentes em nosso corpus apresentam versões diversas já
abordadas pelas autoras Souza, Silva e Segabinazi (2017, p. 4): o texto em estudo, por
exemplo, “remete ao conto “A Princesa serpente”, pertencente aos Contos tradicionais
do Brasil (1946), de Luís Câmara Cascudo (1898-1986).” Acrescentamos as conexões
e os motivos de “Pele de Asno” e “Cinderela”, pois, como aponta Coutinho, a obra
apresenta

[...] variações de contos coletados na Europa. A tradição oral no Brasil


deixa-se atravessar pelos textos escritos conhecidos pelas avós
coloniais e incorporados oralmente pelos excelentes contadores
negros. Forja-se, assim, um circuito em que a escrita se conforma
como matriz do oral a qual, por sua vez, volta a fecundar o campo
literário, como semente de boa lavra que deve nutrir os meninos do
Brasil (2006, p. 46).

Na 11º edição de 1999, da editora José Olympio – a que utilizamos –, todos os


contos são ilustrados com xilogravuras do paraibano Tomás Santa Rosa (1909-1956).
O conto em estudo dispõe de onze ilustrações em preto e branco e apenas uma colorida
(fig. 1), referente à personagem principal Labismínia.
Luís Camargo (1999, p. 1) aponta que as ilustrações, além de “ornar ou
elucidar” ao acompanhar um texto, podem ser: “representativa, descritiva, narrativa,
simbólica, expressiva, estética, lúdica, conativa, metalingüística, fática e pontuação”.
Dessa maneira, encontramos em “A cobra que era princesa” as funções: representativa,
quando imita a aparência do ser ao qual se refere e descritiva, quando detalha essa
aparência (CAMARGO, 1995). Ademais, há aquelas que cumprem função de
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pontuação, sinalizando o início, o fim ou as partes do texto junto ao qual estão inseridas,
nele criando pausas ou destacando alguns de seus elementos, presentes ao longo da
obra.
Além de Rego – foco deste texto –, outros paraibanos desenvolvem um
trabalho de produção que destaca a cultura popular, caso de André Ricardo Aguiar
(1969), de quem destacamos a obra O Rato que Roeu o Rei (2007), na qual é
perceptível diálogo com trava-língua e contos populares. Ainda, o jornalista Hilton
Gouvêia publicou Histórias Fantásticas da Paraíba (2014), que contempla fatos
inusitados e fantásticos ocorridos na Paraíba.

A cultura popular nos livros didáticos da coleção Português: Linguagens


(2015) para o Ensino Fundamental II
Em nossos estudos junto ao Grupo de Pesquisa Estágio, Ensino e Formação
Docente (GEEF) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), apreciamos os livros
disponíveis na maior parte das escolas da Rede Municipal de João Pessoa. Diante da
triagem realizada, verificamos que das 65 escolas municipais de Ensino Fundamental II
da cidade, mais de 50% utilizam a coleção Português: Linguagens (2015), de Thereza
Cochar Magalhães e William Roberto Cereja (escolha conforme o edital 02/2015 que
regeu o PNLD 2017), e, por isso, tomamo-la como objeto de análise.
Sobre a categoria popular, para Luís Câmara Cascudo (1984), o folclore
constitui uma forma de cultura popular. Mais contemporaneamente, Ricardo Azevedo
(2001, p. 1) aponta que “[...] a cultura popular, ou o folclore, é, como queria Varagnac,
‘um conjunto de crenças coletivas sem doutrinas e de práticas coletivas sem teoria’”, ou
seja, um universo abrangente, onipresente e transitório de costumes que se fortalecem
pelas experiências do povo formadas “[...] pelos mitos, contos, versos, festas, comidas,
danças, rezas, simpatias, crendices, anedotas, advinhas, cantigas, ditados, parlendas,
frases feitas etc.” (AZEVEDO, 2003, p. 71).
Conforme Coelho (2000), a literatura infantil folclórica agrada às crianças, pois
pertence à área do maravilhoso e por utilizar uma linguagem metafórica, comunica-se
com o pensamento mágico inerente às infâncias. Por isso, é importante verificar como
está acontecendo a valorização das histórias clássicas e populares na formação do
imaginário infantil. Consoante Colomer (2003, p. 58), ao citar Petrini, “[é] precisamente
do folclore que temos de partir, como de um manancial inicial, se queremos descobrir o
significado e a função da literatura para a infância.”.

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Com base nessas definições de cultura popular, constatamos, quanto à referida
categoria na coleção Português: Linguagens (CEREJA; MAGALHÃES, 2015), que, a
princípio, há baixa presença dos gêneros literários como um todo, em detrimento dos
demais gêneros textuais. Além disso, revelou-se um cenário ainda mais preocupante no
que concerne à literatura popular, visto que encontramos 3, 4, 0 e 1 textos dessa
categoria nos livros do 6°, 7°, 8° e 9° ano, respectivamente. Os textos em maior
quantidade são cordéis, seguidos por cantiga de roda e conto de tradição popular.
Ricardo Azevedo (2007) fala da validade dessa literatura para o contexto
escolar e defende a necessidade de se estudar ainda mais o processo de existência
dessa cultura, a fim de formar leitores: “seria o caso de conhecer melhor e explorar
sistematicamente esse imenso acervo no processo educacional, principalmente no caso
de pessoas originárias ou vinculadas de alguma forma à tradição oral.” (AZEVEDO,
2007, p. 3).
Sabemos que a categoria ainda não obteve merecida atenção acadêmica,
preterida a outras obras consideradas clássicas, o que pode refletir na sua diminuição
no livro didático. Esses dados reforçam a importância da presença dessa literatura em
sala de aula e de propostas que abarquem essa leitura, como a que propomos no
próximo tópico.

Estratégias para a leitura do texto literário: procedimentos metodológicos


Ao buscar a interação entre leitor, texto e mundo, Cyntia Girotto e Renata
Souza (2010), pautadas nos estudos da pesquisadora espanhola Isabel Solé (1998),
evidenciam a pertinência do trabalho com estratégias de leitura, objetivando “[...]
melhorar a compreensão de um texto durante a leitura.” (GIROTTO; SOUZA, 2010, p.
47), bem como antes e depois desse processo, a fim de formar leitores conscientes de
sua função. Em outras palavras, o propósito maior é a formação de sujeitos que utilizam
estratégias de leitura de modo consciente, estabelecendo pontes e conceitos entre o
que já sabem e o que desejam aprender e compreender no ato da leitura (SOLÉ, 1998).
Conforme as autoras, o trabalho com as estratégias divide-se em seis, após a
ativação do conhecimento prévio, considerada a estratégia-mãe por englobar todas as
demais. As estratégias são: 1. Conexão entre textos, entre eles e o leitor, o mundo,
tendo como norte a obra lida; 2. Inferência – consiste na dedução, por meio das pistas
dadas pelo texto, do que está por vir e, assim, chegar a uma conclusão ou interpretação;
3. Visualização – permite ao leitor elaborar e construir, por intermédio das imagens
mentais, significados sobre o que está sendo tratado no texto; 4. Sumarização – consiste

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em selecionar os elementos mais essenciais de um texto; 5. Questionamento, como
forma de tentar responder e preencher lacunas do texto, promovendo vínculo com a
leitura e melhorando sua compreensão; 6. Síntese, que “acontece quando os leitores
relacionam a informação com o próprio pensar e modelam com seus conhecimentos”
(GIROTTO; SOUZA, 2010, p. 67-68), ou seja, sintetizar significa mais que simplesmente
resumir um texto.
É válido mencionar que a maioria dos leitores já pratica algumas das referidas
estratégias inconscientemente. Esse fator contribui ainda mais para a relevância do uso
desses recursos pelos leitores e para a importância de o professor torná-los
conscientes. Essas contribuições servirão de norte para a elaboração da proposta de
leitura, de interpretação e de compreensão do procedimento metodológico nos
momentos antes, durante e depois da leitura (SOLÉ, 1998) em que as estratégias de
leitura foram sugeridas no conto em questão, a fim de auxiliar na construção do
conhecimento dos leitores.
Assim, percebemos ser essencial ensinar estratégias de compreensão leitora,
para “[...] formar leitores autônomos, capazes de enfrentar de forma inteligente textos
de índole muito diversa [...]” e que procuram se interrogar sobre sua própria
compreensão, estabelecendo relações entre o que leem e o que faz parte das suas
experiências de mundo, estabelecendo, assim, “[...] generalizações que permitam
transferir o que foi aprendido para outros contextos diferentes.” (SOLÉ, 1998, p. 72).
Comungamos com Cosson (2014, p. 15) quando ele diz que “[s]e a presença
da literatura é apagada da escola, se o texto literário não tem mais lugar na sala de aula,
desaparecerá também o espaço da literatura como lócus de conhecimento”. Com base
no apagamento da cultura popular no livro didático e tendo em vista que os alunos
merecem que o conto lhes seja apresentado de modo mais atrativo, mais coerente e
mais próximo da sua realidade, a seção seguinte traz um passo metodológico, à luz das
estratégias de compreensão leitora, que impulsione, especificamente, a leitura da
literatura paraibana na sala de aula, na tentativa de que as histórias coletivas do nosso
povo sejam lembradas e valorizadas pelo jovem leitor.

Estratégias de leitura para “A cobra que era uma princesa” dirigida aos
anos iniciais do Ensino Fundamental II: uma proposta de intervenção
Propomos um trabalho de leitura literária baseado nos postulados de Solé
(1998) sobre sequência didática. Exploraremos apenas uma metodologia que, a nosso
ver, pode ajudar o leitor a entender melhor e a ter consciência do que acontece enquanto

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ele lê o texto. A escolha por esta obra justifica-se por ela proporcionar ao nosso público-
alvo um elevado valor estético, por compor acervo da literatura popular paraibana e se
apropriar de motivos sociais locais; assim, possibilidades de leituras e de leitores
diversos fazem parte deste trabalho.
 Antes da leitura
Poderíamos partir do conhecimento prévio do aluno, dos recursos cognitivos e
de sua bagagem cultural para iniciar a leitura do conto e para estabelecer antecipações
sobre o conteúdo do texto. Tal iniciativa poderá, paulatinamente, aproximar o aluno do
que será abordado na obra. Aqui, os alunos poderão ser questionados sobre o tema
central do conto popular, podendo o mediador usar as seguintes perguntas: Você
conhece algum(a) contador(a) de histórias? Como ele(a) era/é? Como ele(a) contava
as narrativas? Falavam de quê? Em qual ambiente vocês escutaram? Pode citar as
histórias ouvidas? O professor pode listar no quadro todos os contos que os alunos
citaram, pois eles podem ser lembrados novamente durante a leitura do conto objeto
desta proposta. Sugerimos que todo o processo seja registrado por fotos, para que no
final do trabalho seja realizada uma exposição na escola. Também sugerimos construir
um quadro com as conexões realizadas.
Em seguida, pode-se partir para a apresentação de autor e obra. Aqui, também,
deve-se partir do conhecimento prévio da turma. Para a apresentação da obra, o
professor poderá realizar, inicialmente, uma apresentação da capa e de alguns
paratextos, bem como a leitura do título, com o objetivo de que o aluno infira e antecipe
o que virá, fazendo-o identificar os elementos que constituem a obra à primeira vista:
imagem da capa e da contracapa, título, autor e editora. Ressaltamos a importância de
o professor ter em mãos pelo menos um exemplar do livro e apresentá-lo ao aluno, visto
que o contato com a sua materialidade é essencialmente relevante no processo de
leitura.
Pode-se fazer a exposição da(s) capa(s) (facilmente
encontradas na internet), de forma que o professor pode estimular os alunos a
levantarem pontos relevantes: Pela(s) capa(s), do que vocês imaginam se tratar o livro?
Por que há uma senhora cercada por crianças? Quais personagens se repetem e por
quê? Quem será a velha Totônia e sua participação na história? Quem foi ela? Qual
capa tem mais informação?
Ainda nos elementos paratextuais, pode ser lido o texto “Aos Meninos do Brasil”
disponível no livro para ajudar as crianças na visualização da contadora de história e da
sua importância para o escritor. O autor nos diz que a velha Totônia é “[...] bem velha e

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bem magra, andando, de engenho em engenho, contando suas histórias de Trancoso.”.
(1999, p. ix). A partir daqui, seguir para uma breve biografia do autor: Quem conhece
José Lins do Rego? Já leram algum livro do autor? Para uma maior exploração, o
professor pode indicar a leitura do livro José Lins do Rego em Quadrinhos (2015), do
escritor Iranilson Biruti e ilustrador Megaron Xavier. É relevante que se informe aos
alunos que Rego passou a primeira infância no engenho da família, em Pilar-PB, e os
contos e a relação com a contadora são resultado dessa vivência.
Após ter explorado o conhecimento prévio da criança (importante
procedimento), feita a leitura de capas e a apresentação do autor, partiremos para a
leitura do conto “A cobra que era uma princesa”.
 Durante a leitura
Conforme Solé (1998, p. 117), essa etapa concentra a maior parte da atividade
compreensiva e que, por isso, demanda maior esforço do leitor. O procedimento mais
indicado é a leitura compartilhada, já que “[...] os alunos e alunas sempre podem
aprender a ler melhor mediante as intervenções do seu professor [...]” (grifo da autora).
Tais intervenções passam pelas seguintes estratégias: “Formular previsões sobre o
texto a ser lido. Formular perguntas sobre o que foi lido. Esclarecer possíveis dúvidas
sobre o texto. Resumir as ideias do texto” (SOLÉ, 1998, p. 118).
Nesse contexto, propomos que, para o conto em questão, os questionamentos
explorados durante a leitura podem ser pautados nas inferências e conexões: Por que
a rainha realizou aquele pedido extremo? Você já fez um pedido estranho e que se
realizou? Qual? Arrependeu-se de tê-lo feito? O que fez para remediar? Por que o povo
e o rei comemoraram a chegada da princesa sem a cobra no pescoço? E por que a
princesa não comungou dessa comemoração? O professor precisa deixar claro que “[...]
a obra fornece pistas a serem seguidas pelo leitor, mas deixa muitos espaços em
branco, em que o leitor não encontra orientação e precisa mobilizar seu imaginário para
continuar o contato” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 82). Sugerimos algumas questões
para discussão, a seguir, de maneira que permitam idas e voltas ao conto.
No trecho: “A lua podia dizer se tinha visto Labísminia, se tinha passado pela
terra de sua irmã. [...] Nem a lua e nem o sol davam notícias de Labísminia, que estava
numa terra que era mais longe que mil léguas que o fundo do mar. Aí a princesa
chorava.” (p. 27): Você já teve uma amiga/o que considerou um irmão? Já sentiu muita
saudade de alguém, a ponto de chorar? De quem? A pessoa/animal (depende do que
for citado) demorou a retornar? Você se sentiu muito sozinho igual a princesa Maria se
sentiu quando Labísminia foi para as profundezas do oceano?

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O contista recorre a elementos da natureza: nem o sol, nem a lua revelava o
paradeiro de Labísminia. Por que a princesa recorria ao sol e à lua para saber do
paradeiro de sua amiga-irmã? Será que a cobra vai cumprir o prometido? Quais pistas
o conto dá para tal interpretação?
Sobre a atitude do Rei diante da doença da rainha: Você concorda com a
atitude do rei em algemar os escravos e obrigar o povo a rezar? Lembra de histórias em
que outros Reis tiveram atitude parecida? Quais contos você lembra que a Rainha morre
precocemente e deixa apenas uma única herdeira? O aluno pode fazer conexões com
“A branca de neve”.
Em seu leito de morte, a rainha pede ao seu rei que só case com aquela que
caiba o anel dela. A partir disso, o nobre mandou milhares de mensageiros pelo mundo
em busca de uma princesa em que coubesse o anel. Lembra de algum conto que
apresenta a jornada do rei para conseguir uma esposa? Pode haver conexão com “A
princesa e a ervilha”, de Hans Christian Andersen, e até com “Cinderela”, dos irmãos
Grimm. Já leu algum conto em que o pai teve interesse conjugal pela própria filha? Por
que ele acredita que o fato de a princesa ter nascido com uma cobra enrolada no
pescoço tenha sido um sinal para tal fato acontecer? Por que o anel só coube no dedo
da sua filha? Talvez essa seja a conexão mais difícil, cabe, pois, ao professor fazer a
mediação e escolher o momento oportuno para a leitura do conto “Pele de Asno”, de
Charles Perrault, e apresentar um breve contexto histórico dos tempos remotos dos
contos de fadas.
“- Labismínia, Labismínia – gritava ela -, vem me acudir” (p. 29). Assim, a cobra
cumpre sua promessa e retorna. Por que só agora ela decidiu vir? O que você acha que
a cobra vai fazer para ajudar Maria? O que você achou das ideias da irmã da princesa?
Por que a certeza e o retorno da serpente acalmavam Maria? Será que a serpente era
de confiança? Ela realmente queria ajudar Maria? O que acham?
O rei, decidido pelo casamento com a sua herdeira, sede a todos os seus
pedidos. O que você acha dessa postura do rei? E dos vestidos da princesa?
Após as três tentativas terem fracassado, Labismínia ajuda Maria a fugir em
um navio, no entanto pede que fosse lembrada no dia mais feliz que Maria vivesse no
lugar para onde estava indo, momento em que o leitor descobre que a cobra é uma
princesa encantada, o que comunga com o título do conto. A fuga em um navio te faz
lembrar alguma outras história? Qual? Maria mostrou espanto ao saber que Labismínia
era uma princesa encantada? Será que Maria se lembrará da sua irmã de coração no
dia mais feliz de sua vida? Vai retribuir a ajuda?

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Em alguns momentos da narrativa, Maria pensa que foi traída pela cobrinha.
Será que a princesa foi enganada pela serpente? Conhece alguma história com conflito
parecido? O que você acha? A cobra tinha intenção de trapacear a amiga de infância?
O que a princesa Maria viveu nessa nova etapa de sua vida te fez lembrar outros
contos? Quais? Possivelmente, os alunos lembrarão do conto “Cinderela”, a partir do
trecho “- Toma a tua carruagem, Maria, e vai para a festa.” (p. 35). De quem será essa
voz que Maria ouve? O professor pode conduzir a discussão para a ilustração (fig. 1),
que nesse momento ajuda a responder a pergunta anterior.

Figura 1 - Ilustração colorida da personagem Labismínia

Fonte: Rego (1999, p. 35), acervo particular.

Nesse conto, a imagem reforça e amplia os sentidos da narrativa.


Concordamos com Graça Ramos (2013, p. 146) quando diz que “[n]ão é a quantidade
de imagens que define o valor de um livro, mas sim a função que elas exercem na
narrativa. Por isso, todo detalhe de uma ilustração é importante.”.
De volta ao desfecho do conto, o leitor se depara com mais uma surpresa: a
cobra era, além de amiga de infância, a fada madrinha da nobre Maria. Essa parte é
bem parecida com o texto “Cinderela”. Mas o professor ainda pode induzir os alunos
para outros questionamentos que o conto nos permite: Por que Maria negou ao príncipe
que ela era a princesa? E o Objeto de reconhecimento diferente: joia ao invés de sapato,
o que acharam? O que você achou do desfecho? De Maria ter esquecido de chamar
pela sua melhor amiga? E o mito do mar?
No decorrer dessa atividade de leitura, o professor poderá avaliar se os alunos
compreenderam o que leram, bem como dimensionar o repertório de leitura deles e suas
habilidades de conexão com outros textos, com o mundo e com suas vivências.
 Depois da leitura
Propomos a volta ao quadro para ver quais contos os alunos citaram antes de
ler “A cobra que era uma princesa”. Se houve algum que foi mencionado durante a
leitura da narrativa, é importante destacar a ligação dessas histórias populares, de
tempo e de povos diferentes e que, por isso, podem existir infinitas versões.

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Sugerimos que a escola promova uma visita ao museu do escritor, localizado
no Espaço Cultural José Lins do Rego, na cidade de João Pessoa. Depois, pode ser
organizada uma exposição fotográfica envolvendo as descobertas da visita ao museu,
assim como desenhos que dialoguem com a obra estudada em sala de aula, com intuito
de divulgar junto à escola e até à comunidade o trabalho de valorização da cultural local.

Considerações finais
Neste texto, atingimos os objetivos acordos inicialmente. Vale ressaltar que a
nossa constatação de apagamento do texto popular em sala de aula parte de uma
análise realizada em livros didáticos. No entanto, a referida prática pode estar sendo
trabalhada pelo professor em sala de aula, já quem vem sendo distribuídos, entre
escolas paraibanas, livros literários que abordam o tema aqui em estudo. Assim,
deixamos como propostas novos estudos que verifiquem se o professor vai além do que
o livro didático propõe, mormente, no que tange ao folclore, bem como uma investigação
sobre como se dá a recepção dessa literatura voltada para a cultura popular entre as
crianças e os jovens diante do cenário atual (leituras da internet, dos best-sellers, dos
clássicos, dos quadrinhos etc.).
Por tudo o que foi discutido, ressaltamos a importância das estratégias de
compreensão leitora para a formação e a emancipação do leitor. Entendemos, portanto,
que a nossa proposta metodológica para a leitura do conto em questão, quando
aplicada, muito provavelmente propiciará aos alunos um diálogo com a tradição e com
os elementos da sua cultura e do seu tempo. Logo, defendemos o uso de estratégias
de leitura como ferramenta de letramento literário em sala de aula, para a exploração
do conto popular na escola, visando às necessidades de seus receptores, os alunos, e
a revalorização do universo popular. Desse modo, é possível evitar o esquecimento de
uma literatura que vem sendo preterida em face de outros textos, bem como possibilitar
que os alunos tenham acesso às sabedorias milenares do nosso povo.

Referências
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ano do EF. 7ª Ed. Reformulada – São Paulo: Saraiva, 2015.

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ano do EF. 7ª Ed. Reformulada – São Paulo: Saraiva, 2015.

CEREJA, W. R. e MAGALHÃES, T. C. Português: Linguagens. Língua Portuguesa, 9º


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DRAMATIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: CONTO “O
PATINHO FEIO”
Daiane Gonçalves de Souza
Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente

Eixo Temático: Literatura infantil e ensino

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A literatura é essencial na etapa da educação infantil, entre todas as suas
características, contribui para a formação da maneira de pensar, iniciando a ludicidade
do pré-leitor. À respeito da literatura na educação infantil Coelho (1991) complementa
que a mesma é:

Abertura para a formação de uma nova mentalidade, além de ser um


instrumento de emoções, diversão ou prazer, desempenhada pelas
histórias, mitos, lendas, poemas, contos, teatro, etc., criadas pela
imaginação poética, ao nível da mente infantil, que objetiva a educação
integral da criança, propiciando-lhe a educação humanística e
ajudando-a na formação de seu próprio estilo.(COELHO, 1991, p. 5)

Por meio da leitura, a criança torna-se capaz de transformar sua imaginação


em suas experiências diárias. Para que a criança adquira interesse pela leitura, é
necessário despertar o gosto pela leitura desde pequena, e a partir de então, a criança
poderá utilizar sua fantasia e imaginação para conhecimento de mundo.
A leitura na infância é fundamental para propiciar novos conhecimentos e
valores acerca no mundo. Sendo assim, o presente estudo tem como intuito descrever
uma prática pedagógica, vivenciada especificamente na educação infantil, pré-escola,
utilizando o conto de fadas “O Patinho Feio”. Para a aplicação da experiência, foi
utilizado como prática de ensino, a dramatização, tendo em vista que a mesma pode
ser vista como técnica de ensino promovendo a inclusão dos estudantes em uma
dinâmica diferente de aulas meramente expositivas. Através dessa técnica, é possível
desenvolver um trabalho voltado a integrar áreas diferentes, relacionando a arte com a
ciência (SCARPATO, 2004). Além disso, a prática exposta procurou abranger
estratégias de ensino de Isabel Solé (1987).

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Conforme o artigo 29 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei
n° 9394/96:

A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como


finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos,
em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social,
complementando a ação da família e da comunidade. (Redação
dada pela Lei nº 12.796, de 2013)

Sendo assim, nota-se o papel essencial da escola durante essa etapa da


educação, como espaço que permite que as crianças adquiram experiências
prazerosas, proporcionando novos conhecimentos, descobertas e aprendizagens.
Na educação infantil, as crianças podem ser imersas no mundo imaginário do
conto de fadas, sobre isso Bettelheim (2007) menciona que os contos de fadas se
caracterizam por serem singulars, não apenas como forma de literatura, mas também,
do modo à obras de arte.
Como método de análise utilizou-se a pesquisa-ação, tendo como base
Thiollent (1997) que relata que tal pesquisa “requer, no mínimo, a definição de vários
elementos: um agente (ou ator), um objeto sobre o qual se aplica a ação, um evento ou
ato, um objetivo, um ou vários meios, um campo ou domínio delimitado” (THIOLLENT,
1997,p. 36).
Neste sentido, o presente estudo surgiu a partir da necessidade encontrada em
uma sala de pré-escola do município de Pirapozinho, consiste também, parte integrante
da disciplina “Perspectivas Curriculares, Práticas Pedagógicas e Estratégias de Ensino”,
oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), na Faculdade de
Ciências e Tecnologia, Unesp – Presidente Prudente, com o objetivo de analisar através
dos recursos e escolha do gênero literário, conto de fadas, a influência para o
desenvolvimento do leitor literário, além de incentivar o interesse e o prazer pela leitura
e consequentemente pela escrita, por meio do uso de estratégias de leitura e da
dramatização (oral, escrita, musical e corporal).

ESTRATÉGIAS UTILIZADAS
O uso das estratégias de ensino foi discutido na disciplina “Perspectivas
Curriculares, Práticas Pedagógicas e Estratégias de Ensino”, ação em que acarretou o
presente estudo. Segundo Anastaciou e Alves (2003), estratégia se refere “[…] a arte
de aplicar ou explorer meios e condições favoráveis e disponíveis, com vista à
consecução de objetivos específicos” (p.68-69). Ainda complementam que “ por meio
das estratégias aplicam-se ou exploram-se meios, modos, jeitos e formas de evidenciar
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o pensamento, respeitando as condições favoráveis para executar ou fazer algo”
(ANASTACIOU; ALVES, 2003, p. 70).
Desta forma, a dramatização foi escolhida como estratégia de ensino dessa
prática, por constituir uma estratégia já vivenciada por parte das crianças da pré-escola,
as quais simpatizaram grandemente com a experiência. Tal estratégia foi aplicada em
continuidade ao trabalho que já estava sendo executado pela turma através do conto de
fadas, então a partir, de um acontecimento em específico em sala de aula à respeito
das diferenças entre os alunos, o livro selecionado foi “O patinho feio”.
A proposta pedagógica foi executada utilizando uma aula por dia, durante duas
semanas letivas, considerando os campos de experiências da educação infantil
presentes na Base Comum Curricular (2018), são eles: O eu, o outro e o nós; corpo,
gestos e movimentos; traços, sons, cores e formas; escuta, fala, pensamento e
imaginação e espaços, tempos, quantidades, relações e transformações.
À princípio foi realizada apresentação do conto “O patinho feio” aos alunos,
para isso, utilizou-se as estratégias de leitura. No que se refere à leitura, Isabel Solé
(1998), descreve a leitura “[...] como objeto de conhecimento de si mesmo e como
instrumento necessário para a realização de novas aprendizagens” (SOLÉ, 1998, p. 21).
Primeiramente realizou-se o processo chamado ‘antes da leitura’, que visa
estimular a inferência dos envolvidos. A atividade ‘antes da leitura’, proporciona a
ativação dos conhecimentos prévios pelas crianças, incentivando sua curiosidade, além
de contribuir para a linguagem oral e escrita. Essa atividade foi feita por meio da
apresentação da capa do livro, momento este, que as crianças tem a oportunidade de
aflorar sua curiosidade. Ainda nessa etapa, é válido destacar que o leitor encontra se
preparando para estratégia seguinte, denominada ‘durante a leitura’. Nesse momento,
o leitor deve ter clareza na realização da leitura, desenvolvendo a leitura de modo que
as crianças sintam-se estimuladas a buscarem novas aprendizagens. A etapa seguinte
desse processo é chamada de ‘depois da leitura’, período o qual presume a o
desenvolvimento de uma nova leitura, com isso, a criança tem a possibilidade de revisar
a história.
Para a efetuação da dramatização, Anastaciou e Alves (2003), relatam alguns
passos os quais podem ser seguidos pelo professor nessa atividade, em cinco
momentos, sendo eles: escolha do tema pelo professor e distribuição dos papéis da
atuação; planejamento pelos alunos; observação da cena através de um círculo; tempo
disponível e observação dos pontos relevantes, de acordo com o objetivo do trabalho e
fechamento da atividade. Ademais, os autores citam algumas operações de

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pensamento, como a decisão, interpretação, crítica, busca de suposições, comparações
e imaginação, que ocorrem de maneira predominante na dramatização. Por fim, nessa
estratégia em específico, sugerem alguns critérios a ser avaliados, entre eles, “clareza
e coerência na apresentação; participação do grupo observador durante a
apresentação; utilização de recursos que podem deixar a dramatização mais real e
criatividade e espontaneidade”. (ANASTACIOU; ALVES, 2003, p. 89).

DESENVOLVIMENTO DA PRÁTICA PEDAGÓGICA: DISCUSSÃO E RESULTADOS


Conforme descrito anteriormente, a prática utilizou as ideias de Solé (1998) e
Anastaciou e Alves (2003), para os procedimentos metodológicos aplicados na
experiência. O conto escolhido foi “O patinho feio”. As atividades foram realizadas em
duas semanas, com aproximadamente uma aula de 50 minutos por dia. Os sujeitos da
pesquisa foram 15 crianças, com faixa etária de 5 a 6 anos, alunos da pré-escola, em
uma escola municipal de educação infantil e ensino fundamental, do município de
Pirapozinho, localizada no Distrito de Itororó do Paranapanema.
O patinho feio é um livro infantil, pertencente ao conto de fadas. Bettelhen
(2007) menciona que o conto de fadas oportuniza significado de diversas maneiras, tem
grande influência na vida da criança como nenhum outro livro, produzindo muitas
contribuições.
A escolha do livro se deu devido a uma problemática ocorrida em sala de aula
envolvendo diferenças físicas entre os alunos e em decorrência do fato de dar
continuidade ao trabalho que estava sendo desenvolvido com a turma sobre o conto de
fadas.
O conto “O patinho feio” é uma história clássica da literatura infantil. A história
foi escrita no século XIX pelo autor Hans Christian Andersen. Ao longo dos anos, já foi
reescrito e adaptado por diversos autores. Relata a história de uma família de patinhos
que tiveram filhotes, e apenas um deles nasce diferente dos demais. O patinho
acreditava ser feio até perceber que na verdade era um lindo cisne. Essa descrição
encanta milhares de crianças por todo o mundo e a partir dessa história, é possível
compreender muitas lições de vida.

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Figura 1
Fonte: https://www.amazon.com.br/Patinho-Feio-Ciranda-Cultural/dp/8538049933

A intervenção foi realizada em cinco momentos. Primeiramente, foi realizada


a escolha do tema e orientação para atuação, conforme Anastaciou e Alves (2007), e
logo depois, o trabalho seguiu com o uso de estratégias de leitura, denominadas: antes,
durante e após a leitura. Primeiramente, iniciou-se a atividade com o momento ‘antes
da leitura’. Neste momento foi apresentado a capa do livro para que as crianças através
da imagem pudessem fazer inferências sobre a história. A partir da visualização da
capa, as crianças puderam ativar seus conhecimentos prévios, realizando suposições
sobre o decorrer da história. Em seguida, foi realizada a leitura em voz alta, mostrando
as imagens da narrativa em questão. As afirmativas desse momento foram feitas
oralmente. Após isso, partiu-se para o momento denominado ‘durante a leitura’. Durante
a leitura, houve a verificação dos conhecimentos prévios relatados pelas crianças
anteriormente. No processo ‘após a leitura’, a história foi retomada a fim de promover
reflexões sobre o que foi lido, construindo aprendizagens. Essa ação denominada
‘durante a leitura’ foi realizada de forma oral, com as reflexões feitas pelas crianças e
anotadas na lousa.

QUADRO 1: Reflexões apontadas pelas crianças


Questão: O que eu aprendi com essa história?
Ex 1 Todo mundo é diferente.
Ex 2 O patinho feio é lindo.
Ex 3 Ninguém é igual a ninguém.
Ex 4 Não podemos zombar dos amigos.
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Ex 5 Cada pessoa é de um jeito.
Fonte: Dados coletados pela autora.

Com base no quadro 1, é possível perceber quantas aprendizagens foram


alcançadas através da história. As reflexões relatadas pelas crianças permitiram
perceber que a história, propíciou valores que levarão para seu cotidiano, tanto de sala
de aula, quanto de sua vida em sociedade. Ainda neste momento, foi proporcionada
para as crianças, partes do conto embaralhadas para que pudessem retomar a história,
desenvolvendo assim, a auto-expressão, a linguagem oral, aspectos presentes nos
objetivos da vivência.

Figura 2
Fonte: Imagem da própria autora, 2019.

Foi perceptível que por meio do uso das imagens da história, os alunos tiveram
mais facilidade em relembrar o conto, bem como, desvendar os detalhes contidos. Sobre
isso, Girotto e Souza (2010, p.67), afirmam que “ensinar as crianças a ativar seus
conhecimentos prévios, bem como seus conhecimentos textuais, e pensar sobre suas
conexões é fundamental para compreensão”.
O segundo momento, segundo Anastaciou e Alves (2003), é caracterizado pelo
planejamento organizado pelos alunos, nesse instante, como trata-se de crianças
pequenas, foi adaptado a ação com o meu auxílio como professora da turma. A partir
da opinião das crianças foram escolhidos o papel de cada um na atuação, os
personagens eram: mamãe pata, patinhos, patinho feio e cisnes. Após isso, foi feito um
círculo para observar a apresentação. Anteriormente a isso, a turma participante assistiu
um vídeo sobre a história do patinho feio para que pudessem observar a cena da
dramatização da melhor maneira e verificar suas atuações.
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O quarto momento se refere ao tempo disponível pelo professor e observação
dos pontos importantes de acordo com o objetivo da prática pedagógica. Nessa fase
não houve tempo estipulado, mas foi possível observar os pontos relevantes da história
apresentada na dramatização.
Para a finalização do trabalho, quinto momento, foi realizado o fechamento da
atividade. A dramatização foi realizada mais uma vez pelos alunos como forma de
apresentação para toda a escola e com a presença dos pais do alunos, os quais
puderam contemplar esse momento. A experiência teve vários pontos positivos para o
desenvolvimento dos alunos da pré-escola. No momento da apresentação, foi nítido o
entusiasmo de cada criança para atuação de seu papel na dramatização.
O período de avaliação da prática pedagógica também aconteceu de forma oral
tendo como base os objetivos do trabalho, observação da prática (avanços,
possibilidades, aprendizagens) e registros, visto que:

As propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão considerar


que a criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e
de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que
vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina,
fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e
constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura
(BRASIL, 2009, art.4).

Deste modo, a dramatização, como uma estratégia de ensino contribuiu


significativamente na vida dos alunos através do conto escolhido. Percebe-se que a
mediação do professor também coopera para a vivência de maneira satisfatória. Além
de tal experiência se constituir essencial para o necessidade da turma no momento,
propiciando a compreensão das diferenças, dentre outros valores, favoreceu o
desenvolvimento do futuro leitor, através do estímulo pela leitura, como também a
escrita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prática pedagógica proporcionou tanto às crianças, quanto para a
pesquisadora, uma rica experiência sobre o uso da dramatização como estratégia de
ensino, tendo em vista, sua contribuição para a formação do futuro leitor. Foi possível
compreender também a grande relevância que o trabalho com estratégias de leitura
pode oferecer para o desenvolvimento das capacidades de leitura do indíviduo.
O literatura infantil deve ser desenvolvida de forma constante na pré-escola. É
importante que a criança seja estimulada a ter esse contato com o livro e a leitura desde
bem pequenas, para que se tornem parte desse contexto de leitura e escrita. Sobre a
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leitura, Solé (1998) infere que ler “[…] também implica que sempre deve existir um
objetivo para guiar a leitura; em outras palavras, sempre lemos para algo, para alcançar
alguma finalidade” (SOLÉ, 1998, p. 22). Com base nisso, percebeu-se que os objetivos
foram alcançados, pois através do conto, as crianças puderam imaginar, ativar sua
fantasia; também foram capazes de dramatizar a história lida e avaliar o
desenvolvimento da atividade, além disso, por meio da ação, houve esse contato mais
pormenorizado com a literatura infantil. Além de ativarem seus conhecimentos prévios,
os alunos tiveram a oportunidade de ter conhecimento de mundo, produzindo um
crescimento particular e em grupo, diante das diferentes vivências possibilitadas na
experiência.
Por fim, pode-se considerar que o trabalho, no qual foi desenvolvida a
pesquisa-ação, proporcionou atividades que podem enriquecer o universo do imaginário
infantil, e mesmo que sejam encontrados desafios no percurso, é essencial desenvolver
um trabalho voltado para o gosto e prazer pela leitura.

REFERÊNCIAS
ANASTASIOU, L. G. C; ALVES, L. P. Processos de ensinagem na universidade:
pressupostos para as estratégias de trabalho em aula. Joinville: Univille, 2003.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 22 ed. Paz e terra, 2007.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Educação é a base. Brasília:


MEC/CONSED/UNDIME, 2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.
pdf . Acesso em: 11 nov. 2019.

BRASIL. Ministério da Educação. Ministério da Educação. Conselho Nacional de


Educação. Resolução CEB n. 05, 17 dez. 2009. Institui as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil. Diário Oficial República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 18 dez. 2009.

COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das


origens indo européias ao Brasil contemporâneo. 4 ed. Ática, 1991.

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GIROTTO, C. G. G. S.; SOUZA, R. J. Estratégias de leitura: para ensinar alunos a
compreender o que lêem. In: SOUZA, R. J. (Org). Ler e compreender: estratégias de
leitura. Campinas: Mercado das Letras. 2010.

SCARPATO, Marta. Os procedimentos de ensino fazem a aula acontecer. São


Paulo: Avercamp, 2004.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Tradução de Cláudia Schilling. Porto


Alegre: Penso, 1998.

THIOLLENT, MICHEL. Metodologia da pesquisa-ação. 4. ed. São Paulo: Autores


Associados – Cortez, 1988.

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TEMAS SENSÍVEIS NA SALA DE AULA: A EXPERIÊNCIA
ESTÉTICA COMO PROPOSTA DE LEITURA LITERÁRIA

Maria Betânia Peixoto Monteiro da Rocha (IFPB/UFPB)


Cristina Rothier Duarte (IFPB/UFPB)
Alessandra Gomes Coutinho Ferreira (IFPB/UFPB)
Girlene Marques Formiga (IFPB)

Eixo Temático: Literatura infantil e ensino

Considerações iniciais
Lidar com os temas sensíveis na literatura destinada ao público formado por
crianças e adolescentes exige um posicionamento reflexivo, que se inicia com a tomada
de posição sobre uma expressão adequada. É verificável a ocorrência da vinculação
dos termos “tema” e “tabu”. Como não há nenhuma nuance semântica que nos leve a
acreditar que tema tabu seja algo diferente do que propõe a expressão, podemos
afirmar, com segurança, que a literatura que se serve dos temas tabus é aquela que
abriga o debate sobre o que não deveria ser falado ao público para o qual é dirigido o
texto literário.
Fica evidente que se um tema é tabu, é em razão de uma censura imposta. Não
necessariamente uma que parta ou se destine de ou a instituições de formação, como
as escolas; mas uma não oficial, ou menos explícita, como as efetuadas por pais e
professores (independente da gestão escolar) sobre o que deve ser lido ou não por
crianças e jovens. Como discorre Sandra Comino (2020 n.p, tradução nossa), “a
censura carrega a carga ideológica de quem a emite” 210. Assim, o adulto desavisado,
buscando proteger a criança de vivenciar aquilo que acredita ser uma experiência
desnecessária, desagradável, desafiadora; vacila diante de uma possível contato com
determinado texto literário.
Ao discutir temas tabus, literatura para crianças e jovens e censura no contexto
da Argentina, Comino (2020 colocar página n.p, tradução nossa) arremata o debate,

210
“La censura lleva la carga ideológica de quien la emite” (COMINO, n.p)
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afirmando: “a atual censura não é por decreto, nem massificada, é, como diz Roldán,
produzida pelo encobrimento ou pela indiferença a certas questões 211”.
E o que é indiferente no contexto da produção de livros para crianças e
adolescentes é justamente aquilo que contraria o senso comum – imantado da
concepção de que infância e felicidade gozam de única semântica – que são temas
como a morte, abuso sexual, separação dos pais, para citar alguns.
No entanto, sabemos que, mesmo sendo os temas tabus, eles estão presentes
nos textos literários dedicados às crianças e aos jovens e são, cada vez mais,
recorrentes, o que os tornam, cada vez menos, tabus. Por esse motivo, seria mais
acertada a utilização da expressão temas sensíveis (que aqui vamos definir como temas
que carecem da sensibilidade do leitor e do mediador, caso haja, para serem
explorados).
As situações escolares para a leitura de livros que tratem do abuso sexual e da
separação, diante das restrições impressas pelos censores aos textos que lidam com
temas sensíveis, são escassas e, por esta razão, propomos procedimentos de leitura
para os livros Leila, de Tino Freitas (2019) e Lá e aqui, de Carolina Moreyra (2015).
A escolha da teoria iseriana do efeito estético e dos estudos que dela se servem,
como os que compreendem a leitura subjetiva, pareceu-nos a mais adequada, pois
centra-se no receptor, lançando as bases para que possamos observar sua reação ao
jogo estabelecido em contato com a literatura e possibilitando a pavimentação de vias
de mão dupla entre o texto literário e o professor, entre o texto literário e o aluno, entre
o professor e o aluno, entre temas e contextos.
Em nosso caso, o leitor ao qual nos referimos é o real, compreendido como
“aquele que apreende o texto com sua inteligência, seus desejos, sua cultura, suas
determinações sócio-históricas e seu inconsciente.” (JOUVE, 2002, p. 15), e, para efeito
deste trabalho, o estabelecido nos sextos e sétimos anos do ensino fundamental.
Apesar dos livros serem do tipo ilustrado e com pouco texto, o que, numa análise
aligeirada, aprisioná-los-ia no compartimento da literatura para crianças (e não para
adolescentes e adultos), concordamos que os temas – separação e abuso sexual –
atravessam qualquer faixa etária, e a composição dos textos literários, em diálogo com
as ilustrações, solicita a participação ativa do leitor.

Teoria do efeito estético: noções gerais para um mapeamento de leitura

211
“La censura actual, no es por decreto, ni está masificada, está y, como dice Roldán, se
produce por ocultamiento o por indiferencia a ciertos temas” (COMINO, n.p)
1281

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Na introdução à edição brasileira do livro O ato da leitura, Wolfgang Iser (1996)
contextualiza a teoria do efeito estético como cronologicamente posterior aos modos de
análise de textos literários que se apoiavam na interpretação da intenção do autor, na
significação das mensagens contidas no texto e no valor estético da obra.
O mesmo pode ser dito de outro modo. A crítica literária percorreu vários
caminhos, sendo que os mais expressivos foram aqueles que valorizaram os aspectos
formais dos registros escritos – a exemplo da crítica filológica –, a intenção do autor, a
representação do mundo, o texto literário em sua imanência. Até a segunda metade dos
anos de 1900, nenhuma crítica havida sido pensada a partir da percepção do leitor em
contato com texto literário.
De acordo com Lima (2002), a apresentação de uma nova perspectiva de
crítica literária, dessa vez centrada na recepção – a “Estética da recepção” – ficou a
cargo de Hans Robert Jauss por ocasião de sua Aula inaugural, na Universidade de
Constança, em 1967. Filiada à essa nova perspectiva, estava a “Teoria do efeito
estético”, que se centrava na análise das possibilidades de realização de determinados
efeitos no leitor, em atividade de leitura de textos literários. Sobre a mudança de
perspectiva é importante levar em conta o que afirmaram Duarte, Rocha e Formiga
(2020, p. 55-56):

Entender a obra literária como resultado da interação texto-leitor não é


dispensar as peculiaridades do texto, mas entender que elas se
concretizam na presença de um leitor implicado. Como também não é
dispensar as particularidades do leitor, suas experiências e
informações pré-existentes, mas compreender como tais experiências
e informações são convocadas no ato da leitura.

Sobre o ato da leitura dos textos literários, afirma Iser (1996, p. 15):

[N]a leitura acontece uma elaboração do texto que se realiza através


de um certo uso das faculdades humanas. Desse modo, não podemos
captar exclusivamente o efeito nem no texto, nem na conduta do leitor;
o texto é um potencial de efeitos que se atualiza no processo de leitura.

Pelas informações trazidas, notamos que, à teoria do efeito estético, não


interessa o que vem antes, e mesmo depois, do ato da leitura. Apenas os resultados da
interação entre texto (polo artístico) e leitor implicado (polo estético). O texto contém as
estratégias que possivelmente reverter-se-ão em efeito durante a atualização (leitura)
efetuada pelo leitor real. E que estratégias são essas212?

212
As estratégias textuais são detalhadas em Iser (1996, 1999) e discutidas amplamente em
Santos (2009).
1282

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Uma delas é a articulação dos vazios textuais. Mais que uma estratégia, a
presença dos vazios caracteriza o texto enquanto literário (um texto não ficcional, por
sua vez, afasta a possibilidade de ocorrência de tais vazios). Santos (2009, p. 113, grifo
nosso) afirma que os vazios “suspendem a conectabilidade entre os segmentos textuais
e condicionam o seu relacionamento. São mais que simples meios de interrupção:
formam estrutura comunicativa, organizando a mudança de perspectiva do ponto de
vista do leitor”. A estrutura comunicativa da qual se refere Santos (2009) é a firmada
entre os polos artístico e estético.
O leitor de uma narrativa ficcional, ao se deparar com um dado do texto que o
coloca em dúvida sobre a veracidade de uma confissão feita pelo protagonista em
capítulo anterior, está numa situação de “suspensão da conectabilidade”, ou seja, diante
de um vazio. E tal vazio, apesar de repercutir no leitor, está compreendido no texto. Para
Iser (1999, p. 154), longe de ser uma oportunidade para o exercício da subjetividade, o
vazio teria função contrária: “sua importância para a interação de texto e leitor consiste
antes de tudo no fato de que ele protege, ao menos estruturalmente, os procedimentos
descritos de transformação da arbitrariedade subjetiva”.
Explicado de outro modo e desta vez por Costa Lima (2002, p. 26), os lugares
vazios, “apresentam a estrutura do texto literário como uma articulação com furos, que
exige do leitor mais do que a capacidade de decodificação. A decodificação diz respeito
ao domínio da língua. O vazio exige do leitor uma participação ativa”.
Anteriormente, quando falávamos da articulação dos vazios textuais,
destacamos um trecho da citação de Santos (2009), afirmando que os vazios
organizavam a mudança de perspectiva do ponto de vista do leitor. A esta afirmação,
segue-se a compreensão do que vem a ser a good continuation e a quebra da good
continuation. A autora explica que a good continuation indicaria “uma ligação consistente
de dados da percepção já esperada pelo recebedor” (SANTOS, 2009, p. 112), enquanto
a sua quebra “anula[ria] a expectativa da good continuation” (SANTOS, 2009, p. 112).
Utilizando o exemplo anterior, caso o leitor esperasse que o protagonista tivesse
falado a verdade e tal expectativa fosse atendida, o efeito experimentado seria o da
good continuation, de modo contrário, se o leitor fosse frustrado, haveria uma quebra da
good continuation.
Embora haja outras estratégias textuais relevantes para a análise do efeito
estético, atemo-nos aos lugares vazios e a good continuation (ou a sua quebra). A
identificação dos lugares vazios resultantes da interação com livro Leila permite detectar
o que motivou as pausas durante a leitura. É possível que algumas dessas pausas

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tenham sido resultado de uma manobra do texto, como também explicitem a falta de
experiência do leitor. Com relação a good continuation e a sua quebra, podemos
entender a expectativa do aluno sobre a narrativa e como a quebra ou a confirmação
geraram certos juízos de valor sobre o livro.

As outras histórias de Leila


O mapeamento da leitura a partir dos conceitos desenvolvidos por Iser é uma
proposta recente, uma vez que o teórico, apesar de estruturar uma análise pautada na
interação entre o polo artístico e estético, não levou em conta o leitor real. É certo que
outros pesquisadores o fizeram, como os autores que propõem a leitura subjetiva,
discutida logo em seguida. No Brasil, Santos (2009) sugere uma interface entre as
teorias iseriana e vygotskyana, de modo a viabilizar a práxis. No nosso caso, propomos
um modelo de acompanhamento de leitura à luz da teoria de Iser.
Antes de dar início as atividades, é necessário que o professor faça
previamente o mapeamento de sua leitura, tal qual está sendo proposto para a sala de
aula. O mapeamento prévio é importante por dois motivos: o professor estará
familiarizado com a proposta, com o texto e com alguns efeitos; e poderá fazer
adaptações, tendo em vista a realidade da sua sala de aula.
O mapeamento será feito por etapas, no decorrer de três horas-aula, tendo
início com a leitura do texto não verbal e em seguida a do texto verbal. Diante da
impossibilidade de garantir um exemplar do livro para cada aluno, deverá ser
providenciado um retroprojetor para a utilização de slides para a apresentação do texto
literário e das imagens. No entanto, é imprescindível a presença do livro, para que os
alunos possam sentir, por exemplo, o material da capa e do miolo.
Os alunos deverão ter um caderno de acompanhamento de leitura, que pode
ser confeccionado por eles mesmos. Na primeira etapa, com duração de uma hora-aula,
o professor fará uma apresentação do livro, evidenciando a sua materialidade física. O
livro ainda não deve ser passado para os alunos. Em seguida, serão mostrados os slides
apenas constando as imagens. (O professor pode retirar o texto colando um papel
branco antes de digitalizar, ou editar o material após digitalizado.) A instrução a ser dada
é a seguinte: Observe as imagens do texto e tente descobrir quem é a personagem
principal, quem são as demais personagens que aparecem na história e quais nomes
eles teriam; onde se passa essa história?; O narrador que conta essa história é um dos
personagens? Quem você acha que está contado a história? Que história essas
imagens estão contando?

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As perguntas elaboradas nessa etapa visam a reconhecer as perspectivas
textuais, que de acordo com Santos (2009) dizem respeito a ficção do leitor, a
perspectiva do narrador, dos personagens e do enredo. Observa-se, porém, que os
alunos farão inferências sobre essas perspectivas do texto, que posteriormente poderão
ser confirmadas ou afastadas.
Ainda nessa primeira etapa, os alunos anotarão os elementos do texto visual
que geraram dúvida, ou que sugeriram uma transformação no modo como estavam
pensando. Um exemplo de dúvida: “não sei dizer a razão dos peixes voarem”. Já uma
transformação na linha de raciocínio pode ser expressa da seguinte forma: “quando vi
a imagem do polvo refletida no olho da baleia, achei que ela tivesse se apaixonado por
ele, mas depois, vi que ela ficou feliz por que estava preso na rede”.
A próxima etapa do mapeamento de leitura ocupará mais uma hora-aula e tem
como objetivo rastrear as memórias e emoções suscitadas a partir da leitura da imagem.
Para tanto, o professor deverá reapresentar os slides e dar os seguintes comandos:
durante a leitura das imagens, você se lembrara de algum evento que aconteceu com
você ou que você tomou conhecimento? (O professor deve explicar ao aluno que pode
ser qualquer lembrança. O lixo no fundo do mar, por exemplo, pode despertar a
lembrança de alguém que foi tomar banho de mar e se deparou com uma sacola plástica
boiando); que sentimento as cores dos desenhos lhe transmitem? Alguma imagem lhe
chamou muita atenção? Por qual razão? Após a realização dos registros o professor
solicita aos alunos que compartilhem suas impressões sobre suas memórias e suas
sensações.
A última etapa do mapeamento (com duração de uma hora-aula) será a leitura
do texto literário. A apresentação do livro será feita com auxílio dos slides, desta vez
contendo os textos. Ao final da leitura, os alunos podem (e devem) manipular o livro. Os
alunos deverão agora relacionar o texto às imagens, investigando se o texto responde
às dúvidas surgidas na primeira etapa; se as perspectivas textuais em análise (narrador,
personagem, enredo e espaço) são as mesmas inferidas por eles. Após o registro, o
professor solicita aos alunos, que compartilhem as suas dúvidas e que exponham
quando as suas expectativas sobre o texto foram mantidas ou negadas. Esse é o
momento em que é possível perceber a quebra ou a manutenção da good continuation.
Para a realização do mapeamento de leitura, não é preciso que o professor
discuta com o aluno os termos da teoria de Iser, como vazio e good continuation, no
entanto, é necessário que se aproprie de seus conceitos.

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Leitura subjetiva: uma breve abordagem teórica
Este trabalho, como já exposto, tem como foco a experiência de leitura do leitor
real. Tal abordagem é concebida segundo o entendimento em que a leitura é
considerada um processo que evolve cinco dimensões: neurofisiológica, cognitiva,
afetiva, argumentativa e simbólica, todas elas, mesmo distintas entre si, ensejadoras de
uma compreensão do ato de ler como um ato de subjetivo (JOUVE, 2002) e do leitor,
portanto, como um sujeito real (ROUXEL, 2013).
O (re)conhecimento do leitor como um indivíduo empírico possibilita um
tratamento da literatura diversa do ensino em que interpela a imanência do texto literário,
ignorando o sujeito de carne e osso. Essa forma de tratar o texto, para Rouxel (2013, p.
192), apresenta a leitura literária

[...] como uma leitura desencarnada, órfã e já, há muito tempo,


cristaliza todas as críticas: tendência à generalização que destrói a
unicidade do texto, ‘decodificação racionalizante relativamente
complicada’, rigidez de uma ‘pequena técnica pedagógica [...]
dessecante213. O exercício escolar apresenta-se, pois, como um mal-
entendido, como fracasso programado de um encontro cujas vítimas
são o texto e o leitor. A origem desse fracasso reside, em parte, na
concepção autorreferencial da literatura que ainda prevalece, de forma
consciente ou não, nas práticas escolares.

A crítica a esse tipo de ensino da literatura, ou seja, à leitura analítica, porém,


não significa dizer que deva ser abandonada, mas, como Rouxel (2013) defende, deve-
se conciliar as duas formas de se trabalhar com o texto literário, mediante práticas que
considerem ambas as formas de leitura: a autônoma e pessoal e a analítica,
concebendo a leitura literária segundo uma “noção plural” e (re)conhecendo o leitor
como “centro da leitura” (ROUXEL, 2013, 195-196):

Atualmente, a escola aceita, paralelamente ao exercício codificado de


leitura analítica, outras práticas de leitura menos rígidas, pondo fim à
tradicional oposição entre leitura intensiva e leitura extensiva (ou leitura
em compreensão e leitura em progressão, para retomar a terminologia
de Bertrand Gervais). A prática conjunta das duas formas de leitura
ilumina os fenômenos de osmose resultantes desses processos:
tendência à “literarização” da leitura cursiva e, inversamente, traços de
um investimento pessoal do sujeito leitor na literatura analítica.

(Re)conhecer a importância do leitor na adoção de práticas de ensino de


literatura não traduz mero altruísmo, mas configura uma abordagem legítima, posto que

213
No primeiro trecho a autora cita PICARD, M. La lecture comme jeu (1986), no segundo,
COMPAGNON, A. Le démon de la théorie: littérature et sens couumn. (1998).
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é fundada na teoria do efeito estético, na medida em que esta engendra a obra literária
a partir de dois polos que a constitui, o artístico e o estético (ISER, 1996), como
apresentamos anteriormente, de modo que é imprescindível o papel do leitor para a
existência da própria obra. Ademais, “[m]uitos pesquisadores defendem a subjetividade
essencial para o processo de elaboração semântica” (ROUXEL, 2013, p. 197), dada a
incompletude do texto literário. Dessa forma, a abordagem subjetiva do texto não
desemboca mais na questão de saber o que ele (o texto) diz, mas o que o leitor diz
sobre o texto a partir da sua interação com ele durante o ato de leitura.
Percebendo, assim, a obra literária como o resultado “de uma mestiçagem
entre o texto do autor [polo artístico] e o imaginário do leitor [polo estético]” (ROUXEL,
2013, p. 200), considera-se, nas práticas de leitura, a esfera do sujeito real, resultando
em uma experiência de leitura significativa e, portanto, potencialmente facilitadora para
a criação de laços afetivos com a leitura literária e, consequentemente, para a formação
do leitor, mediante a valorização do seu texto ou do texto do leitor, “fruto da sua
implicação e criatividade” (ROUXEL, 2013, p. 197). Sendo assim, o texto do leitor,
construção originada no ato de leitura e proveniente das experiências de mundo, de
outras leituras literárias, do imaginário do leitor e do coletivo, não pode ser
desconsiderado. Daí a pertinência da abordagem subjetiva em propostas de leitura de
texto literário, sobretudo, em se tratando de leitores em formação.
Nesse contexto de práticas que (re)conhecem a participação do leitor na
construção de sentido do texto em face de sua incompletude, insere-se a leitura cursiva
– compreendida como uma “[...] leitura prescrita pelo professor e efetuada no espaço
privado de modo que o leitor possa ser envolvido pelo imaginário do texto, sonhar e
colher no texto aquilo que lhe convém.” (ROUXEL, 2012, p. 19). Nessa perspectiva,
dotada de pessoalidade, de autonomia, de sensibilidade e de menor controle por parte
do mediador/docente, a adoção da leitura cursiva objetiva, como expõe Rouxel (2013,
p. 206), “uma mudança da relação com o texto literário durante a leitura”.
É com base nessas considerações que trazemos para este trabalho uma
sequência didática de leitura subjetiva do texto verbal e visual Lá e aqui (2015), de
Carolina Moreyra e ilustrado por Odilon Moraes, conforme passamos a tratar na próxima
seção.

O texto do leitor: sequência didática para leitura de Lá e aqui


A leitura cursiva, como apresentado anteriormente, legitima o texto construído
pelo leitor a partir da sua interação com o texto literário, o que “[n]ão se trata, no entanto,

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de renunciar ao estudo da obra na sua dimensão formal e objetiva, mas ao acolher as
impressões dos alunos, favorecer neles a descoberta das implicações de leitura.”
(ROUXEL, 2013, p. 206-207) É desse âmbito que parte a sequência didática que
passamos tratar.
A prática de leitura que propomos tem como objeto Lá e aqui (2015), um texto
literário que aborda um tema sensível, ou seja, conforme delineado, um texto a priori
inadequado para ser abordado na literatura de recepção infantil e juvenil, no caso a
separação dos pais do protagonista-narrador. Assim, esta sequência visa, no tocante
ao âmbito docente, a colaborar com este na busca de uma facilitação para a
aproximação do mediador em relação a textos muitas vezes afastados de suas aulas
devido à temática sensível; no âmbito, discente, a conferir voz ao leitor em sua dimensão
subjetiva, promovendo a criação de laços afetivos com o texto literário e a sua formação
enquanto leitor literário.
A sequência foi elaborada para ser realizada em quatro horas-aula, o material
necessário será o texto literário, post-its e caneta. Para efeito metodológico, a sequência
é dividida em sete momentos:
No primeiro, que antecede a leitura propriamente dita do texto, o docente
solicitará aos alunos, como atividade para ser realizada em casa, que tragam para a
próxima aula, uma imagem ou um desenho que represente, segundo a sua percepção,
a palavra separação, sem especificar qual seria o tipo de rompimento.
Na aula seguinte, o professor iniciará a aula com a apresentação dos alunos
acerca de suas percepções sobre a separação, a partir das imagens que trouxeram e
das leituras que fazem delas. Nesse momento, poderá haver trocas de impressões
acerca de imagens dos colegas.
Após essa etapa, o docente trabalhará com foco na capa da obra Lá e aqui,
fazendo-os perceber os elementos que compõem as ilustrações e procurando fazer com
eles relacionam estas com o título e com a discussão anterior. Para tanto, o professor
poderá fazer alguns questionamentos que ensejem posicionamentos dos alunos quanto
a isso, bem como façam com que laborem antecipações214 sobre a leitura que se dará
em no próximo momento. Nesse sentido, algumas perguntas podem conduzir a
interação dos alunos: que vocês veem na capa (aspecto descritivo)? Para vocês, por
que há duas casas e o que tais ilustrações têm a ver com o título Lá e aqui? Que
sentimentos as imagens da capa despertam em vocês? São os mesmos que vocês

214
Antecipações ou inferências são uma das estratégias de leitura. Para saber mais consultar
Solé (1998).
1288

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expressaram a partir de imagens trazidas por vocês? Em que se diferenciam e em que
se parecem? Uma vez realizada essa conversa, o professor orientá-los-á a realizarem
o registro de suas impressões e inferências no post-it, colando-o na capa do livro.
No quarto momento, o professor realizará a leitura em voz alta do texto literário,
abrindo pausa antes de cada virada de página, para que os alunos procedam com o
registro de suas impressões. O professor orientará os alunos para, nesses instantes de
parada de leitura, usarem o post-it sempre que a narrativa fizer com eles se recordem
de algum episódio de suas vidas, de outros textos lidos anteriormente ou de fatos do
mundo que têm conhecimento215. O professor poderá exemplificar o procedimento
demonstrando como fazer a partir do próprio texto da sequência: quando eu li “Era uma
vez uma casa” e vi a imagem, lembrei dos fundos da casa em que morei durante a minha
infância, não por ser parecida com ela, mas por ser alta. Os fundos da minha casa era
assim, e dali eu ouvia, todas as tardes, o sino da igreja. Embora conexões como essas
não estejam relacionadas diretamente com o texto, são processos cognitivos que
ocorrem naturalmente e fazem parte da experiência de leitura, portanto devem ser
valorizadas, uma vez que promovem uma aprendizagem significativa 216 que, no
contexto do objetivo desta sequência, é favorecer o estabelecimento de laços afetivos
com o texto literário e a formação leitora.
No quinto momento, o professor poderá elaborar algumas perguntas – cujas
respostas também serão lançadas no post-it –, a fim de perceber impressões que
possam não ter sido abordadas na leitura cursiva do aluno: retomando o título, Lá e
aqui, qual a sua relação com a narrativa? Para você, lá e aqui (termo representativo do
efeito de uma separação) tem um sentido positivo ou negativo? Se negativo, não há
nada de positivo? Ainda se negativo, como seria possível amenizar a situação? Lá e
aqui para o narrador, de acordo com a experiência que ele conta na narrativa, tem um
sentido positivo ou negativo? Justifique a sua resposta.
No sexto momento, os alunos serão solicitados a i) realizarem uma leitura
individual e silenciosa, para, em seguida, ii) organizarem seus registros, confrontando
as impressões iniciais, incluídas as relacionadas à palavra separação, com o que foi
ocorrendo durante a leitura do texto até o seu desfecho.

215
Aqui, estamos tratando de outra estratégia de leitura trabalhada por Solé (1998).
216
Conforme Solé (1998, p. 44-45), o conceito foi cunhado por Asusbel (1963) e compreende
em “[a]prender algo equivalente a formar uma representação, um modelo próprio, daquilo que
se apresenta como objetivo de aprendizagem; também pode atribuir significado ao conteúdo
em questão, em um processo que leva a uma construção pessoal de algo que existe
objetivamente.”
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No sétimo e último momento, o professor dará oportunidade para os alunos
compartilharem as suas experiências de leitura, finalizando a sequência.
Compreendemos, em consonância com Rouxel (2013, p. 207), que, a partir de
abordagens que priorizam a leitura subjetiva, abre-se uma oportunidade para provocar
nos alunos uma tomada de consciência acerca do fato de que o texto literário dirige-se
a eles, porém, considerando que dificilmente tal entendimento ocorre de forma
espontânea, práticas como a apresentada devem ser estimuladas, visto que, conforme
constata a autora, “[s]e os professores não auxiliam nessa tomada de consciência, ela
está arriscada a nunca ocorrer”, e o texto, possivelmente, será compreendido sempre
como texto, ou seja, como algo separado do leitor.

Considerações Finais
De acordo com o exposto, o trabalho foi elaborado de modo a propor formas
de leitura de textos literários que abordam temas sensíveis em sala de aula, e não de
trazer o resultado da prática dessas propostas.
Dessa maneira, apresentamos conceitos pertinentes à teoria iseriana e à leitura
subjetiva, chegando à conclusão de que tanto o mapeamento de leitura (diretamente
vinculado à teoria de Iser) quanto a leitura cursiva (definida a partir da leitura subjetiva)
são eficientes como procedimentos de leitura de livros que exigem a sensibilidade do
leitor e do mediador no ato da leitura. A razão disso está no fato de que ambas,
mapeamento e leitura cursiva, estão assentadas na observação do efeito que o texto
provoca no aluno.
O (re)conhecimento da participação do leitor na constituição de sentido do texto
colabora para a apropriação do texto, visto que “[a]s reações subjetivas, ao invés de
excluir as obras para ‘fora da literatura’, seriam na verdade catalizadoras de leitura que
alimentariam o trajeto interpretativo até a sua dimensão reflexiva.” (LANGLADE, 2013,
p. 25). Nesse sentido, propostas como as ora apresentadas colocam o leitor como
protagonista das aulas de literatura, já que suas impressões, suas formas de
preenchimento de indeterminações textuais, entre outras formas de estratégias de
leitura literária, integram o processo de leitura.

Referências
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infantil y juvenil, [s. l.], ed. 87, 9 out. 2002. Disponível em:
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DUARTE, Cristina; ROCHA, Maria Betânia; FORMIGA, Girlene. O leitor como foco do
ensino de literatura: uma proposta de leitura a partir de ?A infinita fiandeira?, de Mia
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SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Penso, 1998.

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OBRAS DE LITERATURA INFANTIL: UM OLHAR PARA A
SINGULARIDADE DO LIVRO ILUSTRADO

Profa. Dra. Andrea Rodrigues Dalcin, Faculdade de Educação/UNICAMP.

Eixo Temático: Literatura Infantil e Ensino.

Considerações iniciais: o que é o livro ilustrado?

Quando confrontados com certos escritores contemporâneos de livros


infantis, devemos ou admitir que eles não escrevem para crianças –
como alguns declararam que não o fazem, embora seus livros sejam
comercializados assim - , ou redefinir radicalmente nossa noção do que
constitui literatura infantil. Cada vez mais, uma grande parte do que é
hoje escrito e publicado como literatura infantil, incluindo os livros
ilustrados, está transgredindo seus próprios limites e chegando mais
perto da literatura mainstream. Esse fenômeno tem chamado
constantemente a atenção dos críticos para a questão do público para
o qual esses livros são criados. (NIKOLAJEVA e SCOTT, 2011, p. 328)

O excerto acima aponta o quanto a produção contemporânea de literatura


infantil tem sido redefinida, ampliando seu conceito e sofisticando-se qualitativamente.
O nosso trabalho, aqui apresentado, tangencia essas questões a partir da perspectiva
de três autores e quatro livros: “A Princesinha Medrosa” (2008), “Pedro e Lua” (2004),
ambos de Odilon Moraes, publicados pela Editora Cosac Naify; “Vozes no Parque”, de
Anthony Browne (2014), publicado pela Editora Pequena Zahar; “Este chapéu não é
meu”, de Jon Klassen (2013), da Editora WMF Martins Fontes.
Denominadas como livro ilustrado, obras como essas vem sendo estudadas,
principalmente, por pesquisadores estrangeiros como, por exemplo, Nodelman, Linden,
Hunt, Scott e Nikolajeva, os quais discutem a constituição e a relação entre texto,
imagem e suporte. No Brasil, as discussões acerca do livro ilustrado também apontam
que a leitura da imagem possui características que lhes são próprias, como um modo
distinto de ver, ler e interpretar seus significados simultaneamente, de modo total e
particular, temporal e atemporal, além de estabelecer um elo dependente e
independente da palavra, tornando-se a grande questão no estudo que relaciona a

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palavra escrita e a imagem narrativa nos livros, como aponta Oliveira (2011, orelha do
livro in LINDEN, Para ler o livro ilustrado).
Difícil precisar uma data de surgimento do livro ilustrado217 no Brasil. Desde os
tempos mais remotos há muitos livros com ilustrações, mas nem todos podem ser
considerados como livro ilustrado, também chamados de picturebook ou livro álbum. Ao
falarmos sobre o livro ilustrado, pensamos em uma obra em que a ilustração não apenas
reproduz o que está dito nas palavras e nem tampouco tem como função o apoio ao
leitor que está “aprendendo a ler”. Pensamos em livro ilustrado apoiadas em Nodelman
(1988), Linden (2011) e Hunt (2010) como uma obra cuja ilustração narra e escreve um
fato, ao mesmo tempo, em que o texto conta outro. Texto e ilustração podem se opor,
se complementar ou se compor diante da imensa variedade da quantidade de
ilustrações e das maneiras singulares que compõem cada página do livro ilustrado. A
imagem, neste tipo de livro, não “traduz” aquilo que está escrito pela palavra, tampouco
reproduz aspectos do enredo. O olhar do leitor é desafiado a não mais deslizar
linearmente por entre as linhas, não seguir um fluxo contínuo da esquerda para a direita.
Seu olhar é convidado a saltar entre a mesma página ou entre diferentes páginas, num
movimento de ida e volta, de descer e subir ou vice-versa, em que texto e imagem
produzem sentidos.
Para nós, o livro ilustrado traz imagem e texto intimamente ligados na
constituição de sentidos; imagem e texto possuem o mesmo estatuto na importância da
construção de sentidos e são igualmente importantes e intencionalmente trabalhados
esteticamente; a imagem não reproduz completamente o texto, ela se contrapõe a ele,
distorce-o, pode quebrá-lo. Nesta proposta editorial, o leitor é desafiado em suas
conexões que transitam do esperado ao inesperado, da fantasia à realidade, do literal
ao metafórico.
Os livros ilustrados, para nós, diferenciam-se dos livros com ilustrações, pois a
tensão entre o texto imagético e o texto escrito é calculadamente cuidada no polo da
produção para produzir diferentes leituras na recepção da obra. No livro ilustrado, nas
palavras de Eva Furnari, o desenho como linguagem, desde que não seja estereotipado,
“[...] tem o incrível potencial de narrar, exprimir, emocionar e até alterar um estado de
espírito” (FURNARI, 2012, p. 49).

217
Perry Nodelman (1988), Maria Nikolajeva e Carole Scott (2001) e Sophie Van der Linden
(2011) são os críticos especializados em literatura infantil e juvenil que mais têm contribuído para
esclarecer esta definição, explicando com detalhes o funcionamento do livro ilustrado.

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Segundo Lago (2012) e Prades (2012), os livros ilustrados ousam e inovam
tanto em relação ao conteúdo quanto aos aspectos que envolvem a materialidade do
objeto livro, que extrapolam a própria ilustração criada por eles. Para Reyes (2012), a
especificidade do livro ilustrado é marcada pela conversa que o ilustrador intenciona
estabelecer entre texto e ilustração.

Quando confrontados com certos escritores contemporâneos de livros


infantis, devemos ou admitir que eles não escrevem para crianças –
como alguns declararam que não o fazem, embora seus livros sejam
comercializados assim - , ou redefinir radicalmente nossa noção do que
constitui literatura infantil. Cada vez mais, uma grande parte do que é
hoje escrito e publicado como literatura infantil, incluindo os livros
ilustrados, está transgredindo seus próprios limites e chegando mais
perto da literatura mainstream. Esse fenômeno tem chamado
constantemente a atenção dos críticos para a questão do público para
o qual esses livros são criados. (NIKOLAJEVA e SCOTT, 2011, p. 328)

A citação acima, feita por Nikolajeva e Scott em seus estudos sobre o livro
ilustrado, aponta o quanto a produção contemporânea de literatura voltada para crianças
tem sido redefinida, ampliando seu conceito e sofisticando-se qualitativamente. O nosso
trabalho, aqui apresentado, tangencia essas questões a partir da análise de quatro livros
na relação com o estudo bibliográfico orientados por contribuições teóricas advindas no
movimento da História Cultural com Chartier (2001). Certeau (2007) nos ajudará nas
maneiras de pesquisar. Já Scott e Nikolajeva (2011), Hunt (2010), Linden (2011) trazem
contribuições sobre a especificidade do livro ilustrado.

Livro ilustrado: uma experiência inovadora da literatura infantojuvenil


Considerado um novo campo de pesquisa, principalmente no Brasil, ações vêm
sendo realizadas para marcar esse tipo de obra no mercado editorial. Com a
preocupação de fazer um panorama do livro ilustrado no Brasil, foi realizada uma
exposição em 2011218, destacando a importância deste tipo de livro como uma das
experiências mais inovadoras da literatura infantojuvenil das últimas décadas, ganhando
espaço cada vez maior nas prateleiras das livrarias, entre a crítica especializada de arte
e literatura e entre os leitores, porém não há menção à escola. De acordo com Vilela
(2011, s/p)219, foi realizada a seleção dos livros mais representativos para compor o

218
Intitulada Linhas da história – Um panorama do livro ilustrado no Brasil, a exposição contou
com Kátia Canton, Odilon Moraes e Fernando Vilela como curadores e foi promovida pelo Núcleo
de Imagens e Palavras do SESC Belenzinho, São Paulo.
219
Entrevista cedida à exposição Linhas da história – Um panorama do livro ilustrado no Brasil
(2011).
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espaço da exposição desde a década de 1970 até o ano de 2011. A exposição
apresentou a produção de quarenta artistas220, cujas obras se destacaram a partir de
temas, linguagens e gêneros, diversidade e criatividade no processo de criação, como,
por exemplo, Flicts, de Ziraldo, Ida e volta, de Juarez Machado, O rei de quase tudo, de
Eliardo França, A bruxinha atrapalhada, de Eva Furnari, O cântico dos cânticos, de
Angela Lago.
Uma exposição que se inscreve na história do livro ilustrado no Brasil, trazendo
as marcas do processo de criação e produção e a busca por mostrar ao leitor, como traz
Hunt (2010, p. 236), que “[...] não há nenhum sentido no qual as imagens possam
‘simplesmente’ ilustrar o que as palavras dizem; elas devem interpretá-las [...]”. Além
disso, como traz Nodelman (1988, p. viii), “[...] os livros ilustrados possuem ritmos
singulares, convenções singulares de forma e estrutura, um corpo singular de técnicas
narrativas”, o que talvez tenha sido objetivo de cada núcleo evidenciar em relação à
singularidade das obras expostas. Os curadores da exposição reforçaram que o livro
ilustrado produz uma bricolagem entre texto, ilustração e suporte, uma bricolagem em
que esses três aspectos são igualmente importantes no momento da produção. Ainda
que consideremos a liberdade sempre irrestrita do leitor (CERTEAU, 2007), sabemos
que os livros ilustrados pressupõem, no polo da produção, práticas de leitura distintas
daquelas previstas para outros livros.
Nessa direção, livro ilustrado, livro álbum, livro imagem, entre outros, são
terminologias que vêm sendo pesquisadas e discutidas por muitos estudiosos, com
definições e argumentos aproximando ou distanciando esses conceitos e nomeações.
Angela Lago, por exemplo, afirma: “[...] o livro onde a imagem tem uma função narrativa,
ele é um livro de imagem, independente de ter ou não ter texto e que isso é a visão
comum fora do Brasil” (LAGO, 2012, p. 234). E acrescenta,

Chamam-se picturebooks ou álbuns os livros onde a imagem tem um


viés narrativo, independente de estarem ou não acompanhados de
palavras. Houve um mal-entendido, que acho que foi de um grupo
pequeno no Brasil, de nomear como “livro de imagem” os livros sem
texto. (LAGO, 2012, p. 234 - grifos dos autores).

220
Artistas que participaram: Alcy Linares, Angela Lago, André Neves, Andrés Sandoval ,
Cárcamo, Ciça Fitipaldi, Cynthia Cruttenden, Dave Santana e Maurício Paraguassu, Daniel
Bueno, Daneil Kondo, Demóstenes Vargas e Família Dummont, Eliardo França, Elisabeth
Teixeira, Eva Furnari, Gilles Eduard ,Graça Lima, Helena Alexandrino, Ionit Zilbermann, Ivan
Zigg, Jean Claude Alphen, Juarez Machado, Laura Teixeira, Luiz Zerbini, Marcelo Cipis,
Marcelo Xavier, Maria Eugênia, Marilda Castanha, Mariana Massarani, Maurício Negro, Nelson
Cruz, Orlando, Pedro Rafael, Renato Moriconi, Ricardo Azevedo, Rosinha Campos, Roger
Mello, Rui de Oliveira, Salmo Dansa e Suppa. Disponível em:
<http://marandubinha.com.br/exposicao-linhas-da-historia-um-panorama-do-livro-ilustrado-no-
brasil/>. Acesso em: 03/06/2017.
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Odilon Moraes fortalece o discurso de Lago ao afirmar que:

No Brasil tem um complicador porque nos anos setenta, Juarez


Machado fez dois livros, Domingo de manhã e Mistério da página 19,
que foram chamados de livro-imagem ou livro de imagem, mas que são
exclusivamente sem palavras. Isso fez ficar diferente o recorte no
Brasil. Aqui, o picturebook ou livro ilustrado com palavras é tratado
como um livro com ilustrações. A função da imagem no picturebook é
diferente da função da imagem no livro com ilustração. (MORAES,
2014, p. 28)

Nikolajeva e Scott, na tentativa de caracterizar os vários níveis de relação entre


texto e imagem por meio de nomenclaturas constituídas em seu universo de pesquisa,
assim trazem a discussão das definições sobre livro ilustrado:

[...] no Brasil essa nomenclatura ainda é controversa, optou-se pelas


seguintes traduções: picturebook para “livro ilustrado”, illustrated book,
picture book e books with pictures para “livro com ilustração”. Nessas
três últimas denominações, a obra exemplificada não apresenta inter-
relação explícita entre palavra e imagem. (NIKOLAJEVA E SCOTT,
2011, p. 1).

E, ainda, no campo das definições, o livro ilustrado possui uma

Designação pouco conhecida do grande público, não há em muitos


países um termo fixo para definir o livro ilustrado infantil. Conforme o
contexto, em francês recebe o nome de “álbum” ou “livre d’images”, em
Portugal “álbum ilustrado”, em espanhol “álbun” e em língua inglesa
“picturebook”, “picture book” e “picture-book”. No Brasil, “livro
ilustrado”, “livro imagem”, “livro infantil contemporâneo” ou mesmo
“picturebook” são utilizados sem muito critério, confundindo-se, de
modo geral, com o “livro com ilustração” ou o “livro para criança”. Obras
em que a imagem é espacialmente preponderante em relação ao texto,
que aliás pode estar ausente [é então chamado, no Brasil, de livro-
imagem]. A narrativa se faz de maneira articulada entre texto e
imagens. (LINDEN, 2011, p. 23-24).

No conjunto dessas discussões e nomeações, reafirmamos nosso


posicionamento: a imagem, em um livro de literatura, tem importância tanto quanto o
texto, pois ambos narram e potencializam a leitura, além da produção de sentidos dos
leitores.

Livros ilustrados selecionados para a pesquisa: olhares singulares que se


cruzam
Penso que uma parte muito importante da atividade intelectual consiste
em lutar pela boa leitura. [...] O proprietário do livro é aquele que detém
e impõe o modo de apropriação. [...] Desde que o livro é um poder, o
poder sobre o livro é evidentemente um poder. [...] O poder sobre o
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livro é o poder sobre o poder que exerce o livro. (BOURDIEU, 2001, p.
242-243).

As obras que compõem o corpus deste trabalho possui singularidade em sua


constituição e, apresentá-las para nosso leitor significa colaborar para contextualizar as
escolhas feitas por nós. Assim, a primeira obra que faz parte do nosso corpus é “A
Princesinha Medrosa”, cujo enredo gira em torno de uma princesa com muitos medos
(do escuro, da solidão e da pobreza). Ela começa a dar ordens mirabolantes – o sol
deve brilhar dia e noite, as pessoas do reino devem dormir dentro dos muros do palácio,
os trabalhadores devem trabalhar cada vez mais e mais – o que faz com que a vida no
reino mude. Eis, porém, que um dia a princesinha se perde na mata em um de seus
passeios matinais e encontra um garoto que a ensina a contar as estrelas, mesmo sem
vê-las.
A segunda obra que compõe nosso corpus é “Pedro e Lua”, que apresenta o
seguinte enredo: Pedro, um menino que tinha cabeça na lua, ficara encantado ao ler em
um livro que a lua era uma pedra grande que flutuava no céu. Em seus passeios, olhava
e apreciava a lua, mas nunca olhava para o chão. Um dia tropeçou em uma pedra e
descobriu que esta tinha caído da lua. Todas as noites o menino passeava, tropeçava
em uma pedra e as juntava perto da lua. Um dia se deparou com o que achava ser uma
pedra, mas era uma tartaruga, que recebeu o nome de Lua. A partir daí, surge uma
grande amizade entre Pedro e Lua.
A relação entre texto, imagem e suporte se potencializa e alcança nesta obra
uma harmonia perfeita que se estabelece pela simplicidade do traço aliada à poesia das
palavras: o menino Pedro e a tartaruga Lua. O fascínio dessa história salta das páginas
para a capa do livro, onde um verniz fosforescente faz o volume brilhar no escuro.
“Vozes no Parque” é a terceira obra que constitui este cenário. Encontramos
uma história narrada pela imagem e pela palavra sobre um passeio no parque contada
por quatro vozes distintas mobilizando no leitor diferentes perspectivas sobre um mesmo
fato que ocorreu ao mesmo tempo, porém com uma profundidade inigualável. Aqui,
acessamos os diferentes olhares e as formas de pensar dos personagens diante das
cenas apresentadas na relação entre texto e imagem, como um convite para nos
colocarmos no lugar do outro e para pensarmos nas relações que se estabelecem a
partir dos diferentes pontos de vista.
As ilustrações de “Vozes no Parque” são expressivas, indicam pistas entre as
cenas, orientam um possível estado de humor dos personagens, são provocadoras,
trabalham diferentes ângulos e pontos de vista, revelam sempre algo novo a cada

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olhada do leitor, dialogam com a tipografia textual que parece, na relação com o cenário
apresentado, caracterizar o perfil, a vida e o sentimento de cada personagem. Além
disso, as melhores surpresas dessa leitura podem ser observadas nas ilustrações onde
é possível encontrar marcas que referenciam artistas como Magritte ou encontrar-se
com o sobrevoo de Mary Poppins em pleno parque.
O quarto livro que convocamos para este trabalho foi “Este chapéu não é meu”.
Com personagens que possuem corpos monolíticos, o ritmo da leitura é marcado por
um jogo que se dá no e entre o olhar dos personagens que parecem ter vida própria,
nos rastros deixados entre as páginas por bolhas d’água e no movimento das plantas
marinhas. O olhar do leitor se desloca entre texto e imagem que narram situações
distintas em uma mesma página: o pensamento do peixinho ladrão que narra a história
se contradiz ao que a imagem mostra. Nesta obra texto e imagem criam contrapontos
entre o que o peixinho pensa e narra em relação à segurança que possui diante do
roubo do chapéu do peixe grande e o que a imagem mostra ao leitor contradizendo tudo
o que o peixinho diz.
A singularidade da produção de livros para crianças se relaciona, segundo Hunt
(2010), “[...] à ideologia e ao mercado, à tradição e ao gênero”. É a ideologia do tempo
contemporâneo que prima pela inovação, avidez do leitor e novas relações com o livro.
É o mercado que precisa agradar tanto aos pequenos leitores como aos adultos em
suas preferências e gostos, incluindo também os interesses dos órgãos educacionais
do governo. É a tradição e o gênero literário na bricolagem com o ideário de uma criança
imersa na cultura, que interroga, argumenta e é sábia. Nesse sentido, Hunt (2010)
postula que, de certo modo, “[...] a literatura é o que escolhemos fazer dela”; e,
acrescentamos, o livro é o que escolhemos fazer dele.

Representação de leitor, literatura infantil e criança: alguns pontos de vista


Palavras, ilustrações, formatos, cores, tipo de letra, enfim, os elementos
constituintes do objeto livro se materializam, parecem tomar formas desde o início do
processo de criação. Inscritas nas obras para produzirem efeitos na leitura, no momento
da criação, autores e ilustradores utilizam-se de “[...] senhas explícitas ou implícitas”
(Chartier, 2001, p. 96), que permeiam uma dupla estratégia de escrita.

Inscrever no texto as convenções, sociais ou literárias, que permitirão


a sua sinalização, classificação e compreensão, empregar toda uma
panóplia de técnicas, narrativas ou poéticas, que, como uma
maquinaria, deverão produzir efeitos obrigatórios, garantindo a boa
leitura. Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da
escrita, puramente textuais, desejados pelo autor, que tendem a impor
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um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma maneira de ler
que lhe é indicada, seja fazendo agir sobre ele uma mecânica literária
que o coloca onde o autor deseja que esteja. (CHARTIER, 2001, p. 97)

As senhas inscritas pelo autor durante o processo de criação dos livros, ora
são dirigidas claramente ao leitor, ora são impostas inconscientemente; porém,
independente da maneira como se apresentam, são cruzadas com outras instruções
que se originam dos procedimentos de produção de livros, do projeto gráfico discutido
e realizado. O importante é ter a clareza de que esta segunda maquinaria é orientada
por ideários de produção, de infância e de literatura, que se iniciam com o processo de
criação. É a relação entre criação e produção que parece buscar um fio condutor nos
modos de pensar do autor, ilustrador e editora. Na visão de Moraes,

Você sabendo que quem vai escolher o livro para criança é o pai, você
escreve para o pai. Se já acho esquisito escrever para criança, mais
esquisito ainda, é escrever para o pai da criança. Pode ter até falhas
nessa frase, mas eu tento fazer livros onde não excluo a criança. Adulto
pode ler? Pode! É uma pena que tem muita coisa da literatura adulta
que criança não tem acesso porque é difícil, é complexo, mas
felizmente as grandes obras da literatura infantil os adultos tem acesso.
Não escrevo para criança, mas nunca excluí a criança do que escrevo,
então não é que eu pense nela, mas involuntariamente não a excluo.
(Moraes, entrevista, 15 de nov. 2010)221

Neste fragmento, Moraes apresenta o debate bastante atual sobre qual seria o
leitor pressuposto para uma obra infantil. Enquanto gênero, alguns estudiosos como
Lajolo e Zilberman (2007), por exemplo, têm mostrado a relação estreita entre escola e
literatura na formação da criança, ressaltando que o leitor dessa produção é, em
primeira instância, o adulto.
A criança não é um ser vazio a ser “preenchido” com lições de moral ou
ensinamentos adequados sob a visão do adulto. Ao contrário, é o adulto que se
aproximando da criança “vazia” pode compartilhar do seu modo de entendimento (que
é poético) do mundo. A criança considerada como alguém que é filósofa, poeta e que
traz em seu bojo uma fábrica de linguagem, parece aproximar-se da visão sugerida por
Manoel de Barros. Sem qualquer inocência, a criança é possuidora de uma capacidade
infindável para criar imagens fortes e surpreendentes, para formá-las, precisamente, à
“infância da palavra” como se pode ver nos versos: “tinha no olhar um silêncio de chão”,

221
MORAES, Odilon. Entrevista concedida à Andréa Rodrigues Dalcin, integrante do Grupo de
Pesquisa ALLE (Alfabetização, Leitura e Escrita) da Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas/UNICAMP. São Paulo, 15 nov. 2010.

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ou “o sonho do silêncio era ser pedra”. Este poder de “criançamento” dado à palavra ao
conferir ludicidade à linguagem é o que Manoel de Barros parece explicar ao expor suas
“ignorãças” poéticas, na obra “O livro das Ignorãças”:

O delírio do verbo estava no começo, lá


onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio. (MANOEL DE BARROS, 1994, p. 17)

Por esse motivo, o vazio da criança corresponde à interminável possibilidade


de fabricar linguagem e, no empreendimento de alterar a função do verbo, poeta e
criança se equivalem sem tirar, deste primeiro, o traço da complexidade que o
impulsiona. Podemos ver que a criança tem algo de filólogo ao lidar com questões da
língua, filósofo ao buscar sabedoria, e poeta ao fazer uso da linguagem em sua
semente.
A cada nova leitura, novas são as descobertas diante da tessitura de uma obra
literária formada pelo dito, pelo não-dito, pelo subjetivo e pelo objetivo. São obras
criadas e fabricadas, que parecem não mostrar-se totalmente, mas interrogar o mundo,
possibilitar intermináveis decifrações e deixar um sentido suspenso. É na busca ou no
contato com essas leituras que a criança parece inventar, reinventar, brincar, sentir,
compreender, visto que não está impregnada do certo ou errado, fabricando assim sua
linguagem, ao negociar sentidos junto ao livro por meio de seus gestos, expressões,
manuseio, troca, comentários, espantos e interrogações.
É um vazio desprendido de regras, que parece fabricar a linguagem em obras
literárias que não possuem um padrão fixo e repetitivo (mesmos temas, cores, enredos,
personagens etc.), que não traz receitas pedagógicas ou morais prontas, mas que busca
propostas inauditas, fazendo, conforme Ferreira (1982, p. 139), “um trabalho de
linguagem e não de uma linguagem”. É como a criança que em seu tempo e espaço
enxerga o mundo diferente dos demais por questionar, criticar e duvidar das respostas
sempre prontas e imutáveis, sem preconceito, julgamento e interpretação segundo
diretrizes já estabelecidas.
São representações como essas que indicam um modo de pensar a produção
literária que, mesmo sendo destinada ao público infantil, traz complexidade e qualidade
para este leitor que, neste viés, não está para ser apenas formado e educado, mas para
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espantar-se e interrogar. São representações da literatura que são entendidas,
construídas e determinadas pelos interesses de um grupo, conforme Chartier (1990).

Considerações finais: um olhar para o livro ilustrado


O livro infantil brasileiro vem se firmando como produção singular
dotada de linguagem poética, de identidade que o distingue enquanto
manifestação cultural específica. A partir dos anos 1970, o livro infantil
passa por extraordinária renovação. Dos formatos às relações texto–
imagem, das concepções gráficas à qualidade técnica do produto, tudo
é praticamente reinventado. (LIMA, p. ii)

O livro de literatura infantil é constituído, na maioria de sua produção, com duas


linguagens: o texto e a imagem. Nele, a imagem (ilustração) evoca modalidades de
leitura múltiplas (lê-se só a imagem; lê-se só o texto; lê-se imagem e texto juntos; leem-
se diferentes páginas, indo e voltando). A ilustração, como linguagem, tem usos e
finalidades diversas, exige uma escrita, atesta conhecimento dos códigos que lhe são
próprios.
Os livros selecionados para esta pesquisa são picturebooks, ou seja, livro
ilustrado. Esse tipo de obra requer conhecimentos específicos da arte, da linguagem,
do cinema, pois conforme Linden (2011, p. 9) destaca, o livro ilustrado é considerado
“[...] não apenas um objeto cujas mensagens contribuem para a produção de sentido,
mas um conjunto coerente de interações entre textos, imagens e suportes”. Nesse
sentido, a criação de um livro ilustrado rompe com a ideia, na história da ilustração, de
que a imagem reproduz o que está escrito na página, tornando o texto e ilustrações
redundantes. O livro passa a ser um todo articulado, e o leitor, neste tipo de obra, está
para além da leitura de texto e imagem.

Ler um livro ilustrado é também apreciar o uso de um formato, de


enquadramentos, da relação entre capa e guardas com seu conteúdo;
é também associar representações, optar por uma ordem de leitura no
espaço da página, afinar a poesia do texto com a poesia da imagem,
apreciar os silêncios de uma em relação à outra... Ler um livro ilustrado
depende certamente da formação do leitor. (LINDEN, 2011, pp. 8 - 9)

No livro ilustrado encontramos cenas construídas em página dupla, na qual


textos e imagens se encontram articulados. É o texto e a imagem se cruzando; são
enunciados que ficam entremeados, são as mensagens visuais ou verbais que, de
acordo com Linden (2011, p. 69), “[...] se revelam conjunta e globalmente [...]”.

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Figura 1: Exemplos de página dupla do boneco de "Pedro e Lua".

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Página dupla, imagens sangradas222, zoom, enquadramento são alguns dos


aspectos que requer conhecimento de quem cria o livro e de quem o produz aliado à
escolha do papel e das cores, ao formato da obra, ao enredo da história pela palavra e
pela ilustração, a produção dos paratextos, uso ou não dos fólios223, produção da capa,
guarda e quarta-capa na relação com o miolo da história e a tipografia textual que
definem as estratégias editoriais que serão utilizadas para legitimar a obra e atingir o
público idealizado pela editora. Algumas delas estão relacionadas à materialidade do
objeto livro (aspectos visuais e materiais da obra); outras, à apresentação do texto
verbal escrito (linguagem poética, leve, simples; frases curtas, mas cheias de
significados, de emoções, de sentimentos); finalmente, há outras voltadas à
apresentação do texto visual escrito (imagens simples, delicadas, com traços
singulares).
Assim como a escrita das palavras, a escrita das imagens também possui
recursos próprios, o que requer conhecimento de seus códigos a fim de pensar,
organizar e planejar o ritmo, o tempo e o espaço do que se quer deixar para o leitor.
Nessa direção, o conhecimento relacionado a perspectivas, enquadramentos, zoom,
uso da profundidade, centralização, aproximação, recuo e fluidez na temporalidade das
imagens que constituem as ações da história se faz necessário neste tipo de obra.
Nesse sentido, a ilustração como linguagem ganha estatuto de importância
capaz de estruturar o acontecimento da história, rompendo com a linearidade da palavra

222
Diz-se de uma imagem que ocupa a totalidade da página ou de uma dupla. (LINDEN, 2011,
p. 164)
223
Número que indica a paginação de uma publicação.
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ao compor, por si só, uma narrativa visual, uma configuração que se faz também pelas
imagens.
Essas questões tornam este trabalho relevante, não só no campo da teoria e
crítica literária, mas também se espera que este trabalho tenha relevância no campo da
educação, pois ler um livro ilustrado está para além da relação texto e imagem. Sem ter
essa pretensão, o trabalho também aponta diretrizes para a leitura dos professores e/ou
outros mediadores de leitura, bem como olhar para a própria formação docente.

Referências
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1994.

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Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

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DALCIN, Andrea Rodrigues. Um escritor e ilustrador (Odilon Moraes), uma editora


(Cosac Naify): criação e fabricação de livros de literatura infantil. Dissertação (Mestrado
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FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. Literatura infantojuvenil: arte ou pedagogia


moral? São Paulo: Cortez, Piracicaba: Universidade Metodista de Piracicaba, 1982.

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KLASSEN, Jon. Este chapéu não é meu. 1ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins
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LAGO, Angela. "Entrevista". In: MORAES, Odilon; HANNING, Rona; PARAGUASSU,


Maurício. Traço e prosa: entrevistas com ilustradores de livros infantojuvenis. São
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LIMA, Graça. O design gráfico do livro infantil brasileiro - a década de 70: Ziraldo,
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Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, 1999.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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LITERARTES, n.3, p. 26-32, 2014. Disponível em: <
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CAMINHO PARA MEDIAR A LEITURA DO LIVRO “LAMPIÃO E
LANCELOTE” DE FERNANDO VILELA

Marília Forgearini Nunes (UFRGS/Faced)


Júlia Soares Martini (Bolsista PIBIC/CNPq-UFRGS/Faced)

Eixo temático: Grupo Temático 8 : Literatura infantil e ensino

Introdução
O presente trabalho é parte da pesquisa "Leitura mediada: de leitor mediado a
mediador de leitura"224. Nosso objetivo é propor um percurso didático para a leitura
mediada de um livro literário infantil. Entendemos que essa proposição pode ser
deflagradora de reflexões no contexto do desenvolvimento docente. Essa proposição
pode ser material de estudo e produção para alunas e alunos do curso de licenciatura,
principalmente a Pedagogia, auxiliando na organização de experiências de leitura
mediada. O objetivo será realizado a partir do livro literário infantil Lampião e Lancelote,
de Fernando Vilela (2006). A escolha por essa narrativa passa tanto pelo critério
qualidade do texto — verbal e visual —, quanto pelo desafio didático que pode ser a
leitura mediada deste livro que possui um design editorial, gráfico e narrativo
diferenciados e, por isso, instigante.
Para começarmos a organizar a experiência de leitura mediada, analisamos o
livro escolhido tendo como base teórica a semiótica discursiva e seu desdobramento, a
semiótica plástica. Essa análise busca compreender o entrelaçamento sincrético das
linguagens verbal e visual na constituição do enunciado narrativo. Após a compreensão
de como o texto produz sentido, desenvolvemos o nosso objetivo específico para este
estudo: a proposição de uma sequência didática voltada à mediação da leitura do livro
analisado. Nessa proposta, baseada no conceito de sequência didática de Dolz,
Noverraz e Schneuwly (2004), autores como Panozzo (2007), Nunes (2007;2013), e
Dickel (2016), dentre outros, foram utilizados, tanto para conceituar o modo de organizar
a proposta didática quanto para ampliar a discussão sobre a relevância da prática de

224
Pesquisa registrada na Comissão de Pesquisa da Faculdade de Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul

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leitura sincrética que pode ser vivida a partir da literatura infantil.
O que organizamos e apresentamos neste estudo não pretende ser modelo de
leitura para a obra analisada, mas oferecer uma possibilidade de mediá-la no contexto
dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. A mediação que planejamos tem a
centralidade no texto literário infantil, não pretendendo que ele seja pretexto para o
estudo de outro assunto que não o próprio texto e os sentidos que ele pode produzir,
como nos alerta Lajolo (1988). A sequência didática planejada para leitura mediada
oferece ao leitor oportunidades de produção de sentidos estéticos e culturais e, ao
professor mediador, um modo de pensar outras mediações literárias em sua sala de
aula.

Lampião & Lancelote: uma leitura analítica


“Lampião & Lancelote” (2006), é um texto poético-narrativo em forma de trovas
rimadas em sextilha e setilha. A história apresenta ao leitor o encontro entre os dois
personagens que dão título ao livro. A leitura desse livro levou a uma questão: como
mediar o livro literário de modo que os alunos compreendam e produzam sentidos,
incluindo a diferença entre os personagens principais da narrativa e as relações de
proximidade e contrariedade entre eles? Para respondê-la, analisamos o livro pensando
no percurso gerativo de sentido da semiótica discursiva.
O percurso gerativo de sentido traçado auxilia a encontrar alguns dos possíveis
efeitos de sentido da narrativa construída com o entrelaçamento do texto verbal com o
texto visual-plástico. Para a semiótica discursiva, o sentido é consequência do
entrelaçamento de dois planos, o plano de conteúdo e o plano de expressão. O plano
de expressão “é o plano onde as qualidades sensíveis que possui uma linguagem para
se manifestar são selecionadas e articuladas entre elas por variações diferenciais”
(FLOCH, 2001, p. 9). Na imagem, essas qualidades sensíveis são identificadas nas
cores, formas, no espaço que configuram a materialidade visual. Já o plano de conteúdo
é onde a “significação nasce das variações diferenciais graças às quais cada cultura,
para pensar o mundo, ordena e encadeia idéias e discurso” (FLOCH, 2001, p.9). Em
outras palavras, trata-se de tematizar o texto lido, compreender como os sentidos do
texto se organizam a partir das oposições, do desenrolar das ações narrativas,
estabelecendo um discurso para esse conjunto de elementos de expressão e conteúdo
que constituem o texto em si.
Com o objetivo de encontrar os possíveis sentidos decorrentes do
entrelaçamento dos planos de expressão e conteúdo das duas linguagens presentes no

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texto, traçamos o percurso gerativo conforme descrito por Barros (2005). Acreditamos
na importância de traçar tal percurso como modo de entender como o sentido é
construído. Esse entendimento é assumido como essencial para conseguirmos pensar
em mediações mais efetivas e abertas à produção de sentido, oportunizando aos
leitores o desenvolvimento de sua compreensão leitora.
O percurso gerativo de sentido é dividido em três níveis do mais simples ao mais
complexo (BARROS, 2005): o primeiro deles, o nível fundamental, caracteriza-se pela
ideia de oposição, a grande oposição de ideias a partir das quais o texto se desenvolve,
alternando essas ideias, até que uma delas prevaleça auxiliando no estabelecimento da
tematização do discurso. O segundo nível é denominado nível narrativo, nele buscamos
analisar como o texto se organiza em ações do sujeito nos diferentes espaços e tempos
da narrativa, revestindo as ideias opostas de figuras e temas. A semiótica entende que
essas ações dos actantes da narrativa pode acontecer a partir de quatro modos de ser
e agir: por meio da manipulação, da performance, da competência ou da sanção. O
terceiro e último nível rumo ao sentido é o nível discursivo, onde encontramos o sentido
em si, o que podemos falar sobre o texto, amarrando os demais níveis e configurando
sentidos a partir das ideias que se opõem e dos temas que se constituem na narrativa.
No livro selecionado, é interessante pensar que a contradição que se busca no
nível fundamental já começa na escolha em ter Lampião e Lancelote (VILELA, 2006)
como protagonistas. Lampião foi um cangaceiro nordestino, cuja história (um misto de
verdade e ficção) faz parte da cultura do Brasil, enquanto Lancelote é um cavaleiro
medieval, cujos feitos fazem parte de uma ficção (assentada em fatos reais) que
pertence ao imaginário cultural da Inglaterra. Além da diferença entre os personagens,
a narrativa está estruturada, em seu primeiro nível de significação, na oposição
/GUERRA/ vs. /PAZ/ que sustenta a relação entre os personagens e o desenrolar dos
fatos.
No nível narrativo, essa oposição de ideias se mostra a partir da relação de
manipulação, um sujeito, através da sedução ou da provocação, manipula o outro a
querer ou dever fazer algo. No caso do livro a ação de manipulação se dá pela
provocação de Lancelote quando chega inesperadamente nas terras de Lampião e
utiliza com ele tom de superioridade, desestabilizando o personagem e o clima de paz.
Isso faz com que Lampião inicie uma guerra, entrando na fase da competência, agindo
para recuperar a paz. A performance revela-se no momento principal da narrativa,
quando Lampião muda do estado de ser-fazer associado à guerra, para o estado de
ser-fazer associado à festa. A sanfona figurativiza essa mudança e torna o festejar o

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valor positivo que apresenta a paz em detrimento da guerra. Por fim, a sanção é o
momento final, quando Maria Bonita e Guinevere aparecem, pondo fim ao estado de
guerra e reforçando o valor positivo da paz.
Assim, atinge-se o nível discursivo, os termos opostos do primeiro nível se
concretizam e um deles assume a prevalência final. A narrativa verbo-visual estabelece
esse percurso de sentido no qual o estranhamento imediato com o desconhecido que
poderia gerar uma guerra (e até mesmo quase deflagra o conflito), subverte-se por meio
da música e a paz prevalece.
Esse percurso se revela na organização sintática e nas escolhas semânticas
tanto do texto verbal quanto do texto visual. O ritmo poético do cordel, as cores prata e
dourado, as formas e figuras que remetem ao mundo medieval e ao mundo do cangaço,
do sertão nordestino, possibilitam que os sentidos se mostrem ao leitor pelas diferentes
linguagens presentes no texto.
Essa descrição do percurso de geração do sentido possibilita entender a
narrativa e as suas potencialidades na leitura. A identificação desses efeitos de sentido
abrem portas para se pensar como mediar a produção de sentido a partir da leitura, que
atividades e materiais podem ser organizados para aflorar discussões e construções de
sentidos.Com base nisso, o que segue é uma proposição para mediar a leitura de
Lampião & Lancelote (VILELA, 2016), tendo como modelo de organização didática a
sequência didática proposta por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) sobre a qual
traremos uma breve conceituação antes de descrever a nossa proposta de leitura
mediada.

O que é sequência didática:


Para mediar a leitura do livro Lampião & Lancelote (2016), optamos pela
sequência didática como modo de organização da experiência de mediação. Esse
modelo está assentado na perspectiva sociointeracionista de compreensão da
construção do conhecimento e da função da língua. A sequência didática é um modo de
organização que assume o texto como elemento central na construção do conhecimento
e produtor de sentido. A leitura, a compreensão e a produção de sentidos seja em nível
oral ou escrito é possibilitada pela mediação do texto e organizada com base no texto e
nas interações entre os leitores.
De acordo com Dolz, Noverraz e Scheuwly (2004, p. 97), uma “sequência
didática é um conjunto de atividades escolares organizadas de maneira sistemática, em
torno de um gênero textual oral ou escrito”. Para Leal, Brandão e Albuquerque (2012, p.

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148), as sequências didáticas são “um dos modos possíveis de organização do trabalho
pedagógico que podem possibilitar antecipações sobre o que será trabalhado [...] além
de indicar um leque de possibilidades de reflexão”.
O modelo de organização da sequência didática (SD) pretende: possibilitar o
ensino da oralidade e da escrita, ser adequado ao contexto da escola, estar firme e
verdadeiramente centrado na dimensão do texto, seja ele oral ou escrito, ampliar o
repertório de textos orais e escritos com vistas à produção de novos textos, organizar-
se em módulos, atento ao ensino diferenciado, por fim, propiciar a elaboração e
realização de projetos de ensino.
A organização do modelo de SD estrutura-se nos seguintes momentos:
apresentação inicial, produção inicial, sequência de módulos e produção final. Essa
sequência de ações pode ser assim descrita:
● inicia-se por uma apresentação motivadora em que todos conhecem a situação
comunicativa a partir da qual as leituras e escritas acontecerão;
● em seguida, realiza-se uma primeira produção que pretende avaliar o que o
aluno já é capaz e, a partir disso, (re)organizar os módulos com as atividades até
que a produção escrita final;
● a sequência de módulos oportuniza o exercício e o estudo do texto lido e que
auxiliará na produção final;
● a produção final, é o momento de colocar em prática o que foi estudado e
construído ao longo do percurso, assume também uma função avaliativa, pelo
aspecto somativo implicado. O produto final é reflexo das ações vividas, do que
foi lido, do que foi dito e do que foi escrito.
Essa organização também é apresentada em um fluxograma organizado por
Dickel (DICKEL et al, 2016, p. 78-79). O fluxograma é dividido em atividades que
“dependem dos conhecimentos dos professores”, em “momentos imprescindíveis no
desenvolvimento” de uma SD e em “situações didáticas de fundamental importância e
que precisam ser realizadas nos diferentes momentos de estruturação da SD” (DICKEL
et al, 2016, p. 78-79). Por assumir a perspectiva de como a SD é planejada, isto é, a
partir das ações das professoras apontam-se as etapas anteriores da SD, antes de
chegar à sala de aula: elaboração dos objetivos, definição do gênero a ser trabalhado,
seleção das propriedade da linguagem (PL) e do gênero (PG) a serem trabalhados e
organização de estratégias didáticas. Foi assim que iniciamos nosso trabalho de
desenvolvimento da mediação.
A sequência de ações didáticas propostas por Dolz, Noverraz e Scheuwly

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(2004), decorre de uma organização didática baseada no que acontece em sala de aula,
naquilo que o aluno realizará, as ações de Dickel et al (2016) são responsabilidade do
mediador. Nosso ponto de partida, então, foi o da organização didática para que a
mediação acontecesse com base no modelo da sequência didática. Temos como base
essas duas perspectivas por entendermos que mediar a leitura literária é uma ação de
ensino e que não deveria dispensar o planejamento e a organização da condução da
ação didática, considerando articulação entre as ações, como alertam Leal, Brandão e
Albuquerque (2012, p.147) em relação à tarefa de ensinar.
Defendemos, portanto, o planejamento para a mediação da leitura literária,
como uma ação didática como tantas outras comprometidas com a aprendizagem.
Mediar a leitura do texto literário não é uma ação que se encerra na escolha do livro a
ser lido, é também um fazer que envolve planejamento e organização de como a
mediação acontecerá.
O planejar inicia na escolha do livro e tem continuidade na leitura atenta, entre
o sensível e o inteligível para que os efeitos de sentido possam ser mapeados. Esse
percurso para acompanhar e compreender a construção de sentidos imanentes ao texto
considera a estrutura narrativa que se mostra no entrelaçamento verbo-visual da
tessitura textual. Os sentidos construídos nessa leitura-planejamento, certamente não
são únicos, nem assim precisam ser assumidos pelo mediador, são ponto de partida
para inserir os leitores no caminho da significação e compreensão possibilitados pela
interação com o texto.
Para fazer emergir sentidos utilizamos como lentes teórico-metodológicas para
nossa leitura-planejamento a perspectiva da semiótica discursiva, associada à semiótica
visual. Esse ponto de vista nos coloca frente ao texto, como já realizamos inicialmente
aqui neste estudo.
O caminho que revela como o sentido é gerado no texto, abre possibilidades de
construção de significados para serem exploradas na mediação da leitura. Essas
possibilidades foram identificadas (e aqui descritas brevemente), servindo de base para
a organização de uma experiência de leitura mediada a partir de uma sequência didática
(SD) que apresentaremos a seguir.

Experiência de leitura mediada: sequência didática


Organizamos a SD para a mediação da leitura em uma ação de apresentação,
quatro momentos de interação com o texto e um momento final de produção escrita a
partir da experiência de leitura mediada. Outros textos serão explorados juntamente com

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a leitura do livro alvo da mediação, ampliando a imersão discursiva e cultural que a
leitura pode proporcionar. A seguir, descrevemos cada um dos módulos:
Apresentação inicial: Personagens
I- Leitura(s):
● TEXTO 1: Greta Thunberg e Malala Yousafzai se encontram na universidade
de Oxford - texto jornalístico, reportagem, divulgada em meio digital
(Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/02/25/greta-thunberg-
e-malala-yousafzai-se-encontram-na-universidade-de-oxford.ghtml ).
● TEXTO 2: Capa do livro Lampião e Lancelote (VILELA, 2006).
II- DESCRIÇÃO:
a) Objetivo(s) específico(s): aproximar os leitores da ideia de oposição e semelhança
que perpassa a produção de sentido presente no livro que será lido.
b) Procedimentos: Em um primeiro momento, realizar a leitura da imagem que
acompanha a reportagem, instigando a percepção das diferenças entre as duas
meninas. Essa proposta de leitura mais ampla indica um mapeamento de diferenças e
semelhanças entre Malala Yousafzai e Greta Thunberg. Feito isso, daremos
continuidade na proposta em cinco tempos: 1) dividir a turma em duplas e entregar uma
cópia do texto. 2) realizar a leitura silenciosa; 3) realizar a leitura compartilhada; 4)
propor perguntas que possibilitem identificar informações relevantes, comparar as
personagens da reportagem, inferir sobre o que motivou a reportagem com as duas
meninas; 5) introduzir o tema da narrativa que será lida a partir da leitura da capa do
livro, propor uma aproximação entre a imagem da capa do livro e o texto jornalístico lido.
Módulo 1: O primeiro encontro, semelhanças e diferenças pela imagem
I- Leitura(s):
● Capa do livro Lampião e Lancelote (VILELA, 2006)
II- Descrição:
a) Objetivo(s) específico(s): aproximar os leitores da ideia de oposição e semelhança
que perpassa a produção de sentido presente no livro Lampião e Lancelote (2006)
b) Descrição/procedimentos/intervenções: Depois de realizar a proposta de motivação
inicial, traremos o livro para a discussão. Assim como lemos a imagem presente na
reportagem, leremos a capa do livro Lampião e Lancelote (2006). Algumas perguntas
para instigar a leitura da imagem da capa serão propostas: Que tipos de formas (retas,
curvas, orgânicas, geométricas, …) encontramos na imagem da capa?; Qual(is) o(s)
material(is) usado(s) para produzi-la(s)?; Quais as cores predominam?; De que modo o
título se relaciona com a imagem?.

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Módulo 2: O segundo encontro, semelhanças e diferenças no texto verbal e no texto
visual
I- Leitura(s):
● Leitura da primeira parte do livro (da página de guarda até a 21ª página) 225
Observação:
Denominamos essa primeira parte do livro de “Os personagens”, pois são nas páginas
iniciais em que são apresentados os protagonistas da história, Lampião e Lancelote,
tanto por meio do texto verbal, quanto por meio do texto visual que é ampliado em
relação à capa.
a) Objetivo(s) específico(s): articular as múltiplas linguagens (oral, visual e verbal) para
promover uma mediação de leitura produtora de sentido; conversar, perguntar, refletir a
partir do que foi lido e promover a significação sensível ao texto e seus elementos
figurativos e plásticos, as escolhas semânticas e a organização sintática tanto no visual,
quanto no verbal (oral e escrito).
b) Procedimentos: Para essa atividade, será necessário uma preparação de um recurso
auditivo. A leitura será acompanhada de uma coletânea de músicas medievais e
nordestinas226. A leitura será feita pela professora e ouvida pelos alunos enquanto a
música é tocada, promovendo uma interação sonora e visual. Após a leitura oral, serão
realizados questionamentos que promovam inferências, comparações e análise dos
personagens e de sua caracterização. Depois da leitura, parar a música e iniciar uma
conversa com os alunos. Gostaram do início da história?; Ficaram curiosos para o que
vai acontecer?; Acharam que a música ajudou vocês a entrarem mais na história?; O
que vocês acham que vai acontecer?; Conseguem relacionar a música com o livro ou
história que vocês conhecem? O que esse livro provocou em vocês?; Que formas são
utilizadas para apresentar os dois personagens?; Que materiais/técnicas vocês acham
que foram usadas para produzir essas imagens?; Quais são as cores que marcam os
personagens?; Por que vocês acham que elas foram escolhidas?; Como o texto
descreve Lampião? E Lancelote?; O que esses personagens têm de diferente? O que

225
O livro não possui uma demarcação explícita de suas partes, como uma divisão de capítulos, por
exemplo, mas percebemos que as imagens associadas ao desenrolar da narrativa conferem uma
segmentação que utilizamos para promover a leitura do livro em sala de aula. Assim, estabelecemos três
partes: 1) “Os personagens”; 2) “O encontro”; 3) “A guerra”; 4) “A paz”.
226
Sugere-se como possibilidade duas coletâneas encontradas no Youtube, através dos links:
https://www.youtube.com/watch?v=DEeAN471boQ&t=38s (compilado de músicas medievais);
https://www.youtube.com/watch?v=KW0HnO95YU8 (música nordestina).

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eles têm de igual?; De que modo a imagem revela essas diferenças? De que modo o
texto verbal mostra as diferenças?
Módulo 3: O terceiro encontro, Lampião e Lancelote frente a frente
I- Leitura(s):
● Segunda parte do livro (da página 22 até a página 31) “O encontro” em estilo Cordel.
Observação:
Denominamos a segunda parte do livro de “O encontro” pois são nessas páginas em
que os dois personagens principais têm o seu primeiro encontro. Lancelote cai na
armadilha de Morgana e cai no mundo de Lampião, saindo de uma esfera branca. O
estranhamento inicial gera conflito entre os personagens, abrindo caminho para a
terceira parte do livro, “A guerra”.
II- Descrição:
a) Objetivo(s) específico(s): promover um encontro dos alunos com a narrativa;
b) Procedimento(s): reproduzir as páginas do livro, ampliadas para pendurá-las como
os cordéis, com o fio formando um "U" na sala de aula. Do lado direito e do lado
esquerdo as histórias começam, no meio do U estará o final da história; dividir a turma
em dois grupos, um grupo começará pela esquerda e outro pela direita, a medida que
vão lendo, vão se encaminhando para o “vértice” onde os grupos, assim como os
personagens no livro, se encontrarão. Ou seja, o grupo A começará a história pela ponta
direita do U, as mesmas imagens desse lado estarão no lado esquerdo do U, o qual
será lido pelo grupo B, as últimas páginas serão a curva do U, nesse momento, os
grupos terão se encontrado e estarão lendo as mesmas imagens; dialogar sobre a
leitura, recuperando informações da parte anterior e ampliando relações a partir da
leitura desse novo trecho.
Módulo 4: Do encontro à guerra
I- Leitura(s):
● Terceira parte do livro (da página 32 até a página 39) “A guerra”
Observação:
É nesta parte em que acontece a guerra se instaura entre os personagens, as diferenças
são afloradas e levam ao conflito.
II- Descrição:
a) Objetivo(s) específico(s): aprofundar a noção de oposição e semelhança que contribui
para a produção de sentido tanto na narrativa quanto na Guernica (1937), de Pablo
Picasso;

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b) Procedimento(s): Para a mediação dessa parte, a leitura em voz alta feita pela
professora estará acompanhada da projeção do vídeo de animação da obra Guernica
(1937), de Pablo Picasso227. A turma estará sentada de maneira que todos consigam
ver a projeção enquanto ouvem a leitura. Depois de observarem, iniciaremos uma
discussão guiada por perguntas semelhantes a já feitas, com o objetivo de exercitar a
leitura de imagem. Como terceiro momento, apresentar as imagens do livro Lampião e
Lancelote que fazem parte do texto lido anteriormente para comparar as imagens do
livro com a obra de Pablo Picasso;
Finalizar: Criar a partir do que foi lido
I- Leitura(s):
● O livro na íntegra.
II- Descrição:
a) Objetivo(s) específico(s): produzir, em grupos, uma narrativa inspirada no livro lido
b) Procedimento(s): O ponto de partida é retomar o livro e a narrativa para iniciar uma
discussão sobre a organização da narrativa. Em seguida, propor a escrita de uma
narrativa a partir do tema do encontro entre personagens que revelem diferenças e
semelhanças, que se repelem e se complementam. Dividir a turma em grupos, cada
grupo irá sortear dois papéis com nomes personagens distintos (ex. Super-homem,
Saci, Maria Bonita..). A partir do personagem sorteado, será conversado em grupo sobre
qual seria o personagem em oposição, identificando semelhanças e diferenças entre os
personagens. Por fim, escrever o texto que será partilhado com a turma em todas as
suas versões. Poderá ser também realizado o trabalho de criar imagens para
acompanhar as narrativas verbais criadas.

Considerações finais
Propomos aqui um exemplo de mediação que considere a importância do diálogo
e da produção de sentido a partir da leitura. Acreditamos que “ler possibilita, assim, uma
experiência que interpreta e amplia a realidade por meio do olhar” (NUNES, 2013, p.64).
Por isso, consideramos relevante ressaltar a importância de pensar e (re)pensar as
mediações de leituras literárias dentro da sala de aula.

227
Vídeo de animação do quadro Guernica (1937), de Pablo Picasso. Disponível em :
https://www.youtube.com/watch?v=jc1Nfx4c5LQ . Acesso em: 7 Set. 2020.

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Esse (re)pensar nos permitirá qualificar as práticas de leitura [...]
na escola. Essas práticas não consistem em exercícios de
oralidade ou de simples identificação dos elementos da narrativa,
mas precisam alcançar o grau de leitura estética e sensível [...],
agregando conteúdo e expressão (NUNES, 2013, p. 25) [tanto do
verbal quanto do visual que constitui o texto].

Ao elaborarmos as mediações, possibilitamos outros tipos de relação entre os


alunos e textos sincréticos, possibilitando a produção de sentidos mais amplos. Assim,
os leitores podem progredir em suas estratégias de leitura e de análise, assim como na
habilidade de dialogar sobre suas percepções.
Entendemos que “existem lacunas consideráveis quanto à formação para o
ensino da leitura; e o trato do texto sincrético, especificamente, ainda não é abordado”
(PANOZZO, 2007, p. 43), portanto, cada vez mais é necessário a pesquisa em relação
a mediação de textos sincréticos, considerando igualmente o verbal e o visual na
produção de sentido. Nos importamos especialmente com a leitura de imagem pois,
como afirma Tatiana Evalte (2019, p. 23), “importa, então, pensar a imagem, móvel e
estática, para além de algo corriqueiro do cotidiano, pois, quando assumimos essa
postura de naturalizá-la, acabamos por não prestar atenção para aquilo que faz parte
de nossa vida e que, muitas vezes, dá sentido ao que fazemos”.
A mediação do livro Lampião e Lancelote (2016) não é um modelo a ser seguido
e reproduzido. O que nos propusemos foi demonstrar como a mediação da leitura
literária pode ser organizada, proporcionando a análise do texto e a ampliação do olhar
sensível para o mundo. O que este estudo se propõe é de algum modo oferecer ao
mediador um caminho para planejar e organizar uma experiência de leitura mediada do
texto literário cujo objetivo central seja ler o texto e viver sensivelmente essa leitura.

REFERÊNCIAS
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto,
2008.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. 4ed . São Paulo: Ática,
2005.
DICKEL, Adriana et al. Práticas pedagógicas em Língua Portuguesa e Literatura:
espaço, tempo e corporeidade. 1 ed. Porto Alegre: Edelbra, 2017.

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Seqüências didáticas


para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. . In: SCHNEUWLY, Bernard.;
DOLZ, Joaquim. e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e
organização: Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas-SP: Mercado de Letras,
2004.

EVALTE, Tatiane Telch. (Re)pensando as artes visuais na formação do pedagogo:


estratégias para a leitura de imagens. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande
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do Sul, 2019. 226f . Tese (Doutorado em Educação), Programa de Pós- Graduação em
Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2019.

FLOCH, Jean-Marie. Alguns conceitos fundamentais de semiótica geral. In: FECHINE,


Yvana. LANDOWSKI, Eric. OLIVEIRA, Ana Claudia de. Documento de estudado Centro
de Pesquisas Sociossemióticas. Tradução de: Analice Dutra Pillar. São Paulo: Centro
de Pesquisas Sociossemióticas, 2001. p.9-29.

GRETA Thunberg e Malala Yousafzai se encontram na universidade de Oxford. G1,


Rio de Janeiro, 25 fev. de 2020. Disponível em: <
https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/02/25/greta-thunberg-e-malala-yousafzai-
se-encontram-na-universidade-de-oxford.ghtml >. Acesso em: 20 jun. de 2020.
LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMANN, Regina (Org.). A leitura em
crise na escola: as alternativas do professor. 9.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
LEAL, Telma Ferraz; BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ALBUQUERQUE, Rielda
Karyna. Por que trabalhar com sequências didáticas? In: FERREIRA, Andréa Tereza
Brito; ROSA, Ester Calland de Sousa (Org.). O fazer cotidiano na sala de aula: a
organização do trabalho pedagógico no ensino da língua materna. 1 ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2012, p.147-173.
PANOZZO, Neiva Senaide Petry. Leitura no entrelaçamento de linguagens: literatura
infantil, processos educativos e mediação. Tese (Doutorado)-Universidade Federal Do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.

NUNES, Marília Forgearini. A leitura de narrativas infantis verbo- visuais: interação do


leitor com a palavra e a visualidade por meio da mediação. Santa Cruz do Sul: UNISC,
2007, 281f. Dissertação, Programa de Pós-graduação em letras, Faculdade de Letras,
Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2007.

NUNES, Marília Forgearini. Leitura mediada do Livro de Imagem no Ensino


Fundamental: Letramento visual, interação e sentido. Tese (Doutorado). Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.

VILELA, Fernando. Lampião e Lancelote.1 ed. Rio de Janeiro: Pequena Zahar, 2016.

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GRUPO TEMÁTICO 9: OS
ESPAÇOS DE LEITURA
LITERÁRIA

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BAÚ DE LEITURA: A (RE)INVENÇÃO DA LEITURA NA SALA DE
AULA.

BALSAN, Silvana Ferreira de Souza, (UNESP/CELLIJ/PRESIDENTE PRUDENTE)


SOUZA, Renata Junqueira de (UNESP/CELLIJ/PRESIDENTE PRUDENTE)

Eixo Temático 9: Os espaços da leitura literária.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente texto origina-se de um recorte de uma pesquisa de doutorado, do
Programa de Pós-graduação em Educação, da FCT-UNESP, de Presidente
Prudente/SP, intitulada Nas veredas da leitura: ações para a formação de leitores
autônomos, cujo objetivo era compreender como o processo de múltiplas ações de
leitura articuladas entre si influenciaria na formação de leitores autônomos, cuja
metodologia utilizada constou de uma pesquisa-ação, aplicada em uma turma de 4º ano
do Ensino Fundamental de uma escola pública municipal do interior do estado de São
Paulo.
Quando nos propomos a estudar o processo de formação leitora dos
estudantes na escola pesquisada, nos deparamos com duas dificuldades em relação ao
desenvolvimento do ato de ler: inicialmente foi a falta de uma ação que possibilitasse o
empréstimo de livros , pois os estudantes não podiam retirar volumes e levar para casa,
pois apesar de possuir uma biblioteca, cujo o acervo foi constituído principalmente por
obras recebidas pelo PNBE (Plano Nacional da Biblioteca Escolar), e de alguns
exemplares adquiridos pela própria unidade escolar, os discentes não podiam retirar
nenhum. Os estudantes tinham um intervalo de 20 minutos em um único dia da semana
para ir até a biblioteca e ler os livros naquele local.
A única forma dos estudantes levarem os livros da biblioteca para o domicílio
era através da “sacola viajante”, que se caracterizava por ser um projeto da escola no
qual somente um aluno de cada classe transportava para casa um livro, uma vez por
semana, sendo que, a obra era selecionada e colocada na bolsa pela bibliotecária e

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levada pela criança. Dentro da sacola havia um caderno que acompanhava o volume
escolhido no qual o discente tinha que fazer um resumo escrito da obra.

Um segundo ponto era a limitação da leitura de textos longos no interior da


escola, em virtude da fragmentação do tempo, pois apesar do professor ficar cinco horas
com as crianças por dia, o horário ainda é fraccionado entre os componentes
curriculares, o que produz um problema, uma vez que, todos os educadores possuem
um plano a ser seguido e implementado dificultando propostas baseadas na leitura de
textos extensos.
Assim, constatamos que nós limitávamos o contato dos educandos com os
textos longos em virtude do fator tempo e por isso nosso intuito era atingido
parcialmente, porque na sala de aula ao impetrarmos propostas de leitura, nós
verificamos que em virtude da duração das aulas e da própria rotina escolar, tais leituras
eram realizadas a partir de diversos gêneros (fábulas, contos, receitas, histórias em
quadrinhos, etc.), mas que tinham a mesma característica, a curta dimensão dos textos.
Frequentemente, as ações de leitura selecionadas pelos docentes são pautadas
nos estudos teóricos com os quais o professor tem acesso, como no nosso caso.
Todavia, salientamos que nossa opção pela introdução de uma ação de leitura que
permitisse aos estudantes o empréstimo de livros para ler em casa se deu também
devido as respostas fornecidas pelas crianças pesquisadas, pois elas deixaram claro
que liam muito mais em casa, de acordo com um questionário respondido no mês de
fevereiro de 2015 cuja questão número 10 indagava sobre o local que eles mais liam.
De um total de 19 discentes que responderam, 12 asseguraram que o lugar
predileto era a casa deles; ou seja, 63% dos estudantes afirmaram ler mais na
residência do que no ambiente escolar, mesmo eles assegurando que, no ano anterior
tinham uma aula de contação de história e iam a biblioteca uma vez por semana. Além
dessas atividades eram realizadas a leitura de textos pelos alunos e, outras vezes, os
docentes liam para os estudantes. Logo, foram esses fatores exposto até aqui, que nos
levaram a propor a ação de leitura do Baú de leitura, que será explicitada no próximo
tópico.

BAÚ DE LEITURA: A CONSTITUIÇÃO DO ACERVO


Com o nosso intuito de formar leitores autônomos, optamos por trabalhar por
meio do “Baú de leitura”, visando estimular a formação leitora dos educandos e,
concomitantemente resolver o problema da falta de livros para empréstimos e da
dificuldade de ler no ambiente escolar livros mais extensos.
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A constituição de bibliotecas para a formação de leitores nos espaços
escolares, especialmente na sala de aula, torna-se fundamental para a formação leitora,
pois “a sala de aula de aula é um espaço privilegiado para o desenvolvimento do gosto
pela leitura” (ZILBERMAN, 2003, p. 16), uma vez que possibilita ao educador
acompanhar e intervir no desenvolvimento leitor dos estudantes de maneira intencional
e gradativa (SMOLKA, 1989; LERNER, 2002).
Logo, destacamos em relação ao Baú de leitura a possibilidade de acompanhar
as escolhas dos volumes por parte dos alunos e a intervenção através das conversas e
dos registros escritos em relação a formação leitora. Ressaltamos então que “a sala de
aula não pode deixar de conter estantes com livros para livre escolha e empréstimos
[...]” e que “[...] estes livros precisam ser periodicamente renovados...” (COSSON, 2014,
p. 101) para tornarem-se assim um convite a leitura.
Para constituir a nossa biblioteca da sala de aula escolhemos os autores que
as crianças citaram no questionário respondido em 2015, mas nós não poderíamos nos
restringir somente a eles, por isso, optamos por constituir uma biblioteca que pudesse
oferecer à turma variadas leituras, tanto de textos literários, quanto de textos
informativos e que incluíssem obras sugeridas pelos estudantes e por nós, isto é, o
acervo foi constituído por todas as pessoas, professor e crianças. Do nosso ponto de
vista, uma questão crucial em relação ao acervo é que:

... o leitor também traz algum tipo de experiência, uma bagagem


de conhecimentos que precisa ser respeitada, caso contrário se
estabelece um choque entre quem escreve e quem lê, rompe-se
a parceria que só dá certo se ambos se entendem.
(ZILBERMAN, 2005, p. 13-14)

Neste sentido, para formar o acervo, nós demos ouvidos às crianças e


adquirimos volumes que as mesmas solicitaram e que no entanto, não eram
considerados cânones da literatura, mas que atendiam as demandas delas em relação
aos autores, gêneros, temas e interesses. Afirmarmos que, para validar a formação de
um acervo é preciso entender a comunidade escolar envolvida no processo de seleção
e de manutenção das obras, que envolve também um trabalho permanente de pensar
e repensar os títulos, isto é, refletir sobre quais volumes deve-se incluir e excluir de
acordo com os anseios do grupo envolvido, em especial, dos leitores incipientes.

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Figura 1: Criança selecionando livro no Baú de leitura.
Fonte: A própria autora, 2015.

Ressaltamos que, os professores também fazemos parte da comunidade


escolar, por isso, nós auxiliamos na formação do acervo, pois inserimos no baú, vários
livros que nós selecionamos e que atendiam certos critérios que consideramos
importantes, tais como: a qualidade literária, os enredos e os gêneros que contribuiriam
para o enriquecimento linguístico, literário e cultural dos discentes, ou seja, obras que
tinham o objetivo de quebrar as expectativas dos estudantes e ampliar o repertório leitor
do grupo.
Torna-se essencial que os docentes construam espaços, no contexto escolar,
que viabilizem o desenvolvimento do hábito de leitura e que permitam ao educador
investigar as preferências leitoras dos estudantes e observá-los no ato da leitura, com
o intuito de identificar quais práticas os alunos têm familiaridade para valorizá-las, e ao
mesmo tempo, objetivando a ampliação do horizonte de leitura dos educandos.
Enfatizamos, que o leitor se constitui pouco a pouco se o professor propor
leituras progressivamente mais complexas, pois “é papel do professor partir daquilo que
o aluno já conhece para aquilo que ele desconhece, a fim de se proporcionar o
crescimento do leitor por meio da ampliação dos horizontes de leitura” (COSSON, 2006,
p. 35).

BAÚ DE LEITURA: O PROCESSO LEITOR EM CONSTRUÇÃO


As atividades de leitura do Baú de leitura ocorreram na primeira semana do
mês de agosto e se encerraram no final do mês de novembro de 2015. No decorrer
desse tempo, os alunos selecionaram as obras, sendo que, em um primeiro momento,
fizeram as escolhas dos volumes e, durante a concretização do projeto, nós negociamos

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com os estudantes a leitura de outros livros do acervo que eles levaram para casa, a
fim de lê-los.
Após a aquisição do acervo preliminar, composto por cerca de 180 livros,
levamos todos para a sala de aula e pedimos aos estudantes que nos ajudassem a
arrumá-los, isto é, que nos auxiliassem com a arrumação da biblioteca, pois
acreditávamos que o Baú de leitura proporcionaria aos discentes trocas de experiências
e ações que desenvolveriam a autonomia leitora deles, tais como: a manipulação das
obras individualmente e depois de forma coletiva, a troca de opiniões entre os
educandos e a emissão de hipóteses, a partir dos títulos e ilustrações dos livros que
estavam manuseando.
Primeiramente, solicitamos aos estudantes que espalhassem os livros pelas
carteiras e reunimos as crianças em grupos menores, os quais pegavam os volumes e
se familiarizavam com as obras, através da manipulação e leitura dos paratextos.
Percebemos que os estudantes discutiam sobre os livros e os mostravam para
os colegas, conversando sobre aquilo que tinham lido ou visto e que lhes havia chamado
a atenção, o que fomentou a troca de informações sobre um determinado título ou um
autor conhecido.
Além disso, ao encontrarem os títulos que eles haviam solicitado anteriormente
e que gostariam de ler, os discentes animavam-se e os mostravam para os
companheiros, abraçando os livros e expondo aos colegas que eles seriam os primeiros
a ler aquele volume especificamente.
Após os discentes folhearem os livros por volta de uma hora, nós lhes pedimos
que os classificassem em obras de ficção e de não ficção. Essa experiência foi
interessante, pois os estudantes que tinham conhecimento prévio relativo às diferenças
entre os dois tipos de livros posicionaram-se de forma ativa, para explicar aos colegas
as semelhanças e as diferenças entre eles:

A criança JJBJ disse para a aluno CCM:


– Como eu vou saber como separar os livros de ficção e de não ficção?
– Os livros de ficção contam uma história, como o conto de fadas, por exemplo.
– E o outro?
A aluna CCM pega o livro de não ficção e diz para o colega:
– Veja, o livro de não-ficção tem subtítulos, fotos, mapas e fala sobre algo real: tipo dinossauros, sobre
o mundo... igual esse aqui.
A aluna folheia a obra junto com o colega e lhe mostra o que havia acabado de dizer.

(Diário/Pesquisadora-03/08/2015).

Figura 2: Registro no Diário da Pesquisadora.


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Fonte: A própria autora, 2015.

De acordo com a fala das crianças, inferimos que, tanto dentro quanto fora da
escola, elas têm contato com uma diversidade de textos: piadas, quadrinhos, charges,
obras de ficção e de não-ficção, que lhes fornecem conhecimentos que podem ser
compartilhados por meio do diálogo, quando a escola possibilita momentos para isso.
Um segundo ponto que observamos é que a criança CCM expôs para o colega
seus conhecimentos em relação aos livros de ficção e de não ficção, chamando a
atenção do amigo para a estrutura e as características desses volumes, ajudando-o a
compreender cada um deles, em suas especificidades. Em seguida, juntamente com os
outros integrantes do grupo, os dois alunos iniciaram a ação de separar as obras em
ficção e não ficção, apoiando-se nas informações que possuíam e destacando as
semelhanças e as diferenças entre as obras.
Logo, reafirmamos que, para desenvolver a formação leitora,

[a]s crianças devem apropriar-se do espaço e dos livros através


de ações como olhar, folhear, comentar e ler livre e
comodamente, ou mediante atividades mais dirigidas, como
buscar com enunciados concretos, avaliações sobre a
organização, etc., a fim de poder saber que livros têm a seu
alcance para entreter-se, para brincar, para ler inteiros, para
olhar as ilustrações, para consultar palavras, para encontrar
informações pontuais, para fazer um trabalho, etc. (COLOMER,
CAMPS, 2002, p. 96).

Após os estudantes discutirem e separarem os volumes, pedimos que


colocassem etiquetas coloridas para identificar os textos de ficção e não ficção
presentes no acervo, sendo que, nos livros literários, eles deveriam colar adesivos
circulares rosas; nos informativos, os discentes puseram decalques roxos.

Figura 3: Crianças etiquetando livros de ficção e não ficção.


Fonte: A própria autora, 2015.
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Enfatizamos que a seleção, a organização e o cuidado com o acervo foram
compartilhados entre nós e as crianças, constituindo-se coletivamente critérios para a
classificação dos livros (por exemplo, etiquetas rosas para os livros de literatura e roxas
para os livros informativos), usando-se os materiais que tínhamos disponíveis, uma vez
que o caderno de empréstimo foi fornecido pela própria Unidade Escolar e as etiquetas
foram adquiridas por nós, entre as possibilidades ofertadas no comércio local.
Constatamos que, quanto mais os discentes faziam parte do processo de
organização, mais eles se envolviam e participavam de forma ativa da manutenção e
ampliação dos livros, resultando em um maior compromisso por parte deles, que
passaram a ter cuidado com a conservação das obras.
Logo, uma grande parte dos estudantes tornou-se responsável pela
manutenção, limpeza e arrumação do Baú e também pela conservação e manutenção
do acervo, ao ponto de se sentirem à vontade para trazer livros de casa, com a finalidade
de expandir o número de obras e, ao mesmo tempo, colaborar para o acréscimo da
proporção de livros.
No começo de nossa ação de leitura, o funcionamento da biblioteca da sala de
aula era similar ao de uma biblioteca escolar, pois tínhamos um “caderno de
empréstimo”, no qual constava o nome de cada criança e onde eram anotados os dados
relativos ao título, à data da retirada e da devolução da obra emprestada pelo estudante.
A troca dos livros acontecia geralmente às quintas-feiras, porque, nesse dia da
semana, não havia nenhuma aula de professores especialistas 228, propiciando que
iniciássemos a conversa com os estudantes e a retirada dos livros assim que
adentrávamos a sala de aula, sem interrupções, o que beneficiava o andamento das
atividades e nos ajudava a manter a organização quanto às aulas e ao Baú de leitura.
Após a entrada das crianças, o bibliotecário229 responsável pegava a chave e
abria a estante. Os discentes remanescentes colocavam o caderno de diário em cima
da mesa do professor, conversavam entre eles para constatar se algum dos colegas
estava com um livro do interesse deles e se o volume ficaria disponível e já combinavam
a permuta das obras, nas quais tinham interesse diretamente com o companheiro de
sala.

228
No currículo escolar, constavam aulas de professores especialistas (Música, Inglês, Educação Física e
Arte), no período em que as crianças estavam na sala de aula, o que acarretava muitas vezes a
interrupção de atividades que necessitavam de um tempo maior para ser feito, como, por exemplo, a
troca de livros.
229
A função de bibliotecário era exercida por uma das crianças da sala, em sistema de rodízio.
1324

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Depois, iniciava-se o processo de troca de livros, no qual o professor
conversava com cada estudante individualmente, questionando sobre a obra lida e, se
necessário, auxiliando os discentes a trocarem os livros, oferecendo sugestões ou
ajudando-os a escreverem no diário de leitura deles.
A última etapa do Baú de leitura ocorria quando as crianças registravam a
retirada e a devolução dos volumes, isto é, salientamos que cada estudante era
responsável por anotar na sua página do caderno de registro as informações relativas
à retirada e à devolução das obras, tais como as datas e os títulos, de acordo com a
ordem de saída de cada livro.
As crianças liam em casa e depois anotavam nos diários, suas impressões
pessoais em relação a leitura efetuada e, no ato da troca de livro na sala de aula, os
estudantes discutiam com a pesquisadora suas ideias sobre o texto lido. Também
fazíamos o intermédio da criança que pegaria o livro com um outro colega que já havia
lido o título, para que um dissesse ao outro como foi a experiência dele com a obra.
Exemplificaremos os registros realizados pelos discentes a seguir:
O aluno GUP apresentou um comportamento antagônico para com a leitura foi
e que apesar do entusiasmo inicial para com a biblioteca da sala de aula, ele retirava os
livros, mas não lia nenhum. Nos dias de troca de livros, ao ser questionado sobre a
leitura e a troca das obras, o estudante muitas vezes reagia com violência, gritando e
demonstrando irritação, pois não tinha realizado a tarefa. Tentamos de várias formas,
conversar com o aluno e ofertar volumes que lhe agradassem, no entanto ele
permaneceu resistente as nossas tentativas de diálogo e intervenção.
O estudante selecionou primeiro a obra O livro do cientista, do físico Marcelo
Gleiser, retirado no dia 06/08/2015 e devolvido no dia 10/09/2015. Quando conversamos
com o estudante ao longo deste período, nós perguntamos se ele não queria trocar de
livro, e a criança alegava que não tinha tempo para ler, pois morava em um sítio. Em
seguida, o discente pegou Ana, Guto e o Gato Dançarino no dia 10/09/2015 e ficou um
mês com o livro, ou seja, entregou-o em 10/10/2015, sem realizar a leitura novamente.
Após estas duas situações, nós fizemos uma intervenção com a criança, por meio do
diálogo sobre temas que ele possivelmente gostaria.

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Após essa conversa o estudante escolheu o livro chamado Vampiro: uma
tenebrosa noite de sustos, doces e travessuras, de André Vianco e ele ficou com a obra
no período de 09/10/2015 até 29/10/2015. No dia da devolução ajudamos a criança, a
retomar oralmente as partes que havia gostado para que com o nosso apoio, ela
registrasse suas impressões no diário de leitura:

Título: Vampiro: uma tenebrosa noite de sustos, doces e travessuras,


Autor:André Vianco

Eu gostei muito do livro porque eu adoro histórias de terror.


Eu gostei também da ilustração, porque traz monstros e as cores são bem escuras.
A minha parte favorita foi quando a menina e o vampiro saíram correndo de bicicleta
para ir ao dentista.
Eu indicaria o livro para os meus colegas porque eu gosto dos personagens,
especialmente do vampiro.
Fonte: Diário do GLD-29/10/2015.

Após auxiliarmos o educando, notamos que o mesmo gostou de livros de terror,


por este motivo fornecemos outro volume do autor André Vianco, da série Rocco para
Jovens Leitores, intitulado de Bruxa: Um Feriado Assombroso na Floresta ficando com
o aluno do dia 29/10/2015 até 12/11/2015.
A criança desta vez leu a obra e fez as anotações no diário. Depois, da leitura
da obra, ela deixou o seguinte bilhete no diário que nos deixou mais confiantes em
relação ao posicionamento dela, pois até então, o aluno apresentava um
comportamento negativo diante das ações de leitura propostas:

Obrigado professora por me recomendar este livro muito legal e muito bem
ilustrado.
Fonte: Diário do GUP -29/10/2015.

Para incentivar o estudante e fortalecer as experiências positivas dele para com


a leitura, deixamos um recado que transcrevemos a seguir:

Querido GUP:
Fico muito feliz que você tenha gostado da história!
Espero que continue achando livros que te deixem feliz e com vontade de ler!
Beijos,

Fonte: Diário do GUP -29/10/2015.

Ao observarmos o comportamento do estudante, cabe-nos destacar que é a


resposta comportamental do educando, isto é, as atitudes e sentimentos para com a

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leitura, são chamados de leitores relutantes, que segundo Jobem e Mary Dayton-Sakary
(1999, 2002), são aqueles estudantes que não demonstram interesse na leitura,
adotando uma atitude indiferente perante o ato de ler.
Os leitores relutantes, segundo Jobem e Dayton-Sakary (1999, 2002) não
nascem assim, mas são fruto de um processo de ensino de leitura, seja ele praticado
no seio da família, ou na instituição escolar, uma vez que esses sujeitos passaram por:

Anos de instruções que os expuseram a todas as habilidades


necessárias para a leitura. Esses leitores usam a fonética
percebendo as letras e sons em uma palavra, [...] utilizam o
contexto para obter o significado geral do que estão lendo e
muitas vezes recontando alguns detalhes [...] e eles empregam
ainda o vocabulário. O problema não é a falta de habilidades,
mas não usar as habilidades que têm [...] e os conhecimentos
que esses leitores para se tornarem competentes. (JOBEM;
DAYTON-SAKARY, 1999, p. 16, tradução nossa).

Os autores advertem que, ao se procurar compreender as estratégias utilizadas


pelos jovens para postergar a leitura, dois aspectos não podem ser negligenciados:
primeiro que eles não são “naturalmente” leitores relutantes, mas diante de
determinadas circunstâncias ou fatores, eles tornaram-se relutantes. E o segundo ponto
é que cabe aos adultos, principalmente aos professores e familiares dos estudantes,
identificarem as causas que os levam a adiar o ato da leitura e propor formas adequadas
de enfretamento dessa situação vivenciada pela criança. Logo, destaca-se a
importância da mediação de leitura dentro da escola, para que não haja práticas
docentes que resultem em leitores relutantes.
Apesar de pegarmos como exemplo um leitor relutante, muitas crianças se
envolveram na ação de leitura, conforme observamos a seguir:

Identificação do aluno Quantidade per


capita de livros lidos
ADS 09
ALGD 10
ABA 11
BAT 05
BKO 11
CCM 17
GUP 07
GLD 16
IMC 03
JPLP 04
JJBJ 11
KDF 08
LBS 06
LAS 11
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MCLB 16
MFS 02
MMTC 12
RCBB 07
SLS 05
WLN 05
DAN 04
Total de leitura registradas 181
Figura 4: Quantidade de obras retiradas pelas crianças no Baú de leitura.
Fonte: A própria autora, 2015.

Conforme os dados apresentados, verificamos, que houve uma variação na


quantidade per capita de obras lidas pelas crianças, isto é, cada estudante leu um
número de livros de acordo com suas possibilidades, conforme percebemos no fato de
crianças como ALGD, GLD, MCLB, MMTC lerem mais de 10 títulos cada uma, enquanto
alunos, como BAT, IMC, MFS e WLN, leram apenas cinco obras ou menos. No entanto,
enfatizamos que em virtude de crianças não terem acesso ao acervo da biblioteca, os
objetivos foram atingidos por nós, pois levaram livros e registraram suas preferencias
nos diários de leitura, trocando opiniões e sugerindo leituras para os colegas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os discentes demonstraram que houve uma melhora do processo de leitura
por parte deles, o que nos leva a inferir que houve a incorporação pelos sujeitos de
nossa pesquisa, dos modos de ler de um leitor autônomos, isto é, eles constituíram de
forma paulatina os procedimentos que caracterizam a autonomia de um leitor.
A mediação docente é extremamente importância para a formação leitora,
visando contribuir para a formação leitora e evitar que se forme no ambiente escolar
leitores relutantes, de forma que, a escola se torne realmente um local primordial de
acesso e formação de leitores, que leiam todos os gêneros com autonomia e ousadia
para buscar novos autores, que ampliem o horizonte de leitura de cada, levando-os a
pensar e refletir sobre o mundo no qual estão inseridos.

REFERÊNCIAS:
COLOMER, Teresa. CAMPS, Anna. Ensinar a ler, ensinar a compreender. Porto
Alegre: Artmed, 2002.

COSSON, Rildo. Círculos de Leitura e Letramento Literário. São Paulo: Contexto,


2014.

JOBE, Ron; SAKARI, Mary Dayton. Reluctant Readers: connecting students and
books for successful reading experience. Ontario: Pembroke, 1999.

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______. Info-kids: How to Use Nonfiction to Turn Reluctant Readers into Enthusiastic
Learners. Ontario: Pembroke, 2002.

LERNER, Délia. Ler e escrever na escola: o real o possível e o necessário. Porto


Alegre: Sagra - DC Luzzatto, 1996

SMOLKA, Ana Luiza Bustamonte. A criança e a fase inicial da escrita: a


alfabetização como processo discursivo. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2012.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003.

______. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva,
2005.

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O ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO E A
LITERATURA INFANTIL EM RONDONÓPOLIS

Marcilene Muniz Monteiro Conceição, SEMED/Rondonópolis


Silvana da Silva Reis, SEMED/Rondonópolis
Kenia Adriana de Aquino Modesto-Silva, UFJ/Jataí

Eixo Temático: Grupo Temático 9: Os espaços de leitura literária

Considerações iniciais
O presente texto traz como temática a combinação entre Educação Especial
(EE) e literatura infantil, visto que a EE não costuma ser associada à linguagem e à
leitura, apesar de sua especificidade permear todas as áreas e modalidades da
educação básica.
Alguns estudos revelam que, embora se fale sobre a necessidade da inclusão
de crianças com algum tipo de deficiência no ensino regular, muitas vezes, os
professores ainda não sabem como incluir, de fato, essas crianças em sala e nas
atividades. Talvez isso se justifique pela falta de preparo dos docentes, pois “[...] para
considerar uma proposta de escola inclusiva, [...] é pré-requisito que os professores
sejam efetivamente capacitados para transformar sua prática educativa” (FERREIRA,
2007, p. 5).
Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo promover discussões sobre a
utilização da literatura para infância no Atendimento Educacional Especializado (AEE),
com o objetivo de levar crianças da educação infantil ao mundo mágico da leitura,
pensando em suas potencialidades e não apenas em suas limitações.
Será apresentado, com abordagem qualitativa, um relato de experiência
envolvendo dois alunos atendidos pelo AEE, ambos com 5 anos, um com transtorno do
espectro autista (TEA) e outro com deficiência intelectual (DI), de uma escola da rede
pública municipal de Rondonópolis/MT.
Como aporte teórico para embasar a discussão, dialogaremos com os autores
Coelho (2000); Silva (2000); Ferreira (2007); Langkilde (2011); e Alves, Espíndola,
Massuia (2011), entre outros.
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Nelly Novaes Coelho (2000, p. 27) compreende a literatura como arte, pois a
vê como “[...] fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida,
através da palavra. Funde sonhos e a vida prática, o imaginário e o real [...]”. Essa
compreensão pode ser observada e comprovada na análise do conto João e Maria, dos
Irmãos Grimm, que será abordado neste texto.
Além do caráter artístico e estético, foi possível averiguar que a literatura infantil
contribui para a socialização e o desenvolvimento cognitivo das crianças atendidas pelo
AEE, já que “[...] a leitura deve ser geradora de novas experiências para o indivíduo”
(SILVA, 2000, p. 96), propiciando às crianças o ouvir, o falar (mesmo que a seu modo),
o pensar e o sentir.
Para construir esse diálogo entre literatura infantil e AEE, explanamos sobre:
definição de contos de fadas, a história João e Maria, o AEE no município de
Rondonópolis/MT e a descrição e análise das práticas realizadas.

Os contos de fadas
O conto é um subgênero da “vivência épica (o eu em relação com o outro, com
o mundo social), cuja expressão natural é a prosa, a ficção” (COELHO, 2000, p. 163 –
grifos da autora). Em outras palavras, o conto pertence ao gênero ficção, mas é
originário do gênero literário épico e possui uma narrativa acessível, isto é, possui
narrativas simples que, “[...] há milênios, surgiram anonimamente e passaram a circular
entre os povos da Antiguidade, transformando-se com o tempo no que hoje conhecemos
como tradição popular” (COELHO, 2000, p. 164). Resumidamente, podemos dizer que
o conto pode ser entendido como uma narrativa breve, com poucos personagens,
narrador, um tempo e espaço definidos, na qual há um conflito que é geralmente
resolvido no final (GOTLIB, 2006).
Coelho (2000) esclarece que o conto se divide em dois. O conto maravilhoso
possui origem oriental, difundido principalmente pelos árabes, traz personagens com
poderes sobrenaturais e é a maior fonte da literatura. O conto de fadas, por sua vez,
tem berço celta e apresenta heróis e heroínas com ação sobrenatural, porém também
possui mistérios que vão além da vida e busca uma realização interior, tendo um
aspecto espiritual e existencial.
A literatura infantil ou para infância tem como destinatário um leitor em
formação e que passa pelo processo inicial de aprendizagem da vida (COELHO, 2000),
por isso, a princípio, ela assumiu um caráter pedagógico e conscientizador. No entanto,

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estudos mais recentes apontam que a literatura destinada às crianças também é
possuidora de características literárias, artísticas e estéticas.
Ao trabalhar com o conto na escola, seja o maravilhoso ou o de fadas, o
professor proporciona “[...] às crianças importantes experiências acerca de ser criança
num mundo dominado pelos adultos” (LANGKILDE, 2011, p. 96), ou seja, apesar dos
aspectos mágicos, os contos falam daquilo que é humano e dizem respeito também à
infância e, assim, ampliam as experiências infantis sobre a vida, os sentimentos, as
emoções etc.

O conto João e Maria


O conto João e Maria abordado neste trabalho é o da versão dos Irmãos
Grimm. Trata-se de uma narrativa classificada como conto maravilhoso, porque,
segundo Coelho (2000), o núcleo das aventuras apresenta uma natureza material, social
e sensorial que indica busca por satisfação de necessidades do corpo, como a
necessidade de alimentos etc.
O conto retrata a história de dois irmãos, filhos de um lenhador que moravam,
com o pai e madrasta, em casa feita de galhos. A vida da família nunca foi fácil, mas
naquele ano estava pior, porque não tinham o que comer. Assim, a madrasta conseguiu
convencer o marido a dar um pedaço de pão às crianças e abandoná-las no meio da
floresta. Então, quando a família partiu em busca de lenha, pai e madrasta deixam as
crianças na mata com a desculpa de procurarem mais lenha para levarem para casa.
Após um tempo, cansadas, elas adormecem e quando acordam já é noite, mas como
João tinha deixado cair de sua bolsa pedrinhas brancas que brilham com a luz da lua,
conseguiram voltar para casa.
Ao chegarem em sua residência, os irmãos ficaram assustados porque o pai e
a madrasta estavam felizes sem eles. Tanto que planejaram outra artimanha para se
livrarem deles. Como dessa vez João não conseguiu sair para procurar pedrinhas
brancas, pois a madrasta trancou a porta, o menino teve a ideia de repartir o pão em
migalhas e, na próxima ida até a floresta, deixá-las pelo caminho. Dessa vez, a madrasta
e o pai das crianças os levaram para mais longe e os deixaram sozinhos novamente.
Mais uma vez, cansadas e com fome, as crianças adormecem, mas são acordadas pelo
piar de um pássaro branco, que os guia até uma casa bonita e feita com telhado de
chocolate, paredes de bolo e janelas de jujuba (SÃO PAULO, 2010, p. 62).
Mal sabiam que a casa foi feita por uma bruxa para atrair crianças, pois essas
eram sua refeição predileta. A velha alimentou as crianças, trancou João no porão e

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obrigou Maria a cozinhar para ele, pois queria comer o menino bem gordo. Porém, João
que não era bobo, aproveitando que a bruxa não tinha boa visão, toda vez que ela pedia
o dedo para ver se ele tinha engordado, o menino dava um pedaço de osso de galinha
para enganá-la.
Os dias passaram e a velha ficou com raiva e disse que comeria João mesmo
magro. Maria tentou intervir, mas foi em vão. A bruxa obrigou-a a acender o fogo do
caldeirão para fazer o cozido do irmão e assado da menina, mas para não a assustar,
a velha disse que faria pão.
Ao terminar de acender o forno, a bruxa pediu para Maria conferir se o forno já
estava quente. A garota, que entendeu qual era a intenção da Bruxa, disse que não
sabia como fazer, então a velha foi mostrar a ela, porém quando enfiou a cabeça na
fornalha, Maria a empurrou, fechou a porta e trancou com uma corrente. Depois foi até
o porão soltar seu irmão. Como não tinham que temer mais ninguém, exploraram a casa
e encontraram muitas pedras preciosas, as quais pegaram e levaram para casa.
Ao chegarem em seu antigo lar, abraçaram seu pai que sentia remorso pelo
que fizera com seus filhos. Então, as crianças colocarem em cima da mesa as pedras
preciosas que tinham pegado na casa da bruxa e a família não passou mais fome e a
madrasta, que tinha dado aquela ideia terrível, já tinha morrido.

As crianças atendidas pelo AEE


A inclusão das crianças deficientes no ensino regular das escolas públicas
brasileiras foi garantida por meio do capítulo 5 da Lei nº 9.394/96, a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDBEN).
O Decreto nº 6.949/2009 fala sobre os direitos das pessoas com deficiência e
esclarece que cabe ao Estado assegurar, em todos os níveis, um sistema educacional
inclusivo. Seu artigo 24 prevê “o máximo desenvolvimento possível da personalidade e
dos talentos e da criatividade das pessoas com deficiência, assim como suas
habilidades físicas e intelectuais” e antecipa “a participação das pessoas com deficiência
em uma sociedade livre” (BRASIL, 2009a, p. 11)
Com base nessas leis, o município de Rondonópolis cria, em 2016, uma
coletânea intitulada Políticas e Referenciais Metodológicos para a Educação Básica de
Rondonópolis – MT composta por doze livros, dos quais nos interessa somente o
volume 10 que é destinado à Educação Especial. Nesse documento, o termo

[...] inclusão pressupõe uma nova escola para um novo tempo:


uma escola que compreenda a necessidade de se modificar para

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eliminar as diversas barreiras que impedem o acesso daqueles
que, anteriormente, permaneciam alheios ao sistema
educacional [...]. (RONDONÓPOLIS, 2016, p. 18)

Com o intuito de contribuir para construir a escola inclusiva, a Secretaria


Municipal de Educação da cidade de Rondonópolis/MT (SEMED) conta com o
Departamento de Gestão de Educação Inclusiva, que possui uma equipe multidisciplinar
composta por professor preferencialmente pedagogo, psicólogo, fonoaudiólogo e
instrutor da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Essa equipe “[...] acompanha e orienta
o desenvolvimento dos trabalhos tanto dos profissionais que atuam nas Salas de
Recursos Multifuncionais como nas salas de ensino regular (RONDONÓPOLIS, 2016,
p. 28).
Também há nas escolas os estagiários que cursam o penúltimo ou o último ano
de faculdade e são responsáveis por cuidar da “[...] alimentação, higienização e
locomoção [...]” (Idem, p. 35) dos alunos que não conseguem realizar tais atividades,
com o objetivo de desenvolver maior autonomia do estudante.
A SEMED vem implementando gradativamente as Salas de Recursos
Multifuncionais para garantir às crianças deficientes o Atendimento Educacional
Especializado (AEE). De acordo com o documento municipal norteador da política, o
profissional apropriado para trabalhar nessa sala deve preferencialmente ser
especialista em Educação Especial e Atendimento Educacional Especializado, ou
participar da formação continuada oferecida pelo Ministério da Educação (MEC).
Também dá prioridade para que o professor seja efetivo (RONDONÓPOLIS, 2016).
De acordo com o artigo 13, da Resolução nº 4/2009, que institui as Diretrizes
Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica
(BRASIL, 2009b), modalidade Educação Especial, ao profissional do AEE cabe
identificar, organizar e construir recursos pedagógicos acessíveis; elaborar e executar
um plano de AAE; organizar os atendimentos nas salas de recursos; acompanhar a
funcionalidade de todos os espaços da escola em relação à acessibilidade; orientar os
professores e familiares sobre os recursos pedagógicos de acordo com as necessidades
de cada criança; ensinar às crianças que precisam de atendimento especializado utilizar
a tecnologia assistiva, propiciando-lhes autonomia; articular-se com os professores das
turmas, promovendo a participação de todas as crianças nas atividades escolares, entre
outros aspectos.
Para garantir tais diretrizes, a SEMED procura manter profissionais que
trabalham nas salas de AEE porque elas são destinadas à crianças com deficiência,

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transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades e superdotação, às quais são
atendidas no contra turno ao período em que estuda, para receber o atendimento
individualizado, no intuito de suplementar e complementar a formação de todos os
alunos, eliminando barreiras de sua participação na sociedade e de desenvolvimento de
sua aprendizagem (BRASIL, 2009b).
Observa-se, portanto, que as Salas de Recursos Multifuncionais e o
atendimento que é fornecido pelos profissionais que trabalham nelas são de grande
importância para proporcionar aos alunos deficientes autonomia com relação ao
aprendizado e o convívio no ambiente escolar e em comunidade. Por isso, olhar para
as práticas desenvolvidas pela SEMED pode oportunizar conhecermos o que vem
sendo feito e destacar o que ainda pode ser feito.

Práticas realizadas no AEE em Rondonópolis/MT


Existe um momento na vida das crianças em que elas gostam de utilizar
fantasias, brincar com situações imaginárias e ouvir as mesmas narrativas. Em geral,
nesse período, não se cansam de ouvir histórias de contos maravilhosos e de fadas que
começam com “Era uma vez...” e terminam com “viveram felizes para sempre”. Isso se
explica porque contos desse tipo criam a esperança de que as coisas na vida podem
dar certo e elas podem ter sucesso em suas dificuldades.
As histórias dos contos de fadas ajudam a lidar com as dificuldades do dia-a-
dia, como rivalidade entre irmãos, inveja, medo, relação difícil com os pais, complexo
de inferioridade, vingança etc. Assim, as crianças pedem para que se leia ou conte
diversas vezes a mesma história e não se cansam de ouvi-las porque fazem sentido
para elas.
Conhecendo esse amor pelos contos, foi escolhido esse gênero para ser
trabalhado com os alunos atendidos no AEE da SEMED, já que, na Escola Municipal
Bernardo Venâncio de Carvalho, há o projeto “Tenda Literária”, no qual são expostos
trabalhos realizados durante o ano sobre leitura e escrita, com culminância em uma
exposição que, em sua última edição, aconteceu no mês de setembro de 2019.
Durante o ano, foi realizada a leitura de vários dos contos tradicionais, sendo
possível perceber que os alunos atendidos no AEE tiveram um interesse em especial
pelo conto João e Maria. Levando em consideração a preferência dos próprios alunos,
foram lidas para eles as várias versões de João e Maria, também foi apresentada na
versão de filmes, em desenhos e outras por meio de fantoches e simples narrativa.

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Essas ações foram realizadas tanto na Sala Regular do II Agrupamento do II Ciclo da
Educação Infantil, com crianças de 5 anos, como na Sala de Recurso Multifuncional.
O projeto foi desenvolvimento em quatro etapas e durante três meses. A
apresentação dessa ocorreu na culminância do projeto “Tenda Literária” na qual estava
presente toda a comunidade.
Foi possível perceber que os alunos da Sala de Recurso, em especial os
autistas e deficientes intelectuais, gostaram mais da história contada em forma de filme
com desenhos de curta duração, uma vez que o tempo de concentração dessas
crianças costuma ser raso. Vale destacar que as demais do II agrupamento que não
participavam do AEE também gostaram da proposta.
Para haver uma maior socialização das crianças atendidas no AEE, evitando
assim a discriminação, a professora do AEE levava as crianças para sala regular,
possibilitando, desse modo, a interação das crianças da Sala de Recurso com todos os
envolvidos no processo de aprendizagem, seus pares e outros professores, e ampliando
o desenvolvimento de autoestima, afetividade e, principalmente, cooperação.
Depois de trabalhar as versões da história, foi pensada a produção de um livro.
Como os alunos da Sala de Recurso são crianças de apenas 5 anos de idade, e os
alunos do II agrupamento também, foi decidido trabalhar com a ilustração do conto. No
primeiro dia de confecção do livro, num flip chart, foi criada a capa na qual cada criança
colocaria sua marca. Nela, foi pintada a mão da criança, utilizando tinta guache de cores
variadas para, posteriormente, escrever o nome. Como os alunos da Sala de Recurso
ainda não estão alfabetizados, a professora foi a escriba. A seguir é possível visualizar
a capa da história, a assinatura dos alunos e a ilustração de um trecho da história.

Figura 1: Foto da capa do livro, assinatura dos autores e um trecho ilustrado.

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Fonte: A própria autora, 2019.

Depois que foi terminado com o trabalho da capa do livro, deu-se início à
ilustração do conto João e Maria, na versão dos Irmão Grimm, quando cada criança
ilustrava um parágrafo ou trecho do conto.
Ao observar os pequenos realizarem as atividades, a professora da sala de
recurso relata que

Foi algo indescritível até mesmo porque o trabalho com as


crianças deficientes nos surpreende a cada dia, tem alunos não
verbal (sic.), depois de muita intervenção com os mesmos
consegui saber tudo que se passava na cabeça dos alunos [...]
Para fazer esse trabalho preciso ter uma sintonização, é um
trabalho individualizado, observar a expressão facial, gestos etc.
Quanto aos alunos do II agrupamento [...] [eles] gostaram de
tudo e saiu cada desenho maravilhoso. (ENTREVISTADA 1,
2019)

Na culminância do projeto “Tenda Literária”, as professoras da Sala de Recurso


e do II Agrupamento montaram a casa de João e Maria com doces e guloseimas, para
ser exposta juntamente com a ilustração do conto. A docente do AEE relata que “foi um
sucesso, se não dizer gratificante tanto para alunos quanto professores”
(ENTREVISTADA 2, 2019). A seguir é possível visualizar a casa de doces.

Figura 2: Foto da casa de doces.


Fonte: A própria autora, 2019.

Foi possível observar no dia do fechamento do projeto que não só os alunos


ficaram surpresos em visitar a casa de João e Maria, como também os pais dos alunos

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da escola, porque eles puderam ver, pegar, entrar na casa cheia de doces, fazendo com
que os todos vivenciassem algo extraordinário, sem contar que os personagens
estavam ali para dar o clima: a Bruxa, João e Maria. Como pode ser visto na imagem a
seguir.

Figura 3: Foto da personagem bruxa e do menino João.


Fonte: A própria autora, 2019.

Diante do envolvimento geral e, sobretudo, das crianças atendidas na sala de


AEE, observamos que os contos maravilhosos e de fadas não podem jamais morrer,
visto que são uma forma de propiciar experiência literária, artística e humana às
crianças, incluído aquelas que possuem alguma deficiência, já que a contação de
histórias enriquece e faz diferença na atenção, concentração, memória auditiva e visual,
além de na organização temporal por meio da interpretação e compreensão de
situações por parte das crianças com necessidades educacionais especiais.

Considerações finais
Podemos concluir que a inserção da literatura no Atendimento Educacional
Especializado contribui para a inclusão dos alunos no mundo encantado que só a leitura
literária pode proporcionar, bem como para sua vivência social por meio da partilha de
experiências.
Também foi possível perceber que como nos lembra Aquino (2012, p. 85), o
professor tem a missão de “[...] contar um conto, aumentar um ponto e encantar a vida.
Primeiramente, a sua e, em seguida, a de seus alunos”. Como pode ser visto na
atividade desenvolvida pela professora do AEE com seus alunos, a qual é fascinada

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pela história João e Maria, que conseguiu transmitir esse fascínio não só às crianças
atendidas pelo AEE, mas também às outras da classe regular.
Segundo Alves, Espíndola e Massuia (2011, p. 102), a explicação plausível
para que tanto crianças como adultos gostem e se interessem pelas histórias descritas
nos contos, é devido à sua “[...] estrutura – começo, meio e fim – [que] sugere ao leitor
caminhos para compreender seus sentimentos e resolver seus conflitos”, como os
retratados nesse conto, o qual traz o abandono dos filhos pelos pais. Essas autoras
ainda relatam que os contos trazem novos significados para a vida das crianças, uma
vez que ao ouvi-las “[...] pode contribuir para aliviar as tensões pré-conscientes e
inconscientes, favorecendo a superação dos seus conflitos internos”.
As autoras alertam ainda que a escola precisa incorporar a literatura e que é
importante os professores utilizarem bons livros em suas práticas, tendo em vista que
muitos alunos não têm contato com livros fora desse ambiente. Acrescentam ainda que
“[...] a escola poderia utilizar mais cotidianamente o conto de fadas, pois o fato de as
crianças gostarem do gênero pode facilitar a aprendizagem, sendo que essas práticas
educativas significativas contribuem para a formação humana” (ALVES, ESPÍNDOLA,
MASSUIA, 2011, p. 110).
Concluímos também que a utilização de diferentes espaços escolares, distintos
suportes e versões de uma mesma narrativa colabora para que as práticas
desenvolvidas sejam apropriadas pelos envolvidos em diferentes etapas da mediação:
antes, durante e depois da partilha do texto, sendo possível em todas elas auxiliar o
processo de constituição da criança leitora.

Referências

ALVES, Aletéia Eleutério. ESPÍNDOLA, Ana Lucia. MASSUIA, Caroline Sanchez.


Oralidade, fantasia e infância: há lugar para os contos de fadas na escola? In. SOUZA,
Renata Junqueira de. FEBA, Berta Lúcia Tagliari. Leitura literária na escola:
reflexões e propostas na perspectiva do letramento. Campinas, SP: Mercado de
Letras, 2011.

AQUINO, Kenia Adriana de. O nascimento do leitor: ler, contar e ouvir histórias na
educação infantil. Jundiaí, SP: Paco Editorial, Boa Esperança, MT: EdUFMT, 2012.

BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção


Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, DF:
Presidência da República, 2009a. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm Acesso
em: 30 jan. 2020.

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BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 1996. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em: 30 de jan. 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Diretrizes


Operacionais da Educação Especial para o Atendimento Educacional
Especializado na Educação Básica. 2009b. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb004_09.pdf Acesso em: 30 de jan. 2020.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 1. ed. São Paulo:
Moderna, 2000.
FERREIRA, Maria Elisa Caputo. O enigma da inclusão: das intenções às práticas
pedagógicas. Educação e Pesquisa. vol.33 n.3 São Paulo Set./dec. 2007. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-
97022007000300011&script=sci_arttext&tlng=pt Acesso em: 28 jan. 2020.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 11. ed. São Paulo: Ática, 2006.

LANGKILDE, Niels Jorgen. Posfácio. In. SANTOS, Ana Maria Martins da Costa.

SOUZA, Renata Junqueira de. Andersen e as estratégias de leitura. Campinas, SP:


Mercado de Letras, 2011.

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fundamental. Rondonópolis, MT: SEMED, 2016.

SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Ler e escrever: livro de textos do aluno.


Fundação para o Desenvolvimento da Educação; seleção dos textos, Claudia
Rosenberg Aratangy. 3. ed. São Paulo: FDE, 2010.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova
pedagogia da leitura. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

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BIBLIOTECA PÚBLICA PARA A INFÂNCIA: UM ESTUDO
TEÓRICO SOBRE O LETRAMENTO LITERÁRIO

Sarah Cristina Costa Ferreira (UFLA)


Ilsa do Carmo Vieira Goulart (UFLA)

Eixo Temático: 9 – Os espaços de leitura literária.

Considerações iniciais
Sabendo que as bibliotecas são espaços fundamentais de mediação e
construção do processo de ensino e aprendizagem, esta pesquisa é um recorte do
Trabalho de Conclusão de Curso das autoras230 e, possui cunho qualitativo, exploratório,
descritivo e bibliográfico, tendo por objetivo analisar a importância dos espaços e
acervos destinados a literatura infantil para os pequenos leitores na primeira infância –
0 a 6 anos incompletos. Dessarte que, buscaremos reconhecer como se constroem os
processos de construção do letramento literário por meio de mediações efetivas da
leitura nestes ambientes.
Deste modo, a leitura e as bibliotecas são essenciais para a constituição da
criança enquanto cidadã baseando-se nos princípios norteadores da educação infantil:
éticos, políticos e estéticos, segundo destaca a BNCC (2018). Com base nisso, é preciso
democratizar o acesso à leitura e o acesso aos espaços das bibliotecas para primeira
infância, haja visto a importância para a promoção do ato de ler. Assim, pode-se definir
que o ato de ler é uma prática social e cultural, conforme descreve Chartier (2008, p.
129) “[...] não se deve esquecer a literatura, pois as leituras infantis não têm como
objetivo apenas distrair ou habituar as crianças a utilizarem esses textos, mas é através
dessas leituras que se formam a personalidade, a inteligência, o caráter [...]”. A leitura
literária abarca uma relação direta com a cultura, isso porque a literatura carrega

230
Este artigo é um recorte da Monografia intitulada: “Biblioteca Pública Infantil: Uma Reflexão
sobre Letramento Literário para Crianças”, sob orientação da Docente Ilsa do Carmo Vieira
Goulart alocada no Departamento de Educação da Universidade Federal de Lavras – UFLA.
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costumes e tradições de um povo e, perpassando a outros para que isso esteja em
constante perpetuação e co-construção com os leitores.
Se tratando do estudo da leitura para as crianças pequenas de 0-6 anos
incompletos podemos destacar a importância de compreendermos a criança em sua
constituição desde bebês até a mais avançada idade. A leitura é compreendida como
uma habilidade fundamental para o desenvolvimento das capacidades neurais das
crianças, ou seja, sua psicomotricidade que elenca aspectos cognitivos, físicos, sociais,
emocionais, criativos, imaginativos e críticos para a posteriori compreender os aspectos
sociais que regem a mesma em sua apresentação na sociedade grafocêntrica.
(GIROTTO; SOUZA, 2016).
Neste sentido, torna-se indubitável analisar os acervos e espaços destinados a
estes pequeninos nas bibliotecas públicas infantis e, suas mediações sejam por
bibliotecários, professores e demais envolvidos no processo de ensino e aprendizagem,
para que estes sejam efetivos/afetivos trabalhando com a leitura como uma arte que
visa não só o deleite, mas também uma formação crítica e essencial para a
humanização do pequeno leitor.
À luz disso, conhecer estes espaços nos propicia relevantes discussões na área
de educação com vistas a entender a constituição dos bebês e das crianças pequenas
e, nos supre basilarmente para sanar estas necessidades de modo satisfatório e afetivo.
Com vistas a estes aspectos intrínsecos da literatura infantil e das bibliotecas,
pesquisaremos sobre estes espaços, acervos e mediações com vistas a compreender
a leitura como fonte materializadora dos principais processos de ensino e
aprendizagem, principalmente, com foco no letramento literário dos pequenos leitores.
Sendo assim, o levantamento bibliográfico desta pesquisa se pautou
principalmente nos estudos de Cosson (2018), Soares (2009) e Souza (2009) que,
tratam sobre o letramento literário e suas ações significativas dentro das ambiências de
espaços escolares e extraescolares. Deste modo, frente a responder a problemática
desta pesquisa “Como desenvolver ações significativas nas ambiências de uma
biblioteca pública para a primeira infância, com vistas a potencializar o letramento
literário?”, organizamos o trabalho em 2 seções, sendo a primeira responsável por
discutir a temática da biblioteca pública infantil, com vistas a trazer a importância das
mesmas para a constituição social, cultural e, principalmente para promover o ato de ler
e, a segunda responsável por elencar ações significativas e potencializadoras do
processo de letramento literário para estes pequeninos.

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Biblioteca pública para a infância
Segundo Meurer (2016), o significado etimológico da palavra biblioteca, desde o
princípio, da palavra bibliotheke é o “biblion” que tem o sentido de “papel ou rolo com
escrita, e “theca” que tem o sentido de “depósito”, ou seja, local onde os livros são
guardados de maneira organizada, para possibilitar e facilitar o acesso dos
frequentadores a esse ambiente.
Essa definição etimológica vem caindo em desuso, graças ao caráter
democrático das bibliotecas em ser espaços mútuos de aprendizagem em que, não são
apenas depositários de livros. Estas têm compromisso político com a comunidade na
qual, resgata a memória e dirige as transformações sociais com vistas a tornar o ato de
ler democrático e provocante por meio dos acervos, espaços e mediações que nela se
encontram.
Assim, a biblioteca integra o indivíduo à natureza milenar desde o princípio e,
advindo desde a época da mais antiga biblioteca, formada no século VII a.C em Nínive,
constituída pelo rei da Assíria, Assurbanipal, o qual desvendou a grande valia da
preservação de arquivos, documentos e o restante em placas de barro. Como também
da biblioteca mais significativa da Senioridade fundada no século IV a.C, na cidade de
Alexandria no Egito, pelo orador da Grécia Antiga, Demétrio de Falero, e erguida pela
autorização de Alexandre, o Grande, rei do reino grego antigo da Macedônia. Neste
espaço foram amontoados mais de 50 mil volumes escrito à mão em pergaminhos ou
em folhas de papiro com textos gregos e em outras línguas. O intuito dessa biblioteca,
em Alexandria, era uma busca pelo agrupamento universal, o qual concebe uma das
precedentes heranças de que são guardadas as outras bibliotecas futuras. (KLEBIS,
2007).
É considerável lembrar que nessas e em muitas outras civilizações antigas, a
leitura era uma ação específica dos reis, nobres, escribas, sacerdotes e conselheiros,
em razão do conceito de livro ser como instrumento de culto e a leitura compreendida
como uma prática ligada ao sagrado e que deveria ser reservada apenas a esse público.
Dessarte que, isso ainda acontece nos dias atuais, pois as pessoas marginalizadas da
sociedade não conseguem ter acesso a literatura, já que, esta está concentrada em uma
pequena fração da população tida como “culta”.
Esse termo frequentemente utilizado, abre margem para discutirmos: “O que é
ser culto?” A etimologia deste termo significa possuir cultura, o que todos os seres
humanos possuem sejam eles do Norte ou do Sul, do Oriente ou do Ocidente. Portanto,
o uso deste termo para depreciar os marginalizados da sociedade como povos sem

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cultura é errôneo, visto que, o Brasil é um dos países com maior desigualdade social no
planeta em que a maioria do PIB (Produto Interno Bruto) se concentra nas camadas
mais ricas da população.
Nesta direção, é de grande valia vislumbrar esse processo histórico no qual
herdamos demasiadas características nas bibliotecas atuais, sendo estas, em suas
diversas especificidades: escolares, especializadas, infantis, públicas, nacionais e
universitárias. Sendo assim, traremos a seguir pequenas conceituações de cada uma
delas.
As bibliotecas escolares são parte importante da constituição do espaço escolar:
“[...] dentro de uma instituição deve estar bem definida quanto à sua organização e
funcionamento para que venha facilitar o ensino e a aprendizagem” Motta (1999, p. 21).
Contudo, muitas vezes são alocadas em lugares com difícil acesso para os alunos e,
excluídas do processo de ensino e aprendizagem destas crianças funcionando apenas
como depositários de livros e outros itens pedagógicos, do que como agentes do
letramento e da fruição proporcionados pela literatura. Estes locais também são vistos
muita das vezes como punitivos, em que o aluno se desloca até lá para copiar trechos
e tarefas pois não se comportou de maneira adequada na sala de aula. Muitas das vezes
também possuem horário de funcionamento restrito, sendo somente durante o horário
das aulas não possibilitando que os discentes o procurem fora deste.
Já as bibliotecas especializadas têm por finalidade promover a informação e o
acesso em áreas pré-estabelecidas conforme a especificidade de cada uma, sejam nas
ciências humanas, agrárias, exatas e da terra. Neste sentido, temos ainda as bibliotecas
universitárias que se encontram dentro de instituições para fomentar o processo
educativo de educandos, bem como alavancar o processo de pesquisa e extensão
nestes espaços.
Temos ainda as bibliotecas nacionais que, congregam o patrimônio cultural de
uma nação e, toda sua história. São caracterizadas assim, pois pertencem ao instituto
do Depósito Legal e, tem por objetivos a elaboração e a divulgação da bibliografia
brasileira corrente, através dos catálogos online e, a participação junto ao centro
nacional de permuta bibliográfica que liga a nação ao campo de ação internacional.

Seguindo a estas concepções, a primeira biblioteca brasileira – A


Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro – só foi criada com a chegada da
família real ao Brasil por Dom João VI em 1814, com mais de 50.000
volumes transportados pela Corte de além-mar de Portugal. Graças a
diversidade da literatura, seu acesso foi liberado aos negros
escravizados e livres e, demais marginalizados da sociedade brasileira
da época. A Biblioteca Nacional contém quase 80.000 volumes, e
ocupa um edifício primitivamente de propriedade dos Carmelitas. [...] A
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Biblioteca honra a cidade. Cada pessoa decentemente vestida, branca
ou preta, tem acesso livre à consulta e se quiser fazer extratos, ser-
lhe-ão fornecidos penas, tinta e papel. Raramente encontrei ali mais de
meia dúzia de consulentes, sendo a maioria jovens de cor – um fato
corroborativo do que várias vezes já se disse sobre o caráter ambicioso
desta parte da população. (LAJOLO & ZILBERMAN, 1999, p. 180).

Por fim, temos os objetos centrais de estudo deste trabalho, as bibliotecas


públicas temáticas infantis. Deste modo, é fundamental que conceituemos estes termos.
A biblioteca pública é parte constituinte da comunidade a qual integra. É nela que
encontramos informação, cultura e educação e, também a história dos municípios aos
quais fazem parte, visto que, estas são espaços democráticos, de transformação social
e que constituem a memória sociocultural da população.
Segundo o historiador Reis (2010), a memória nos faz reviver o passado, mas
não só isso. Ela nos transporta a conhecer a origem e, posteriormente, entrelaçar os
acontecimentos com o futuro. A memória caminha conjuntamente com o tempo. O ato
de rememorar as lembranças nos faz constituir as memórias, sendo este, parte das
bibliotecas públicas em armazenar a história, seja através de livros, mapas, e diversas
outras fontes.
Destarte que, para os autores Bernardes, Pimentel e Santana (2007, p. 20), “a
biblioteca é uma alternativa de inclusão social e se configura como um ambiente
democrático, tendo a informação como uma ferramenta importante para a
conscientização dos direitos e deveres de cada cidadão como membro da sociedade”.
Ao pensarmos na biblioteca pública, esta não se restringe às crianças, mas se
refere a todas as pessoas que englobam a comunidade, sem distinção de raça, classe
social, gênero, religião ou sexo. À luz destas constatações, neste estudo focaremos nas
bibliotecas públicas voltadas para a infância, que são inteiramente destinadas a este
público, tendo por objetivo fomentar a formação de leitores, de mediadores, pais e
responsáveis, professores e demais agentes envolvidos neste processo e,
principalmente despertar o gosto pela literatura. É imprescindível reiterar que estas
possuem em sua maioria ambiências ornamentadas, variadas obras e, intrínsecas em
seu espaço ações de mediação que promovem o letramento e, por conseguinte podem
promover o letramento literário de modo singular e assertivo que o mesmo pede.
Desta maneira, de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (2006)
referentes à educação básica e, principalmente, relativos à educação infantil, é válido
ressaltar que o mesmo concebe a possibilidade para que as crianças tenham aquisição
ao conhecimento socialmente determinado de acordo com cada idade, em busca da

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possibilidade construtiva da aprendizagem não só nos espaços escolares, mas também
nos espaços extraescolares, como as bibliotecas públicas infantis.
Deste modo, esses parâmetros se amparam no princípio do convívio do sujeito
com o meio que está inserido para propagar o desenvolvimento cognitivo através de
ferramentas lúdicas e interacionistas com apoio dos professores e demais agentes
participantes do processo educativo. Assim, ressalta Silva (1997, p.56) que: “[...] o
conhecimento surge e se enraíza através da ação e da interação dos sujeitos com os
objetos a serem apreendidos pela consciência. O ato de aprender, portanto, exige do
aprendiz, ação concreta e diálogo concreto com os suportes que veiculam elementos
do saber constituído historicamente”.
Sendo assim, a biblioteca é fortemente significativa, em vista do aprendizado ser
também constituído dentro desse espaço, como um meio de informações e
autoaprendizagem, como também a poderosa tríade interacionista – biblioteca, aluno e
professor –, em consequência de ser um artifício construtivista que agregará futuros
conhecimentos, visto que, o leitor quando lê dialoga com o texto através da
intertextualidade inerente a leitura de mundo deste sujeito. Destarte que, para Marcuschi
(2008), “nenhum texto se acha isolado e solitário”. Diante disso, a intertextualidade na
literatura infantil promove também um jogo lúdico e sensível a partir das vivências da
criança e de suas singularidades, favorecendo o letramento literário.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (2006) relativos à educação
infantil, é válido ressaltar ainda que, na área da linguagem, o quanto é fundamental os
professores, mediadores e demais agentes desse processo, oportunizarem no espaço
bibliotecário o contato com variados tipos de gêneros textuais, para que a criança
perceba a utilidade da escrita em diversas situações, em razão da aprendizagem da
língua levar a criança a, gradativamente, estender suas capacidades de comunicação e
expressão e de acesso ao mundo letrado.

A leitura e a escuta de histórias permeiam todo o período de


escolarização, desde os primeiros anos, mesmo antes de a criança
dominar o código linguístico, quando busca-se construir uma atitude de
curiosidade pelo livro e de prazer pela leitura. Isso se consegue com a
utilização de textos bem selecionados, criativos, ricos e com ilustrações
de qualidade. (CAMPELLO; MAGALHÃES; XAVIER, 2001, p.3).

A parceria da escola com a biblioteca é fundamental, pois possibilita a interação


da tríade - professor, aluno e bibliotecário - e propaga diversas informações e
aprendizagens. De acordo com Bezerra (2008) ao se inserir a criança em uma biblioteca
prazerosa e que tenha atividades educacionais, indiretamente, contribui para que ele se
torne não apenas um visitante eventual desse espaço, mas se transforme em usuário
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habitual em busca de leituras e fontes geradoras de novas informações. Diante disso,
as bibliotecas trazem diversas possibilidades de formar a criança enquanto cidadã com
direitos e que se expressam em cem linguagens231 e, para isso compreender suas
principais características de acervos, espaços e mediações são de suma importância.
Á vista disso, os acervos são todos os títulos presentes na biblioteca, desde
livros a imagens, mapas, arquivos digitais e entre outros materiais que nela se
encontram. A organização deste acervo deve ser de maneira convidativa e estimulante
para o leitor, não fazendo pilhas em armários ou se guardando em caixas. As estantes
são as melhores opções, pois deixam em aberto a degustação e a escolha do leitor.
Contudo, não se deve restringir as bibliotecas como um lugar de estrita organização e
com coleções intocáveis, em que as crianças não podem tirar a ordem das obras nas
estantes ou simplesmente trocá-las de uma a estante a outra.
Assim, as estantes devem ser acessíveis aos pequenos leitores, para que eles
mexam à vontade e possam escolher seus títulos de forma particular. O espaço
bibliotecário deve ser convidativo, chamativo e decorado de modo a transportar o leitor
para as mais puras memórias culturais e cognitivas. É de suma importância que se tenha
um mediador para auxiliar as crianças, já que, o ato de ler não é apenas ter contato com
uma gama de livros, mas sim, receber uma atenção significativa e afetuosa durante este
processo.
Dispor de muitas obras também não significa qualidade. Para determinar este
preceito usamos o conceito da Bibliodiversidade: Biblio radical advindo do grego Bíblion
que possui o significado de livro e, é usado sempre relativo a estes e aos espaços que
os congregam. Já a palavra diversidade, deriva do latim diversĭtas e, segundo o
Dicionário de Português Online (2020), significa “Reunião do que contém vários e
distintos aspectos, características ou tipos; pluralidade.” Deste modo, o conceito de
Bibliodiversidade vem crescendo e expandindo-se cada vez mais, visto que, a origem
desta expressão ainda é incerta, ficando dividida entre estudiosos e pesquisadores
latino-americanos da década de 1990, pois o mesmo foi utilizado pela primeira vez em
espanhol “Bibliodiversidad”. Após estes primeiros estudos, o termo se difundiu pela
Europa e ganhou notações no Brasil, mesmo que ainda pequenas nos espaços
científicos que realizam estudos sobre as Bibliotecas.

231
A proposta pedagógica da Pedagogia da Escuta desenvolvida em Reggio Emília, Itália, é
centrada nos dizeres da criança, considerando-se todas as formas de expressão e suas cem
linguagens, compondo a partir daí parte dos registros de projetos, relatórios, diários, dentre
outros desta pedagogia. Assim, essa corrente tem como preceito básico, o respeito à
complexidade humana, indo contra a hegemonização da educação, compreendendo os sujeitos
como seres únicos, e utilizando disso para o seu desenvolvimento efetivo e satisfatório.
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Bibliodiversidade é uma grande quantidade de expressões culturais e
de diferentes expressões culturais, visões e modos de expressar-se
que existem entre as sociedades [...] Acesso a muitos títulos, desde as
histórias em quadrinhos aos belos livros ilustrados são fatores
essenciais que desperta o interesse pela leitura, e eliminar do
imaginário das crianças e jovens que a leitura é uma obrigação, pois a
leitura vai além dos livros. (SCHROEDER, 2009, p.10).

Sendo assim, a biblioteca deve contar com a bibliodiversidade em seu acervo,


com livros grandes pequenos, cartonados, de capa dura, com autores contemporâneos
e não contemporâneos, homens e mulheres, negros e índios, de diversos locais do
Brasil, possibilitando uma diversidade de obras para que as crianças e adultos ao
mesmo tempo, se sintam provocados pelos endereçamentos múltiplos dos livros. À luz
destes aspectos, os profissionais ligados a estes espaços devem estar munidos de uma
formação para que de fato efetivem a aquisição do letramento literário, pois este é
diferente de outros tipos de letramento, visto que, a literatura ocupa uma posição central
na aquisição da linguagem por parte das crianças e, que sem a presença da escola ou
das ambiências de uma biblioteca não consegue sozinho se efetivar. (SOUZA;
COSSON, 2011).
Por fim, é necessário rompermos com os preceitos de que a biblioteca deve ser
um espaço de silêncio, em que a criança possui um tempo definido para explorar, para
ler e, muitas vezes é condicionada a escolha da obra. (SOARES, 1999).

Letramento literário para crianças


Por meio dos estudos da professora emérita da Universidade Federal de Minas
Gerais, Magda Soares, compreendemos que a criança não entra na escola sem saber
nada assim como um papel branco, já que, vivemos em uma sociedade grafocêntrica
cercada de letras e símbolos por todos os lados. Assim, mesmo que ela não saiba ler
ela compreende placas na rua, rótulos de alimentos e demais símbolos presentes em
nosso cotidiano. É a partir dessa constatação que temos a introdução ao termo
letramento. Este, é uma visão nova em nosso meio, visto que, até a década de 1980 os
debates giravam em torno do termo analfabetismo, pois, grande parte da população
brasileira não era alfabetizada. Assim, com o foco em consolidar uma nova era marcada
pelas estratégias de alfabetização no país, o termo letramento ganhou destaque pois
em sua etimologia derivada do inglês literacy indica a condição de ser letrado, o que se
difere do significado a priori desta palavra que, servia para designar alguém erudito.
Neste sentido, o Letramento para Soares (2016) é a aprendizagem das funções
sociais e culturais da língua escrita pois, é necessário que as crianças compreendam
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que esta serve para interagirem, se comunicarem já que vivemos em uma sociedade
letrada. Isso significa que não basta a criança aprender a codificar e a decodificar letras
e sons, mas deve conhecer os diversos usos, contextos e aplicabilidades da língua
escrita.
Segundo Tfouni (2010, p. 23) “o letramento é um processo sócio-histórico que
se relaciona com o desenvolvimento das sociedades, é apontado como sendo um
produto das revoluções comerciais, da diversificação dos meios de produção e da
complexidade crescente da agricultura.” Assim o letramento tem o objetivo de investigar
quem é alfabetizado e também os que não são nesse sentido levando em consideração
todo o contexto social, sendo este transformador da realidade.
Para Kleiman (2008, p. 18) “o letramento é um conjunto de práticas sociais que
usam a escrita como um sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos
visando finalidades específicas.” Essa conceituação reflete os aspectos sociais e
utilitários do termo, não o limitando a apenas ao mundo da escrita e às instituições
formais de ensino. Ele envolve todas as práticas educativas onde o letramento
acontece, a escola então passa a ser entendida apenas como uma agência de
letramento, dentre várias outras, que também exercem essa função.
De acordo com Mortatti (2004, p. 98), o conceito de letramento se liga às funções
da língua escrita em sociedades letradas. Segundo ela, “de acordo com os usos da
leitura e da escrita e suas funções no cotidiano dos indivíduos, em uma sociedade que
se organiza em torno de textos escritos e impressos, o letramento se torna cada vez
mais importante, pois é ele que irá permitir as relações sociais no contexto de uma
sociedade grafocêntrica.”
Já para Ferreiro (2006) em uma entrevista concedida a uma revista educacional
brasileira, alfabetização e letramento não se separam, visto que, em um conceito está
compreendido o do outrem. Para ela também, não se pode falar de letramento enquanto
se há milhões de analfabetos no país. Diante disso, deve-se focar primeiro na
erradicação do analfabetismo para depois pensar em letrar os indivíduos.

[...] poder transitar com eficiência e sem temor numa intrincada trama
de práticas sociais ligadas à escrita. Ou seja, trata-se de produzir textos
nos suportes que a cultura define como adequados para as diferentes
práticas, interpretar textos de variados graus de dificuldade em virtude
de propósitos igualmente variados, buscar e obter diversos tipos de
dados em papel ou tela e também, não se pode esquecer, apreciar a
beleza e a inteligência de um certo modo de composição, de um certo
ordenamento peculiar das palavras que encerra a beleza da obra
literária. (FERREIRO, 2006).

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Ainda segundo Soares (2009, p. 39) “letramento é um produto da ação de
ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita, é um estado ou condição de
um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter se apropriado da escrita em
suas relações sociais”. Para ela, a mediação e o estimulo a leitura fazem toda a
diferença para letrar o educando. Diante disso, o termo letramento literário vem de forma
singular pois, segundo Souza e Cosson (2011, p. 102), “o letramento feito com textos
literários proporciona um modo privilegiado de inserção no mundo da escrita, posto que
conduz ao domínio da palavra a partir dela mesma”.
Desta maneira, o termo letramento literário indica a enfatização das experiências
com a leitura, no desenvolvimento das ações de apropriação por parte da criança sobre
a literatura, e sobre as construções literárias de sentido, desde as canções de ninar
cantadas por seus pais na mais tenra idade, às primeiras contações e mediações de
leitura feitas em casa e, posteriormente na escola ao início da escolarização. (PAULINO;
COSSON, 2009).
É necessário termos em mente que assim como o processo de alfabetização, o
letramento também advém da apropriação e ressignificação por parte da criança.
Dessarte que, o letramento literário precisa de mediações eficientes para ocorrer. Isso
significa, que o mesmo não se desenvolve apenas com a leitura de livros literários de
modo unitário, posto que, a afetividade e o contato mediado neste processo são
fundamentais e, vão adiante do processo de compreensão do sistema alfabético e
ortográfico.
Sendo assim, para realizar o letramento literário de forma satisfatória seja na
sala de aula ou em ambiências da biblioteca, os profissionais devem estar inteirados
das obras literárias as quais irão oferecer para uma leitura espontânea da criança. O
primeiro momento é abrir o espaço para que as crianças falem, tragam seus
conhecimentos prévios sobre as temáticas que irão ser desenvolvidas, visto que,
segundo Kleiman (1999, p. 13) “a compreensão de um texto é um processo que se
caracteriza pela utilização do conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já
sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida.” No segundo momento, devemos
explorar as partes do livro com a criança, apresentar o nome, o autor, o ilustrador e
todas as informações que a chamem atenção, bem como ao contar e/ou mediar a
história mostrar as imagens, as partes do texto e a integralidade da obra.
Neste sentido, não devemos trocar palavras do texto, o ideal é que contemos
e/ou mediemos as obras como foram escritas, com cada palavrinha pois, são nesses
momentos que a criança interioriza o vocabulário, seus usos sociais e culturais da leitura

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e do texto escrito. Deste modo, não se deve também trabalhar as obras visando uma
ação interlocutória pragmática, ou seja, para obter determinado fim e somente aquele,
desconsiderando o processo de internalização pelo qual a criança perpassa. À luz disso,
também devemos permitir que a criança toque e experiencie a obra, manuseie as
páginas, sinta a lombada, as imagens e demais relevos presentes no exemplar.
Em suma, segundo Souza e Cosson (2011, p. 106) cumpre enfatizar que o
objetivo maior do letramento literário ou do ensino da literatura é nos formar como
leitores não só as crianças, mas também nós enquanto sujeitos presentes neste
processo, e também não como qualquer leitor ou um leitor qualquer, mas um leitor capaz
de se inserir em uma comunidade, manipular seus instrumentos culturais e construir
com eles um sentido para si e para o mundo em que vive, especificidades que vão além
de compreender a escrita ou a leitura, mas sim de compreender seus usos e contextos
sociais.

Considerações finais
A partir da revisão bibliográfica apresentada, criamos bases sólidas para
compreender o quanto a literatura infantil é importante para a constituição das crianças
pequenas entre 0 a 6 anos incompletos. Assim, tendo como espaço detonador dessas
ações, as bibliotecas públicas para a primeira infância devem romper com os preceitos
de que os pequeninos só podem frequentar estes ambientes após a aquisição da escrita
e da leitura de modo autônomo.
Sendo assim, a leitura neste espaço tem por foco a formação da subjetividade,
a nomeação do mundo, e do meio em que as crianças estão inseridas, bem como a
formação do sujeito e, a provocação para que desde a mais tenra idade as mesmas
possam conhecer outras realidades de modo a desmistificar que, as bibliotecas devem
fazer parte da vida das crianças somente após a aquisição do processo de escrita, ou
seja, a relação estabelecida entre os grafemas e fonemas, visto que, a leitura possui
este caráter linguístico pois, auxilia na aquisição da linguagem, no processo de escrita
e da alfabetização como um todo. Contudo, segundo Brougére (1998), não podemos
perder de vista os outros caráteres já elencados acima, pois estes são constituintes da
humanização dos pequeninos, enquanto sujeitos de direitos e, que possuem uma
cultura própria.

Referências
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CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DE LEITURA LITERÁRIA NO
CONTEXTO DA ESCOLA DO CAMPO

Cleide Maria Jagher – Doutoranda em Estudos literários da Universidade Estadual de


Maringá (UEM)
Cláudio J. de Almeida Mello – Doutor em Letras pela UNESP. Professor adjunto da
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

Eixo Temático 9: os espaços de leitura literária

Considerações iniciais
Dentre os espaços de promoção da leitura, o escolar é o mais privilegiado nas
sociedades modernas, convertendo-se na principal ponte entre o estudante e a cultura
escrita. Delega-se à escola a função de formar leitores, mas esta função está atrelada
a vários elementos que convergem no interior da escola, desde o âmbito da
administração da educação, das políticas educacionais, da formação de professores até
como a família e o entorno da escola, em cada época, concebem e valorizam a leitura
(ZILBERMAN, 2009).
Mesmo com tantas questões adversas, a escola pode proporcionar em seu
espaço práticas de leitura literária significativas, valorizando à literatura como fonte de
cultura, de conhecimento e de prazer, o que se torna ainda mais relevante quando se
considera aqueles jovens que têm esse direito negado, por questões sociais e
econômicas. Dentre esses, estão os estudantes que vivem no campo, onde se encontra
uma grande parcela da população socioeconômica desfavorecida, cujo acesso à leitura
fica restrito ao espaço escolar (MACHADO, 2012).
Avulta, nesse sentido, a importância da escola no atendimento dessa demanda,
com práticas pedagógicas que respondam positivamente às expectativas desses alunos
sob pena de excluí-los da formação leitora. A questão é que se faz urgente pensar a
aproximação entre educação e literatura e literatura e educação, visando a “literaturizar”
a escola e a pedagogia, ao invés de escolarizar ou pedagogizar a literatura (DALVI,
2013). Nesse sentido, o livro e a literatura se convertem, na escola, em centro do
processo educativo.

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A partir da concepção da leitura literária como prática social, neste artigo,
apresentamos as reflexões resultantes do trabalho desenvolvido em pesquisa realizada
em nível de mestrado acadêmico, em que buscamos analisar quais as concepções e
práticas de leitura literária, na escola de Educação do Campo, tendo em vista que as
Diretrizes Curriculares da Educação do Campo do Paraná (DCEC) apresentam uma
metodologia diferenciada em relação aos conteúdos a serem trabalhados nesse
contexto, uma vez que a escola do campo é considerada um espaço singular, que
atende alunos com características distintas da escola urbana.
Considerando as análises, tanto dos documentos pedagógicos da escola, como
também das observações de aulas, e dos discursos proferidos nas entrevistas,
concernentes às práticas de leitura literária, verificamos que há ainda muito que ser
concretizado. Há um discurso escolar, social, referente à importância da leitura.
Contudo, no que concerne às práticas de leitura literária na escola, podemos ressaltar
que essas práticas ainda precisam ser fomentadas em toda a comunidade escolar,
direção, equipe pedagógica, professores e alunos, bem como ser levadas ao seu
entorno, aos pais, em propostas articuladas de leitura.
Ressaltamos que a escola do campo representa uma particularidade que é vista
com relação à totalidade. Nesse sentido, a educação do campo precisa ser
compreendida, não apenas como objeto empírico, singular (CIAVATTA, 2001), mas na
sua historicidade, relacionada aos sujeitos que fazem parte de seu contexto, ou seja, na
sua particularidade. E esse caráter particular é preciso ser levado em conta quando
tratamos das práticas de leitura literária.
Não se pode deixar de ressaltar a cultura particular do aluno do campo quando
se aborda o texto literário, contudo, essa abordagem não pode ficar restrita, fechada
apenas ao universo do campo, pois a cultura brasileira é plural, “a cultura das classes
populares, por exemplo, encontra-se, em certas situações, com a cultura de massa;
esta, com a cultura erudita; e vice-versa” (BOSI, 2002, p. 7).
A relevância do trabalho encontra-se na contribuição que os resultados dessa
pesquisa apontam, sinalizando para uma necessidade de um redimensionamento da
metodologia de ensino, em que sejam revistas as práticas de leitura literária na escola,
uma vez que a formação do leitor literário depende de práticas que favoreçam a
presença efetiva da leitura literária, em sala de aula, com práticas que tenham objetivos
bem definidos.
Nesse sentido, as atividades de leitura devem fazer parte de todo o processo
escolar do aluno, desde os seus primeiros anos escolares, é um percurso que se vai

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construindo, com práticas concretas de leitura e de forma planejada, porque “o que a
escola deve ensinar, mais do que ‘literatura’, é ‘ler literatura’” (COLOMER, 2007, p. 30).
Assim, com o objetivo de contribuir para a construção de alternativas de práticas
de leitura literária na escola, no sentido da formação do leitor literário, tendo em vista a
literatura como prática social, trazemos, a seguir, o referencial teórico que embasa os
encaminhamentos pedagógicos para essa abordagem.

Leitura literária e o contexto da Educação do campo


A escola é considerada o espaço democrático de leitura literária por excelência,
mas ela não exerceu essa característica durante muito tempo, uma vez que a formação
de leitores no Brasil caminhou a passos lentos, pois além de não haver material didático
suficiente, não havia a preocupação com o leitor e com a qualidade dos livros de
literatura destinados às crianças.
Embora, no final do século XIX, começassem a chegar ao público infantil algumas
obras que respondiam às exigências da fantasia e estimulavam a imaginação, eram
obras lidas na clandestinidade, uma vez que a escola prática e aplicada considerava-as
indesejadas, representando um impasse: “se a escola patrocinar leituras que atendam
apenas à imaginação a ao gosto, rompe o pacto educacional; se evitá-las, torna-se
detestável, sem impedir que as leituras prediletas continuem a se proliferar na
clandestinidade ou não. A escola, num caso, torna-se incompetente; no outro,
impopular” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1999, p. 231).
Assim, os educandos que tinham acesso a leituras, fora do âmbito escolar,
conseguiam a sua emancipação como leitor, já os que dependiam da escola como meio
para chegar à literatura, ficavam desprovidos dessa prática tão essencial na formação
do ser humano.
No que diz respeito à Educação do Campo, “historicamente, a educação esteve
presente em todas as Constituições brasileiras. Entretanto, mesmo o país sendo
essencialmente agrário, desde a sua origem, a educação rural não foi mencionada nos
textos constitucionais de 1824 e 1891” (PARANÁ, 2006, p. 17), denotando a concepção
de que a área rural era sinônimo de atraso e de exclusão social, por parte das políticas
públicas. Sendo que, segundo Leite (1999) (apud PARANÁ, 2006, p. 17),

(...) a sociedade brasileira somente despertou para a educação rural


por ocasião do forte movimento migratório dos anos 1910-1920,
quando um grande número de rurícolas deixou o campo em busca das
áreas onde se iniciava um processo de industrialização mais amplo.

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Desse modo, no início do século XX, na visão de alguns políticos e educadores,
a educação é que ajudaria a fixar o homem no campo e conter o movimento migratório,
“mas uma educação não somente “regionalizada” de acordo com os preceitos da Escola
Nova, assegurando sua eficiência e penetração, com uma educação especificamente
voltada para o meio rural e seus valores” (PAIVA, 2003, p. 137), caracterizando um
período chamado de pluralismo pedagógico.
Mais tarde surgiram a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos
(CEAA) e a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) que funcionaram entre o
final dos anos 40 e o início dos anos 60. As campanhas de Educação de Adultos se
estenderam apenas até a metade de 1960, mas não de maneira efetiva, quando surgiu
o Mobral, em 1970.
Nesse sentido, podemos perceber que a luta pela educação popular se fazia
presente, embora, muitas vezes, com objetivos ideológicos e políticos enviezados, pois,
enquanto a cidade se consolidava como modelo de referência de modernidade e de
progresso, o campo ainda representava o antigo e o rústico. Essas campanhas
educativas não tinham uma preocupação com um projeto educacional amplo e efetivo
que objetivasse a melhoria de vida, voltado para uma discussão dos reais problemas
desse contexto.
Com a chegada da década de 1980, houve um período de forte discussão e
retomada de consciência e de luta por uma educação para as classes populares,
embasada na teoria de Paulo Freire e na teoria da Libertação, com um projeto educativo
vinculado aos movimentos sociais populares. Essas discussões se fortaleceram,
acentuando o debate e aprovação da Constituição Federal de 1988 e da LDB, Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394/96, que passa a reconhecer a
diversidade no campo.
No entanto, os problemas relacionados à educação no meio rural continuavam,
com a falta de ações que favorecessem a adequação da escola à vida do campo, com
o currículo e a prática pedagógica que não contemplavam o contexto do campo, cuja
especificidade deveria nortear suas propostas. Mas a temática da Educação do Campo
vai ganhando notoriedade nas décadas seguintes, uma vez que é contemplada na LDB
de 1996, em que houve o reconhecimento da diversidade do campo, cuja concepção
deveria estar vinculada a um projeto que tivesse, como ponto de partida, o meio, no qual
esses povos vivem, sua cultura, seu modo de conviver e de pensar. A educação carecia
de entendimento a partir de suas necessidades reais, ou seja, ligada ao trabalho.

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Nessa perspectiva, o princípio educativo da educação do campo é a expressão
das necessidades humanas. Conforme Caldart (2000), “as pessoas se humanizam ou
se desumanizam, se educam ou se deseducam, através do trabalho e das relações
sociais que estabelecem entre si no processo de produção material de sua existência”.
E, ainda, segundo a autora, “em si mesmo o trabalho tem uma potencialidade
pedagógica, e a escola pode torná-lo mais plenamente educativo, à medida que ajuda
as pessoas a perceber o seu vínculo com as demais dimensões da vida: a sua cultura,
seus valores, suas posições políticas” (CALDART, 2000, p. 55-56).
Dessa maneira, podemos reconhecer que a perspectiva ideológica pensada para
a educação do campo está sustentada, tanto na perspectiva do Materialismo Histórico
Dialético, ou seja, numa proposta educacional que parta das relações do homem com
seu meio, com seu trabalho; como também na perspectiva educacional de Paulo Freire,
referência pedagógica das lutas pela educação dos movimentos sociais, na medida em
que ele propõe uma educação essencialmente dialógica, uma educação voltada para a
promoção da conscientização social e política de homens e mulheres, uma educação
de base realista.

Diretrizes Curriculares para a Educação do Campo do Paraná


A partir dessa perspectiva, as discussões em torno da Educação do Campo vão
ganhando força, sendo que, em 2006, após vários debates, foram elaboradas as
Diretrizes Curriculares da Educação do Campo, uma proposta curricular para as escolas
do campo, cujo espaço é ação de uma política pública que vem se concretizando no
Paraná e outros estados brasileiros. Esse documento curricular traz nas primeiras
páginas de seu texto, que se trata de “uma política pública pensada, mediante a ação
conjunta de governo e sociedade civil organizada e pelos sujeitos do campo” (PARANÁ,
2006, p. 9). O documento apresenta como pressupostos teóricos a tendência freireana
da pedagogia como prática libertadora e a concepção histórico-cultural, de Vygotsky,
baseada no Materialismo Histórico Dialético.
A fundamentação em Paulo Freire se destaca por sua contribuição ser oriunda
da Educação Popular, de práticas pedagógicas ligadas ao universo do aluno, a partir de
temas geradores. Uma educação que propicie ao indivíduo uma melhor compreensão
do mundo, desenvolvendo o seu senso crítico e a sua conscientização social e política,
uma educação de caráter humanizador.
Também pontuamos no documento as reflexões de Vygotsky acerca do
pensamento e linguagem, que enfatiza o caráter histórico e social na constituição da

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subjetividade do ser humano. É na interação com o outro, por meio da mediação
simbólica que o homem se forma e se transforma. Pensamos que a literatura é uma
dessas formas de mediação mais valiosas.
A perspectiva Histórico-cultural de Vygotsky influenciou a educação dos anos 80.
A partir dos estudos de Vygotsky, Saviani elaborou a Pedagogia histórico-crítica,
corrente que se consolidou nos anos 1980, de vertente progressista e que embasa tanto
o conjunto das Diretrizes Curriculares da Educação Básica quanto, particularmente, as
Diretrizes Curriculares da Educação do Campo, dada a tese do pensador de que “A
prática social, põe-se, portanto, como ponto de partida e ponto de chegada da prática
educativa” (SAVIANI, 2007, p. 420, apud PARANÁ, 2008, p. 45), o que coaduna com a
perspectiva transformadora, mesmo revolucionária, das DCEC. O objetivo é a educação
como formação integral do sujeito, baseada na prática social, para que o aluno relacione
esses saberes historicamente produzidos com a sua vida, com vistas a acrescentar
novas determinações ao seu conhecimento popular e espontâneo e, assim, exerça a
sua dignidade como cidadão consciente e crítico.

E o ensino de literatura?
Uma abordagem de ensino de literatura em sintonia com esses fundamentos
inclui obras literárias relacionadas ao contexto dos educandos, não só tematicamente,
mas obras que estejam no seu horizonte de expectativas, para utilizar uma terminologia
da Estética da Recepção. Como postulam Hidalgo & Mello (2012), “pensar em um
ensino que parta da realidade dos educandos para a compreensão de contradições e a
transformação da realidade é algo possível, viável”. Mas precisamos distinguir entre a
arte positivamente popular daquela popular no sentido de ser mais consumida, isto é, a
arte de massas. Também importa saber diferenciá-la da arte de costumes, regionalista
ou provinciana, uma arte populista.
Devemos estabelecer um critério qualitativo para a arte verdadeiramente popular,
“o critério qualitativo não pode ser senão a profundidade e riqueza com que a arte
expressa a vontade e as aspirações de um povo ou de uma nação numa fase histórica
de sua existência” (VÁZQUEZ, 1978, p. 302-303).
Tais considerações permitem analisar o ensino da literatura no contexto do campo
de maneira que atendam aos pressupostos das DCEC, com temas mais próximos do
contexto do estudante do campo, que dialoguem com eles.
Ressaltamos, que é preciso considerar a dimensão estética da obra literária que
vai além de uma simples vinculação à realidade particular, dado o seu caráter universal,

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histórico e humano, como disse Vázquez (1978). Nesse sentido, a leitura literária na
escola pode ser realizada de forma ampla, com obras que valorizem a cultura regional,
local, mas também e, sobretudo, obras de qualidade estética, incluindo as de cunho
universal.
No que concerne à escola do campo, cujo contexto é diferenciado, mas que não
exclui esses povos da sociedade global, pensar um ensino que limite o acesso desses
estudantes à produção literária universal, parece-nos contraditório.

O acesso à obra de arte é um direito de todo cidadão, inclusive aquela


produzida por autores de camadas sociais distintas do povo excluído
(pensemos no caso de Dostoiévski, Balzac, Shakespeare, Saramago,
Drummond, Borges...). Esses exemplos são significativos para pensar
que os fatores que influem na cultura e na identidade do povo do campo
não se restringem àqueles vivenciados nos “ambientes familiar,
comunitário e de trabalho”, tal como apontado, como ponto de partida,
nas DCEC (PARANÁ, 2006, p. 38), mas envolvem também outros,
provindos de setores da sociedade mais distantes, seja no âmbito
econômico, social, cultural, geográfico ou histórico. (HIDALGO;
MELLO, 2012, p. 8)

Esse público, por meio da arte literária, pode vivenciar experiências humanas
universais. A literatura “a todos humaniza, isto é, permite que os sentimentos passem
do estado de mera emoção para o da forma construída, que assegura a generalidade e
a permanência” (CANDIDO, 1995, p. 247-248). Ademais, a literatura é objeto construído
historicamente, tem caráter universal, portanto, diz respeito a todo ser humano.
Por isso, pensar num ensino de literatura na escola do campo é pensar em dar
acesso à literatura de caráter universal. O “objetivo da educação literária, em primeiro
lugar, é o de contribuir para a formação da pessoa” (COLOMER, 2007, p. 31). E esse
objetivo só é alcançado mediante a apropriação das obras pelos alunos.
Ao analisarmos também as Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa do
Paraná (DCLP), cujos pressupostos também norteiam o ensino na escola do campo,
verificamos que estas propõem, referente à abordagem com a linguagem, a
fundamentação teórica centrada nos estudos de Bakhtin, que traz relevante contribuição
para os estudos da linguagem, em que valoriza as relações dialógicas entre leitor e
texto, a linguagem como prática social; e para o trabalho com a literatura, as DCLP
propõem uma abordagem centrada na Estética da Recepção, de Jauss (1994) e Iser
(1996).
Os pressupostos teóricos da Estética da Recepção e da Teoria do Efeito, de Iser,
sugeridos nessas Diretrizes, norteiam o enfoque para o ensino de literatura na escola,
buscando formar um leitor capaz de sentir e de expressar o que sentiu, com condições

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de reconhecer, nas aulas de literatura, um envolvimento de subjetividades, por meio de
uma interação que está presente na prática da leitura. A escola, portanto, deve trabalhar
a literatura em sua dimensão estética (PARANÁ, 2008, p. 58).
Percebe-se, assim, no documento, uma relevante contribuição para o ensino da
literatura na escola, ao considerar a Estética da Recepção como aporte teórico que
valoriza o papel do leitor na recepção da do texto literário.
A partir dessa perspectiva, como encaminhamento metodológico, o documento
apresenta o Método Recepcional, elaborado por Bordini & Aguiar (1988). Dessa
maneira, a abordagem com o texto vai servir, a partir dos interesses do sujeito leitor,
como forma de motivá-lo à leitura, sem deixar, é claro, de propiciar outras leituras de
caráter mais universal, durante a sua formação leitora.
Esse método pode ser uma das vias para o professor trabalhar com o texto
literário, em sala de aula, mas a sua realização efetiva, muitas vezes, se torna utópica,
por haver muitos fatores que dificultam a sua prática, principalmente a questão do
tempo, pois, com uma grade curricular de duas ou três horas-aula semanais de Língua
Portuguesa para o Ensino Médio, e com um currículo que precisa abranger a
diversidade de gêneros textuais e desenvolver no aluno a competência comunicativa e
a produção textual, torna-se difícil levar o aluno à ruptura do seu horizonte de
expectativas, como também à expansão de suas leituras.

Cuidados com o pragmatismo da leitura


A própria Regina Zilberman (2009) pensa que hoje “a escola parece prescindir da
literatura, de modo que, para recuperar o status anterior ou superá-lo, é preciso
encontrar algum significado para a presença da literatura da escola; ou então outra
escola que aceitasse a literatura condizente com o formato que adotou no decorrer do
tempo”. E para responder à primeira questão, ela propõe:

Na escola de hoje, o ensino da literatura sobreviverá somente se


assumir sentido pragmático e profissional. Ao dirigir-se ao aluno
originário dos grupos menos favorecidos da sociedade, deve deixar
claro que lhe cabe absorver o conhecimento das camadas dominantes
para disputar seus lugares em condições de igualdade. A literatura
apresenta-se como um desses saberes práticos que o habilitam ao
ingresso qualificado nas melhores universidades, nos melhores
empregos, nos melhores segmentos da sociedade. Com isso, abre
mão da aura que lhe legou a tradição; porém, recupera a posição que
já deteve, dirigindo-se agora às classes populares, não aos núcleos
ligados ao poder. (ZILBERMAN, 2009, p. 19)

Segundo a autora, a escola que atende alunos menos favorecidos, cujo acesso
à obra literária se dá, na maioria das vezes na escola, precisa apresentar a literatura a
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esses estudantes como um saber essencial para o seu crescimento cultural, viabilizando
a eles o acesso à leitura das obras literárias de valor estético. Entretanto, o que a escola
tem feito, a julgar pela abordagem da literatura que os livros didáticos para o Ensino
Médio trazem, é ainda valorizar a historicidade e a periodização das obras, deixando de
lado o caráter estético do texto. Dessa forma, nega ao aluno a experiência estética
proporcionada pela leitura efetiva do literário.
É primordial que a literatura faça parte da vida do estudante, mas numa
perspectiva da leitura humanística, de modo que contribua para a sua formação humana
e social, para que ele possa ter acesso às melhores universidades, aos melhores
empregos, sem que a literatura, contudo, adquira um sentido pragmático, utilitário.
Tais considerações permitem analisar o ensino da literatura, no contexto do
campo, de maneira que atendam aos pressupostos das DCEC, que preveem a cultura
voltada para a práxis. Nessa perspectiva, o trabalho com a literatura, em situações de
ensino, precisa estar no âmbito do horizonte de expectativas dos educandos, o que não
significa envolver necessariamente temas relacionados ao contexto do aluno do campo,
mas sim que esses temas dialoguem com eles, de alguma forma, que façam sentido
para os educandos. Incluindo, assim, nessa seleção de temas, as obras canônicas, e
não excluindo as obras da cultura de massa.
Daí a importância do papel mediador dos educadores e da escola, de uma
maneira geral, pois há um percurso para chegar à leitura de textos mais complexos,
considerando a dimensão estética da obra literária, que vai além de uma simples
vinculação à realidade particular, dado o seu caráter universal e humano. Como
consequência da experiência estética, há um crescimento intelectual do aluno,
favorecendo sua competitividade na sociedade, como propõe Zilberman (2009).
As Diretrizes Curriculares para a Educação Básica – Língua Portuguesa do
Paraná inovaram ao trazer como aporte teórico a Estética da Recepção, uma
perspectiva de ensino em que se valoriza a história do leitor, a sua recepção do texto
literário. No entanto, na escola que se configura hoje, torna-se difícil articular a leitura
literária com propostas que tenham a participação ativa do aluno-leitor ou que façam
emergir a sua subjetividade com todas as outras práticas pedagógicas concretas no
cotidiano da sala de aula real, relacionadas a um planejamento que precisa dar ênfase
aos conteúdos pragmáticos, preparar o aluno para ler a diversidade de textos de caráter
utilitário, e, ainda, preocupar-se com a cobrança das avaliações externas.

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Desse modo, concordamos com Zilberman, que a leitura literária continua
ausente na escola, que é preciso resgatar seu lugar, nas salas de aula, instituindo, como
princípio do ensino de literatura, a leitura literária como autêntica prática social.

Ensinar a ler, ensinar a compreender


Mas, para que o aluno efetivamente chegue a essa prática social da literatura, é
preciso ensiná-lo a ler literatura. Em “A formação do leitor literário”, Colomer (2002)
ressalta que “o estudo formal da literatura parece igualmente essencial para a educação
literária, já que a possibilidade de aceder a este tipo de comunicação depende do
domínio das convenções implícitas, que governam o pacto entre autor e leitor”.
Desse modo, há a reafirmação de que há a necessidade de o leitor conhecer
aspectos relacionados à linguagem literária, bem como aspectos formais do texto,
convenções de gênero, devido a sua importância para a compreensão leitora. Ela ainda
acrescenta que “mais recentemente outros autores renovaram a defesa anterior da
atenção às características formais dos textos, ainda que a partir do uso da literatura
infantil e juvenil no ensino” (COLOMER, 2002, p. 136).
A função formativa pode e deve ser utilizada para a aquisição explícita das
convenções literárias, desde o ensino da literatura infantil, já que é importante para as
crianças o conhecimento das convenções literárias, que contribui para a sua
competência leitora. Mas não se pode esquecer do objetivo maior, a experiência estética
com a leitura literária.
Sendo assim, pode-se dizer que as práticas de leitura literária, na escola do
campo, devem ter as suas especificidades quanto à metodologia utilizada, o que implica
em um planejamento que inclui a seleção prévia dos textos e um itinerário de leitura
significativo para os educandos, com práticas de leitura compartilhada, daí a relevância
da mediação do professor para uma aprendizagem social e afetiva da leitura
(COLOMER, 2007).

Considerações finais
Para propor a presente reflexão, acerca do ensino de literatura na escola do
campo, foi relevante conhecer o contexto da Educação do Campo, o percurso de sua
construção, como também buscar uma fundamentação teórica relevante, baseada nas
perspectivas interacionistas da linguagem e nos pressupostos da Estética da Recepção,
referenciais das Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa, documento que também
é norteador da prática pedagógica para o ensino de literatura na Educação do Campo,

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inclusive porque, no Paraná, são basicamente os mesmos professores da Rede Básica
do meio urbano que atuam nessa modalidade de ensino.
Devido à especificidade da Educação do Campo, tanto em relação ao meio
quanto em relação aos seus sujeitos, suas práticas de ensino precisam ser distintas.
Entendemos, com isso, que as práticas de leitura literária devem considerar a
singularidade dos sujeitos do campo, que têm a escola como um dos meios
privilegiados, senão o único meio de acesso ao livro, devido à sua condição econômica,
ao seu espaço geográfico e, ainda, à ausência da leitura em casa. Essas
particularidades precisam ser consideradas quando se pensa nas práticas de leitura
literária, iniciando pela escolha das obras, a sua mediação e o itinerário de leitura do
aluno.
As obras devem estar relacionadas às subjetividades desses indivíduos para que
eles possam dialogar com a leitura e para que ela faça sentido para eles. E assim eles
podem ir construindo o seu repertório de leitura e o seu percurso literário, partindo
daquilo que lhes é mais familiar, com obras que Jauss chama de conformadoras, para
experiências mais desafiadoras ou libertadoras.
É consenso que o modelo tradicional de ensino de literatura, focado na
historiografia literária, com fins imediatistas, em que a leitura prepara apenas para o
vestibular ou para a melhoria da capacidade linguística, verificando somente aspectos
cognitivos do aluno, não contribui para a sua formação leitora. Em lugar disso, o que se
propõe é a mediação de leitura centrada na sedução do leitor, com uma seleção de
corpus conforme os seus interesses, e uma leitura que lhe permita vivenciar a
experiência estética.
Acreditamos que a literatura como objeto estético construído historicamente pelo
homem, com seu poder edificador e humanizador, como bem disse Candido (1995),
deve ser componente básico do currículo escolar de todos os educandos, tanto do meio
urbano quanto do campo, por meio de práticas efetivas de leitura, não reduzidas ao
pragmatismo ou ao ensino imediatista, mas sim, de modo a propiciar a leitura literária
como efetiva prática social, guardadas as especificidades de cada modalidade de
ensino.

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A MEDIAÇÃO DE LEITURA NA BIBLIOTECA ESCOLAR COMO
UMA AÇÃO NA PROMOÇÃO DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Thayná Marracho Marques, Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de


Janeiro – CAp-UFRJ

Eixo Temático: Os espaços de leitura literária

Considerações iniciais
Ler é cuidar-se rompendo com as grades do
isolamento. Ler é evadir-se com o outro, sem
contudo perder-se nas várias faces da palavra. Ler
é encantar-se com as diferenças.
Bartolomeu Campos de Queirós

Este artigo tem por objetivo ressaltar a importância da leitura mediada na


biblioteca escolar como uma estratégia pedagógica inclusiva. Portanto, analisaremos
uma experiência de leitura mediada realizada por uma professora de Educação Especial
em parceria com a Biblioteca escolar da referida escola.
É importante ressaltar que tal experiência se passa no Colégio de Aplicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp-UFRJ) que desde 2017 trabalha numa
perspectiva de ensino colaborativo como forma de atendimento aos estudantes público-
alvo da Educação Especial. Na ocasião, a leitura mediada na biblioteca escolar da
referida escola ocorreu para três turmas do segundo ano do primeiro segmento ensino
fundamental, que possuíam dois estudantes público-alvo da educação especial. Cabe
contextualizar que em 2019 é criado na instituição o Núcleo de Educação Especial e
Inclusiva para a organização do trabalho de atendimento aos estudantes público-alvo
da educação especial, e no final do mesmo ano, ingressam as primeiras professoras
efetivas de educação especial para a institucionalização do referido Núcleo.
Nesse contexto, como parte do nosso problema de pesquisa se configura em
buscar compreender as noções das crianças sobre deficiências e sobre o Transtorno do
Espectro Autista (TEA) a partir da ação de leitura mediada na biblioteca escolar. Tão
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ação foi desenvolvida pelo fato de que no ano seguinte, as três turmas se
transformariam em duas, de acordo com a organização escolar e do segmento.
Portanto, como parte das ações realizadas pela equipe pedagógica visando a
organização dessa transição, uma professora de educação especial em parceria com a
biblioteca escolar, desenvolveram essa ação de leitura mediada que ocorreu em um
tempo de aula, gentilmente cedido pela equipe de professoras (es) da referida série.
Entendendo a biblioteca escolar como um “dispositivo de informação e cultura”
(Ferraz, 2008), buscaremos investigar a partir da ação da leitura mediada numa
perspectiva inclusiva as noções de um grupo de crianças do segundo ano do ensino
fundamental sobre deficiências e o Transtorno do Espectro Autista (TEA) entendendo a
potência desse ambiente no acesso a informação e construção do conhecimento.
Desta forma, como metodologia para tal investigação, utilizaremos a pesquisa
intervenção (THIOLLENT et all, 2016) e da pesquisa com crianças (PEREIRA, 2015)
entendendo a pesquisa, numa perspectiva Bakthiniana, como um acontecimento onde
sentidos, valores e concepções entram em disputa e negociação. E para tratar sobre a
leitura mediada como estratégia pedagógica inclusiva, nos fundamentaremos nos
pressupostos de Solé (apud Ferraz, 2008) sobre as etapas da leitura mediada, assim
como a importância e o potencial pedagógico nessa ação no ambiente escolar.
Diante do exposto, entendemos a inclusão em educação como um processo
permanente e dialógico, acreditamos que para construir uma escola inclusiva é
necessário que toda a comunidade (estudantes, professores, funcionários, familiares e
outros) esteja envolvida nesse processo, buscando promover assim a valorização das
diferenças no ambiente escolar na construção de práticas e culturas inclusivas.

A leitura mediada na biblioteca escolar numa perspectiva inclusiva


O Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp-UFRJ)
vem organizando o seu trabalho de atendimento aos estudantes público-alvo da
educação especial uma perspectiva do ensino colaborativo desde 2017. Em 2019 é
criado o Núcleo de Educação Especial e Inclusiva na instituição, e no final do mesmo
ano, ingressam à instituição as primeiras professoras de educação especial tendo como
principal objetivo a institucionalização do referido Núcleo.
Nesse sentido, cabe citar nosso entendimento por ensino colaborativo como:

um dos modelos de prestação de serviço de apoio no qual um


professor comum e um professor especializado dividem a
responsabilidade de planejar, instruir e avaliar o ensino dado a um
grupo heterogêneo de estudantes. (...) Assim o termo “Ensino

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Colaborativo” é definido como uma parceria entre os professores do
ensino regular e especial, desde que os dois professores se
responsabilizem e compartilhem o planejamento, a execução e a
avaliação de um grupo heterogêneo de estudantes dos quais alguns
possuem necessidades educacionais especiais. (MENDES;
VILARONGA; ZERBATO, 2014, p. 45-46).

Portanto, tal modelo prevê a atuação de um professor do ensino comum e um professor


da educação especial em atuação conjunta, compartilhando as responsabilidades do
fazer docente em um grupo heterogêneo de estudantes. Entendemos que a adoção de
tal concepção de atendimento aos estudantes público-alvo da educação especial está
diretamente ligado a uma perspectiva que, sobretudo, convoca a participação de toda a
comunidade escolar no envolvimento com a construção de práticas inclusivas, pois
entendemos que tal dimensão por estar pautada numa dimensão colaborativa e numa
perspectiva da inclusão, certamente extrapola a relação entre os professores do ensino
comum e dos professores da educação especial, transbordando assim para toda a
comunidade escolar a responsabilidade no processo educativo desses estudantes.
Nesse sentido, para que todos os profissionais da escola se envolvam, é preciso
que os mesmos tenham clareza dos preceitos que envolvem a construção da inclusão
escolar. Desta forma entendemos que:

Todos os profissionais que trabalham no sistema de ensino, incluindo


a gestão administrativa, devem ter clareza dos princípios da inclusão
escolar e estar de acordo em coloca-los em prática, caso contrário, é
inevitável o fracasso dos alunos público-alvo da Educação Especial,
ocorrendo uma destruição em cadeia que se inicia no topo da pirâmide
escolar, ou seja, surgiria como uma não ação e retirada de
responsabilidade da direção e, por consequência, um
descomprometimento dos professores e funcionários (MENDES;
VILARONGA; ZERBATO, 2014, p. 33).

A partir desse panorama podemos afirmar que a Biblioteca do Colégio de Aplicação da


UFRJ cumpre um importante papel na construção do processo de inclusão escolar na
referida instituição, pois suas bibliotecárias e bolsistas são comprometidas e estão
sempre preocupadas com as questões referentes ao processo educativo dos
estudantes público-alvo da educação especial.
Entendemos a biblioteca como espaço de extrema relevância, pois esse
ambiente pode promover ações que objetivem a formação de leitores através do acesso
ao acervo de livros e da disseminação da informação através de rodas de leitura,
contações de histórias e eventos literários.
Desta forma, desejamos nos ater aqui aos eventos que tem como objetivo a ação
de leitura mediada. Segundo Ferraz (2008, p. 14-15) o trabalho de leitura mediada

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“apoia-se numa tríade, que tem como eixos: o professor como modelo de leitor, as ações
do professor para realizar a leitura mediada e a biblioteca como dispositivo pedagógico
facilitador”. Sendo assim, focaremos nas etapas de leitura mediada advogadas por Solé
(1998 apud Ferraz 2008) que são elas ”a situação educativa como um processo de
construção conjunta, por meio do qual professor e seus alunos podem compartilhar
progressivamente sentidos mais amplos e complexos”, “a função de guia que o
professor exerce, à medida que ele estabelece o elo entre a construção que o aluno
pode realizar e as construções socialmente estabelecidas”, e por fim “processos de
andaime para explicar o papel do ensino com relação a aprendizagem do aluno”.
A partir de tais pressupostos, ressaltamos a importância da leitura mediada como
importante ação promovida no âmbito do ambiente escolar, e mais especificamente na
biblioteca escolar, pois tal ação promove suporte a aquisição de leitura, fomenta a
formação de novos leitores, auxilia na concentração, pode funcionar como uma ação de
sensibilização a determinado tema, estimula a competência leitora, entre outros
(FERRAZ, 2008).

Já a mediação de leitura numa perspectiva inclusiva tem por objetivo a inclusão


de todos os estudantes no acesso ao conhecimento, independente da necessidade
educacional especifica que esse estudante possua. A partir disso, é importante pensar
na eliminação de barreiras para o pelo acesso deste estudante a informação e ao
processo de leitura mediada, como por exemplo: organização de um espaço acessível,
utilização de tecnologias assistivas como cartões de comunicação alternativa ampliada
(CAA), uso de dispositivos tecnológicos como aplicativos e outros, visando a plena
participação dos estudantes público-alvo na educação especial nas ações de leitura
mediada promovidas no ambiente escolar, ou na biblioteca escolar.

Metodologia
Como metodologia neste trabalho optamos pela pesquisa-intervenção buscando
assim a construção de um momento durante a realização da pesquisa que propiciasse
trocas de forma horizontal entre pesquisadora e pesquisados (PEREIRA, 2012). Cabe
ressaltar que reconhecemos que pesquisar implica em disputas de sentidos e, ao
optarmos por tal metodologia, entendemos como de extrema relevância nesse processo
e de igual importância, a intervenção do pesquisador e das (os) pesquisadas (os),
admitindo tais processos como norteadores importantes nos caminhos da pesquisa.
Portanto, a pesquisa-ação também pode ser compreendida como:

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um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e
realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução
de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os participantes
representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo
cooperativo ou participativo. (THIOLLENT, PICHETH, E CASSANDRE
2016 apud THIOLLNET, p. 5)

Desta forma, a pesquisa-ação compreende que a tomada de ações do


pesquisador e do pesquisado são igualmente relevantes para a pesquisa, sendo
importante os dados e/ou o percurso no qual os caminhos apontados por esses atores
indiquem, buscando assim a construção de caminhos de pesquisa de forma horizontal
e cooperativa.
Portanto, optar pela metodologia de pesquisa-intervenção em conjunto com os
preceitos da pesquisa com crianças (PEREIRA, 2012) buscamos não apenas fomentar
que os participantes da pesquisa se envolvam em uma mera coleta de dados, e sim em
uma pesquisa que também tem como objetivo semear questões nos participantes
fazendo-os refletir no processo de construção de conhecimento de forma crítica e
coletiva.
Além disso, mais especificamente sobre a metodologia de pesquisa com
crianças, cabe ressaltar que adotar tal concepção implica em reconhecer a criança como
produtora de cultura, e também enquanto sujeito histórico e crítico, além de coautor ativo
durante a construção dos caminhos do processo de pesquisa, assim como as autoras
Flores, Macedo, Santos e Pereira (2016) postulam:

a ideia de uma metodologia de pesquisa-intervenção ‘com’ crianças


implica o reconhecimento destas enquanto interlocutoras e autoras do
processo, na medida em que as suas respostas e ações interferem nos
destinos da pesquisa.” (FLORES, MACEDO, SANTOS e PEREIRA,
2012, p.46).

A Leitura mediada na biblioteca a partir da leitura do livro “O menino só”


A o início do funcionamento da biblioteca do Colégio de Aplicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro data de setembro de 1958, contudo, após um
período desativada, retoma suas atividades em 1993232. Atualmente, a biblioteca escolar
do CAp-UFRJ conta com três bibliotecárias e suas respectivas bolsistas que
desenvolvem diversos projetos ao longo do ano letivo.

232
http://cap.biblioteca.ufrj.br/index.php/historico-da-biblioteca
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Cabe ressaltar que esse espaço além de formador de estudantes críticos,
também cumpre a missão de uma biblioteca escolar advogada pela International
Federation of Library Association (IFLA) e UNESCO que postula:

A biblioteca escolar promove serviços de apoio à aprendizagem e livros


aos membros da comunidade escolar, oferecendo-lhes a possibilidade
de se tornarem pensadores críticos e efetivos usuários da informação,
em todos os formatos e meios. (IFLA/UNESCO, 1999, p. 1)

A biblioteca do CAp-UFRJ além de promover os objetivos elencados acima,


desenvolve diversos eventos e ações como a semana da Biblioteca, a campanha
#LendoJuntos, oficinas temáticas, entre outros. Inclusive a biblioteca recebeu em 2019
o prêmio “Paulo Freire” da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ)
na categoria “Experiência Pedagógica na Modalidade Educação Especial, a Biblioteca
do Colégio de Aplicação da UFRJ”, com o projeto “XV Semana da Biblioteca do CAp
UFRJ: ações de mediação da leitura inclusiva e acessível”233. O trabalho da biblioteca
também pode ser acompanhado através do seu boletim informativo mensal 234, e do
instagram.235
No ano de 2019, diante do contexto das turmas do segundo ano do ensino
fundamental que no ano letivo de 2020 se tornariam duas, a equipe pedagógica da série
planeja diversas ações para que essa transição fosse feita com muito cuidado e
atenção. Cabe ressaltar que uma das três turmas não possuíam estudantes público-
alvo da educação especial. Por isso a importância de ações que promovessem a
discussão sobre deficiências e valorização das diferenças.
Portanto, uma das bibliotecárias e uma professora de educação especial
resolvem realizar uma ação de leitura mediada a partir da leitura do livro chamado “O
menino só” da autora Andrea Viviana Taubman. Tendo sua primeira edição publicada
em 2015 pela editora Escrita Fina, o livro possui 32 páginas e conta com as ilustrações
da Anielizabeth. No site da autora236 consta a seguinte informação sobre o livro:

“Um menino só/nasce em qualquer lugar”. O livro aborda em versos o


complexo e pouco conhecido mundo das crianças autistas, com maior
foco nas que têm Síndrome de Asperger. Com belíssimas ilustrações
de Anielizabeth e 4ª capa amorosamente escrita por Paulo Scott, a
obra busca levar conscientização aos corações e mentes dos leitores,
reforçado pelo texto de apoio para esclarecimento direcionado a pais e

233
https://www.sibi.ufrj.br/index.php/inicio/262-biblioteca-do-cap-ufrj-recebe-premio-paulo-freire-
da-alerj
234
http://cap.biblioteca.ufrj.br/index.php/boletim-informativo
235
Instagram.com/bibliotecacapufrj
236
https://www.andreavivianataubman.com.br/o-menino-so
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professores e pictograma dos principais sintomas do TEA (transtorno
do espectro autista). Há muitos meninos sós no mundo. Apenas no
Brasil, estima-se que sejam em torno de dois milhões. Os meninos e
as meninas sós podem apresentar comportamentos similares, mas
cada um deles possui um universo emocional e psíquico próprio.
(TAUBMAN, 2020)

O referido livro aborda o mundo de crianças com Transtorno do Espectro Autista


(TEA) com muita sensibilidade. E diante do contexto vivido pelo segundo ano do ensino
fundamental, uma das bibliotecárias junto com uma professora de educação especial
da referida série resolvem promover tal evento de leitura mediada. Tal parceria se
mostra profícua pois:

Está comprovado que bibliotecários e professores, ao trabalharem em


conjunto, influenciam o desempenho dos estudantes para o alcance de
maior nível de literacia na leitura e escrita, aprendizagem, resolução de
problemas, uso da informação e das tecnologias de comunicação e
informação. (IFLA/UNESCO, 1999, p. 2).

Para organizar tal dinâmica, a professora e uma das bibliotecárias se reuniram


para planejar como seria realizada a atividade de mediação de leitura. Após a leitura do
livro, a partir do trecho “O menino só, Olhando para o céu, observando as estrelas,
desejando ser seu pó” (TAUBMAN, 2015, p. 3) foi definida que após a contação da
história, a dinâmica seria dividida em três momentos: Num primeiro momento seria feita
a leitura do livro. Em seguida, realizaríamos uma discussão com as crianças sobre o
livro com uma apresentação visual de figuras e trechos do livro, que seriam projetadas.
E no terceiro momento, como atividade final, pensando na valorização das diferenças e
a partir do referido trecho do livro, cada criança receberia um papel em formato de
estrela para colorir como desejasse. Em seguida, as crianças colariam as estrelas em
um tecido, formando assim o céu de cada turma.
Cabe ressaltar que as bibliotecárias e bolsistas, assim como fazem em todos os
projetos promovidos nesse espaço, prepararam o ambiente de forma aconchegante e
acolhedora para esse momento de leitura mediada com as crianças. Entendendo a
importância da preparação desse ambiente de forma acolhedora e atrativa como fator
importante na ação de leitura mediada, oportunizando assim um local que fomente a
formação de leitores críticos e interessados sobretudo pelo ato de ler.
As sessões de leitura mediada para as três turmas do segundo ano do ensino
fundamental aconteceram no mês de outubro de 2019. Cada turma participou de um
encontro que foi direcionado a cada uma das turmas, em tempos gentilmente cedidos
por professores das disciplinas da série. Cabe mencionar que as discussões que
compreendem ao segundo momento, no qual foi realizada a discussão sobre o livro,
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foram registrados por fotos e por vídeos. A dinâmica realizada com as turmas foi a
mesma, e cada ação de leitura mediada durou, por volta de 50 minutos, referente a um
tempo de aula.
O momento da discussão que antecedia a realização da atividade final se
mostrou muito produtivo pois, realizamos ali uma roda de conversa onde as crianças
puderam se expressar sobre o tema proposto a partir da leitura da história. Falas sobre
respeito as diferenças, dúvidas sobre deficiências e sobre o Transtorno do Espectro
Autista (TEA), e relato de experiências pessoais estiveram presentes nesse momento
que foi muito enriquecedor.
Após essa roda de discussão, os grupos foram orientados a pintar sua estrela
da forma como quisessem. Em seguida, era estendido um tecido com o título “Céu da
turma” com o número da referida turma, e explicávamos que assim que cada um
terminasse de decorar a sua estrela, que deveriam colocar a mesma nesse tecido onde
desejassem. Antes de colar, com os estudantes ainda em roda, foi pedido para que
todos olhassem a configuração do céu de sua turma. E com isso o grupo observava
muitas questões relevantes e peculiares a cada grupo a partir da dinâmica realizada.
Comentários sobre o número de estrelas, formas de colorir, distância e proximidade
entre as estrelas, e a organização de cada turma na montagem do seu próprio céu.
No final, depois de colarem suas estrelas, todos puderam observar como ficou o
céu de cada turma. E em seguida, e aproveitamos o momento para retomar os pontos
que foram discutidos ao longo da leitura mediada e da roda de conversa, trechos do
livro que se relacionavam com as falas das crianças ao longo da dinâmica.
Pudemos perceber ao longo da realização da leitura mediada diversas situações
interessantes: alguns estudantes trouxeram seus conhecimentos prévios sobre
diferenças e deficiências, inclusive relatando experiências pessoais vividas fora do
ambiente escolar. Dúvidas também surgiram, dentre elas sobre o Transtorno do
Espectro Autista e algumas de suas características. Foi interessante perceber que
nesse momento o debate se intensificou, e várias crianças responderam algumas
perguntas ou trouxeram informações relevantes para o debate, o que certamente
enriqueceu esse momento de construção de conhecimento de forma coletiva e
horizontal.
A partir dessa experiência, pudemos compreender que as noções sobre o
Transtorno do Espectro Autista das crianças das três turmas foram ampliadas. Com
isso, discutimos também a importância do respeito e da valorização das diferenças na
nossa escola e sociedade a partir de todos as diferenças que todos apresentam, pois

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afinal, assim como as estrelas da nossa dinâmica, todos nós somos diferentes, mas ao
mesmo tempo temos muito em comum. Contudo, julgamos importante compreender que
a educação em uma perspectiva inclusiva abrange também a discussão de outros temas
relevantes, como por exemplo questões de raça, gênero e questões sociais. Nesse
sentido, Mantoan (2003, p. 28) afirma que:

A inclusão implica uma mudança de perspectiva educacional, pois não


atinge apenas alunos com deficiência e os que apresentam
dificuldades de aprender, mas todos os demais, para que obtenham
sucesso na corrente educativa em geral (MANTOAN, 2003)

Portanto, tal experiência se mostrou profícua no que se refere a construção de


uma escola mais inclusiva pois durante essa ação de leitura mediada os estudantes
puderam discutir e ampliar suas noções não apenas sobre o Transtorno do Espectro
Autista, como também da valorização e do respeito às diferenças, entendo também que
eles são agentes de construção de uma escola mais inclusiva. Desta forma, assim como
Mantoan (2003) postula torna-se indispensável compreender que:

Se o que pretendemos é que a escola seja inclusiva, é urgente que


seus planos redefinam para uma educação voltada à cidadania global,
plena, livre de preconceitos, que reconhece e valorize as diferenças
(MANTOAN, 2003, p. 24)

Figura 1 - Biblioteca do CAp-UFRJ no dia da Leitura mediada do


Figura 2 - Notícia da leitura mediada do livro “O menino só” da
Livro "O menino só" da autora Andrea Taubman.
autora Andrea Taubman no Boletim Informativo da Biblioteca
do CAp-UFRJ de outubro de 2019. Disponível em:
http://cap.biblioteca.ufrj.br/images/PDF/Boletim-Informativo-
1375 da-Biblioteca-Outubro-2019.pdf.

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Considerações finais
Buscamos nesse trabalho, entender a partir de uma ação de leitura mediada na
biblioteca escolar do Colégio de Aplicação da UFRJ (CAp-UFRJ) as noções das
crianças sobre deficiências e sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Nesse
contexto, podemos afirmar que a ação de leitura mediada na biblioteca escolar pode ser
considerada como estratégia pedagógica inclusiva, tendo em vista seus benefícios na
formação dos estudantes, na ação colaborativa promovida pela parceria entre biblioteca
escolar e professora de educação especial, e também como ação que associada a
ferramentas que tenham por objetivo a remoção de barreiras (como as Tecnologias
Assistivas) todos os estudantes poderão ter acesso a conhecimento acadêmicos
propostos com tal ação.
Por fim, nesta experiencia pudemos promover uma importante discussão sobre
temas como diferenças, deficiências respeito à diversidade, e com isso constatamos
que os conhecimentos dos estudantes sobre tais temas se ampliaram, demonstrando
assim que conhecimentos foram construídos ao longo da realização dessa dinâmica.

Referências bibliográficas
BAPTISTA, Renata Lucia Flores; MACEDO, Nélia Mara Rezende; SANTOS, Núbia de
Oliveira; Pereira, Rita Marisa Ribes. Encontrar, compartilhar e transformar: reflexões
sobre a pesquisa-intervenção com crianças. In Infância em pesquisa. Rio de Janeiro:
Editora Nau, p. 38-50, 2012.

FERRAZ, Marta Maria Pinto. Leitura Mediada na biblioteca escolar: Uma experiência
em escola pública. Dissertação de mestrado em Ciência da Informação. Programa de
Pós-graduação em Ciência da Informação da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.

INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY ASSOCIATION (IFLA). UNITED


NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANZATION
(UNESCO). Manifesto IFLA/UNESCO para biblioteca escolar. 1999. Disponível em:
http://archive.ifla.org/VII/s11/pubs/portuguese-brazil.pdf. Acesso em: 01 ago. 2020.

MANTOAN, Maria Tereza Eglér. Inclusão escolar: O que é? Por quê? Como fazer? 1ª
Edição. São Paulo: Editora Moderna, 2003.

MENDES, Enicéia Gonçalves; VILARONGA, Carla Ariela Rios, ZERBATO, Ana Paula.
Ensino Colaborativo como Apoio à Inclusão Escolar. Unindo Esforços entre Educação
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PEREIRA, Rita Marisa Ribes. Pesquisa com crianças. In: PEREIRA, R. M. R.;
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PEREIRA, Rita Marisa Ribes. Por uma ética da responsividade: Exposição de


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QUEIRÓS, Barolomeu Campos de. O Livro é Passaporte, é Bilhete de Partida. In:
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THIOLLENT, Michel Jean Marie; PICHETH, Sara Fernandes; CASSANDRE, Marcio


Pascoal. Analisando a pesquisa-ação à luz dos princípios intervencionistas: um olhar
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BIBLIOTECÁRIO O CAPITAL HUMANO QUE FOMENTA A
LEITURA LITERÁRIA NOS ESPAÇOS DE APRENDIZAGEM

Simone Lopes Dias, Serviço Social da Indústria – SESI/SP


Andrea Ribeiro Ramos, Serviço Social da Indústria – SESI/SP

Eixo Temático: Grupo 9: Os espaços de leitura literária

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em virtude de vivermos em um mundo em constantes mudanças e
transformações, inundados por dados e supervias de informações a apenas um click de
distância, alterando a dinâmica das relações e as identidades dos sujeitos, fenômeno
típico da globalização e cujas características de acordo com Menino (2014, p.33-34)
são:

a) a liberalização dos mercados;


b) desregulamentação das atividades econômicas;
c) reestruturação do Estado de Bem-Estar Social;
d) inovação tecnológica acelerada especialmente das tecnologias
de informação e comunicações;
e) queda das fronteiras, menos para os trabalhadores pouco
especializados;
f) volatilidade das posições e conceitos na economia;
g) concentração por meio de redes de cooperação, open innovation
e alianças estratégicas entre as empresas;
h) cultura global direcionada pelos países mais ricos, tornando-se
a cultura bem econômico;
i) acordos multilaterais de resguardo da propriedade do
conhecimento.

Deste modo, tem-se que as relações entre os indivíduos e as comunidades vão


se alterando continuamente e indefinidamente, conforme a movimentação das ondas de
informações que perpassam os seres humanos, e que segundo Delors (2012) é
característica da atualidade, já que “essa livre circulação de imagens e de palavras que
prefigura o mundo de amanhã”, constitui-se como sustentáculo da atualidade.
Ademais, o indivíduo para participar de forma crítica e efetiva desta Sociedade
do Conhecimento necessita “de conhecimento e reflexão sobre os processos de

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aquisição, sobre como filtrarem melhor a informação que desejam”, segundo Stocker
(2011, p. 15), pois “a educação tem um papel importante a desempenhar, se se quiser
dominar o desenvolvimento do entrecruzar de redes de comunicação” de acordo com
Delors (2012).
Ratificado por Menino (2014, p. 30) ao afirmar que “a informação e o
conhecimento passaram a ser elementos primordiais” da civilização.
Corroborado por Cortela (2016, p.109) ao afirmar que:

reafirmemos uma questão básica: se o conhecimento é relativo à


história e à sociedade, ele não é neutro; todo conhecimento está úmido
de situações histórico/ sociais; não há conhecimento absolutamente
puro, ascético, sem nódoa. Todo conhecimento está impregnado (ou,
com sotaque italiano, emprenhado) de história e sociedade, portanto,
de mudança cultural.

Deste modo, tem-se a comunicação na esfera principal de mobilização do ser


perpassado pelo conhecimento advindo da leitura e “sabemos que entre os variados
meios educativos utilizados na busca do conhecimento, encontramos a biblioteca:
recurso indispensável ao processo ensino-aprendizagem e à formação do educando”
(STOCKER, 2011, p.19).
Outrossim, para fomentar a leitura e contribuir com o desenvolvimento da
sociedade de acordo com Stocker (2011, p.19):

numa época em que o avanço tecnológico coloca à disposição do


aprendizado uma vasta gama de aparelhos sofisticados, é inaceitável
que uma escola caminhe sem propostas de leitura em seu currículo
e/ou confunda biblioteca com amontoados de livros velhos em estantes
enferrujadas.

Desta forma, para contribuir com o fomento à leitura literária e a formação do


conhecimento ressalta-se neste trabalho a transformação vivenciada na Rede de
Bibliotecas Escolares SESI-SP no decorrer de 2019, com impacto efetivo no ambiente
escolar, a partir de uma nova política de gestão, que preza o investimento no capital
humano com sustentáculo na formação continuada do bibliotecário, numa biblioteca viva
e alinhada ao trabalho docente, uma vez que “a leitura inaugura uma nova etapa no
desenvolvimento cognitivo das crianças” (GARRALÓN, 2015, p. 17), sendo assim
contribuindo com a sua formação como ser humano, pois com base em Lankes (2016,
p. 70) que afirma que:

Conhecimento é algo intrinsecamente humano e intimamente ligado às


paixões do indivíduo. Conhecimento é dinâmico, está em constante
mudança, e é vivo. Ele nos leva a questionar o mundo, questionar os
outros, questionar Deus, questionar a realidade. Conhecimento é uma
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força que move a economia, as artes e deveria mover os bibliotecários
em seu trabalho. O conhecimento é construído em nossas bibliotecas,
nossas universidades, nossas casas, nossos bares e até em nossos
carros. Conhecimento é, em uma última análise, a forma como vemos
o mundo, e determina como agimos.

Verifica-se então a importância do trabalho desenvolvido na biblioteca que tem


a missão de “melhorar a sociedade facilitando a criação de conhecimento” segundo
LANKES (2016, p. 58).
Destarte, além de propiciar o fomento a geração de conhecimento a biblioteca
colabora com o desenvolvimento da humanidade, uma vez que segundo Morin (2011,
p. 47) “o homem somente se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na
cultura”, também corroborado pelo estudo realizado e divulgado pelo Instituto Pró-Livro
intitulado “Retratos da Leitura – Biblioteca escolar”.
Neste estudo que apresenta entre seus resultados que bibliotecas e salas de
leitura impactam no desempenho dos estudantes em áreas de conhecimento como
Língua Portuguesa e Matemática, com repercussão de até 0,5 no Índice de
desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) nas unidades de ensino de regiões mais
vulneráveis e 5 pontos na escala do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb)
em português, equivalente “a meio ano de aprendizagem entre a 5º e a 9º séries”
(FERRARI, 2019), tem-se a importância do investimento nas bibliotecas e salas de
leitura como espaços de aprendizagem.
Sendo assim, ressalta-se que este projeto tem o propósito de investigar a
repercussão dos treinamentos realizados no ano 2019 direcionados aos bibliotecários
com impacto nas atividades diárias, entre eles destacamos o II Encontro Técnico de
Bibliotecários realizado nos dias 19, 20 e 21 de março em Campinas, o II Seminário de
Biblioteca Escolar empreendido durante o II Congresso de Educação Tecnologia e
Conhecimento – CETEC efetuado entre os dias 24, 25 e 26 de outubro também em
Campinas.
Ademais foram organizados durante o ano em questão treinamentos técnicos
regionais sobre o sistema operacional utilizado, bem como, videoconferência e
orientações individualizadas sempre com foco no desenvolvimento e valorização do
trabalho realizado no ambiente escolar com avaliações e análises para verificar se as
mudanças solicitadas foram implementadas adequadamente transformando a biblioteca
num verdadeiro espaço de aprendizagem que fomenta a leitura, além de um
acompanhamento das evidências do serviço prestado pela biblioteca, e se está em
consonância com as unidades escolares a partir da avaliação dos coordenadores
pedagógicos.
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A abordagem utilizada foi a pesquisa exploratória concomitantemente com a
bibliográfica, bem como a utilização de questionários como método de pesquisa.
Obteve-se como resultado uma aprovação de 94%. O que se pode concluir, refere-se à
aprovação dos coordenadores pedagógicos na nova política informacional,
transformando as 133 bibliotecas e as 10 salas de leitura em espaços de aprendizagens
voltados a formação efetiva de leitores.
Em função do exposto tem-se como problema de pesquisa: Qual a avaliação da
unidade escolar sobre a transformação da biblioteca escolar a partir das formações e
treinamentos do bibliotecário conforme a nova política de gestão da instituição que
fomenta o investimento no capital humano como o melhor recurso para melhorar a
qualidade da educação e o fomento à leitura construindo conhecimentos?
O objetivo deste trabalho foi verificar através da avaliação do coordenador
pedagógico a efetividade das ações formativas realizadas em 2019 para a
reestruturação da biblioteca escolar num ambiente efetivo de aprendizagem.

MÉTODO
Atualmente, com a globalização e seus desafios a biblioteca escolar torna-se
peça fundamental na estrutural educacional, uma vez que segundo Stocker (2011, p.
21) “a biblioteca é algo vivo que está ali para dar suporte ao conhecimento dos
educandos e educadores”.
Ademais, a biblioteca colabora com a formação integral do indivíduo,
contribuindo assim com o desenvolvimento das relações em nossa sociedade, conforme
Stocker (2011, p. 21) ao afirmar que:

A biblioteca escolar é uma necessidade, pois não constitui uma


entidade independente, mas um complemento da escola. Sua Função
é a de agente educacional, proporcionando enriquecimento da cultura
do aluno nos diferentes campos, dando oportunidade ao seu
desenvolvimento sócio-intelectual, além de propiciar momentos de
lazer e distração através da leitura. É fundamental dentro do sistema
educacional, pois como parte integrante do sistema de informação,
pode colaborar consideravelmente para a adoção de novos
paradigmas.

Deste modo, verifica-se a importância do trabalho desenvolvido pelo bibliotecário


e para caracterizar a pesquisa que possui enfoque qualitativo conforme perspectiva
abordada por Sampieri, Collado e Lúcio (2013, p. 36), fundamentando-se “na
compreensão e interpretação dos fenômenos, por meio das percepções e dos
significados produzidos pelas experiências dos participantes”, a técnica utilizada para a
coleta de dados foi o questionário e a amostra conceituada como não probabilística por
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tipicidade, pois “é constituída pela seleção de elementos que o pesquisador considere
representativos da população-alvo” de acordo com Vergara (2016).
O presente estudo possui caráter exploratório, pois, conforme definido por
Vergara (2016), ainda engatinhamos quanto aos serviços prestados pelo bibliotecário
na biblioteca escolar, pois mesmo com a lei nº 12.224 de 2010 para garantir a
universalização das bibliotecas nas escolas públicas do Brasil, segundo Ferrari (2019)
de acordo com “o Censo de 2017 do Ministério da Educação (MEC), 61% das escolas
ainda não têm bibliotecas”.
Deste modo, salienta-se a importância do estudo em função da necessidade de
produzir conhecimento e disseminá-lo dado o pouco material existente a respeito do
tema na contemporaneidade.
O objeto de estudo foi a Rede SESI-SP e a fundamentação teórica baseou-se
em consulta bibliográfica.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Durante o II Encontro Técnico com os Bibliotecários foram realizadas as
seguintes palestras: 1. Universo Literário – Motivação e Renovação com João Pedro
Roriz, 2. Práticas e Dinâmicas em Biblioteconomia com Lucia Fidalgo, 3. Cultura e Lazer
– Formação de Leitores em tempos de não Leitura com Antônio Schimeneck, 4.
Adolescência realizada pela área de Saúde Escolar do SESI-SP, 5. Inclusão Escolar
realizada pela área de Saúde Escolar do SESI-SP, 6. Integração das práticas
pedagógicas e possíveis ações dos bibliotecários na escola organizada pela supervisão
de currículos do SESI-SP e 7. Sistema Operacional da Rede de Bibliotecas Escolares
SESI-SP com Cirineo Pillonetto.

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Quanto ao resultado da aplicação dos questionários aos bibliotecários do
contingente de 94 respostas tem-se 89% de satisfação com a formação realizada
durante o II Encontro Técnico de Bibliotecários e 84% de alta impacto para a
aplicabilidade nas atividades realizadas pelo profissional.
Durante o II Congresso de Educação Tecnologia e Conhecimento – CETEC
foram realizadas as seguintes palestras: 1. Leitura na era digital com Goimar Dantas, 2.
BNCC e a Biblioteca Escolar com Marília Paiva, 3. Educação 4. E o uso da Biblioteca
com João Pedro Roriz, 4. O cenário educacional contemporâneo e a biblioteca escolar
com Claudio Marcondes.

Quanto ao resultado da aplicação dos questionários aos bibliotecários do


contingente de 76 respostas tem-se 78% de satisfação com a formação realizada
durante o II Congresso de Educação Tecnologia e Conhecimento – CETEC e 82% de
alta impacto para a aplicabilidade nas atividades realizadas pelo profissional.
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Quanto ao resultado da aplicação dos questionários aos bibliotecários do
contingente de 102 respostas tem-se 94% de satisfação com o trabalho realizado na
biblioteca escolar 6% de insatisfação e nota 4,28 para o desempenho do bibliotecário
numa escala de 0 a 5.
Em virtude das respostas apresentadas verifica-se a satisfação dos
bibliotecários quanto ao investimento em formação fomentado pela Gerência Executiva
de Educação do SESI-SP e o regozijo das unidades escolares quanto ao funcionamento
das bibliotecas escolares potencializando a leitura.

Considerações Finais
A pesquisa realizada denota que o investimento adequado no capital humano,
com sustentáculo na formação continuada possibilitando o domínio apropriado do
assunto pelo colaborador, possibilita a criação da oportunidade de transformar a
informação recebida em conhecimento, atividade de extrema importância na Sociedade
do Conhecimento, pois sem a construção da aprendizagem as informações não passam
de dados inundando nossa comunidade sem nenhuma serventia.
Ratificado por Puchner (2019, p.9) ao afiançar que:

Às vezes tento imaginar o mundo sem literatura. Eu sentiria falta dos


livros nos aviões. Livrarias e bibliotecas teriam espaço de sobra nas
estantes (e as minhas não estariam transbordando). A indústria
editorial não existiria como a conhecemos, nem a Amazon, e não

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haveria nas em minha mesa de cabeceira quando não consigo dormir
à noite.
Tudo isso seria lamentável, mas mal arranha a superfície do que seria
perdido se a literatura nunca tivesse existido, se as histórias só fossem
contadas oralmente e nunca tivessem sido escritas. Um mundo assim
é quase impossível de imaginara. Nosso sentido de história, da
ascensão e queda de impérios e nações, seria completamente. A maior
parte das ideias filosóficas e políticas nunca teria existido, ou teria sido
esquecida, porque a literatura que deu origem a elas não teria sido
escrita. Quase todas as crenças religiosas desapareceriam junto com
as escrituras nas quais foram expressas.
A literatura não é apenas para os amantes dos livros. Desde que
surgiu, há 4 mil anos, ela moldou a vida da maioria dos seres humanos
que vivem no planeta Terra.
A leitura perpassa a história da humanidade ao possibilitar ao leitor transformar
informação em conhecimento, conforme corroborado por Stocker (2011, p. 53) em “a
leitura tem importância fundamental na vida das pessoas. A necessidade de muita
leitura está ligada à aprendizagem, haja vista, que propicia a obtenção de informações
em relação a qualquer contexto e área do conhecimento”.
Ressalta-se e importância de destacar as características de treinamento
elencadas por Kanaane & Ortigoso (2018, p.72-73) que serviram como base para as
formações, tais como:

individualidade: respeito e adaptação ao potencial, às necessidades e


aos conhecimentos já dominados pelo treinando;
organicidade: módulos instrucionais e comportamentais pedagógica e
andragogicamente elaborados, apresentando sequência lógica,
conectada e associada aos contextos organizacional e social;
flexibilidade: treinamento elaborado de acordo com diagnóstico
realizado em parceria com os envolvidos e suas necessidades,
negociando entre as partes com vistas ao alcance das metas
(pessoais, organizacionais, de mercado);
praticidade: proximidade com a prática e com a realidade vivenciada
pelos treinandos e pela organização. Foco permanente nas questões
vinculadas à aprendizagem e sua aplicabilidade, visando ao alcance
de objetivos e resultados;
capacidade de motivar-se: treinandos atuando como agentes ativos de
sua aprendizagem, com consequente interação no contexto
empresarial e suas múltiplas interfaces com a produtividade∕
lucratividade;
análise de indicadores (financeiros e não financeiros): observar o fator
efetividade para o alcance de metas;
proatividade ao lidar com o desafio: transformar dados em
informações, informações em conhecimento e conhecimento em ação,
prosseguindo com motivação, dinamização de oportunidades, combate
aos desperdiçadores em geral, constante interatividade;
ênfase na comunicação: exercitar amplamente o feedback,
possibilitando de forma ágil e eficaz a avaliação de resultados e a
retroalimentação do sistema, apresentando como vantagens
estratégicas a qualidade (humana, organizacional, ecológica), a
rapidez, a gestão do tempo e a flexibilidade para atender
constantemente as inúmeras demandas apresentadas pelo cenário em
mudanças.
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Por tratar-se de um estudo preliminar de caráter exploratório, conclui-se que o
artigo retrata percepções introdutórias sobre o fomento ao capital humano para
potencializar o trabalho realizado na Biblioteca Escolar, deste modo, verifica-se
necessidade de serem realizadas novas contribuições acadêmicas e estudos sobre os
resultados apresentados.

Referências
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epistemológicos e políticos. 15. ed. São Paulo: Cortez, 2016.

DELORS, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir. Tradução: José Carlos


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VERGARA, Sylvia Constant. Projetos e relatórios de pesquisa em administração.


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BIBLIOTECAS ESCOLARES E FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE:
APONTAMENTOS A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA DE
ESTÁGIO

Alcione Maria dos Santos (UFMS)

Eixo Temático 9: Os espaços de leitura literária

Considerações iniciais

Este artigo visa apresentar e discutir os dados da observação realizada durante


uma disciplina de estágio, que incluiu, entre seus objetivos, investigar a estrutura, o
funcionamento e a mediação de leitura em bibliotecas escolares da rede estadual de
ensino, localizadas na área urbana de Campo Grande-MS. As bibliotecas observadas
localizam-se no entorno da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Cidade
Universitária, e constituem-se em campos de observação para os acadêmicos
estagiários dos Cursos de Letras – habilitação em Português/Espanhol e
Português/Inglês da UFMS/FAALC, interferindo diretamente na formação inicial desses
futuros docentes. Pretendemos, com o relato desta experiência, refletir sobre a
importância deste viés de observação para estes estagiários, e, também, contribuir para
as investigações sobre bibliotecas escolares e mediação de leitura no Estado,
evidenciando situações exemplares, fruto de políticas educacionais.
Os dados apresentados e discutidos neste artigo foram gerados por meio de
observação durante o “Estágio Obrigatório de Língua Portuguesa e Literatura III”, com
51h, disciplina regular cursada no 1º semestre de 2019 por acadêmicos de 7º semestre
dos já referidos cursos. Este estágio configura-se no formato de orientação semidireta,
em que o docente orientador da universidade realiza visitas pontuais às escolas-campo
e orienta os estudos teóricos, a observação e a produção de um artigo no transcorrer
da disciplina. Nas escolas, os acadêmicos contam com um professor para supervisionar
suas atividades, neste caso, observação e registro. As Comissões de Estágio (COEs)
de cada curso contactam as escolas parceiras, localizadas no entorno da universidade,
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de modo a facilitar o deslocamento dos acadêmicos e o contato com os professores
supervisores. As COEs também orientam sobre os documentos necessários, definem a
distribuição de acadêmicos por escola, a forma de avaliação e o plano de atividades a
ser desenvolvido. No estágio em questão, 34h foram definidas para os encontros e
estudos orientados na universidade e 17h para observação na escola, a realizar-se no
contraturno dos cursos de Letras. A atuação e interação das Comissões de Estágio, dos
professores orientadores e dos supervisores nas escolas é fundamental para que o
estágio se realize de forma satisfatória em todas as suas etapas.
Trata-se de um estágio de caráter investigativo, voltado para o ensino médio, em
que os acadêmicos são orientados a observar, registrar e refletir sobre os dados, com
a finalidade de vivenciar o contexto escolar e produzir um artigo com foco em uma
temática pré-definida. Neste estágio, a temática definida foi mediação de leitura na
biblioteca escolar, o que acreditamos contribuir para a formação do acadêmico futuro
professor na área de Letras. Apesar de não terem atuação direta dentro das bibliotecas,
esses profissionais encontram lá (ou deveriam encontrar) jornais, revistas, livros
didáticos, obras de referência e obras literárias, gênero que diz respeito especificamente
à sua área de atuação. De forma ampla, a biblioteca escolar insere-se no objetivo do
professor em formar leitores proficientes.
A finalidade de incluir em um estágio do curso de Letras a observação das
bibliotecas escolares consiste em que os envolvidos se aproximem desta reflexão
central às práticas de ensino. Consideramos esta experiência como especialmente
significativa, tendo em vista que as disciplinas de formação específica, formação
pedagógica e formação prática do curso não contemplam direta ou exclusivamente
essas questões.
Em roteiro pré-elaborado, os acadêmicos foram motivados a observar os
seguintes aspectos: como se estrutura espacialmente a biblioteca escolar? (tamanho,
qualidade, conservação e adequação da sala e dos móveis); quais as suas condições
de funcionamento? (qualidade, quantidade, disponibilização e tipo de acervo, sistema
de empréstimo, quadro de funcionários, turnos de atendimento); como funciona a
mediação de leitura? (ações de incentivo à leitura e interação com a comunidade
escolar). Concordamos com Arena (2019) que, ao findar da segunda década deste
século, algumas indagações básicas, como essas, ainda persistem:

As mesmas velhas, surradas, gastas e desalentadas indagações


teimam em ser feitas desde o início de políticas governamentais
de distribuição de livros de literatura, acompanhadas de vinhetas
na mídia: onde estão os espaços para livros e leitores nas

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escolas? Como estão os espaços já existentes para o encontro
entre escritores e leitores por meio das obras de arte da
literatura? Onde se encontram e quem são os mediadores
promotores desses encontros? [...]
As velhas perguntas, entretanto, atravessaram os anos 1980,
período do renascimento triunfal da literatura infantil brasileira e
mundial, entraram pela década seguinte, rasgaram o véu do
milênio e chegam persistentes ao final da segunda década.
Essas perguntas têm de morrer. Sua morte teria acontecido se
as respostas tivessem sido bem dadas ao longo desse tempo.
Respostas não dadas, perguntas bem vivas: essa é infeliz
constatação. (ARENA, 2019, p. 13)

A autora deste artigo orientou vinte acadêmicos e participou diretamente da


observação e registros. Os dados foram analisados e interpretados com base em
autores que tratam sobre história, estrutura, funcionamento e mediação de leitura nas
bibliotecas escolares brasileiras, como Arena (2018), Araújo e Silva (2018), Silva (2009)
e Perroti (2015). O artigo divide-se em: “Considerações iniciais”, “Biblioteca escolar no
Brasil: alguns apontamentos”, “Estrutura, funcionamento e mediação de leitura em
bibliotecas escolares: quatro casos exemplares”, “Considerações finais” e
“Referências”. Na próxima parte, faremos uma brevíssima reflexão sobre biblioteca
escolar e políticas públicas para a leitura; na sequência, apresentamos e discutimos os
dados levantados nesta investigação; dados motivados por perguntas que insistem,
desafiam e cujas respostas apontam para a necessidade de transformação.

Biblioteca escolar no Brasil: alguns apontamentos


Os aspectos brevemente tratados nesta seção não aprofundam o percurso
histórico das bibliotecas escolares no Brasil; objetivam somente oferecer algumas
“pinceladas” em perspectiva diacrônica para motivar o entendimento de desafios que
ainda enfrentamos. Araújo e Silva (2018) ao tratarem a biblioteca escolar brasileira em
perspectiva histórica, localizam seu surgimento, inicialmente na Bahia, nos esforços dos
jesuítas e posteriormente de outras ordens que aqui aportaram a partir do século XVI,
com ações educativas que, a princípio, favoreciam alguns privilegiados, filhos de
senhores e colonos. Em 1575, essas ações somaram estabelecimentos de ensino em
13 pontos do território nacional:

Os jesuítas investiam na aquisição de livros para a sua biblioteca


e estas ficavam abertas aos alunos, padres, e a qualquer um que
fizesse um pedido solicitando uso, porém a maioria da
população não tinha acesso por ser analfabeta, inclusive os
colonos. Assim, este espaço ficava exclusivamente à disposição
dos educadores. (ARAÚJO;SILVA, 2018, p. 13)

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Os autores destacam as dificuldades que caracterizaram essa empreitada,
sendo os livros importados e trazidos em bagagens para a colônia, em número
insuficiente, aumentando com o tempo. Também mencionam a perda para as bibliotecas
que representou a expulsão da Companhia de Jesus pelo Marquês de Pombal, em
1759, o que resultou em destruição e aniquilação dos acervos, que já somavam, a título
de exemplificação, quinze mil livros na biblioteca de Salvador:

A educação, a partir de então, passou a ser responsabilidade do


Estado, e muitas reformas estavam no plano do Marquês de
Pombal, porém neste período não houve nenhum avanço,
devido à falta de recursos e bibliotecários. Nessa época, a
educação entrou em crise e as bibliotecas escolares estavam em
ruínas. (ARAÚJO;SILVA, 2018,p. 14)

O período pombalino estendeu-se até 1808, ano em que a situação começou a


ser modificada com a vinda da família real. Em 1821, destaca-se o fim do monopólio da
imprensa régia e maior liberdade de impressão; em 1827, criaram-se as primeiras
escolas primárias gratuitas, porém sem bibliotecas ou com elas voltadas somente para
uso dos mestres. Somente no fim do século XIX, intensificam-se, no Brasil, as reflexões
sobre bibliotecas escolares que adentram o século XX, sendo o Estado de São Paulo
pioneiro neste processo. No entanto, as dificuldades esbarravam em um mercado
livreiro e editorial bastante limitado. Destacam-se, na década de 20, as investidas
comerciais e produção literária para crianças de Monteiro Lobato como um contraponto
a esse contexto.
Dessas reflexões em perspectiva histórica, destacamos o surgimento das
bibliotecas no Brasil atrelado à educação e às escolas, caracterizado por um esforço de
importação de materiais impressos e ao revés das marés políticas e iniciativas
individuais e de grupos. Também salientamos o caráter elitista e restrito desta
empreitada, inicialmente a serviço dos colonos alfabetizados (não havia brasileiros
natos já que não existíamos como nação) e como parte da imposição cultural europeia.
Lembremos o papel crucial que as letras e a língua portuguesa desempenharam neste
processo. Posteriormente, já adentrando o século XX, as poucas investidas da indústria
editorial, a desatualização do acervo e falta de espaços adequados e funcionários
especializados caracterizam a situação das bibliotecas escolares no Brasil. Sua
disseminação, ao longo do século XX, esteve atrelada ao potencial econômico e às leis
de incentivo de cada Estado. Note-se que durante esse século, de forma inicial
marcadamente na década de 30, os debates sobre biblioteca escolar e educação
ganharam forma, instituindo-se em um campo de estudos solidificado. Naquela década

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registra-se a preocupação em instituir-se um Brasil moderno, propício à industrialização,
com mão de obra minimamente qualificada, projeto que traz à tona a escola, os livros
como produtos mercadológicos e novas formas de ensinar. Decorrente desse contexto,
temos o dilema que permeará a recepção da literatura infantil nas décadas
subsequentes: “arte literária ou produto pedagógico-comercial?” (Albino, 2010, p. 3 apud
Cordeiro, p. 1482, 2018).
Neste percurso, citamos, com Araújo e Silva (2018) e Cordeiro (2018), várias
investidas, distintas em seus objetivos e duração, no plano das políticas educacionais e
iniciativas relacionadas à leitura, ao longo do século XX e limiar do século XXI no Brasil:
a criação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), em 1937; o Instituto
Nacional do livro (INL), também em 1937; o Serviço Nacional de Bibliotecas (SNB), na
década de 60; a Comissão do Livro Técnico e Livro Didático (Colted), em 1966; a
Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil (FNLIJ), em 1968; o Programa de
Desenvolvimento e Preservação do Livro (Prodelivro), em 1979; o Programa Nacional
Salas de Leitura (PNSL), criado em 1984 e extinto em 1996 (em 1988 ele sofre alteração
em seu nome, que passa a ser Salas de Leitura/Bibliotecas Escolares); o Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), em 1985; o Programa Nacional de Incentivo à Leitura
(PROLER), em 1992; o Pró-Leitura, com foco na capacitação de professores, criado
também em 1992 e extinto quatro anos depois; a Lei nº 9394/96 das Diretrizes e Bases
da educação nacional; os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em 1997; o Plano
Nacional da Biblioteca da Escola (PNBE), em 1997 (até 2014); a Política Nacional do
Livro, em 2003; o Bibliotecas Rurais Arca das Letras, também em 2003; o concurso
Literatura para Todos, em 2005 (até 2010); a Lei da Universalização das Bibliotecas
Escolares, Lei nº 12.244/2010, o Plano Nacional do Livro e da Leitura – PNLL, de 2011;
a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE) - Lei nº 13.696/2018. Conforme Cordeiro
(2018) o panorama, até meados da década de 80

descortina um período em que a circulação do livro foi


fortemente impactada pelas ditaduras. Se em alguns momentos
houve grande incentivo governamental para a ampliação das
bibliotecas, da rede escolar e da ampliação dos acervos literários
nas bibliotecas, havia forte monitoramento por meio dos órgãos
públicos no que diz respeito a quais leituras eram ofertadas aos
pequenos leitores. É somente na década de 1980 que esse
quadro passa a ser modificado e um cenário favorável à
diminuição da barreira entre o aluno e o livro começa a ser
construído. (CORDEIRO, 2018, p. 1485)

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As questões históricas iluminam as reflexões atuais, ao evidenciarem práticas e
problemáticas que persistem, das quais alguns aspectos são apresentados na próxima
seção deste artigo.

Considerações teóricas: entre o real e o necessário


Nesta seção, seguem apontamentos teóricos estudados no decorrer dos
encontros para orientação dos acadêmicos estagiários. Registro a produtividade desses
debates, que trouxeram questões novas para alunos habituados a uma visão de
biblioteca escolar fruto de suas experiências na educação básica. No início do estágio,
foi-lhes entregue um roteiro de observação com questões que apontavam para
problemáticas relevantes. Questionamentos que despertaram o olhar para a
possibilidade de uma biblioteca escolar que ultrapassasse o depósito de livros ou
quando muito, local de empréstimo. Neste sentido, Perrotti (2015, p. 95) estabelece
distinções esclarecedoras, tendo em vista a mediação adequada para a formação de
leitores ativos: “ledores/leitores; espaço/ambientes de leitura; dispositivo
monológico/dispositivo dialógico; transmissor/mediador cultural”. E que se relacionam a
pontos de vista opostos, também colocados pelo autor de maneira dicotômica:
conservação ou transmissão X mediação e apropriação cultural. Essa sistematização
conceitual objetiva iluminar os caminhos para o desenvolvimento de dispositivos de
mediação e apropriação cultural, com o amparo de um trabalho que se pauta

na definição e tentativa de sistematização de aspectos que possam


orientar a constituição de ambientes vivos e culturalmente
estimulantes, capazes não só de interessar, mas de acolher,
instrumentalizar, preparar e projetar sujeitos nas infinitas tramas dos
signos, ou seja, lugares, ao mesmo tempo, de experiências e
aprendizagens simbólicas fundantes e significativas. (PERROTTI,
2015, p. 96)

Ao ingressarem nas bibliotecas escolares para observar suas (im)possibilidades,


os acadêmicos estagiários estavam convictos da necessidade do estabelecimento de
um local que ultrapassasse a guarda e o empréstimo e alcançasse a centralidade e
protagonismo em práticas de leitura significativas na escola. Também estavam atentos
a investigar as carências e possíveis obstáculos à realização desta necessidade. Um
desses obstáculos, visíveis em situações concretas, que serão apresentadas na
próxima seção, dizem respeito ao descompasso apontado pelo autor:

para atender a demandas e desejos de apropriação e protagonismo


culturais, é indispensável que os espaços de leitura se assentem sobre
lógicas compatíveis com tais demandas e desejos. Seus processos

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gerais e concretos, suas configurações ambientais, seus acervos, seus
modos de funcionamento, seus repertórios e práticas culturais, suas
formas de ser e de atuar constituem um todo dinâmico, complexo e
singular que necessita ser orientado em conformidade com os
propósitos que lhe deram origem. PERROTTI, 2015, p. 96)

Algumas questões surgiram no decorrer da observação, dialogando com essas


questões teóricas. Convencidos de que “espaços de livros não são espaços de leitura”
(PERROTTI, 2015), os acadêmicos indagaram: até que ponto, em menor ou menor
grau, essas bibliotecas têm proporcionado uma vivência cultural significativa? Qual o
lugar social que a biblioteca ocupa no contexto escolar? Como são reconhecidos seus
funcionários e como interagem com a comunidade escolar? Como seu acervo e
funcionalidade atendem às demandas impostas pela clientela?
Outra distinção proposta pelo autor motivou as discussões nos encontros de
orientação. Trata-se da concepção de templum e emporium, paradigmas históricos de
constituição de bibliotecas. À biblioteca templum importa a conservação, à biblioteca
emporium a distribuição. Nos dois casos, o protagonista é o acervo. Mediante essa
distinção, o autor postula a necessidade da emergência do paradigma do fórum:

a biblioteca dialógica não será nem templum, nem emporium, mas


forum, isto é, território de negociação de sentidos entre diferentes,
dispositivo preparado para mediar tensões e conflitos, construções e
desconstruções, chegadas e partidas, encontros e desencontros, em
movimentos constantes, sempre renovados e renováveis, próprios de
lutas incessantes e de diferentes matizes com e pelos signos.
(PERROTTI, 2015,p 108)

Esta perspectiva vinculada à formação de leitores (e não ledores) direcionou o olhar dos
acadêmicos estagiários ao observarem as bibliotecas e dialogarem com os funcionários,
trocando impressões, compreendendo suas dificuldades e empenho e idealizando
formas de intervir positivamente neste cenário.
Neste percurso, os estagiários observaram e refletiram sobre aspectos físicos,
de estrutura e também sobre o funcionamento dessas bibliotecas. Neste quesito, foram
valiosos os apontamentos de Silva (2009) ao problematizar a falta de convivência entre
a biblioteca e os outros espaços/atores da comunidade escolar e também seu padrão
arquitetônico inadequado, limitando-se a uma sala de aula comum. O autor também
levanta questões sobre o acondicionamento do acervo, a composição do espaço,
incluindo a necessidade de adequação da mobília e organização espacial, para
estimular a leitura livre, lúdica e descontraída e também a pesquisa. Tendo em vista
uma biblioteca que estimule a leitura ativa e a busca autônoma pelo conhecimento em
diferentes suportes, a ampliação de conhecimentos científicos e culturais e a produção

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desses, a discussão, a troca de ideias, a elaboração e desenvolvimento de projetos com
a participação da comunidade escolar e externa, a dinamização de seu acervo em
consonância com as necessidades de aprendizagem e formação, de docentes e
discentes. Destacando-se a centralidade e o protagonismo da biblioteca diante das
demandas escolares.

Estrutura, funcionamento e mediação de leitura em bibliotecas escolares: quatro


casos exemplares
As bibliotecas escolares observadas pelos acadêmicos estagiários, totalizando
quatro, apresentam diferenças apesar de comporem o quadro geral das escolas
públicas da rede estadual de ensino de Campo Grande-MS. Discorreremos nesta seção
sobre aspectos observados nas idas às escolas e nas discussões realizadas em nossos
encontros de orientação.
Todas as escolas observadas contam com funcionário específico, contratados
em concurso ocorrido em 2014/2015, que exigiu nível de formação em ensino médio e
curso técnico na área. A atuação desses funcionários varia quanto ao turno de
atendimento.
Sobre o acervo, ficou visível a diferença quanto ao seu acondicionamento,
catalogação e possibilidades de empréstimo, variando em menor ou maior
acessibilidade de acordo com o turno de atendimento do profissional. No geral, não há
a possibilidade de atendimento especializado em todos os turnos de funcionamento da
escola, nem nos horários de intervalo das aulas. Outro aspecto que varia é o sistema
de catalogação e empréstimo, em sua maior parte feito manualmente. Registramos a
possibilidade de catalogação e empréstimo com auxílio de um sistema computadorizado
em apenas uma dessas escolas. Uma consequência disso, é a dificuldade de consulta,
em maior ou menor grau, dos títulos do acervo, pelos funcionários. Outro aspecto
importante a destacar é a presença de um acervo, enviado de forma massiva, que nem
sempre atende aos interesses da comunidade escolar. Este problema foi citado em duas
escolas: o envio por parte do governo de uma quantidade extrema e desnecessária de
livros de um ou dois autores. Em uma das escolas, o profissional relatou o envolvimento
da comunidade externa e da comunidade escolar na aquisição de livros para o acervo.
Também observou-se, em uma das escolas, a presença de livros armazenados em
armário fora da biblioteca, aos cuidados da direção, com acesso exclusivo dos
professores.

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O espaço destinado à biblioteca escolar também varia, sendo mais generoso em
duas delas (50%). O predomínio de mobiliário gasto e inadequado registra-se em pelo
menos 50% dos casos. Também em pelo menos 50% registra-se a dificuldade em se
manter o acervo plenamente organizado, independentemente do critério utilizado.
Quando à organização do espaço, predominam mesas e cadeiras com vistas a
proporcionar um ambiente de estudo, com carência de espaço lúdico, o que se torna
inviável pela dimensão de 50% dessas bibliotecas, aquém do necessário. Note-se que
mesmo aquelas que contam com espaço considerável não dispõem dessa dimensão
mais lúdica. Em uma dessas bibliotecas, há uma sala anexa com computadores. Em
outra biblioteca escolar verificaram-se dois computadores para os usuários. Nas outras
duas, apenas para os funcionários da biblioteca.
Outro fator a considerar é o nível de relação da biblioteca com a comunidade
escolar, seu grau de participação nas ações de leitura realizadas, o que interfere
diretamente na autoestima e estímulo para o trabalho do profissional. Houve a menção,
em um dos casos, de falta de autonomia do profissional da biblioteca mediante a gestão
escolar, para empreender transformações que julgasse necessárias. Nas bibliotecas
observadas, constatamos a realização de uma ação permanente de leitura em uma das
escolas (25% do total), em parceria com o professor de Filosofia. Trata-se de uma
reunião de leitores do acervo da biblioteca. Neste momento, alguns deles expõem
aspectos da leitura empreendida, independentemente do gênero lido, fomentando a
troca de ideias, a discussão e a divulgação da obra, a fim de despertar o interesse de
outros leitores.
Ainda quanto à utilização do espaço, houve menção, em uma das bibliotecas, do
desvio da função da mesma, uma vez que, por vezes, se torna local para receber alunos
que, por algum motivo, como descumprimento à disciplina e normas da escola, não
podem permanecer na sala de aula.

Considerações finais

O ideal que motivou as diretrizes dadas na orientação deste estágio, com


observação na biblioteca escolar, fundamenta-se no empenho em promover a leitura
significativa, ativa, incluindo o letramento literário na educação básica, motivado pela
utilização da biblioteca escolar e seu acervo. No âmbito da universidade, nossa linha de
atuação tem abrangido também a extensão universitária, com ações dirigidas
diretamente aos alunos e professores, com elaboração e realização de oficinas de
leitura literária nas escolas. No caso deste estágio, registramos o alcance de um objetivo

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significativo: o desenvolvimento de uma concepção, pelos acadêmicos dos cursos de
Letras, de uma biblioteca escolar protagonista de ações no contexto escolar, em diálogo
com as práticas docentes. Registramos também, como um notável resultado alcançado,
que a presença dos universitários nas bibliotecas escolares durante este estágio
promoveu um diálogo que repercutiu positivamente nos funcionários envolvidos, em
termos de autoestima e valorização do trabalho, pois conferiu ao seu trabalho a atenção
e importância devidas. Durante este percurso, os acadêmicos refletiram sobre questões
relacionadas ao acervo, sua qualidade, acondicionamento e disponibilização. Puderam
também refletir sobre a adequação do espaço da biblioteca escolar, incluindo seu local
de funcionamento e mobiliário, e também seus turnos de funcionamento. A presença ou
ausência de práticas permanentes de leitura também foram notadas. Todos esses
aspectos observados instigaram questionamentos e levantamento de hipóteses. No
estágio que se seguiu, no segundo semestre, dedicado à intervenção, à regência, já
pudemos perceber a repercussão desta experiência formativa: vários acadêmicos
incluíram a biblioteca escolar e/ou seu acervo em seus planos de aula. Acreditamos que
esta reflexão na formação inicial docente impactou na futura atuação desses
acadêmicos. Ainda que restrita a um grupo de 20 alunos, consideramos esta experiência
como significativa para a luta em prol da educação e da leitura.

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Realidade, Porto Alegre, v. 43, n. 4, p. 1477-1497, out./dez. 2018.

PERROTTI, E. Estações de leitura, dispositivos de mediação cultural e luta pela palavra.


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A ADOLESCÊNCIA REVISITADA: UMA LEITURA DO CONTO
"FREDERICO PACIÊNCIA", DE MÁRIO DE ANDRADE

INÁCIO, Francilda Araújo, IFPB FORMIGA, Girlene Marques, IFPB


AGUIAR, Hellen Jacqueline Ferreira de Souza Dantas de, IFPB

Eixo Temático: Os espaços de Leitura literária

Modalidade de Apresentação: Comunicação oral.

Considerações iniciais

Com a velhice que está chegando, vivo apaixonado pela forma do


conto, a sua concisão honesta, a sua essência de comunicação direta
do artista com o leitor. Creio que farei um livro de contos.
Mário de Andrade

Os Contos Novos representam o momento mais intimista, mais confessional de


Mário de Andrade. Com eles, o escritor paulista atingiu a expertise do contador de
casos, desempenhando com desenvoltura a arte de narrar episódios que traduziam não
apenas denúncias da realidade social, mas também aqueles que se voltavam ao mundo
interior dos personagens. Embora acolha as principais tendências narrativas vigentes
na ficção de 30 e 40, em que se sobressaía a denúncia dos problemas sociais do país,
nos Contos Novos sobressai-se o filão introspectivo, em especial nos contos de
inspiração memorialista que evocam fases passadas: a infância (“Tempo de
Camisolinha”, “Vestida de preto”), a adolescência (“Frederico Paciência”) e o início da
fase adulta (“O Peru de natal”).
O trabalho volta-se especificamente à abordagem de um deles: "Frederico
Paciência", que parece revelar o desejo do narrador, adulto, de reconstituir e entender,
com alguma profundidade, uma importante experiência do desejo homossexual vivida
na adolescência. Inicialmente, fizemos uma incursão pelo tecido textual do conto,
buscando evidenciar, na tessitura da escrita, como o conflito interno aflora no discurso1.
Após essa etapa, lançamos mão de um percurso teórico-metodológico que privilegia a

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experiência pessoal do leitor, enquanto sujeito protagonista do processo relacional com
o texto, trabalhando mais especificamente com a proposta de Diário de Leitura, nos
termos apresentados por Rouxel (2012, 2013), sobre o conto acima referenciado.
Esta proposta, direcionada a estudantes do Ensino médio, reflete os esforços de
dar continuidade a nossas investigações acerca de possibilidades de experiências de
leitura do texto literário na educação básica, mediadas por projetos de pesquisa de
iniciação científica desenvolvidos por docentes e estudantes do Curso de licenciatura
em letras do Instituto Federal da Paraíba. Grosso modo, tais investigações partem do
entendimento de que

a leitura literária nos possibilita, desde sempre, reflexões e


questionamentos acerca de tudo o que envolve o homem. A fim de
explorar essa multiplicidade de leituras, é necessária, pois, a mediação
do professor que, além de ser um leitor, deve desempenhar um papel
relevante no despertar do gosto pela leitura literária. Nesta perspectiva,
constitui-se missão de educadores buscar metodologias que guiem sua
prática, bem como selecionar textos de qualidade que desenvolvam
em seus alunos a capacidade da leitura crítica. (Inácio et al, 2019,
p.915).

Nossa expectativa é a de que possamos, sempre mais, ampliar nossas


possibilidades de aplicação/experimentação de trabalho com o texto literário em sala de
aula, com o propósito de potencializar processos de formação literária na escola.
Metodologicamente, optamos pela investigação de natureza analítico-
interpretativa, por ser adequada à análise proposta, valendo-nos, sobretudo, do
respaldo teórico em estudiosos da obra mariodeandradiana, a exemplo de Lopez (1988),
especialmente na obra em que a pesquisadora seleciona os melhores contos de Mário
de Andrade, entre os quais se encontra “Frederico Paciência”, conto abordado no
presente estudo, além dos teóricos que se dedicam à abordagem de leitura em que a
subjetividade do leitor assume papel de grande relevância, a exemplo de Rouxel (2012;
2013), Jouve (2002; 2013), Langlade (2013).

A tortuosa “descida ao tártaro das pulsões" – Uma experiência de leitura


com o Conto “Frederico Paciência”
A narrativa focaliza a fase adolescente de Juca – o narrador – , quando lhe
sobrevém uma aventura um tanto conflituosa: a “amizade perigosa”, cheia de paixão,
com “Frederico Paciência”, um amigo do colégio, o “único”, cuja “solaridade
escandalosa” o encantou. Tal amizade lhe causa grande inquietação, pois sofria com o
fato de nutrir um sentimento avassalador pelo amigo.
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Ciente da dificuldade de assumir sentimentos censuráveis, Juca não evita
“descer ao tártaro das pulsões e paixões” (LOPEZ, 1998, p. 13). Na primeira linha do
conto, a hesitação já denuncia a dificuldade de expressão: “Frederico Paciência... Foi
no ginásio. Éramos de idade parecida, ele um pouco mais velho que eu, quatorze anos.”
(p. 141). Ele sabe que, apesar do risco, é necessário nomear o sofrimento, esmiuçá-lo
para obter uma possível salvação. Por isso, segue em frente, lutando incessantemente
com as lembranças, com as palavras e consigo mesmo, lidando com aquela sensação
de desejo e de impossibilidade.
A linguagem do conto “Frederico Paciência” reflete bem a sua dificuldade tanto
para relatar acontecimentos íntimos e profundamente conflituosos, quanto para analisar
a complexidade daquele relacionamento tecido de “antagonismos inconciliáveis”. Ela
não flui propriamente, mas avança entre tropeços e interrupções. Os titubeios revelam-
nos a falta de “domínio” do narrador diante das emoções que os fatos enunciados
escondem. Contraditoriamente, essas ocorrências, que supostamente tendem a
dissimular o desejo, acabam por expô-lo.
Talvez seja esta narrativa a que apresente, dentre os quatro contos do conjunto
“introspectivo” da obra, a estrutura mais marcada por interrupções. Isto se dá,
possivelmente, “pela delicadeza do assunto” que o envolve, característica que,
possivelmente, tenha levado o autor a dispender tanto tempo para concluí-lo e desejar
que não fosse lido em separado, mas constasse de uma coletânea, conforme enuncia
em carta ao amigo Fernando Sabino: “Não me animo a lhe mandar o conto que durou
quase vinte anos se fazendo. Não desejo que ele seja lido em separado por causa da
delicadeza do assunto” (1981, p. 68).
A voz emocionada se expressa em palavras que se repetem obsessivamente:
“Então eu quis morrer. Se Frederico Paciência largasse de mim... Se se aproximasse
mais... Eu quis morrer (...) Quis morrer.” (p.146). “Rico está me chamando, eu vou. Eu
vou. Eu preciso ir. Eu vou”. “E quando me negaram, eu sei, fiquei feliz, feliz.” (p.157).
Em meio a impulsos dúbios, as antíteses aparecem sem reservas. Sentenças
adversativas bem dizem dos sentimentos antagônicos do narrador. Uma delas (“Puro.
E impuro.”) figura quase como um refrão no decorrer do texto.
O estilo é marcado pelo tom impreciso, entrecortado, com titubeios bruscos,
reticências. Não são raros os momentos em que as incertezas se instalam através de
autoquestionamentos e autocorreções:

E foi aquele beijo que lhe dei no nariz depois, depois não , de repente
no meio duma discussão rancorosa...( FP - p. 149 ) .
( . . .)
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Assim: o nos af ast armos um do outro em nossa
quoti di ani dade, o que chamei já agora erradamente,
tenho cert eza de “ desagregação”, era mais apenas um
jeito de amizade v erdadei ra. ( grif os nossos). ( FP - p. 153 ) .

Por não “dominar” a realidade enunciada, Juca não consegue manter-se “de
fora”; sua ótica subjetiva interfere na análise dos fatos. Num movimento torturado, ele
interpõe ao relato seu discurso reflexivo e, ao fazê-lo, dá mostras de que não consegue
distanciar-se do passado, que se presentifica e ressurge “atual”, no momento da
enunciação. O narrador demonstra não querer apenas evocar o passado, mas,
sobretudo, nele intervir, avaliando-o, na tentativa de desvelar as significações ocultas
das experiências vividas.
O silêncio, por vezes, assume uma configuração importante dentro dos
acontecimentos. Em momentos imponderáveis, o mutismo reina aterrador. Por meio do
silêncio, reafirmam-se a censura e a repressão. Mais do que nunca a dificuldade de
expressão, a privação da palavra, exibem de forma contundente os conflitos internos. A
“voz” da interdição é, em várias passagens do conto, “só olhos”. O apelo ao olhar
aparece em “Frederico Paciência” sob diferentes formas. Na passagem abaixo figura
como determinante da repressão. A mudez vem revelar a impotência diante da proibição
e da culpa:

Paramos f rente a f rente. Ele abaixou os olhos, mas logo os


ergueu com esf orço. Meu Deus! Por que não fala! O olho, o
procuro nos olhos, lhe dev orando os olhos i nt ernados, mas o
olho com tal ansi edade, com toda a perf eição do ser,
implorando me tornar s incero, v erdadei ro, di gní ssim o, que
Frederico Paciênci a é que pecou. Baixou os olhos outra
vez, t i rando de nós dois qualquer exati dão. ( FP - p. 146 ) .

Mas o olhar não perde, por outro lado, a característica de ser o caminho mais
frequente pelo qual se desperta e se revela a excitação libidinosa, a recolhida paixão de
um pelo outro:

Eu olhav a só. Frederico Paci ência percebeu, para de f alar


de repente, me olhando muito t ambém. Percebi o muti smo
dele, ent endi por que era, mas não podia, custei a retirar os
olhos daquel a boca tão l inda. E quando os nossos olho s
se encont raram, quase assust ei porque F rederico Paci ência
me olhav a, também como eu estav a, com olhos de
desespero, i nt ei ram ent e conf essado. Foi um segundo trágic
o, de tão exclusiv ament e f eliz. ( FP - p. 155 ) .

A cena traduz bem o fato de que, pela visão, os impulsos se excitam, mas o ato
de ver não satisfaz o desejo. Atesta, antes, a impossibilidade de chegar ao objeto
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desejado. Por isso, o olhar desejante quase sempre implica tristeza e impotência.
Vacilante sempre, o narrador “luta com as palavras”, recua e, às vezes, superpõe
à célula dramática do conto os conflitos de um relacionamento tecido de “instintos
espaventados” vários episódios periféricos, sem muita relevância para ele, tornando
o enredo e o tempo não lineares.
A ordem natural dos acontecimentos é constantemente alterada pelo narrador.
Esta estratégia é, na verdade, uma saída para proteger-se dos episódios mais
importantes e, por isso, mais difíceis de serem relatados. Ele tenta adiar, assim, as suas
revelações mais íntimas, que lhe queimam “feito caçoada”, o que reflete bem a sua
dificuldade de tentar desvendar em profundidade os mistérios daquela amizade.
Uma demonstração disto é, por exemplo, quando, para chegar finalmente ao que
chama “desagregação da amizade”, ele vacila, sofre, sinalizando claramente não querer
de fato enfrentar e assumir outra perda, mais uma entre as muitas que sofrera. Por fim,
confessa:

Est ou l ut ando desde o pri ncí pi o des tas explicações sobre a


desagregação da nossa ami zade, contra uma razão que me
pareceu inv ent ada enquanto escrev ia, para sutilizar
psi col ogicam ent e o conto. Mas agora não resist o mais. ( FP
- p. 152 ) .

Diante de tantas incertezas, Juca se depara com o embate entre desejo e


censura diante do suspeitado homossexualismo, do qual ele sentia medo; por isto, a
certa altura dos acontecimentos, quer livrar-se do amigo. Quando Frederico Paciência
lhe fala sobre uma possível futura separação entre eles, por causa dos ideais diferentes,
ele declara: “Em mim, fiz mais foi calcular depressa quantos anos faltavam para me
livrar do meu amigo” (p. 144).
Longe de Frederico Paciência, Juca livrar-se-ia da “condenação” que aquela
amizade lhe poderia acarretar, por isso via-se impelido a fugir do já conhecido conflito
desejo x medo, que, mais uma vez, impunha-se em sua vida.
Forçado pela realidade, Juca se vê impelido a barganhar o “absoluto” em troca
de muitas, de infinitas outras satisfações incompletas oferecidas pela vida. A caminho
da “desagregação sutil da amizade”, ele, aos poucos, transfere seu interesse para os
bailes e as noitadas de farra. Para Frederico Paciência, ele reserva “uma técnica de
manifestação” mais nobre, “com verdade perfeita mas sem curiosidade, sem a volúpia
de brincar com fogo, sem aprendizado mais” (p.151), mantendo com ele uma relação de
amizade sem grandes anseios, livre de “instintos espaventados”, regada a uma
atmosfera idílica de “domingos sublimes”/sublimados, através dos quais parece reviver

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a perfeição do passado:

Era uma v entura incontáv el esse encontro dominical, quant a


f ranqueza, quant o abandono, quanto p assado nos
enobrecendo, nos aprof undando e era como uma carícia
longa, v elha, ent edi ada. Viv íamos por v ezes meia hora sem
uma pal av ra, mas em que nossos espí ritos, nossas almas
ent reconhecidas se entendiam e se i rmanav am com s i lênci o
v egetal. ( grif o nosso) ( FP - p. 152 ) .

Para Juca, o lento afastamento entre eles possibilitou “um aperfeiçoamento de


amizade”, já que “não valia a pena sacrificar perfeição tamanha e varrer a florada que
cobria o lodo” (p.155), por causa daquela aventura. As “razões mais profundas” vêm
consumar mais uma desagregação, mais uma perda na vida de Juca: “um quebrar de
esperanças insabidas, uma desilusão, uma espécie de amarga desistência” (p.149).
Passada a plenitude do amor de amigo, surge “um jeito da amizade verdadeira”.
Juca não mais vê em Frederico Paciência uma espécie de um outro eu-mesmo que o
resgata da condição da falta, não mais condiciona o amigo a suas fantasias, a que chama
de “ficções” por ele fabricadas em torno da figura de Frederico Paciência e a paixão
arrefece diante do irresolvido.
Vale, por fim, destacar nesta narrativa que a linguagem e estrutura do conto
articulam-se de forma a refletir o estado emocional do protagonista ao relatar
acontecimentos tão delicados de sua vida. Nesta perspectiva, forma e conteúdo se (con)
fundem; o conflito vivenciado pelo narrador aflora no discurso, estabelecendo-se pela
linguagem em todo o texto. A tensão provocada pelo desejo insatisfeito é, assim, interna
e externa.
Nesta perspectiva, consideramos ser este conto um oportuno objeto de trabalho
em sala de aula, por possibilitar a observação, no tecido textual, da elaboração de um
discurso confessional sobre um tema delicado e, consequentemente, gerador de muitas
discussões e reflexões necessárias à visualização de aspectos humanos. Um texto
dessa natureza, com evidente carga emocional e intimista, requer, da parte do professor,
uma abordagem sensível, que sobreleve aspectos subjetivos inerentes ao texto de
natureza literária. Trabalhar com a subjetividade do texto e dos estudantes constitui-se,
pois, a tônica dessa abordagem.
Em "A leitura como retorno a si: sobre o interesse pedagógico das leituras
subjetivas", Vincent Jouve (2013) abre a exposição afirmando que "toda leitura tem,
como se sabe, uma parte constitutiva de subjetividade". Nessa direção, Langlade (2013,
p. 37) observa que essa maneira de leitura promove a participação do leitor, valorizando
as várias experiências vivenciadas, já que ela se constitui uma “apropriação da obra
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pelo leitor”, em que ocorre “um investimento emocional, psicológico, moral e estético”,
o que torna cada leitura singular, cada experiência pessoal.
Partindo desses entendimentos, propomos aqui a elaboração de um "Diário de
Leitura", nos termos concebidos por Annie Rouxel (2012, 2013), como um instrumento
que permite observar a existência de uma relação pessoal da leitura de uma obra e de
traços de um processo de elaboração identitária por parte do leitor, seja por afirmação
ou questionamento.
O Diário de leitura tem um papel pedagógico muito importante na formação do
sujeito leitor, notadamente em sua formação crítica e reflexiva. Machado (1998) afirma
que esse é um gênero que compõe a historicização de cada leitor, constituindo-o sujeito
de sua própria linguagem. Acerca do Diário de leitura Silva e Sousa (2013, p. 22)
observam que:
Se conseguirmos despertar o gosto e o prazer de ler em nossos
estudantes, poderemos avançar na formação de alunos leitores. Mas
essa é uma tarefa que exige cautela e disciplina. Cada leitura tem
objetivos específicos e, portanto, esses objetivos variam de acordo
com o momento e o contexto sócio histórico e cultural no qual cada
sujeito está inserido. Não podemos submeter os estudantes a leituras
que pouco ou nada têm a ver com seus gostos pessoais e culturais.
Precisamos buscar práticas e metodologias pedagógicas que agucem
o gosto pela leitura e isso deve ser feito, despertando no aluno a sua
autonomia para conduzir suas leituras, interesse e ritmo próprios.

Rangel (2003, p. 02) aponta que existem duas situações para essa construção (a
do Diário de leitura), quais sejam: fenômeno cognitivo e o fato histórico-cultural, assim
descritos:

No primeiro caso, o foco são as competências e as habilidades


implicadas no processo, assim como as estratégias de abordagem e de
processamento do texto, umas e outras entendidas como definidoras
do leitor como tal. No segundo caso, a preocupação é com o resgate
dos significados culturais historicamente atribuídos a certos autores,
obras, gêneros, estilos etc., fazendo de cada ato de leitura um exercício
coletivo e pessoal de reverência.

Considerando as características de um Diário de Leitura, acima apresentadas,


propomos uma experiência de leitura do conto "Frederico Paciência", de Mário de
Andrade. O caráter perturbador da temática constante do conto, especialmente por se
relacionar a uma fase tão complexa da vida, nos impele à exploração do conto junto a
leitores supostamente mais experientes, daí por que essa abordagem estar direcionada
a estudantes do Ensino médio, cujo perfil leitor, de maneira geral, aponta para uma
história de leitura mais extensa e diversificada.
Para fins de sistematização do percurso de elaboração do Diário de leitura,
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sugerimos, inicialmente, um primeiro contato com o texto, de forma “despretensiosa”,
com vistas à aproximação dos estudantes com o tecido textual, livres de amarras e
direcionamentos. Após isto, tendo em vista sempre as concepções de Rouxel (2012,
2013) que defendem o processo de leitura como expressão do sujeito leitor, propomos
alguns outros caminhos a serem considerados ao longo da leitura, quais sejam:

1) (Contato inicial com o conto)

O título lhe permite saber do que se trata a narrativa? Para você, a partir do que
anuncia o título, o que espera dessa narrativa?

2) (Leituras iniciais)

Como você avalia o fluxo narrativo inicial do conto? Você consegue visualizar
mentalmente o narrador? Justifique sua resposta.

3) (Mais adiante)

Pela forma como rememora os fatos vividos na adolescência, confirma-se a percepção


inicial desse narrador?

Em que sentido marcas discursivas e textuais refletem os sentimentos do narrador?


Justifique apontando algumas ocorrências.

4) (Ao final da leitura)

Após conhecer a matéria narrada, como você avalia a relação entre o narrador e a
realidade exterior?

Que efeito emocional causou no protagonista a separação entre ele e o amigo Frederico
Paciência? Justifique.

Sua percepção quanto ao tema Relacionamento homoafetivo mudou? Essa experiência


o leva a perceber acontecimentos, informações, ideias (ou algo que se assemelhe)
antes não percebidos?

Sua escola tem abordado o tema retratado no conto? Como você acha que a escola
poderia abordá-lo?

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Descreva as emoções (alegria, tristeza, raiva, ternura, outras) que sentiu durante a
experiência de sua leitura. Registre o que você julgou relevante nesta experiência de
Leitura.

Os registros de sua experiência pessoal devem ser feitos no seu Diário de Leitura, ao
fim de cada parte sugerida nas questões acima apresentadas.
Após essas etapas, recomenda-se que o coroamento da atividade – as
apresentações orais das experiências de leitura – seja realizado em um dia especial,
previamente agendado, em um ambiente devidamente organizado para este fim, de
modo a favorecer a espontaneidade dos estudantes para compartilharem suas
experiências leitoras.

Considerações Finais
Por constituir-se uma atividade escolar em que predomina a subjetividade,
caracterizada pela “escrita de si para si, compondo a historicização de cada leitor”,
conforme afirma Machado (1998 p. 08), o Diário de leitura permite que os estudantes
apresentem-se de forma mais espontânea diante das questões que lhes são postas.
Nesse sentido, a proposta de elaboração de um Diário de leitura estimula, a nosso ver,
os estudantes a mergulharem na leitura de textos trabalhados em sala de aula,
permitindo-lhes que exponham suas vozes e adquiram autonomia como sujeitos-
leitores, protagonistas do seu processo de leitura.
Para além da experiência proposta, a leitura do conto abordado pode ampliar as
dimensões de sentido que lhes possibilitem refletir sobre vivências e comportamentos
individuais e coletivos relacionados aos delicados temas suscitados no processo de
leitura. Esperamos que abordagens como esta – que privilegiam a experiência dos
estudantes – potencializem o seu importante e necessário encontro com o texto literário
e possibilitem vivências leitoras capazes de interferir positivamente no seu processo de
formação literária e humana.

Referências
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São Paulo: Global, 1988.

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Sabino. Org. Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record, 1981.

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do texto literário. In: III Simpósio de Pesquisa, Inovação e Pós-Graduação do Instituto
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2020. Anais.

JOUVE, Vicente. A leitura. Trad. Brigitte Hervot. São Paulo: Unesp, 2002.
, Vincent. A Leitura como retorno a si: sobre o interesse pedagógico das leituras
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LANGLADE, G. O sujeito leitor, autor da singularidade da obra. In: ROUXEL, A.;


LANGLADE, G.; REZENDE, N. L. de. (Org.) Leitura subjetiva e ensino de literatura. São
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LOPEZ, Telê Porto Ancona. Um contista bem contado. In: Mariodeandradiando. São
Paulo: Hucitec, 1996.

LOPEZ, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: Ramais e caminho. São Paulo: Duas
cidades, 1972.

MACHADO, Ana Rachel. O diário de leituras: a Introdução de um Novo Instrumento na


Escola. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

RANGEL, Egon de Oliveira. Letramento Literário e Livro Didático de Língua Portuguesa:


“os amores difíceis”. In: PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.). Leituras Literárias: Discursos
Transitivos. Belo Horizonte:
Autêntica/CEALE/FAE/UFMG, 2003.Disponível
em http://www.escrevendo.cenpec.org.br/ead. Acesso em 02/02/2020.

ROUXEL, Annie; LANGLÁDE, Gerárd; Rezende, Neide Luzia de. Leitura Subjetiva e
ensino de Literatura; (Org) Annie Rouxel e Gérard Langlade; coordenação de edição
brasileira Neide Luzia Rezende, São Paulo, Alameda, 2013.

ROUXEL, Annie. Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito
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SOUZA, R. C. de S. e. O diário de leitura no ensino fundamental: considerações iniciais.


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ENTRELAÇOS DA FORMAÇÃO DOCENTE: O LEITOR DE
LEITURA LITERÁRIA COMO SEDE DE INTERESSE

Cristina Rothier Duarte (UFPB)


Maria Betânia Peixoto Monteiro da Rocha (IFPB/UFPB)
Alessandra Gomes Coutinho Ferreira (IFPB/UFPB)
Girlene Marques Formiga (IFPB)

Eixo Temático: (Grupo Temático 9: Os espaços de leitura literária)

Considerações iniciais
No momento em que as adversidades da sociedade são intensificadas pela
propagação das mídias sociais, o lugar da ciência, do livro e da leitura parece ressoar
de forma mais amplificada. É possível inferir que a repercussão se acentuou nos últimos
meses em razão do isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19 e das
ações advindas de um sistema político vigente controverso, propensos a favorecer uma
maior atenção do público, a partir da concentração dos acontecimentos recentes por
meio do universo virtual.
Tal assertiva encontra respaldo em um estudo realizado por grupo de
pesquisa237, do qual fazemos parte, ao verificar consideráveis ações e atividades
relacionadas à leitura238, mediante uso de mídias digitais, entre os meses de março e
junho de 2020, quando evoluía no Brasil a vigente crise sanitária. Ainda que se perceba
na conjuntura governamental mais recente a exiguidade de investimentos assentados
na valorização da cultura e da arte, e, por conseguinte, do livro e da leitura, foi possível
registrar informações relevantes que estão compondo a história de leitura em um
momento dramático que vive o país e o mundo, trazendo à tona o "lugar" assumido pela
leitura nesse contexto (FORMIGA, ARAÚJO, AGUIAR, 2020).

237
Grupo de Pesquisa do IFPB/CNPq Leitura, Literatura, Ensino e processos formativos.
238
Parte do estudo, intitulado “Ler é resistir: estratégias de promoção à leitura em meio à pandemia da
Covid-19”, foi apresentado no I Seminário Interdisciplinar Linguagens, Culturas e Educação (SILCE),
realizado em 2020 pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) e Universidade Federal do
Tocantins/Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade (PPGCom|UFT).

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Em se tratando do refinamento da referida pesquisa voltada à predominância
de textos literários, o estudo conferiu à literatura um valor cultural e humano relevante
em meio virtual no contexto de pandemia que impôs isolamento social, ao revelar que
iniciativas individuais, grupos da sociedade civil, mercado editorial, instituições de
ensino público, eventos acadêmicos e órgãos governamentais contribuíram para a
difusão e o acesso à leitura. Essas ações promotoras de leitura remetem à proposição
de Candido (2004, p. 186), para quem a “literatura corresponde a uma necessidade
universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato
de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, liberta-nos do caos
e, portanto, nos humaniza".
Com base na compreensão de Candido (2004) e nos dados, apresentados por
Formiga, Araújo e Aguiar (2020), sobre a circulação da leitura literária agregada a uma
ideia de resistência humana diante dos infortúnios impostos pela pandemia, as
discussões do presente trabalho em torno do ensino de literatura tornam-se mais
significativas.
Na perspectiva de contexto educacional, o interesse pela relação ensino e
literatura data, no Brasil, da década de 80, quando a chamada crise da educação passa
a ser um dos grandes centros de debate. Acompanhando esse movimento, inicia-se a
discussão sobre o lugar da literatura na escola, reverberando em reflexões sobre
metodologia de ensino de literatura. Nesse contexto, o estudo acerca da literatura em
sala de aula passa a fazer parte da formação dos licenciandos em Letras.
Esta pesquisa nasce a partir das indagações advindas do componente
curricular denominado Metodologia do Ensino de Literatura que integra a matriz do curso
de Licenciatura em Letras a distância, com habilitação em Língua Portuguesa, do
Instituto Federal da Paraíba (IFPB), com o fim de contribuir para o estreitamento dos
laços entre a formação docente e os procedimentos teórico-metodológicos do texto
literário aplicados na Educação Básica. Em face dessa necessidade e a de ampliar o
debate sobre o ensino da literatura na formação inicial, que procedimentos teórico-
metodológicos poderiam ser adotados, no âmbito da graduação de Letras do IFPB, com
vistas a fortalecer as práticas de leitura do texto literário em sala de aula?
Partindo da experiência do leitor enquanto sujeito ativo do processo de
interação com texto, a proposta tem como foco uma abordagem voltada à prática de
leitura do texto literário centrada no leitor real. Tal proposição, assentada na perspectiva
na abordagem subjetiva (ROUXEL, 2007; 2012; 2013), constitui nosso objeto de estudo,
cujos objetivos geral e específicos, respectivamente, são: discutir sobre o ensino da

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literatura na formação inicial; descrever a proposta metodológica direcionada aos
cursistas de Letras do IFPB; apresentar a fundamentação teórica que a embasa; e
analisar a sua contribuição para a formação do professor de literatura.
A pesquisa, classificada quanto aos fins como descritivo-exploratória e quanto
à abordagem, como qualitativa, utiliza-se do componente curricular Metodologia do
Ensino de Literatura para experimentar vivências com a leitura do texto em sala de aula.
A escolha do objeto se deu em razão da necessidade de não apenas discutir questões
metodológicas a serem aplicadas no fazer pedagógico, como prevê a ementa da
disciplina, mas, sobretudo, oportunizar experiências de leituras, durante o curso, aos
futuros docentes, dadas as necessidades de formação de leitores literários no processo
de escolarização em nível do Ensino Fundamental e Médio – formação a que se destina
às Licenciaturas.
Para o desenvolvimento do estudo, empregamos como suporte teórico o
entendimento de literatura e sua relação com o ensino a partir de Rouxel (2007; 2012;
2013), Jouve (2013) e Candido (2004). O nosso referencial parte de uma abordagem do
texto literário na sala de aula como um processo de educação humanística, cuja
capacidade conduz leitores a uma postura emancipadora, por isso propícia a formar, de
maneira mais ampla, sujeitos plenamente partícipes de sua condição humana e dos
desdobramentos na vida em sociedade, como defende Freire (2011). Essa concepção
é permeada ao longo do texto, que parte do estudo de um caso no escopo de uma
instituição pública específica, mas perfeitamente cabível a ações extensivas a outras
esferas educacionais.

O contexto do desenvolvimento de práticas de leitura: a formação


articulada com a pesquisa
A ciência, a cultura e a arte – com destaque para a literatura, foco desta
investigação, são domínios explorados em contextos educacionais, espaços que
medeiam os processos de ensino e aprendizagem voltados ao funcionamento da vida
em sociedade. Nesses processos, estão situadas as correlações entre ensino e
pesquisa, a exemplo do presente estudo que emerge de um cenário no qual se inserem
os seus autores, atuando como docente e discente em confluência do tratamento do
texto literário em sala de aula.
O lugar dos sujeitos envolvidos nesta investigação se ancora num contexto
histórico específico, qual seja: a vivência no processo de ensino no âmbito do curso de
Letras do IFPB por meio do componente curricular Metodologia do Ensino de Literatura

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que, como em qualquer outro saber institucionalizado, é permeado de embates, motivo
pela qual carece de intervenção, seja para (re)articular procedimentos já adotados, seja
para gerar novos conhecimentos que apontem direcionamentos na resolução de
problemas, associando, dessa forma, a relação dialógica entre teoria e prática tão
necessária ao espaço social como é a escola.
Convém ainda mencionar que esta pesquisa constitui-se em uma alternativa
de resposta ao ensino de literatura, por estar amparada em descobertas de outros
estudos já realizados pelo grupo (ROCHA, FORMIGA e DUARTE, 2020; INÁCIO,
FORMIGA e AGUIAR, 2020; FORMIGA, INÁCIO e DUARTE, 2019; ROCHA et. al.,
2019; FORMIGA e DUARTE, 2018; DUARTE, FORMIGA e INÁCIO, 2018). Tais
investigações apontam necessidades de ampliar articulações em torno de caminhos que
favorecem a promoção de leitores no âmbito do ensino de literatura na Licenciatura em
Letras do IFPB.
As reflexões sobre as experiências vivenciadas no curso são articuladas pelo
princípio da busca, da pesquisa, que deve ser inerente à natureza da prática docente,
segundo os preceitos de formação permanente sustentados por Freire (2011, p. 14).

Ensinar exige pesquisa. Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem


ensino. Esses que fazeres se encontram um no corpo do outro.
Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque
busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para
constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo.
Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou
anunciar a novidade.

Essa compreensão de formação permanente do docente respalda a nossa


prática em não dissociar o exercício pedagógico com a reflexão desse fazer. Nesse
sentido, tentamos redimensionar o processo de ensino de literatura no ensino
fundamental e médio, a partir da contribuição dos suportes teórico-metodológicos que
ensejem a construção do conhecimento dos envolvidos, a exemplo da leitura subjetiva
defendida por Rouxel (2007; 2012; 2013).
Nessa dimensão, resultados dos estudos desenvolvidos no âmbito do grupo de
pesquisa apontam para adoção de atividades de leituras condizentes com a ementa do
componente curricular, objeto desta investigação, ao tempo que permitem aplicar um
conjunto de ações fundamentais direcionadas ao discente, o professor em formação
inicial, a exemplo do enfrentamento das dificuldades dos graduandos em compor um
repertório de base de textos literários a ser repercutido na sua prática docente.
O posicionamento é também fundamento nas atuais Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica, ao
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instituírem, na organização curricular dos cursos destinados a essa formação, em
consonância com as aprendizagens prescritas na BNCC da Educação Básica, em seu
art. 7º, inciso IV, entre outros princípios norteadores, o de “reconhecimento do direito de
aprender dos ingressantes, ampliando as oportunidades de desenvolver
conhecimentos, habilidades, valores e atitudes indispensáveis para o bom desempenho
no curso e para o futuro exercício da docência” (BRASIL, 2019).
Assim, em um contexto de instituição pública de natureza pluricurricular,
especializada na oferta de educação profissional e tecnológica nos diferentes níveis e
modalidades de ensino, incluindo as licenciaturas, discutiremos, a seguir, o ensino da
literatura na formação inicial, antes da descrição da proposta metodológica direcionada
aos cursistas de Letras.

O processo de ensino de literatura na formação inicial: a leitura integrada


à prática docente
A Metodologia do Ensino de Literatura, componente do qual parte a proposta
metodológica destinada aos estudantes do curso de Letras do IFPB, é ofertada no 5º
semestre em sua organização curricular, quando é possível dispor de certos
conhecimentos relativos à dimensão da prática profissional no campo da Língua, da
Literatura e da formação didático-pedagógica.
Inserido na modalidade a distância, o curso utiliza como Ambiente Virtual de
Aprendizagem (AVA) a plataforma Moodle, onde ocorrem as atividades acadêmicas,
sistematizadas por um desenho pedagógico definido pela própria instituição. Assim,
Metodologia do Ensino de Literatura, ministrada em ambiente virtual com uma carga
horária de 60 horas/aula, equivalente a 4 créditos, compreende, em sua ementa, análise
de propostas pedagógicas para o ensino de Literatura e suas abordagens
metodológicas dos conteúdos (BRASIL, 2017).
Em um estudo de depoimentos que versam sobre a experiência de leitura
literária desses graduandos, aplicados em uma atividade compartilhada no componente
curricular, a fim de se aferir qual o vínculo desses (futuros) docentes em formação com
o seu objeto de ensino (DUARTE, FORMIGA e INÁCIO, 2018), verificamos a
imprescindibilidade de ampliar as práticas de leituras com o texto literário durante o
curso. Tal necessidade se justifica mais fortemente na expressão de alguns
depoimentos dos que já se encontravam na docência na educação básica, ao revelarem
que o pouco contato com a literatura já reverberava na sua atuação de sala de aula.

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Esse resultado é reiterado na pesquisa realizada por Formiga, Inácio e Duarte
(2019), na qual discute como se apresenta os comportamentos e perfis leitores dos
graduandos, mediante análise de práticas de leituras desenvolvidas no mesmo
componente curricular, além de apontar a importância da autorreflexão sobre o
desenvolvimento da experiência de leitura literária por parte dos diferentes sujeitos
envolvidos – o professor e os graduandos.
De posse desses dados, alargamos a pesquisa de modo a procedermos à
análise do material didático básico, relativo à abordagem literária ministrado no
componente curricular, examinando se a formação proposta seria capaz de oferecer
caminhos para que, uma vez em sala de aula, o professor formado em Letras pelo IFPB
assumisse de maneira eficaz seu papel de mediador para formação de leitores. Isso
posto, observamos a necessidade de “estender discussões em torno das perspectivas
diferentes da abordagem do texto literário que pudesse contemplar um novo cenário de
investigações e práticas no campo da formação do aluno leitor de textos literários, bem
como do professor mediador de leitura” (ROCHA et. al., 2019, p. 14).
A partir dessa apuração, optamos por estender os estudos em torno da leitura
subjetiva como procedimento do texto literário a ser tratado no material complementar
do referido componente curricular, por compactuarmos com Rouxel (2013) que essa
abordagem favorece da expressão do sujeito leitor e com Jouve (2013) que o plano
afetivo e o plano intelectual, constitutivos tradicionalmente do ato de leitura, são
afetados pela subjetividade.
Mesmo cientes de que há uma tradição escolar e universitária, ainda em curso,
centrada na ideia de que a subjetividade seja fonte de erros, contrassensos e delírios
interpretativos (ROUXEL, 2018), prosseguimos imbuídos na defesa de que a
abordagem da leitura subjetiva consiste em um dos caminhos para a formação do leitor
literário. Nesse aspecto, convém destacar que a leitura subjetiva “não se configura como
o abandono da leitura analítica e não ocorre de maneira solta, sem direcionamento: o
processo permite o acolhimento dos modos de leitura anteriores e busca avançar na
intervenção do leitor na construção de sentidos” (INÁCIO, FORMIGA e AGUIAR, 2020).
Ampliando o percurso de pesquisa voltada a esse objeto, a pesquisa
desenvolvida por Rocha, Formiga e Duarte (2020) nos impulsiona a seguir relacionando
as práticas de leitura no curso de Letras à abordagem subjetiva. Desse modo, propomos
uma atividade de leitura compartilhada por meio de um Fórum de discussão (recurso
didático do AVA), inserida na carga horária da prática formativa de Metodologia do

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Ensino de Literatura, com a obra Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice
Lispector (1998).

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector: o leitor


como instância central no processo de leitura.
Clarice Lispector é uma das maiores escritoras da literatura brasileira. Os seus
textos literários são objetos de estudos das mais diversas áreas do conhecimento –
Antropologia, Filosofia, Sociologia, Psicologia, Psicanálise – e a fortuna crítica dos
estudos literários é ampliada ano após ano. A singularidade de sua obra literária
proporciona ao leitor o inquietar-se diante de situações cotidianas reveladoras das
efemérides da vida e das profundezas da essência humana que se mesclam em
narrativas plurais através de personagens que refletem sobre o sentido da existência
humana.
Além disso, é uma autora recorrente nos livros didáticos (LD) do ensino médio
que privilegiam a sistematização de autores e obras em uma abordagem histórico-
cronológica, procedimento que por si já justificaria a necessidade de suscitar um debate.
Investigar a presença de Clarice Lispector nos LD significa situá-la em um contexto
histórico do que se convencionou denominar geração de 1945, ou terceira fase do
modernismo (1945 – 1960) ou ainda pós-modernismo (1945 aos dias atuais). Pelo
caráter singular de sua obra e por estar presente no cotidiano escolar através dos livros
didáticos, selecionamos o romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres,
publicado em 1969, para a uma prática de leitura literária com os alunos da disciplina
de Metodologia do Ensino de Literatura do curso de Letras do IFPB.
Segundo Nádia Gotlib (2013), o romance favorece uma pluralidade de leituras.

De fato, o romance pode ser lido como uma ars amatória, como sugere
o próprio título. E, simultaneamente, como uma “arte de expressão”, ou
seja, arte do representar ou expressar esse amor. Numa terceira
instância, pode ser lido também como meta romance: a arte do contar
esta história, que é uma história de amor, e de seu modo de ser
contado pelos amantes; a arte de se voltar a cada instante para a
história que se conta. O romance constrói-se a partir do movimento das
relações entre duas pessoas envolvidas nesse jogo amoroso: um
homem, Ulisses, e uma mulher, Lóri. (GOTLIB, 2013, p. 484)

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres é uma obra que fala sobre uma
aprendizagem amorosa, em uma relação eu-outro, isto é, “a descoberta de um eu
através da imagem de um outro” (GOTLIB, 2013) em que Ulisses, um professor de
Filosofia, se ausenta e espera até que Lóri esteja pronta para o amor.

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A proposta de leitura com o romance de Clarice Lispector é parte de uma
atividade mais ampla que integra a composição da carga horária, destinada à prática
pedagógica, nos cursos de Licenciaturas, que inclui a dos componentes curriculares dos
Grupos I e II, distribuída ao longo do curso, desde o seu início, em conformidade o PPC
da instituição formadora, segundo estabelece a Resolução Nº 2, de 20 de dezembro de
2019 (BRASIL, 2019):

I - Grupo I: [...] para a base comum que compreende os conhecimentos


científicos, educacionais e pedagógicos e fundamentam a educação e
suas articulações com os sistemas, escolas e práticas educacionais.
II - Grupo II: [...] para a aprendizagem dos conteúdos específicos das
áreas, componentes, unidades temáticas e objetos de conhecimento
da BNCC, e para o domínio pedagógico desses conteúdos.

A atividade proposta, que contempla aspectos da formação docente de que


tratam os Grupos I e II, configura a segunda parte de uma sequência desenvolvida em
três fases. Na primeira, foram empreendidas leituras e discussões preliminares sobre a
importância do profissional de Letras ser um leitor, condição que favorece a formação
de leitores na educação básica; em seguida, foi realizada a leitura do romance Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector, acompanhada por meio
de um Diário de Leitura (ROUXEL, 2012, 2013); e, por último, o docente em formação
propõe uma prática de leitura para o ensino fundamental II ou Médio seguindo a
abordagem subjetiva.
O acompanhamento da leitura por meio de um Diário de Leitura permite
observar a existência de uma relação pessoal da leitura de uma obra e de traços de um
processo de elaboração identitária por parte do leitor, seja por afirmação ou
questionamento. Desse modo, seguindo as concepções de Rouxel (2012), que defende
o processo de leitura como expressão do sujeito leitor, haja vista o favorecimento
da construção de sentido do texto literário mediante sua experiência estética,
estabelecemos alguns percursos a serem considerados ao longo da leitura do romance
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, quais sejam:
I- (As primeiras iniciais sobre a obra. Observe a capa, as ilustrações, as cores,
o formato...) O título lhe permite saber do que se trata a obra? Para você, a partir do que
anuncia o título, o que espera dessa narrativa? Qual seria a relação
entre “aprendizagem” e “prazer”?
II- (Ao ler as primeiras páginas) Sua inferência foi confirmada ou negada?
Explique como você chegou a essa resposta?
III- (Ao ler as epígrafes que antecedem a narrativa). A primeira epígrafe é uma
passagem bíblica do livro do Apocalipse narrada por São João; a segunda, um
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fragmento de um poema de Augusto dos Anjos e a terceira, um oratório dramático
escrito pelo francês Paul Claudel. A seu ver, qual a relação desses textos com a história?
IV- (Ao ler o primeiro parágrafo da narrativa) Para você, por que a história se
inicia com uma vírgula? Qual o sentido desse procedimento ao final da leitura da
narrativa?
V- (Ao ler sobre a protagonista) Como se apresenta a relação entre a
protagonista e a realidade exterior?
VI- (Ao ler as passagens que constroem a relação entre Lóri e Ulisses). A
protagonista se encaixa nos padrões de seu meio. O que você acha que vai acontecer
com ela?
VII- (Ao ler as passagens seguintes) O que você imaginou foi confirmado ou
não? Como você chegou a esse sentido? Quais informações você confrontou?
VIII- (Após ler o desfecho do romance) Suas impressões foram confirmadas?
Descreva como ocorreu em sua mente ao saber o que aconteceu com a protagonista.
IX- (Ao final da leitura) Que justificativa você pode apresentar para a autora
não demarcar capítulos nesse romance? E para inexistência de parágrafos (início do
romance) como ocorre em narrativas tradicionais? Qual a relação desses
procedimentos com a construção da história?
X- (Ao final da leitura) Descreva as emoções (alegria, tristeza, raiva, amor...)
que sentiu durante a experiência de sua leitura. Se em algum momento se identificou
com as personagens, demonstre essa identificação. Se puder, registre o que promoveu
essa identificação ou, ainda, o que julgou relevante.
Uma orientação acrescentada à atividade é que os registros da experiência
pessoal devem ser feitos no Diário de Leitura ao fim de cada parte sugerida nas
questões apresentadas (que podem ser ampliadas pelo leitor) com o intuito de favorecer
a expressão escrita da leitura subjetiva e, posteriormente, essas memórias da recepção
do romance poderiam ser compartilhados com a turma em um fórum de discussão no
ambiente virtual de aprendizagem.
A abordagem da leitura subjetiva registrada em diários de leitores, segundo
Rouxel (2012) incentiva os alunos a tomarem consciência de processos metacognitivos
nos percursos interpretativos de um texto literário a partir do protagonismo do leitor – o
leitor real e a sua subjetividade, isto é, uma abordagem do texto literário que aproxima
o sujeito do texto literário. Além disso, Raquel Souza (2016, p. 185) corrobora a
importância dos diários de leitura para o registro da leitura subjetiva ao promover

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a observação do processamento da leitura, desde a lógica associativa
que lhe é própria (tanto em relação às vivências individuais quanto a
textos lidos), até a singularização do texto e sua apropriação pessoal,
o que nos ajuda a compreender como se determinam os gostos e a
identidade de leitor. (SOUZA, 2016, p. 185)

Assim, paulatinamente, os alunos preencheriam os diários de acordo com a


estrutura sugerida no comando da atividade, com possibilidades de ampliação,
conforme seu ritmo de leitura, suas percepções e afetos.

Considerações Finais
As questões apresentadas revelam que o papel da leitura literária ultrapassa o
saber didático partilhado entre docente e discente no âmbito da escola, dada a
capacidade emancipadora e humanizadora da literatura. Nesse aspecto, as
contribuições das práticas desenvolvidas na formação docente na Licenciatura implicam
diretamente a atuação desse profissional que, por sua vez, deverá desenvolverá
atividades na educação básica com vistas à formação de leitores.
No que se refere à formação do licenciando em Letras, um componente como
Metodologia de Ensino de Literatura pode proporcionar a construção de suas bases
teórico-metodológicas, além de um repertório mínimo necessário ao tratamento
adequado do texto literário na sua atuação docente, especialmente para aqueles que
não contam com uma história de leitura mais extensiva. Para além disso, a autorreflexão
advinda das atividades que permeiam esse componente contribui para repensarmos –
docentes e discentes – a construção ou ampliação do repertório de leituras, que
certamente influenciarão em suas mediações para formarem leitores na esfera da
literatura.
Os resultados do presente estudo ainda nos mostram que o ensino da
literatura, à luz da abordagem da leitura subjetiva, apresenta um maior potencial para a
formação do leitor literário, tendo em vista que, trazendo a interação texto/leitor para o
centro de interesse da aula de literatura, o texto literário passa a fazer mais sentido e
consequentemente se torna mais atrativo para esse leitor. A compreensão do que vem
a ser uma leitura subjetiva, em uma perspectiva mais ampla, conforme Rocha, Formiga
e Duarte (2020, 394-395), é dada

a partir da valorização daquilo que ela não é: objetiva. A leitura literária


objetiva se aproxima mais da praticada por parte de muitas escolas e
de cursos de formação em Letras em Língua Portuguesa e Literatura,
cujo objetivo, de maneira geral, é compreender o texto a partir de
instrumentos de análises desenvolvidos pela crítica literária. Nesse
sentido, é útil a compreensão do que vem a ser o espaço na narrativa,
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como se constituem os personagens, como configura-se o tempo. A
leitura subjetiva, de outro modo, propõe uma mudança de perspectiva
de leitura, mas não descarta os instrumentos de análise citados ou de
quaisquer outros capazes de contribuir para a abordagem de uma obra.

Com base nessa concepção, os direcionamentos do processo de formação de


professores no curso de Letras do IFPB, no que tange à formação ao ensino de
literatura, estão entrelaçados com práticas de leitura que investem nas experiências
subjetivas dos leitores reais, condicionadas pelas suas condições histórico-sociais.

Referências
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as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a
Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de
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LETRAMENTO LITERÁRIO EM AMBIENTE DIGITAL:
INCENTIVAR O PRAZER DE LER EM TEMPOS DE PANDEMIA

Autor: Douglas Zeferino Silvestre


Coautora: Elisa Maria Dalla-Bona
Programa de Pós-Graduação em Educação – Teoria e Prática de Ensino –
Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Eixo Temático: Os espaços de leitura literária.

Introdução
Minha atuação docente na educação básica pública no município de Curitiba
me levou a perceber que poucos professores valorizam a biblioteca e os livros literários
presentes na escola. Não é raro encontrarmos bibliotecas escolares fechadas, ou
quando abertas com uma prática pedagógica inadequada (sem planejamento, livros
inalcançáveis, a leitura literária sofre com o didatismo e o utilitarismo). Para se
consolidar um trabalho efetivo de formação do leitor literário seria necessário a presença
mais constante e efetiva das práticas pedagógicas que incluem o livro na convivência
escolar, disponibilizar os cantos de leitura das salas, organizar o empréstimo de livros
semanalmente na biblioteca, contemplar nos planejamentos dos professores um
trabalho com obras de diferentes gêneros literários dentre várias outras iniciativas que
aproximem o leitor do livro e lhe provoquem o desejo de ler.
A 5ª Edição da pesquisa Retratos da leitura no Brasil (INSTITUTO PRÓ LIVRO
(IPL), 2020), com dados de 2019, identificou entre estudantes de todos os níveis de
escolaridade que 81% são leitores, enquanto que entre as pessoas que não estavam
estudando, apenas 42% poderiam ser caracterizadas como leitoras, demonstrando a
importância e a influência da instituição de ensino no fomento à leitura. A mesma
pesquisa identificou que a classe e renda familiar também influenciam diretamente na
quantidade de leitores no Brasil, demonstrando que quanto maior o poder aquisitivo do
grupo de pessoas, maior a porcentagem de leitores e, quanto menor o poder aquisitivo
do grupo pesquisado, menor a porcentagem de leitores: na Classe A, em 2019, 67%

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foram considerados leitores, enquanto o mesmo índice ficou em 38% nas Classes D/E;
ainda, 46% das pessoas que ganhavam até 1 salário mínimo eram leitores, o índice foi
de 70% entre os que ganhavam mais de 10 salários mínimos. Reconhecido o
protagonismo das escolas e bibliotecas públicas na formação de leitores, considerando
a capacidade de democratização do acesso aos livros pelas diversas camadas
populares através da escola, em tempos de ensino remoto seria possível os
professores, junto às famílias, proporcionarem momentos de leitura, mesmo distantes
do espaço escolar tradicional?
A pandemia de COVID-19 escancarou as desigualdades socioeconômicas,
forte realidade brasileira que reproduz suas faces nos mais diversos ambientes, como
saneamento básico, saúde, segurança, educação, justiça, tecnologia e todas as
injustiças específicas a cada área. No abismo social entre a tecnologia disponível e a
capacidade de compra, ou até mesmo de uso, está uma das realidades que a escola
pública enfrentou para disponibilizar o ensino remoto de maneira democrática, gratuita
e efetiva. Em Curitiba, por exemplo, entre tantas cidades com a mesma prática, foram
disponibilizadas videoaulas por meio da televisão com canal aberto e Youtube, junto a
atividades complementares elaboradas pelos professores. Entre as videoaulas há
brilhantes contações de histórias nas aulas de Literatura, com planejamento e
metodologias muito preocupados com a formação do leitor literário, mas devido a
cuidados sanitários os livros que antes circulavam entre crianças e familiares já não
circulam mais.
Na intenção de contribuir para encontrar novas formas de fazer as histórias
circularem, favorecer o papel da escola na formação do leitor literário, para despertar o
prazer de ler e para possibilitar as diversas experiências literárias, este texto se propõe
a mapear os ambientes de leitura literária digital, disponíveis para uso público, que
favoreçam diversas experiências literárias e que contenham livros de literatura digitais.
Para o mapeamento dos ambientes digitais para leitura literária foram realizadas buscas
por meio das palavras-chave, com o método de análise de Revisão Sistemática
(COSTA; ZOLTOWSKI, 2014), com o objetivo de realizar um levantamento de espaços
digitais de leitura literária e a caracterização desses espaços. As plataformas
encontradas foram organizadas em tabela com título, endereço eletrônico, descrição,
formas e condições de uso. Este estudo faz parte de uma dissertação ainda em
produção, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação – Teoria e Prática
de Ensino (UFPR), com ênfase em Letramento Literário, orientado pela professora Elisa
Maria Dalla-Bona.

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Letramento literário
Cosson (2019) afirma que o ser humano é composto por diversos corpos, o
corpo físico, o corpo mental, o corpo espiritual, o corpo linguagem, entre outros tantos
corpos, que quando aperfeiçoados temos desenvolvidas nossas habilidades
emocionais, sociais e motoras. Ler e escrever nos mais diferentes suportes, segundo o
autor, exercita o nosso corpo linguagem que é feito de palavras, o que favorece todos
os outros corpos, já que por meio da leitura ou escrita adquirimos conhecimentos que
interpretamos e aplicamos de maneira a nos favorecer em determinados aspectos,
como na escrita e planejamento de uma agenda de rotina, por exemplo, que pode
envolver exercícios físicos, ao passo que organiza o corpo mental, o corpo do trabalho,
dos estudos, da leitura, do sono... “Em síntese, nosso corpo linguagem é feito das
palavras com que o exercitamos, quanto mais eu uso a língua, maior é meu corpo
linguagem e, por extensão, maior é o meu mundo” (COSSON, 2019, p. 16). Nesse
sentido de ampliação de mundo através da leitura e escrita literária, quando lemos ou
escrevemos literatura temos a possibilidade de nos encontrarmos, apenas folheando as
páginas e imergindo na história, compreendendo padrões, normas convenções,
rompemos, se quisermos, com hábitos, tradições, assim também compreendemos e
melhoramos o senso de comunidade a partir do senso de nós mesmos.
Como dizem no provérbio que se popularizou “Com grandes poderes vêm
grandes responsabilidades”, e assim a literatura assume a responsabilidade do grande
significado que é a experiência a ser realizada (COSSON, 2019), aquela que inspira
desejos e criatividade, o incremento do outro (autor) naquele que lê (leitor), o que “(...)
não só nos permite saber da vida por meio da experiência do outro, como também
vivenciar essa experiência” (COSSON, 2019, p. 17). Por esse poder conferido e
conquistado pela literatura que um de seus lugares de destaque é e precisa ser a escola.
Na escola se encontra não apenas as políticas de acesso e distribuição dos livros
literários, como algo mais importante: o ser humano capaz de ensinar a ler e escrever o
mundo com suas próprias palavras, o professor. Antes da escrita as histórias já
encontravam, e ainda encontram, seu espaço nas tradições orais, mesmo sem livros as
histórias já caminhavam pelos professores e pelos sujeitos reconhecidos para contarem
uma história. O livro é peça fundamental no desenvolvimento da leitura, quando
encontra o professor forma-se então o poder do letramento literário.
O letramento literário é a formação do leitor que vai além do ato mecânico da
habilidade leitora, almeja a leitura como uma experiência de vida, respeitando a

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autonomia do leitor, envolvendo suas reflexões diversas, sua realidade, favorecidos por
propostas metodológicas que valorizam e geram um ambiente em torno da leitura.
Assim, o letramento literário é como uma alternativa para tornar os estudos mais
prazerosos, coletivos e produtivos, nesse processo o leitor compreende a literatura
como linguagem expressiva de um mundo, de uma pessoa, de um espaço, enfim, a
literatura como linguagem que tem em si características próprias, não é um
complemento nem pretexto para práticas pedagógicas. Segundo Cosson (2019, p. 23),
“(...) devemos compreender que o letramento literário é uma prática social e, como tal,
responsabilidade da escola.” Enquanto responsabilidade da escola, de todos nós os
profissionais atuantes, o letramento literário não pode parar diante das dificuldades
impostas pela emergência em saúde pública, sendo emergente também as alternativas
ao uso da literatura na escola com atividades presenciais.

Escolarização da literatura
Na pesquisa do Instituto Pró-livro (2020, p. 31) identificaram que 48% das
crianças de 5 a 10 anos, ou seja, aquelas que estão na escola de ensino fundamental I,
leem livros porque gostam, índice muito acima da média geral (26%) e dos que leem
por motivo de exigência escolar, na mesma faixa etária, índice de 12%. Para muitos
(82%) o lugar habitual da leitura é em casa, seguido das salas de aula (23%) e
bibliotecas em geral (20%). Os dados demonstram que a escola é fundamental na
promoção da leitura, especialmente nos anos iniciais de escolarização, mas não é
espaço exclusivo de interesse e busca por material, sendo que o professor é a figura
que mais influencia o gosto pela leitura entre leitores e não leitores (IPL, 2020),
especialmente sobre aqueles sujeitos que estão na educação básica, mas a maioria dos
leitores afirma ter comprado ou ter sido presenteado por algum livro, enquanto 13%
acusam ter emprestado da escola.
A escolarização da literatura foi decisiva na definição pelo (des)gosto da leitura
para muita gente. Uma rotina pesada, automática, que fez dos livros meros objetos para
realização de atividades. Nessa perspectiva de uso, em que a escola se apropria da
literatura para fins específicos (SOARES, 1999) a leitura não é um momento de
aproveitamento em si, mas um ponto de partida pouco explorado que desvaloriza todo
o caminhar na prática leitora, ou até utiliza trechos desconexos em meio a atividades
que deturpam a obra. O problema não consiste no simples uso inadequado do livro, mas
as atividades direcionam para uma leitura não prazerosa, mais por dever de ser, que vai

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questionar título, autor, personagens e fato principal como perguntas limitantes ao
desenvolvimento da habilidade leitora, com o objetivo de interpretações uniformes.
Nem por isso o trabalho pedagógico desenvolvido em torno e através da leitura
pode ser excluído, pois o processo de escolarizar tem raízes em hábitos e culturas
históricos, não se pode atribuir “(...) conotação pejorativa a essa escolarização,
inevitável e necessária; não se pode criticá-la ou negá-la, porque isso significaria negar
a própria escola” (SOARES, 1999, p. 21). Para Zilberman e Rösing (2009) a crise de
leitura identificada em diversas avaliações externas à escola “(...) reflete uma crise da
escola em decorrência da parceria historicamente estabelecida entre o ensino e a
aquisição das habilidades de ler e escrever.” (ZILBERMAN; RÖSING, 2009, p. 28).
Cabendo assim na prática docente pouco espaço para apreciar a arte e a linguagem
que envolvem a literatura e, além disso, a pequena efetividade das políticas
educacionais nas questões relacionadas à qualidade do ensino, como na formação
continuada, dificulta a reinvenção das práticas escolares.
A cultura literária descrita acima é também reflexo de experiências pouco
amáveis de leitura por parte de quem direciona as atividades. O culpado não é uma
pessoa, e Magda Soares (1999) aponta que realizar a discussão sobre as práticas
leitoras em ambiente escolar confirma a necessária e inevitável escolarização da
literatura, promovendo então reflexões sobre “(...) como se deve ensinar literatura, como
se deve trabalhar o texto literário, como se deve incentivar e orientar a leitura de livros”
(SOARES, 1999, p. 22). Pressupondo que a sociedade passa por profundas
transformações a partir dos avanços tecnológicos, compreende-se também que os livros
que antes ocupavam lugar privilegiado na cultura escrita, agora dividem espaço com a
cibercultura e novas formas de leitura,

Se, pelo lado de dentro, a crise da leitura provém da crise da escola,


em decorrência da escolarização precária de que são objeto os
estudantes, pelo lado de fora, ela parece advir do aparecimento e da
expansão de outros meios de veiculação de informações que, à
primeira vista, provocam seu encolhimento e ameaçam substituí-la.
(ZILBERMAN; RÖSING, 2009, p. 28)

Essa velha crise produz leitores desinteressados que em situação de


vulnerabilidade econômica e social forma-se um ciclo de não leitores que envolve a
escola, comunidade, família e criança. Coletiva e/ou individualmente a leitura é
determinante nas escolhas, possibilidades e conhecimentos de cada pessoa, “a
conquista da habilidade de ler é simultaneamente o primeiro passo em direção da
liberdade, de uma parte e de outra, para a assimilação dos valores da sociedade”

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(ZILBERMAN; RÖSING, 2009, p. 27). O Instituto Pró-livro (2020) identificou também
que, entre os que usaram a internet, as opções de lazer que envolvem leitura e escrita
(trocar mensagens, assistir, escutar música, jogar, acessar ou participar de redes
sociais) são predominantes, mas a leitura de livros ou estudos é realizada na internet
apenas por 7% do grupo. A leitura de livros digitais ocorre principalmente na população
de 18 a 39 anos, sendo a ocorrência entre crianças da educação básica bem baixa (3%
entre leitores no ensino fundamental I e II, e de 11% no ensino médio), grupo este que
demanda maior atenção aos riscos à saúde quando expostos às telas de maneira
excessiva e descontrolada.
Encontramos no ciberespaço uma oportunidade para a prática leitora em
tempos de pandemia e ensino remoto, já que por diversos ambientes é possível atingir
muitos gostos de leitura, através de um link chega-se ao livro digital, acessível a
qualquer pessoa que utiliza a internet, segundo Lemos (2004, p. 15) “O ciberespaço é,
ao mesmo tempo, lócus de efervescência social e canal por onde circulam formas
multimodais de informação.” Assim, a literatura então é expandida para além dos limites
do livro, da escola, das bibliotecas e da mediação dos agentes de leitura, promovendo
processos de cooperação, compartilhamento e modificação criativa de obras.

A leitura digital
Lemos (2004) parte da lógica de que a cultura que se refere ao convívio social
físico é replicada em sua essência e potencializada na cibercultura, “a saber o
compartilhamento, a distribuição, a cooperação, a apropriação dos bens simbólicos”
(LEMOS, 2004, p. 11). Esse convívio e cooperação criativos no ambiente digital são
chamados copyleft, marcando território contrário ao “copyright”, que por sua vez é
marcado pela propriedade e uso condicionado das ferramentas. Para o autor, toda essa
prática definida como copyleft parece novidade, mas “é o que estrutura qualquer
dinâmica identitária e cultural: a troca, as influências mútuas, a cooperação” (p. 11) e
ainda “A apropriação criativa (não estamos falando de plágio) é a essência mesma de
toda Cultura e a base da nossa identidade cultural” (p. 12). Nesse sentido buscamos
mapear dispositivos de leitura que levem os leitores a vivenciarem mais essa
experiência de vida, “Uma cultura complexa é uma cultura plural, aberta, circulando
livremente pelo corpo social” (LEMOS, 2004, p. 13).
O autor também traz que a cibercultura compreende um território planetário, o
que favorece a prática leitora para andar entre livros na maior diversidade de produções
possível, o ciberespaço reproduz e cria uma dinâmica social:

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Devemos pensar o ciberespaço como um ambiente midiático, como
uma incubadora midiática onde formas comunicativas surgem a cada
dia chats, ICQ, fóruns, e-mail, blogs, web, etc.…). A partir deste ponto
de vista, podemos afirmar que o ciberespaço é, ao mesmo tempo,
forma e conteúdo cultural, modulador de novas identidades e formas
culturais. (LEMOS, 2004, p. 15).

Com o mapeamento e orientação para uso dos ambientes digitais para leitura
do livro literário pelas crianças, sai favorecido por fim o objetivo de transformar a prática
leitora e propiciar novas formas de ler na escola e a partir da escola, que possam ser
adaptadas conforme as habilidades dos leitores na busca pelos mais diferentes
ambientes. Os novos hábitos e dinâmicas sociais que surgem no ciberespaço formam
a cibercultura, definindo assim as características desse território social,
homogeneizantes ou não, com potencial de vetor de agregação social, segundo Lemos
(2004, p. 16) “A cibercultura contemporânea é fruto de influências mútuas, de trabalho
cooperativo, de criação e de livre circulação de informação através dos novos
dispositivos eletrônicos e telemáticos.”
As novas tecnologias, e as nem tão novas, modificaram as atividades
cotidianas, especialmente nos tempos de COVID-19, e por certo as atividades escolares
também estão passando por essa adequação, que no caso é tardia. A
irresponsabilidade das políticas educacionais que ignoraram as tecnologias como novas
formas de convivência, cooperação, linguagens, causa agora seu pior impacto: um
apagão nos sistemas de ensino, tornando o letramento digital urgente e necessário.

Esse novo letramento, segundo eles, considera a necessidade dos


indivíduos dominarem um conjunto de informações e habilidades
mentais que devem ser trabalhadas com urgência pelas instituições de
ensino, a fim de capacitar o mais rápido possível os alunos a viverem
como verdadeiros cidadãos neste novo milênio cada vez mais cercado
por máquinas eletrônicas e digitais. (XAVIER, 2005, p. 1).

Na perspectiva do Letramento Digital, imergimos na cibercultura e utilizamos


do ambiente para favorecer a habilidade de se movimentar pela cultura digital com
autonomia, de compreender o que está implícito, participar e decidir sobre tradições e
hábitos culturalmente estabelecidos,

Ser letrado digital pressupõe assumir mudanças nos modos de ler e


escrever os códigos e sinais verbais e não-verbais, como imagens e
desenhos, se compararmos às formas de leitura e escrita feitas no livro,
até porque o suporte sobre o qual estão os textos digitais é a tela,
também digital. (XAVIER, 2005, p. 2).

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Ainda, Xavier traz estudos que demonstram que o professor interessado em
ser a fonte de todo conhecimento tem seus dias contados, pois o principal resultado
encontrado é que o interesse de adolescentes é por buscar outras fontes de informação,
além do livro didático, e esperam um “jeito novo” de aprender, centrado no aluno, com
participação ativa, trabalho coletivo, professor articulador, ensino dinâmico e objetivo de
aprender a aprender (XAVIER, 2005). Nesse jeito novo de aprender, a criança tem
autonomia, necessidades e interesses imediatos individuais. O autor ainda traz uma lista
de habilidades desenvolvidas por crianças que tem o computador como ferramenta
pedagógica.
Discute que não se trata de substituir a escola ou o letramento tradicional, mas
de compreender que há diversos letramentos e o digital é um deles, “Nesta perspectiva,
podemos afirmar que a principal condição para a apropriação do letramento digital é o
domínio do letramento alfabético pelo indivíduo” (XAVIER, 2005, p. 4). Uma vez mais a
prática docente é desafiada a uma metodologia pedagógica inovadora e agora a leitura
literária precisa acontecer por meio dos ambientes digitais, valorizando os
multiletramentos e proporcionando momentos de lazer através da leitura. Espera-se
assim democratizar o acesso ao livro literário, qualificando a leitura, a formação do leitor
literário e as novas aprendizagens em ambiente digital.

Mapeamento dos dispositivos digitais para leitura literária


O método de Revisão Sistemática descrito por Costa e Zoltowski (2014) tem por
finalidade a busca por pesquisas científicas que dialogam entre si dentro de uma mesma
temática, sendo que neste texto utilizamos o método para investigação dos ambientes
digitais que favorecem o letramento literário por meio das Tecnologias Digitais de
Informação e Comunicação (TDIC). Nessa revisão sistemática a busca se deu por meio
das palavras-chave: 1. Leitura digital e 2. Livro digital. Entretanto, como não se trata de
uma busca em meios com indexadores claros, que se conectam entre si gerando eixos
temáticos, como ocorre na busca por pesquisas científicas, alguns termos, como blog,
site, aplicativo, podem ser acrescentados de acordo com a plataforma pesquisada e os
resultados que vão sendo encontrados (são as plataformas: Google Play Store,
Microsoft Store, Steam, YouTube, sites e blogs individuais encontrados com palavras-
chave a partir de pesquisa no Google). Acrescentar os termos de acordo com a
plataforma ocorre porque pessoas com vocabulário diverso, idades diferentes e
interesses diferentes buscam pelas mesmas plataformas com objetivos diferentes, os
resultados vão desde pesquisas acadêmicas a blogs pessoais.

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O método de Revisão Sistemática compreende algumas etapas, como: 1.
Delimitação do problema, que será aqui definido como ambientes digitais que
contenham livros de literatura; 2. Escolha das fontes de dados, que já foram citadas
acima, são plataformas que reúnem recursos para download e uso online mais
utilizadas; 3. Eleição das palavras-chave para busca, já descritas; 4. Busca e
armazenamento dos dados, realizada em tabela a ser apresentada a seguir; 5. Seleção
das plataformas de acordo com critérios de inclusão/exclusão: a) a plataforma deve ser
gratuita, b) disponibilizar livro, seja digitalizado, por fotografias ou apresentação, c) ser
em língua portuguesa; 6. Extração dos dados das plataformas selecionadas, descritos
em tabela, cujo produto será analisado no próximo estudo sobre diferentes plataformas;
7. Avaliação das plataformas, a ser realizada em estudo apropriado sequente a este; 8.
Síntese e interpretação dos dados.
Tendo em vista os limites desse trabalho, as principais e diferentes plataformas
encontradas foram descritas em tabela própria. Os primeiros resultados demonstram
que a quantidade e a qualidade de ambientes digitais para leitura literária ainda são
pequenas, mas mesmo em quantidade reduzida há grande variedade de possibilidades
para o estímulo à leitura digital cotidiana. As plataformas em sua maioria são gratuitas,
carecendo infelizmente de mais recursos públicos em um ambiente que predominam as
organizações sociais e espaços privados. Algumas plataformas podem dificultar o uso
pedagógico na escola, pois envolvem propagandas, layout rudimentar e de difícil
localização, a necessidade de download pode impedir o uso em alguns aparelhos e sites
feitos para adultos impede o uso pela criança com autonomia. Abaixo, o quadro gerado
a partir da busca sistemática.

QUADRO 1 – MAPEAMENTO DOS AMBIENTES DIGITAIS PARA LEITURA LITERÁRIA.

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FONTE: Os autores (2020).

Os resultados preliminares indicam a possibilidade da qualidade no uso de


ambientes digitais para leitura literária. Algumas plataformas necessitam de análise
prévia pelo professor a fim de criar orientações para o uso, mas uma busca atenta e
precisa vai encontrar sites, como o software Luz do Saber que, além de disponibilizar
livros literários em formato de biblioteca virtual, tem um layout planejado para crianças
utilizarem à vontade e sem a preocupação de um adulto quanto a propagandas e
conteúdos inadequados. Outras plataformas favorecem a criação de uma comunidade
de leitores, havendo a possibilidade de compartilhamento, comentários, progressão de
leituras, atividades, jogos etc. Pelo Youtube, por exemplo, se for da intenção do criador
do canal, é possível utilizar o recurso de comunidade, onde são colocadas informações
especiais para quem acompanha o canal, é possível adicionar comentários em cada
história, compartilhar com amigos em diversas redes sociais e até mesmo indicar se
curtiu ou não a história, além da lista de sugestões que acompanha todos os vídeos e
favorece para que, ao terminar uma leitura, a criança busque outras com facilidade. Por
fim, a ausência do poder público na oferta qualitativa e efetiva de uma biblioteca digital
foi marcante, sendo que as plataformas digitais descritas, com exceção do app Luz do
Saber, não são estimulantes para crianças, apresentam botões e recursos escondidos
em um amontoado de informações, suas plataformas são pesadas no carregamento e
até permitem o uso apenas através de download, o que dificulta o uso por meio de
celulares, por exemplo, que tem pouco espaço para memória.

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Considerações finais
A necessidade e a forma como se instalou o ensino remoto durante a pandemia
de Covid-19, em 2020, exigiu dos professores um potencial a mais: readequar
imediatamente as suas práticas pedagógicas em condições de isolamento social. O
desafio é intensificado quando assumimos que o processo de aprendizagem na escola
não se restringe a atingir metas especificadas nos objetivos dos currículos, mas a
desenvolver habilidades que favoreçam às crianças compreenderem o mundo em que
vivem e agir para melhorá-lo. A proposta de incentivar o prazer de ler em tempos de
pandemia não tem por objetivo substituir o letramento literário que ocorre nas escolas
presencialmente. É uma oportunidade para oferecer às crianças uma alternativa de lazer
com fins pedagógicos, desenvolvendo o corpo linguagem de maneira lúdica e
progredindo nas possibilidades que a literatura literária proporciona. O mapeamento
realizado demonstra que os ambientes digitais de leitura literária são diversos e não
dispensam a orientação de um adulto. Pelo contrário, com tantas diferenças entre os
espaços encontrados, a necessidade que se afirma é da popularização dos mesmos por
meio de uma ação planejada, a fim de evitar o contato com plataformas inadequadas,
de uso difícil, assim como evitar livros que não contribuem para o letramento literário
por estarem preenchidos de histórias mal elaboradas com enredos pobres, tratamento
exagerado de temáticas, estereótipos e ilustrações desconexas do texto. Com
orientação e a compreensão do contexto escolar em tempos de pandemia e isolamento
social, é possível os professores incentivarem a leitura prazerosa por meio dos
dispositivos digitais.

Referências
COSSON, R. Letramento Literário: teoria e prática. 2. ed., 9 reimp. São Paulo:
Contexto, 2019.

COSTA, A. B.; ZOLTOWSKI, A. P. C. Como escrever um artigo de revisão sistemática.


In: KOLLER, S. H.; COSTA, A. B.; ZOLTOWSKI, A. P. C. (Orgs.). Manual de
produção científica. Porto Alegre: Penso, 2014. p. 55-70.

INSTITUTO PRÓ LIVRO; ITAÚ CULTURAL. Retratos da leitura no Brasil - 5ª


edição. São Paulo: IBOPE Inteligência, 2020. Relatório técnico. Disponível em:
<https://prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil-2/a-pesquisa-5a-
edicao/>. Acesso em: 20 set. 2020.

LEMOS, A. Cibercultura, cultura e identidade. Em direção a uma “Cultura Copyleft”?


Contemporânea, Salvador, vol. 2, n. 2, p. 9-22, dez. 2004. Disponível em:

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<http://dx.doi.org/10.9771/1809-9386contemporanea.v2i2.3416>. Acesso em: 13 ago.
2020.

SOARES, M. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In.: EVANGELISTA, A. et


al. A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. BH: Autêntica,
1999. p. 17-48.

XAVIER, A. C. dos S. Letramento Digital e Ensino. In: SANTOS, C. F.; MENDONÇA,


M. (Org.). Alfabetização e Letramento: conceitos e relações. 1. ed., Belo
Horizonte: Autêntica, 2005, v. 1, p. 133-148. Disponível em:
<http://www.nehte.com.br/artigos/Letramento-Digital-Xavier.pdf>. Acesso em: 20 ago.
2020.

ZILBERMAN, R.; RÖSING, T. M. K. Escola e leitura: velha crise, novas alternativas.


São Paulo: Global, 2009.

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PALAVRAS ANDANTES DE 2002 A 2019: PROJETO DE
FORMAÇÃO DE LEITORES EM LONDRINA- PR

Elisiane Cristina Costa,


UEL, CNPq
Cintia Jesus Miyada, UEL, Fundação Araucária
Prof. Dr. Rovilson José da Silva, UEL
Prof.ª Dr. ª Greice Ferreira da
Silva, UEL

Eixo Temático: Os espaços de leitura – eixo 9

Considerações Iniciais
O presente texto está vinculado ao projeto de pesquisa Mediação Pedagógica
da Leitura nas Bibliotecas Escolares da Rede Municipal de Ensino Fundamental I, da
cidade de Londrina, que realiza suas discussões no Departamento de Educação da
Universidade Estadual de Londrina.
O Palavras Andantes, projeto relatado nesta pesquisa, foi criado com o objetivo
de incentivar a leitura e a formação de leitores nas escolas da Rede Municipal de
Educação de Londrina. Assim, busca-se compreender seu impacto no desenvolvimento
cultural e humano tanto por parte de alunos, como de professores participantes desse
projeto que ocorre até a atualidade no município.
A partir de pesquisas nas escolas municipais (SILVA, 2006), constatou-se que
as escolas não contavam com a biblioteca escolar, nem com o trabalho contínuo e
consistente de incentivo à leitura. Desde então, houve a estruturação do Projeto
Palavras Andantes com o propósito de se oportunizar cursos de formação aos
professores que atuavam na regência da biblioteca escolar e tornar a Hora do Conto em
prática de incentivo à leitura que levasse o aluno, além de ouvir histórias, expor sua
opinião, encontrar-se com novas ideias, ler e se informar por meio do acesso ao acervo
da biblioteca escolar.
Dessa forma, o texto apresentará em um primeiro momento a contextualização
histórica do surgimento do Projeto Palavras Andantes, de como as bibliotecas escolares
de Londrina passaram a ser reestruturadas e reconhecidas, quais as bases e ideias
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antes e após o projeto em relação a funcionários, acervo, suportes pedagógicos e
espaço destinados. Num segundo momento, o reconhecimento e conquista que
significou o Projeto à educação do município, as características que o fizeram referência
em relação ao trabalho contínuo de luta em defesa das bibliotecas escolares e a
alcançar premiações nacionais.

Projeto Palavras Andantes: surgimento, bases e objetivos


Todo projeto criado para atender a um determinado público da sociedade é
desenvolvido com base em necessidades que foram constatadas por pesquisas e
estudos relacionados à temática estudada. Assim, sem a participação de um sujeito com
senso crítico, envolvido com as questões políticas, sociais e educacionais, não seria
possível se chegar a um projeto com aspectos imprescindíveis para o fomento à leitura
como o “Palavras Andantes”.
O período que antecede ao projeto, ainda na década de 1990 até 2001,
mostra o uso da biblioteca preconizado sem acompanhamento pedagógico em relação
à mediação da leitura e formação leitores, além disso, a “biblioteca não estava inserida
no contexto pedagógico da escola e não atuava ativamente na promoção da leitura”.
(SILVA; ARAÚJO, 2014, p.11).
Desde os tempos em que Silva (2006) estava na rede pública como professor,
observou e experienciou os enfrentamentos do cotidiano escolar, sempre com o mesmo
dilema: a falta de bibliotecas que atuassem em sua real funcionalidade de suporte à
aprendizagem, à informação, à cultura.
Ao se deparar com a mesma situação que vivera quando estudante, Silva relata
como o passado e o presente pareciam imutáveis no que se refere à utilização da
biblioteca, tanto em relação ao descaso do espaço quanto à precariedade no incentivo
à leitura. Contudo, a realidade pode ser alterada por meio do movimento de um ser
humano inquieto com situações negligenciadas no cotidiano da vida, em que encontra
perguntas ainda não respondidas, ou falta de ações para a melhoria do bem coletivo.
Antes da pesquisa que originaria o Palavras Andantes, Silva (2006) compreendia as
reais necessidades com base em suas vivências na escola e de pesquisas do tema em
questão.

Em 1999, diante da realidade de meu dia-a-dia na escola, comecei a


pesquisar acerca da mediação de leitura literária que era realizada nas
escolas da rede municipal. A pesquisa revelou-me um horizonte além
da leitura literária. Mostrou-me que era preciso uma composição de
instituições e procedimentos para formar leitores; dentre eles estavam
os cursos de formação do professor e a utilização da biblioteca.

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(SILVA, 2006, p.54).

As escolas participantes da pesquisa àquela época, de acordo com Silva


(2006), apresentavam algum tipo de deficiência advindas de décadas anteriores na
mediação da leitura e formação de leitores, bibliotecas precárias e falta de formação de
professores que atuassem de maneira efetiva na formação leitora.
Naquele contexto, cada escola organizava a leitura de acordo com sua
concepção, mesmo tendo um currículo municipal a seguir. O que acontecia nas escolas
de Londrina era muito comum de se encontrar em outras partes do Brasil, ou seja, a
atividade de leitura relacionada, apenas, a atividades da proposta curricular da Língua
Portuguesa e, desse modo, após a leitura de um livro deviam expressar a compreensão
sobre a gramática do texto, além dos alunos precisarem representar a história do livro
utilizando-se, por exemplo, “de redação sobre o que foi lido, desenhos da parte da
história que mais gostou; representação do protagonista em dobradura, enfim, as
técnicas eram as mais diversas, como se o livro e a leitura não bastassem por si
próprios. ” (SILVA, 2006, p. 61-62).
Consequentemente, sem leis que embasassem a formação continuada dos
professores e a reestruturação das bibliotecas para a formação de leitores não era
possível transformar a realidade precária da leitura na rede pública de educação. Os
anos passam, governos vêm e vão e a sensação é a apenas de solavancos, sem muitos
avanços.

A promoção da leitura em nosso país se dará de modo efetivo quando


houver políticas públicas que estimulem a formação dos professores e,
ao mesmo tempo, reestruturem o papel da biblioteca escolar na ação
pedagógica. (SILVA, 2006, p.19).

Antes da implantação do Palavras Andantes, no ano de 2002, a rede municipal


de educação de Londrina possuía 79 escolas de ensino fundamental I, com
aproximadamente 29 mil alunos e:

Até 2001, aproximadamente 2/3 das escolas da Rede possuíam


biblioteca e quase todas mantinham um professor que contava
histórias, além de realizar empréstimos. Na Rede Municipal era quase
senso comum que exercer essa função era sinônimo de realizar um
trabalho fácil, que exigia pouco preparo do professor. Também em
muitos casos, permanecia a ideia de que a biblioteca da escola era
prêmio para aqueles mais antigos, próximos à aposentadoria, que
deveriam fazer o trabalho mais leve. Não obstante, a biblioteca também
era indicada para os professores conhecidos como readaptados, ou
seja, com problemas de saúde, muitos com problemas nas cordas
vocais. Essa situação gerava na Rede e, principalmente, nas unidades
escolares, certa desqualificação do profissional que realizasse esse
trabalho. Subjazia a ideia de que a leitura pudesse ser mediada com
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procedimentos paliativos, de que não havia necessidade de
planejamento como as demais questões educacionais. (SILVA, 2006,
p.62-63).

Dessa forma, com o objetivo de estruturar um projeto de formação do mediador


de leitura, o projeto “Palavras Andantes” começou a ser desenvolvido em 2002, na rede
municipal de ensino de Londrina-Pr. Tendo como perspectiva a formação de leitores e,
para isso, era preciso ampliar estudos, pesquisas e programas que incentivassem a
leitura e a valorização da biblioteca para além de um espaço onde se guarda livros e
outros materiais, ou até mesmo como ambiente de trabalho de professores readaptados
da sala de aula.
Diante desse quadro, Silva propôs à Secretaria Municipal de Educação (SME)
de Londrina o projeto “Bibliotecas escolares: Palavras Andantes” para a formação de
leitores que tinha como base as seguintes premissas: formação do professor mediador
de leitura; hora do conto semanal para todas as turmas; empréstimo de livros;
readequação arquitetônica e pedagógica da biblioteca escolar, além da ampliação
contínua do acervo. Para tanto, foram estabelecidos e apresentados alguns objetivos:

- Oportunizar ao professor a reflexão sobre sua prática de estímulo à


leitura em sua comunidade escolar;
- Promover encontros mensais de estudo sobre a leitura, a literatura, a
criança e a biblioteca escolar;
-Sistematizar procedimentos a serem empregados na biblioteca
escolar e Hora do Conto, visando a transformar a biblioteca escolar em
espaço cultural da comunidade a qual pertence;
- Fomentar a disseminação da leitura, em especial, a literária; -
Incentivar a utilização da biblioteca escolar como centro informacional
para a escola e para a comunidade;
- Promover a instalação de espaço de leitura nas escolas que ainda
não o possuam;
-Visitar e assessorar pedagogicamente as bibliotecas escolares;
-Trabalhar em parceria com a Biblioteca Pública Municipal para o
processamento técnico do material. (SILVA, 2006, p.69).

A SME sugeriu que o nome do projeto fosse Palavras Andantes, em referência


à obra de Eduardo Galeano (1991), mas Silva (2010) propôs “Projeto Bibliotecas
Escolares: Palavras Andantes”, com o propósito de desmistificar a concepção de
biblioteca como uma sala de leitura, pois, passava a ideia de um espaço provisório que
poderia ser montada e desmontada, conforme a demanda por vagas aumentasse na
escola.

O projeto de Silva, aprovado em 2002, foi o primeiro documento do


Município de Londrina, que contempla uma efetiva política de
valorização da biblioteca escolar, como espaço de informação,
conhecimento, de leitura, de apoio pedagógico aos professores, de
fruição cultural. O documento valorizou e sistematizou uma
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capacitação contínua do profissional mediador de leitura, fomentando
a leitura literária e sua disseminação a toda comunidade escolar, além
de inserir a Biblioteca no contexto pedagógico da escola. (SILVA;
ARAÚJO, 2014, p.13).

Nesse contexto, a primeira ação do projeto foi levantar informações sobre a


realidade das bibliotecas escolares, sobre a mediação de leitura que era desenvolvida;
a respeito dos empréstimos de livros, da realização da Hora do Conto e, além disso, dos
seus aspectos físicos e de utilização para definir as estratégias da pesquisa, ação
pedagógica e intervenção. A fim de cumprir o proposto foram realizadas visitas às
escolas com observação e registro por escrito e fotografias do mobiliário e do espaço
arquitetônico da biblioteca. O desenvolvimento do “Palavras Andantes” contou ainda
com a participação de “[...] professores, mediadores de leitura que trabalhavam na
biblioteca escolar, da Rede Municipal de Ensino de Londrina. Ao todo, estavam
envolvidas as 79 escolas de ensino fundamental [...] ” (SILVA,2006, p.26). A pesquisa
levantou o número de escolas que possuíam bibliotecas em pleno funcionamento:

Nessa época, havia 50 bibliotecas cadastradas na SME, entretanto,


seu funcionamento era irregular e, aproximadamente, 1/3 delas estava
fechada, ou seja, na realidade, apenas 30 estavam em funcionamento
pleno. (SILVA, 2013, p.359).

De acordo com Silva (2013), os professores que iam para as bibliotecas eram
aqueles afastados da sala de aula, readaptados ou próximos à aposentadoria, alguns
consideravam um descanso por terem problemas nas cordas vocais. Nesse período
eram disponibilizados cursos para todas as áreas das SME, menos para ao professor
responsável pela biblioteca escolar. Quem realizava os encontros com os professores
que atuavam nas bibliotecas eram as bibliotecárias da Biblioteca Municipal de Londrina,
pois a SME estava ausente na formação daqueles profissionais.
Dessa forma, através do Palavras Andantes torna-se possível modificar
também o pensamento que se faz no entorno do conceito de biblioteca escolar e de
mediação da leitura até então contidas na rede municipal, diferente do contexto anterior
ao projeto, para além de uma ideia de biblioteca “como complemento ou apoio das
ações desenvolvidas com leitura em sala de aula ou como suporte para as pesquisas
recomendadas pelo professor” (ARENA, 2011, p.14) no qual o próprio professor possa
ressignificar essa prática e procurar nesse trajeto desafiar-se e inovar-se
constantemente.

O desafio era o de oferecer formação ao professor para que ele


compreendesse os mecanismos do texto literário, sua linguagem
artística e plurissignificativa e pudesse fazer mediações eficientes na
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escola, enfim, que o professor, nesse processo, promovesse o
encontro entre o leitor e o texto. (SILVA, 2006, p. 137)

Em seguida, foi estruturado o cronograma com cursos que visavam à formação


do professor em relação à leitura, à Hora do Conto, ao atendimento na biblioteca, à
seleção do acervo e organização do espaço físico da biblioteca. Nesse sentido vale
destacar a valorização do profissional responsável pelas bibliotecas que durante os
cursos de formação ofertados o “professor aprendeu com o professor”, ou seja, pelo
compartilhamento de estudos, ideias e práticas que aconteciam nas Horas do conto,
pois “caberia ao professor confrontar o que aprendia e discutia nos cursos com a prática
cotidiana [...] a cada encontro o professor pudesse expor sua experiência e trocasse
informações com os demais colegas. ” (SILVA, 2006, p.103). Assim:
Não adianta à escola contar com a biblioteca e o acervo adequados se
o corpo docente da unidade escolar não se envolve adequadamente
com o projeto de promoção da leitura. Se o professor-regente ou o
professor da Hora do Conto não possuírem conhecimento e
fundamentação suficientes para manusear o acervo existente de forma
a explorá-lo em sua máxima capacidade, estimulando, assim, o contato
da criança com as obras literárias [...] (SILVA, 2006, p.100 apud SILVA,
2001, p.203).

Portanto, a biblioteca escolar foi repensada enquanto espaço de mediação, de


encontro entre os alunos, por isso foram estabelecidas ações relativas ao espaço físico,
conforme Lopes (2014):

Nas BE’s de Londrina, por meio do “Palavras Andantes”, houve


também um planejamento voltado para a adequação do
mobiliário que compõe as bibliotecas da rede, isso porque até
na década de 90 e início dos anos 2000, não haviam critérios
que estabelecessem parâmetros para a aquisição do mobiliário
[...] havia bibliotecas que, ao invés de cadeiras, tinha tamboretes
de plástico; um móvel que não proporcionava conforto e
segurança ao leitor. (LOPES, 2014, p.123)

Silva (2013) reflete que enfrentou alguns desafios para a reestruturação das
bibliotecas desde a busca de conhecimento para entender os componentes
arquitetônicos do prédio da biblioteca, a mobília, o acervo e até o contato com demais
profissionais responsáveis por projetos, obras e compras da Prefeitura de Londrina.
O projeto buscou viabilizar, aos alunos e professores, o acesso ao
conhecimento, à cultura, informação, ensino e aprendizagem; valorizando a
especificidade dos indivíduos que frequentam as bibliotecas, pressupondo formar
sujeitos críticos, questionadores da realidade, seres pensadores e formadores de ideias.
Nessa perspectiva, existe a luta dos defensores da biblioteca para que essa tenha seu
valor e espaço reconhecido pelas políticas educacionais.
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Hoje defensores das bibliotecas escolares lutam para que este espaço
funcione como centro de informação e que seja reconhecido e incluído
no Projeto Político Pedagógico (PPP) das escolas, para exercerem de
fato seu papel no processo de ensino-aprendizagem. (SILVA;
BORTOLIN, 2018, p.28).

Reflete-se que a biblioteca escolar, quando bem planejada, estruturada e


organizada pedagogicamente, transfere à comunidade escolar um espaço para cultura,
para leitura e fomento à imaginação, um lugar de garantia de acesso ao conhecimento,
ao ensino e à aprendizagem e às relações de humanização entre os alunos.

De 2002 a 2019: desenvolvimento do Palavras Andantes na Rede municipal


de Ensino de Londrina

Em execução há 17 anos o Palavras Andantes se organiza e promove, em


todas as escolas da rede municipal de ensino de Londrina, desde seu princípio, o
estímulo à formação leitora e organização pedagógica das bibliotecas escolares, a fim
de que a Hora do Conto se torne uma prática em que o aluno, além de ouvir histórias,
possa expor suas ideias; buscar outras leituras; ter livre acesso ao acervo da biblioteca.
No mais, “contempla uma efetiva política de valorização da biblioteca escolar, como
espaço de informação, conhecimento, de leitura, de apoio pedagógico aos professores
e fruição cultural até a aprovação da Lei 11.535 onde cria o Sistema Municipal de
Bibliotecas Livro, Leitura e Literatura – SMBLLL. ” (ARAÚJO, SILVA, 2014, p.2).
O projeto impulsionou várias outras atividades relacionadas à expansão da
leitura, de tal maneira que concepções tradicionais começaram a dar espaço para
novas.

Com o passar do tempo e a consolidação do “Palavras Andantes” na


rede municipal, aos poucos e após vários cursos e seminários, os
PROB’s começaram a desenvolver projetos e atividades de leitura que
confrontavam a ideia da cobrança e avaliação, e passaram a ter uma
concepção de leitura que privilegiasse o dialogismo, a apropriação de
discursos e a valorização do conhecimento de mundo trazido pelos
alunos. (LOPES, 2014, p.137)

Durante os anos de 2003 a 2008 as estatísticas mostram que por meio da


organização do “Palavras Andantes”, a SME havia reformado ou construído cerca de 30
bibliotecas escolares, bem como obteve‘’[...] um aumento considerável dos empréstimos
de livros de 2002 a 2008 na rede municipal, cerca de 600%, passamos de 72 mil
empréstimos/ano para 640 mil empréstimos/ano, com praticamente a mesma
quantidade de alunos, ou seja, a média de 30 mil alunos. ’’ (SILVA, 2013, p.363),

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reafirmando, portanto, com o aumento expressivo de empréstimos e a adesão das
escolas ao projeto, o trabalho qualificado realizado nas bibliotecas escolares.
Com o reconhecimento do projeto na rede municipal e na cidade, ele obteve
notoriedade e respeito passando a ser referência na promoção da formação leitora, na
qualificação de professores, tal como no uso do espaço da biblioteca. De modo que,
todo trabalho e empenho resultou no prêmio Nacional “Viva Leitura”, sendo o vencedor
da categoria 2 – Escolas Públicas e Privadas, no ano de 2008.

É possível afirmar que a implantação do “Palavras Andantes” foi um


marco na história das BE’s de Londrina, isso porque por meio desse
projeto, inúmeros professores foram qualificados para atuar nas
bibliotecas e todas as escolas da rede foram contempladas com uma
B.E, além da renovação do mobiliário e do acervo dos espaços. A prova
da eficácia do projeto foi que, em 2008, o Palavras Andantes foi o
vencedor do prêmio Viva Leitura, premiação reconhecida e respeitada
em nível nacional. (LOPES, 2014, p. 118-119).
A partir de 2009, um projeto de informatização elaborado por Silva busca
atualizar o sistema de comunicação entre as bibliotecas de Londrina, interligando-as em
rede, por meio de informatização.

Este projeto tinha como base a reestruturação da biblioteca pública e


biblioteca infantil, além de incorporar as bibliotecas ramais, bibliotecas
escolares e biblioteca do professor, interligando-as em rede, por meio
de informatização, haveria a aquisição de software e equipamentos
para dar consecução ao projeto. Nesse contexto, a aquisição do
software seria extensiva ao uso das duas secretarias a que as
bibliotecas estavam ligadas, à cultura e à educação. (SILVA, 2013,
p.363).

Ainda em 2009, a professora Márcia Batista de Oliveira assumiu coordenação


do Projeto e permaneceu até 2019. Com isso, continuaram as ações de formação do
professor: a reflexão mensal, discussão de propostas, compartilhamento experiências e
planejamento para a contação de histórias da Hora do Conto em cada escola, como
estímulo ao trabalho dos professores que a Hora do Conto a hora do conto por meio da
biblioteca escolar. Em 2017, o projeto comemorou seus quinze anos e foi
considerado destaque entre os eventos, reportagens e mídias do município de Londrina,
com o retorno de novos índices e comparativos como a média de leitura das crianças
londrinenses em relação ao nacional, e o reconhecimento das conquistas do Palavras
Andantes como potencializador dessa ação. Através da notícia propagada pelo portal
da prefeitura de Londrina reflete-se tal processo, junto à fala da coordenadora Márcia
Batista:

[...] há pesquisas que mostram que os brasileiros leem até quatro livros
por ano. Em Londrina, a Secretaria Municipal de Educação oferece até
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quatro livros mensais para as crianças, o que tem elevado o índice de
leituras das crianças londrinenses para até cinco obras por mês. [...]
desde o início do programa até agora tem aumentado muito o índice
de leitura. (HEDLER, 2017).

Em outubro, na reportagem da “Folha de Londrina de ouvintes a pequenos


contadores de histórias”, de Juliana Gonçalves (2017), destaca a contribuição do projeto
palavras andantes para o desenvolvimento dos alunos de uma das escolas do Município
de Londrina, que em meio a dificuldade de encontrar responsáveis para a tarefa de
contar histórias, passou a incentivar os próprios alunos a realizarem essa ação:

[...] a Escola Municipal Cláudia Rizzi, a professora responsável pelo


projeto, Claudineia Marques de Souza, incluiu técnicas de contação de
história nas atividades, o que culminou numa ação em que os próprios
alunos se tornam contadores. "O Pequenos Contadores nasceu de
uma dificuldade que tínhamos em encontrar contadores de histórias
para as comemorações do Dia das Crianças", conta a supervisora da
escola, Waléria Pimenta Martins Silva. ” (GONÇALVES, 2017).

O “Pequenos Contadores” é um dos exemplos de desdobramento do Palavras


Andantes, além de teses, artigos, textos em jornais, divulgação de trabalhos em
congressos, encontros, formações continuadas, projetos de pesquisa, extensão e
iniciação científica, entre outros, que repercutem as ações do referencial que o Palavras
se tornou no âmbito de projetos de formação de leitura.
O artigo “História das bibliotecas escolares em Londrina”, proveniente de
pesquisa de pós-graduação, teve como o objetivo investigar o processo de “[...]
desenvolvimento histórico das bibliotecas escolares no Município de Londrina, desde a
colonização da cidade aos dias atuais, evidenciando as conquistas, avanços e
peculiaridades. ” (SILVA, ARAÚJO, 2014, p.2). Os autores consideram que:

Com o Palavras Andantes iniciou-se uma preocupação maior com a


formação do leitor em Londrina e com a formação dos profissionais que
atuavam nas bibliotecas das escolas, pois já se acreditava na
importância destes espaços para formação de um leitor crítico e
reflexivo. (SILVA, ARAÚJO, 2014, p.17).

Ainda em 2014, Lopes desenvolveu a tese: Bibliotecas Escolares de Rio Verde-


GO: uma possível política municipal de leitura na qual aborda as “condições de
funcionamento, das políticas de investimento em estrutura física, dos projetos de leitura
executados nas bibliotecas escolares de Rio Verde, além da relação biblioteca-
comunidade. ” (LOPES, 2014, p.16). Nessa pesquisa o autor utiliza o Palavras Andantes
como referência para analisar a conjuntura das bibliotecas escolares do município
goiano.

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Em consonância aos trabalhos mencionados e que evidenciam a
importância do Projeto de leitura da rede municipal de Londrina, em 2014, é produzido
o artigo “ A linguagem não verbal e a contação de histórias na perspectiva do projeto
Palavras Andantes retratando uma pesquisa realizada no ano de 2012 quanto à
realidade das bibliotecas escolares de Londrina, na qual “observou-se, entre outros
aspectos, que a maioria dos contadores se vale, de forma intuitiva, de alguns dos
aspectos da linguagem não verbal em suas ações[...]”. (LUNARDELLI, MEIRELLES,
2014, p.66).
No estudo de caso relatado no texto “ A mediação do livro de imagem no
Palavras Andantes em Londrina”, das pesquisadoras Pereira e Bortolin (2016), se
contata por outra perspectiva, dentro do âmbito da Ciência da Informação, a
repercussão do projeto Palavras Andantes em outros aspectos como a questão da
utilização do livro de imagens nas bibliotecas escolares.
Em “A leitura e a formação de leitores: a hora do conto nos anos iniciais do
ensino fundamental”, trabalho de conclusão de curso, Rocateli (2017), é possível
identificar Hora do Conto como proposta para a mediação da leitura realizada numa
escola da rede municipal, ligada ao Palavras Andantes:

A Hora do Conto é o momento destinado à atividade de contar histórias


de forma alegre e agradável, a fim de fomentar a leitura na escola e
ajudar na formação de novos leitores. Proporcionando um
desenvolvimento intelectual e moral, facilitando assim o processo de
amadurecimento. A biblioteca escolar é um espaço responsável pelo
armazenamento e disponibilização de histórias ela integra-se com o
mediador de histórias que transmite o conto até o leitor.
(ROCATELI, 2017, p.42).

Os desdobramentos advindos desse longo período em desenvolvimento do


Palavras Andantes ecoaram também na extensão com a publicação do livro “Biblioteca
escolar e a extensão universitária” (2019) que apresenta o processo de reorganização
arquitetônica e pedagógica da biblioteca de uma escola pública de Londrina.
Dessa forma, é possível constatar que o trabalho contínuo realizado pelo
Palavras Andantes, utilizando a biblioteca escolar da rede municipal de Londrina, passa
a refletir na vida dos alunos, ação dos professores e, por fim, impacta positivamente a
formação de leitores na rede municipal de Londrina.

Considerações Finais
O desenvolvimento do projeto Palavras Andantes foi e tem sido realizado por
meio de estudos e pesquisas em prol da formação de leitor. Desde o início, através de
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cursos de formação, proporcionou mudanças significativas na concepção dos
professores em relação à leitura, à Hora do Conto e à utilização da biblioteca escolar.
Em quase duas décadas em execução do Palavras, essa pesquisa constatou
que houve a melhoria do ambiente físico das bibliotecas e de seu acervo, além disso, a
permanência da formação continuada dos professores assegura as ações pedagógicas
referentes à Hora do Conto e à mediação de leitura.
Evidencia-se que o Palavras Andantes manteve, predominantemente, as
mesmas diretrizes para o seu desenvolvimento, ou seja: a formação do mediador de
leitura, a realização da Hora do Conto, adequação arquitetônica e pedagógica da
biblioteca escolar, o empréstimo e a ampliação contínua do acervo. Pode-se intuir que
diretrizes claras, que cabem nos dedos de uma mão, podem ter contribuído para que
essas premissas sejam facilmente interiorizadas pelos professores que compõe o
Projeto.
Assim, trabalha-se para que o Projeto se mantenha e permaneça na
perspectiva proposta, visando transformar a biblioteca escolar em espaço cultural da
comunidade à qual pertence, independente da mudança de administração e gestão do
município, que ele permaneça como política pública destinada à formação e defesa de
leitores na Rede Municipal de Ensino de Londrina.

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books/biblioteca_escolar_e_a_extensao_universitaria/E-Book_Silva.pdf.

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FORMAÇÃO DO PROFESSOR REGENTE DE OFICINA DE
BIBLIOTECA DO PROJETO “PALAVRAS ANDANTES” DA
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE LONDRINA

Tatiane Cigott Figueiredo Moritz, UEL, Fundação Araucária


Simone Steffan Retkva, UEL
Profª Drª Greice Ferreira da Silva, UEL
Prof. Dr. Rovilson J. da Silva, UEL

Eixo Temático: Os espaços de leitura – eixo 9

Considerações iniciais
O presente trabalho faz parte do projeto de pesquisa "Mediação da leitura nas
bibliotecas escolares na rede municipal de ensino de Londrina" e tem a finalidade de
apresentar aspectos da formação do professor regente de oficina de biblioteca (PROB)
atuante na rede escolar do município de Londrina por meio do projeto "Bibliotecas
Escolares: Palavras Andantes".
Atualmente, os professores regentes de biblioteca são responsáveis por
proporcionar às crianças o contato com o mundo da leitura, apresentando os
conhecimentos existentes nos livros, desenvolvendo a imaginação e oportunizando o
acesso à cultura, por meio da biblioteca escolar. Entendemos a leitura não como a mera
decifração dos sinais linguísticos, mas como compreensão, diálogo com o texto,
atribuição de sentido. Desse modo, nosso trabalho é pautado no conceito de leitura
defendido por Arena (2011), que entende a leitura como interlocução, compreensão e
como prática cultural, histórica e social.
A biblioteca escolar tem papel relevante na vida dos alunos, pois sua função
não é apenas de suporte das ações desenvolvidas com leitura em sala de aula e de
pesquisas sugeridas pelo professor, ela traz também a relação cultural e histórica entre
leitores e livros, conforme Arena (2011). Com isso, faz-se necessário promover
atividades na biblioteca como componente pedagógico escolar.

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Nesse contexto, apresentamos o projeto "Bibliotecas Escolares: Palavras
Andantes" desenvolvido no município de Londrina nos anos iniciais, no qual Silva (2006;
2013) planejou e reestruturou a biblioteca escolar no aspecto arquitetônico e pedagógico
com a finalidade de formar leitores proficientes. A intervenção contou como um dos
principais eixos a formação continuada dos profissionais regentes de oficina de
biblioteca (PROB), visando ao aperfeiçoamento das práticas de incentivo à leitura no
ambiente escolar. Para isso foi utilizado como referencial teórico (LOPES, 2014);
(SILVA, 2006) e (SILVA, 2013).
Entre o segundo semestre de 2018 e o primeiro semestre de 2019, presenciou-
se alguns cursos de formação do PROB, nos quais foi possível constatar que estão
organizados em estudos teóricos acerca de livros literários, leitura e biblioteca e estudos
práticos por meio de discussão de procedimentos do cotidiano como as ações
pedagógicas, novas temáticas realizadas nas oficinas e nas atuações pedagógicas nas
escolas.
Portanto a pesquisa é de natureza qualitativa e se utiliza de levantamento
bibliográfico e de observação fundamentada na identificação do projeto "Bibliotecas
Escolares: Palavras Andantes", além de análise das dimensões da formação continuada
do professor regente de oficina de biblioteca (PROB) atuante na rede escolar do
município de Londrina.

Projeto Palavras Andantes – SME / Londrina


O presente tópico aborda o projeto "Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes"
desenvolvido no município de Londrina em seus aspectos históricos e pedagógicos,
assim como as contribuições realizadas durante o seu percurso.
A biblioteca se constitui como um dos espaços que pode contribuir
significativamente para a formação de leitores. É por meio desse espaço que o indivíduo
obtém contato com diversos tipos de conhecimentos e informações, por essa razão, a
biblioteca torna-se um instrumento de inserção social na cultura. Ao se tratar
especificamente da biblioteca escolar (BE), compreende-se que é um forte componente
pedagógico que auxilia na aprendizagem do aluno, contribuindo ao seu
desenvolvimento crítico e reflexivo. Porém, para que a biblioteca seja caracterizada
como biblioteca não basta os objetos que a compõe. Segundo Arena (2011), para se
caracterizar como tal, a biblioteca deve ser vista em um conjunto amplo de relações
entre alunos, livros, bibliotecários e professores, pois é isso que dá a ela existência e
vida.

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O ato de ler é um ato cultural que pode ser ensinado pelo professor ou
bibliotecário, e a leitura é o resultado das relações que o leitor estabelece com o escrito,
o qual é capaz de levantar questionamentos, hipóteses e dialogar com as ideias que o
texto traz. De acordo com Arena (2011), o ato de ler é compreender o mundo do outro
por meio do escrito, é associar experiências de outras leituras e vivências para atribuir
sentidos ao texto. Ler é compreender, e essa compreensão só existe quando o leitor é
capaz de estabelecer relações entre o texto e experiências anteriores.
Nesse sentido, a BE possui um papel fundamental na formação de leitores,
assim como a presença de um mediador nesse espaço, pois além de possibilitar que as
ações de leitura praticadas possam ser internalizadas pelo aluno, o mediador também
é responsável por estabelecer elos entre leitores e livros. Outro aspecto importante está
atrelado ao fato de que somente o contato com o livro não garante a leitura, Arena (2011,
p. 14) afirma que “[...] quem a faz nascer e existir são seus leitores com a mediação dos
educadores de biblioteca”. Por essa razão as ações dos mediadores são
transformadoras, já que possibilitam formas diferenciadas de entendimentos e
compreensões do mundo.
O surgimento das BE’s no município de Londrina, de acordo com Silva (2006),
está atrelado ao desenvolvimento da Biblioteca Pública Municipal (BPM), visto que a
Secretaria de Educação e a Secretaria de Cultura constituíam a Secretaria de Educação
e Cultura. A BPM foi criada por meio de um decreto no ano de 1940, mas só entrou em
funcionamento após uma década. No ano de 1951 o município de Londrina crescia
significativamente no âmbito econômico cafeeiro e assim foi inaugurada a primeira
Biblioteca Pública Municipal Parigot de Souza, situada na área central da cidade, sob a
direção de Terezinha Cioffi.
Devido ao aumento da população, aumentava também a demanda nas
bibliotecas. Visando descentralizar o atendimento da área central e oportunizá-lo para
os estudantes dos bairros, no ano de 1971 foi criada a primeira BE na escola municipal
Carlos Kraemer. A partir disso, houve também a criação de salas de leitura e outras
BE’s. (SILVA, 2006).
No ano de 1974, por meio da Lei/DEC nº 761, criaram-se mais três BE’s e, ao
final da década, mais duas foram instaladas nas escolas. Por volta dos anos 80, mais
de 26 BE’s foram criadas por meio de leis municipais. Durante a década de 90, mais
nove bibliotecas surgiram, totalizando cerca de 40 BE’s. Conforme Silva (2006), mesmo
que a ideia inicial fosse transformar a BE como suporte para a comunidade do bairro,

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por estar situada anexa à escola passou a integrar-se a ela e o seu uso restringia-se
aos alunos da escola.
Embora as instalações das BE’s representarem progresso no que concerne ao
fomento à leitura, esses espaços necessitavam de pessoas capacitadas para
desenvolver atividades que contribuíssem para a formação de leitores. Até então, o
trabalho que era realizado nas bibliotecas, segundo Lopes (2014, p. 117) “se
preocupava apenas com a manutenção e conservação do acervo. Enquanto as práticas
de leitura, no espaço da biblioteca, restringiam-se a uma mediação utilitarista, em que
o texto era usado apenas como pretexto, para a realização das atividades”.
Essa afirmação revela que apesar dos espaços, do mobiliário e do acervo, as
atividades desenvolvidas nas BE’s pouco contribuíam para o aprendizado dos alunos.
Por muitas vezes as atividades propostas após a leitura eram limitadas ao pintar,
desenhar e colar, ou resultavam em trabalhos escolares sobre o que se leu.
Até o ano de 2001, o idealizador do projeto Palavras Andantes, Rovilson José
da Silva, atuava como docente e vivenciava a realidade das BE’s do município de
Londrina. Com base em sua experiência na rede municipal de ensino, atuando no ensino
fundamental, Silva (2006) observou as dificuldades centradas nas bibliotecas, como a
ausência de investimentos em acervos, mobiliários e infraestrutura e, principalmente, as
dificuldades encontradas no que se refere à mediação da leitura. Anteriormente ao
“Palavras Andantes”, as condições físicas das bibliotecas eram precárias e por algum
tempo esse espaço foi destinado para outras finalidades, devido, entre outros aspectos,
à falta de formação do PROB.
Naquele período, a BPM era responsável por organizar as reuniões com os
professores das BE’s, sem a participação da Secretaria Municipal de Educação (SME),
uma vez que esta não possuía alguém que realizasse o acompanhamento dos
professores. Embora a SME disponibilizasse diversos cursos de formação continuada
voltados para diferentes áreas, não havia nenhum específico pertinente à biblioteca. Por
esse motivo, os encontros dos professores ocorriam uma vez por mês sob a
coordenação de bibliotecárias na própria BPM, porém pouco era discutido acerca da
formação de leitores e da relação entre escola, biblioteca e ensino. (SILVA, 2013).
Segundo Silva (2006), o trabalho na biblioteca era visto como um trabalho fácil,
pouco elaborado, que exigia pouco preparo do professor. Em outros casos, a biblioteca
destinava-se aos professores próximos à aposentadoria, pois o trabalho era mais “leve”,
ou até mesmo para os professores readaptados, com problemas de saúde. Essas
situações distorciam a visão do professor responsável pela biblioteca, subentendendo

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a ideia de um trabalho que não requeria planejamento, intencionalidade pedagógica.
Por esse motivo, era incumbido ao professor outros tipos de trabalhos, como por
exemplo: cuidar do recreio; auxiliar a secretaria/a diretoria financeira; xerografar
materiais; criar e montar painéis com datas comemorativas, entre outros. Silva (2006)
aponta que essas atribuições não estavam vinculadas à mediação da leitura e
interferiam na realização de atividades voltadas para a formação de leitores.
Além disso, existiam escolas que possuíam biblioteca, mas não a exploravam
como deveriam. Havia escolas que mesmo sem possuir o espaço destinado para a
biblioteca, realizavam a Hora do Conto, porém não forneciam empréstimos de livros
para os alunos. Outras escolas possuíam biblioteca e permaneciam com esse espaço
fechado, mesmo possuindo condições de mantê-lo aberto.
Diante disso, foi no ano de 2002 que Silva (2006) estruturou o projeto intitulado
“Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes” cujo o objetivo principal era direcionado para
a formação do mediador de leitura atuante nas BE’s e a formação de leitores nas
escolas. Sendo assim, o projeto foi desenvolvido com base em quatro eixos: estimular
à leitura por meio da Hora do Conto realizada semanalmente nas BE’s; ampliar o acervo
e empréstimos de livros; reestruturação arquitetônica e pedagógica das BE, além do
investimento em formação continuada para os professores regentes. Segundo Lopes
(2014), o projeto tornou-se um marco na história das BE’s, pois capacitou diversos
professores para atuarem nesse ambiente, ampliou o número de instalações de
bibliotecas nas escolas da rede municipal, assim como a aquisição de novos mobiliários
e acervos que compõem esses ambientes.
Uma das primeiras medidas tomadas no início do projeto, segundo Silva
(2013), foi tornar a SME responsável pelas BE’s, bem como pela capacitação dos
professores atuantes nesses espaços. Desse modo, a BPM permanecia como parceira
encarregada por cuidar da parte técnica do acervo e a SME em fornecer cursos de
formação e acompanhamento pedagógico. Com isso,

[...] houve o início do programa de formação contínua do professor da


Hora do Conto que, com a inserção do Palavras Andantes, passou a
ser chamado de professor regente de oficina de biblioteca (PROB) nos
documentos oficiais da SME/Londrina. (SILVA, 2010, apud SILVA,
2013, p. 360)

Isso demonstra que entre tantas transformações, o “Palavras Andantes”


ressignificou o trabalho do professor de biblioteca, definindo o seu papel. Com a criação
do PROB, criou-se também a identidade do professor, desfazendo a visão distorcida
advinda das situações pelas quais esse profissional estava submetido.

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No início do curso de formação do PROB, Silva (2006) identificou a baixa
autoestima dos professores, e isso tornou-se um desafio a ser superado pelo projeto
que se estabelecia. A baixa autoestima era proveniente da falta de reconhecimento do
trabalho dos professores pela Rede. O investimento na valorização do profissional
responsável pela Hora do Conto reflete no seu trabalho, e o não reconhecimento por
esse profissional pode dificultar a formação de leitores no espaço escolar. Diante disso,
houve a necessidade de orientar o trabalho dos professores de modo que possibilitasse
a reflexão crítica sobre suas práticas e concepções. Por meio das discussões realizadas
nos encontros mensais, os professores tinham a oportunidade de modificar sua prática
e refletir de forma crítica sobre as práticas existentes na Rede Municipal. Os professores
também se queixavam sobre a falta de preparo para lidar com outras áreas do
conhecimento, pois sentiam-se inseguros sobre o trabalho que era realizado na escola.
Dessa forma, Silva (2006) estabeleceu temas a serem trabalhados no decorrer das
reuniões em que abrangiam diversas áreas do conhecimento, sem desconsiderar a
leitura como o eixo norteador do trabalho desenvolvido e incluindo a possibilidade do
mediador trabalhar com os diversos tipos de materiais impressos.
Entre as medidas tomadas, é possível observar o cuidado quanto ao espaço
físico e pedagógico das BE’s. O projeto não se preocupou somente com a formação do
PROB, mas também com a parte arquitetônica das bibliotecas. Em muitas escolas as
bibliotecas eram encontradas em situações caóticas como semelhantes a despensas,
almoxarifados ou depósitos, e isso só ocorria quando havia o espaço disponibilizado
para a biblioteca. Parte dos mobiliários eram inadequados, como mesas altas com
quinas e cadeiras incompatíveis ao tamanho das crianças. (SILVA, 2006) Além do
mobiliário inapropriado, muitos espaços não eram arejados, continham pouca
iluminação e ventilação.
Diante disso, foi iniciado um trabalho em conjunto com a equipe de engenheiros
e arquitetos, os quais eram responsáveis por projetos e execução de obras em escolas.
Segundo a proposta elaborada, o espaço da Biblioteca deveria oferecer conforto,
possuir janelas, ser um local flexível e arejado, possibilitar o acesso das crianças aos
livros com facilidade, e principalmente, oferecer segurança.
Outro aspecto importante pelo qual o projeto se preocupou, foi em estabelecer
uma política de ampliação de acervo, já que em muitas BE’s o acervo era constituído
por doações de famílias que descartavam livros que acumulavam nas casas, ou por
livros didáticos e enciclopédias desatualizadas. Quando livros novos eram adquiridos,
dificilmente chegavam aos alunos, pois a escola tinha medo de que perdessem ou

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danificassem as obras. Segundo Silva (2013), por meio do projeto foram estabelecidos
alguns critérios para compras de livros, como oferecer títulos distintos sem repetir
volume, diversificar as editoras, selecionar 60% dos títulos para a literatura infanto-
juvenil e 40% para as demais áreas do conhecimento. Com o objetivo de evitar que o
novo acervo permanecesse intacto nas prateleiras da biblioteca, durante o curso de
formação era trabalhado com os professores estratégias de como o livro poderia ser
apresentado aos alunos.
Em 2008 o projeto foi reconhecido nacionalmente por meio da conquista do
prêmio VivaLeitura, programa do Ministério da Educação que visava incentivar a
formação de leitores no Brasil. Além do reconhecimento do projeto em nível nacional,
essa conquista destaca a relevância de embasar a prática do PROB com inovações
direcionadas para a formação de leitores. (LOPES, 2014). Atualmente, o projeto
encontra-se em desenvolvimento no município e os professores regentes de biblioteca
realizam a mediação de leitura.
A seguir, serão abordados aspectos relacionados à formação do PROB em
Londrina, destacando alguns elementos observados durante as reuniões realizadas no
período que corresponde a 2018 e 2019.

Formação de professores regentes de oficina de biblioteca de Londrina, de


2018 a 2019
O curso de formação do PROB surgiu em 2002, por meio, do projeto
"Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes" com o objetivo de proporcionar uma
capacitação contínua do profissional mediador de leitura e contribuir nas atividades
exercidas pelos PROB em estratégias de leitura, mediação, produção de textos
individuais e coletivos, dicas de livros e como trabalhar com o acervo, como fazer
empréstimos entre outros além de visar à integração das professoras compartilhando
suas ideias e experiências despontando assim novas ações.
Pela SME/Londrina, a formação continuada do PROB acontece uma vez por
mês com carga horária média de 40 horas anuais, ofertado em dois períodos, das 8 às
12horas e 13h30 às 17h30 no horário de trabalho. São duas turmas com a participação
de aproximadamente 150 professores que atuam no projeto "Bibliotecas Escolares:
Palavras Andantes". Atualmente está organizado em estudos teóricos acerca de livro,
leitura e biblioteca e estudos práticos por meio de discussão de procedimentos do
cotidiano como as ações pedagógicas, novas temáticas realizadas nas oficinas e nas
atuações pedagógicas nas escolas.

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No período de acompanhamento da formação, presenciou-se alguns cursos de
formação do PROB no período vespertino entre o segundo semestre de 2018 e o
primeiro semestre de 2019, que eram realizados no Sesc (Serviço Social do Comércio)
de Londrina, na unidade Centro. Totalizados em cinco dias, nos quais foram
apresentadas propostas pedagógicas, relatos de experiência em sala de aula e
orientação a respeito das escolhas de livros do Programa Nacional do Livro e do Material
Didático (PNLD).
Inicialmente, nos cursos de formação do PROB, começava geralmente com a
palavra da coordenadora do projeto "Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes" Marcia
Batista de Oliveira e do idealizador do projeto e coordenador do nosso projeto de
iniciação científica, Silva. Os quais trazem informações e recados importantes para o
grupo e apresentam o tema do dia assim como sua relevância.
No dia 05 de abril de 2018, o curso de formação continuada, contou com a
presença da “Folha cidadania”, programa de incentivo à leitura, do Jornal Folha de
Londrina no qual teve como objetivo reduzir o índice de analfabetismo funcional entre
as crianças apresentando o jornal aos educadores como ferramenta eficaz no processo
de aprendizagem, para estimular a leitura crítica, escrita e interpretação. O programa
promoveu o projeto “ler para ser” que teve como propósito qualificar os professores da
rede municipal de ensino sobre as novas técnicas e práticas pedagógicas referentes
aos diversos meios de comunicação em sala de aula.
O curso abordou diversos temas referentes ao jornal, sendo um material
fundamental para formação de leitores proficientes e de obtenção de informação sobre
o mundo atual. Foram apresentados diversos temas e métodos relacionadas aos
assuntos que podem ser abordados nas diferentes matérias e conteúdos. Também foi
debatida a importância da disponibilização dos exemplares nas bibliotecas para o auxílio
em consulta, pesquisa e coleta de informações para os estudantes e professores, além
de orientação referente ao jornal digital. Após a palestra, houve uma oficina para
desenvolvimento e aprimoramento de habilidades e técnicas no uso do jornal como
suporte de textos nas práticas pedagógicas.
No dia 07 de junho de 2018, primeiramente foi realizada uma palestra pelo
coordenador do projeto de pesquisa de iniciação científica "Mediação da leitura nas
bibliotecas escolares na rede municipal de ensino de Londrina" sobre a organização de
uma escrita: reflexão inicial. Logo após os professores regentes receberam a presença
de uma designer, bonequeira, ventríloqua, contadora de histórias e especialista em
Contação de Histórias e Literatura Infantil-juvenil. A contadora também fornece para as

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professoras treinamento de ventríloquo e com a sua boneca Paty, um boneco
ventríloquo para contar as histórias “Lambe-Lambe”, “Gira Mundo e “Mamulengo” e
explicou sobre os tipos de fantoches. Também abordou práticas pedagógicas de
Contação de histórias e manuseio com bonecos e fantoches, e apresentou diversas
formas e modelos de apresentação, utilizando vários materiais.
No dia 02 de agosto de 2018, uma professora que atua na biblioteca da Escola
Municipal de Londrina Haydee Colli Monteiro relatou sobre a estruturação do seu projeto
"Da alta-costura à literatura infantil – Coco Chanel", com base no livro “Diferente como
Chanel” de Elizabeth Matheus. O trabalho foi desenvolvido em etapas como: a pesquisa,
a caracterização, a hora do conto, o teatro e as oficinas - entre outros. O trabalho
realizado com os alunos foi dividido em quatro encontros e abordou a biografia
simplificada, para o público infantil, da Estilista Francesa Coco Chanel.
As crianças também puderam produzir, nas oficinas, roupas de bonecas,
desenhos, produção de revista, releitura de peças de Chanel e desfile de moda no
encerramento com a participação de alunos e professores no pátio da escola. Os
trabalhos dos alunos foram expostos durante a reunião e no final, os professores
presentes participaram de uma oficina para criação de bonecas, assim como os alunos
fizeram. Oportunizando aos professores da formação continuada do PROB a
apresentação da estruturação e dos resultados obtidos dos colaboradores das escolas
em seus projetos realizados em sala de aula.
O assunto abordado no dia 04 de outubro de 2018 foi o Programa Nacional do
Livro e do Material Didático (PNLD). O PNLD disponibiliza obras didáticas, pedagógicas
e literárias, entre outros materiais de apoio à prática educativa, de forma universal e
gratuita, às escolas públicas e instituições filantrópicas de educação infantil, anos iniciais
do ensino fundamental, anos finais do ensino fundamental e ensino médio pelo Decreto
nº 9.099, de 18 de julho de 2017 (BRASIL, 2017).
Os coordenadores do projeto de pesquisa de iniciação científica e a atual
coordenadora do projeto "Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes" debateram sobre
“A literatura, a arte da palavra e a seleção de acervo para a biblioteca”, abordando a
literatura como instrumento de humanização e instruindo aos PROB referente a
aquisição dos livros por meio do PNLD, tirando dúvidas e orientando na inscrição e
escolhas dos materiais.
No dia 09 de maio de 2019 o curso de formação do PROB recebeu o projeto
“Japão que inspira” idealizado por um vereador do município cujo objetivo foi levar
informações a respeito da cultura e das tradições do Japão e Comunidade Nipo-

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Brasileira. O vereador promoveu nas escolas o concurso de produção de texto no ano
de 2018 pelo projeto “O Japão que inspira - 110 anos da imigração japonesa no Brasil”,
no qual abordava a história da Imigração japonesa; os esportes, o origami, os mangás,
histórias em quadrinhos; animes; animações produzidas por estúdios do Japão;
instrumentos musicais, além da dança tradicional japonesas. No ano de 2019 o vereador
estava divulgando o novo tema “Tomodachi”, que em japonês significa “amigo”, com a
finalidade de inspirar o espírito de amizade, companheirismo, empatia e de coletividade
entre os estudantes.
Nas formações continuadas que observamos foram abordados temas que
contribuem para um novo dimensionamento e práticas de mediação de leitura, nos quais
auxiliam os professores a potencializar o seu trabalho na elaboração de produções
culturais que envolvem a leitura. Além de trazer orientações na organização e dinâmica
na escola, assim como na escolha de livros do acervo para a biblioteca escolar.

Considerações finais
A biblioteca se constitui como um espaço fundamental para o processo de
formação de leitores. Nela encontramos diversos tipos de informações e conhecimentos
capazes de transformar a vida cultural de seus usuários. O contexto de relações que
abrange livros, alunos e bibliotecários ou professores, é um componente vital para a
biblioteca, o que a torna também um espaço carregado de significados para toda a
comunidade local.
Na escola não é diferente, pois quando compreendida nessa teia de relações,
a biblioteca torna-se um ambiente propulsor da leitura, além de auxiliar no processo
educacional, proporciona suporte didático para os professores e favorece também o
processo de ensino e aprendizagem dos educandos.
Ao observarmos o breve histórico das bibliotecas, verificamos que o professor
atuante nesse espaço era desvalorizado, pois não havia um direcionamento advindo por
parte da Secretaria que conduzisse as ações pedagógicas de fomento à leitura. Visando
resgatar a autoestima desse profissional e o aperfeiçoamento de suas práticas, o
“Palavras Andantes” constituiu sua identidade, definindo o seu papel na biblioteca e
direcionando o seu trabalho.
O projeto preocupou-se com a implantação de uma política pública de leitura
baseada na formação do professor responsável pela mediação na biblioteca, pois esse
profissional é um agente transformador e quando possui consciência do seu papel na

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sociedade, contribui significativamente na formação de leitores. Além disso, o projeto
demonstra que é possível consolidar uma política pública de leitura com efetividade.
Diante da pesquisa realizada, foi possível identificar alguns aspectos acerca da
formação do professor regente de oficina de biblioteca atuante na rede escolar de
Londrina. Constatamos que os cursos ministrados durante o projeto “Palavras
Andantes” para o PROB, contam com a participação de contadores de histórias e de
projetos que fomentam a leitura, auxiliam na constituição do docente, assim como no
aperfeiçoamento de suas práticas por meio do desenvolvimento de discussões teóricas.
Os cursos também fornecem suporte e permitem explorar as práticas
pedagógicas tornando-as mais eficientes, dinâmicas e marcantes, assim como
possibilitam a divulgação e conhecimento de projetos promovidos nas escolas. As trocas
de experiências e relatos das atividades praticadas nas escolas proporcionam reflexões
e permitem proximidade dos professores, além de estimular a concretização de ações
pedagógicas no espaço escolar direcionadas ao fomento e valorização da leitura.
Nas dinâmicas do “Palavras Andantes”, pudemos constatar que o mediador
necessita obter embasamento teórico, criatividade, abertura ao diálogo e atenção às
reações dos alunos, visando desse modo, aproximar leitor e texto. O professor
participante da formação do PROB possui acesso a diversos materiais e conteúdos que
fornecem suporte e condições de ser mais ativo e inovador nas tarefas exercidas na
biblioteca, o que torna as atividades mais dinâmicas e auxiliam na constituição de um
leitor que interage com a obra.
Portanto, o PROB é formado para criar de maneira consciente, intencional e
eficaz a prática da leitura e o gosto literário aos alunos, assim como promover a
aprendizagem e a formação dos alunos do ensino fundamental da rede municipal de
ensino de Londrina.

Referências:
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Leitura, teoria e prática, [s.l], v. 29, n. 57, 2011. Disponível em:
https://ltp.emnuvens.com.br/ltp/article/view/37. Acesso em: 12 fev. 2020

BRASIL. Ministério da educação. Decreto nº 9.099, de 18 de julho de 2017. Dispõe


sobre o Programa Nacional do Livro e do Material Didático. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9099.htm. Acesso
em: 10 fev. 2020.

LOPES, L. M. Bibliotecas escolares de Rio Verde-GO: uma possível política


municipal de leitura. 2014. Tese (Tese em Educação) - Universidade Estadual

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Paulista Júlio de Mesquita Campus de Presidente Prudente, Presidente Prudente,
2014.

SILVA, R. J. O professor mediador de leitura na Biblioteca Escolar da Rede


Municipal de Londrina: formação e atuação. 2006. Tese (Tese em Educação) -
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Campus de Marília, Marília, 2006.

______. Leitores e biblioteca escolar: do período neolítico ao hommo sapiens sapiens.


Ensino em Re-Vista, [s.l], v. 20, n. 2, p. 357-366, jul./dez., 2013.

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O ESTÍMULO DA LEITURA DE CONTOS NAS AULAS DE ELE A
PARTIR DO GÊNERO AUDIOVISUAL – VÍDEO

Izabel Cristina Barbosa de Oliveira, IFAL

Eixo Temático: GT 09 – Os espaços de leitura literária

Considerações iniciais
O estimulo à leitura pode ocorrer de diversas maneiras e a partir da utilização
de vários recursos. Esse trabalho abordar o estímulo à leitura a partir da exposição do
curta-metragem do conto de Júlio Cortázar “la continuidad de los parques” no gênero
audiovisual.
Nos últimos anos temos vivenciado o rápido desenvolvimento de diversos
recursos tecnológicos, nunca antes observado, oferecendo diversas mídias e mudanças
na forma de lermos o texto. É importante mencionar que esses avanços também
repercutem no ambiente escolar.
O processo de ensino-aprendizagem pode se beneficiar muito com o
aproveitamento de diversos tipos de mídia, ampliando o universo do estudante e
oferecendo acesso a textos literários não disponíveis facilmente na biblioteca na forma
mais tradicional de um livro.
Autores como Moran (2005) explicam que a televisão, o cinema e o vídeo tem
uma grande influência no processo educacional. Por isso, é importante sabermos utilizá-
los pedagogicamente, a fim de aprimorarmos nossa prática em sala.
A partir da exposição do curta-metragem como forma de incentivar a leitura de
textos, nesse caso o conto do Cortázar, é possível perceber que os recursos existentes
no vídeo acabam por mudar a maneira de se ler, sendo necessário a compreensão de
todos os meios semióticos existentes para a compreensão do conteúdo.
Esse trabalho teve por objetivos: estimular a leitura de contos nas aulas de
Língua Espanhola; propagar a literatura hispano-americana nas aulas de ELE (espanhol

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língua estrangeira); e, desenvolver o interesse dos alunos pela leitura a partir do gênero
audiovisual vídeo para o texto escrito

Referencial Teórico
Com o desenvolvimento das tecnologias digitais da informação e comunicação
(TDICs), é possível ter acesso a vários tipos de gêneros textuais disponíveis na internet.
A leitura pode ser desenvolvida em vários suportes, não mais se restringindo ao texto
escrito, ou ao livro. Para Blisktein (1977) o primeiro recurso audiovisual presente em
sala já é a imagem do próprio docente, durante sua prática pedagógica.
É preciso repensar tanto na escola, quando no papel dela nos dias atuais.
Segundo Serafim e Souza (2011, p. 20)

a escola de hoje é fruto da era industrial, foi estruturada para preparar


as pessoas para viver e trabalhar na sociedade que agora está sendo
convocada a aprender, devido às novas exigências de formação de
indivíduos, profissionais e cidadãos muito diferentes daqueles que
eram necessários na era industrial.

Essa imagem e papel da escola nessa época ainda se repete, no entanto, é


necessário romper com esse paradigma, o que passa necessariamente, também, pela
modificação da prática docente em sala. É fundamental buscarmos meios mais
modernos para utilizarmos em sala a fim de darmos uma sincronia no processo de
ensino-aprendizagem, condizente com a época na qual estamos vivendo.
Principalmente, com a geração de alunos que estamos lidando.

Não fará mais sentido estarmos vivendo um mundo dentro da escola e


outro totalmente diferente fora dela, onde a vida caminha
dinamicamente e com muita rapidez, adaptando-se a todas as
mudanças da sociedade. Será um trabalho maior para o professor, que
deverá encontrar formas de passar conhecimentos para seus alunos
utilizando-se de toda tecnologia disponível, (ROSA, 2001, p. 5).

“Uma mudança qualitativa no processo de ensino/aprendizagem acontece


quando conseguimos integrar dentro de uma visão inovadora todas as tecnologias: as
telemáticas, as audiovisuais, as textuais, as orais, musicais, lúdicas e corporais”
(MORAN, 2000, p.1). A televisão, o vídeo, o filme, tudo isso dão um maior suporte à
leitura por causa de seus recursos sonoros, visuais e do movimento. Esses elementos
podem se tornar grandes aliados dos professores no incentivo à leitura. Serafim (2010,
p. 3) explica que

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a leitura é fundamental, pois afeta diretamente a vida de todos que
estão inseridos numa sociedade letrada, gráfica e icônica. Atualmente,
as informações chegam de várias fontes e formas e em função dessa
realidade torna-se fundamental a capacidade cognitiva de ler o mundo
atual, seja em função das imagens que cercam nossas vidas ou das
mensagens no código escrito que a todo instante surgem frente aos
nossos olhos e numa velocidade cada vez mais perturbadora. O leitor
de hoje precisa ser um leitor plural, capaz de fazer leituras em
diferentes linguagens

É necessário ressignificar o processo de leitura, uma vez que o texto é lido em


outros suportes e utiliza-se de várias semioses, decorrentes do uso das tecnologias
digitais. Conforme explica Theisen (2014, p. 165)
os estudos referentes à educação contribuem para que cada vez mais
se conduzam boas práticas de ensino-aprendizagem, uma vez que a
educação tem como prioridade formar o cidadão e, para isso, precisa
estar afinada com as novas tendências manifestadas na sociedade,
com uma aprendizagem contínua. A leitura e a escrita atualmente
passam por um processo de ressignificação devido à disponibilização
das ferramentas tecnológicas.

A prática docente de leitura e produção textual deve levar em consideração


todas essas mudanças e preparar o estudante para novas formas de leitura e escrita,
torná-lo multiletrado nos diversos contextos, ou seja, ler e escrever no suporte que
esteja disponível.
Impor a leitura de textos apenas escritos aos estudantes é negar todas as
transformações existentes decorrentes do processo evolutivo que a leitura vem tendo,
paralelamente aos desenvolvimentos tecnológicos digitais das últimas décadas e que,
naturalmente, já trazem em si, uma linguagem mais sedutora e atraente para as
gerações atuais.

A eficácia de comunicação dos meios eletrônicos, em particular da


televisão, deve-se também à capacidade de articulação, de
superposição e de combinação de linguagens diferentes – imagens,
falas, música, escrita – com uma narrativa fluida, uma lógica pouco
delimitada, gêneros, conteúdos e limites éticos pouco precisos, o que
lhe permite alto grau de entropia, de flexibilidade, de adaptação à
concorrência, a novas situações. Num olhar distante tudo parece igual,
tudo se repete, tudo se copia; ao olhar mais de perto, por trás da
fórmula conhecida, há mil nuances, detalhes que introduzem variantes
adaptadoras e diferenciadoras. (MORAN, 2005, p. 97)

Compreender os novos suportes presentes do texto, que não se apresentam


mais apenas na forma escrita, é possibilitar milhares de relações, somente possíveis, a
partir dos sentidos relacionados entre eles, como: imagens, cores, fontes, texturas,
sons, movimento, gestos e tantos outros. Guiar o estudante para compreender essa

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interação, é ensiná-lo a ler de diversas maneiras, é torná-lo letrado, ou multiletrado, por
causa das várias semioses existentes.

Letramento é muito mais que simplesmente decifrar códigos, ele é um


estado, uma condição: o estado ou condição de quem interage com
diferentes portadores de leitura e escrita, com diferentes gêneros e
tipos de leitura e de escrita, com as diferentes funções que a leitura e
escrita desempenham na nossa vida. Enfim: letramento é o estado ou
condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas
sociais de leitura e escrita. (SOARES, 1998, p. 107)

Ser letrado é não só possibilitar a leitura do texto em seus vários suportes, mas
também, promover sua produção, de forma coerente e contextualizada. O letramento
digital, conforme explica Theisen (2014, p. 165)
envolve o manuseio das ferramentas tecnológicas e a forma de como
fazer uso das mesmas. Ser letrado digitalmente representa a
realização de modos de leitura e de escrita em situações que envolvem
textos, imagens e sons em um novo formato, tendo como suporte o
ambiente digital.

Para Buzato (2006, p. 39) “letramentos digitais (LDs) são conjuntos de


letramentos (práticas sociais) que se apoiam, entrelaçam e apropriam mútua e
continuamente por meio de dispositivos digitais para finalidades específicas”. Hoje, os
estudantes estão sempre em contato com diversos dispositivos digitais pelos quais
estabelecem os mais variados tipos de relações e processos comunicativos. Não
empregando apenas textos escritos, mas uma diversidade de ícones, imagens, cores e
fontes que representam seus anseios, estado de espírito, acordos e desacordos.
Semioses que contribuem para o verdadeiro significado da mensagem.
O texto tornou-se mais dinâmico na transposição para as telas, seja ele curta
ou longa-metragem. As práticas de leitura também devem se atualizar, a forma como
apresentamos o texto aos estudantes deve levar em consideração o atual contexto sócio
histórico, e, por conseguinte, todas as mudanças ocorridas no processo de ensino-
aprendizagem.

Diante da emergência das novas concepções e maneiras de comunicar


que circulam em nosso cotidiano, é reconhecida a necessidade de a
Educação considerar e apropriar a multiplicidade dos gêneros
discursivos nas suas práticas pedagógicas, tal como as imagens,
possibilitando a constituição de um leitor/observador capaz de
compreender e interagir com a realidade sociocultural da qual participa,
na medida em que suas ações estão voltadas para a educação do
olhar; um conhecimento muitas vezes negligenciado pelas pedagogias.
(DIAS e MOURA, 2010, p. 58)

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O processo de ensino, especificamente o professor, às vezes reflete uma
resistência em mudar e incrementar suas aulas com a utilização de ferramentas mais
contemporâneas, consequentemente, ele(a) costuma ensinar da mesma maneira pela
qual aprendeu, imitando ou espelhando seus antigos professores.
Moran (1999, p. 1) expõe que “muitas formas de ensinar hoje não se justificam
mais. Perdemos tempo demais, aprendemos muito pouco, nos desmotivamos
continuamente. Tanto professores como alunos temos a clara sensação de que muitas
aulas convencionais estão ultrapassadas”. Dessa forma, o conteúdo não se torna
significativo para os estudantes, uma vez que ele não consegue estabelecer as relações
com sua realidade, tornando a aula extremamente desinteressante.
Moran (2005, p. 97) também explica que “a televisão, o cinema e o vídeo – os
meios de comunicação audiovisuais – desempenham, indiretamente, um papel
educacional relevante”, assim, é primordial saber manusear pedagogicamente esses
instrumentos.
Para tanto, é necessário sempre repensar sobre nossa prática docente, uma
vez que hoje possuímos muitos mais recursos que podem aumentar, ou instigar, o
interesse dos estudantes em vários assuntos, inclusive na leitura de textos. Assim, é
necessário que o professor explore os recursos existentes e pense em como aplicá-los
de maneira pedagógica.
Nos últimos tempos, o cenário escolar, integrado com vivências em multimídia,
geram: a dinamização e ampliação das habilidades cognitivas, Serafim e Sousa (2011),
dessa maneira, não se pode conceber a perpetuação de práticas pedagógicas
tradicionais que não acompanhem tais mudanças nas formas de pensar das pessoas,
atualmente.
É importante romper com a ideia de que ao se passar um vídeo o professor não
está dando aula (BLISKTEIN, 1977), por parte de alunos, ou mesmo, outros
profissionais, colegas de trabalho. A utilização de recursos audiovisuais são de extrema
importância na prática pedagógica, e deve ser planejada, assim como fazemos quando
elaboramos: uma prova, uma ficha e as próprias aulas.
Dessa maneira, podemos parar a reprodução do vídeo e fazer perguntas,
conjecturas para nortear os alunos e tirar dúvidas sobre sua compreensão e
entendimento do vídeo, ou mesmo, perguntar como eles acreditam que será o desfecho
da história.

[...] podemos interromper a projeção a qualquer momento e perguntar


ao aluno: "Como é que vai terminar a história? Qual seria a solução
que você daria ao problema?" Podemos fazê-lo também com os filmes
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e a projeção de slides, provocando a participação. (BLISKTEIN, 1977,
p. 50)

Da mesma forma é possível proceder com o texto escrito, quando lido pelo
docente, ou mesmo entregue impresso aos estudantes, porém, omitindo-se o final.
Essas estratégias devem ser planejadas previamente, também devemos pensar sobre
o tempo do vídeo. No caso dos filmes, por serem longos, podemos dividir em partes, ou
fazer um recorte no trecho mais significativo. A imaginação e a criatividade do docente
são o limite.
O papel docente é de orientar, mediar a aprendizagem e não mais passar a
informação. Ela já está posta de diferentes formas para os estudantes, disposta nas
tecnologias digitais da informação e comunicação, nas mídias, em revistas, em todo
lugar.
Ao professor cabe instigar, questionar, tirar dúvidas, redirecionar a fim de que
o aprendiz desenvolva sua autonomia e aprenda a aprender constantemente, dando
significado e contextualizando tudo o que aprende.

Ensinar e aprender exigem hoje muito mais flexibilidade espaço-


temporal, pessoal e de grupo, menos conteúdos fixos e processos mais
abertos de pesquisa e de comunicação. Uma das dificuldades atuais é
conciliar a extensão da informação, a variedade das fontes de acesso,
com o aprofundamento da sua compreensão, em espaços menos
rígidos, menos engessados. Temos informações demais e dificuldade
em escolher quais são significativas para nós e conseguir integrá-las
dentro da nossa mente e da nossa vida. A aquisição da informação,
dos dados dependerá cada vez menos do professor. As tecnologias
podem trazer hoje dados, imagens, resumos de forma rápida e
atraente. O papel do professor – o papel principal – é ajudar o aluno a
interpretar esses dados, a relacioná-los, a contextualizá-los. Aprender
depende também do aluno, de que ele esteja pronto, maduro, para
incorporar a real significação que essa informação tem para ele, para
incorporá-la vivencialmente, emocionalmente. Enquanto a informação
não fizer parte do contexto pessoal - intelectual e emocional - não se
tornará verdadeiramente significativa, não será aprendida
verdadeiramente. (MORAN, 1999, p. 1)

A escola deve possibilitar essa aproximação dos estudantes aos novos


recursos tecnológicos digitais, para, não só contextualizar os assuntos abordados, mas
também, preparar os estudantes para utilizar tais recursos de maneira reflexiva.
O estímulo à leitura a partir do audiovisual, nada mais é do que uma forma mais
envolvente, instigante e mais próxima da realidade do aprendiz, uma vez que os
contextos de leitura mudam de acordo com o desenvolvimento sócio histórico e cultural,
provocando no professor, novas possibilidades de trabalho que busquem formas mais
contemporâneas de envolver o aluno no mundo da leitura.
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Oportunizar novas práticas de ensino é um processo constante e necessário.
Atualizarmos como profissional exige uma reflexão diária. Não podemos nos acomodar
e esquecermos das mudanças que ocorrem na sociedade. É nossa obrigação
contextualizar os conteúdos ensinados e, para tanto, integrar novas ferramentas nesse
processo. Tudo isso, contribui para o desenvolvimento de um sujeito autônomo, capaz
de aprender continuamente.

Desenvolvimento da Atividade em Sala


As turmas escolhidas para a aplicação desse projeto foram duas turmas do
último período do curso de Língua Espanhola oferecido pelo NEL – Núcleo de Ensino
de Línguas, curso de línguas ofertado por escolas públicas do Estado de Pernambuco.
As aulas tinham duração de 50 minutos, duas vezes por semana. O curso de Língua
Espanhola possui 4 níveis de ensino, o período final equivale ao nível A2 do Marco
Comum Europeu.
Para o desenvolvimento desse projeto utilizou-se 2 aulas. As aulas de Língua
Espanhola foram divididas em várias etapas. Primeiramente, fez-se perguntas sobre
Júlio Cortázar, como: qual o nome da pessoa na imagem (mostrando uma caricatura –
figura 1), qual a nacionalidade e sua profissão.

Figura 1: Caricatura de Júlio Cortázar

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/558516791272906675/

Nenhum estudante conseguiu responder corretamente as perguntas, logo após


a indicação do nome, nacionalidade e profissão, por parte da docente, foi explicado que
se iria trabalhar com um de seus contos, a partir da exposição do curta-metragem,
disponível gratuitamente (figura 2) no youtube e que possui duração de 9 minutos e 23
segundos.

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A duração do vídeo é extremamente relevante uma vez que é possível
reproduzi-lo mais de uma vez, a fim de que haja a plena compreensão da história, uma
vez que a narração é feita em língua estrangeira (espanhol) e pode causar, inicialmente,
problemas de compreensão auditiva. Apesar de haver legenda, essa não é escrita na
língua alvo, porém em língua inglesa.

Figura 2: Print do curta-metragem

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=0zL9tb0y16g

Para esse trabalho de compreensão e interpretação, também foi necessário


desenvolver um questionário para ser respondido pelos alunos durante a exibição.
Dessa maneira, houve uma introdução ao curta-metragem, um questionário para ser
respondido durante sua exposição e outro momento após, para a interação e
socialização das respostas.
Posteriormente, o curta-metragem foi mostrado duas vezes, no entanto,
minutos antes do final, foi dado uma pausa, a fim de que os estudantes criassem um
desfecho diferente. Não é preciso dizer que todos ficaram bastante curiosos para saber
o que aconteceria, mas, cada um criou um término diferente, de acordo com suas
impressões.
Logo após, os estudantes redigiram seus textos em espanhol, e,
sucessivamente, cada um leu seu final. A professora indicou alguns ajustes/correções
para a reescrita de forma geral no final de todas as leituras.
Por fim, na segunda aula do projeto, os estudantes releram os textos
reescritos/corrigidos e, então, foi repassado o curta-metragem, dessa vez, na íntegra.
Não foi necessário repetir o vídeo. Após a exibição, cada estudante comparou o
desfecho original com sua produção. Antes do término da aula, foi entregue aos
estudantes uma xérox do conto escrito de Júlio Cortázar para sua leitura deleite, figura
3.
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Figura 3: Conto impresso de Júlio Cortázar

Fonte: https://www.ucm.es/data/cont/docs/119-2014-02-19-
Cortazar.ContinuidadDeLosParques.pdf

Os finais criados pelos alunos foram bem diversificados e nenhum estudante


chegou perto do desfecho original. Todos os participantes revelaram ter gostado da
abordagem, uma vez que ampliou o conhecimento de mundo e oportunizou novas
leituras.
É importante salientar que não há cópias desse conto na biblioteca da escola,
nem nenhum exemplar de leituras em língua espanhola. Na biblioteca particular do NEL,
há apenas um exemplar de livros que foram doados, há alguns anos, dos clássicos da
literatura espanhola, porém, só o livro adaptado sem nenhum outro recurso midiático,
como vídeo e/ou áudio.

Considerações Finais
A partir do uso da ferramenta audiovisual – vídeo, percebeu-se que os
estudantes acabaram por ficar mais curiosos e interessados em ler o texto escrito
original do conto de Júlio Cortázar.
Apesar de utilizarem semioses distintas, a forma pela qual o texto foi
apresentado a eles, a partir da exibição do curta-metragem, os alunos envolveram-se
na história de tal maneira que os instigou a ler o conto escrito, conhecer mais sobre o
autor, o que lhes viabilizou outro universo de gêneros literários.

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Dessa forma, o vídeo continuou como estímulo à leitura; propagou a literatura
hispano-americana nas aulas de ELE, e desenvolveu o interesse dos alunos pela leitura
a partir do gênero audiovisual vídeo para o texto escrito.
É fundamental que o docente sempre busque novas formas e estratégias de
ensino, a fim de utilizar recursos tecnológicos digitais envolventes para contextualizar
os conteúdos abordados em sala. Dessa maneira, estaremos mais sintonizados ao
desenvolvimento tecnológico, além de, proporcionarmos aulas mais contemporâneas
de acordo com a realidade vivida pelos nossos estudantes, sem deixarmos de mediar o
conhecimento imprescindível ao seu desenvolvimento intelectual.

Referências
BLISKTEIN, Izidoro. Recursos audiovisuais no ensino. R, Adm. Emp. 11(3): 49-52,
maio/jun., Rio de Janeiro, 1977.

BUZATO, M. Letramentos digitais e formação de professores. In: III Congresso Ibero-


Americano EducaRede, 2006, São Paulo. Anais do III Congresso Ibero-Americano
Educarede. São Paulo: CENPEC, p. 81-86, 2006.

DIAS, Ângela A. C.; MOURA, Karina, da S. Um mundo de imagens: inclusão do


gênero discursivo imagético no processo de aprendizagem. Rev. Estud. Comun.,
Curitiba, v. 11, n. 24, p. 57-64, jan./abr. 2010.

MORAN, José M. O Uso das Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação na


EAD - uma leitura crítica dos meios. Palestra proferida pelo Professor José Manuel
Moran no evento " Programa TV Escola - Capacitação de Gerentes", realizado pela
COPEAD/SEED/MEC em Belo Horizonte e Fortaleza, no ano de 1999. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/T6%20TextoMoran.pdf>. Acesso em 15 de
set. 2020.

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Teoria & Prática. Porto Alegre, vol. 3, n.1, UFRGS. Programa de Pós-Graduação em
Informática na Educação, pág. 137-144, set. 2000.

_____. Desafios da televisão e do vídeo à escola. In: Integração das Tecnologias na


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ROSA, P. A. Impacto da Tecnologia da Informação na Educação. São Paulo: 2001.

SERAFIM, Denise J. A linguagem audiovisual no processo educativo e no incentivo à


leitura: o caso do programa Mundo da Leitura. Intercom – Sociedade Brasileira de
Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências
da Comunicação, Caxias do Sul, RS. 2010.

SERAFIM, Maria L.; SOUZA, Robson P. Multimídia na educação: o vídeo digital


integrado ao contexto escolar. Campina Grande: EDUEPB. 276 p., 2011.

SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2002.

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THEISEN, Jossemar de M. Novos estudos dos Letramentos: novas práticas de leitura
e escrita. Entrepalavras, Fortaleza - ano 4, v.4, n.1, p. 164-179, jan/jun, 2014.

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GESTÃO ESCOLAR E DOCÊNCIA: A IMPORTÂNCIA DE SUA
ATUAÇÃO COMO MEDIADORA DE LEITURA NA BIBLIOTECA

Sarah Gracielle Teixeira Silva, Faculdade de Ciências e Tecnologia – FCT/UNESP de


Presidente Prudente
Berta Lúcia Tagliari Feba, Faculdade de Tecnologia de Presidente Prudente —FATEC

Eixo Temático: Grupo temático 9 – Os espaços de leitura literária

Considerações iniciais
Esse artigo tem como tema a mediação do gestor e do docente na biblioteca
escolar, embasado em um problema de pesquisa que busca elucidar “Qual a
importância da mediação do gestor e do docente na biblioteca escolar?”
A justificativa desse tema e apontamento dessa indagação encontra-se no
conhecimento da importância da atuação do gestor e do docente dentro da escola. Não
excluindo os demais sujeitos de uma gestão democrática – que deve incluir:
funcionários, alunos e comunidade – o foco dessa discussão está nos agentes
responsáveis diretamente pela gestão, organização e ensino dentro da instituição
escolar.
Sendo assim, julga-se necessário questionar e compreender o quão relevante
a ação desses dois agentes pode impactar no incentivo e aplicação da leitura e acesso
ao espaço da biblioteca escolar.
Para essa discussão será utilizado como base teórica e prática a pesquisa
denominada “Estrutura física e ações de mediação de leitura em uma biblioteca de uma
escola municipal de Presidente Prudente” elaborada por essa autora, com orientação
da Prof.ª Dra. Berta Lúcia Tagliari Feba, através do Programa de Iniciação Científica –
PIBIC/sem bolsa, com início no ano de 2018 e término no ano de 2019, pela Faculdade
de Ciência e Tecnologia -FCT/Unesp de Presidente Prudente.
No que se refere a pesquisa ora mencionada, teve cunho bibliográfico e de
campo, com instrumentos de observação e entrevistas em uma biblioteca escolar de

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instituição pública da cidade de Presidente Prudente, ofertando resultados que podem
embasar a discussão desse artigo.
Além da pesquisa e de autores que nela se concentram, como: Josany Leme
da Silva Batista; e Sueli Bortolin e Luciano Ferreira Gomes; o artigo também terá um
embasamento teórico voltado a gestão educacional, com contribuições de José Carlos
Libâneo, Joao Ferreira Oliveira e Mirza Seabra Toschi.
Dessa forma, o método de análise será pautado no projeto acima citado e
contribuições bibliográficas. E a estrutura desse artigo será feita com discussões diretas
sobre a importância da biblioteca escolar, as atuações do gestor e docente na instituição
escolar e como suas mediações são necessárias para a formação do aluno como leitor
crítico, utilizando entre outros espaços pedagógicos, a biblioteca.

Da biblioteca escolar
A figura da biblioteca é algo milenar e até os dias de hoje é vista por muitos
como um lugar de respeito e cuidado, em que se guardam uma vasta diversidade de
livros que trazem consigo a história do mundo contada nas páginas.
Além dessa visão clássica e tradicional, a biblioteca ainda é vista por uma
maioria, como um lugar sagrado e imaculado, com a figura de uma bibliotecária quase
como que figurando uma guardiã do saber e que também coloca “ordem” com a famosa
palavra silêncio estampada nas paredes do espaço.
Inicio esse tópico do texto com palavras tão rebuscadas e um significado mais
refinado para demonstrar que a biblioteca por muito tempo teve como público principal
grandes pensadores e uma elite que tinha o poder de permanecer entre os livros
enquanto classes mais baixas se contentavam com o trabalho braçal.
Infelizmente essa visão tão arcaica ainda é defendida, mesmo que
indiretamente, pelo sistema e classe dominante em nossa sociedade que não permitem
que todos tenham acesso ao conhecimento, visto que isso libertaria um povo da
ignorância e os colocariam numa posição de cidadão com seus plenos direitos e
deveres.
Praticamente em toda cidade há a presença de uma biblioteca municipal que
nem sempre é contemplada pela maioria de sua população e é nesse momento que a
biblioteca escolar abre a possibilidade de em qualquer escola, principalmente pública,
de qualquer classe econômica, possa desfrutar do conhecimento e possibilidades de
aprendizagem que o espaço pode oferecer.

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Sendo assim, o que deve ser compreendido é que é de direito de todas as
escolas terem uma biblioteca escolar, com funcionários aptos para esse espaço que
possa mediar a leitura e a formação de um aluno leitor crítico.
Todavia, mesmo sendo de direito esse espaço ser estabelecido nas escolas,
nem todas as instituições conseguem abrir e manter esse espaço; quando o mesmo
funciona, muitas vezes é usado como um depósito de livros didáticos devido a falta de
livros literários; e mesmo quando já há estrutura não há um profissional adequado para
a função que compreenda seu papel de mediador e organizador do espaço.
O que justifica muitas dessas situações é a falta de incentivo financeiro do
poder público e a falta de compreensão da importância do espaço da biblioteca escolar
como uma segunda sala de aula, que deve receber incentivos de programas
educacionais, ser administrada de maneira que o espaço por si só seja um mediador
proporcionando a aprendizagem ao aluno, assim como, um lugar de trabalho mútuo
entre bibliotecário e professor usando o local para o ensino.
No que se refere a sua importância e papel dentro da escola Batista (2015,
p.50) salienta com muita precisão,

Sendo assim, não é um espaço independente, visto que ensino escolar


e biblioteca escolar se complementam, sendo esta um instrumento
essencial no processo de ensinar e aprender. Este espaço presta um
serviço para a escola, para a comunidade escolar, podendo despertar
o pensamento crítico e criativo.

Com essa compreensão, esse artigo traz a discussão de que a gestão escolar
e o docente precisam ter esse entendimento para que juntos possam trabalhar da
melhor forma possível o espaço da biblioteca escolar.
E é necessário enfatizar a importância dessas duas figuras pois, a gestão
escolar em sua administração tem a possibilidade de buscar melhorias para o espaço e
a docência em trabalhar de maneira eficiente para o aprendizado do aluno e sua
formação enquanto leitor.

Da gestão escolar
Para discutir a importância do papel do gestor no que se refere à biblioteca
escolar, é necessário vislumbrar o conceito desse sujeito dentro da instituição. Sendo
assim, primeiramente é relevante enfatizar que essa gestão de que está sendo tratada
deve ser uma gestão escolar democrática, que mesmo obtendo cargos e funções
específicas, responde pelo todo que abrange a escola, ou seja, gestão, docência, aluno,
funcionário, pais e comunidade.

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É necessário que essa discrição seja feita, pois a ação do gestor só pode ser
feita partindo das discussões e consenso da maioria de maneira democrática, dessa
forma, é através das reuniões de conselho e de planejamento que o gestor tem as
decisões em mãos para aplicar em prática, dessa forma, nada que seja apenas de seu
entendimento e interesse.
Sendo assim, de acordo com Libâneo, Oliveira e Toschi,

A direção e a coordenação correspondem a tarefas agrupadas sob o


termo gestão. A gestão refere-se a todas as atividades de coordenação
e acompanhamento do trabalho das pessoas, envolvendo o
cumprimento das atribuições de cada membro da equipe, a realização
do trabalho em equipe, a manutenção do clima de trabalho, a avaliação
de desempenhos. (2012, p. 475).

E ainda sobre direção, complementam,

O diretor coordena, organiza e gerencia todas as atividades da escola,


auxiliando pelos demais elementos do corpo técnico-administrativo e
do corpo de especialistas. Atende às leis, regulamentos e
determinações dos órgãos superiores do sistema de ensino e às
decisões no âmbito da escola assumidas pela equipe escolar e pela
comunidade. (2012, p. 465).

Partindo da exposição dessas funções e a compreensão de que o gestor


executa aquilo que é decidido pela gestão democrática, pode-se compreender que
dentre suas ações está a responsabilidade dos espaços escolares, incluindo a biblioteca
escolar.
Dessa forma, é necessário que o mesmo tenha seus olhos atentos no que se
refere a esse ambiente, seja o que as leis, diretrizes e políticas públicas tem a favorecer
o espaço, seja elaborando e discutindo um planejamento escolar que contemple o
mesmo.

Da docência
No que se refere a docência, importante compreender que o professor tem um
papel importante na vida do aluno, pois é ele que proporcionará o ensino, através de
um planejamento escolar que abarque conteúdos e conhecimentos necessários para a
formação da criança.
É preciso compreender que processo de ensino e aprendizagem perpassa a
relação de professor e aluno, em que ambos aprendem com suas diversidades e
singularidades.
Todavia, são as ações do professor que garantirá essa troca de conhecimento,
pautado em uma formação inicial, continuada e uma construção/desconstrução de
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saberes que proporcionará que o aluno tenha uma formação como cidadão e sujeito
íntegro.
Sendo assim, tamanha responsabilidade deve ser constantemente aprimorada,
nesse caso, o professor deve sempre estar atento as inovações educacionais e não se
prender apenas aos livros didáticos e as paredes da sala de aula, mas ampliar sua
prática de ensino e buscar em outros métodos a possibilidade de garantir uma
aprendizagem de qualidade a seu aluno.
Importante enfatizar que o foco de nossa discussão não está pautado apenas
na figura da biblioteca escolar e das práticas desenvolvidas por gestores e docentes,
mas sim, toda essa articulação tem o objetivo de garantir a formação do aluno enquanto
leitor ativo e crítico, ou seja, não está se falando da alfabetização e letramento, mas da
postura de um leitor que tem interesse e gosto pela leitura, desenvolvendo em si seu
perfil de leitor, contribuindo para sua concepção de mundo e criticidade perante a
sociedade.
É necessário que se compreenda que dentro da escola não basta o aluno saber
ler e escrever, mas ele deve ter a consciência de que a leitura é um hábito que o pode
libertá-lo do senso comum, da ignorância e da alienação. E por mais que pareça
inocente, aquela criança que iniciou seu contato com o livro em sua primeiríssima
infância, se continuar sendo incentivada a essa prática, tem o potencial de se tornar o
adulto com senso crítico e opinião própria.
A leitura aqui não pode ser vista apenas como liberdade política e social, mas
também pode ser vislumbrada como o frescor que a criatividade, a imaginação e a
ludicidade nos acometem de infância até fase adulta. E aqui dá-se ênfase ao texto
literário que pode proporcionar tal prazer e que não é trabalhado de maneira eficaz
dentro das escolas, pois, antes de se pensar na leitura que liberta é focado na leitura
desmembrada muita vezes encontradas em livros didáticos ou descontextualizadas em
planejamentos de leitura que só servem para cumprir uma tabela educacional.
É essa leitura que traz o senso político, social, mas também de prazer que o
professor deve inserir em suas práticas, não precisando focar apenas em disciplinas
como Língua Portuguesa, mas sim, em todos os conteúdos que a leitura lhe cabe, como
nos indica Silva e Tenório a seguir,

Muitos professores se tornam reféns do livro didático, pois imaginam


encontrar todo o saber necessário para sua prática pedagógica e
utilizam o texto literário como apenas um pretexto para realizar
atividades didáticas, isso não ocorre apenas nas disciplinas de Língua
Portuguesa, mas em todas as disciplinas do currículo. Essa prática é

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muito comum na realidade escolar, resultando em alunos que não
gostam ou, pior, não sabem ler um texto. (2004, p. 200).

Dessa forma, a compreensão de que a biblioteca escolar também é uma sala


de aula que pode ser usada para o incentivo à leitura e o ensino interdisciplinar favorece
o docente a melhorar sua prática e proporcionar uma aprendizagem de qualidade ao
aluno.

A importância da ação dos dois agentes na biblioteca escolar


Depois de exposto sucintamente as funções do gestor e do docente na escola
é preciso ligá-los à atuação dentro da biblioteca escolar e demonstrar como suas
participações eminentes podem garantir progressos na aprendizagem do aluno.
Começando pela atuação do gestor, visto que o mesmo abrange direção,
coordenação e orientação pedagógica, é importante compreender que suas ações
perpassam os muros escolares, pois, é através de suas participações que o sistema
educacional pode adentrar na escola e no caso em questão no trabalho com a biblioteca.
Sendo assim, compreendendo a importância desse espaço, pode-se buscar
politicas públicas e programas de incentivo a leitura que garantam: a existência da
biblioteca escolar; funcionário apto para a função administrativa e pedagógica;
manutenção na estrutura e nos materiais do local; e o incremento atualizado de um
acervo diversificado e de qualidade para a leitura.
Elencar essas necessidades não é fácil de se imaginar utópica principalmente
perante a realidade política e social que passamos nos dias atuais, porém, é preciso
que justamente essa linha de frente tenha em mente que a biblioteca escolar também
faz parte da pauta de luta e reinvindicações referente a educação.
Além da busca de apoio, incentivo e investimento, nas secretarias, diretorias e
demais sistemas educacionais que a gestão pode atuar, outra forma de trazer inovações
para dentro da escola que favoreça a biblioteca são as formações continuadas com o
profissional responsável pelo espaço e com os professores.
Com isso, a conscientização da importância do espaço, as estratégias
levantadas quanto a estrutura do local e a maneira prática que essa biblioteca pode ser
utilizada pode ser levantada, estudada, analisada e discutida em reuniões propostas
pela gestão.
Esse interesse deve ser coletivo, sendo assim, docentes e até mesmo a
comunidade envolta da escola pode estar envolvida em momentos de estudo e
estratégias para que esse espaço seja utilizado a proveito e aprendizagem de todos,
principalmente o público alvo que são os alunos.
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E tal compreensão pode ser justificada pelas palavras de Bortolin e Gomes,
quando dispõem,

Portanto, vale reforçar que na comunidade escolar as iniciativas das


autoridades (direção, supervisão, professores e bibliotecários) são
fundamentais para a formação de leitores e sem uma biblioteca
compatível com a comunidade escolar, dificilmente um trabalho de
leitura terá êxito. (BORTOLIN; GOMES, 2011, p. 160).

Dessa forma, é interessante vislumbrar a gestão escolar como uma ponte que
liga o externo da escola para o interno da mesma, conectando as políticas públicas, os
programas de incentivo a leitura e as formações continuadas referente à leitura para
dentro da instituição, mas especificamente para a estrutura e mediação da biblioteca. É
assim que a gestão trabalha como mediador e atuante desse espaço, proporcionando
investimentos e estudos para a estrutura e prática no ambiente.
A seguir tem-se um diagrama que melhor vislumbra essa importância e
mediação da gestão escolar:

Figura 1: Relação da gestão com a biblioteca escolar.

Fonte: Draw Io, elaborada pela própria autora, 2020.

Partindo do diagrama, o que pode-se afirmar é que a gestão escolar é a ponte,


ligação e/ou conexão com o que está fora para dentro da escola. Evidente que essa
participação vai além do exposto no diagrama, porém, já é a base que o gestor deve se
atentar e buscar aplicar para que a biblioteca escolar tenha seu reconhecimento e
eficiência educacional.

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Haja vista a participação do gestor, julga-se necessário enfatizar a atuação do
docente em sala de aula. Iniciando pelo fato de que primeiramente o mesmo não pode
vislumbrar a sala como apenas seu único espaço metodológico, sendo assim, todo
âmbito escolar pode ser desfrutado para uso de ensino e aprendizagem, e nessa
discussão o que deve ser compreendido como uma segunda sala de aula a ser usada
é a biblioteca escolar.
Com isso o professor deve em seu planejamento ter como didática o incentivo
da leitura em todas as disciplinas e conteúdos que lhe couber e com isso,
automaticamente o espaço da biblioteca pode ser usado para tal momento.
Dessa forma, pode-se haver uma relação de colaboração entre o bibliotecário
e o professor, para que juntos possam criar projetos, estratégias e incentivo a leitura
que ligue a sala de aula com a biblioteca escolar.
Sendo assim, além da leitura literária, outros materiais e diversas leituras
podem ser usufruídas dentro do espaço, como por exemplo, jornais e revistas, que
proporcionam aprendizado com disciplinas como história, geografia e ciências, assim
como, desenvolve o senso crítico do aluno leitor.
Pode-se compreender que o professor é um mediador de conhecimento e com
a leitura e o incentivo ao espaço da biblioteca escolar não pode ser diferente. Partindo
desse entendimento “o professor cumpre com um papel essencial na formação de
leitores e pode constituir-se como mediador, a partir de sua qualificação e competência”
(ROLLA, 2004, p. 116), sendo assim, justifica-se a necessidade do docente ter essa
concepção formada e estar sempre buscando formações continuadas que o auxilie com
essa prática.
Tal atuação também pode ser vislumbrada por um diagrama:

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Figura 2: Relação do docente com a biblioteca escolar.

Fonte: Draw Io, elaborada pela própria autora, 2020.

Com a visualização do diagrama, pode-se compreender que enquanto o gestor


atua de fora para dentro da escola, o docente age dentro do âmbito escolar, porém, com
a amplitude de fazê-lo em vários espaços e aqui se enquadra o uso da biblioteca escolar.
E da mesma forma que foi explicitado na atuação do gestor, essa base
referente ao docente não precisa ficar limitada, visto isso, o professor deve compreender
que a biblioteca escolar é seu espaço de ação e toda prática que ele puder realizar na
mesma será sempre bem vinda para o seu ensino e aprendizado do aluno.

A atuação na prática
Como foi dito na introdução desse artigo, o mesmo tem base teórica no projeto
intitulado “Estrutura física e ações de mediação de leitura em uma biblioteca de uma
escola municipal de Presidente Prudente” elaborado por essa autora. E nele pode ser
discutido a teoria, mas principalmente vincula-lo à prática, em que houve uma
observação de um mês na dinâmica da biblioteca escolar e a mediação que ocorria
partindo da funcionária da biblioteca, do docente e do gestor.
Começando pela atuação do professor, infelizmente não pôde ser feito um
trabalho mais profundo, pois, não houve da parte da docência o interesse de dialogar

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através de entrevistas, assim como, foi observado que não há a participação do
professor na biblioteca escolar.
Sendo assim, a maneira como o aluno interagia com o espaço era através de
uma prática semanal de buscar um livro e lê-lo em casa ou na sala de aula (caso,
houvesse essa abertura). Dessa forma, os alunos interagiam com o ambiente por pouco
tempo e aqui nota-se a falta da mediação do professor que poderia utilizar pelo menos
esse momento da “busca do livro” para trabalhar uma mediação no local, utilizando o
acervo e demais materiais disponíveis.
No que se refere a gestão, no projeto teve-se a possibilidade de entrevistar o
diretor da escola e a experiência de diálogo com o mesmo condiz com o que foi exposto
nesse artigo quanto as possibilidades de ações do gestor.
Isso porque, o mesmo alegou:
 A compreensão da importância da biblioteca escolar;
 O déficit e a luta constante no que se refere as políticas públicas e
programas de incentivo a leitura, pois, principalmente na época estava
saindo do programa governamental um programa que enviava livros
literários para as escolas, passando a enviar majoritariamente livros
didáticos;
 A organização financeira de arrecadar verbas municipais para a compra
de livros;
 O levantamento de livros que mais são emprestados pelos alunos e os
gêneros que mais precisam ser repostos;
 A busca de formações continuadas para os docentes e funcionária da
biblioteca escolar, para aprimoramento da prática no espaço;
 O incentivo e a cobrança para que os professores usufruem desse
espaço para metodologias diversificadas;
 A formação própria de se especializar e aprimorar o conhecimento
sobre o espaço e o campo da leitura;
 E a própria ação dentro da biblioteca enquanto mediador, isso porque,
a vice-diretora da escola tem formações relacionada a leitura, e pratica
contações de história semanalmente dentro da biblioteca, o que a torna
uma verdadeira mediadora com sua ação.
A partir desse relato, pode-se provar que é possível a gestão escolar lutar e
zelar pelo espaço da biblioteca escolar, atuando tanto fora e dentro do âmbito escolar,

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sempre proporcionando uma mediação direta ou indireta na formação do aluno leitor
ativo e crítico.

Considerações Finais
Partindo de tudo que foi exposto e discutido nesse artigo, entende-se que a
problematização exposta em sua introdução pôde ser contemplada, visto que a mesma
se designa a questão: “Qual a importância da mediação do gestor e do docente na
biblioteca escolar?” e a todo tempo foi tomado o cuidado de especificar a importância
da biblioteca escolar na aprendizagem e formação de leitor crítico do aluno e as funções
cruciais que o gestor e o docente tem sobre a escola.
Foi vislumbrado as funções base do gestor e do docente e não como uma
cobrança, mas sim, um avivamento as demandas e importâncias de tais cargos. Um -
mesmo no coletivo - tem em mãos a execução administrativa e pedagógica da escola e
o outro executa dentro dos ambientes um ensino capaz de proporcionar uma
aprendizagem de qualidade. E ao ser levantado tais ações é nítido que seus papeis são
necessários e relevantes dentro do nosso objeto de estudo: a biblioteca escolar.
Na teoria o gestor pode buscar fora do âmbito escolar possibilidades de
aprimoramento na estrutura da biblioteca, assim como, desconstrução e construção de
conhecimentos aos agentes da escola através das formações. E na prática foi
vislumbrado que quando o gestor busca formações continuadas e compreende a
importância do espaço da biblioteca escolar é capaz de discutir as problematizações
das políticas públicas, os programas de incentivo à leitura, a necessidade de
complementar o acervo do local, o incentivo e cobrança de se usar o ambiente, entre
outras mediações.
Da mesma forma, na teoria foi vislumbrado as possibilidades mediáticas que o
docente pode atuar dentro da biblioteca escolar enquanto sala de aula, possível de
utilizar plano de aula, didáticas e metodologias. E na prática, como essa compreensão
ainda não adentrou na concepção docente (no caso exposto) e quais as possibilidades
de aprendizagem se perderam com a falta dessa mediação.
O intuito desse artigo foi o de reconhecer a importância da biblioteca escolar
conectada a mediação do gestor e do docente e mesmo em poucas páginas já é
possível compreender que para aprendizagem do aluno e a formação de leitor ativo do
mesmo é preciso que todos os agentes responsáveis pelo ensino estejam aptos e
dispostos a agir e mediar de maneira eficaz e completa e aqui o uso da biblioteca escolar
é capaz de proporcionar esse fenômeno.

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Referências
BATISTA, Josany Leme da Silva. Organização e funcionamento do programa sala de
leitura nas escolas da diretoria de ensino de Presidente Prudente. 2015. Dissertação
(Pós-Graduação em Educação) - Faculdade de Ciência e Tecnologia, Unesp, Campus
de Presidente Prudente, São Paulo, 2015.

BORTOLIN, Sueli; GOMES, Luciano Ferreira. Biblioteca Escolar e a Mediação da


Leitura. In: BORTOLIN, Sueli; GOMES, Luciano Ferreira. Escolas de Ensino
Fundamental Particulares de Londrina e as Atividades de Promoção à Leitura. 2011.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Biblioteconomia) – Universidade
Estadual de Londrina, Londrina-PR, 2011. p. 157-170.

LIBÂNEO, José C; OLIVEIRA, João F; TOSCHI, Mirza S. O Sistema de Organização e


de gestão da escola: teoria e prática. In: Educação escolar: políticas, estrutura e
organização. 10 ed. ver. ampl. São Paulo: Cortez, 2012. P. 435-477.

ROLLA, Angela da Rocha. O jogo do texto: quem são os leitores? In: CECCANTINI,
João Luís Cardoso Tápias (org). Leitura e literatura infanto-juvenil: Memória de
Gramado. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2004. p. 114-133.

SILVA, Rovilson José da; TENÓRIO, Gisleine de Oliveira Tenório. Biblioteca escolar e
mediação de leitura: Uma proposta de fichas pedagógicas de registro dos livros.
Informação & Informação, Londrina, v. 3, n. 1/2, p.197-212, Jan./Dez. 2014.

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A BIBLIOTECA ESCOLAR COMO UM RECURSO ESTRATÉGICO
NA ESCOLA: AÇÕES A RESPEITO DAS PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA EM UM CURSO DE FÉRIAS

Danielle da Silva Pinheiro Wellichan, UNESP/Marília, CAPES-PROEX.


Carla Cristine Tescaro Santos Lino, UNESP/Marília.

Eixo Temático: 9 – Os espaços de leitura literária

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A idealização de uma biblioteca escolar acontece com base no Projeto Político
Pedagógico de cada escola. Ele é o direcionador de como será e como acontecerá todo
trabalho a ser desenvolvido, assim como direcionará a própria composição da biblioteca,
com seus materiais, acervo, serviços e produtos.
Conforme Castro (2003, p.64) descreveu, diante das mudanças e
transformações pelas quais a sociedade tem passado, a escola e a biblioteca podem
ser consideradas “[...] como partes interdependentes e indissociáveis”, em um (re)
significado que compreenda a escola como um espaço de mediação entre a troca de
conhecimentos, a (re) construção do saber, e a biblioteca como um centro de informação
essencial para o desenvolvimento de toda comunidade escolar.
Esse “[...] crescimento ilimitado da informação, possibilitada pelas modernas
tecnologias[...]”, exige que as bibliotecas repensem sua existência e atuação (BALÇA;
FONSECA, 2012, p.65). E nesse contexto, ao longo dos anos, esse diálogo está sendo
construído em meio as inúmeras dificuldades que envolvem as partes: precariedade
estrutural, falta de investimento e reconhecimento, falta de formação e qualificação
profissional, compondo um cenário marcado por esforço e dedicação de quem acredita
e defende a interação entre as partes (WELLICHAN; LINO, 2018).
Ao considerar o histórico das bibliotecas escolares e o quanto a sua presença é
importante para o ambiente de ensino e aprendizagem (WELLICHAN; FALEIRO, 2017),
seja na formação e no incentivo à leitura e aos leitores, na otimização do espaço, na
disponibilização de materiais, ou no desenvolvimento de coleções e na realização de
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ações culturais, o bibliotecário deve atuar desde o planejamento das atividades,
estabelecer parcerias e firmar-se como parte integrante do espaço educacional. Cabe a
direção permitir que isso aconteça e ao bibliotecário aproveitar a oportunidade para
mostrar suas habilidades e potencialidades.
É notório que esse pertencimento envolve fatores que nem sempre dependem
do profissional, mas quando em exercício, é preciso que o bibliotecário esteja atento as
possibilidades e oportunidades que sua presença em uma biblioteca escolar pode
representar.
Por meio da interação entre biblioteca e escola, o conhecimento da realidade, a
busca pela compreensão, empatia, aceitação e superação, além da desconstrução de
estereótipos, são fatores a serem explorados e abordados ao longo da vida escolar.
Desde a Educação Infantil, inúmeros assuntos podem ser abordados utilizando-
se da ludicidade e da criatividade não só do professor, mas de toda equipe escolar. A
inclusão de pessoas com deficiência é um desses assuntos necessários de discussão
precocemente, pois quanto antes curiosidades e informações forem compartilhadas
com veracidade, maiores serão as chances de uma convivência harmoniosa acontecer.

A deficiência é um assunto que trata da vulnerabilidade do sujeito e por


ser complexo não pode ser ignorado em qualquer que seja a área,
setor ou campo da sociedade. É preciso que as práticas inclusivas se
tornem realidade e que as crianças e adolescente encontrem espaços
para aprendizado e convivência, no sentido de serem (e não só
fazerem) parte da sociedade. Envolver a comunidade escolar na
responsabilidade de incluir é dever de toda escola e biblioteca que
preze a equidade, perante o desafio de corresponder às necessidades
de responder a uma população que apresenta comportamentos de
risco ou vistos como alunos com necessidades educativas especiais,
que requerem estratégias individualizada (WELLICHAN; LINO, 2018,
p. 11).

Consciente da oportunidade e conhecendo o potencial da biblioteca escolar, o


bibliotecário, como agente formador e mediador, conta com uma aliada importante: a
literatura infantil, que pode contribuir para uma nova mentalidade e uma nova visão em
relação a muitos conceitos (COELHO, 2005), como o ocorrido neste relato.
Desde a instituição da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência
(Estatuto da Pessoa com Deficiência) em 2015, a questão da deficiência foi estendida
também para a literatura infantil, como observou Maria e Valente (2013, p.10)

Observa-se que atualmente há uma significativa preocupação por


parte dos autores de literatura infantil, em trazer em suas obras
discussões acerca das diferenças e da inclusão. Essa nova forma de
escrever possibilita o envolvimento do leitor com a obra literária, pois
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ao escrever sobre situações do cotidiano, estas ensinam, formam e
levam à reflexão. As histórias infantis estão valorizando a diversidade
e o direito à diferença de uma forma que estas passam a contribuir para
o desenvolvimento social, a criticidade e a melhoria das atitudes das
crianças enquanto participante ativo da sociedade.

Vista como um recurso importante para o sistema educativo, a biblioteca


escolar deve acompanhar os objetivos e necessidades da escola (DURBAN ROCA,
2012, p.10), e assim, participar do processo ensino-aprendizagem e “[...] estar
intrínsecas ao global da escola e da comunidade, universalizando o conhecimento”.

Informação e diversão
No mês de julho de 2019, em um colégio particular localizado em uma cidade
no interior do Estado de São Paulo, um curso de férias foi oferecido para alunos da
Educação Infantil e do Ensino Fundamental I, a respeito das Pessoas com Deficiências
(PcD), intitulado “Conhecer, entender e respeitar a Deficiência”. Sob esta temática,
atividades foram elaboradas e trabalhadas ao longo do mês de férias para os alunos
que frequentavam o colégio no período.
Com o objetivo de debater a inclusão da PcD no ambiente escolar e na
sociedade, aproveitou-se um período de atividades especiais durante as férias
escolares para desenvolver uma programação especial oferecida em formato de
minicurso, proposta da diretoria do colégio em função de novas matriculas de alunos
com deficiência no semestre. Com inscrição prévia e certificação ao término, totalizou-
se 10 encontros (duas vezes por semana) que aconteceram na biblioteca e na sala de
vídeo.
A biblioteca escolar local abraçou a temática e ofereceu uma série de
atividades, desde a Hora do Conto, exposições (de materiais existentes na biblioteca e
no acervo local sobre o assunto, e de trabalhos desenvolvidos ao longo do mês no
curso), exibição de filmes sobre a temática com roda de conversa com especialistas
(psicóloga e coordenadora de ciclo do colégio) e com PcDs (familiares de alunos e da
comunidade escolar), oficina de desenho, blocos de montar e a dinâmica de vivência
com deficiência.
As atividades foram programadas em parceria da biblioteca com a coordenação
do ciclo e envolveu toda comunidade escolar, pois os profissionais locais também foram
convidados a participar e acompanhar as realizações neste período.
Para a Hora do Conto, foram selecionados livros de literatura que tratavam da
questão da deficiência, como: “A centopéia perneta” (Bruno Coelho Mendonça),

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“Contos de Fadas Inclusivos” (Cristiano Refosco), “Rodrigo enxerga tudo” (Markiano
Charan Filho), “O livro negro das cores” (Menena Cotlin e Rosana Faria), “Estrelas
tortas” (Walcyr carrasco), “Flor de maio” (Maria Cristina Furtado), “Quem disse que não
vou conseguir? ” (Marcos Ribeiro), “Daniel no mundo do silêncio” (Walcyr Carrasco), “As
cores no mundo de Lucia” (Jorge Fernando dos Santos), “Tudo bem ser diferente” (Todd
Parr), “O silêncio de Júlia” (Pierre Coran), “Pássaro Amarelo” (Thaisa Burani e Olga de
Dios), Coleção Inclusão Social (Editora Todo Livro), Coleção Nossas Crianças (Mennon
Edições Cientificas), “A felicidade das Borboletas” (Patricia Secco), “Um mundinho para
todos” (Ingrid Biesemeyer) e “E não é que eu ouvi?” (Lak Lobato e Eduardo Suarez).
Os livros impressos selecionados, estavam disponíveis no acervo local e foram
distribuídos em mesas e estantes de exposição pela biblioteca, para leitura (figura 1) e
para empréstimo domiciliar, para ler com a família.
Foram disponibilizados dois computadores utilizados para pesquisa na
biblioteca para os livros/histórias que foram localizados em formato eletrônico 239 (“A
felicidade das borboletas”, “O grande dia” e “João preste atenção” de Patrícia Engel
Secco e “Juliana pra lá de bacana”, “A voz da estrela” de Claudia Cotes, “Casa Amarela”
e “Um menino genial”, de Keyla Ferrari). Nesses micros, um software com um programa
de conversão de texto em áudio também foi disponibilizado para que os alunos
vivenciassem como seria a experiência da leitura com a tecnologia. Materiais em
audiolivros e em Braille também ficaram em exposição.

239
Livros disponíveis em: http://www.educardpaschoal.org.br/projeto.php?id=4&page=21
Acesso em 02 mar.2020.
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Figura 1 – Leitura individual ou em grupo
Fonte: Acervo pessoal das autoras

Histórias em quadrinhos também fizeram parte do curso (figura 2). A Turma da


Mônica, por exemplo, tem contribuído para a inclusão com quadrinhos temáticos e
explicativos sobre a convivência saudável e possível de personagens já conhecidos com
novas crianças como Luca, um garoto que utiliza cadeira de rodas; Dorinha, que
apresenta deficiência visual; Humberto, um garoto que não se expressa por palavras;
André, o menino com Autismo; Tati, uma menina com Síndrome de Down; e Hamyr, o
primeiro amigo com deficiência física da turma (WELLICHAN; LINO, 2019)

Figura 2 – Personagens conhecidos e desconhecidos envolvidos em muita diversão


Fonte: Acervo pessoal das autoras

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Contadas por professores da Educação Infantil convidados e pela bibliotecária,
as obras foram disponibilizadas para as crianças que elegeram a obra a ser contada no
cantinho da leitura (espaço decorado, com amplo tapete, puffs e almofadas). Após a
contação, houve uma conversa sobre a história, com a opinião das crianças, seguida do
oferecimento de atividades com bloco de montar, oficina de desenhos e a dinâmica de
vivência, conforme descrito a seguir.

Figura 3 – Oficina de desenhos e recontar histórias: relatos de preconceito e de respeito


Fonte: Acervo pessoal das autoras

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As figuras acimas (figura 3) mostram momentos interessantes encontrados
durante a expressão dos alunos a respeito das pessoas com deficiência, que eles
conhecem. Os dois desenhos e o texto selecionados e aqui apresentados, demonstram
momentos vivenciados entre amigos.
No primeiro, quando conversam sobre o aluno com deficiência (aluno novo) em
sala de aula. Enquanto um aluno demonstra um julgamento a respeito do aluno
desconhecido, o outro o defende afirmando que “Ele é legal!”. No texto da aluna também
está presente o relato sobre o primeiro contato com o desconhecido e depois a amizade
que surgiu.
No segundo desenho, uma preocupação com o direito de brincar para crianças
com deficiência, e neste caso, o aluno contou sobre sua experiência ao conhecer um
parque com brinquedos adaptados e a alegria de compartilhar esses momentos com
seu amigo com deficiência. O aluno explicou que fez um parque adaptado, com
escorregador e as escadas que possuem degraus mais largos para que o amigo consiga
subir sozinho, “do jeitinho que ele gosta”.
Na atividade com blocos de montar (figura 4), um aluno apresentou a criação
de personagens utilizando cadeira de rodas e com um cão guia, recontando uma
historinha de convivência e amizade entre os super-heróis com deficiência.

Figura 4 – Atividade com bloco de montar – expressão e criatividade


Fonte: Acervo pessoal das autoras

A dinâmica da vivência, aconteceu com a parceria de uma instituição


especializada em deficiência na cidade, que gentilmente emprestou no mês de julho,
bengalas, muletas, faixas para os olhos, protetor para ouvidos, cadeiras de rodas,

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próteses e órteses, aparelhos auditivos, sendo alguns para uso na vivência e outros
para exposição.
Os alunos selecionavam o recurso que quisessem “experimentar” e realizavam
um pequeno passeio pelo colégio utilizando-o. Houve muito interesse sobre o uso; a
descoberta das dificuldades apontadas pelos alunos não só em utilizar o recurso, mas
em imaginar como uma pessoa com deficiência o utilizava; a curiosidade em conhecer,
em tocar e em descobrir a sua funcionalidade. Em algumas situações, o aluno voltava
a utilizá-lo em outro dia de curso, dizendo, por exemplo, que conversou com o avô que
utilizava a cadeira de rodas e passou dicas de como utilizar melhor, ou em contar sobre
sua família e o recurso.
Percebeu-se muita curiosidade a respeito das próteses e órteses e seus meios
de articulação e utilização. Foram relatados casos de crianças que afirmavam já terem
visto pessoas utilizando o recurso, mas não receberam informações a respeito, por
exemplo. “Meu pai falou que não podemos ficar olhando muito, porque a pessoa pode
ficar brava”, relatou um aluno. Contrário a essa situação de desconhecimento, outros
alunos trouxeram informações a respeito, pois alguém da família utiliza a prótese ou a
órtese e, portanto, as curiosidades foram trabalhadas.
Ficou nítido o quanto as situações experimentadas representam oportunidades
de abordagem para determinados assuntos na infância e o quanto as informações são
necessárias para o aprendizado e para sua formação enquanto sujeito e cidadão. O
aluno que possui informações apresenta mais empatia, compreensão e respeito pela
pessoa com deficiência, enquanto a que apresentou a falta de informação, se mostrou
insegura diante da situação ou das atividades propostas.
Na exibição de filmes (um filme e seis curtas-metragens), atividade intitulada
como a “Hora do cineminha”, houve a mediação da bibliotecária, a presença da
psicóloga e a coordenadora de ciclo (Fundamental I), além de convidados especiais:
pessoas com deficiência, que fazem parte das famílias dos alunos (convites foram
enviados antes do início do curso por cada aluno inscrito), de colaboradores do colégio
e convidados da instituição que emprestou os recursos de Tecnologia Assistiva para o
colégio durante o mês.
A atividade aconteceu na sala de vídeo, que é ampla, arejada e abriga além de
cadeiras, um espaço preenchido com tapete e almofada. Houve a distribuição de
pipocas e após a exibição (quadro 1), os convidados se aproximaram do espaço e em
círculo comentavam sobre o filme, ouviam a opinião das crianças e as histórias que
conheciam e se relacionavam ao que assistiram. Nesse momento, as pessoas com

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deficiência também se colocavam, relatavam histórias, similaridades vivenciadas com o
filme e respondiam as perguntas.

FILME ENREDO

Extraordinário Conta a história de um menino que nasceu com uma deformação


(Drama, 1h51min. facial que passou por 27 cirurgias plásticas e aos 10 anos vai pela
2017 de Stephen primeira vez à escola regular.
Chbosky)
Produção de alunos da Universidade Nacional de Artes de Taiwan.
Mostra as aventuras de uma garota cega ao se perder de seu cão e
Longe de vista
encontra um caminho especial, marcado por sons e aromas.
Disponível em: https://youtu.be/4qCbiCxBd2M
Produzido pela Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do
Porque Heloisa? Estado de São Paulo e escrito a partir da história real de uma menina
que tem paralisia cerebral. Disponível em:
https://youtu.be/f5vNAwmgZU4
Curta premiado com mais de 50 prêmios, retrata uma história de
empatia, amizade e superação que brota de uma relação inicialmente
marcada pela rejeição. Baseado e adaptado de uma tirinha de história
O presente em quadrinhos do artista brasileiro Fabio Coala e animada por Jacob
Frey. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=bWINJVmc6Xg&feature=youtu.be
Produzido pelo Studio House Boat Animation e dirigido por Jason
Marino e Craig Kitzmann, conta a história de uma menina surda que
Tamara
sonha ser bailarina. Disponível em: https://youtu.be/B4frsp-rR6c
Produzido por alunos do ensino público de dentro de uma ação
educativa da UNICAMP, a história acontece em um ponto de ônibus
Esse é o ponto
e apresenta diferenças e peculiaridades vivenciadas por diversas
pessoas. Disponível em: https://youtu.be/TVEk6jvLVUk

O curta mostra a experiência vivenciada por um menino em um


parque de diversões frustrado por não poder se divertir e ser tratado
Brincadeirantes
de forma “especial”. Disponível em: https://youtu.be/rgWsiOFvM6s
Premiada animação espanhola que conta a história de uma amizade
entre uma menina que se tornou amiga de um menino que tem
Cuerdas
paralisia cerebral. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=OrGEjSn1v8Y

Quadro 1 – Programação da “Hora do cineminha”


Fonte: Elaborado pelas autoras

Percebeu-se que num primeiro momento as crianças não se colocavam, mas


conforme os relatos e as conversas surgiam, todos tinham algum fato ou história para
contar. Dúvidas a respeito de como as pessoas com deficiência faziam determinadas
coisas (tomar banho, comer, andar pela cidade, ir ao banheiro, como retirar ou colocar

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uma prótese ou como fica a perna sem ela, como é a mãe sem a órtese, etc). E dessas
conversas, surgiram outros assuntos que também trouxeram oportunidades para novos
cursos futuros, como: cuidados no trânsito, importância das vacinas, amizades,
tecnologia na saúde, entre outros.
As exposições dos trabalhos produzidos foram organizadas nos murais dos
corredores dos colégios até final do mês de retorno das aulas.
O fechamento das atividades aconteceu com a entrega do certificado de
conclusão do curso para os alunos que participaram e uma confraternização com lanche
e música para todos que participaram.
Toda comunidade escolar envolvida na proposta preencheu um questionário
de satisfação a respeito das atividades realizadas e de maneira geral, apontaram que
os objetivos foram atingidos e até superadas as expectativas iniciais. A direção também
confirmou uma nova edição agora estendida para o Ensino Fundamental II para as
próximas férias.

Considerações Finais
Como um elemento essencial ao contexto educativo, a biblioteca torna-se um
recurso de grande valor no sentido de ampliar as possibilidades de acesso e
disponibilização da informação.
Seja no apoio ao concretizar os objetivos da escola e do currículo escolar, no
estímulo ao hábito da leitura, na formação de leitores, nas oportunidades de elaboração
ou disponibilização da informação, além da facilitação de acesso aos recursos e
possibilidades informacionais e ações culturais para a comunidade, a biblioteca escolar
amplia as possibilidades de aprendizado, o que a torna uma extensão da sala de aula.
Isto é, se houver parceria entre os profissionais da comunidade escolar.
Essa parceria entre escola-biblioteca, professor-bibliotecário precisa ser
estabelecida, pois cada profissional possui em seu saber ferramentas e recursos
importantes para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem.
Comumente, fala-se em formação de professores e de suas dificuldades e
necessidades diante de alunos com deficiência, mas existem outros profissionais que
também não possuem uma formação específica ou aprofundada no assunto e, também
em sua atuação, encontram pessoas com deficiência em seus ambientes de trabalho.
E aí o que fazer?
Pode parecer um desafio no primeiro momento, mas todo profissional que se
comprometa com sua profissão e respeite o outro, deve considerar o seu usuário, como

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possuidor de direitos e deveres, como todo cidadão, e estar e usufruir do ambiente
informacional também é direito dele.
Utilizar a desculpa de que não houve formação, qualificação, ou treinamento
para tal, são argumentos que não cabem mais aos profissionais em uma sociedade que
deseja a inclusão e que busca o respeito à diversidade. É preciso mostrar-se mais
participativo às questões da sociedade, buscar, conhecer e realizar.
As bibliotecas escolares precisam de mais atenção, além de políticas mais
efetivas e condições que lhes permitam fazer parte do espaço educativo. O bibliotecário
é um profissional que possui muitas habilidades e potencialidades que podem contribuir
para boas práticas no ambiente. Além disso, leis que teoricamente garantem o
profissional, mas não se concretizam na prática não fazem sentido.
No que tange a questão da deficiência, percebeu-se que quanto mais cedo as
informações corretas forem compartilhadas e trabalhadas com as crianças, mais
chances de uma sociedade mais justa podemos construir. Crianças quando bem
informadas se tornam agentes multiplicadores, e podem auxiliar na conscientização de
outros sujeitos, desconstruindo pré-conceitos e harmonizando as relações entre as
pessoas com e sem deficiência.
Conforme alguns relatos de convidados participantes, as crianças, em geral,
auxiliam no processo de aceitação, superação e reabilitação, pois se tornam motivações
pessoais para os envolvidos. É preciso aproveitar a curiosidade a favor do
desenvolvimento infantil, social e educativo. A curiosidade é também uma grande aliada
da informação, pois pode impulsionar a busca e a geração de novos conhecimentos,
por isso é preciso aproveitá-la em todos os momentos de nossas vidas.

Referências
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necessária. Rev. Lusófona de Educação, Lisboa, n.20, p. 65-80, 2012. Disponível em:
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v.15, n. 1, p.63-72, jan./abr., 2003. Disponível em:
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WELLICHAN, D.S.P.; LINO, C.C.T.S. A inclusão que está nos quadrinhos: como os
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WELLICHAN, D.S.P.; LINO, C.C.T.S.. A biblioteca escolar no contexto da inclusão:


como oferecer e vivenciar experiências inclusivas nesse ambiente. Biblionline, João
Pessoa, v. 14, n. 1, p. 3-16, 2018. Disponível em:
https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/biblio/article/view/40603/20678 Acesso em: 21
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LEITURA LITERÁRIA: TUDO É PERMITIDO PARA DISSEMINA-
LA?

Marcilene Muniz Monteiro Conceição, SEMED/ROO


Gilvane Reinke, SMEE/PVA
Sandra Regina Franciscatto Bertoldo, PPGEdu/UFMT/CUR

Eixo Temático: Grupo Temático 9: Os espaços de leitura literária

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O tema abordado neste trabalho se faz presente em várias discussões, pois
muito se tem falado e feito para disseminar a leitura e consequentemente provocar nas
crianças e adolescentes o gosto pela leitura.
Nesse sentido, o proposito desse texto é propor um diálogo a respeito de um
projeto de leitura desenvolvido nas escolas municipais de Rondonópolis-MT no ano de
2019, o qual visou congregar crianças da Educação Infantil e do Ensino Fundamental
anos iniciais e finais numa proposta de estímulo à leitura literária a partir de títulos
selecionados e enviados às instituições.
Para tratar dessa temática, pretende-se focar na propositura desse projeto,
bem como no kit de livros disponibilizados aos alunos do 3º ano do Ensino Fundamental,
discutindo, ainda, quanto às atividades desenvolvidas pela professora dessa sala ao
considerar os encaminhamentos e direcionamentos do projeto elaborado pela
Secretaria Municipal de Educação de Rondonópolis (SEMED). A turma selecionada
para a análise desse trabalho é composta por alunos em diferentes níveis de
alfabetização, tendo desde crianças alfabetizadas e leitoras, a estudantes em processo
de reconhecimento de letras e palavras.
Ademais, a metodologia abordada nesse construto é de natureza qualitativa,
uma vez que a pesquisa qualitativa

[...] trabalha com o universo de significados, motivos,


aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um
espaço mais profundo das relações, dos processos e dos
fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização
de variáveis. (MINAYO, 2002, p. 21-22)
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E como aporte teórico utilizado para embasar a discussão será utilizado
ZILBERMAN e SILVA (1988, 2008) que versam sobre a leitura na perspectiva
interdisciplinar na pedagogia; SILVA (2000) e MARTINS (2006) para conceituar leitura;
COSSON (2016, 2017) para abordar a questão do letramento literário e SOUZA (2004)
que sugere alguns caminhos para a formação do leitor; e JAUSS e ISER (1979) para
abordar a apreciação estética da obra analisada nesse relato de experiência.
Assim, o trabalho está organizado de modo que o leitor possa conhecer o
projeto desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação em 2019, intitulado “Leitura
para além da sala de aula” que abrangeu da Educação Infantil, Ensino Fundamental e
EJA. E a atividade desenvolvida com uma obra do kit enviado aos alunos do 3º ano do
Ensino Fundamental. E ao final dessa discussão pretende-se encontrar a resposta para
a pergunta que dá título a este trabalho.

Conhecendo o projeto “Leitura para além da sala de aula” e o kit destinado


aos alunos do 3º ano do Ensino Fundamental
Com a finalidade de desenvolver nos alunos da rede municipal de educação o
contato com os livros literários, a prefeitura juntamente com a Secretaria Municipal de
Educação (SEMED) cria o projeto “Leitura para além da sala de aula” que tem como
objetivo “[...] fomentar práticas de leituras diárias em sala de aula, bem como envolver
a família de cada criança, utilizando-se de um acervo literário a ser disponibilizado para
cada aluno da Rede Municipal de Ensino, conforme etapas e modalidades acima citadas
(RONDONÓPOLIS, 2019, p. 02). Uma vez que esse projeto foi desenvolvido desde a
Educação Infantil até na modalidade EJA.
E tomou como objetivos específicos

 Despertar o gosto pela leitura por meio da implementação


de atividades diárias que envolvam o eixo leitura em suas
diversas possibilidades e estratégias;
 Incentivar a leitura como forma de entretenimento e fonte de
acesso ao universo cultural literário, utilizando-se do acervo
disponibilizado a cada educando da R.M.E.;
 Favorecer o trabalho e o desenvolvimento da oralidade por
meio da leitura e socialização das obras lidas;
 Oportunizar o desenvolvimento da criatividade e liberdade
de expressão por meio de rodas de conversas;
 Possibilitar o acesso e a apropriação de novos
conhecimentos pelos educandos, de modo a garantir-lhes
uma formação crítica e emancipadora.

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 Oportunizar, aos educandos e às famílias, o contato com
obras literárias e práticas de leitura diversificadas.
 Promover um evento literário para socialização de
práticas/vivências/representações a partir do estudo das
obras literárias. (RONDONÓPOLIS, 2019, p. 02-03)

No documento orientador enviado às escolas consta que tal projeto é “[...] uma
estratégia que leva às unidades escolares a pensarem em como podem desenvolver
atividades pedagógicas envolvendo a Literatura Infantil que estão chegando para os
educandos” (RONDONÓPOLIS, 2019, p. 6), em virtude da implantação da Base
Nacional Comum (BNCC) no ano de 2019.
Nesse sentido, as instituições de ensino deveriam envolver toda a comunidade
escolar nesse projeto, uma vez que cada um tem um papel importante nesse projeto,
por exemplo, aos pais dos alunos caberiam a responsabilidade de ajudar os filhos a
cuidarem dos livros, pois cada aluno receberia uma sacola contendo 8 livros literários
de uma mesma editora, mas de vários autores dela. Em sua rotina pedagógica o
professor teria a função de criar “[...] estratégias de leitura deleite para envolver os
alunos, utilizando como recursos contação de histórias com teatro de fantoches,
dedoches, avental de histórias, bem como rodas de conversa, debates e exploração
oral” (RONDONÓPOLIS, 2019, p. 6).
No documento enviado às escolas consta que

A partir do recebimento dos livros literários, cada unidade


escolar deverá implementar seu projeto de leitura, incluindo as
sugestões que constam do Projeto Leitura para Além da Sala de
Aula. Tal implementação poderá contar com o registro de
atividades específicas de cada unidade. (RONDONPOLIS,
2019, p. 07)

Contudo, quando esses kits chegaram às escolas, também veio um Guia


elaborado pela Equipe Pedagógica (não especificada) com sugestões de como os
professores poderiam trabalhar as obras literárias em sala de aula. Muitas escolas já
desenvolvem projetos voltadas para despertar nos alunos o gosto pela leitura, e esse
foi mais um projeto com tal objetivo.
Foram distribuídos para as unidades de ensino kit de livros destinado a cada
fase/ano de escolaridade da Educação Infantil até a modalidade EJA. Cada kit era
composto de oito livros literários de uma mesma editora sendo ela a Editora Cuore e os
autores escolhidos foram aqueles que fazem parte dela. Nesse sentido, os livros que
fazem parte do kit destinado aos alunos do 3º ano foram: “Nós adoramos as segundas-
feiras” de Tânia Veiga Judar que contribui para a campanha Segunda sem carne e
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incentiva a alimentação vegetariana; “Um guarda roupa encantando” de Tânia Veiga
Judar que aborda os sentimentos das crianças, sendo que cada um deles vem escrito
em destaque na história e seguida de um explicação a parte na página sobre cada um
deles; “Lisa e borboleta azul” de Maria Antonia Pietrucci Gonzalez, aborda as regiões
brasileiras; “Meu bolo quebrou” de Maria Antonia Pietrucci Gonzalez que fala sobre uma
menina estudiosa que fará 9 anos e sua mãe prepara um delicioso bolo, mas devido a
correria de sua cadela o bolo quebra e para substitui-lo seu pai compra uma enorme
taça de bolas de sorvete; “A vizinha e a andorinha” de Alexandre Staut que fala de um
menino que se incomoda com os sons de passarinhos que vem da cada de uma vizinha,
mas no final ele descobre que quem faz os sons é sua vizinha; “Tamanduá dodói” de
Maria Augusta de Medeiros a qual é uma história em cordel que aborda a extinção desse
animal; e por fim, é composto por dois “Livros das histórias” de Hermínio Sargentim os
quais tem como objetivo desenvolver a oralidade e a leitura.
Foi criado pela SEMED a “Semana Municipal de Incentivo à Leitura” no mês de
setembro, para que toda a rede de ensino socializasse os trabalhos desenvolvidos com
o kit de livros, sendo que cada escola escolheria dois trabalhos para apresentar. Foi um
dia muito atrativo, onde foram expostos belos trabalhos com práticas diferenciadas.

Leitura e apreciação estética


A questão da motivação para despertar nos alunos o gosto pela leitura tem sido
objeto de estudo de vários autores, uma vez que é na escola que as crianças têm
contato com os livros literários e os professores são os grandes incentivadores e
mediadores nesse processo.
Esse fato foi comprovado na pesquisa realizado pelo Instituto Pró-livro,
intitulada Retratos da leitura no Brasil (2016) que está em sua quarta edição, que os
professores depois da família e especialmente à mãe dos alunos, são os grandes
influenciadores e responsáveis por despertar nos alunos o gosto pela leitura. Mesmo
que em alguns casos o professor não seja ele mesmo um leitor assíduo, contudo sabe
da importância de se cultivar nos alunos esse hábito. Já que,

[...] o papel do educador na intermediação do objeto lido com o


leitor é cada vez mais repensado; se, da postura professoral
lendo para e/ou pelo educando, ele passar a ler com, certamente
ocorrerá o intercâmbio das leituras, favorecendo a ambos,
trazendo novos elementos para um e outro. (MARTINS, 2006, p.
33 – grifos da autora)

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Ainda mais que o papel do mediador de leitura é importante para ajudar o leitor
a compreender não só o texto, mas compreender o mundo e participar criticamente dele.
Nesse sentido, “a mediação da leitura caracteriza-se pelas relações dialógicas entre os
sujeitos, o texto mediado e o ato mediador. É um diálogo constituído de múltiplas vozes
e narrativas, de natureza dinâmica, flexível e crítica” (NETTO, LIMA, 2018, p. 07).
Essas vozes que os autores relatam no fragmento anterior se materializa no
texto, quando este de acordo com Wolfgang Iser (1979)

[...] é composto por um mundo que ainda há de ser identificado


e que é esboçado de modo a iniciar o leitor a imaginá-lo e, por
fim, a interpretá-lo. Essa dupla operação de imaginar e
interpretar faz com que o leitor se emprenhe na tarefa de
visualizar as muitas formas possíveis do mundo identificável, de
modo que, inevitavelmente, o mundo repetido no texto começa
a sofrer modificações. Pois não importa que novas formas o
leitor traz à vida: todas elas transgridem – e, daí, modificam – o
mundo referencial contido no texto. (ISER, 1979, p. 107)

O autor supracitado nos diz que o leitor vai imaginar e interpretar o texto que
retrata em muitas vezes a realidade, possibilitando assim uma

[...] experiência estética literária como a soma da


percepção/apreensão inicial de uma criação literária e das
muitas reações (emocionais, intelectuais ou outras) que esta
suscita, em função das características específicas postas em
jogo pelo autor na sua produção. (CUNHA, 2014, p. 01 – grifos
da autora).

Além disso, ler segundo Rildo Cosson (2017. p. 36) “[...] consiste em produzir
sentidos por meio de um diálogo, um diálogo que travamos com o passado enquanto
experiência do outro, experiência que compartilhamos e pela qual nos inserimos em
determinada comunidade de leitores”. Portanto, a leitura desenvolverá no indivíduo a
produção de sentidos, já que é uma experiência particular de cada ser.
Portando, para formar um leitor deve haver comunhão entre aquele que lê e o
texto, pois essa comunhão deve estar “[...] baseada no prazer, na identificação, no
interesse e na liberdade de interpretação” (AZEVEDO, 2004, p. 39), que só a literatura
pode proporcionar.

Relato de uma atividade desenvolvida a partir da obra “Lisa e a borboleta


azul”

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Este item tem como objetivo relatar uma sequência didática desenvolvida com
os alunos do 3º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública municipal
localizada na periferia do município de Rondonópolis-MT. Tal atividade tomou como
aporte a obra “Lisa e a borboleta azul” de Maria Antonia Pietrucci Gonzalez (2012),
publicado e comercializado pela Editora Cuore.
Com base na concepção de sequência didática proposto por Antoni Zabala
(1998), foi elaborada uma sequência de atividades com a temática Regiões brasileiras,
uma vez que o livro literário escolhido pela professora dessa turma trazia em seu enredo
o passeio das personagens da história pelas regiões brasileiras. Assim, essa sequência
foi aplicada do dia 04 a 18 de setembro de 2019, abrangendo as áreas do conhecimento:
Linguagens, matemática e Ciências humanas e sociais.
A execução da sequência de atividades iniciou-se no dia 04 de setembro e a
atividade desenvolvida com os alunos foi a utilização do mapa do Brasil regional e teve
como objetivo que os alunos conhecessem como foi feita essa divisão e quais estados
formam cada uma delas. Assim, a professora levou para a sala o mapa do Brasil
regional, explicou como e por que ocorreu essa divisão. Depois, entregou para os alunos
uma atividade em que eles teriam que pintar cada região e criar uma legenda para o
mapa. Logo em seguida, a professora entregou aos alunos um pequeno texto sobre a
região centro-oeste contendo os seus aspectos físicos, humanos e econômicos, foi
realizada a leitura individual e coletiva, depois a professora explicou e os alunos
responderam as questões propostas sobre o texto entregue.
Nesse mesmo dia, na disciplina de Língua Portuguesa a professora entregou
para cada aluno o livro “Lisa e a borboleta azul” que faz parte do kit de livros destinados
ao 3º ano, para que eles pudessem fazer a leitura e identificar a característica de cada
região brasileira. Após fazer a leitura os alunos teriam que preencher uma ficha com a
característica de cada região brasileira apresentada pela borboleta para a menina.
No dia 05 de setembro na disciplina de Geografia os alunos conheceram a
região Sul, seus aspectos físicos, humanos e econômicos. E na disciplina de
Matemática foi desenvolvido com eles a leitura e interpretação do gráfico de colunas
contendo a taxa de desemprego entre as regiões brasileiras, após a leitura eles teriam
algumas questões para responder, como: 1. Qual é o título do gráfico? 2. Qual foi a
região que teve o menor índice de desemprego? 3. Qual é o índice de desemprego do
país? 4. Qual foi a região que teve o maior índice de desemprego? 5. Qual é o índice
de desemprego da região em que fica o estado em que você mora? 6. Se somarmos o
índice de desemprego da região Nordeste com o da região Sudeste, qual índice de

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desemprego teremos? 7. Qual é a diferença no índice de desemprego entre a região
Norte e a região Sul? 8. Se somarmos o índice de desemprego de todas as regiões do
país, qual resultado teremos? 9. Qual foi o órgão responsável por colher e divulgar esses
dados?
No dia 06 de setembro na disciplina de Arte eles teriam que colorir, recortar e
montar o mapa das regiões brasileiras, foi possível observar nessa atividade que mesmo
dispondo do mapa na sala e outro mapa político do Brasil colorido anteriormente para
realizar a montagem da atividade, alguns alunos não conseguiram colar corretamente
as regiões, como pode ser visto na imagem a seguir:

Figura 1: Atividade de Arte – Quebra cabeça.


Fonte: A própria autora, 2019.

E na disciplina de Geografia eles conheceram a região Sudeste e seus


aspectos físicos, humanos e econômicos. E no dia 10 de setembro eles conheceram a
região Norte e seus aspectos físicos, humanos e econômicos. E no dia 12 de setembro
eles conheceram a região Nordeste, na disciplina de Português foi trabalhado com os
alunos o conteúdo Variação linguística trazida pelo livro didático, durante a realização
dessa atividade foi possível perceber que ela aguçou a curiosidade dos alunos e muitos
trouxeram para a aula os conhecimentos sobre as palavras que eram utilizados em seus
estados de origem e que em Rondonópolis são dados outros nomes, como a variação
linguística dada à palavra mandioca, que eles gostaram tanto que ficavam apelidando
os colegas de macaxeira.
No dia 13 de setembro, os alunos aprofundaram seus conhecimentos sobre as
regiões brasileiras, pois eles teriam que montar um livro sobre as regiões, retirando dos
textos estudados as seguintes informações: 1. É formada pelos estados de; 2. Clima; e

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3. Vegetação. Foi possível observar nessa atividade que muitos alunos não coloram os
textos trabalhados anteriormente e outros conseguiram encontrar nos textos as
informações solicitadas na atividade. E na disciplina de Arte eles teriam que colar
materiais diferentes em cada região para diferenciá-las. Dessa forma, foi utilizado papel
microondulado, EVA, lantejoulas, barbante e miçangas nas regiões, formando assim
alto relevo, nessa atividade também foi explicado aos alunos que esse tipo de recurso
é utilizada para os alunos que são deficientes visuais, já que eles veem e sentem o
mundo que os cercam com as mãos.
E para finalizar a atividade sobre as regiões brasileiras, foi proposto uma nova
leitura sobre a história “Lisa e a borboleta azul”, foi solicitado aos alunos que prestassem
atenção na característica de cada região, já que na história não vem explicito qual região
está sendo apresentado pela borboleta. A leitura foi realizada pela professora que fez a
leitura com pausas protocoladas, as quais tinham o objetivo de questionar os alunos
qual era a região que estava sendo apresentada pela borboleta. Durante a leitura foi
possível observar que as regiões que são destaque na mídia televisiva foram mais fáceis
de serem reconhecidas como a região sudeste com o Cristo Redentor e a praia de
Copacabana e a região Centro-oeste com o Pantanal, contudo, outras foram mais
difíceis de reconhecer como a região Nordeste com a vegetação Caatinga, palavra que
gerou risos entre os alunos e os Pampas.
Após a leitura a professora entregou para cada aluno da sala a imagem que
caracteriza cada uma das regiões brasileiras. Em seguida ela disse que ia ler novamente
a história e no momento que a borboleta falasse a característica de uma região o aluno
teria que levantar e colar a imagem na região correspondente. Ao final da atividade foi
montado o cartaz que seria exposto no dia da culminância do projeto desenvolvido pela
SEMED. O cartaz com essa atividade e a atividade de arte sobre o mapa em alto relevo
pode ser visualizada a seguir.

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Figura 2: Cartaz exposto na culminância do projeto.
Fonte: A própria autora, 2019.

No dia da culminância dois alunos foram expor para os visitantes o que foi
trabalhado em sala de aula, além do cartaz (Figura 2) também foi confeccionado um
banner com informações sobre a atividade desenvolvida.

Considerações Finais
Diante do que foi exposto neste trabalho ao apresentar o projeto desenvolvido
pela SEMED e atividade realizada pela professora, pode perceber que a literatura foi
utilizada como pretexto para se ensinar um conteúdo didático.
Também é necessário destacar que, ao ler os documentos enviados pela
SEMED, observamos questões que dificultam a realização efetiva desse projeto, pois o
interesse maior recai no contato dos alunos com os livros literários, sem ter clareza de
quais foram os elementos considerados para a seleção das obras adotadas. Os títulos
que compunham o kit para cada ano de escolaridade apresentavam um objetivo
didático, limitando o trabalho docente referente à apreciação estética da obra. Ou seja,
“[...] Livros Infantis e Juvenis podem, em alguns casos, transformar-se em objeto [...] de
consumo: adotados pelas escolas, comprados pelo governo. Esse tipo de livro nem
sempre é escolhido por quem vai lê-lo [...]” (LAJOLO, 2016, p. 121).

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Pode ser observado na prática da professora ao realizar a sequência didática
que ela também não se preocupou com a apreciação estética da obra, uma vez que a
obra não dava margem para a realização de tal atividade, pois tinha um objetivo didático
já traçado.
Assim, há que se fazer um estudo aprofundado sobre as obras literárias a
serem compradas para que essas propiciem aos alunos uma reflexão crítica sobre o
que estão lendo e não só aprendam conteúdos escolares. Já que é no contexto escolar
que há uma maior circulação de textos de vários gêneros e talvez seja o único contato
que algumas crianças terão com tais gêneros, por isso a

[...] a leitura que a escola deve patrocinar precisam ter como


objetivo capacitar os alunos para que, fora da escola, lidem
competentemente com a imprevisibilidade das situações de
leitura (no sentido amplo e no sentido da expressão) exigidas
pela vida social. (LAJOLO, 2009, p. 105)

Destarte, o papel da escola é proporcionar aos alunos o contato com “[...] livros
de caráter estético diferentes dos pedagógicos e utilitaristas, usados na maioria das
escolas. O livro estético (ficção ou poesia) proporciona ao pequeno leitor a oportunidade
de vivenciar a história e as emoções” (SANTOS; SOUZA, 2004, p. 81), tornando-se um
ser mais crítico do mundo que o cerca.

Referências
AZEVEDO, Ricardo. Formação de leitores e razões para a literatura. In. SOUZA, Renata
Junqueira de. Caminhos para a formação do leitor. 1. ed. São Paulo: DCL, 2004.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. 1. ed. 1ª reimpressão. São


Paulo: Contexto, 2017.

CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Experiência estética literária. In: FRADE, Isabel
Cristina Alves da Silva; VAL, Maria da Graça Costa; BREGUNCI, Maria das Graças de
Castro (org.). Glossário Ceale: termos de alfabetização, leitura e escrita para
educadores. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2014. Disponível em:
http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/experiencia-estetica-
literaria. Acesso em: 24 jan. 2020.

GONZALEZ, Maria Antonia Pietrucci. Lisa e a borboleta azul. 1. ed. São Paulo: Cuore,
2012.

ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In. JAUSS, Hans Robert. ISER, Wolfgang. et. al. A
literatura e o leitor: textos de estética da recepção. 2. ed. Revista e ampliada. Tradução
de Luiz Costa Lima. São Paulo: Paz e Terra, 1979.

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JAUSS, Hans Robert. ISER, Wolfgang. et. al. A literatura e o leitor: textos de estética
da recepção. 2. ed. Revista e ampliada. Tradução de Luiz Costa Lima. São Paulo: Paz
e Terra, 1979.

LAJOLO, Marisa. Números e letras no mundo dos livros. FAILLA, Zoara. In. Retratos
da leitura no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2016.

LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. Será que não é mesmo? In: ZILBERMAN,
Regina; RÕSING, Tania (Org.). Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São
Paulo: Global, 2009. p. 99-112.

MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção
Primeiros Passos; 138)

MINAYO, Maria Cecilia de Souza. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21ª
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

NETTO, Raymundo. LIMA, Lidia Eugenia Cavalcante. Curso Formação de Mediadores


de Leitura. Fortaleza, CE: Fundação Demócrito Rocha, 2018.

RONDONÓPOLIS; Secretaria Municipal de Educação. Leitura para além da sala de


aula. Rondonópolis – MT, 2019 (mimeo, 8 f.).

SANTOS, Caroline Cassiana Silva dos. SOUZA, Renata Junqueira de. A leitura da
literatura infantil na escola. In. SOUZA, Renata Junqueira de. Caminhos para a
formação do leitor. 1. ed. São Paulo: DCL, 2004.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova
pedagogia da leitura. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro da. Literatura e pedagogia: ponto &
contraponto. 2. ed. São Paulo: Global, Campinas, SP: ALB - Associação de Leitura do
Brasil, 2008.
ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Tradução Ernani F. da F. Rosa.
Porto Alegre: Artmed, 1998.

ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro. (orgs.) Leitura perspectivas


interdisciplinares. São Paulo: Editora Ática, 1988.

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TRADIÇÃO E INOVAÇÃO NO ENSINO DE POESIA
INFANTOJUVENIL

Antonio Cezar Nascimento de Brito, Faculdade Projeção


Daniella Costa Tavares, Faculdade Projeção
Patrícia Dias Medeiros, Faculdade Projeção

Eixo Temático: Os espaços da Leitura Literária

Considerações iniciais

A uva e o vinho
Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela.
Antes de morrer, revelou a ela o segredo:
A uva – sussurrou – é feita de vinho.
Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei: Se a uva é feita de
vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.
(GALEANO, 2012, p. 16)

O miniconto acima, do escritor uruguaio Eduardo Galeano, nos retira do lugar-


comum, da rotina, da vida cotidiana. Como é possível a uva ser feita de vinho? Dizem
que um segredo, depois de contado, deixa de ser secreto. Ao contar ao narrador o que
o homem dos vinhedos havia lhe confidenciado, Marcela Pérez-Silva possibilita que o
leitor também possa fazer parte da rede de conspiradores que passam a questionar a
vida cotidiana por meio da arte e, como o narrador, também perceber que é por meio
das palavras que o ser humano se constitui.
Compreender a vida fora do lugar comum e resignificá-la por meio das palavras
é o ato laborativo do poeta. Apesar disso, e talvez justamente devido a essa capacidade,
o poema, fruto do trabalho do artista, não é valorizado na sociedade e, por
consequência, na escola. Há vários anos que se discute a respeito do ensino de poesia,
então por que, até hoje, a poesia ocupa pouco espaço nas aulas de leitura, no ensino
de literatura e nas produções textuais em sala de aula?

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Partindo desse questionamento, procuramos refletir sobre o ensino de poesia
no ensino fundamental, tendo em vista que a criança é um ser poético por natureza,
como nos lembra Glória Kirinus, nosso principal referencial teórico e poético neste texto.
Como metodologia, utilizamos os aportes da pesquisa qualitativa, desenvolvida
por meio da pesquisa bibliográfica e de campo. Na primeira, além de Kirinus, embasam
nossa reflexão autores como Antonio Candido, Carlos Drummond de Andrade, Ezequiel
Teodoro da Silva, Regina Zilberman e Alexandre Pilati. A pesquisa de campo foi
realizada por meio oficinas de poesia ministradas a professores e alunos do curso de
Pedagogia da Faculdade Projeção, em Brasília – DF e a alunos de segundo ao quinto
ano do Ensino Fundamental de uma escola Pública de Sobradinho – DF, durante as
quais desenvolvemos diversas atividades de leitura de poesia e apresentamos recursos
para apresentar e ensinar a poesia de maneira criativa, como a noz poética, as pílulas
poéticas e a nossa mais recente produção, os biscoitos poéticos. Esses e outros
recursos podem ser utilizados como estratégias para tornar a leitura e o ensino de
poesia algo criativo e prazeroso, tanto para o professor quanto para o aluno/leitor.

Ensino de poesia e o desencanto do ser poético

O ensino de literatura tem avançado muito nas últimas décadas, de modo que
muitas produções têm abordado o tema e apresentado discussões teóricas e resultados
de pesquisas, de projetos de extensões e de atividades desenvolvidas por professores
de literatura e de língua portuguesa. Apesar disso, não é novidade que, no que se refere
aos gêneros literários, a leitura de narrativa se sobressai à de poesia. Isso é
consequência de vários fatores, dentre os quais a falta de sensibilidade estética para a
poesia por parte dos docentes, a pouca experiência no manejo do suporte textual do
poema e a falsa percepção de que poesia é algo difícil.
Todos os alunos, em algum momento de sua vida escolar, mas especialmente
no ensino médio, deparam-se com poemas que, sob a orientação do professor, devem
dissecar, buscando identificar rimas, sílabas poéticas, fazer escansão e metrificação,
dentre outras atividades que privilegiam a estrutura formal do poema, mas raramente
levam em consideração o sentido do texto e, principalmente, a relação entre o texto e o
leitor. Essas atividades acabam fazendo com que o estudante afaste-se cada vez mais
da leitura literária, especialmente do texto poético.
Carlos Drummond de Andrade, em artigo publicado no Jornal do Brasil, em
1974, já questionava a respeito do uso que a escola faz do poema, geralmente

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orientando as crianças a decorarem e declamarem versos, sem reparar no seu ser
poético. Para Drummond, a escola corrói o instinto poético infantil, de modo que a
natureza poética aos poucos acaba cedendo lugar à praticidade da vida adulta, sem a
experiência, o senso crítico e a consciência estética de quem lê e absorve poesia:
Mas, se o adulto, na maioria dos casos, perde essa comunhão com a
poesia, não estará na escola, mais do que em qualquer outra instituição
social, o elemento corrosivo do instinto poético da infância, que vai
fenecendo, à proporção que o estudo sistemático se desenvolve, até
desaparecer no homem feito e preparado supostamente para a vida?
(DRUMMOND, 1974)

De acordo com o poeta, as atividades com poesia desenvolvidas em sala de


aula desmotivam as crianças para a leitura e a vivência da poesia. Esse tipo de trabalho
com o poema, realizado de modo pragmático, é decorrente de uma dicotomia presente
no desenvolvimento da história da humanidade, mas muito visível na filosofia cartesiano
positivista que orientou a sociedade para uma fragmentação do conhecimento, da
realidade e, por consequência, do próprio ser humano.
Glória Kirinus (1998), no livro Criança e Poesia na Pedagogia Freinet,
demonstra como esse dualismo orienta o pensamento e a visão da sociedade para um
racionalismo que leva em consideração apenas aquilo que tem uma função prática
voltada para o progresso, o desenvolvimento e a acumulação. Assim, o ócio, o devaneio,
a fantasia e o imaginário são considerados inúteis e precisam ser descartados, como
fez Platão ao descrever a pólis ideal, expulsando dela o poeta, tendo em vista que o
artista não poderia acrescentar nada útil àquela cidade idealizada.
Fazendo uma analogia, por meio da fábula A formiga e a cigarra, entre o poeta
e a cigarra, Kirinus reflete sobre o papel do artista na sociedade que, por meio de seu
trabalho (sim, arte é trabalho!) subverte a ordem estabelecida, o que faz com que seja
visto de maneira pejorativa, como vadio, preguiçoso, inútil, boêmio, visão essa que se
aplica também à criança, sujeito poético em potencial.
O canto perturbador da cigarra inquietou e inquieta gerações com pensamento
clássico. A poesia desestabiliza o status quo e rompe com os paradigmas dicotômicos,
tendo em vista que é o espaço onde os opostos podem estar conjugados, onde o isto
pode ser também aquilo. A relação entre o real e o imaginário é algo natural à criança e
faz parte de seu inatismo poético:
O trajeto entre o real e o imaginário — uma das mais graves dicotomias
assumidas e até defendidas pelo mundo adulto — é espontâneo e
naturalmente articulado na criança. Ela, no domínio confluente dos
seus dois hemisférios cerebrais, conjuga inusitadamente significados e
significantes, não apenas no campo linguístico, mas também no campo

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semiológico do seu universo. E aqui vale a pena destacar a intensidade
com que ela se re-liga à sua ambiência. A criança, mais do que um ser
ecológico, ecologiza-se devido à força da sua relação com o seu
ambiente. (KIRINUS, 2004, pp. 75-76)

A capacidade de articulação de contrários, de re-ligar concepções de mundo


por meio da fantasia e do imaginário, não é uma qualidade exclusiva da criança, mas,
no caso dos adultos, esse ato é facilitado por meio da poesia, pois, partindo da realidade
da vida cotidiana, permite que o ser humano compreenda melhor a si e ao mundo, como
nos lembra Kirinus, no livro Synthomas de poesia na infância:
A poesia irrompe do cotidiano, e mesmo que precise de uma
ordenação estética, ela não se sujeita aos rigores do tempo e do
espaço. A poesia canta uma canção eterna nutrida em cantos e preces
antigas que até sabiam alegrar ou curar. (KIRINUS, 2011, p. 26)

A poesia fala sobre a vida. Por meio da construção estética elaborada pelo
escritor, o leitor participa de uma atividade de reordenamento interior, que o auxiliam a
compreender a realidade. Antonio Candido, no ensaio “O direito à literatura”, defende
que a literatura possui um potencial humanizador, especialmente devido à construção
estética. Para ele, a literatura possui três aspectos que estão ligados a uma função na
formação do ser humano:
A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que
explica inclusive o papel contraditório, mas humanizador (talvez
humanizador porque contraditório). Analisando-a, podemos distinguir
pelo menos três faces:
(1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e
significado;
(2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão
do mundo dos indivíduos e dos grupos;
(3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação
difusa e inconsciente. (CANDIDO, 2004, p. 176.)

Conforme destacado por Candido, costuma-se atribuir à literatura o terceiro


aspecto na formação das pessoas, ou seja, acredita-se que ela atua na constituição do
sujeito porque transmite uma forma de conhecimento. No entanto, ressalta o crítico que
ela atua no inconsciente do leitor justamente porque, tratando-se de um objeto
esteticamente construído, em que o escritor escolhe inicialmente a matéria com que vai
trabalhar e organiza-a como os tijolos em uma construção, também o leitor, ao ler o
texto literário, tem a possibilidade de refletir sobre si mesmo, para, em seguida, elaborar
a sua compreensão do mundo.

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Nesse sentido, deve-se questionar sobre o modo que a escola apresenta a
literatura e, em especial, a poesia, aos alunos, seja desde os anos iniciais do ensino
fundamental até os anos finais do ensino médio.
Alexandre Pilati, poeta e professor de literatura, ao refletir sobre o ensino de
poesia, nos diz que a poesia é uma atividade vital que remete à reelaboração do mundo
por meio da palavra, da fantasia e da ficção, mas que essa concepção de poesia não
faz parte do cotidiano escolar:
Entretanto, na escola, na sala de aula, todos sabemos que a história é
bem diferente. Vemos, na maioria das vezes, apenas uma miragem
desse potencial estético humanizador da linguagem poética. E esse
potencial vital se arruína quando se leva a poesia à sala de aula de um
modo meramente protocolar, recorrendo a instrumentalizações
técnicas, a nomenclaturas teóricas complicadas e a esquematizações
históricas vulgares. (PILATI, 2017, p. 17)

Esse tipo de ensino não colabora para alavancar o potenciar poético do


estudante, pelo contrário, colabora para que os sintomas de poesia, para utilizar uma
expressão adotada por Glória Kirinus, feneçam e, assim, não auxiliem no processo de
humanização do leitor literário.
É preciso, então, que a poesia seja apresentada aos alunos como algo vivo,
criativo, com materialidade para que possa desenvolver no leitor o anseio por ler poesia
e, assim, re-inventar a vida.

Tradição e inovação no ensino de poesia: A busca pelo reencantamento do


ser poético

O vocábulo tradição muitas vezes traz um sentido que soa desagradável, como
algo ultrapassado, que não tem lugar no momento que vivemos, em que as coisas
mudam muito rapidamente e se inovam a cada dia. Referindo-se à literatura, esse termo
ocupa espaços diversos e muitas vezes conflitantes. Podemos falar em tradição literária,
remetendo ao conceito de sistema literário desenvolvido por Antonio Candido, mas pode
também estar relacionado ao que se costuma chamar de cânone. No que se refere ao
ensino de literatura, e mais especificamente no trabalho com poesia em sala de aula, o
termo remete, na maioria das vezes, a um ensino tradicional aplicado, como vimos
acima, a questões pragmáticas da poesia, voltadas para os aspectos formais e
estruturantes do texto poético, o que tem resultado no afastamento dos leitores desse
gênero literário.

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Para tentar mudar esse panorama, é necessário que o professor de literatura
encontre maneiras de transformar o ensino de poesia, inovando-o e apresentando o
poema como algo vivo, cuja materialidade possa desenvolver no aluno, seja criança,
adolescente ou adulto, a natureza poética que ficou perdida nos descaminhos das aulas
de leitura e de literatura tradicionais.
Nesse sentido, fundamentados pelos textos teóricos de Glória Kirinus e nas
experiências da oficina Lavra Palavra, realizada pela poeta e relatadas no livro Criança
e Poesia na Pedagogia Freinet, desenvolvemos atividades referentes ao trabalho com
poesia em sala de aula no ensino fundamental e compartilhamos com professores e
alunos do curso de Pedagogia da Faculdade Projeção, em Brasília – DF, também por
meio de oficinas. Inicialmente, nas oficinas, procuramos fazer leitura de textos poéticos,
procurando demonstrar aos participantes como o poema pode ser um texto de leitura
agradável, caso seja apresentado de maneira criativa e inovadora aos leitores. Além
disso, procuramos fazer com que os participantes percebessem que as palavras, além
do aspecto formal, estruturante e significante, que compõe o vocábulo, relaciona-se aos
aspectos sensoriais, visuais, olfativos, táteis. Tentamos demonstrar como o poeta
escolhe as palavras de acordo com o sentido que quer provocar no leitor, e que isso
está presente em muitas de nossas ações e dos discursos que utilizamos no dia a dia.
Para isso, trabalhamos com livros e textos poéticos como O jogo das palavras mágicas,
de Elias José, “A casa das palavras”, de Eduardo Galeano, Casa das palavras, de Javier
Naranjo, Indez, de Bartolomeu Campos Queirós, Retratos, de Roseana Murray, A Casa
das palavras, de Marina Colasanti, Exercícios de ser criança, de Manoel de Barros, Na
casa do vovô, Joaninha come jujubas, de Jaqueline Conte, Chão de peixes, de Lúcia
Hiratsuka, além de livros de Glória Kirinus que, como dissemos, foi a inspiração para
este trabalho e para nossa percepção sobre ensino de poesia, como Formigarra
Cigamiga, Tartalira, O galo cantou por engano, O camelo e o camelô, Te conto que me
contaram, Quando chove a cântaros, Carta para El Ninho, Um antônimo em meu nome,
dentre outros. Todas as atividades de leitura procuravam privilegiar o aspecto lúdico do
texto, de modo que o sentido viesse acompanhado de um contato fluido com a palavra.
Apenas como ilustração desse tipo de atividade, podemos citar o trabalho realizado com
o poema “As cores e as palavras” do livro O jogo das palavras mágicas, de Elias José,
que transcrevemos abaixo:

Há palavras azuis:
Céu, encontro, amigo,
Beleza, sorriso, serenidade...

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Há palavras brancas:
Comunhão, véu, voo,
Pureza, solidão, paz...

Há palavras vermelhas:
Samba, sangue, guerra,
Futebol, lábios, paixão...

Há palavras cinzentas:
Pesadelo, indiferença, nunca,
Finados, inverno, poluição...

Há palavras amarelas:
Girassol, lugar, inteligência,
Poder, luz, sucesso...

Há palavras rosadas:
Vinho, vela, mocidade,
Namoro, noivado, jardim...

Há palavras verdes:
Mar, mata, esperança,
Novo, brotação, vida...

Há palavras multicoloridas:
Arco-íris, jardim, lápis,
Festa, feriado, floricultura...

(JOSÉ, Elias. O jogo das palavras mágicas. São Paulo: Paulinas,


1996.)

Durante a leitura compartilhada do texto, em cada estrofe pedíamos que os


participantes acrescentassem palavras, de acordo com a cor. Perguntávamos, por
exemplo, na primeira estrofe: “Que outras palavras vocês acham que são palavras
azuis?” Após a leitura do poema, dividimos a turma em grupos, de acordo com as cores
citadas no texto, e solicitamos que reescrevessem o poema, acrescentando, em cada
estrofe, as palavras que achavam que poderiam fazer parte daquele grupo. Esse
exercício atingiu o objetivo esperado, que era fazer com que os participantes
começassem a perceber que o sentido da palavra vai além daquele trazido pelo
dicionário e que pode adquirir um sentido poético.
Muitas outras atividades como essa foram desenvolvidas, mas, como o objetivo
deste artigo é apresentar estratégias inovadoras para trabalhar com poesia em sala de
aula, não será possível descrever todas. Dessa maneira, destacamos, então, recursos
que criamos apresentar aos alunos, de maneira criativa, a poesia.

Pílulas Poéticas.

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As pílulas poéticas são cápsulas de remédio com um poema dentro. As pílulas
poéticas não são criação nossa, tendo em vista que são encontradas em diversas lojas
que comercializam artigos literários, porém, inovamos na apresentação desse recurso,
pois imaginamos que apenas a pílula não alcançaria o objetivo que almejávamos.
Assim, criamos pílulas poéticas genéricas e, além delas, criamos também um rótulo e
uma bula, como se encontrado em um remédio comum. Assim, antes de distribuir o
medicamento poético aos alunos, fizemos a leitura da bula, descrevendo as indicações,
a posologia e as reações adversas. Após isso, as pílulas foram distribuídas entre a turma
e cada aluno/professor lia o seu poema. Durante as oficinas, muitos participantes
disseram que aquele poema era o que estavam necessitando naquele momento. Além
das pílulas poéticas, outro recurso muito interessante são os “Poemas esparadrápicos”,
criados pelo grupo Doutores da alegria, e nosso próximo medicamento genérico a ser
criado. São adesivos com poemas, em forma de esparadrapo, que podem ser
destacados e, após lidos, podem ser colados em qualquer lugar, inclusive em algum
membro machucado do leitor.

Noz poética.

Pílulas Poéticas Noz Poética

Noz Poética.
Para fazer a noz poética, com uma pequena serra abrimos cuidadosamente a
castanha, retiramos a noz, colamos por dentro uma fita, ligando as duas partes da
castanha e deixando um pedaço da fita para que pudéssemos dar um nó e fazer um
laço, de modo que se parecesse um presente, cujo conteúdo fosse uma surpresa para
o leitor. Em seguida, dentre os poemas que tivessem como temática a semente,
vinculada ao sentido de liberdade, escolhemos o poema Minerações, de Bartolomeu
Campos Queirós. Ao apresentar a noz poética para os alunos, inicialmente indagamos

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se aquilo era realmente uma noz, ou apenas uma noz, e o que poderia haver dentro
dela. Após várias respostas inusitadas, a noz poética foi entregue a um participante que,
sob o olhar curioso dos colegas, abriu a noz e leu o poema, seguido de uma conversa
sobre o texto. Assim como a noz poética, criamos também a Semente-poema.
Escolhemos uma semente de uma árvore do cerrado e dentro dela colocamos um texto
com um trecho do livro Flora, também de Bartolomeu Campos Queirós.

Biscoitos poéticos.
Os Biscoitos Poéticos são nossa criação mais recente. Sempre gostamos muito
de comer aqueles biscoitos chineses da sorte e sempre pensávamos que um poema no
lugar daquelas frases de autoajuda e de números de aposta seria muito mais
interessante. Após vários testes e pontas dos dedos queimados, conseguimos criar os
biscoitos poéticos. Inicialmente escolhemos os poemas que seriam colocados nos
biscoitos, digitamos em fonte pequena, imprimimos e recortamos. A receita do biscoito
é relativamente simples, porém de rápida execução, motivo pelo qual ficamos com as
pontas dos dedos queimados. Após assado o biscoito, o poema precisa ser rapidamente
inserido e moldado antes que a massa esfrie e fique dura. Ao ser apresentado aos
participantes das oficinas, o biscoito poético causou sensações indescritíveis,
relacionadas à surpresa que o biscoito, por si só, causa. Ao receber o biscoito, cada
aluno era convidado a abri-lo, saboreá-lo e ler o poema. A apresentação, o cheiro, o
sabor do biscoito, aliados à surpresa e à sensibilidade trazidas pelo poema, apagavam
todo resquício de dor que ainda restava nos dedos queimados.

Biscoito Poético

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Durante as atividades de leitura e de apresentação de poesia, os participantes
eram convidados a escrever poemas, de modo a ampliar o potencial poético.
Inicialmente tímidos, com o passar do tempo a timidez ia dando espaço para a
naturalidade das palavras, a sonoridade das rimas e a surpresa dos versos e estrofes,
como podemos perceber nos exemplos abaixo, em que dois participantes, embora de
níveis escolares diferentes, sendo uma estudante de Pedagogia e outro um aluno de
ensino fundamental, deixaram fruir a sensibilidade estética e poética em um exercício
de redescoberta da palavra e da poesia:
Cachos?
Minhocas enroladas,
Macarrão de parafuso
Dona de beleza,
A Ester e seus cabelos cacheados.
(Beatriz de Souza Ferreira – Estudante de Pedagogia)

Eu não sei rimar


Mas todo mundo
Vai gostar

A Tia Simone é bonita


Mas ela grita

Eu tenho uma pochete


Do Homem Aranha
Mas ela é estranha
(Guilherme – 3º ano - EF)

Considerações finais

Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos?


Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos
esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do
coração.
Sábios doutores da Ética e da Moral serão os pescadores das costas
colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a
linguagem que diz a verdade. (GALEANO, 2012, p. 119)

Ao iniciarmos este texto, utilizamos um miniconto de Eduardo Galeano.


Finalizamos também com o escritor uruguaio porque o texto acima, intitulado

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“Celebração de bodas da razão com o coração”, sintetiza as reflexões que procuramos
desenvolver neste artigo. No ensino tradicional, muito presente ainda em incontáveis
escolas no século XXI, o que interessa é a razão, o conhecimento, a verdade trazida
pelo desenvolvimento científico. A sensibilidade estética trazida pela poesia não é
desenvolvida e, consequentemente, a compreensão de mundo fica prejudicada. A
educação dissocia o saber do sabor, a alma do corpo, a razão do coração. Como
resultado, tem-se um sujeito cindido, fragmentado, incapaz de perceber a realidade em
sua totalidade e de compreender a si como sujeito em sua relação com o mundo e com
as outras pessoas.
Por outro lado, a leitura do texto literário, em especial da poesia, pode auxiliar
o leitor na compreensão do mundo e na busca pela liberdade, tendo em vista que, devido
à construção estética, durante a leitura, o sujeito pode organizar seu caos interior e,
assim, ampliar sua compreensão do mundo. Nesse sentido, a literatura afirma a
humanidade do ser humano, como nos lembra Antonio Candido (2004).
Quando a poesia é apresentada em sala de aula de maneira criativa, utilizando-
se recursos e estratégias que demonstrem a materialidade do poema, a concretude das
palavras e transformem a aula com poesia em momentos de descoberta, de prazer e de
surpresa, desenvolve-se nos alunos o interesse em ler cada vez mais e mesmo escrever
poesia, pois, como nos diz Eduardo Galeano, é para isso que a gente escreve, para
juntar nossos pedacinhos e com isso nos percebermos como sujeitos que sentimos e
que pensamos, seres complexos que somos, tudo ao mesmo tempo.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond. “A educação do ser poético”. Jornal do Brasil, Rio de


Janeiro – RJ, 20.07.74

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades;
Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2012.

KIRINUS, Glória. Synthomas de poesia na infância. São Paulo: Paulinas, 2011.

______. Criança e poesia na pedagogia Freinet. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 2004.

PILATI, Alexandre. Poesia na sala de aula: Subsídios para pensar o lugar e a função da
literatura em ambientes de ensino. Campinas: Pontes Editores, 2017.

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ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Teodoro da. Literatura e Pedagogia: ponto &
contraponto. 2 ed. São Paulo: Campinas, 2008.

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BIBLIOTECA NA ESCOLA: UM RETRATO DAS BIBLIOTECAS
ESCOLARES DA CIDADE DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS –
ALAGOAS.
Eixo Temático: Grupo Temático 9: Os espaços de leitura literária

Considerações iniciais
De acordo com a UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (2002), a biblioteca escolar é uma ferramenta de fundamental
importância para o processo de aprendizado, sendo essencial para a leitura, o acesso
à informação e o desenvolvimento social, econômico e cultural. Por isso, toda biblioteca
escolar deve apresentar um leque mínimo de recursos como, por exemplo, ter um
espaço físico adequado e confortável; material humano qualificado; acervo atrativo e já
apresentar um espaço digital, considerando o avanço tecnológico e a disponibilidade de
ebooks gratuitos e mesmo de baixo custo que podem e devem compor o acervo.
Apesar do que preconiza a UNESCO e com a fala abalizada pelo trabalho de
fomento à leitura que desenvolvemos há quase uma década, temos percebido que a
maior parte das bibliotecas públicas escolares não têm realizado as ações que lhes
competem no cotidiano escolar, na maior parte dos casos porque a realidade dessas
bibliotecas impossibilita que elas atuem como deveriam no ambiente educativo. Diante
disso, resolvemos elaborar um mapeamento da situação estrutural das bibliotecas
públicas escolares da cidade de Palmeira dos Índios, onde atuamos como professora
do Instituto Federal de Alagoas por doze anos, alicerçados na ideia de que a leitura deve
ser fomentada desde as séries iniciais e que para que isso aconteça é de extrema
importância uma biblioteca escolar bem estruturada e atuante dentro da escola.
Sendo assim, este trabalho apresenta um breve retrato das bibliotecas públicas
escolares da cidade apontada com o objetivo principal de avaliar o desempenho e a
contribuição das bibliotecas públicas escolares do município no processo de fomento à
leitura na Educação Básica. Mais especificamente, nos propomos a caracterizar a
qualidade do material humano, dos espaços físicos e das instalações onde funcionam
as bibliotecas públicas locais; realizar levantamentos qualitativo e quantitativo dos
acervos disponíveis; averiguar os serviços e projetos desenvolvidos pelas bibliotecas
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escolares trabalhadas. Nosso intuito é entregar os resultados e conclusões para os
gestores da educação do município a fim de que esses implementem uma valorização
dos espaços de leitura na escola em busca de índices melhores de leitura na Educação
Básica municipal.
É importante esclarecer que conheço a realidade das bibliotecas escolares locais
e pensei ser importante documentar a situação delas, com a intenção de futuramente
mobilizar o Poder Público de maneira formal com um documento comprobatório das
circunstâncias de funcionamento confeccionado por um ator externo. Importante ainda
registrar que dois motivos foram determinantes para a escolha desse estudo de caso: o
interesse pessoal pelo fomento à leitura e a certeza de que as bibliotecas escolares têm
um papel importantíssimo na formação de leitores sendo um espaço de leitura por
natureza; a ideia de que fazer um retrato atual das bibliotecas escolares do munícipio
onde trabalho e entregá-lo às autoridades locais – Prefeitura Municipal, Secretarias
Municipal e Estadual de Educação, poderia instigar um projeto de valorização das
bibliotecas escolares do munícipio, que tivesse como meta melhorar os índices de leitura
dos alunos da cidade, algo extremamente necessário, considerando os dados abaixo
da média apresentado pelos discentes nas avaliações institucionais no quesito leitura.
O questionamento central norte deste trabalho é: as bibliotecas públicas
escolares do município de Palmeira dos Índios estão cumprindo seu papel como
ferramenta pedagógica e como instrumento de desenvolvimento social, cultural e
econômico? Em busca de respostas, apresentaremos duas pesquisas: bibliográfica e
de campo. Inicialmente iremos expor uma breve revisão da literatura no que diz respeito
ao espaço de leitura biblioteca pública escolar no Brasil e depois socializaremos os
resultados de uma pesquisa sobre as bibliotecas públicas escolares de Palmeira dos
Índios.

Breve panorama da biblioteca escolar no Brasil


A leitura é uma atividade basilar para qualquer área do conhecimento e promover
o fomento à leitura e facilitar o acesso aos livros para os leitores é um compromisso que
toda sociedade deve empreender. Ainda que o hábito da leitura deva começar em casa,
no âmbito familiar, considerando a importância do ato de ler e que o leitor não nasce
pronto e precisa sim ser incitado e aprontado para o mundo da leitura e para obtenção
de competência de leitura, cabe à escola se responsabilizar pelo prosseguimento eficaz
do processo de mediação da leitura no cotidiano escolar. Dessa maneira, a biblioteca
escolar é, sem dúvidas, um espaço fundamental de promoção de leitura na escola e

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obrigatoriamente deve existir e funcionar adequadamente de maneira que colabore
substancialmente com o trabalho de estímulo à leitura empreendido por toda a
comunidade escolar que pretende desempenhar sua função exemplarmente.
Apesar da propagada importância fundamental das bibliotecas escolares na
formação leitora, pesquisas mostram uma grande disparidade na oferta de bibliotecas
escolares no país. Em 2017, um estudo técnico feito pela assessoria Legislativa da
Câmara Federal, que teve como base os dados oficiais o Censo Escolar de 2016,
disponibilizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP-MEC), apontou que do total de 217.480 escolas públicas do país, apenas 21%
possuíam biblioteca em suas dependências. Por sua vez, em 2019, o Anuário Brasileiro
da Educação Básica afirmou que cerca de 45,7% das escolas públicas de ensino básico
contavam com bibliotecas ou salas de leituras. Também em 2019, o Instituto Pró-livro
apresentou uma pesquisa revelando que das 142.573 escolas públicas federais,
estaduais e municipais, 61% não tinham biblioteca ou sala de leitura. Isso significa dizer
que 88.340 escolas sem este espaço essencial para o processo de aprendizagem e do
desenvolvimento do aluno. Mudam parâmetros, estratégias e/ou modos de apuração-
tabulação dos dados, mas é fato incontestável que estamos em defasagem no quesito
quantidade de bibliotecas escolares minimamente necessárias nas escolas brasileiras.
São dados preocupantes, pois a Lei 12.244/10, que dispõe sobre a universalização das
bibliotecas nas instituições de ensino do país, determinava que até maio de 2020 todas
as escolas brasileiras – públicas e privadas – tivessem bibliotecas escolares e que o
número de livros dessas bibliotecas deveria ser de, no mínimo, um título para cada aluno
matriculado. Somos testemunhas de que isso não aconteceu. E não podemos esquecer
de que há de ser considerada nessa equação a Lei 9.674/98, que trata da profissão de
bibliotecário e prevê a supervisão obrigatória desses profissionais em todas bibliotecas.
É preciso o espaço físico e digital biblioteca, é preciso ter livros físicos e digitais, é
preciso ter o responsável pelo espaço para que ele funcione corretamente, é preciso ter
na biblioteca o profissional bibliotecário.
Uma das maneiras de contrapor os números ruins no que diz respeito à
implantação de bibliotecas escolares, à preservação do bom funcionamento dessas
bibliotecas, ao estímulo à leitura no ambiente escolar e à fomentação da competência
leitora, é condição primeira a valorização da biblioteca escolar como espaço
fundamental e intrínseco à escola, bem como a clareza institucional de que esse espaço
de leitura na escola tem o dever de disponibilizar inúmeros recursos, inclusive digitais,
visando democratizar a leitura e o livro para os alunos, de maneira que ele, através da

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leitura, obtenha informação, educação, cultura e lazer, ou seja, é um dever da escola
propiciar através da leitura que o aluno desenvolva e usufrua da cidadania plena, a única
cidadania aceitável.

A biblioteca possibilita acesso à literatura e às informações para dar respostas


e suscitar perguntas aos educandos, configurando-se uma instituição de cuja
tarefa centra-se na formação não só do educando como também de apoio
informacional ao pessoal docente. Para atender a essas premissas, a
biblioteca precisa ser entendida como um “espaço democrático” onde interajam
alunos, professores e informação. Esse espaço democrático pode estar
circunscrito à função educativa e à formação cultural do indivíduo (RIBEIRO,
1994)

Essa condição de espaço fundamental no ambiente escolar conferido às


bibliotecas e o reconhecimento delas como parte essencial do processo educativo são
corroborados pelo Manifesto IFLA/UNESCO (2002), que determina que é função da
biblioteca escolar “promover serviços de apoio à aprendizagem e livros aos membros
da comunidade escolar, oferecendo-lhes a possibilidade de se tornarem pensadores
críticos e efetivos usuários da informação, em todos os formatos e meios”.
Apesar de estar clara essa importância de uma biblioteca escolar na legislação
e nos livros, nítido também está que o Brasil não desempenha um bom papel no que diz
respeito à nação fomentadora de leitura, mesmo com a Lei 12.244/2010, que impunha
a todos os gestores públicos providenciar espaços estruturados de leitura em seus
estabelecimentos de ensino até o ano de 2020. Números indicando mais da metade das
escolas públicas sem bibliotecas e aliado a isso o mau funcionamento das existentes,
são fatores que influenciam diretamente nos péssimos índices de desempenho no
quesito leitura dos alunos brasileiros. O que não é algo que chega a surpreender porque
esses alunos não usufruem de espaços fomentadores de leitura e nas escolas onde
existem esses espaços os objetivos e funções das bibliotecas se perdem em meio a
infraestrutura inadequada, acervo defasado e profissionais despreparados para
trabalhar no ambiente. Os pesquisadores Maciel, Mendonça e Lavor (2008), foram
categóricos ao afirmar que muitas vezes as bibliotecas escolares são locais
desagradáveis, pois servem de depósito de objetos ou coisas inutilizáveis da escola ou
muitas das vezes é aquele lugar com livros trancados e que só podem ser acessados
com autorização de um professor ou do diretor da escola. Evidentemente que dessa
forma a biblioteca nunca será um espaço democrático, convidativo, nem cumprirá o seu
dever de promover leitura, informação, cultura e cidadania. Portanto, não formará
leitores e não há como obter bons índices de competência leitora se não há um trabalho
de fomento à leitura e para que esse trabalho exista é necessário o espaço biblioteca

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funcionando de forma eficiente. No Brasil, grande maioria não tem biblioteca; quando
tem, raramente funciona adequadamente,
Em 2015, a pesquisa Retratos de Leitura no Brasil apurou que o aluno percebe
a biblioteca como um local de estudo e de pesquisa; um lugar onde se emprestam livros
e talvez o mais importante, um local para ele, o aluno. Contudo, mais de 60% dos
estudantes que responderam a essa pesquisa disseram não frequentar a biblioteca.
Então, o aluno tem compreensão da biblioteca escolar no seu cotidiano de aluno, mas
grande parte não vai ao local. Por quê? As pesquisas sobre o assunto dizem que é
porque não existe o espaço na escola ou porque quando existe não cumpre o seu papel,
não é um local atrativo. E também já ficou mais do que claro que dada a importância da
biblioteca para a (trans)formação do aluno em cidadão, é necessário que a biblioteca
escolar funcione de maneira eficaz e cumpra com suas responsabilidades e que para
isso, a instituição escolar precisa compreender a biblioteca escolar como espaço
fundamental dentro da escola e como ferramenta pedagógica e instrumento de
desenvolvimento social, cultural e econômico.
É um caminho longo e muitos são os fatores que precisam ser estudados, pois
além da infraestrutura, é necessário gestão com planejamento para alcançar
desempenho exitoso no quesito leitura e com entendimento de que esse planejamento
indica presença de profissionais qualificados para desenvolver o trabalho, notadamente
professores e bibliotecários. Professores que saibam ensinar a ler, que desenvolvam
projetos de leituras; bibliotecários que compreendam a importância de democratizar, dá
acesso ao livro, bibliotecários que abram as portas da biblioteca e dessacralize o objeto
livro. E que professores e bibliotecários andem de mãos dadas em busca de objetivos
comuns. Não é fácil, a realidade educacional de Brasil não ajuda, mas não podemos
compactuar com essa realidade. É preciso enfrenta-la desenvolvendo um trabalho com
o intuito de formar leitores plenos. Volnei Canônica (2019), ex-diretor de Livro, Leitura,
Literatura e Bibliotecas, do Ministério da Cultura, afirma que “investir em Educação é
investir em Biblioteca Escolar!” e que

Uma biblioteca escolar estruturada, com um bom acervo, equipamentos e


profissionais qualificados desenvolvendo ações de leitura ligadas ao projeto
político pedagógico ou currículo escolar traz grande impacto positivo na
aprendizagem dos alunos. (CANÔNICA, 2019)

Para compreendermos exatamente o diferencial propiciado por uma biblioteca


escolar, pesquisadores da fundação INSPER – Instituto de Ensino e Pesquisa afirmam,
por exemplo, que correlacionando espaço físico e o Índice de Desenvolvimento do
Ensino Básico – IDEB, a
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escola que tem uma biblioteca escolar em boas condições, alcança IDEB 0,2 ponto
maior que uma escola com uma biblioteca inferior, ou seja, quanto mais estruturada e
com bom funcionamento, maior é o IDEB da escola. Ainda de acordo com os mesmos
pesquisadores, o impacto da biblioteca é ainda maior nas escolas mais vulneráveis.
Nesse caso, a correlação com o IDEB aumenta em 0,5. Isso é muito significativo já que
o IDEB, entre 2015 e 2017, no Brasil inteiro, cresceu 0,3 ponto. No que diz respeito à
participação do bibliotecário no desenvolvimento de ações de fomento à leitura no
cotidiano escolar, essa postura, em correlação com o Sistema de Avaliação da
Educação Básica – SAEB, promove o desempenho em Português dos alunos em pelo
menos 4 pontos. Isso equivale a 1/3 de um ano de aprendizado para alunos entre o 5º
e o 9º ano, sendo que nas escolas em situações de grande vulnerabilidade, o
crescimento é 4 vezes maior, 16 pontos. E os pesquisadores vão adiante, o docente
que se envolve com pesquisa e projetos de leitura em sala de aula e frequenta a
biblioteca com os alunos, provoca um desempenho numericamente 7 vezes maior em
Português na escala SAEB, o significaria 63% de um ano de aprendizado. Os dados
comprovam, é incontestável a diferença que faz uma biblioteca com estrutura e
funcionamento minimamente razoáveis em uma escola.
Essas correlações comprovam a fala de Antunes (1998), que diz que uma
biblioteca escolar em funcionamento favorece o desenvolvimento curricular; estimula a
criatividade, o espírito crítico e a construção do conhecimento, contribuindo para a
formação integral do indivíduo capacitando-o a viver em um mundo em constante
evolução. Por isso, “ a gestão das bibliotecas escolares deve responder às
necessidades da comunidade em que está inserida”, dizem Vahldick et ali (2017) e
obrigatoriamente conhecer a realidade da biblioteca escolar do seu município, da sua
Federação é fundamental para que os gestores tomem as melhores decisões e que
percebam que escola sem biblioteca é escola sem futuro.

Um retrato das bibliotecas escolares de Palmeira dos Índios (Al)


No segundo semestre de 2018 iniciamos um levantamento das escolas
públicas municipais de Palmeira dos Índios, visitando-as com o objetivo de saber quais
delas tinham bibliotecas escolares e como elas funcionavam. Como já dissemos, nosso
intuito primeiro era avaliar o funcionamento desses espaços e perceber como eles
influenciavam no aprendizado dos alunos da localidade.
Palmeira dos Índios é a quarta maior cidade de Alagoas, está localizada na
região agreste do Estado, tem uma população de pouco mais de 70 mil habitantes e

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uma taxa de escolarização de 95%, de acordo com dados IBGE divulgados no último
censo em 2017. A cidade possui 52 escolas públicas, sendo: 29 municipais, 22
estaduais,1 federal. E segundo a Autarquia, o Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica do munícipio em 2017 foi de 4,2 em média. Portanto, abaixo das metas
estabelecidas no Plano Nacional de Educação, que variavam entre 4,7 a 5,5.
Tendo em vista a realidade das bibliotecas públicas da cidade, o resultado
que obtivemos não nos permitiu elaborar um relatório rico em detalhes, consistindo
apenas em contabilizar o número de escolas públicas que tinham bibliotecas escolares
e averiguar o funcionamento delas conversando com os gestores. Os números
apontaram:

 29 escolas municipais: 26 não possuem biblioteca, 3 possuem


bibliotecas.
 22 escolas estaduais: 7 possuem biblioteca, 15 não possuem.
 1 escola federal: possui biblioteca e clube de leitura.

Para realizar essa coleta de dados e informações somente tivemos contato


com os diretores da escola e com diretores-adjuntos. Eles foram solícitos, responderam
as perguntas e estavam todos bem conscientes da necessidade e importância de uma
biblioteca na escola. O nosso olhar sobre as escolas e suas bibliotecas ou a não
existência dessas foi norteado pela realidade em contraponto às políticas públicas e
metas da educação nacional. Por isso, nos limitamos a olhar o espaço físico, acervo e
pessoal.
No que se refere aos aspectos físicos das bibliotecas existentes todas
deixaram a desejar. Não eram ambientes aprazíveis, climatizados, limpos, bem
estruturados. Muitos estavam empoeirados, escuros e mofados. O mobiliário, na maior
parte antigo e desconfortável, não ajuda. A maioria também não tem computador. O
acervo é razoável, muito por conta do Programa Biblioteca na Escola – PNBE, mas
precisa ser atualizado e considerar o gosto do aluno. Um fato grave: nenhuma das
bibliotecas tem bibliotecário. Em sua maioria, professores que estão próximos de se
aposentar ou afastados da sala de aula é que são designados para cuidar da biblioteca.
Por esse motivo, o funcionamento da biblioteca é por vezes irregular e muitas vezes
ficam fechadas.
A escola federal é uma exceção. Ela possui um acervo bem cuidado e que
está sendo sempre atualizando. Há uma bibliotecária e 2 auxiliares de biblioteca e vários
computadores e ainda sala de leitura reservada. O fator negativo é que apesar desse

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potencial o espaço não desenvolve projetos de fomento à leitura e os professores não
usam muito o ambiente como espaço de leitura. A impressão que fica é que essa
biblioteca é apenas um local de pesquisa ou para uso dos computadores e das salas de
estudos.
Nas 36 escolas que não possuem biblioteca foi constatado que a
comunidade sente muita falta dos livros. Os diretores, diretoras e professores
demonstraram preocupação e até mesmo tristeza por não terem em suas escolas
espaços de leitura ou bibliotecas estruturadas. Elas não souberam explicar o porquê e
também não tinham conhecimento de como, na condição de gestores e/ou educadores,
efetivamente poderiam agilizar a implantação de uma biblioteca na escola.
Confrontando o número de escolas com os índices do IDEB, constata-se
que das 52 escolas, apenas 2 apresentam índice de desenvolvimento acima das metas
estabelecidas, uma da rede municipal e a da rede federal. A escola municipal inclusive
já atingiu a meta prevista para 2021, porém como as demais estão abaixo da meta e em
estado de “alerta”, “atenção” ou “precisando melhorar”, o município no geral consta
como abaixo da meta do Plano Nacional de Educação.
Lembramos que as metas de desenvolvimento da educação básica estão
previstas no Plano Nacional de Educação e foram estabelecidas de acordo com contexto
econômico e social em que as escolas estão inseridas; o nível de ensino; é diferente de
escola para escola; é escalonada numa projeção a ser alcançada até 2021. A meta nacional
é que as escolas atinjam índice 6 (anos iniciais do fundamental); 5,5 (anos finais do
fundamental) e 5,2 (nível médio) até 2021.
Nossa contabilização das bibliotecas escolares nas escolas públicas de
Palmeira dos Índios, apesar de elementar, corroboram a ideia do INSPER, que diz que a
ausência de bibliotecas interfere de forma negativa no IDEB e ainda mais, que ter a
biblioteca e ela não funcionar adequadamente também não adianta muita coisa, no final das
contas. Se ter a biblioteca bastasse, teríamos 11 escolas com IDEB suficiente. Não acontece
isso.
Essas breves observações nos fizeram perceber fatos importantes em
relação à situação das bibliotecas escolares em Palmeira dos Índios. Um aspecto muito
positivo foi a consciência de todos os gestores da importância da biblioteca escolar no
ensino aprendizagem dos alunos e como a ausência ou o mau funcionamento de uma
biblioteca influenciava no desempenho do alunado nas avaliações institucionais
especificamente e na vida acadêmica de uma maneira geral. Os gestores e professores
também demonstraram interesse em fazer cursos ou mesmo ter conhecimento de como
implantar uma biblioteca em sua escola ou ter profissionais da área fazendo parte do
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quadro de servidores da instituição. Por outro lado, alguns problemas estavam muito
evidentes: a ausência de profissionais qualificados para gerir a biblioteca; a falta de
participação dos professores no desenvolvimento de projetos de leitura envolvendo a
biblioteca no cotidiano escolar; estrutura física e mobiliário muito aquém das
necessidades; acervo inadequado, principalmente nas escolas de nível fundamental,
ausência de tecnologia digital etc. Contudo, o maior problema mesmo foi a constatação
da falta de bibliotecas. Fato gravíssimo. São 52 escolas e em apenas 10 delas há o
espaço de leitura biblioteca, sendo que apenas em 1 delas – a da escola federal - em
boas condições estruturais e com bom acervo e profissionais qualificados, ainda que
não funcione de maneira ideal, se considerarmos a ausência de uma agenda de projetos
de fomento à leitura e escrita, por exemplo.
Convém retomar que o objetivo deste trabalho era averiguar se as bibliotecas
públicas escolares do município de Palmeira dos Índios estariam cumprindo seu papel
como ferramenta pedagógica e como instrumento de desenvolvimento social, cultural e
econômico e para isso fizemos um passeio bibliográfico e um levantamento quantitativo-
qualitativo das bibliotecas públicas escolares da cidade. A resposta obtida para a nossa
pergunta norte foi caótica: 80% das escolas de Palmeira dos Índios não têm biblioteca
e o restante das escolas que possui bibliotecas apresenta espaços e funcionamentos
precários, e dessa maneira não cumprem o papel crucial de uma biblioteca escolar que
é contribuir de forma decisiva para formação de leitores plenos no cotidiano escolar.
Carvalho (2003, p.21) chama a atenção para o fato de a biblioteca ser em primeiríssimo
lugar: espaço para formação de leitores e elenca três elementos fundamentais para o
bom funcionamento dela e para que ela alcance seus objetivos

uma coleção de livros e outros materiais, bem selecionada e atualizada; um


ambiente físico bem concebido como espaço de comunicação e não apenas
de informação, que leve em conta a corporalidade da leitura da criança e do
adolescente, isto é, os seus modos de ler; e por último, mas não menos
importante no processo de promoção da leitura, a figura do mediador.
(CARVALHO, 2003)

As bibliotecas escolares da cidade de Palmeira dos Índios contrariam todas as


orientações de Carvalho. Até mesmo a biblioteca da escola federal, apesar de
apresentar profissionais, acervo e espaço compatível, peca em um quesito nevrálgico,
o fomento à leitura não é realizado e nem a figura do leitor a ser conquistado é
considerada. Considerando as pesquisas e teorias acadêmicas sobre o assunto
biblioteca escolar no Brasil, a cidade representaria muito bem, negativamente, o
contexto brasileiro no quesito biblioteca. Na verdade, até supera os índices nacionais.

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Também é dito e comprovado pelos especialistas que um sistema dinâmico de
bibliotecas escolares se configura como um grande aliado do desenvolvimento e da
melhoria do processo ensino-aprendizagem.

A biblioteca escolar, como parte integrante da escola, constitui fator essencial


para atingir as metas educacionais ao funcionar como elementos de apoio no
desenvolvimento das atividades curriculares, motivando assim o interesse do
estudante e atividades curriculares, motivando, assim, o interesse do
estudante e do professor nos vários tipos de informação, formando,
consequentemente, o hábito do uso da biblioteca por meio de um processo
contínuo. (PEREIRA, 1991)

Se correlacionarmos a situação de falta de bibliotecas e com o que isso implica


no desempenho dos estudantes da educação básica, perceberemos facilmente que não
é de surpreender que o IDEB – Índice de Desenvolvimento de Educação Básica, de
Palmeira dos Índios esteja abaixo da meta do Plano Nacional de Educação e a maior
parte das escolas esteja em estado de alerta e de atenção. E não há perspectiva de
mudanças nos números. Existe sim uma apreensão de que esses números piorem se
nada for feito urgentemente. A realidade é muito preocupante.

Considerações finais
O Brasil país não possui uma política pública de incentivo à leitura, apesar dos
péssimos índices de leitura no país. A Lei 13.696, que institui a Política Nacional de
Leitura e Escrita (PNLE), após anos engavetada na Câmara Federal, foi sancionada em
2018 e estabelece estratégias que devem contribuir para a universalização do direito ao
acesso ao livro, à leitura, à escrita, à literatura e às bibliotecas. A aprovação da Lei foi
um passo muito importante porque o fomento à leitura e a democratização do livro
passou a ser uma política de Estado e não de governo. Porém, com a mudança de
governo, o tema permanece parado e prejudicando mais ainda a situação leitora no
País. Falta a regulamentação da lei e a construção do Plano Nacional do Livro e Leitura
que estabelecerá estratégias e metas para o país. Esse plano deveria ter sido construído
nos seis meses após a aprovação da lei. Não aconteceu. O Ministério da Cidadania
agora responde por algumas questões da pasta da Cultura e ainda não nomeou sequer
o responsável pelo Departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas. No MEC
também o silêncio sobre o tema é sepulcral. Essa falta de prioridade e desleixo com o
assunto tem prejudicado a nação há muito tempo. Desde meados do século passado,
somente em 2010 foi publicado um balanço feito pelo Ministério da Cultura que
registrava um investimento de quase 300 milhões de reais em quatro anos, em ações
de construção e modernização de bibliotecas e formação de mediadores e criação de

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pontos de leitura. Em 2012 foram anunciados investimentos de quase 400 milhões na
área de fomento à leitura. Mas em 2014 a situação política do país engessou tudo. Para
se ter uma ideia, o governo federal interrompeu nesse ano a compra de livros de
literatura para as bibliotecas, interferindo com isso diretamente no acervo das bibliotecas
escolares, que dependem basicamente desse fomento estatal. Questionado pela
imprensa, o Ministério da Cidadania disse que avalia a possibilidade de elaboração de
um plano de leitura e do livro para o país. O discurso vago do ministério comprova o
desleixo e até mesmo a falta de conhecimento sobre o assunto, pois quem está inteirado
da situação, e o governo deveria estar, sabe que não é questão para ser tratada com
morosidade. O Ministério da Educação manteve a linha do discurso do Ministério da
Cidadania, dizendo que tem trabalhado para o fomento da leitura no país. A realidade e
o discurso governamental demostram que o trabalho não está sendo bem feito.
A Lei 12.244 prevê a universalização das bibliotecas do país e o Plano Nacional
de Educação estabelece que até 2024 todas as escolas brasileiras tenham biblioteca.
De posse dos resultados das pesquisas, sabemos que dificilmente a meta será
cumprida. O governo federal não tem um plano para efetivar esse objetivo. Então, uma
alternativa seria a mobilização dos governos estaduais e municipais em prol da
instalação de bibliotecas em suas escolas. Cada unidade da federação e cada município
deveriam firmar parcerias entre si e com a comunidade acadêmica local e empreender
esforços para a instalação e manutenção de bibliotecas escolares, pois todos sairiam
ganhando com isso, mediante já estar comprovado que as bibliotecas são fundamentais
para o fomento da competência leitora e para a melhoria dos índices educacionais.
Sendo assim, estudos sobre bibliotecas escolares municipais, ainda que breves, como
este trabalho, se tornam relevantes porque permitem conscientizar a comunidade
escolar, a população e os gestores sobre a realidade do seu município, pois muitas
vezes eles não fazem ideia de como a leitura influencia em suas vidas e de como a falta
de competência leitora atrasa o desenvolvimento de um cidadão e de um país. Para os
gestores locais, fica evidente que a realidade da sua cidade e do seu entorno mudaria
com investimentos em bibliotecas na escola e em profissionais qualificados para o
fomento à leitura, que depende muito deles implementar estratégias e desenvolver
ações nesse sentido. Educar para a formação de leitores plenos é um desafio que o
Brasil tem que enfrentar, se quiser ser um país igualitário e justo.

Referências
ANTUNES, Wanda de Andrade. Biblioteca escolar no Brasil: reconceituação e busca de
sua identidade a partir de autores do processo ensino-aprendizagem. 1998. Tese
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(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,
1998.

BRASIL. Ministério da Educação. Resumo técnico – censo escolar 2010. Brasília: INEP,
2010b. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com
_content&view=article&id=16179>. Acesso em: 19 mar. 2019.

BRASIL. Lei nº 12.244 de 24 de maio de 2010. Dispõe sobre a universalização das


bibliotecas nas instituições de ensino do País. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12244.htm>. Acesso em
20 janeiro de 2019.

BRASIL. Lei nº 9.674, de 25 de junho de 1998, que dispõe sobre o exercício da profissão
de Bibliotecário e determina outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9674.htm>. Acesso em 01 de fevereiro de
2019.

BRASIL. Lei nº 10.753, de 30 de outubro de 2003, que institui a Política Nacional do


Livro.

CÂNONICA, V. Investir em Educação é investir em Biblioteca Escolar. Revista


Publishnews. 2019. Disponível em:
https://www.publishnews.com.br/materias/2019/05/03/investir-em-educacao-e-investir-
em-biblioteca-escolar. Acesso em Maio de 2019.

CARVALHO, Bárbara Vasconcelos de. CARVALHO, Bárbara Vasconcelos de. A


literatura infantil: visão histórica e A literatura infantil: visão histórica e crítica. crítica. 6.
Ed. São Paulo: Global, 1989.

FAILLA, Zoara. Retratos da leitura no Brasil. Vol. 4. Rio de Janeiro: Sextante, 2016.
IFLA/UNESCO. Diretrizes da IFLA/UNESCO para a Biblioteca Escolar. 2002. Disponível
em: <http://www.ifla.org/files/assets/school-libraries-resource-
centers/publications/school-library-guidelines/school-library-guidelines-pt_br.pdf>.
Acesso em: junho de 2018.

LAGES, Amarilis. Quando a escola tem biblioteca o desempenho do aluno é melhor,


mostra pesquisa. Folha de São Paulo. São Paulo, 28 de setembro de 2019. Seminários
da Folha. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2019/09/quando-a-escola-tem-
biblioteca-desempenho-do-aluno-e-melhor-mostra-pesquisa.shtml. Acesso 28 de
setembro.

MACIEL, A. D.; MENDONÇA, D. C.; LAVOR. J. Ação Cultural e a formação da


consciência política na biblioteca escolar. Fortaleza, 2008. Disponível em:
<www.unirio.br/cch/eb/enebd/Poster/acao_cultural.pdf> Acesso em: junho 2018.

ORIÁ, Ricardo. Bibliotecas Escolares no Brasil: uma análise da aplicação da Lei


12.144/2010. Câmara Federal. Brasília, 2017.

PEREIRA, Ana Maria Gonçalves dos Santos et al. PEREIRA, Ana Maria Gonçalves dos
Santos et al. Reestruturação e/ ou Reestruturação e/ ou implementação das bibliotecas
escolares do Estado da Paraíba da rede pública de implementação das bibliotecas
escolares do Estado da Paraíba da rede pública de ensino de 1º e ensino de 1º e 2º
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graus. In: 2º graus. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E
CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO, 16, 1991,
Salvador. DOCUMENTAÇÃO, 16, 1991, Salvador. Anais. Salvador: Associação
Profissional Salvador: Associação Profissional dos Bibliotecários do Estado da Bahia,
1991. p. 362 – 379

RIBEIRO, Maria Solange Pereira. Desenvolvimento de Coleção na Biblioteca Escolar:


uma contribuição à formação crítica sociocultural do educando. TRANSIFORMAÇÃO:
Campinas, vol. 6, n. 1/3, jan-dez. 1994.
VAHLDICK, V.; JUNGBLUT, C. A. Organização da Biblioteca Escolar: dificuldades e
possibilidades na rede municipal de Indaial. Leonardo Pós, Blumenau, v. 3, p. 111-116,
2007.

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
GRUPO TEMÁTICO 10:
EDUCAÇÃO LITARÁRIA,
LETRAMENTO LITERÁRIO,
FORMAÇÃO E MEDIAÇÃO DE
LEITORES LITERÁRIOS ENTRE
CAMINHOS DO
SABER/APRENDER

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POESIA, CIÊNCIA, PANDEMIA E SOLIDARIEDADE: A EJA NO
CAMINHO DA TECNOLOGIA EM UMA GINCANA VIRTUAL
PARA ALCANÇAR O PRÓXIMO

Daniela Santos Souza


Uniasselvi -Polo de Alagoinhas

Elidineide Maria dos Santos


Colégio Estadual de Alagoinhas-Ba

Juliana da Costa Neres


UNEB

Eixo Temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender.

Considerações iniciais
No mundo inteiro diversas medidas foram tomadas para evitar a contaminação
pelo novo Corona-vírus. A Organização Mundial da Saúde (OMS), publicou orientações
de higiene, e a necessidade de afastamento social (OMS,2020). As instituições
escolares públicas e particulares também foram afetadas com suspensão das aulas. O
fechamento das instituições escolares no Estado da Bahia foi inevitável, para conter a
disseminação do vírus, através do decreto nº 19529-16-03.2020 do Governador do
Estado. Nesse contexto de escolas fechadas, de isolamento social as equipes gestoras
e os docentes precisaram pensar meios para a manter o vínculo escola-aluno.
O presente projeto de pesquisa discorre sobre atividades de uma gincana
online em uma escola pública estadual na cidade de Alagoinhas-Bahia, com objetivo de
manutenção do vínculo aluno-escola e dar continuidade ao processo de aprendizagem
dos estudantes, a partir do envio de atividades online de maneira remota dando assim
seguimento ao processo ensino-aprendizagem, tais como incentivo a leitura, aquisição

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de novos conhecimentos, pesquisa, iniciação científica, cidadania, solidariedade. A
gincana online, ecológica, sustentável e solidária buscou propiciar o envio de atividades.
A análise da proatividade dos alunos, do protagonismo é o mote desse estudo.
Para o incentivo à leitura na modalidade remota de ensino, o envio das
atividades aconteceu através do celular, e-mail, utilizando documentos disponibilizados
pela Secretaria de Educação da Bahia: rotinas de estudos e roteiro de estudos.
As tarefas da rotina de estudos trata dos sentimentos, das atividades fora da
escola realizadas pelos alunos em suas casas com o afastamento da escola. E com os
roteiros de estudos atividades envolvendo conteúdos das diversas áreas do
conhecimento. (www.educacao.ba.gov.br). As tarefas da gincana foram enviadas a
partir do Office.com: itinerário de viagem(adaptado) onde foram inseridas as tarefas de
gincana com leitura e (re)leitura de diversos gêneros textuais: poemas, cartas, notícias,
além de reflexões sobre o momento atual, oportunidade para os estudantes aprimorar
a capacidade leitora e de interpretação, exercitar a escrita através da produção textual
autoral, busca de respostas através da pesquisa, experimentação, atitudes, despertar
o olhar para a necessidade de cuidar do outro, de si mesmo, a partir da orientação da
escola, porém da casa dos estudantes para comunidade onde vivem.
O sabonete líquido foi o produto material sugerido para culminar a gincana
online do Colégio Estadual de Alagoinhas, a partir da situação do afastamento social. A
escolha da produção do sabonete líquido justifica-se por ser este item de higiene
considerado por diversos pesquisadores um produto que forma uma camada protetora
no combate às doenças, e aos vírus (Revista Ciência Hoje das Crianças 176). As tarefas
da gincana foram organizadas de maneira que a ação finalizadora foi a doação do
sabonete produzido pelos estudantes na comunidade onde vive. Através das atividades
ofertadas tencionou-se o favorecimento da conscientização referente aos perigos da
contaminação pelo novo Corona-vírus, dessa forma a escola cumpre o seu papel
social. Partindo desse princípio surgiu a questão-problema: como a escola poderia
conscientizar e fomentar atitudes corretas de higiene, em específico a higiene das
mãos, mesmo com os alunos distantes da escola em meio a uma pandemia,
considerando ser a lavagem das mãos uma das formas de prevenir a disseminação do
novo Corona-vírus, os estudantes após realizarem as leituras propostas através dos
meios digitais seriam capazes de produzir o sabonete líquido em casa e conseguiriam
doar na comunidade onde vivem e assim disseminar a ideia de mais segurança
utilizando-se o sabonete liquido do que o uso do sabonete em barra para a higiene das
mãos no contexto da pandemia da Covid-19?

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A temática higiene foi proposta aos estudantes de maneira transdisciplinar,
envolvendo os conhecimentos já adquiridos pelos estudantes em todas as áreas do
conhecimento, tendo por finalidade produzir e doar na comunidade local um produto
higienizante contribuindo assim para o afastamento do perigo da contaminação no
ambiente familiar e na comunidade. A gincana online, trouxe como proposta o incentivo
à leitura, pesquisa, e possibilitou cuidar do meio ambiente ao reaproveitar embalagens,
utilizar produtos já testados industrialmente, para a produzir o sabonete líquido no
laboratório de casa. Para chegar até a produção do sabonete líquido, os estudantes
tiveram acesso aos diversos gêneros textuais, leitura do roteiro, material audiovisual,
orientações para a execução das tarefas da gincana online, registro e envio das fotos e
vídeos pelos meios digitais de comunicação: celular, e-mail.
Os estudantes realizaram leituras sobre a necessidade do afastamento, as
consequências da mudança de rotina, as possibilidades de eficácia ou não da
higienização satisfatória, o uso do sabão, da água, do álcool em gel ou do sabonete
líquido, desenvolvendo assim o hábito da leitura consequentemente a melhora da
competência leitora, criticidade, análise de textos e produção textual autoral, tais como
cartas, miniprojeto de pesquisa do sabonete líquido produzido.
Acreditar nas potencialidades da nossa escola e dos nossos
estudantes, aliada às estratégias para o envio das tarefas online da gincana em
desenvolver as tarefas online ocorreu de modo natural e com a aceitação da proposta
pelos estudantes, gerou a confiança de que o resultado pretendido seria alcançado,
mesmo com os distantes da escola.
Desenvolvimento
A LDB apresenta artigo 37 da LDB a quem a EJA :

§ 1º Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e


aos adultos, que não puderam efetuar os estudos educacionais
apropriadas, as características do alunado, seus interesses,
condições de vida e trabalho mediante cursos e exame(Brasil, 1988).

Nesse contexto da pandemia da Covid-19, com os alunos em suas casas,


ofertar a continuidade dos estudos tornou-se um desafio, por exigir o uso das
tecnologias modernas, da internet, e muitos estudantes não têm acesso.
Para Gina Vieira (2020), o mundo vive atualmente o perigo da contaminação.
É o momento oportuno para escola reforçar sua função social, retomando os valores
constituintes da Educação aliando os documentos norteadores: Constituição
Federal(CF), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC). A escola nesse momento ao revisitar o currículo, tem a

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possibilidade de ampliar a janela dos saberes, partindo da questão dos v valores
universais e dos direitos humanos, das necessidades pessoais e dentro do contexto da
pandemia do Corona-vírus. Ainda segundo Vieira(2020), é hora da escola trocar
exercícios, questionários, por projetos educativos partindo do problema que gerou o
fechamento da escola, desse modo a instituição escolar dissemina conhecimento
fortalecendo seu papel social. Ao realizar atividades a partir de projetos educativos, a
escola estará trabalhando em prol da formação de pessoas e cidadãos que buscam na
cultura a autonomia, responsáveis e solidários, a partir do desenvolvimento da
capacidade de preocupar-se consigo, com o outro e com o meio ambiente
comprometendo-se assim para a construção de um destino comum e de uma sociedade
melhor.
Para Cruz(2009), o estudante ao exercitar a construção leitora, “o leitor abre
caminho para as mais diferentes formas de interpretação, na medida em que se concede
o prazer de ser seduzido pelos encantos do texto”. Dentre as características da gincana
online proposta para os estudantes da EJA do Colégio Estadual de Alagoinhas estão o
incentivo à prática da leitura, valorização da sustentabilidade, do protagonismo
estudantil, fomentação do uso das tecnologias de comunicação e informação. A
aceitação da proposta de gincana online pelos estudantes demonstrou o compromisso
dos mesmos e serviram de referência para garantia quanto à coerência e eficiência
do nosso plano de ação, a partir de um projeto educativo. O projeto educativo proposto
por Vieira (2020), tem por objetivo manter o vínculo do aluno com a escola, por ser este
um instrumento de planejamento da ação educativa da escola, que serve de ponto de
referência e orientação na atuação de todos os elementos comunidade educativa em
que a escola está inserida.

Metodologia

Os alunos participantes do projeto educativo a partir de uma gincana para


pesquisa e produção do sabonete líquido, são adultos da EJA do tempo formativo II e
III, com faixa etária entre 22 e 59 anos. Os estudantes receberam o roteiro das tarefas
através do celular. Realizaram as 07 (sete) tarefas, 11 alunos dos 25 que receberam
as atividades. Sendo que 8(oito) cumpriram metade das tarefas, 4,(quatro) entregaram
o sabonete líquido cumprindo assim todas as tarefas do roteiro da gincana online,
ecológica, sustentável e solidária, proposta mediada e orientada pelos docentes.
Com alunos e professores em suas respectivas casas, a comunicação
aconteceu através dos meios digitais através do celular pelo aplicativo de mensagens

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WhatsApp, e-mail e ligações telefônicas, e também no googleclasseroom. O feedback
dos estudantes aconteceu com envio das fotos e vídeos, após leitura e realização das
tarefas indicadas no roteiro: criação de poemas, higienização das embalagens, criação
do rótulo, produção do sabonete, envase, doação do sabonete produzido, a partir das
tarefas cumprida para o professor mediador, tudo de maneira virtual.
A metodologia da pesquisa do presente estudo possui caráter bibliográfico e
empírico, com reflexão na ação, através do acompanhamento das produções de cada
aluno e o registro do desempenho no documento itinerário de viagem adaptado com
as tarefas da gincana quando do cumprimento das tarefas propostas.

Resultados e Discussão

A Escola Estadual de Alagoinhas, exclusiva de EJA, pensou na possibilidade


da continuidade da aprendizagem dos estudantes através do desenvolvimento de ações
de prevenção contra a contaminação do novo Corona-vírus a partir da questão da
higienização, em especial a higiene das mãos a partir de uma gincana online, pois para
desenvolver as tarefas foi necessário ler e interpretar, criar rótulos, cartas com a
temática dos cuidados com a saúde, medidas de higiene pela necessidade de nos
cuidarmos e cuidarmos do outro
Para o acondicionamento do sabonete líquido produzido, inicialmente a tarefa
do recolhimento de embalagens vazias de shampoo, condicionador, sabonete líquido
no ambiente familiar e na vizinhança, a higienização das mesmas, retirada dos rótulos,
criação de novo rótulo, envase, contribuindo assim a preservação da Natureza, uma vez
que as embalagens vazias geralmente descartadas indevidamente no meio ambiente,
e com essa ação da gincana, passaram a ter uma nova função: de acondicionar o
sabonete líquido produzido pelo estudante, tendo como laboratório de ciências as
residências dos mesmos.
Uma vez produzido o sabonete os estudantes realizaram à doação na
comunidade onde reside ou abrigos de idosos, familiares e amigos. A produção inicial
do sabonete líquido possibilitou a entrega pelos estudantes do CEA nas comunidades
onde estão inseridos um total de (oito litros), nos Bairro de Santa Terezinha, na Serra
do O8uro, Ferroaço, na Comunidade Ilê Aché Odoiyá, no Parque Havaí, 2 de Julho, e
na Rua do Catu, no Lar de idosos, foram doados 2(dois) litros em cada local totalizando
08(oito) litros do sabonete produzido pelos estudantes, que foram envasados em
embalagens de 200ml, 400ml, 250ml. A produção textual envolveu a criação de
poesia com a temática do afastamento social, a partir da leitura da poesia 'A invenção

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do Abraço', de Silvestrin(2007), escrita de uma carta à comunidade, elaboração do
projeto de pesquisa de iniciação científica da produção do sabonete líquido, dos 04
(quatro) projetos elaborados e enviados, com os seguintes links :

https://docs.google.com/document/d/13uMQu28hBSqQMdo0OB3z9bE
mwqidACC6JmbF-nXgS-Q/edit?usp=drivesdk
https://drive.google.com/file/d/1U2IdtukQ63LQZdeSypB0Ry0qdV2XhPf
0/view?usp=drivesdk
https://drive.google.com/file/d/1-
yeVNEAKwovSJgDjPGM1S03tTgdL7yI2/view?usp=drivesdk
https://drive.google.com/file/d/1U2IdtukQ63LQZdeSypB0Ry0qdV2XhPf
0/view?usp=drivesdk
https://drive.google.com/file/d/1U2IdtukQ63LQZdeSypB0Ry0qdV2XhPf
0/view?usp=drivesdk
Nas tarefa da gincana cada aluno utilizou suas habilidades e capacidades
para criar seu rotulo, nomear, escolher o local para doar o sabonete liquido por eles
produzidos. E na elaboração do projeto de pesquisa da produção do sabonete líquido,
os estudantes descreveram os passos, a partir de um modelo enviado, onde foram
preenchendo de acordo com os passos da iniciação científica. Cada estudante do seu
jeito alcançou o objetivo de produzir um texto científico da pesquisa realizada para obter
o sabonete liquido e entregar na comunidade e assim contribuir para afastar o perigo da
contaminação do novo Coronavírus. Seguindo as propostas de cada tarefa proposta os
estudantes vivenciaram o problema local e analisaram a situação no mundo, com
relação ao .perigo da Covid.19, entendendo assim a necessidade dos cuidados da
higiene das mãos para todos.
Para culminar a gincana online ecológica, sustentável e solidária, o produto
de higienização produzido pelos alunos destinou-se para doação na comunidade onde
vive, para proteger, e evitar a contaminação.
Desse modo os estudantes foram protagonistas na ação de solidariedade, e
como cidadãos conscientes e críticos demonstram seu compromisso de cuidar de si
mesmo, do próximo e do meio ambiente, como mostra as imagens abaixo:

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Considerações Finais

As ações da gincana online, foram desenvolvidas no período de afastamento


social, conseguiu envolver os estudantes e cumpriram aa tarefas, tais como: ações de
leitura, pesquisa, criação de rótulos, poesias, cartas, e alcançar o próximo doando um
produto higienizante nesse momento de pandemia da Covid-19, com o objetivo de

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afastar o perigo da contaminação. Foram ofertados diversos gêneros textuais para
exploração, releituras, e fomentou-se a iniciação científica, via internet, além da
elaboração do projeto de pesquisa da produção do sabonete líquido e doação na
comunidade local. O período de afastamento da escola transformou a prática
pedagógica, e as vidas de todos. Cada vez mais as tecnologias estão presentes em
nossas vidas, é desafio inserir todos nas atividades remotas, mas a possibilidade de
ver acontecer a pesquisa, as diversas leituras, com uma temática tão geral e ao mesmo
tempo particular, pois o mundo inteiro está voltado para o combate ao Corona-vírus. As
aulas remotas contribuíram através da produção do sabonete líquido para o
protagonismo estudantil. mesmo na pandemia a escola conseguiu dar continuidade ao
processo de aprendizagem dos estudantes, manteve o vínculo escola-aluno e
contribuiu-para a disseminação da ideia dos cuidados para não contaminação a partir
dos cuidados com a higiene das mãos, sendo os protagonistas ao realizarem as tarefas
propostas da gincana online e realizar a doação do sabonete por eles produzidos na
comunidade onde vive..

Referências

1.BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei 9394/96. Artigo


1°/1998
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e
Adultos. Brasília, MEC/SEF/COEJA. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br> .

2. CRUZ, Maria de Fátima Berenice da. Memórias de leituras literárias de jovens e


adultos Alagoinhenses (recurso eletrônico) /Maria de Fátima Berenice da Cruz. 2009.

3. OMS. Orientações 2020. Disponível em: <sbpt.org.br/covid-19oms> .

4. SILVESTRINI, Ricardo. A invenção do Abraço. Ática, São Paulo, 2007. Disponível


em: https://www.educacaoetransformacao.com.br

5. VIEIRA, Gina Escola deve cumprir sua função social. Disponível em:
<educacao.integral.org.br/2020 >.

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DIÁLOGOS DA CRIANÇA COM O TEXTO LITERÁRIO:
RELAÇÕES INTERTEXTUAIS

Maria Elisa de Araújo Grossi - Centro Pedagógico da UFMG

Eixo Temático - 10: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entre caminhos do saber/aprender

Considerações iniciais

Este texto traz um recorte de uma pesquisa de Doutorado desenvolvida nos


anos de 2016 e 2017 com crianças do 1º Ciclo de Formação Humana, no Centro
Pedagógico da UFMG. A investigação teve como foco analisar elementos destacados
por crianças do 1º Ciclo nos livros produzidos no ano de 2015 e considerados Altamente
Recomendáveis para crianças pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil
(FNLIJ). Para o processo de coleta de dados, desenvolvemos, com os pequenos
leitores, dinâmicas próximas aos Círculos de Leitura (DANIELS & STEINEKE, 2004;
COSSON, 2014). Como metodologia de pesquisa, utilizamos também o enfoque Dime
(CHAMBERS, 2007), que estimula as crianças a falarem sobre os livros lidos. Na
investigação, reunimos grupos formados por 4/5 crianças, visando à possibilidade de,
num grupo menor de leitores, garantir a gravação de todas as interações, em áudio e
vídeo. Como instrumento de coleta de dados, realizamos também entrevistas individuais
semiestruturadas, com o objetivo de ouvir cada leitor participante. O foco deste texto é
refletir sobre as relações intertextuais que as crianças estabeleciam durante a leitura e
conversação das obras literárias lidas coletivamente. No processo de construção de
sentidos do texto, os leitores em desenvolvimento (HUNT, 2010) aderiram ao pacto
ficcional proposto, enriquecendo os textos com as suas ideias e experiências,
reinventando, assim, o texto lido. Os dados coletados nos ajudam a compreender
melhor a literatura infantil, particularmente no que se refere ao processo de recepção do
pequeno leitor dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

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Tecendo intertextualidades: a voz das crianças

Na investigação, durante os momentos de conversa sobre os livros, as crianças


estabeleciam diálogos com os textos lidos. Uma das relações que os pequenos leitores
faziam era de intertextualidade entre personagens e/ou expressões do livro lido com
algum desenho, filme, série, jogo de computador ou de videogame. Nas interações, os
pequenos leitores, participantes da pesquisa, citaram também jogos que podiam
acessar do próprio celular. Esse processo aconteceu durante os encontros com todos
os seis grupos em que as crianças foram divididas. Foi possível perceber que há uma
similaridade nos desenhos, séries e jogos citados, ou seja, as crianças assistiam
basicamente os mesmos desenhos e se divertiam, possivelmente, com jogos similares
no computador ou celular. A respeito da proximidade da criança com as tecnologias,
Gregorin Filho (2009, p. 12) ressalta:

Se o mundo mudou, se hoje convivemos com novas tecnologias e um


sem-fim de imagens que dialogam conosco na vida diária, seja em
grandes painéis luminosos pelas avenidas, seja nos hipertextos da
internet, é bastante natural que a postura das crianças perante o
mundo que as rodeia seja também outra. Não podemos esperar
leitores como aqueles do início do século XX, devemos mudar a
maneira de ver as necessidades dessa criança leitora de mundo, leitora
de múltiplos códigos e até mais competente com essas novas
tecnologias do que nós mesmos.

As crianças dialogavam, regularmente, sobre jogos de computador, séries,


filmes e desenhos, demonstrando familiaridade com as tecnologias digitais e com os
signos contemporâneos. Segundo Cunha (2009, p. 85), “O mundo no qual estamos é
uma realidade tecida de uma intrincada rede de signos [...]”, e, de acordo com o que
observamos na pesquisa, as crianças estão imersas nesse mundo digital.
A seguir, trazemos dois episódios que revelam como as crianças, leitoras de
múltiplos códigos e signos, estão inseridas nesse universo tecnológico e midiático:

Data: 20/02/2017
[...]
Apple240: E ele também gosta de Minecraft. Eu também jogooo!...
(Fala cantando)
Pesquisadora: Vocês todos jogam? (Confere com as crianças).

240
Os nomes citados nos episódios foram escolhidos pelas crianças para nomeá-las na
pesquisa.
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Apple: Só que eu não gosto muito, porque tem hora que eu saio,
a casinha que eu faço cai.
Pesquisadora: Ahah...
Mayara: E também tem o “Creeper” que estoura a casa todinha.
Quando a gente vai montar, se a gente sair e sobreviver, aí chega o
“Creeper” e estoura a nossa casa toda!
Pesquisadora: Todo mundo aqui joga Minecraft? Joga? Joga? Joga?
(Pergunta cada criança) Todo mundo joga?
X- Tudo: Hum-hum. Eu já joguei uma parte do GTA...241
[...]

Data: 20/02/2017
[...]
Pesquisadora: Olha: “Na casa do malfeitor / Do bandido e do malvado.
/ Quem olha pela janela / Vê o sol nascer quadrado.” (p. 18-19).
Crianças: Hã?... (Sem compreenderem a expressão “ver o sol nascer
quadrado”, da obra O livro das casas. Sem mediação não conseguem
entender a expressão).
Apple: Eu nunca vi o sol nascer quadrado.
Pesquisadora: Vocês já ouviram falar essa expressão?
X-Tudo: Mas ele é quadrado. Eu queria que ele fosse.
Mundo Quadrado: Eu já aprendi uma coisa. O jogo do Minecraft
tem... um soool (ênfase) quadrado!
Pesquisadora: O Minecraft tem sol quadrado?
Mundo Quadrado: Tem. Ele é todo quadradinho.
Apple: E dá pra ver ele caindo... e tem... e tem... jeito de ver a lua
chegando.
X-Tudo: E dá pra voar.
Pesquisadora: É?
Apple: É.
[...]

Os episódios transcritos apresentaram interações em que as crianças falavam


sobre um jogo de computador que foi bastante citado por elas nos encontros: o
Minecraft.242 Um aluno, em particular, comentava regularmente sobre jogos na internet
e é curioso observar que o nome que ele sugeriu para si na pesquisa foi “Mundo
Quadrado”, nome que expressa particularidades relacionadas a esse jogo específico,
formado essencialmente por blocos quadrados e que essa criança jogava com
frequência.
A leitura da expressão “ver o sol nascer quadrado”, presente na obra O livro
das casas, de Ricardo Azevedo, que era lida em conjunto, contribuiu para que uma
criança estabelecesse uma relação intertextual entre uma expressão do livro e o jogo

241
Grand Theft Auto (GTA) é uma série de jogos de computador e videogames. Esse nome é
um termo policial utilizado nos Estados Unidos para identificar roubo de automóveis.
242
Minecraft é um jogo eletrônico tipo sandbox e independente de mundo aberto que permite a
construção usando blocos dos quais o mundo é feito. Foi criado por Markus “Notch” Persson.
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Minecraft, apreciado pelas crianças, de acordo com depoimentos delas na investigação.
Sobre essa relação intertextual, Lajolo & Zilberman (2017, p. 32) realçam:

Intertexto, noção presente nos estudos literários a partir de 1966,


quando Julia Kristeva difundiu a expressão intertextualidade, é a
possibilidade de as manifestações da escrita se apropriarem de
textos anteriores, em processo permanente de citação e
reelaboração. Bastante presente no mundo da literatura impressa, o
intertexto, para fazer sentido, supõe a memória, por parte dos
leitores, da matéria verbal que cita [...].

As relações intertextuais estabelecidas pelas crianças, durante os Círculos de


Leitura realizados, giravam em torno de seus repertórios de textos, textos esses
oriundos do universo midiático e digital. Scholes (1989, p. 26) destaca que ler consiste
em reunir textos. Trata-se de uma atividade construtiva do leitor. As crianças, quando
têm a oportunidade de conversar sobre os textos que leem, revelam que também
realizam essa atividade de reunião de textos. Para conhecer os seus repertórios, é
necessário ouvir o que elas têm a dizer. Vejamos outros episódios nos quais elas falam
de suas experiências de leitura relacionadas ao uso de tecnologias:

Data: 04/04/2017 (Diálogo sobre a obra O caixão rastejante e outras


assombrações de família)
[...]
Pesquisadora: Vamos ver onde que nós estávamos? Coringa, abre
para mim, por favor? (Crianças passam as páginas do livro procurando
onde o grupo havia parado). Chama “A casca” (Refere-se ao título do
conto). O que vocês tão vendo aqui então?
Arlequina: Um gato no tapete (p. 61).
Mc Kekel: Igual o que eu te mostrei. Igual eu te mostrei ontem no
celular da minha avó.
Pesquisadora Oi? Ah é. Você tava falando sobre isso. Você viu no
celular? O que vocês gostam de ver no celular, pessoal?
Arlequina: Eu gosto de ver desenho e ouvir música.
Pesquisadora: Tem desenho no celular, tem?
Moana: Tem.
Pesquisadora: Você também vê, Moana? Qual desenho você vê no
celular?
Arlequina: Masha e o urso.
Pesquisadora: Hã?
Arlequina: Não é marcha de carro.
Moana: É bem melhor.
Coringa: O que eu gosto é de DPA.
Arlequina: DPA é Detetives do Prédio Azul. (Já explica à
pesquisadora)
Pesquisadora: Ah, você já falou nisso aqui. No celular dá para ver?
Arlequina: Dá pra jogar ele, tem um caderninho.
Mc Kekel: No YouTube...
[...]

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Nesse episódio acima, as crianças citam desenhos, séries e filmes, 243
disseminados na mídia, além de nomearem sites da internet que acessam com
facilidade, como o YouTube. Esses textos e suportes faziam parte do universo de
leituras das crianças. Para Rösing (2009, p. 130), “a concentração de suas energias se
revela na interação com os multimeios em toda a sua variedade e complexidade.”
Durante a investigação, as crianças revelaram familiaridade com esses multimeios e
conversavam sobre eles.
Vejamos outros episódios que nos ajudam a perceber as relações de
intertextualidade que as crianças faziam entre o livro lido e personagens de filmes,
desenhos ou séries:

Figura 1 – Pássaros, p. 18-19

Fonte: As cores dos pássaros, digitalizado pela pesquisadora.

Data: 06/04/2017
[...]
Arlequina: Tá me lembrando todos os pássaros brancos querendo
pintar. Acharam muito lindo o canarinho.
Pesquisadora: (Passa as páginas para 18 e 19 e diz) Oh!!...
Coringa: Agora... agora... pera aí. Isso aqui tá parecendo o Blu. (Ao
ver as imagens das aves nas páginas 18 e 19. O Blu é um personagem
do filme Rio). 244
Moana: É.
Pesquisadora: Qual é o nome do filme que tem o Blu?
Coringa: Rio.
Arlequina: Rio 2 e Rio 1.
Mc Kekel: Rio 2 é o que eles têm filho.
Coringa: No 1 mostra eles casando.
Pesquisadora: É?
Coringa: Eu já vi o 1. Mostra eles casando. É engraçado demais.
[...]

243
Detetives do Prédio Azul é uma série de TV brasileira exibida pelo canal de televisão Gloob.
Em 20 de julho de 2017, foi lançado o filme e as crianças comentavam sobre isso durante a
pesquisa.
244
O filme Rio foi lançado em 8 de abril de 2011. Rio 2 foi lançado em 27 de março de 2014.
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O filme citado acima suscitou um diálogo interessante entre as crianças, que
demonstraram apreciar o seu enredo, qualificando-o como “engraçado”. Ao ver as
imagens das araras no livro As cores dos pássaros, que foi escolhido pelos pequenos
leitores para ser lido coletivamente, uma criança diz que elas se parecem com Blu,
personagem do filme Rio. As outras crianças concordaram e continuaram a dialogar
sobre o filme, narrando alguns episódios e ações de personagens.
Esse visível interesse das crianças pelas mídias nos instigou a buscar por
estudos atuais sobre o conceito de intermidialidade (RAJEWSKY, 2012), que apresenta
várias concepções. O termo surge nos anos 1990, na Alemanha, país que possui maior
acúmulo no assunto. Buscando esclarecer um pouco mais o conceito, a autora ressalta:

Nesse sentido a intermidialidade pode servir antes de tudo como um


termo genérico para todos aqueles fenômenos que (como indica o
prefixo inter) de alguma maneira acontecem entre as mídias.
“Intermidiático”, portanto, designa aquelas configurações que têm a ver
com um cruzamento de fronteiras entre as mídias [...] (RAJEWSKY,
2012, p. 4, grifo do autor).

Ao que nos parece, o conceito de intermidialidade é um refinamento do


conceito de intertextualidade, porém para se referir ao diálogo entre textos das mídias.
Trata-se de um conceito amplo, relativamente novo no Brasil, que cobre uma variada
extensão de temas a serem aprofundados nesses tempos de expansão da comunicação
digital. Acreditamos que se trata de um conceito que merece ser estudado em pesquisas
sobre literatura.
A seguir, outros episódios que também revelam as relações de
intertextualidade com personagens, desenhos e séries desenvolvidas pelas crianças:

Data: 10/04/2017 Conversa sobre o livro Nino, o menino de Saturno


[...]
Coringa: Ah! Agora eu sei porque essa prancha é boa! Porque ela tem
o motor aqui e o motor fica saindo aqui… Que ele deve ter montado
alguma coisa.
Arlequina: Ô Coringa, ninguém viu esse cara, mas ninguém sabe
como... ou deve ser como o pintor pintou deve ser que ele não pôs
motor. Parece que ele voa com pozinho mágico.
Pesquisadora: Será que é pó mágico?
Coringa: Mas pozinho mágico ia aparecer um tanto de bolinha
assim oh… onde que ele estava (Faz o gesto com a mão).
Arlequina: Não...
Coringa: (Interrompe o colega com sua fala). Ia sim. Tipo o Peter Pan.
Quando ele voa, as bolinhas ficam…
Arlequina: Aqui devia tá saindo um fogo aqui, porque quando vai
rápido, sai fogo.
Mc Kekel: Igual o Flash . O Flash não é fogo. É só um negócio assim.

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Pesquisadora: Quem?
Coringa: O Flash.
Pesquisadora: Quem é Flash?
Arlequina: Flash é um cara…
Moana: Flash é um cara...
Coringa: Se o Flash tiver aqui, num minuto não vai dar nem pra
contar que ele já tá lá.
Pesquisadora: Quem é Flash?
Arlequina: Flash é um homem...
Moana: E ele é muuito rápido.
Arlequina: É que parece um raio. É só a gente... se a gente tá lá
distraído, e a gente vê a cabeça e fala assim “Flash”, aí ele tá lá
longe.
Pesquisadora: Nu! Num minuto ele vai? Onde vocês assistem isso?
Mc Kekel: Ano passado passava na Globo antes.
Pesquisadora: É?
Mc Kekel: Ontem eu fui na casa da minha tia e da minha avó e eu
vi uma corrida do Flash e do Flash Reverso (Conta sobre o episódio
de Flash)
Arlequina: Mas o Flash do bem, ele é vermelho com amarelo…
Coringa: Não é não. O do mal, o do mal que é vermelho. O Flash do
bem, ele é todo azul com branco.

Durante a conversação e leitura do livro Nino, o menino de Saturno, numa


cena em que aparece o personagem principal surfando pelo espaço numa prancha de
surf, as crianças se lembram de Peter Pan, que “voa com pozinho mágico” e conversam
também sobre um personagem que se chama Flash, “que parece um raio”, protagonista
de uma série americana, que se destaca pela habilidade de locomoção. Observa-se que
o aspecto maravilhoso presente nos livros, nos filmes, desenhos e nas séries atrai a
atenção da criança: o personagem que surfa no espaço, o menino que voa e vive na
Terra do Nunca, o herói que é rápido como um “flash”. A criança reúne esses textos
mágicos do livro, das séries e filmes e dialoga com eles. Esse aspecto fantástico dos
textos ainda fascina e desperta o interesse das crianças. Sobre a literatura fantástica,
Coelho (2000, p. 52) ressalta:

Em seus primórdios, a literatura foi essencialmente fantástica: na


infância da humanidade, quando os fenômenos da vida natural e as
causas e os princípios das coisas eram inexplicáveis pela lógica, o
pensamento mágico ou mítico dominava. Ele está presente na
imaginação que criou a primeira literatura: o dos mitos, lendas, sagas,
cantos, rituais, contos maravilhosos, etc.

Como observado em muitas interações, as crianças referiam-se


frequentemente a personagens, heróis e vilões de filmes, de desenhos e também de
jogos de computador. Essa natureza fantástica, característica da literatura infantil,
também é utilizada nos roteiros de filmes, séries, desenhos e jogos, por isso seduz as

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crianças que, segundo dados da pesquisa, se identificam continuamente com alguns
personagens. Segundo Coelho (2000, p. 20, grifo da autora), “os grandes heróis
aventureiros, os tipos corajosos, invencíveis, verdadeiros super-homens da literatura
infantil hoje se transformaram nos supermen que invadiram as histórias em quadrinhos
e os filmes da TV.” Essa narrativa do herói ainda é muito utilizada pela mídia e, de
acordo com os dados, agrada as crianças.
No próximo episódio, uma criança lembra-se de “Gargamel”, um dos vilões do
filme Os Smurfs:

Figura 2 – Gustav Klimt e Gargamel

Fonte: Nino, o menino de Saturno, digitalizado pela


pesquisadora.

Data: 11/04/2017
[...]
Pesquisadora: (Lê o texto) “E, antes que / um Nino feliz / [...] para você
colorir os anéis de seu planeta”. (p. 26 e 27). Vamos ver, hein? (Passa
as páginas) Tchan, tchan, tchan, tchan!...
Arlequina: Parece um vestido (Observa a roupa do personagem, p.28
e 29).
Mc Kekel: Tá parecendo o Gargamel, com isso aqui, isso aqui, isso
aqui… (Mostra a roupa e detalhes da cabeça)
Pesquisadora: Quem é Gargamel?
Arlequina: Dos Smurfs.
Coringa: Não, tá parecendo o pai do Gargamel (Sorri).
[...]

Durante a leitura do livro Nino, o menino de Saturno, ao ver um personagem


com um camisolão, que representava o pintor Gustav Klimt, uma criança lembra-se de
Gargamel, vilão do filme Os Smurfs. É interessante observar que Gargamel, segundo
disseram as crianças, assim como o pintor que aparece no livro, também possui um
gato, o Cruel. Os pequenos leitores realizavam relações de intertextualidade com os
textos que fazem parte de seus repertórios culturais, identificando, inclusive,
semelhanças físicas entre personagens. A esse respeito, Eco (2005, p. 142) destaca:

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“Cada ser humano vive dentro de um certo modelo cultural e interpreta a experiência
com base no mundo de formas assuntivas que adquiriu [...]”.
Outra série muito citada nos diálogos das crianças, mesmo nos momentos em
que nos deslocávamos para a biblioteca, e que fazia parte do repertório cultural dos
leitores participantes foi “Miraculous: As Aventuras de Ladybug.”245 Vejamos a interação
a seguir:

Data: 11/04/2017
[...]
Coringa: Olha! Tem uma tartaruga aqui (Ao observar a imagem do livro
Nino, o menino de Saturno, p. 36)
Pesquisadora: Tartaruga? (E confere a imagem).
Arlequina: A tartaruga da Ladybug.
Pesquisadora: De quê?
Arlequina: A tartaruga da Ladybug. (Repete)
Pesquisadora: O que é isso?
Coringa: Tá parecendo a tartaruga do Andybug que é do mal. Sabe a
tartaruga preta? É essa.
Pesquisadora: Eu estou precisando assistir desenho hein, gente? Eu
tô por fora...
Moana: (Sorri).
Pesquisadora: Esse da tartaruga chama como?
Arlequina: Ladybug.
Pesquisadora: Como que escreve?
Arlequina: Eu não sei
Pesquisadora: Vocês sabem?
Coringa: Eu só sei que aparece o Cat Noir e a...
Moana: Tem o “Potcat”.
Pesquisadora: É um gato?
Crianças: É.
Pesquisadora: É que “cat” em inglês é gato. Pessoal… (E retoma a
leitura) “Eu, o que lhe ofereço, meu menino [...] (Barulho de sinal) pra
colorir seus anéis”.
(Crianças conversam sobre o desenho do Cat Noir. Arlequina imita sua
voz, conta alguns episódios de que gostou... fala da parte que o
personagem beijou na boca da Ladybug… Todas as crianças
participam do diálogo, animadas, demonstrando que também assistem
à série).

As crianças contavam episódios da série e as peripécias dos heróis como


Ladybug e Cat Noir com bastante alegria. Foi possível perceber novamente que, assim
como acontece a identificação por personagens dos livros infantis, essa identificação
acontecia também com os protagonistas dos desenhos, séries e filmes citados nas
interações. Como já destacava Held (1980, p. 85), “projetar-se no herói, partilhar de
suas angústias e de seus perigos... permanecendo, no entanto, você mesmo”. (HELD,

245
“Miraculous: As Aventuras de Ladybug é uma série de animação nipo-franco-coreana, que
estreou, no Brasil, em 7 de março de 2016.

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1980, p. 85). Era com entusiasmo e emoção que as crianças dialogavam
frequentemente sobre esses mundos ficcionais midiáticos. Segundo Colomer (2017, p.
11), “a ficção narrativa ocorre também por meio dos meios orais e audiovisuais; as
funções de entretenimento e participação criativa estão encontrando uma nova via de
desenvolvimento na multimídia e nos jogos de mesa.” A pesquisa mostrou que esse é
um fenômeno profundamente significativo para as atuais gerações e merece,
certamente, ser alvo de futuras investigações.

Considerações finais

A investigação revelou que as crianças, durante a conversação sobre os livros


lidos nos pequenos círculos de leitura, estabeleciam relações entre partes das obras,
cenas e personagens com os desenhos, as séries e os filmes a que assistiam em casa.
Como podemos perceber nos episódios transcritos, as declarações das crianças
revelam traços da cultura infantil contemporânea, cercada de produtos culturais
disponibilizados nas mídias e marcados pelo movimento e dinamicidade.
As narrativas contemporâneas como séries, desenhos e jogos de computador
trazem novas configurações que combinam imagens, sons e palavras (COSSON, 2014,
p. 18). Essas obras complexas e difíceis de serem analisadas, devido ao hibridismo que
apresentam, atraem a atenção das crianças em razão de suas características básicas
que, em geral, articulam aspectos que despertam a sua atenção e interesse: cores,
sons, movimentos e muitas imagens.
Quando conversamos com as crianças sobre os livros de literatura, elas
compartilham conosco as suas experiências de leitura que ultrapassam o circuito
escolar e revelam os seus repertórios culturais. Assim, ao compartilhar com o outro as
suas singulares experiências, os pequenos leitores estabelecem relações de
intertextualidade com os textos que fazem parte de seus repertórios. Durante a
pesquisa, elas relacionaram os livros lidos com filmes, séries, jogos eletrônicos, dentre
outros produtos culturais a que têm acesso. Contribuindo nessa discussão, Lajolo &
Zilberman (2017, p. 52) acreditam que as novas ferramentas e linguagens da cultura
digital abrem perspectivas inusitadas para o mundo do livro e da leitura. Que
perspectivas seriam essas? Estamos preparados para dialogar com essas crianças,
leitoras da era digital? Que produtos culturais fazem parte de seus repertórios e como
isso influencia as novas formas de ler? Estas são algumas das questões que a
investigação realizada suscitou e que nos convidam ao desenvolvimento de pesquisas
futuras.
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Referências

COELHO, N. N. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.
288 p.

COLOMER, T. Introdução à literatura infantil e juvenil. Trad. Laura Sandroni. São


Paulo: Global, 2017. 336 p.

COSSON, R. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014. 192
p.

CUNHA, M. Z. Na tessitura dos signos contemporâneos: novos olhares para a


literatura infantil e juvenil. São Paulo: Editora Humanitas; Paulinas, 2009. 232 p.

DANIELS, H; STEINEKE, N. Mini-lessons for literature circles. Portsmouth: Leigh


Peake, 2004. 292 p.

ECO, H. Obra aberta: forma e indeterminações nas poéticas contemporâneas. 9. ed.


Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2005. 286 p.

GREGORIN FILHO, J. N. Literatura infantil: múltiplas linguagens na formação de


leitores. São Paulo: Melhoramentos, 2009. 128 p.

HELD, J. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. Trad. Carlos


Rizzi. São Paulo: Summus, 1980. 240 p.

HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify,
2010. 328 p.

LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993. 112
p.

LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira: uma nova/outra história.


Curitiba: PUC Press, 2017. 152 p.

RAJEWSKY, I. O. Intermidialidade, intertextualidade e remediação: uma perspectiva


literária sobre a intermidialidade. In: DINIZ, T. F. N. (Org.). Intermidialidade e estudos
interartes: desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte, MG: Editora da UFMG,
2012. p. 15-45.

RÖSING, T. M. K. Do currículo por disciplina à era da educação-cultura-tecnologia


sintonizadas: processo de formação de mediadores de leitura. In: SANTOS, F. dos;
NETO, J. C. M.; RÖSING, T. M. K. (Org.). Mediação de leitura: discussões e
alternativas para a formação de leitores. São Paulo: Global, 2009. p. 129-155.

SCHOLES, R. Protocolos de Leitura. Trad. Lígia Gutterres. Rio de Janeiro: Edições 70,
1989. 168 p.

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O PROJETO MALA DE LEITURA DA UFMG: TECENDO AÇÕES
DE INCENTIVO À LEITURA LITERÁRIA E FORMAÇÃO DE
MEDIADORES

Maria Elisa de Araújo Grossi, Centro Pedagógico da UFMG


Patrícia Barros Soares Batista, Centro Pedagógico da UFMG

Eixo Temático: 10 - Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entre caminhos do saber/aprender

Considerações iniciais
Meu avô, sem se dar conta,
vinha se assentar junto de nós
e escutava, com admiração,
minha avó nos encantar com rainhas, deusas, mancebos,
heróis cheios de brilhos e vitórias.

Por parte de pai


Bartolomeu Campos de Queirós

A literatura é uma parte significativa do patrimônio cultural da humanidade, por


isso, direito de todo cidadão (CÂNDIDO, 2011). São inúmeros os estudos que
evidenciam as potencialidades da leitura literária no processo de formação social,
emocional e cognitivo de crianças e jovens (PAULINO, 1992; LAJOLO, 1993; SOARES,
1999; ZILBERMAN, 2003). As pesquisas ressaltam, em sua maioria, o caráter
humanizador da literatura e sua contribuição como canal de inserção de sujeitos
pensantes no mundo. Para Cademartori (2009, p. 21), a literatura promove o
alargamento de horizontes. O texto literário nos permite pensar sobre a vida e sobre os
processos que nos humanizam.

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Colomer (2017, p. 19-20) destaca que os textos literários apresentam as
seguintes funções: a) Iniciar o acesso ao imaginário; b) Desenvolver o domínio da
linguagem através das formas narrativas, poéticas e dramáticas do discurso literário; c)
Oferecer uma representação articulada do mundo. A autora destaca a relevância do
texto em nosso processo de formação. Por meio da literatura, abrimo-nos ao imaginário
e penetramos no bosque da ficção (ECO, 2004).
Promover ações que incentivam a leitura literária é contribuir para a democracia
cultural e socialização dos direitos básicos. Dentre eles, destaca-se a literatura, tipo de
texto que tem a capacidade de tornar o ser humano mais compreensivo e tolerante em
relação ao outro, uma vez que os textos literários evidenciam a diversidade e
complexidade humanas. Aproximar-se do outro é aproximar-se do estranho, do
excluído, do diferente, fomentando a capacidade humana de pensar com alteridade,
desconsiderando as barreiras do tempo e do espaço. Assim, “o autor literário abre seu
discurso ao outro” (PAULINO, 2003, p. 14). Quando abrimos um livro e compartilhamos
a leitura com o outro, permitimos a possibilidade de conhecer novas perspectivas e
diferentes visões de mundo.
No que se refere especificamente às crianças, público ao qual a maioria das
ações do Projeto se destina, Abramovich (1997) destaca que, quando ouvem histórias,
elas passam a perceber com mais clareza os sentimentos que têm em relação ao
mundo. Em geral, as histórias abordam temáticas próprias da experiência humana,
como medos, curiosidade, dor, perda, tristeza, alegria, dentre outros. Ler sobre esses
assuntos pode trazer certo conforto às crianças.

É através de uma história que se pode descobrir outros lugares, outros


tempos, outros jeitos de agir e de ser, outras regras, outra ética, outra
ótica... É ficar sabendo história, filosofia, direito, política, sociologia,
antropologia, etc., sem precisar saber o nome disso tudo e muito
menos achar que tem cara de aula (ABRAMOVICH, 1997, p. 17).

A literatura é, pois, fonte de conhecimento, e, nessa perspectiva, o trabalho de


mediação entre o leitor e o livro exige estudo e planejamento. Uma boa mediação
permite o estabelecimento de elos, conexões e relações entre elementos próprios do
texto literário. Mediar significa compartilhar leituras com o outro, interagir, refletir sobre
o que se lê. Reyes (2014, p.213) afirma que os mediadores de leitura “estendem pontes
entre os livros e os leitores, ou seja, que criam as condições para fazer com que seja
possível que um livro e um leitor se encontrem”.

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Quando visitamos algumas escolas, observamos que é comum os livros
didáticos circularem nas salas de aula, porém nem sempre os livros literários têm o
mesmo espaço. Alguns professores afirmam que não há tempo para se trabalhar com
literatura, como apontou o estudo realizado por Almeida (2011). Entendemos que o livro
de literatura pode e deve ser objeto presente nas salas de aula, como forma de facilitar
a inserção plena do leitor no universo da leitura literária.
A leitura literária demanda liberdade, tendo como único limite o respeito pela
leitura do outro, que tende a apresentar singularidades. Para de fato ocorrer uma leitura
literária, as preferências de cada um devem ser respeitadas. A mediação da leitura
literária deve buscar incitar a imaginação de cada leitor no pacto com o texto, abrindo
novas possibilidades para que a criança estabeleça interações cada vez mais
significativas com o mesmo. Para isso, o mediador de leitura precisa ser um leitor
sensível e perspicaz, criar rituais e atmosferas propícias para facilitar os encontros entre
os livros e os leitores (REYS, 2014, p.213).

Os caminhos do Projeto Mala de Leitura

Pensando nas contribuições da literatura infantil no desenvolvimento social,


emocional e cognitivo dos sujeitos, e de sua importância no processo de formação do
leitor, três professoras do Núcleo Básico do Centro Pedagógico da Escola de Educação
Básica e Fundamental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 246 criaram,
em 1997, o Projeto de Ensino e Extensão247 Mala de Leitura, apoiado pela Pró-Reitoria
de Extensão (PROEX/UFMG), tendo como referência as suas práticas de abordagem
do texto literário em suas salas de aula.
O Projeto, atualmente, continua suas atividades por meio de professores que
atuam no Primeiro Ciclo de Formação Humana do Centro Pedagógico. A equipe conta
também com duas bibliotecárias e uma bolsista que recebe uma bolsa da Pró-Reitoria
de Extensão, além de uma bolsista voluntária. Professoras e bolsistas atuam nas salas
de aula das turmas dos anos iniciais do Centro Pedagógico, em escolas públicas de
Belo Horizonte e em comunidades parceiras do Projeto e com pouco acesso a livros.
O Projeto Mala de Leitura da UFMG visa incentivar a leitura literária por meio
da leitura e da contação de histórias. O objetivo é levar a literatura ao público em geral,

246
Mônica Dayrell, Narriman Conde e Mirian Chaves. As docentes se aposentaram, mas o
Projeto permanece na ativa.
247
Atualmente, o Projeto também se constitui com uma ação de pesquisa.
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em especial o infantil. Há também uma preocupação em proporcionar momentos
significativos de interação do leitor com o texto, que se reflete na possibilidade de
manusear os livros após o momento da leitura ou da contação. Bamberger (2008)
enfoca a importância de a criança ouvir muitas histórias e do contato dela, desde cedo,
com o livro, estratégia para desenvolver o gosto pela leitura. Essa ação de manuseio da
obra possibilita uma maior interação entre o leitor e o livro.
Neste sentido, acredita-se que, quanto mais cedo a criança tiver contato com
os livros e perceber o prazer que a leitura produz, maior será a probabilidade dela tornar-
se um adulto leitor. Da mesma forma, por meio da leitura, a criança adquire uma postura
crítica e reflexiva, extremamente relevante a seu processo de formação, uma vez que é
incentivada a pensar sobre o que lê pelos mediadores.

Entre livros e leitores: percurso metodológico

O Projeto Mala de Leitura se organiza a partir de diferentes eixos de ação. A


primeira ação é um subprojeto intitulado “Histórias para se ouvir”, que consiste na leitura
e/ou contação de histórias para o público participante – majoritariamente crianças de
escolas públicas de Belo Horizonte. Para essa ação, a equipe utiliza malas decoradas
com recortes de livros de catálogos de editoras, formando um grande mosaico de cores
que, ao ser visto de perto, apresenta ao público inúmeros títulos de obras literárias. A
intenção é despertar o interesse dos ouvintes por descobrir o que há dentro da mala
diferente e colorida, buscando-se instigar o desejo de leitura do público.
O Projeto Mala de Leitura conta com um acervo próprio constituído por livros
de literatura infantil e juvenil, de diversos gêneros literários: contos, poesia, teatro,
crônicas, dentre outros. O acervo vem sendo ampliado gradativamente ao longo dos
anos de desenvolvimento do projeto. No início, contou com a doação de exemplares do
acervo pessoal das fundadoras, e, por meio dos contatos que essas realizavam, foram
surgindo doações de editoras e pessoas que, de alguma forma, conheceram e apoiaram
o projeto.

Figura 1 – Malas do projeto decoradas.

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Fonte: Arquivo das autoras.

Figura 2 –
Algumas das
obras do
acervo do
Projeto.

Fonte: Arquivo das autoras.

Para o momento de leitura e/ou contação de histórias, as malas circulam com


aproximadamente 40 livros. A quantidade de obras, bem como a seleção dos títulos
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depende do público que será contemplado. Para o atendimento às escolas, em salas
com 25 crianças, esse número tem se mostrado ideal. Prioriza-se colocar na mala uma
diversidade de gêneros textuais, para que haja um incentivo à leitura de todos os tipos
de textos. As visitas da mala às instituições parceiras acontecem quinzenalmente e são
organizadas junto à coordenação pedagógica. Os dias e horários são fixos e fazem parte
da rotina do público atendido.
No Centro Pedagógico da UFMG, local de origem do Projeto, a mediação
acontece na biblioteca infantil da escola ou nas salas de aula. A mediadora 248 prepara
o espaço com chitas coloridas e a mala de livros e espera pelos participantes. Organiza-
se um horário para que todas as turmas dos anos iniciais do Ensino Fundamental
possam ser contempladas com a atividade.
Ao iniciar a ação, as mediadoras cantam alguma música de abertura, abrem a
mala e leem ou contam uma história. Ao término da história, mediadora e público
conversam sobre a obra, sobre os personagens, as marcas de espaço e tempo das
narrativas, dentre outros assuntos relacionados ao enredo abordado. Cria-se um clima
de troca de impressões, o que contribui para dar sentido à leitura. “O leitor, instigado
pelo texto, produz sentidos, dialoga com o texto que lê, seus intertextos e seu contexto
[...]” (WALTY, 2003, p. 52).
Após a conversa sobre o livro, a mala é novamente aberta. Cada leitor escolhe
um livro que deseja ler, manusear ou simplesmente folhear. “A emoção de escolher o
livro faz parte do ritual da leitura” (CASA NOVA, 2003, p. 107). O importante é que haja
o contato das mãos e dos olhos com os textos verbais e as narrativas visuais. O
Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (RCNEI, 1998) ressalta a
importância do manuseio de livros e de outros suportes pelas crianças, pois, assim, ela
vai conhecendo, de forma gradativa, as características formais da linguagem.
Entretanto, no cotidiano escolar, muitas vezes, é possível perceber um receio ao
manuseio de livros, devido ao medo de que eles se estraguem. Nossa experiência tem
demonstrado que os leitores em formação só aprenderão a ter cuidado com as obras
literárias se estiverem em contato contínuo com elas. Nesse momento de aproximação
com o livro, elas aproveitam para explorar e observar as imagens, os detalhes da capa,
do título, do projeto gráfico, dentre outros elementos. Essa íntima relação com o livro,
que o Projeto proporciona, é observada pela equipe como fator que contribui no
processo de formação do leitor.

248
A maioria da equipe é composta por mulheres, por isso, optamos por utilizar o termo no feminino.
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Figura 3 – Escolha e leitura das obras da mala.

Fonte: Arquivo pessoal das autoras.

No caso da ação nas escolas, os pequenos leitores conversam sobre as obras,


mostram e comentam trechos e ilustrações aos colegas, sorriem de determinada cena,
enfim, gostam de compartilhar as suas impressões a respeito das obras. A interação
que se estabelece entre os leitores contribui para a discussão do texto e para o
compartilhamento de impressões sobre a obra.
Outra ação importante do Projeto Mala de Leitura é o subprojeto “Veredas de
Histórias”, em parceria com a rádio da Universidade – Rádio UFMG Educativa (104,5
FM) – que consiste na gravação de histórias variadas que vão ao ar, diariamente, às
9h45min. A intenção da parceria, que se iniciou em 2007, é fazer com que um número
maior de pessoas tenha acesso à leitura literária. Além dos membros que atuam no
Projeto, alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental também participam da ação de
leitura de histórias na rádio.
Além das ações apontadas, o Projeto Mala de Leitura atua também no campo
da formação e, assim, realiza colóquios anuais de formação de mediadores de leitura.

Os percursos do Projeto

O Projeto Mala de Leitura tem possibilitado aos leitores o acesso ao livro como
entretenimento e como momento de interação, uma vez que estimula o diálogo entre os
participantes e os mediadores. A atuação do Projeto nas escolas e comunidades tem
demonstrado para a equipe como o público aprecia ouvir histórias, pela forma como se
envolve na ação.

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Em algumas instituições públicas de Belo Horizonte, a parceria acontece há
muitos anos, o que permite que várias gerações de crianças participem dos momentos
de leitura e/ou contação de histórias proporcionados pelo Projeto.
Nas escolas em que atua, é possível perceber que o Mala de Leitura contribui
também com o processo de formação dos professores das turmas nas quais ele é
desenvolvido. Os docentes que participam sentem-se motivados a estimular a leitura
entre os alunos, interessam-se pelos livros lidos em sala de aula e procuram enriquecer
suas próprias histórias de leitura. Aos poucos, eles se apropriam também de nomes de
obras, autores e maneiras de abordagem do texto literário.
É possível perceber que as crianças começam a buscar, na biblioteca de sua
escola, os livros lidos em sala de aula pela equipe do Projeto. Segundo depoimento dos
professores, nos textos que produzem, os alunos incorporam um vocabulário
diferenciado, que adquirem por meio das histórias, ampliando suas habilidades
possibilidades de escrita de textos.
Além da atuação na sala de aula, junto aos alunos e em comunidades, o projeto
promove encontros anuais de formação para educadores, graduandos e outros
profissionais, abordando temas relacionados à leitura literária. Em 2008, foi realizado o
I Colóquio, em comemoração aos 10 anos do Projeto. Em 2011, realizou-se o II
Colóquio, com participação de professores da Educação Básica, auxiliares de biblioteca
e graduandos da UFMG interessados em literatura. O tema abordado no encontro foi A
leitura literária na escola. No ano de 2012, organizou-se o III Colóquio, que discutiu o
tema Literatura e Diversidade. O IV Colóquio aconteceu no ano de 2013 e teve como
tema Práticas de leitura literária. Em 2014, o tema discutido no V Colóquio foi A arte de
contar histórias. O VI Colóquio, realizado em 2015, trouxe para discussão O diálogo
entre literatura e música. No VII Colóquio, o público pode refletir sobre A literatura de
cordel e seus encantamentos. Os 20 anos de literatura na mala foram comemorados no
VIII Colóquio, que realizou momentos de diálogo com duas fundadoras do Projeto249.
Tivemos também a participação de um ex-bolsista, que trouxe depoimentos relevantes
sobre como as ações do Projeto Mala de Leitura impactaram em sua trajetória
profissional. No IX Colóquio, realizado em 2018, refletimos sobre A formação de
mediadoras (es) de leitura literária. Em 2019, o tema foi A literatura afro-brasileira na
escola. Esses eventos se propuseram a criar processos de formação dentro de um
ambiente intimista, com mesa redonda e oficinas, permitindo a participação de
diferentes profissionais e outras pessoas interessadas em literatura e preocupadas em

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Narriman Conde e Mirian Chaves.
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fomentar a leitura literária. O Colóquio tem garantido espaço de troca e de
aprendizagens entre educadores, bibliotecários, estudantes de graduação de diversas
áreas e demais interessados em literatura.
É importante destacar o caráter de formação do aluno bolsista e o seu efetivo
envolvimento nas diversas frentes de trabalho do Projeto. É possível afirmar que as
ações do Projeto promovem a formação contínua da equipe, visto que envolve
intervenções diversificadas em torno da literatura, tema que exige aprofundamento
teórico permanente daqueles que se interessam por ele. Como a literatura é um assunto
complexo, sentimo-nos profundamente instigados a buscar por leituras no campo com
o objetivo de aprimorar as nossas ações.
Tendo em vista a importância da literatura que nos permite não “só saber da
vida por meio da experiência do outro, como também vivenciar essa experiência”
(COSSON, 2014, p.17), e reconhecendo a importância da literatura no processo de
formação humana, este projeto de extensão busca contribuir para a ampliação das
experiências literárias, possibilitando, assim, a formação de comunidades de leitores
literários.

Considerações finais

O texto literário apresenta características bem específicas. O autor de literatura


recria experiências, reinventa a realidade e a expressa por meio de uma linguagem
artisticamente trabalhada, de modo a incentivar o leitor a imaginá-la. O texto literário
distingue-se de outros porque possibilita uma multiplicidade de leituras, característica
que favorece a reflexão e a formação do pensamento crítico, por isso a sua relevância.
Ter acesso à literatura significa buscar novos modos de compreender a
realidade, estar aberto ao imaginário e a outras vozes, ou seja, ampliar a visão de
mundo. Assim, ler textos literários é indispensável a todo cidadão.
O Projeto Mala de Leitura do Centro Pedagógico da UFMG possibilita a
experiência do leitor com o livro literário e não com fragmentos de textos. Formar leitores
não é uma tarefa fácil, por isso, acreditamos que ter acesso ao livro é uma iniciativa
interessante. Sabe-se que não nascemos leitores, mas nos formamos leitores ao longo
da vida, por meio das experiências literárias.
Nos momentos em que as malas são abertas e os participantes escolhem os
livros para ler, acontece um interessante processo de interação entre livro e leitor e
poder proporcionar esse encontro nos motiva a seguir com as ações do Projeto Mala de

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Leitura. Observar os leitores discutirem o conteúdo do texto, levantarem hipóteses sobre
o enredo, antecipar informações a partir da capa, comentar ilustrações e imagens,
relacionar as narrativas com suas histórias de vida permite refletir sobre a potencialidade
do texto literário. E acreditamos que o acesso aos livros é um passo importante em
nossa trajetória de leitor.
Ressaltamos a relevância social do Projeto Mala de Leitura por entender que
as ações propostas expressam o compromisso da universidade pública com a
democratização da leitura, com o processo de formação de leitores e de novos
mediadores de leitura. Por meio de suas frentes de atuação, busca-se ampliar as
parcerias internas e externas à UFMG, de modo a garantir a todos o direito à literatura.
Acreditamos na relevância social do Projeto que visa à promoção da leitura
literária proporcionando aos leitores em formação (HUNT, 2010) um repertório
imaginativo cada vez mais amplo, proporcionando, cada vez mais, experiências
estético-literárias.
Como resultado das reflexões advindas da prática do projeto Mala de Leitura,
podemos afirmar que é fundamental termos um olhar atento sobre o que é o encontro
dos leitores com os livros. Além disso, perceber as reações e movimentos que uma
narrativa pode suscitar neles é a premissa fundamental do processo de mediação. Para
Patte (2012), o livro é objeto e a leitura é experiência. É possível perceber que a obra
literária proporciona experiências de partilha, dado que a literatura é como um encontro
com o outro, tal qual já assinalamos anteriormente. A leitura é tempo, tempo do relato e
do encontro com o adulto próximo, assim, “terminada a história, o livro é fechado. Fica
qualquer coisa na vida compartilhada em família, nas escolas e bibliotecas” (PATTE,
2012, p. 128).
.

Referências

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Scipione, 1997.

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criança. Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/artigos/1155823>.
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ZILBERMAN, Regina. Livros e leitura entre professores e alunos. Revista Leituras.
Brasília, p. 23-25. Nov. 2006. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br
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A PALAVRA ALGO: UMA PROPOSTA DE LEITURA
INTERDISCIPLINAR PELO MÉTODO RECEPCIONAL

Neide Biodere, IFPR - Campus Ivaiporã.


Diana Patrícia Ferreira de Santana, IFPR - Campus Jaguariaíva.

Eixo Temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender

“A literatura nos coloca perante a nossa própria existência” (Luci Collin)

As experiências educacionais com a literatura demonstram problemas que vão


desde a propostas didáticas, dificuldades com a participação e envolvimento do
estudante nas aulas da leitura com textos literários, o que leva os pesquisadores a
pensarem sobre as falhas e fragilidades das propostas pedagógicas na área,
preocupados com esse distanciamento dos estudantes, que perdem um dos seus mais
importantes direitos ao conhecimento que é o da arte literária. Questões já discutidas
como a fragmentação do texto, a falta de contextualização, a didatização dos períodos
literários, dos autores e das obras em livros didáticos, cada vez mais definem um ensino
superficial, imediatista, mecânico, voltado apenas para os vestibulares.
Este trabalho parte do interesse em realizar pesquisas sobre a leitura crítica
literária e propostas de intervenções didático-pedagógicas por meio de
aprofundamentos teóricos e análises de obras literárias, a partir do Método Recepcional
(AGUIAR E BORDINI 1993, p.87), que se baseia na Estética da recepção
(JAUSS,1994), e na Teoria do efeito estético (ISER,1999). Pretende-se, assim, criar
opções didáticas convergentes e, a partir delas, intervir em sala de aula, para trazer
novamente à luz das discussões teóricas a leitura dos estudantes leitores em sala de
atual e provocar práticas de ensino de leitura pelo método recepcional por meio de obras
selecionadas e exploradas em leitura crítica. No decorrer deste trabalho será descrito o
método recepcional, bem como aspectos fundamentais da Estética da Recepção –

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principalmente a partir dos estudos de Regina Zilberman (2012) – a explicação de sua
base teórica.
Na sequência, será proposta uma exemplificação de aplicação do método em
questão, seguindo as etapas arroladas por Aguiar e Bordini, explorando a obra “ A
palavra algo” , de Luci Collin, obra que lhe concedeu o segundo lugar no Prêmio Jabuti
2017, que aborda a construção da linguagem – seu cerne – e mostra a ficcionalidade
do poema.
O que justifica este trabalho, são os benefícios que dos textos artísticos para o
leitor. Eles evocam sensações, trazem histórias que recriam a realidade, promovem a
fantasia tão necessária à vida humana. Leitores refletem e aprendem por efeitos de
comparações e distanciamentos, por relações e associações, pela imaginação que
podem projetar através das leituras. Assim, como forma de atingir a sensibilização,
mexer com os sentimentos, os diferentes textos literários, com suas marcas linguísticas,
figuras de linguagem, imagens, com a riqueza sinestésica são os textos que mais
aproximam o ser humano de sua essência, de sua própria realidade, por tratarem de
temas humanos, metaforicamente (CANDIDO, 1972:53).
A análise apresentada neste artigo possui abordagem qualitativa, sendo de
natureza aplicada, propondo saberes para aplicação prática. Quanto ao objetivo
proposto, o estudo enquadra-se como exploratório-descritivo e o procedimento técnico
envolve pesquisa bibliográfica e documental, partindo de conhecimentos já produzidos
para explorar o estudo e as práticas de leitura. Também, como propósito de aplicação
em forma de intervenção didático-pedagógica, foi realizado material didático, que foi
aplicado e discutido.

A ESCRITORA E A PALAVRA ALGO


Luci Collin nasceu em Curitiba, PR, em 1964, graduou-se no Curso Superior de
Piano/Performance (Escola de Música e Belas Artes do Paraná, 1985), no Curso de
Letras português/inglês (Universidade Federal do Paraná, 1989), e no Bacharelado em
Percussão clássica (Escola de Música e Belas Artes do Paraná, 1990). É Professora
Associada no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFPR, onde trabalha
desde 1999 e Membro da Academia Paranaense de Letras ocupando a Cadeira n. 32.
Como poeta e ficcionista tem 11 livros publicados, com premiações em
concursos de literatura no Brasil e nos EUA; também participou de antologias nacionais,
como Geração 90 – os transgressores (2002) e 25 Mulheres que estão fazendo a

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literatura brasileira (2004), e internacionais (EUA, Alemanha, Uruguai, Argentina e
Peru).
O livro A palavra algo foi Prêmio Jabuti de melhor livro de poesia em 2017 e,
segundo as críticas, usa a própria linguagem como tema deste trabalho, o ato de criar,
uma forma de se relacionar com o mundo: com a natureza e os objetos, com as pessoas
e os acontecimentos. Em entrevista ao PERNAMBUCANO.COM.BR (2020), a captação
da realidade, em sua escrita, acontece por uma visão dilatada aos diversos sentidos, os
quais vão se revelando como antenas igualmente importantes e nítidas para uma
captação plural da vida.

“Em uma prerrogativa borgiana da dúvida, do que há para se


completar, da leitura que se faz na ausência, que Luci Collin
parece dissertar no título da sua nova coleção de poemas,
formado pela provocativa expressão A palavra
algo (Iluminuras). Um “algo” que é tanto prerrogativa da falta
como “coisificação” da palavra.” (PERNAMBUCO, 2020).
Dessa forma, com este trabalho se debruça sobre essa a escrita, que se
aproxima do caos e busca compreender essa tensão, essa vertigem e essa insistência
de dor e prazer estético.

O MÉTODO RECEPCIONAL E SUAS BASES TEÓRICAS

Para a realização dos trabalhos utilizamos o método interpretativo orientado pelos


pressupostos teóricos do Método Recepcional, criado pelas professoras Maria da Glória
Bordini e Vera Teixeira Aguiar, baseado nos pressupostos teóricos da Estética da
Recepção, de Hans Robert Jauss e a Teoria do Efeito, de Wolfgang Iser. Assim, de
acordo com o Método recepcional, seguimos nos níveis e nas etapas: 1ª NÍVEL DE
LEITURA - Determinação do horizonte de expectativas da turma 1.ª ETAPA: Leitura
não-duplicada; 2.ª ETAPA: Projeção e auto inserção simulativa;3.ª ETAPA:
Deslocamento e condensação do texto. 2ª NÍVEL DE LEITURA - Socialização da
experiência 1.ª ETAPA: A constituição coletiva do significado por meio da socialização
da leitura; 2.ªETAPA: O confronto com outras propostas de significação; 3.ª ETAPA: A
percepção da riqueza polissêmica do texto. 3ª NÍVEL DE LEITURA - Ampliação da
experiência 1ª ETAPA - A ampliação dos horizontes de expectativas 2ª ETAPA -
Apropriação do conhecimento elaborado
Para as autoras, a obra é um signo estético dirigido ao leitor, o que exige a
reconstituição histórica da sensibilidade do público para entender-se como ela se

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concretiza e para isso, deve acontecer a fusão do horizonte de expectativas do autor
com a do leitor, para que este reconheça os valores da obra são na medida em que
ela produza alteração ou expansão no horizonte de expectativas do leitor,
considerando-se os aspectos temáticos e formais. (AGUIAR e BORDINI, 1993).
Consideram, nesse método, algumas convenções constitutivas do horizonte de
expectativas, as quais podem ocasionar a aproximação [identificação] ou o afastamento
[estranhamento] do leitor em relação à obra. Essas convenções são: 1. sociais –
intelectuais – ideológicas; 2. linguísticas – literárias – afetivas, e devessem ser levadas
em conta em todo o trabalho de leitura.
De acordo com a estética da recepção, a obra é um signo estético dirigido ao
leitor, o que exige a reconstituição histórica da sensibilidade do público para entender-
se como ela se concretiza. É a união do horizonte de expectativas do autor com a do
leitor. Os valores da obra são reconhecidos na medida em que elas produzam alteração
ou expansão no horizonte de expectativas do leitor, considerando-se os aspectos
temáticos e formais.
Entre a obra e o leitor, estabelece-se uma relação dialógica. Essa relação, por
sua vez, não é fixa, já que, de um lado, as leituras diferem a cada época, de outro, o
leitor interage com a obra a partir de suas experiências anteriores, isto é, ele carrega
consigo uma bagagem cultural de que não pode abrir mão e que interfere na recepção
de uma criação literária particular.” (ZILBERMAN, 2008, p87).
De acordo com a autora, o mundo representado pelo texto literário corresponde
a uma imagem esquemática, contendo inúmeros pontos de indeterminação. Os
personagens, objetos e espaços aparecem de forma inacabada e exigem, para serem
compreendidos, que o leitor os complete.
CADEMARTORI (2012) defende que uma narrativa, por fragmentária que seja,
a partir de certos princípios, compõe um modelo do real, faz um recorte do mundo e
ameniza a mensagem da Esfinge: “decifra-me ou te devoro”. Contar é um modo de
refletir sobre os acontecimentos narrados. Quem conta é a voz narrativa, aquela que,
dirigindo-se ao leitor, lhe apresenta o mundo criado. E o faz segundo um ponto de vista,
a partir do qual é percebida a experiência da personagem. O mundo contado dá forma
ao mundo da personagem pela voz do narrador. A construção de nenhuma obra ficcional
é, no entanto, completa. O modelo fica para sempre inacabado. A isso se deve o caráter
instigante de certas obras que, não importa quantas vezes tenhamos lido, podemos
retornar a elas e encontrar surpresas.

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Tendo como pressuposto teórico a Estética da Recepção, de Hans Robert Jauss
e a Teoria do Efeito, de Wolfgang Iser, as professoras Maria da Glória Bordini e Vera
Teixeira Aguiar elaboraram o Método Recepcional, sugerido nas DCOE como uma das
possibilidades de trabalho com a literatura. O método possibilita ao aluno o contato com
diferentes textos de forma participativa e considera algumas convenções constitutivas
do horizonte de expectativas, as quais podem ocasionar a aproximação [identificação]
ou o afastamento [estranhamento] do leitor em relação à obra. Essas convenções são:
sociais – intelectuais – ideológicas - linguísticas – literárias – afetivas.
O método considera 5 cinco etapas de leitura: 1ª Determinação do horizonte de
expectativas; 2ª Atendimento do horizonte de expectativas; 3ª Ruptura do horizonte de
expectativas; 4ª Questionamento do horizonte de expectativas e 5ª Ampliação do
horizonte de expectativas.
JAUSS (1994), considera o horizonte de expectativas como um dos postulados
mais importantes da sua teoria. Para ele, todo leitor dispõe de um horizonte de
expectativas, o qual diz respeito ao limite do que é visível, porém sujeito às alterações
devidas às mudanças de perspectiva do observador. O diálogo entre a obra e um leitor
depende de fatores determinados pelo horizonte de expectativas. Em resumo, o
horizonte de expectativas de um texto diz respeito às expectativas que o leitor nutre em
relação ao texto.

“A qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem


das condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão
somente de seu posicionamento no contexto sucessório do
desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da recepção,
do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade,
critérios estes de mais difícil apreensão.” (JAUSS – 1994)

Para a estética da recepção, a tarefa do autor é despertar no leitor o desejo de


ler. Já a tarefa do leitor é a de formar a partir do texto uma interpretação original que
não é necessariamente aquela formulada pelo autor da obra. E todo texto é uma obra
em potencial, que se realiza através da ação do leitor e dos efeitos que nele provoca.
Também, o método recepcional considera a Teoria do Efeito de Hans Kügler
(2009) , postulando que compreender um texto significa ao mesmo tempo personalizá-
lo. A aludida relação entre o compreender e a personalização do texto na recepção fica
clara caso se entenda “compreender” não como uma captação extro-dirigida por
significado pré-projetado (aprender) nem como comentário explicativo de um texto.
Constitui-se o compreender, antes de tudo, pelo fato de que o sujeito que compreende

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percebe, juntamente com o objeto da percepção, a si próprio, de tal modo que o
compreender de um objeto sempre inclui também a articulação do autoconhecimento.
Isto significa, no caso da percepção do texto, o simples reconhecimento do
círculo hermenêutico, isto é, o aluno não pode, quando da leitura do texto, abstrair-se.
Ele se apresenta literalmente como pessoa na recepção. Apresentar-se significa então
que o aluno não pergunta inicialmente “o que significa este texto?”, mas a pergunta na
verdade é a seguinte: o que significa este texto para mim?
Dessa forma, na leitura primária, o texto é sempre e em primeira instância texto
para mim, sem tomar em consideração o leitor visado por ele e o significado aposto a
ele pela teoria da literatura e pela didática; o ser para mim do texto é o lugar da dimensão
pessoal da recepção do texto.
Com a condensação da leitura primária em significado articulado, a recepção
entra na fase de maior ou menor constituição do significado. Ela se diferencia da leitura
primária pelo fato de que o aluno aprende a elaborar a experiência de leitura articulada
por ele, isto é, seu significado, e assumi-la subjetivamente na comparação e no
confronto com outros significados, isto é, não só formal e hipoteticamente, mas também
a defendê-la pessoalmente frente aos colegas e ao professor. A leitura de
responsabilidade subjetiva entra, assim, no processo de significação coletivo, realizado
pelo grupo de aprendizagem e ganha com isso uma opinião coletiva limitada. A
constituição coletiva do significado, a elaboração e confronto dos modos de ler de
responsabilidade subjetiva na sala de aula ocorrem, com uma perda da ilusão lograda
na leitura primária e com o acréscimo de tentativas de racionalização da experiência de
leitura, mas a dimensão pessoal não poderá a partir de agora, mais ser totalmente
reprimida. Se os elementos pessoais da primeira leitura, aqui esboçados, atingem a
constituição coletiva do significado e são ali reforçados o ensino literário poderia então
ser personalizado, isto é, a leitura de responsabilidade subjetiva complementar-se-ia por
meio de uma discussão dialógica e crítica sobre as experiências de leitura entre os
alunos.

“Ou o texto é pragmático ou é literário. Ou é doutrinário ou é estético.


Uma coisa e também outra não consegue ser. Livros em que
predominam intenções ideológicas ou pedagógicas, e que têm por
objetivo primordial transmitir informações de ordem prática, não
privilegiam a fantasia nem a aventura individual do leitor com os
sentidos múltiplos que um texto literário é capaz de suscitar”.
(CADERMATORI, 2012 p.48-49)

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Assim, ler obras literárias por esta proposta de pesquisa e intervenção é buscar
formas de respeitar o leitor, torná-lo sujeito da construção do texto, explorando sentidos,
contextos e extrapolações, para que a leitura literária cumpra seu principal papel que é
trazer a fantasia, Promovendo o diálogo entre narrador e leitor, personagens e leitor,
criar projeções e permissão de vozes no texto.

PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA


A proposta de trabalho voltada para o ensino em sala de aula foi toda organizada
a partir da obra “A palavra algo” e, por ser um livro de poemas, foi possível realizar
experiências com textos individuais e trabalhar o conjunto da obra também. Aqui,
selecionamos um recorte desse trabalho, com dois poemas, apresentados
resumidamente.

Texto 1- Howcool
“/ele foi ali na esquina/ eu fiquei à deriva/ela foi tomar um chopp/eu fiquei na janela/meu
amor/foi ao cinema/eu aqui virando as cartas/ele foi até a praça/ela foi brincar com
fogo/eu fiquei ali na rua/meu amor /não disse onde/e/eu fiquei/eu fiquei/eu fiquei por isso
mesmo/”

Como exemplo da proposta de intervenção, inicialmente, propomos a leitura pura


do texto, sem conhecimento prévio sobre o livro e sobre a autora. A exposição
espontânea do texto, o que pode resultar em inúmeras sugestões de leitura.
Assim, o estudante responde, individualmente, cada um escreve como se sente
a partir do texto, tentando ser o máximo possível, pessoal, individual, interagindo apenas
com as imagens e sensações que o texto provoca, a partir do questionamento: O que
você entendeu a partir de sua leitura? Quais foram as suas sensações? Propomos
também o desenho, a imaginação pela arte pintada a partir das imagens que o texto cria
em cada um.
A título de exemplificação de leituras iniciais, os estudantes pensaram no
rompimento de um amor, em monotonias, depressão, faltas de perspectivas,
desencontros de mundos, viver a vida e não viver, parar no tempo, paralisação de
planos, abandono, solidão, medo de vida, fobia social.
Na fase de socialização dessa primeira leitura, foi possível perceber as trocas, o
quanto o outro pode ouvir e perceber sensações diferentes e ter o direito de mudar seu
ponto de vista ou permanecer com a sua leitura.

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Passa-se, então, para a obra, conhecendo a autora e a obra, que são fontes e
referências para uma leitura mais aprofundada. Conhecendo o contexto de produção
literária, a estética e estilo, passa-se a uma análise da linguagem, do discurso, da
estética e o resultado aparece em leituras vinculadas ao ponto de partida do leitor, ao
interagir com o texto e o contexto.
Questões como: Quais as sensações provocadas pelo texto, após o
conhecimento sobre a autora, obra, estética e contexto de produção? Assim,
despontam, um aprofundamento de percepções como quem é “esse amor”, quem é o
“eu” que fica e o eu que vai?
A partir da análise da linguagem, para compreender a estética, sendo a escolha
do título “HOWCOOL”, em maiúsculo, em composição de palavras estrangeiras HOW e
COOL, como se fundem, se completam, se distanciam e abrem o questionamento e
temática do texto. HOWCOOL abre a ideia de “que legal!” Como a junção das palvras
HOW- Como/COOL- legal se relaciona com o poema?
Os versos se apresentam de forma livre, iniciando-se por letras minúsculas, em
oposição ao título. A repetição do “ele”, “eu” e “ela”, do “ir e ficar”, do “fazer e do pensar”,
a “ação e a não-ação”. Essas análises trazem à tona alguém que sai, dá a cara a tapa,
concretiza a vida e de alguém que não materializa seus pensamentos, não se encoraja
a realizar ações do cotidiano. A estética de liberdade criativa propõe também a liberdade
que também angustia.
Num último momento, ao se juntarem todos os conhecimentos, socializações e
pesquisas sobre a obra, autora, contexto, analises e interações, destacam-se o eu lírico
e seu ato de criar, o conflito entre a busca de sensações e a criatividade. O que se vive
o que se escreve, a própria angustia de criar e seu amor pela arte poética. Para criar
dar o mergulho, para escrever é preciso viver. Ele, eu, ela. Ele – o assunto, o tema, o
poema. Eu – o eu lírico. Ela – a autora, a pessoa real. A relação do ELA com a própria
figura de mulher, a mulher no seu espaço de fala, de luta, de criação.
Ainda, em complementação, como é possível esse texto se comunicar com o
livro, como o título “A palavra algo”? E com que outros textos ele dialoga ou pode
dialogar?

Texto 2 - Insoneto

“De amor, ora direis, rever promessas/ Que chamas de uma voz não voltam mais/E
sempre é de hora alguma esse momento/ E nunca em face a mais meu bem secreto”

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A intertextualidade se faz presente e só por esse aspecto já é possível realizar
um trabalho extenso de ensino. Mas, não se antecipa, não se força o que não e lido,
pois o estudante tem o direito de tentar ler, tentar perceber o que há e está no texto.
Assim, ao explorarmos a leitura inicial, na primeira fase do método, muitos
percebem o tema sobre o amor e a tese que é defendida sobre. As primeiras sensações
de amor, de desilusão, a decepção, crenças sobre o amor. A partir das sensações vão
surgindo as necessidades de entender o titulo IN-SONETO, a definição de soneto e o
contrário disso, a negação. Mas o texto foi escrito com que estética? A estética de um
soneto.
Com que textos ele dialoga? Via láctea de Olavo Bilac, Soneto de Fidelidade de
Vinícius de Moraes, Soneto 005 de Camões? As possibilidades intertextuais vão se
abrindo e os contextos de produção e significados são múltiplos. O poema é um passeio
por autores e sonetos que marcaram a literatura. A presença da estética clássica, as
palavras espumantes e nebulosas do simbolismo, as invocações frementes de camões,
a soltura e libertação do amor moderno, a dor contemporânea do descrédito sobre o
amor...são assuntos para exploração de muitas aulas.
A palavra algo é algo que se esvazia e se preenche no poema “JIM SAID”, que
define poesia “a poesia é metal precioso é metal nobre”/ “agarrado aos detalhes e ao
insubmisso”/. O eu lírico fala da criação, do ato de dizer e silenciar, o que pode, o que
consegue, fala da dor e do delírio de criar e escrever a sua poesia. Nas análises vão
aparecendo o quando omitimos o que queremos dizer e ao relacionar o titulo com a
canção de Elvis Presley “Just Tell Her Jim Said Hello” , que tematiza o querer dizer e
não ter a coragem de dizer a ela o que sente, é possível inferenciar o quanto criar um
poema estabelece conflitos.
Com essas análises, como o livro contém 47 poemas, selecionamos 5
deles para o trabalho completo, para todas todos os níveis de leitura e 5 poemas
para um trabalho em grupos. Dessa forma, para que o trabalho não ficasse
exaustivo e muito demorado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho partiu de um projeto de pesquisa, com o objetivo de aprofundar


teoria e prática sobre o método recepcional, baseado na estética da recepção e teoria

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do efeito, como justificado anteriormente e traz algumas conclusões que podem trazer
reflexões importantes sobre o ensino de literatura na escola.
O método recepcional respeita as fases da leitura e todas as leituras realizadas
pelos leitores, a partir da estimulação, da sensibilização e das primeiras percepções do
leitor, respeitando ate o que poderia ser considerado como leitura impossível; leitura
não é trabalhada de forma encaixada em períodos literários e regras para que o
estudante aprenda regras estéticas ou decore algumas informações da obra e do autor
para lembrar apenas em provas ou vestibulares; promove a socialização e
conhecimentos por meio de atividades que permitem ouvir o outro, falar para o outro.
Também, o leitor pode complementar sua leitura, complementar a leitura do
outro, ler o que não havia lido, concordar ou discordar com a leitura do outro. Por fim,
na perspectiva do letramento crítico, permite o leitor ler e perceber como leu e se
perguntar por que leu assim, o que o leva a compreender a sua estética de recepção,
refletir sobre o seu mundo, sua história, suas crenças, seu lugar, sua vida.
As fases da leitura vão permitindo que o leitor perceba a linguagem do texto, os
recursos linguísticos, o contexto de produção literária, a intertextualizacao. Essas
relações com outras leituras e as extrapolações que complementam a compreensão,
envolvendo o leitor em outros conhecimentos, conhecendo as diversas vozes e
discursos ideológicos dentro dos textos.
O trabalho com o livro “A palavra algo” da autora Luci Collin permitiu grandes
desafios de leitura, pois a cada poema lido, tínhamos a sensação de que não
conseguiríamos terminar a análise e que a cada início de texto teríamos uma grande
jornada de análises. Os pensamentos demonstravam que era possível questionar
nossas capacidades de ler e ao mesmo tempo provar essa capacidade à medida em
que as leituras aconteciam.
Este trabalho inspira a continuação de elaboração de propostas de intervenções
didáticos pedagógicas orientadas pelo método recepcional pelas constatações da
experiência prática, que nos convence pela observação da experiência do leitor que tem
voz, que participa, explica, opina, analisa e é escutado e valorizado pelos outros leitores.
O papel do letramento crítico e do letramento literário crítico exercido pelo professor,
não como fórmula, método, mas como um movimento, um posicionamento e ser
individual e coletivo.

REFERÊNCIAS
AGUIAR, Vera Teixeira de. O leitor competente à luz da teoria literária. In: Revista
Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 124:23/34, Jan. – mar., 1996.

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BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura – a formação do
leitor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes.


2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

CANDIDO, Antonio. Direitos humanos e literatura. In.: FESTER, A. C. Ribeiro e


outros. São Paulo: Brasiliense, 1989.

__________. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. 24 (9): 803-809,


set, 1972.

COLLIN, Luci. Inescritos. Curitiba: Travessa dos Escritores, 2004. Entrevista cedida a
Rodrigo Souza Leão, em junho de 2005, para a Revista Eletrônica Germinal Literatura.
Disponível em: <http://www.germinaliteratura.com.br/pcruzadas_jun2005.htm>. Acesso
em: 26 fevereiro 2006.
DELEUZE, Gilles. Cinema II – a imagem tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução: Johannes
Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1999, v. 2.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.


Trad. De Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

JAUSS, Hans Robert. O prazer estético e as Experiências Fundamentais da Poiesis,


Aesthesis e Katharsis. In: LIMA, Luis (org.). A literatura e o leitor - textos de Estética
da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

KÜGLER, Hans. Níveis de Recepção Literária no Ensino. Literatur under


komunikation. Stuttgart: Ernest Keett, 1971. Tradução livre de Carlos E. Fantinati. In:
MARTHA, Alice Áurea Penteado e outros. O ensino da literatura. Relatório de pesquisa,
1987.

ZAPPONE, Mirian Hisae Yaegashi. Estética da Recepção in: BONNICI Thomas; ZOLIN
Lucia Osana (org) Teoria Literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas. Maringá: UEM, 2004.

ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino de literatura. Curitiba: Ibpex, 2010. (Série


Literatura em Foco).

ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática,


2009.

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FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
UMA REFLEXÃO SOBRE OS PROJETOS PEDAGÓGICOS DO
INSTITUTO DOM BARRETO

Juliana Pádua Silva Medeiros, Universidade Presbiteriana Mackenzie

Eixo Temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entre caminhos do saber/aprender (GT 10)

Considerações iniciais
Desde 1944, quando as Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado fundaram o
Patronato Dom Barreto, a instituição preocupa-se com a formação humana. O antigo
internato, onde as moças aprendiam artes domésticas, recebeu o nome de Instituto Dom
Barreto, na década de 1970, com a chegada da professora Maria Stela Rangel para
consolidar o Ensino Fundamental. A Educação Infantil, recorte deste artigo, iniciou em
1953 ao serem implantadas as primeiras turmas de ensino regular.
Referência em educação de qualidade e destaque, por vários anos, com a maior
nota no ranking do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), o Instituto Dom Barreto
potencializa - em todos as etapas - o desenvolvimento de sujeitos autônomos a partir
de uma proposta curricular que concilia saberes e experiências.
No segmento infantil250, o foco está na educação pelos sentidos e, por isso, as
crianças - mesmo quando não dominam o código escrito - manipulam e exploram as
obras literárias, despertando a curiosidade para o objeto livro: materialidade e rede de
significados. Tal familiaridade com as imagens, com os sons, mas também com as

250
O Referencial Curricular para a Educação Infantil sustenta-se em dois âmbitos de experiência:
formação pessoal e social (construção da identidade e autonomia) e conhecimento de mundo
(movimento, música, artes visuais, linguagem oral e escrita, natureza e sociedade).

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palavras251 desse “mundo do faz de conta”, desde muito cedo, vai alargando a
percepção, a linguagem e a imaginação das crianças. No Infantário (entre 1 e 2 anos),
por exemplo, é comum observar pequenos brilhantes252 que, nem conseguem falar, já
“cantando”, envolvidos com ritmos e jogos melódicos.
A diversidade de caminhos metodológicos usados pela equipe de educadores
permite que esses leitores, ao longo da Educação Infantil, deleitem-se com as obras
literárias, conversem sobre o que gostaram ou não, ampliem seus conhecimentos sobre
si e o mundo, escolham os livros (e por que não gibis?), nomeiem e descrevam
personagens das histórias, brinquem com a musicalidade, ensaiem sentidos, associem
autores às suas respectivas obras, reconheçam escritores e ilustradores através do
estilo, reproduzam histórias, imaginem, leiam…
Diante disso tudo e ao encontro das contribuições teóricas de Rouxel (2013),
este artigo propõe abordar: 1. o papel da literatura, enquanto direito humano, no
desenvolvimento sensível e crítico do leitor; 2. a importância de se promover o trabalho
com os textos literários desde muito cedo; 3. a educação literária como um autêntico e
complexo exercício de vida que se realiza com e na linguagem, e 4. os projetos didático-
pedagógicos do Instituto Dom Barreto (Teresina, Piauí) como um meio de oportunizar o
hábito da leitura, o desenvolvimento das competências leitoras, a experimentação das
linguagens artísticas desde os primeiros anos escolares e a participação ativa do leitor
na produção de significados.

A literatura infantil e a escola


A escola é o lugar propício para se experimentar a diversidade de culturas, de
pensamentos e de linguagens a partir dos textos. Para Zilberman (1993, p. 17), uma vez
que “a ação de ler caracteriza toda a relação racional entre o indivíduo e o mundo que
o cerca”, é imprescindível o trabalho com a literatura no ambiente escolar, pois:

[...] a obra de ficção, fundada na noção de representação da realidade,


exerce este papel sintético [adentramento no real] de forma mais
acabada, fazendo com que leitura e literatura constituam uma unidade
que mimetiza os contatos palpáveis e concretos do ser humano com
seu contorno físico, social e histórico, propondo-se mesmo a substituí-
los. (ZILBERMAN, 1993, p. 19)

251
De acordo com a psicolinguista Emilia Ferreiro, mesmo não alfabetizadas, as crianças
devem ter contato com a linguagem escrita.
252
Forma carinhosa, utilizada por toda comunidade escolar, para se referir aos estudantes da
Educação Infantil.
1572

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Cademartori (1994, p. 22 e 23) corrobora tal ideia ao pontuar que:

A obra literária recorta o real, sintetiza-o e interpreta-o através do ponto


de vista do narrador ou do poeta. Sendo assim, manifesta através do
fictício e da fantasia, um saber sobre o mundo e oferece ao leitor um
padrão para interpretá-lo. Veículo do patrimônio cultural da
humanidade, a literatura se caracteriza, a cada obra, pela proposição
de novos conceitos que provocam uma observação do já estabelecido.

Diante de tudo isso, compreende-se que a escolha do livro precisa ser


cuidadosa. De acordo com as diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) 253
e os apontamentos teóricos de Coelho (2000)254, as obras literárias, na Educação
Infantil, por exemplo, devem: favorecer uma prática leitora prazerosa e lúdica; explorar
as construções sonoras e visuais; valorizar a repetição ou a reiteração de elementos;
possibilitar relações de semelhanças e diferenças; centrar na estrutura simples e linear;
propiciar tanto o convívio inteligente, afetivo e profundo com a realidade circundante,
quanto à imersão no mundo da fantasia; favorecer o pensamento lógico; ofertar
situações que instigam a diversão, a sensibilidade, a percepção, a descoberta, a
imaginação, o pensamento e a opinião; ampliar o conhecimento de si e do outro, e
favorecer o adentramento no universo da literatura por meio da cultura oral e das formas
textuais populares escritas. Exemplos: A casa sonolenta (1999); Amoras (2018); Azul
(2019); Bia e o Elefante (2019); Bruno & João (2009); Bruxa, bruxa, venha à minha festa
(1995); Cadê o pintinho? (2011); Claro, Cleusa. Claro, Clóvis. (2017); Colo de avó
(2016); Com que roupa irei para a festa do rei? (2017); É um ratinho? (2008); Jacaré,
não! (2016); Mas papai… (2013); Margarida (2010); O grúfalo (1999); O que tem aí?
(2018); Olavo (2018); Onde está Tomás? (2019); Ônibus (2019); Pedro vira porco-
espinho (2017); Pinóquio: o livro das pequenas verdades (2019); Se eu abrir esta porta
agora… (2018); Ter um patinho é útil,(2018); Urso e barco (2019), e Verões verdes
(2017).
Consoante Graça Paulino, no Glossário CEALE, “A leitura se diz literária quando
a ação do leitor constitui predominantemente uma prática cultural de natureza artística,

253
A BNCC define seis direitos de aprendizagem na Educação Infantil (brincar, conhecer-se,
conviver, explorar, expressar e participar) a partir de cinco campos de experiências: corpo gestos
e movimento; escuta, fala, pensamento e imaginação; espaços, tempos, quantidades, relações
e transformações; o eu, o outro e o nós, e traços, sons, cores e formas.
254
Nelly Novaes Coelho delineia os princípios orientadores para a escolha de livros adequados
ao perfil de cada leitor com base nos estágios psicológicos da criança e do adolescente.
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estabelecendo com o texto lido uma interação prazerosa.”255. Para ela, é nesse pacto
entre o leitor e o texto que vai se constituindo o gosto pela leitura.
Cabe ressaltar que a literatura está para além de um mero prazer,
correspondendo “[...] a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob a pena
de mutilar a personalidade.” (CANDIDO, 2004, p. 186). Segundo o célebre professor
Antonio Candido, assim como outras expressões artísticas, a literatura é um direito
humano, pois se figura como bem incompressível: assegura a sobrevivência física e
garante a integridade espiritual.
Nesse sentido, o texto literário é um instrumento poderosíssimo de educação,
não porque edifica ou corrompe, mas por humanizar:

Processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos


essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa
disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a
capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a
percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor
(CANDIDO, 2004, p. 180).

Logo, formar leitores literários é um ato revolucionário, pois, na medida que


interage com textos e vai se apropriando da linguagem, o indivíduo vivencia uma
experiência libertadora.
Para Góes (2005, p. 17):

Ler é relacionar cada texto lido aos demais anteriores (textos-vida +


textos lidos) para reconhecê-los, significá-los e assimilá-los; processo
que dota o leitor da capacidade de ad-mira-ação (olhar que apreende
e aprende) e o torna um leitor-sujeito de sua própria história.

De acordo com a pesquisadora, esse rico processo de construção dos sentidos,


que está para além da decodificação do código escrito, deve valorizar “aspectos
sensoriais (ver, ouvir os símbolos linguísticos), emocionais (identificar-se, concordar,
discordar, apreciar) e racionais (analisar, criticar, correlacionar, interpretar” (GÓES,
2005, p. 17). Para tanto, é preciso que o professor oferte obras com temáticas
diversificadas, formatos variados, gêneros diversos, múltiplas linguagens, bem como
valorize a linguagem poética, o projeto gráfico, a intertextualidade, a qualidade da
adaptação, etc.

255
Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/leitura-literaria.
Acesso em 18 mai. 2019.

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A interação com essa riqueza de formas e conteúdos possibilita o alargamento
da experiência estética literária que, conforme Maria Antonieta Antunes Cunha, em
Glossário CEALE, é:

[...] a soma da percepção/apreensão inicial de uma criação literária e


das muitas reações (emocionais, intelectuais ou outras) que esta
suscita, em função das características específicas postas em jogo pelo
autor na sua produção. [...] Essa experiência estética tem muitos
níveis, assim como diferentes temporalidades, dependendo de tantos
elementos que entram em sua constituição e também do quanto cada
um investe nela. 256

Cabe salientar que, na experiência estética literária, o leitor extrapola os sentidos


por meio das descobertas, dos questionamentos, da imaginação e da fantasia. Por ser
algo singular, não há, portanto, manuais. Em contrapartida, algumas situações de leitura
favorecem o desenvolvimento sensível e crítico do leitor.
Dando sequência às reflexões sobre a leitura literária durante a infância, é
importante observar que muitas pessoas atrelam a sua prática a um momento pueril de
evasão e entretenimento, esquecendo que a literatura se constitui também como um
poderoso meio de formação e maturação psíquica. Segundo Bettelheim (1978), o ato
da leitura auxilia na superação de desafios psicológicos do crescimento, como: enfrentar
decepções e dilemas, resolver rivalidades, ser capaz de abandonar dependências
infantis e obter um sentimento de individualidade e de autovalorização. Exemplos:
Chapeuzinho Vermelho (2015), recontado (textos verbal e visual) por Rosinha, e Eu não
gosto de você (2013), escrito e ilustrado por Raquel Matsushita.
Esse movimento de ofertar textos literários desde os anos iniciais da Educação
Básica não só favorece o desenvolvimento psíquico da criança, como já pontuado, mas
também acaba contribuindo com melhores resultados tanto nas pesquisas sobre os
hábitos leitores dos brasileiros quanto nas avaliações nacionais acerca da competência
leitora.
Regina Zilberman, grande pesquisadora em literatura infantil, sempre enfatiza a
importância do texto literário na escola. Segundo ela:

A justificativa que legitima o uso do livro na escola nasce de um lado,


da relação que estabelece com seu leitor, convertendo-o num ser
crítico perante sua circunstância; e, de outro, do papel transformador

256
Disponível em:
http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/experiencia-estetica-literaria.
Acesso em: 10 mar. 2019.

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que pode exercer dentro do ensino, trazendo-o para a realidade do
estudante e não submetendo este último a um ambiente rarefeito do
qual foi suprimida toda a referência concreta. (ZILBERMAN, 2003, p.
26).

Para a autora:

[...] a sala de aula é um espaço privilegiado para o desenvolvimento do


gosto pela leitura, assim como um campo importante para o
intercâmbio da cultura literária, não podendo ser ignorada, muito
menos desmentida sua utilidade. Por isso, o educador deve adotar uma
postura criativa que estimule o desenvolvimento integral da criança. A
literatura tem sua importância no âmbito escolar devido ao
fornecimento de condições que propicia à criança em formação. Essa
literatura é um fenômeno de criatividade, aprendizagem e prazer, que
representa o mundo e a vida através das palavras. Sabe-se que a
literatura é um processo de contínuo prazer, que ajuda na formação de
um ser pensante, autônomo, sensível e crítico que, ao entrar nesse
processo prazeroso, se delicia com histórias e textos diversos,
contribuindo assim para a construção do conhecimento e suscitando o
imaginário. Hoje se percebe também que quando bem utilizado no
ambiente escolar, o livro de literatura pode contribuir ainda para o
desenvolvimento pessoal, intelectual, conduzindo a criança ao mundo
da escrita. Dessa forma, a literatura infantil tem sua importância na
escola e torna-se indispensável por conter todos os aspectos aqui
levantados, sendo de grande valor por proporcionar o desenvolvimento
e a aprendizagem da criança em sua amplitude. (ZILBERMAN, 2003,
p. 16).

Nesse sentido, sob a perspectiva de que o texto literário é um artefato da arte,


de caráter estético, o qual promove a formação leitora sensível (e crítica), a
pesquisadora ressalta que:

[...] a literatura deve se integrar ao projeto desafiador próprio de todo


fenômeno artístico, impulsionar ao seu leitor uma postura crítica,
inquiridora, e dar margem à efetivação dos propósitos da leitura como
habilidade humana. Caso contrário, o livro infantil transformar-se-á em
objeto didático, que transmite ao seu recebedor, apenas convenções
instituídas, em vez de estimulá-lo a conhecer a circunstância humana
que adotou tais padrões. No entanto, a literatura infantil somente
poderá alcançar sua verdadeira dimensão artística e estética, se
superar os fatores que intervieram em sua geração. (ZILBERMAN,
2003, p. 176).

Assim, se, por um lado, a literatura infantil deve ser apresentada enquanto
manifestação artística/cultural, cuja potência convoca para a construção dos sentidos
plurais257, ao mesmo tempo que favorece a formação de seres humanos pensantes e

257
A leitura literária contempla tanto um veio estético, no qual afloram as experiências de vida,
quanto um mais analítico, voltado para o trabalho com as linguagens. No primeiro, o leitor pode
identificar-se com algum personagem, relacionar o texto com algum acontecimento de sua vida,
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sensíveis, por outro, não deve ser utilizada para ensinar algo, pois isso iria contra a sua
própria natureza: “[...] fenômeno de criatividade, que representa o mundo, o homem, a
vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os
ideais e sua possível/impossível realização…” (COELHO, 2000, p. 27).
Segundo Abramovich (2004, p. 142):

Muitas e muitas vezes o professor adota um livro para toda a classe, e


esse texto selecionado se torna apenas um pretexto para se estudar
gramática, sublinhar substantivos concretos, indicar tempos de verbos,
encontrarem advérbios de modo e mil outras relevâncias do tipo.

Contudo, isso não contribui para a formação de um leitor competente. Para ela,
ao se pensar a literatura em sala de aula:

[...] a preocupação básica seria formar leitores porosos, inquietos,


críticos, perspicazes, capazes de receber tudo o que uma boa história
traz [...]. Literatura é arte, literatura é prazer... que a escola encampe
esse lado. É apreciar - e isso inclui criticar... Se ler for mais uma lição
de casa, a gente sabe bem no que é que dá... Cobrança nunca foi
passaporte ou aval para vontade, descoberta ou para o crescimento de
ninguém. (ABRAMOVICH, 2004, p. 149).

Consoante Gregorin Filho (2009, p 78 e 79), trabalhar com a literatura na escola


é:

[...] é criar condições para que se formem leitores de arte, leitores de


mundo, leitores plurais. Muito mais do que uma simples atividade
inserida em propostas de conteúdos curriculares, oferecer e discutir
literatura em sala de aula é poder formar leitores, é ampliar
competências de ver o mundo e dialogar com a sociedade. [...] é criar
condições para que não se percam os objetivos destas atividades, isto
é, partir do texto literário para viajar pelo mundo. O professor deve ser
o guia dessas deliciosas viagens que possuem um ponto de partida e
outro de chegada: o universo da literatura. (GREGORIN FILHO, 2009,
p. 77 e 78).

Então, como formar leitores literários em sala de aula? Rouxel (2013), ao discutir
os aspectos metodológicos do ensino da literatura, destaca que a formação resulta da
sinergia de três componentes: o aluno como sujeito leitor, a literatura ensinada (escolha
das obras) e o professor como sujeito leitor. Para ela, o sujeito leitor se constrói e
constrói sua humanidade pela leitura sensível que pode ocorrer de diferentes formas.

divagar. Já, no segundo, o leitor pode voltar-se para a materialidade e, por exemplo, reconhecer
o modo de ser de uma personagem, identificar diferentes sentidos que uma expressão possa
assumir, relacionar palavra e imagem, etc.

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Aspectos metodológicos: núcleo de formação docente e de produção
editorial
A leitura na escola não deve ser compreendida somente como uma atividade
silenciosa, individual, realizada em um espaço específico. Ela pode extrapolar a sala de
aula e a biblioteca, dessacralizando o contato com o objeto livro ao mesmo tempo em
que propicia diversos graus de intimidade com ele.
A formação do leitor literário pode ocorrer debaixo de uma árvore, sobre um
carpete com almofadas, em uma grande roda com turmas multisseriadas, entre outros
ambientes. O mais importante - na preparação do espaço para diferentes situações de
leitura - é garantir acesso fácil às obras, oferecer diversidade de gêneros e títulos,
fomentar o intercâmbio de experiências e nutrir uma comunidade leitora.
O Instituto Dom Barreto, no intuito de oferecer uma educação de qualidade
desde o Infantário, possui, no segmento infantil, um núcleo de formação docente e de
produção editorial, coordenado por Bernadete Rangel. O conjunto de formações
continuadas (oficinas, cursos, palestras, seminários etc.) é oferecido tanto pelos
integrantes da comunidade escolar (intercâmbio de experiências), quanto por
convidados externos à instituição, a exemplo da autora deste texto que presta
assessoria pedagógica. No que se refere ao centro editorial, a escola conta com
professores-autores que produzem o próprio material pedagógico.
Dentre os inúmeros produtos editoriais, destacam-se os projetos literários, cujas
orientações e atividades norteiam o trabalho com a literatura dentro e fora de sala de
aula. É preciso destacar que a materialidade desses objetos pedagógicos é também um
convite para interação, reflexão, experimentação e aprendizagens lúdicas. Exemplos:

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Figura 1: Projetos literários

Fonte: imagens cedidas pela escola

O projeto de leitura sobre o livro Casas (1994), de Roseana Murray, ilustra um


pouco de que forma a literatura abre portas para um olhar complexo sobre si e o mundo.
Além da maneira como a proposta pedagógica vai se desdobrando, abrigando leituras
e fazendo surgir uma vila de casinhas (e de interpretações), a mediação também é um
recurso-chave para o desenvolvimento do pensamento autônomo.

Figura 2: Projeto Casas

Fonte: imagens cedidas pela escola

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Em dado momento, na sala de aula, quando a professora retoma o verso “o
corpo é a casa dos pensamentos”, do poema Sem casa, ela pergunta: “Onde fica o
pensamento? Por que a gente não o vê? O que mais mora dentro da gente?”. Entre
essas e tantas outras questões que vão figurando a literatura como um fio de Ariadne,
uma criança, ao retomar o verso “Tem gente que não tem casa / Mora ao léu, debaixo
da ponta”, diz: “Eu acho que nem precisa de casa mesmo, né? A gente mora é dentro
da gente.”.
É possível observar com esse comentário que uma discussão tão delicada
quanto a existência de pessoas em condição de rua é “resolvida” de maneira poética e,
por que não, filosófica. Com a possibilidade de entrar no universo das palavras, dos
jogos sonoros e das ilustrações desde a infância, como apresentado, os leitores - ainda
em formação - ensaiam suas primeiras construções estéticas, mas isso é assunto para
um outro texto.

Considerações finais
Na Educação Infantil, no Instituto Dom Barreto, o professor - enquanto
promotor/mediador de leitura literária - deve elaborar propostas pedagógicas que
oportunizem a experimentação das linguagens e a participação ativa da criança na
produção de significados, pois, consoante Zilberman (1993), o mundo desvela-se no
complexo processo de ação interacional que se estabelece entre o texto e aquele que
lê.
À luz das considerações teóricas de Rouxel (2013), observa-se, portanto, que
quaisquer escolhas didáticas devem estar revestidas de uma importância maior: instituir
o aluno como sujeito leitor. Nesse sentido, é preciso que o professor: figure-se também
como um sujeito leitor e compreenda o papel da literatura na formação humana; atente-
se para a escolha das obras literárias, observando as contribuições das mesmas para
o desenvolvimento sensível e crítico da criança, e medeie os saberes sobre os textos,
os saberes sobre o ato léxico (e o metaléxicos) e os saberes sobre si (subjetividade no
ato da leitura).

Referências bibliográficas

Obras literárias

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CHIRIF, Micaela. Onde está Tomás? Trad. Daniela Padilha. São Paulo: Jujuba, 2019.

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DONALDSON, Julia. O grúfalo. Trad. Gilda de Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 1999.

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TOKITAKA, Janaina. Pedro vira porco-espinho. São Paulo: Jujuba, 2017.

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LETRAMENTO LITERÁRIO: DESENVOLVENDO AS
HABILIDADES LEITORAS DOS DISCENTES

Autora: Solange Amaral da Silva, Mestranda do Programa de Mestrado


Profissional da Universidade Estadual de Montes Claros - PROFLETRAS/2019,
Bolsista pela CAPES.

Eixo Temático: Grupo Temático 10: Educação literária, Letramento literário,


formação e mediação de leitores literários: entrecaminhos do
saber/aprender.

Introdução

Segundo o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), de


2018, o Brasil possui baixo desempenho no nível de leitura especificamente nas
habilidades de leitura e compreensão de texto. Muito embora tenha ocorrido uma leve
melhoria no desempenho dos alunos desde que houve a primeira avaliação, há
constatação de que houve estagnação nos últimos dez anos.
Nessa mesma direção, dados da Escola Municipal de Ensino Fundamental
“Bom Sucesso”, das avaliações sistêmicas do Programa de Avaliação da Educação
Básica do Espírito Santo (PAEBES) aplicadas entre os anos de 2013 a 2018 apontaram,
por exemplo, que os alunos que concluíram o Ensino Fundamental II, apresentaram
dificuldades nas habilidades leitoras. Vale ressaltar que, a avaliação é definida por
escala de desempenho que enfoca o abaixo do básico, básico, proficiente e avançado.
Em referência ao ano de 2018, 19 alunos fizeram a avaliação e, desse quantitativo, 5,3%
estavam abaixo do básico; 42,1%, no nível básico; 42,1%, no proficiente; e 10,5%, no
avançado.

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Partindo desse cenário, este artigo, sendo um recorte da dissertação 258 em
andamento, apresenta como objetivo: descrever uma proposta de Letramento Literário
por meio da sequência básica de leitura de acordo com Cosson (2007).
Aventamos a hipótese de que atividades interventivas estratégicas podem
promover melhoria no desenvolvimento da habilidade leitora em contos. Para tanto, o
uso do Letramento Literário na efetivação dessa ação.
O estudo justifica-se por buscar investigar, visando à melhoria da qualidade do
ensino de leitura de contos, um problema da realidade da sala de aula: dificuldades na
compreensão do texto lido, uma vez que os alunos leem e relatam não terem
compreendido o texto.
A metodologia adotada na pesquisa é de natureza qualitativo-interpretativa,
com o professor-pesquisador envolvido no contexto da pesquisa, com proposições e
propostas interventivas, que lança mão de métodos, tendo como ponto de partida um
questionamento, buscando possíveis soluções.
Em consonância com os pressupostos teóricos adotados, consideramos
basilares as contribuições, de Cosson (2007), Soares (2001), Koch (2012), Antunes
(2003), entre outros que são importantes para construção da proposta de trabalho e
pesquisa.
No estudo empreendido, apresentaremos a teoria na qual se sustenta esse
recorte, depois descrevemos uma proposta de Letramento Literário, para qual valemo-
nos do conto “A Moça Tecelã”, de Marina Colasanti a fim de demonstrarmos as
estratégias selecionadas para efetivação e compreensão do processo de leitura e, por
fim, as considerações finais.
A análise da pesquisa seria aplicada com alunos da Escola Municipal de Ensino
Fundamental “Bom Sucesso”, entretanto, não foi possível devido à pandemia do
Coronavírus. Portanto, o presente trabalho objetiva a trazer uma proposta de
Letramento Literário como forma de orientação aos professores de Língua Portuguesa
como mais um instrumento didático/metodológico para o estímulo à leitura.

Definição de leitura

258
Recorte da dissertação em andamento: LETRAMENTO LITERÁRIO: redescobrindo a leitura
por meio de contos infantojuvenis. Orientadora: profa. Doutora Arlete Ribeiro Nepomuceno.
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Ler, não é uma tarefa fácil, envolve processos mentais que vão desde a
decifração da escrita a compreensão, interpretação do objeto lido. Esses elementos de
decifração do código linguístico são importantes no processo de ensino da leitura,
contudo, não pode se limitar a essas questões. São processos que no primeiro contato
com o texto ocorrerão para todos os leitores, independentemente da habilidade que
esse leitor tem com o texto, porém, alguns leitores precisam de um tempo maior para
internalizar esses elementos do texto.
Cagliari ( 1997) assevera:

A leitura é, pois, uma decifração e uma decodificação. O leitor deverá


em primeiro lugar decifrar a escrita, depois entender a linguagem
encontrada, em seguida decodificar todas as implicações que o texto
tem e, finalmente, refletir sobre isso e formar o próprio conhecimento e
opinião a respeito do que leu. (CAGLIARI ,1997, p. 150)

À luz dessa citação, pode-se inferir que a leitura é um processo linguístico o


qual o leitor vai trilhando seu percurso na leitura, compreendendo os processos
intrínsecos e extrínsecos inerentes ao texto. Na escola, essa formação é possível a
partir do momento em que o aluno toma contato com a leitura, sendo o professor o
mediador desse processo, desenvolvendo momentos prazerosos com o texto,
contribuindo assim, com a formação leitora do discente.
A leitura é construída na interação entre autor-texto-leitor. Esse contato
interacional requer uma compreensão maior dos processos que constituem o texto. É o
leitor quem tira as devidas conclusões a respeito do que lê, porém, é importante
conhecer o autor, o propósito comunicativo, a época da circulação do objeto lido. Até
porque todo texto tem um objetivo a cumprir, seja para informar, deleitar emocionar,
divertir, instruir, entre tantos outros.
Kock (2012) afirma:

A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa de


produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos
elemento linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de
organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de
saberes no interior do evento comunicativo.( KOCK, 2012, p. 11)

Nesse sentido, a autora defende com perspectiva de que o processo de leitura


é interacional. Sendo o sujeito um agente do percurso da leitura. É o leitor que a partir
das leituras eficazes e não somente pela superficialidade atribui sentido àquilo que lê.
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Antunes (2003) endossa a proposta quando afirma a respeito da interação
entre leitor e texto:

A atividade da leitura completa a atividade da produção escrita. É, por


isso, uma atividade de interação entre sujeitos e supõe muito mais que
a simples decodificação dos sinais gráficos. O leitor, como um dos
sujeitos da interação, atua, buscando recuperar, buscando interpretar
e compreender o conteúdo e as intenções pretendidas pelo autor. (
ANTUNES, 2003, p. 66)

Nesse viés, a leitura se constitui no processo de interação entre texto/ leitor,


por meio do contato dessa interação, o leitor buscará o propósito comunicativo do texto,
extraindo as informações pertinentes ao assunto, como também, inferindo sobre os
aspectos discursivos do objeto de estudo.

A leitura no contexto escolar

É muito comum na escola a argumentação de que os alunos leem e não


compreendem, não sabem interpretar nas disciplinas, não somente de Língua
Portuguesa, mas em todas as áreas. E isso torna frustrante ao professor de Língua
Portuguesa, pois, muitos acreditam que essa tarefa é responsabilidade desse professor,
ensinar o aluno a ler. É necessário entender que o compromisso de ensinar o discente
a ler é da escola, a criança vai para escola com um dos objetivos que é aprender a ler.
Referindo- se à escola, cabe a todos os profissionais envolvidos com a Educação,
desenvolver estratégias que melhorem a leitura dos discentes.
De acordo com Cagliari (1997) a leitura é uma atividade importante na
formação do educando. Para o autor, “O melhor que a escola pode oferecer aos
educandos deve estar voltado para leitura” (Cagliari, 1997, p. 148). Como é uma
atividade relevante, é compromisso de todas as áreas do conhecimento suscitar o
desejo e ensinar o aluno a ler, caso não compreenda, atuar na dificuldade apresentada.
Nesse sentido, o desenvolvimento de atividades com leitura que promovam as
habilidades leitoras, contribuirá para o processo de letramento dos discentes.
Em se tratando do Ensino Fundamental II, a dificuldade do aluno na
compreensão da leitura intensifica, pois os dados das provas sistêmicas já apontam
sobre a necessidade de melhorar o desempenho dos discentes nessa etapa. Uma vez
não corrigindo o problema, as dificuldades com leitura se estenderão em todas as fases
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da vida escolar do aluno. Reportando-se aos resultados das provas do Programa de
Avaliação de Educação Básica do Espírito Santo- PAEBES, dos anos de 2013 a 2018,
especificamente, na escola “Bom Sucesso”, lugar em que a pesquisa está sendo
desenvolvida, mostram que a proficiência avaliada em leitura dos alunos que estão
concluindo esse período, está abaixo do esperado. É perceptível que os alunos
apresentam dificuldades na compreensão daquilo que lê, tendo em vista, que as provas
estão ancoradas nos descritores de acordo com a Matriz de Referência da disciplina de
Língua Portuguesa.
Diante dessa realidade, pode- se inferir que é preciso aprimorar o trabalho com
a leitura na sala de aula. De acordo com Antunes (2003) as aulas de Língua Portuguesa
ainda têm como centro a Gramatica Tradicional Normativa. O trabalho com frases
descontextualizadas, as intermináveis analises sintáticas, um serviço que pressupõe
decorar nomenclatura da língua, a gramática é muito relevante, porém o trabalho
desenvolvido com ela, nas escolas, foge à proposta de desenvolver as habilidades
leitoras. Segundo a autora, muitos alunos atribuem isso, ao fato de que a Língua
Portuguesa é uma disciplina difícil e, consequentemente, o modelo de ensino não atrai
o discente, que se vê incapaz de aprender a língua ou até mesmo após inúmeras
reprovações desiste, por acreditar não ser autossuficiente na sua própria língua.
A respeito do trabalho com a leitura nas aulas de Língua Portuguesa Antunes
(2003) postula:

• Uma atividade de leitura centrada nas habilidades mecânicas de


decodificação da escrita, sem dirigir; contudo, a aquisição de tais
habilidades para a dimensão a interação verbal-quase sempre, nessas
circunstâncias, não há leitura, porque não há “encontro” com ninguém
do outro lado do texto;
• Uma atividade de leitura sem interesse, sem função, pois aparece
inteiramente desvinculada dos diferentes usos sociais que se faz da
leitura atualmente;
• Uma atividade de leitura puramente escolar; sem gosto, sem prazer,
convertida em momentos de treino, de avaliação ou em oportunidade
para futura “cobranças”; leitura que é, assim, reduzida a momentos de
exercício, sejam aqueles da “leitura em voz alta” realizados, quase
sempre com interesse, com interesses avaliativos, sejam aqueles que
têm de culminar com a elaboração das conhecidas “fichas de leitura”;
• Uma atividade de leitura cuja interpretação se limita a recuperar os
elementos literais e explícitos presentes na superfície do texto. Quase
sempre esses elementos privilegiam aspectos pontuais do texto
(alguma informação localizada num ponto qualquer), deixando de lado
os elementos de fato relevantes para a sua compreensão global ( como
seriam todos aqueles aspectos relativos à ideia central, ao argumento
principal defendido, à finalidade global do texto, ao reconhecimento do
conflito que provocou o enredo da narrativa, entre outros). (ANTUNES,
2003, p. 28)

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No tocante ao ensino da leitura na sala de aula, a autora elenca uma série de
problemas quanto ao trabalho referente à leitura. Esses impasses dificultam o
aprendizado eficaz da leitura. São meramente exercícios com o texto que não têm uma
função, um objetivo a cumprir. Exercícios mecânicos de decodificação, análises
sintáticas, interpretação escrita, estritamente como treino da linguagem verbal.
Compreensão das partes do texto e se esquecendo do propósito comunicativo do texto.
É preciso explorar a leitura do texto em sua plenitude, não somente atentar para alguns
elementos que o constituem. Trabalhar os aspectos globais envolvem elementos
pontuais do texto como também a leitura, a ideia defendida, a finalidade.

Letramento literário

De acordo com Kleiman( 1995) o conceito de Letramento surgiu para o


entendimento os estudos sobre “os impactos sociais da escrita” dos estudos sobre
alfabetização. Para a autora, as discussões acerca do Letramento eram pautadas na
padronização e variante de uma linguagem, isso separava os alfabetizados dos não
alfabetizados, focando simplesmente no uso da escrita. Para quem, o Letramento
refere- se ao uso social da escrita que extrapola os muros da escola.
Soares (2009) enfoca que o termo Letramento ainda recente nas Literaturas,
nos campos de pesquisas e ainda não dicionarizado. A autora define letramento como:
“Resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita; O
estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência
de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais (SOARES, 2009, p. 39)”.
Ademais, mesmo sendo processos distintos, são indissociáveis, pois ao mesmo tempo
em que o indivíduo aprende a leitura, desvenda a escrita.
Para trabalharmos o Letramento Literário, embasamo-nos na teoria de Cosson
(2007) a qual enfoca o uso social da leitura literária. Vale ressaltar, a importância da
mediação do professor nesse processo de letramento. “O professor é o intermediário
entre o livro e aluno, seu leitor final” (COSSON, p. 32). Nesse viés, organizaremos nossa
proposta de acordo com a sequência básica de leitura, abordada pelo autor no livro
“Letramento Literário: teoria e prática” (2007). Escolhemos a sequência básica em
virtude da série em que o trabalho será proposto, pois acreditamos estar mais adequada
à turma.

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A sequência básica engloba quatro etapas importantes para o processo de
letramento. São elas: Motivação, Introdução, Leitura e Interpretação. Essas etapas
permitem ao leitor ampliar as discussões acerca do texto/ obra a serem lidos. Para
Cosson (2007) não basta entregar o livro para o aluno e acreditar que ao tomar contato
com o texto/obra o discente conseguirá sozinho atribuir sentidos à leitura. Vale ressaltar
a necessidade de uma leitura planejada e acompanhada pelo professor, pois ajudará na
compreensão do texto.
Sendo a motivação a primeira etapa do letramento literário, envolve processos
de adentrar a leitura com elementos que levem os discentes a se interessarem pela
obra. Cosson (2007, p. 53) afirma “Crianças, adolescentes e adultos embarcam com
mais entusiasmo nas propostas de motivação e, consequentemente, na leitura quando
há uma moldura, uma situação que lhes permite interagir de modo criativo com as
palavras”. Nesse sentido, a motivação é uma provocação à curiosidade para
receptividade à leitura. Podemos indicar várias possibilidades de motivação como:
instigar a leitura por meio do título, trazer uma dinâmica, um vídeo, entre outros, que
tenham relação com o assunto que será abordado.
A introdução é a segunda etapa do letramento literário, está pautada nas
estratégias que o professor vai usar para iniciar a leitura do texto literário. Para Cosson
(2007), tais estratégias podem ser a apresentação do autor e da obra, o manuseio da
obra, verificação dos elementos pré-textuais para assim comprovar ou refutar as
expectativas com a leitura do texto. Esses recursos utilizados antes da leitura facilitam
a compreensão daquilo que será lido. Cosson afirma (2007, p. 61) afirma “... a
introdução não pode se estender muito, uma vez que sua função é apenas permitir que
o aluno receba a obra de maneira positiva”. Para tanto, a importância de um bom
direcionamento nas propostas, que serão apresentadas aos discentes, contribuem para
suscitar a curiosidade do leitor.
Dando continuidade as estratégias da sequência básica, a terceira etapa é a
efetivação da leitura. Para esse momento, segundo Cosson (2007), é importante o
acompanhamento do professor na leitura dos discentes, respeitando os ritmos de cada
aluno. Nessa etapa, é possível fazer leitura silenciosa para se familiarizar com o texto,
em seguida leitura coletiva, dramatizada e a leitura do professor para a turma. Caso seja
um texto mais extenso, é recomendada a pausa protocolada que visa discutir os pontos
relevantes do texto como também instigar a curiosidade dos alunos ao prosseguimento
da leitura.

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Por último, a interpretação, que é um momento do ápice do processo do
letramento literário, pois os discentes vão externar seu posicionamento sobre o texto
lido por meio do registro. Nesse viés, não há uma receita a seguir, segundo o autor, mas
o professor precisa atentar para as especificidades de cada turma/ série, pois o trabalho
deve estar de acordo com o público que vai receber as orientações. Para tanto, uma
releitura do texto, uma cena dramatizada, e continuidade da história são exemplos que
podem ser aplicados nesse momento de interpretação.

Sequência básica do conto: “A Moça Tecelã”, de Marina Colasanti

http://www.beatrix.pro.br/index.php/a-moca-tecela-marina-colasanti/ Acesso em 16 de agosto


de 2020

O professor poderá desenvolver a sequência básica por meio de oficina,


escolhemos o conto “A moça Tecelã” de Marina Colasanti. Inicialmente, sugerimos a
motivação através do questionamento sobre o título do texto, se conhecem uma
tecelagem, e quais as etapas desse processo. Para dinamizar a receptividade da leitura,
o professor pode levar elementos da tecelagem para aqueles alunos que não conhecem
para exposição durante a motivação ou um vídeo que mostre o que é uma tecelagem,
assim facilitará a compreensão do título e sobre o que será tratado na obra/ texto.
Para segunda etapa do letramento que é a introdução, propomos que o
professor fale um pouco da autora, elementos como: quem é, onde nasceu, temáticas
abordadas em seu livro, além de levar o livro para que os alunos conheçam a obra. Além
disso, aproveitar o momento para fazer uma breve discussão acerca do que será
abordado no texto a fim de instigar a curiosidade do discente. Esse momento é de um
pequeno relato daquilo que será tratado e não pode comprometer ou substituir a leitura
que será abordada na próxima etapa.

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A próxima prática é a leitura propriamente dita. Inicialmente os alunos podem
fazer a leitura silenciosa para se apropriarem dos elementos linguísticos, decodificação
da leitura. Em seguida, em grupo ou dupla. Após a leitura inicial, propor aos discentes
a leitura compartilhada, cada aluno fica responsável para ler um parágrafo. Ao término
da leitura compartilhada, o professor fará a leitura para os alunos, fazendo a entonação,
as pausas, intensificando a dramatização do texto.
Para finalizar o processo de Letramento do conto, a interpretação. Nessa
etapa, pode ser sugerido aos discentes um debate direcionado acerca das temáticas
apresentadas identificando no texto o conflito gerador, a percepção da dualidade como
liberdade/ amor, valores materiais/ afetividade, autonomia/ submissão. Levando a
discussão sobre o empoderamento feminino, sobre também o conceito de liberdade,
felicidade. Para atribuir sentidos ao texto, sugestão de produção de uma animação que
abordem a “Moça Tecelã” atual, enfocando os aspectos de destaque das mulheres no
mercado de trabalho. Uma mulher dona de si e capaz de modificar o seu espaço
ganhando a autonomia, independência.
Por meio de uma sequência básica de leitura, apresentamos o caminho
possível que o professor percorrerá com os discentes a fim de levá-los ao processo de
Letramento Literário.

Considerações finais

Conforme o enfoque teórico sobre o letramento literário é possível pontuar a


importância de promover momentos significativos com o texto literário visando à
melhoria das habilidades leitoras dos discentes, além de se tornarem seres humanos
mais críticos e capazes de modificarem o meio onde vivem. Nesse viés, a importância
de trabalhar com a leitura que vai despertar a emoção, o sentimento, a razão, mostrando
a visão de mundo diferente. A literatura nos possibilita isso, adentrar a realidade por
meio da ficção. Essa é nossa função, despertar nos discentes o hábito e o gosto pela
literatura.
Esperamos que a proposta aqui apresentada sirva como referência para os
professores trabalharem o Letramento Literário em sala de aula, a fim de que os
discentes desenvolvam as habilidades leitoras. Nesse sentido, esta proposta contribui,
de alguma forma, na promoção de alunos leitores.

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Referências

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2003.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional


Comum Curricular. Brasília-DF; MEC; CONSED; UNDIME, 2017. Acesso em: 10 jun.
de 2019.

CAGLIARI, L.C. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 1997. Coleção


Pensamento e ação no magistério.

COLASANTI, M. A Moça Tecelã. São Paulo: Global, 2004.

COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2007.

FERREIRA, A. B. H. O minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 2001.

FRANCA, J. L. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. 8. ed.


rev. e ampl. Belo Horizonte: UFMG, 2007. 255p.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Editora Atlas, 2002.

KOCH, I. V.; E., V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. 3. ed. São Paulo:
Contexto, 2012.

LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. de A. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed.


São Paulo: Atlas, 2003.

SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,


2001.

___. Letramento: um tema em três gêneros. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p.
124.

THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. 8. ed. São Paulo: Cortez, 1998.

PAEBES, Desempenho e Participação (RE e RM). Disponível em:


<http://www.paebes.caedufjf.net/resultados/>. Acesso em: 2 de maio de 2019. Acesso
em 10 de agosto de 2020.

<http://www.paebes.caedufjf.net/wp-content/uploads/2012/05/PAEBES-2015-MATRIZ-
LP-9EF.pdf> Acesso em: 20 de jan. de 2020.

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A CONCEPÇÃO DE LEITURA EVIDENCIADA POR MEIO DA
LINGUAGEM DA CRIANÇA

Keila Montes Pereira, Universidade Federal de Lavras, NELLE/PIBIC-UFLA


Ilsa do Carmo Vieira Goulart, Universidade Federal de Lavras, NELLE/PIBIC-UFLA

Eixo Temático: Grupo Temático 10: Educação literária, Letramento literário, formação
e mediação de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender.

Considerações iniciais
Este trabalho apresenta resultados de uma pesquisa de iniciação científica 259,
financiada pela UFLA - Universidade Federal de Lavras, que teve por finalidade
compreender a representação de leitura evidenciada nos enunciados das crianças, a
partir de situações dialógicas durante e após a leitura do livro intitulado “A Casa
Sonolenta”, em uma escola pública, no sul de Minas Gerais. A pesquisa apresentada
justifica-se pela necessidade de se ampliar a compreensão sobre os impactos das
atividades de leitura literária no contexto escolar, diante disso buscamos observar a
influência da leitura literária no desenvolvimento da linguagem oral das crianças e no
processo de interação.
Nessa perspectiva, este estudo parte da premissa de que a palavra, como
expressão da linguagem, torna-se um meio imprescindível que permite à criança se
relacionar, comunicar e interagir com o outro, consigo e com o meio a qual está inserida,
levando em consideração aspectos e influências culturais, em que são atribuídos
significados históricos e sociais. Haja vista que a palavra carrega consigo sentidos
múltiplos e inacabados, propiciando à interação social, conforme explica (BAKHTIN,
2003).

259
A pesquisa passou pelo COEP (Comitê de Ética em Pesquisa) da Universidade federal de
Lavras, sendo aprovada com o Parecer Consubstanciado de número 2.926.204.
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A palavra pode ser entendida como um meio de interação social, pois o “falar”
envolve um locutor e também um interlocutor. Sendo assim, com vistas a compreender
de que forma a criança se relaciona com a construção de significados por intermédio
dos enunciados, a pesquisa se apoia na abordagem Histórico-cultural, especificamente
no processo de formação da linguagem, ressaltando a importância do outro como
mediador no processo de constituição da linguagem infantil. Nesse sentido, a leitura,
principalmente, de livros de literatura infantil, mostra-se uma ação formativa desde à
mais tenra idade, podendo corroborar com o desenvolvimento da expressão oral das
crianças, como também da socialização, da interação e da manifestação das múltiplas
linguagens.
Os espaços destinados a Educação infantil são visualizados no âmbito
sociocultural, por serem favorecedores do encontro de várias culturas, embasando no
conceito dialógico de Bakhtin (2003). Dessa forma, no documento orientador atual -
Base Nacional Comum Curricular - é apresentado que na Educação Infantil as crianças
devem ser propiciadas de se apropriarem da linguagem oral por meio de situações e
atividades em que são estimuladas e provocadas a falar, podendo desenvolver,
enriquecer e ampliar seu vocabulário (BRASIL, 2018).
Ao considerarmos o que se discute nos documentos oficiais sobre a
importância de um trabalho pedagógico que estimule o desenvolvimento da linguagem,
visto que as crianças interagem e se apropriam da linguagem por meio das relações
sociais, de que maneira a leitura literária pode contribuir com esse processo de interação
consigo, com o outro e com o mundo? Como as crianças compreendem a leitura? De
que forma a atividade de leitura realizada na sala da Educação Infantil, bem como
situações dialógicas e reflexões das narrativas pode influenciar no desenvolvimento da
linguagem oral?
Frente a tais questões, a pesquisa tem como objetivo entender os modos de
compreensão de leitura evidenciada nos enunciados das crianças, a partir de situações
de diálogo, em roda de conversa. Para tanto, desenvolveu-se uma pesquisa de campo,
assumindo como proposta metodológica uma pesquisa de abordagem qualitativa, de
caráter exploratório, tomando como procedimento investigativo a observação e a
descrição de situações dialógicas. Buscando analisar de forma interpretativa os dados
obtidos da pesquisa, realizada com uma turma da Educação Infantil, crianças de 5 anos,
em uma instituição pública de ensino no sul de Minas Gerais.
Nas seções temáticas que sucedem a introdução, foram postos os
fundamentos teóricos que embasam o desenvolvimento da pesquisa. Sendo assim, na

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primeira seção discute-se sobre o desenvolvimento da linguagem oral à luz dos
pressupostos da Psicologia Histórico-cultural, embasando-se nas perspectivas teóricas
de Lev Semyonovich Vygotsky. A segunda seção traz reflexões acerca da leitura literária
e sua influência no desenvolvimento da linguagem oral, a partir de situações dialógicas
e interativas com as crianças da Educação Infantil.

A criança e o desenvolvimento da linguagem oral sob a ótica de Lev


Semyonovich Vygotsky
O desenvolvimento da linguagem representa uma esfera ampla contemplando
diferentes composições. A linguagem como processo de inserção social, constitui-se de
um sentido amplo e de um sentido restrito segundo (VYGOTSKY, 1999), sendo que, o
primeiro abarca a expressão, a interação e a comunicação, e o segundo refere-se
especificamente ao processo de aquisição da linguagem, seja na dimensão oral ou
escrita.
Sendo assim, pode-se considerar a linguagem como um aspecto essencial, que
se relaciona diretamente ao desenvolvimento afetivo, cognitivo e motor da criança,
estabelecendo uma maneira de expressão, podendo ser usada de variadas formas.
Sendo fundamental para o desenvolvimento da criança, possibilitando-a interagir e
constituir relações com a família e com outras crianças no âmbito escolar.
A linguagem na concepção de Lev Semyonovich Vygotsky surge da
necessidade de comunicar-se com o outro, como uma forma de interação social. Dessa
forma, a fala primitiva da criança já é considerada como uma forma de socialização,
apreendendo toda a sua manifestação por meio de sons, gestos, balbucios e choros,
dentre outros. Todas as experiências vivenciadas pelas crianças em seus
desenvolvimentos, tanto positivas como negativas, são retidas no seu inconsciente,
congregando-lhes modelos que, posteriormente, contribuirão na construção da
linguagem, sendo utilizadas por elas sempre que necessário.
De acordo com Vygotsky (1999) a fala e o pensamento inicialmente caminham
por um seguimento de linhas paralelas, tendo raízes diferentes no desenvolvimento
humano. O autor considera que o pensamento e a linguagem são processos distintos,
no entanto, interdependentes e, quando a criança completa aproximadamente 2 anos
de idade, essas linhas que seguem até então uma trajetória independente e distinta se
encontram e se cruzam, dando origem às formas puramente humanas de inteligência
prática e abstrata.

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Cabe ressaltar que antes mesmo da criança beneficiar-se da fala, esta usa a
inteligência prática, isto é, a capacidade de agir no meio que a rodeia e de solucionar
problemas práticos a partir da ação (VYGOTSKY, 1999). A partir do contato social
frequente e dos estímulos ofertados é que a criança compreende que pode utilizar a
linguagem como uma forma de comunicação e também como uma forma de articulação
do pensamento, fazendo do pensamento e da linguagem ações interdependentes, em
que a fala passa a servir ao intelecto e os pensamentos passam a ser verbalizados.
O sintoma que indica esta determinada ocorrência é a curiosidade ativa da
criança pelas palavras, na qual demonstra grande interesse em saber o nome das
coisas, ampliando o vocabulário. Nesse processo, as crianças para além de perceberem
o mundo com os olhos e com o tato, passam a utilizar da fala, obtendo um salto
qualitativo no desenvolvimento, haja vista que, para Vygotsky (1999), a fala torna-se
uma parte imprescindível do desenvolvimento cognitivo da criança.
Com base nos estudos de Vygotsky (2009) podemos apreender que a primeira
função da língua é a comunicação, sendo um meio para viabilizar o processo de troca
de conhecimentos, saberes, experiências, o que permite comunicar-se e interagir-se
com o outro. A segunda consiste no que Vygotsky (2009) denomina de “pensamento
generalizante”, em que o uso da linguagem incide em uma função de mundo
generalizada, no qual o ato de nomear torna-se um ato classificatório.
Contudo, nota-se que a fala humana percorre um processo contínuo de
desenvolvimento, emaranhada de signos. Sendo os gestos os signos visuais iniciais que
abarca a escrita futura das crianças, e já os signos escritos considerados como gestos
fixados. Os signos representam algo que pode ter variados significados, podendo
designar os sons e as palavras da linguagem falada. Além disso, os desenhos e os
gestos representam a imaginação da criança e esses respectivos signos passam por
uma evolução até chegarem à linguagem denominada verbal escrita.
Vygotsky (1999, p. 20) enfatiza que, a linguagem egocêntrica “[...] não
permanece por muito tempo como um mero acompanhamento da atividade da criança”,
tornando-se assim gradualmente em um instrumento do pensamento, no próprio sentido
do termo, com vistas a encontrar a solução do problema. De acordo com Vygotsky
(1999), a fala egocêntrica consiste em um caminho percorrido de articulação da
linguagem, para atingir a fala interior. Nesse estágio, diante de um problema a criança
recorre a si mesma para solucioná-lo. Cabe ressaltar que a linguagem egocêntrica com
o passar dos anos diminui, mas não se extingue, sendo transformada em uma
capacidade humana, ou seja, em uma linguagem interior.

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Para Vygotsky (1999) a fala atua na unificação, organização e na integração
de variados aspectos do comportamento da criança, como: memória, percepção e
solução de problemas. O autor evidencia que é por meio das relações que a criança se
apropria da cultura e, a partir dos estímulos e do contato social, compreende que pode
utilizar a linguagem como forma de articulação do pensamento e na forma de
comunicação (VYGOTSKY, 1999).
Sabemos que desde o nascimento, a criança, é imersa em um mundo social,
na qual a maioria das atividades humanas é mediada pela linguagem. Sendo assim, a
criança aprende a falar antes de adentrar o âmbito escolar, e interage com as pessoas
que a rodeiam a todo o momento, e nesse processo aprende novos signos. A linguagem
humana é construída por meio das interações e, ao longo dessas interações ideias e
discursos são falados, que nos remete a pensar em algo que pode acontecer, e isso
também acontece quando lemos um livro, pois a leitura se configura em parte de uma
interação verbal realizada entre leitor e locutor.
A partir dos estudos de Vygotsky (1998; 1999) compreende-se que todo contato
estabelecido pela criança com o mundo é mediado pela linguagem. Sendo assim, faz-
se necessário uma atitude responsiva do outro nesse processo, haja vista que, toda
comunicação se faz por meio da interação. Nessa perspectiva, cabe ressaltar que:

As palavras, embora tenham seus significados socialmente aceitos e


compartilhados por todos os falantes de uma dada língua, não são
transparentes porque não possuem o mesmo sentido para todas as
pessoas. O sentido é construído pela interação do sujeito com seu
interlocutor e tantos outros cujas vozes que se apresentam nos
diferentes discursos que nos cercam. Para Bakthin, a linguagem é
produto da interação de sujeitos históricos, portanto, todo discurso é
interdiscursivo, atravessado por outras vozes (AUGUSTO, 2011, p.
54).

Diante do exposto, percebe-se que a produção de discursos conjectura a


apropriação e a compreensão dos discursos sociais, sendo um conhecimento
imprescindível que o professor deve notar em sua atitude responsiva. Nesse sentido, é
possível compreender a importância da interação e da participação das crianças em
situações de leitura e escrita e, em contações de histórias, que possibilitem o manuseio
de materiais escritos, sendo necessário estimulá-las a falarem sobre o que leram ou o
que ouviram, o que entenderem, o que gostaram ou não, sobre suas vontades,
interesses e desejos, por meio de um trabalho com a linguagem oral, de forma
significativa e dialógica.

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A leitura literária no processo de desenvolvimento da linguagem oral
Ao discutir sobre a palavra leitura, Corsino et al. (2016) destacam que,
apresenta uma amplitude de significados, sendo utilizada para designar várias ações,
bastante diferentes entre si. Sendo assim, as autoras evidenciam que a ampliação do
conceito de leitura pode ser explicada pelos aspectos que perpassam a sua realização,
a saber: “a produção de sentido, a interpretação dada pelo sujeito frente ao que é dado
a ler” (CORSINO et al., 2016, p. 21). A leitura pode ser entendida como um instrumento
de convivência e de interação social, de delineamento de novas e prazerosas fronteiras
do saber, podendo propiciar o conhecimento expressivo de si, do outro e do mundo.
Conforme descrito no primeiro caderno de formação do PNAIC, na terceira
unidade “Tertúlia Literária: construindo caminhos para a formação das professoras
como leitoras de literatura”, a leitura pode ser compreendida como um processo coletivo
e dialógico, partindo do pressuposto de que, “[...] ler implica compartilhar espaços,
construir pensamentos coletivamente, vivenciar experiências de leituras partilhadas”
(BAPTISTA et al., 2016, p. 111-112), sendo cotidianamente ampliada as experiências
por meio dos múltiplos sentidos construídos por diferentes leitores, por meio das
relações sociais.
Cosson (2006) assegura que o ato de ler, especialmente textos literários
provoca significativas trocas de sentidos, tanto entre o escritor e leitor, assim como para
a sociedade em que localizam, haja vista que os sentidos resultam de visões do mundo,
entre os indivíduos no tempo e no espaço. Sendo assim, o ato de ler pode ser
considerado como uma prática social, como um modo de interação entre leitor e texto,
fluído e dinâmico.
Contudo, cabe evidenciar que a leitura se torna literária quando a ação do leitor
constitui de forma predominante uma prática cultural, estabelecendo uma relação de
encantamento com o texto lido. Desse modo, a leitura literária mostra-se essencial não
somente para a formação de crianças leitoras, mas como também para a formação do
ser humano. Durante o momento da leitura as crianças são levadas a sonhar, imaginar,
adentrar um mundo novo, na qual são viabilizadas de interagirem e de recriarem as suas
próprias histórias a partir de sua linguagem, por intermédio de experiências que elas
vivenciam em casa, no âmbito escolar e com o outro.

Resultados e discussões
A proposta metodológica desta pesquisa desenvolveu sob abordagem
qualitativa, ocorreu por meio da observação a campo, objetivamos em entender a

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compreensão de leitura evidenciada nos enunciados das crianças, a partir de situações
de diálogo, em roda de conversa com as crianças. Compreendendo a linguagem como
um processo que ocorre de modo intrapsíquico, caminhando do plano interpessoal para
o intrapessoal, por intermédio de um movimento de interação verbal, decorrentes de
rodas de leitura e conversas com crianças da Educação Infantil. Para tanto, foram
observadas atividades de leitura desenvolvidas no âmbito escolar260, que nos levaram
ao seguinte questionamento: qual a compreensão de leitura que se mostra evidenciada
nos enunciados das crianças, a partir de situações de diálogo, por meio da utilização de
livros de literatura infantil?
No que tange a natureza da pesquisa, conforme Silva e Menezes (2005) pode-
se classificá-la como uma pesquisa de campo, assumindo como proposta metodológica
uma pesquisa de abordagem qualitativa, de caráter exploratório, tomando como
procedimento investigativo a observação e a descrição de situações dialógicas. Em que
buscamos analisar de forma interpretativa os dados obtidos da pesquisa, desenvolvida
com uma turma da Educação Infantil, crianças de 5 anos, em uma instituição pública de
ensino, no sul de Minas Gerais. Como procedimento de coleta de dados, fizemos o
acompanhamento de atividades de leitura em uma sala da Educação Infantil – 2ª etapa,
durante o período de 1 mês, sendo observado rodas de conversas e diálogos com cerca
de 25 (vinte e cinco) crianças, 2 vezes na semana, aproximadamente, 30 minutos.
Dentre as situações observadas, será apresentado um episódio em que fora usada a
história do livro: “A Casa Sonolenta”, de autoria de “Audrey Wood”, como disparador de
diálogos com as crianças.

Episódio 1: “A Casa Sonolenta261”


Inicialmente, a professora convidou as crianças da Educação Infantil a se
sentarem em roda no chão e, antes de iniciar a leitura do livro, combinou com as
crianças que no momento de leitura se elas quisessem comentar poderiam levantar o
dedinho uma de cada vez. Sendo assim, a docente pegou o livro, disse o título: “A Casa
Sonolenta”, abordou que o nome do autor era “Audrey Wood”, e como ele não era
brasileiro, para podermos ler na nossa língua, precisou primeiro ser traduzido pela
“Gisela Maria Padovan”. Ao mostrar o livro, a professora explicou que o autor é quem
escreve e a tradutora a responsável por traduzir a obra. Posteriormente, foi lendo a

260
Em razão do compromisso ético assumido com a pesquisa, não iremos mencionar o nome
da referida escola.
261
Escrito por “Audrey Wood”, ilustrado por “Don Wood” e traduzido por “Gisela Maria
Padovan”.
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história do mesmo modo em que estava escrito no livro e à medida em que lia, mostrava
as ilustrações e fazia provocações, isto é, perguntas que estimulassem as crianças a
pensar sobre o contexto da narrativa, incentivando-as a participarem e a interagirem.

Quadro 1: Episódio “A Casa Sonolenta”


01 - Professora: Porque será que o livro se chama “A Casa Sonolenta”?
02 - Criança 1: As pessoas que moram na casa são dorminhocas.
03 - Criança 2: Eles dormem muito, igual o meu irmão! Minha mãe falou para o meu irmão largar de ser
dorminhoco.
04 - Criança 3: Minha família também é dorminhoca, porque dormem até tarde!

05 - Criança 4: Eu sou sonolenta! Gosto de dormir!

06 - Professora: Era uma vez uma casa sonolenta, onde todos viviam dormindo. Nessa casa tinha uma
cama, uma cama aconchegante, numa casa sonolenta, onde todos viviam dormindo. Nessa cama
tinha uma avó, uma avó roncando, numa cama aconchegante, numa casa sonolenta, onde todos
viviam dormindo.
07 - Criança 5: A minha casa é barulhenta! As galinhas e o bezerro que meu pai comprou fazem muito
barulho. Ficam fazendo “Co-co-ri-có” e “Beeeé” todo dia!
08 - Professora: Quando eu morava na fazenda também acordava ao som das galinhas e de bezerros.
Os meus despertadores também faziam “Co-co-ri-có” e “Beeeeé”.
09 - Crianças: Riram.
10 - Professora: Em cima dessa avó tinha um menino, um menino sonhando, em cima de uma avó
roncando, numa cama aconchegante, numa casa sonolenta, onde todos viviam dormindo. Em cima
desse menino tinha um cachorro, um cachorro cochilando, em cima de um menino sonhando, em
cima de uma avó roncando, numa cama aconchegante, numa casa sonolenta, onde todos viviam
dormindo. Em cima desse cachorro tinha um gato, um gato ressonando, em cima de um cachorro
cochilando, em cima de um menino sonhando, em cima de uma avó roncando, numa cama
aconchegante, numa casa sonolenta.
11 - Crianças: onde todos viviam dormindo!
12 - Professora: Porque eles estão dormindo um em cima do outro?
13 - Criança 6: Porque quando está chovendo é bom ficar juntinho para não sentir frio.
14 - Professora: É verdade. Vou continuar a história. Em cima desse gato, tinha um rato, um rato
dormitando, em cima de um gato, um gato ressonando, em cima de um cachorro cochilando, em
cima de um menino sonhando, em cima de uma avó roncando, numa cama aconchegante, numa
casa sonolenta, onde todos viviam dormindo. E em cima desse rato tinha uma pulga... Será
possível? Uma pulga acordada, em cima de um rato dormitando, em cima de um gato ressonando,
em cima de um cachorro cochilando, em cima de um menino sonhando, em cima de uma avó
roncando, numa cama aconchegante, numa casa sonolenta, onde todos viviam dormindo. Uma
pulga acordada, que picou o rato, que assustou o gato, que arranhou o cachorro, que caiu sobre o
menino, que deu um susto na avó, que quebrou a cama, numa casa sonolenta, onde ninguém mais
estava dormindo.

Fonte: A própria autora, 2020.

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Durante os diálogos citados acima podemos notar que as crianças fazem
atribuições de sentido a palavra “sonolenta”, atrelando-a a pessoas que são
dorminhocas, “Eles dormem muito, igual o meu irmão! Minha mãe falou para o meu
irmão largar de ser dorminhoco”; “Minha família também é dorminhoca, porque dormem
até tarde!”; “Eu sou sonolenta! Gosto de dormir!”, sendo que, as crianças vão
relacionando a narrativa com fatos vivenciados por elas, por meio de experiências
cotidianas e das relações sociais.
Observamos que os discursos das crianças circularam a partir de provocações
feitas pela docente, bem como de perguntas inteligentes, contextualizadas e que
aproximavam-se das realidades das crianças, desvelando-se assim a importância do
papel da mediação docente no processo educativo, já que essas estratégias didáticas
utilizadas introduziram e envolveram as crianças nas situações dialógicas, corroborando
para as efetivas interações entre as crianças e reflexões sobre as questões. Em relação
a isso, Sepúlveda e Teberosky (2016, p. 66) apontam que os livros de literatura infantil
são indispensáveis “[...] aliados para aumentar a qualidade da linguagem que utilizam
nos diálogos que constroem com as crianças”, haja vista que, com o auxílio dos livros
literários, por meio de situações dialógicas e rodas de conversa com as crianças, estas
podem trazer a sua realidade para o momento da leitura, tornando-o prazeroso, repleto
de sentido e significado, dando visibilidade à linguagem, aproximando as crianças do
universo letrado desde a infância.
À luz desses apontamentos pode-se compreender que a leitura literária deve
acontecer de tal modo que as crianças sejam instigadas, provocadas e convidadas a
dialogarem com o texto (SILVA, 2004), produzindo significados, assim como na situação
descrita, em que a professora observada - mediadora do processo de aprendizagem-,
teve o cuidado e responsabilidade no processo de escolha dos livros literários, o que
resultou em uma prática de leitura qualitativa, corroborando para o processo de
interação e desenvolvimento da linguagem, provocando as crianças a pensarem e a
construírem hipóteses a partir das vivências e experiências adquiridas.
Contudo, Bakhtin (2003) leva-nos a refletir sobre o destaque do papel do outro
na comunicação, e partindo desse pressuposto buscamos neste trabalho compreender
a maneira que se constrói o significado para a criança ao ouvir uma determinada história
e também a partir do diálogo e interação com o outro. Considerando que por intermédio
das relações sociais as crianças interagem e de forma gradativa se apropriam da
linguagem.

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Nesse sentido, em outro momento, em roda de conversa, ao questionar as
crianças sobre “o que era ler?”, obtivemos respostas que nos ajudaram a entender a
compreensão de leitura pelas crianças, que responderam: “ler é letras” (5 anos); “ler é
falar as letras A-E-I-O-U” (5 anos); “é saber ler histórias igual a professora faz” (criança
com 5 anos e 7 meses); “para ler tem que ficar quietinho e falar as letras” (5 anos); “ler
é para brincar com as palavrinhas” (5 anos); “ler é português” (6 anos); “ler é para
estudar e ficar inteligente” (5 anos); “ler é você ir lendo o que está escrito” (5 anos e 9
meses); “ler é ler letras e ouvir o que a professora vai lendo” (5 anos); “ler é você ir lendo
o livro para fazer dormir e sonhar” (5 anos e 10 meses). Em razão da pergunta feita ser
abstrata e subjetiva, percebe-se que as crianças entrevistadas refletem a respeito do
ato de ler, dando significações a partir de vivências com a atividade de leitura,
respondendo o que imaginam ser a leitura e/ou o que já ouviram pessoas próximas
dizer.
Nas respostas podemos perceber que a compreensão do que é ler se mostra
associada à sua materialização na escrita, que seriam as letras; outro aspecto de
apreensão do que representa ler aparece vinculada à ação de leitura literária realizada
pela professora, o que demonstra a percepção e a apropriação do ato de ler como uma
ação de interação social e de inserção na cultura letrada.
A partir dos dados coletados, torna-se possível inferir que a concepção de
leitura é perpassada pelas práticas sociais de leitura vivenciadas pelas crianças e por
meio de experiências em práticas pedagógicas no contexto escolar. Além disso, a
compreensão da atividade de leitura pelas crianças mostra-se interligada a aspectos
referentes à materialidade escrita, sendo possível ler somente se tiver algo escrito, isto
é, atrelando o ler a situações concretas, a partir de letras, palavra e texto. Nesse viés, a
leitura pode ser entendida como uma das competências culturais mais valorizadas pelos
sujeitos, pois segundo os dizeres de Souza e Cosson (2011) tudo o que nós somos e
fazemos passa pela escrita, por isso a leitura seria imprescindível para a sociedade e
para a sobrevivência nesta.

Considerações finais
Tendo em vista que este trabalho objetivou em entender a compreensão de
leitura evidenciada nos enunciados das crianças e de que maneira a leitura literária pode
contribuir com o processo de desenvolvimento da linguagem oral, de interação consigo,
com o outro e com o mundo, infere-se que uma possível contribuição desta pesquisa
perpassa pela proposta de se pensar um lugar central para a atividade de leitura nos

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processos educativos, tendo em vista as suas contribuições para o desenvolvimento
humano e cognitivo, da linguagem oral, para o despertar da fantasia e da imaginação.
Nessa perspectiva, constatou-se por meio das observações que as situações
dialógicas a partir de rodas de leitura se mostram essenciais no cotidiano da Educação
Infantil, em que, a partir de momentos convidativos e de boas provocações as crianças
sejam estimuladas a pensar, interagir com o ambiente, com o outro e consigo mesmo,
contribuindo para o desenvolvimento da expressão oral, interação verbal, linguagem e
socialização, bem como da inserção num processo de letramento literário e apropriação
em uma cultura letrada.
Portanto, os resultados da pesquisa indicam que a mediação da leitura literária
do professor se torna essencial tanto para o desenvolvimento da linguagem da criança
como para a compreensão da leitura, e dessa forma, permite-nos compreender que a
leitura literária no cotidiano da Educação Infantil faz-se fundamental, conforme abordado
por (SEPÚLVEDA; TEBEROSKY, 2016), sendo assim, deve ser apresentada às
crianças desde cedo, seja por meio de mediações de leitura literária ou contação de
histórias. Em suma, verifica-se que, a escuta ativa, o acolhimento, o olhar atento, as
respostas dialógicas e a mediação docente viabilizam o desenvolvimento qualitativo e
efetivo das crianças no decorrer das atividades, possibilitando o desenvolvimento da
linguagem oral, da interação verbal e expressividade das crianças, de forma a estimular
a formação de futuros leitores assíduos, reflexivos e críticos (CALERO, 2013).

Referências
AUGUSTO, S. de O. A linguagem oral e as crianças: possibilidades de trabalho na
educação infantil. Cultura Acadêmica - UNIVESP, São Paulo, v. 1, p. 52-64, 2011.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo:
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BAPTISTA, M. C. et al. Tertúlia Literária: construindo caminhos para a formação das


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Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/ SEB, 2018.

CALERO, A. El lector como reparador de significado. Un ejemplo práctico de


instrucción directa en estrategias metacognitivas. Didáctica - Lengua y Literatura,
Madrid, v. 25, p. 83-115, 2013.

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CORSINO, P. et al. Leitura e escrita na Educação Infantil: concepções e implicações
pedagógicas. In: BAPTISTA, M. C. et al. (Orgs.). Crianças como leitoras e autoras /
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. 1.ed. Brasília: MEC /SEB,
2016, v. 6, n. 1, p. 13-50. Disponível em: http://www.projetoleituraescrita.com.br/wp-
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COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
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SEPÚLVEDA, A.; TEBEROSKY, A. As crianças e as práticas de leitura e de escrita. In:


BAPTISTA, M. C. et al. (Orgs.). Crianças como leitoras e autoras / Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica. 1.ed. Brasília: MEC /SEB, 2016, v. 6, n. 2,
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dissertação. 4. ed. Florianópolis: atual, 2005.

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2011. Disponível em:
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______. A Formação Social da Mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna
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WOOD, A. A casa Sonolenta. Ilustrações de Don Wood. Trad. Gisela Maria Padovan.
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O IMPACTO DO PROGRAMA RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA NA
FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR DE LITERATURA: UMA
PROPOSTA DE LEITURA LITERÁRIA COM CONTOS E POEMAS
AFRO-BRASILEIROS

Lucas Breda Magalhães (G- UENP-CCP/GP CRELIT/CAPES)


Jonas Thiago Quasne (G- UENP-CCP/CAPES)
Ana Paula Franco Nobile Brandileone (UENP-CCP/GP CRELIT/CAPES)

Eixo Temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entre-caminhos do saber/aprender

Considerações iniciais
O programa Residência Pedagógica inscreve-se como uma das políticas
públicas que integra plano nacional para a formação de professores. Entre os seus
objetivos estão incentivar a formação de docentes em nível superior para a Educação
Básica, conduzindo o licenciando a exercitar de forma ativa a relação entre teoria e
prática; fortalecer e ampliar a relação entre as Instituições de Ensino Superior (IES) e a
escola pública para a formação de professores da Educação Básica, bem como
revigorar o papel das redes de ensino na formação de futuros professores. Para tanto,
cada subprojeto a ser desenvolvido é composto pelo residente, que deve ser discente
com matrícula ativa em curso de licenciatura e que tenha cursado no mínimo 50% do
curso ou que esteja no 5º período; preceptor, professor da escola da Educação Básica,
responsável por planejar, acompanhar e orientar os residentes nas atividades
desenvolvidas na escola campo; e docente orientador, docente da IES, responsável por
planejar e orientar as atividades dos residentes de seu núcleo de Residência
Pedagógica.
Ao longo de 18 meses (agosto de 2018 até dezembro de 2019), o Programa
Residência Pedagógica foi incrementado no curso de Letras Português/Inglês, da
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), campus Cornélio Procópio com o
subprojeto intitulado “Residência Pedagógica: formação de professores de Língua
Portuguesa e Literatura para a Educação Básica”, que se dividiu em dois grandes eixos:
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o primeiro voltado para o ensino dos gêneros textuais e, o segundo, para a educação
literária.
No eixo vinculado à literatura, as atividades foram desenvolvidas em duas
escolas campo: no Colégio Estadual Monteiro Lobado, sob a supervisão da Profª Dra.
Inês Cardim Bressan, cujas atividades de leitura literária foram sistematizadas a partir
dos pressupostos metodológicos de Cosson (2016), a sequência didática expandida,
com a obra Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende , implementadas em duas turmas
do 3º ano do Ensino Médio. Em outra escola parceira, no Colégio Estadual Zulmira
Marchesi da Silva, sob supervisão da Profª Ma. Ieda Maria Sorgi Pinhaz, as ações
didático-pedagógicas tiveram como público alvo o 1º ano do Ensino Médio e focaram
igualmente na escolarização da literatura, a partir do estudo (análise e interpretação) de
textos literários de variados gêneros da cultura africana e afro-brasileira. O objetivo foi
implementar a Lei 10.639/03 que, modificando a Lei de Diretrizes e Base da Educação
Nacional 9.394/96, incluiu no currículo oficial dos estabelecimentos de ensino
fundamental e médio, públicos e privados, de todo o país, a obrigatoriedade do ensino
sobre “História e Cultura Afro-brasileira”. O diário de leitura foi a ferramenta didática
selecionada para impulsionar e possibilitar uma mudança de paradigma quanto à leitura
do texto literário no ambiente escolar. O presente trabalho vincula-se às atividades
realizadas no Colégio Zulmira Marchesi da Silva, no município de Cornélio Procópio.
Antes, porém, da implementação das atividades no referido colégio, foram
realizados, na universidade, encontros de estudo, com o objetivo de investigar 1. as
especificidades do discurso literário por meio da análise de textos literários (CANDIDO,
1972, 1995; ABREU, 1995; JOUVE, 2012; BRANDILEONE, 2014; CARRASCOZA,
2015); 2. leitura de textos teórico-metodológicos sobre o ensino de literatura (CEREJA,
2014; COSSON, 2016); 3. leitura de textos teóricos sobre a formação do leitor e do
professor de literatura (COSSON, 2013; ROUXEL, 2013; NAVAS; IGNÁCIO 2015); 4.
leitura de textos teóricos sobre o diário de leitura (BUZZO, 2010; JOUVE, 2013,
COSSON, 2014); 5. sobre a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o trabalho com a
história e cultura africana e afro-brasileira nas redes pública e privada da educação
básica; 6. sobre textos teóricos que fundamentam a produção literária afro-brasileira
(DUARTE, 2011).
A partir do exposto, este trabalho objetiva apresentar os impactos do subprojeto
desenvolvido na formação inicial de professores de literatura, a partir do enfoque de
duas questões principais: na primeira seção, discussão teórica sobre o perfil esperado
do professor de literatura, sua formação inicial e as contribuições do programa nesse

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aspecto; na segunda, aborda-se a experiência prática efetivada no residência
pedagógica relacionando-se com a leitura de textos afro-brasileiros e a utilização do
diário de leitura no contexto escolar e os resultados obtidos.

O professor de literatura e sua formação inicial


A desconfiança em relação à importância da literatura no contexto escolar,
frequentemente corroborada pelas perguntas “para quê?” e “por quê?” ensinar literatura,
não é de hoje. Sem falar no apagamento desse objeto artístico nos documentos oficiais
recentemente publicados, nos âmbitos federal e estadual, Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2017) e Referencial Curricular do Paraná (PARANÁ, 2018),
respectivamente, tornando seu lugar ainda mais incerto. Nesse contexto, Segabinazi
(2016) também destaca a pouca relevância – para não dizer negligência – da literatura
em documentos oficiais, que parece ter sucumbido “[...] diante da língua portuguesa,
principalmente, frente a supremacia dos estudos dos gêneros discursivos” (2016, p. 84).
Apesar desse quadro negativo, a literatura resiste como conteúdo curricular a ser
ensinado no espaço escolar, sobretudo pelo esforço de professores para mantê-la viva.
Portanto, refletir a respeito da escolarização da literatura, “[...] processo inevitável,
porque é da essência mesma da escola, é o processo que a institui e a constitui”
(SOARES, 2011, p.21), faz-se necessário, sobretudo, quando o foco recai sobre o modo
como a literatura vem sendo ensinada na escola.
Navas e Ignácio (2015) chamam atenção para os usos “suspeitos” da literatura
na escola, como, por exemplo, a sua utilização para o ensino de gramática, o uso
fragmentado de obras, o estudo de aspectos periféricos ao texto literário - historiografia
e dados biográficos dos autores -, os quais levam à descaracterização do próprio objeto
literário. Associado a esses aspectos, Segabinazi (2016) aponta, ainda, que o ensino
promovido pelas universidades, no que tange à formação de professores de literatura,
possui falhas, principalmente no que refere a fundamentos de ordem teórico-
metodológico, dificultando a implementação da prática da leitura literária em sala de
aula. Já Cosson avalia que, mesmo na disciplina de Prática de Ensino ou Estágio
Supervisionado, a formação buscada não é a do professor de literatura, mas sim do
professor de língua portuguesa, usualmente a cargo de um professor da área de
Educação. Desse modo, a formação dos estudantes de licenciatura em Letras “[...] está
longe de ser satisfatória” (COSSON, 2013, p. 14). O autor ainda sinaliza que a área
voltada para o ensino de literatura “[...] não apresenta uma produção teórica e
metodológica de largo alcance” (2013, p. 16); aspecto em descompasso se comparado

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a outras áreas de estudos literários ou até mesmo do ensino de Língua Portuguesa, que
focam, sobretudo, no ensino dos gêneros textuais. Por outro lado, mestrados
profissionais, como o Profletras, têm assumido relevante papel para preencher esta
lacuna. No bojo de tudo isso, no entanto, está, segundo acentua Cosson, o professor
do ensino superior que, atuando, não raro, como pesquisador, tende a tomar questões
relacionadas ao ensino como suplemento, ainda que a docência seja o centro de suas
atividades profissionais, ficando as suas aulas articuladas prioritariamente em torno da
crítica literária, estudos comparados, tradução, por exemplo; o que contribui para a
formação inadequada do professor de literatura na maioria das universidades do país.
As consequências de uma formação inicial insuficiente somado ao apagamento
da literatura nos documentos oficiais, influenciam fortemente a abordagem da literatura
na Educação Básica. É o caso do Ensino Médio, cujo ensino da literatura está centrado
na periodização de estilos e a identificação de autores canônicos por meio de dados
biográficos e excertos de suas obras, ou aulas de análise crítica de textos literários, o
que transforma “[...] a leitura literária em exercício de busca a sentidos misteriosos que
apenas o professor consegue identificar” (COSSON, 2013, p.19). Já nos anos finais do
Ensino Fundamental, ela se particulariza na continuidade de formar de leitores,
processo que se iniciara nas séries iniciais, mas, conforme alerta Cosson (2013), os
professores desse segmento de ensino não foram preparados para tamanha liberdade.
Diante desses fatos, o estudioso apresenta uma importante indagação: “Sendo esses
os desafios e as dificuldades da atuação, o que precisamos oferecer em termos de
formação para o professor de literatura proporcionar a seus alunos a experiência da
literatura? (COSSON, 2013, p. 20).
Diante do desejo e da escolha em ser professor de Literatura, Cosson aponta
não apenas para os desafios e para as dificuldades provenientes da atuação, mas
também para a trajetória a ser percorrida, já que “[...] ensinar literatura [que] não é a
mesma coisa que ensinar língua portuguesa” (2013, p.24). Para o autor está no
processo formativo a resposta para a pergunta: “[...] o que somos quando somos
professores de literatura?” (2013, p.24). Dos cursos de formação é esperado que
oportunizem mecanismos para a constituição de um docente leitor: “Dos cursos de
formação, seja Letras ou Pedagogia e mesmo pós-graduação, devemos esperar um
professor de literatura que seja um leitor” (2013, p.21). Entretanto, o professor não deve
ser qualquer leitor, mas um leitor que apresente um repertório de obras literárias e tenha
competência para a sua seleção, oportunizando aos seus alunos transitar entre os
textos literários, tanto canônicos quanto contemporâneos ou atuais. Não menos

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importante é a necessária preparação para que ele também atue como educador
literário, compreendido como aquele que possui conhecimentos além da formação
pedagógica, isto é, um profissional que “[...] incorpora em seu processo formativo um
repertório de técnicas e métodos de ensino de literatura” (COSSON, 2013, p. 22) e
compreenda a potencialidade da literatura e seja capaz de “responder para que e por
que ensina literatura” (COSSON, 2013, p. 22). Nessa perspectiva, entende-se que
escolha de uma metodologia de ensino é essencial no processo de ensino e
aprendizagem da Literatura, pois o professor deve ter objetivos e metas bastante
definidos para orientar as expectativas educativas, já que a “[...] disponibilidade ao texto
e desejo de literatura são fenômenos construídos [...]” (ROUXEL, 2013, p.32). Nesse
sentido, a metodologia é o que dá sustentação à prática da leitura literária e sentido à
aprendizagem, assumindo relevante estratégia não só para recuperar a leitura literária
no espaço escolar, mas também “[...] garantir a função essencial de construir e
reconstruir a palavra que nos humaniza” (COSSON, 2016, p.27).
O autor ainda aponta para a necessidade de ampliar o espaço da literatura nos
cursos de licenciatura, sobretudo de Letras e Pedagogia, sinalizando desde a
possibilidade de novas disciplinas que envolvam discussões teórico-metodológicos,
voltadas para educação literária, até a constituição de espaços e oportunidades que
coloque em contato os professores de literatura de diferentes níveis de ensino, que
garantiria o intercâmbio de experiências distintas que se complementam (COSSON,
2013). Faz-se igualmente relevante a formação continuada do professor, ou seja,
daquele que já atua no espaço educacional, seja no contexto universitário ou no
contexto da educação básica. Nessa direção é que Cosson (2013) defende a formação
do professor em exercício para preencher eventuais lacunas da formação inicial. Mas
alerta que cursos esporádicos que se restringem a apresentar inovações pedagógicas
não são suficientes para suprir a necessidade dos professores. Para o autor, para que
a formação continuada surta efeito na vida do professor, é importante que os cursos
oferecidos possuam uma lógica de progressão, que incorpore ganhos intelectuais, bem
como formação específica em cursos de longa duração, como especialização, mestrado
ou doutorado, “[...] ao lado de benefícios financeiros e outros ganhos individuais na
carreira docente” (2013, p.23).
Além disso, Cosson propõe que haja uma maior proximidade dos professores
das universidades com os professores em atuação na Educação Básica, uma vez que
“Essa aproximação desenvolverá, por exemplo, uma sensibilidade maior do professor
de literatura do ensino superior em relação às questões que serão enfrentadas por seus

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alunos na escola” (2013, p.22) e, assim, levá-lo à necessária reflexão sobre a educação
literária em seus aspectos teóricos e metodológicos. Atualmente, há programas de
ensino voltados para essa articulação, como o Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência (PIBID) e Residência Pedagógica; ambos no âmbito federal. Outra
medida é a elaboração de programas de ensino mais claros e detalhados sobre o ensino
de Literatura em todos os níveis de ensino. Não obstante os programas de ensino sejam
responsabilidade das instituições, como as secretarias estaduais da educação e as
universidades, Cosson lembra que eles não podem ser construídos sem a participação
dos professores de Literatura: “É a eles que cabe, primordialmente, definir os objetivos,
os conteúdos e os procedimentos que se deve adotar para ensinar literatura” (2013, p.
23). Diante do exposto, pode-se verificar que a formação inicial adequada dos
professores de literatura, a inserção de um ensino de literatura visando à educação
literária e à formação do leitor, sobretudo literário, na educação básica são objetivos a
serem alcançados, mas que dependem de vários agentes para sua implementação.
Nesse contexto, o subprojeto do Residência Pedagógica, desenvolvido na
Universidade Estadual do Norte do Paraná, campus Cornélio Procópio, representa uma
ação prática que orquestra política pública, docentes e alunos da rede básica da
educação, bem como licenciandos, visando a formar professores de literatura e, para
tanto, oportuniza não apenas embasamento teórico-metodológico, mas também o
contato com o texto literário considerando a sua especificidade, a fim de ultrapassar o
uso pragmático do fazer literário, caracterizando-se, portanto, como caminho para a
formação inicial e continuada. A seguir, análise dos resultados obtidos com o uso do
diário de leitura em experiência de leitura literária com contos e poemas da Literatura
Afro-Brasileira, realizada no Colégio Estadual Zulmira Marchesi da Silva, no município
de Cornélio Procópio.

A prática do diário de leitura em sala de aula


Em “O diário de leitura como artefato ou instrumento no trabalho docente”,
Buzzo (2010) traça o percurso histórico da escrita diarista e evidencia que são muitas
as transformações sofridas, por isso, muitos são os tipos de diário. De origem incerta, o
diário, tal como o reconhecemos hoje, como “repositório de lembranças”, “história ou
escrita de si” e/ou “espaço para a reconstituição do próprio eu”, ganha contorno com o
Romantismo, dada a dimensão subjetiva, essencialmente introspectiva, explorada pelo
movimento literário. Depois, dada a influência das correntes cientificistas na segunda
metade do século XIX, fortalecidas no início do século XX e chegando à

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contemporaneidade, a escrita diarista formalizou-se e passou a ser adotada também
por pesquisadores como ferramenta auxiliar em estudos e pesquisas de campo
(BUZZO, 2010). Isso evidencia que de uma atividade cotidiana e intimista, o diário
converteu-se, também, em um recurso voltados para atividades científicas e
acadêmicas, passando a ser incorporado, mais contemporaneamente, no contexto
escolar como ferramenta didática. No espaço escolar, o seu uso se configura como um
texto de cunho subjetivo ou íntimo, escrito na primeira pessoa do singular, fomentado a
partir da leitura de um texto indicado ou exposto pelo professor ou pelo próprio aluno, a
partir de instruções pré-estabelecidas (BUZZO, 2010).
Neste contexto, o diário de leitura caracteriza-se como importante instrumento
para o desenvolvimento da competência literária e formação do leitor, visando ao
letramento literário. Cosson (2014), em “Diário de leitura”, apresenta alguns objetivos
didáticos para o uso diário de leitura no contexto escolar, e aponta o comentário como
uma das formas mais tradicionais usadas pelos indivíduos para se relacionarem com o
texto literário, já que possibilita aos leitores uma melhor compreensão do que está sendo
lido, haja vista que a escrita possui a capacidade de organizar o pensamento. Além
disso, por meio do diário de leitura, o aluno torna-se protagonista na construção dos
sentidos do texto literário, o que por um lado valoriza a contribuição pessoal do aluno e,
por outro, rompe com a tradição nociva na qual o aluno deve reproduzir respostas dadas
pelo professor; isso não significa, entretanto, que o professor deve se ausentar do
processo de edificação do conhecimento. Dessa forma, busca-se a formação de um
leitor capaz de interpretar e compreender os múltiplos significados e sentidos dos textos
literários de forma livre e autêntica, permitindo-lhe captar as impressões, reações e
diferentes tipos de sensações advindos da leitura do texto literário, mas sem perder de
vista a mediação do professor nesse processo. Diante disso, é necessário, segundo
Buzzo (2010), que o trabalho com o diário de leitura seja realizado em duas etapas: a
primeira reside na adoção de uma posição individual sobre o texto literário, que não
necessariamente precisa ser concretizado dentro dos muros da escola; já a segunda
etapa, corresponde ao da socialização dos registros. Esses compartilhamentos dos
registros, dimensão coletiva do uso do diário de leitura, possui a capacidade de
promover (re)significação do texto literário lido, ampliando-o.
Nas atividades desenvolvidas com o diário de leitura e obras da produção
literária afro-brasileira, realizadas no Colégio Estadual Zulmira Marchesi da Silva, no
âmbito do Programa Residência Pedagógica, o trabalho com o diário de leitura se deu
de forma associada ao estudo dos textos literários selecionados. Foram selecionados

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três contos, sendo eles “Maria”, de Conceição Evaristo (2016), “Obsessão”, de Sonia
Fátima da Conceição (1993), e “No seu pescoço”, de Chimamanda Ngozi Adichie
(2017)262. Quanto ao gênero lírico, os poemas “Africanos e Afro-brasileiros”, de Antônio
Vieira (1975), e “Gota do que não se esgota”, de Luiz Silva (Cuti) (2007). Vale a pena
ressaltar que a seleção dos textos levou em conta: a) a fruição dos alunos,
considerando os diferentes gêneros literários; b) a seleção de autores e autoras; c)
seleção de textos de autores amplamente conhecidos na cena literária afro-brasileira e
outros ainda pouco conhecidos; d) textos literários que harmonizam o ético e o estético.
Além da coletânea de textos literários disponibilizados para os alunos, foram
confeccionados e entregues pelos residentes um caderno estilizado para cada aluno;
neles os alunos realizaram o processo de escrita diarista.
A fim de promover uma maior interação dos jovens leitores com os textos
literários selecionados, foram adotadas algumas estratégias metodológicas. Com o
objetivo de inserir o aluno no universo da obra, os residentes apresentaram dados da
biografia e da produção literária do autor, e buscaram estimular hipóteses antecipadas
de leitura, a partir do título e da adoção da etapa “Motivação” da sequência de leitura
literária de Cosson (2016). A seguir, um dos residentes realizava a leitura integral do
texto em sala de aula, abrindo espaço para que os alunos comentassem sobre a
experiência de leitura. Dada a já conhecida resistência dos alunos à leitura, é que a
escolha de contos e poemas se justifica; garantiu-se, com isso, que os discentes lessem
todos os textos. Considerando que o diário de leitura é uma ferramenta metodológica
que possibilita ampla liberdade aos alunos, o que gera dificuldade, dada a dada a
imaturidade ou a falta de prática com a escrita subjetiva, embaralhando a expressão
autônoma (SOUZA, 2016, p.91), decidiu-se que as anotações no diário seriam
acompanhadas por instruções pré-estabelecidas, as quais orientariam os alunos no
registro de sua recepção dos textos literários.
A partir, então, das perguntas norteadoras, a leitura dos registros ocorria de
forma coletiva, acompanhada pela discussão dos textos literários, levado em conta
aspectos relacionados à construção literária e à temática. Nesse momento, as relações
intertextuais e a vivência dos alunos eram trazidas à tona. A socialização das respostas,
promovida pela exposição das impressões de leitura, associada ao diálogo estabelecido
com a leitura apresentada pelos outros alunos da turma, possibilitou a ampliação dos
sentidos dos textos. Vale destacar que a mediação do professor, no caso os residentes,
atuou de modo a auxiliar os alunos nas (possíveis) descobertas e significados nas obras

262
Este conto não foi implementado em sala de aula devido ao calendário escolar.
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literárias, oportunizando de um lado que participassem desses momentos de leitura
compartilhada e, de outro, que sentissem confiantes para apresentarem as suas
perspectivas individuais de leitura. Após o compartilhamento das respostas, os alunos
eram chamados a ampliar os registros realizados, considerando a construção coletiva
de cada um dos textos literários. Verifica-se, portanto, que o diário de leitura permite
não apenas o desenvolvimento das competências leitora e de escrita, mas também a
construção dos sentidos do texto, já que o aspecto subjetivo da escrita diarista dá forma
à manifestação da reflexão e, consequentemente, da análise crítica, que se manifesta
nas impressões, reações e questionamentos diante dos textos.
Durante o implementação do subprojeto, houve algumas mudanças na dinâmica
de socialização do diário de leitura, uma vez que alguns alunos não estavam se
envolvendo nas atividades propostas. Desse modo, os alunos foram orientados a
dividirem-se em grupos para debater as respostas para, depois, compartilhar com o
restante da turma. Essa mudança ocasionou uma maior adesão e participação dos
alunos, seja na produção de respostas mais completas ou na socialização dos pontos
discutidos em cada um dos grupos.
Como atividade de encerramento do projeto no colégio, os residentes
organizaram uma gincana entre os alunos, considerando os grupos divididos
anteriormente. A atividade consistia em um jogo de perguntas e respostas, envolvendo
perguntas de múltipla escolha e verdadeiro ou falso. Após a leitura oral de cada
pergunta, um residente sinalizava e o grupo que levantasse primeiro a mão poderia
responder a questão; caso a resposta estivesse incorreta, o segundo grupo tinha a
chance de responder. Isso ocorria sucessivamente até um dos grupos acertar; uma
câmera foi utilizada para verificar qualgrupo havia sido mais rápidos. Ao fim da gincana,
o grupo com mais pontos recebeu um prêmio simbólico e toda a turma foi convidada
para um momento de celebração do projeto, seguido por um coffee break elaborado
pelos residentes e professores.
A partir da experiência com o diário de leitura, evidencia-se que ele é uma
alternativa metodológica para o trabalho com textos literários em sala de aula, pois os
alunos são capazes de ampliar o modo com que eles se relacionam com a literatura,
seja porque percebem que o professor assume antes o papel de participante do
processo de formação dos leitores e não como aquele que detém única e
exclusivamente o saber sobre o texto em estudo; seja porque toma contato com a
linguagem literária e, por isso, capazes de apreender que o texto literário não se reduz
ao o quê fala mas como fala ou, ainda, porque promove a humanização do homem, na

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medida em que os leitores em formação tornam-se abertos a conhecer melhor a si, ao
Outro e ao mundo.

Considerações Finais
Diante das reflexões apresentadas, é possível verificar que o Programa Residência
Pedagógica, com subprojetos voltados ao letramento literário, pode fazer diferença na
formação inicial dos licenciandos, impactando, sobretudo, na formação dos futuros
professores de literatura. A partir das expectativas apresentadas por Cosson no que diz
respeito a um certo perfil esperado para o professor de literatura, pode-se afirmar que o
subprojeto “Residência Pedagógica: formação de professores de Língua Portuguesa e
Literatura para a Educação Básica”, desenvolvido na UENP, campus Cornélio Procópio,
no âmbito da educação literária, coloca-as em prática ao a) oportunizar a reflexão e
debate a respeito da relevância do ensino de literatura no espaço escolar, por meio da
leitura de textos literários, teóricos e metodológicos; b) evidenciar os obstáculos a serem
enfrentados no curso de licenciatura, como os ligados à formação do professor de
literatura, os quais buscam ser minimizados com as atividades desenvolvidas no
subprojeto; c) complementar a formação dos licenciandos do curso de Letras da UENP,
nos aspectos teóricos, metodológicos e práticos, garantindo que se desenvolvam como
professores de literatura; d) colocar a literatura como centro da prática escolar; e) adotar
metodologia de ensino para o ensino de literatura; f) garantir produção científica sobre
literatura e ensino por meio da participação em eventos científicos, elaboração de
artigos e resumos expandidos para apresentar os resultados das atividades
desenvolvidas, fomentando, ainda mais, o debate sobre a educação literária; g)
favorecer a leitura e a análise do texto literário com a finalidade de ampliar o repertório
de leitura dos participantes do projeto – residentes e alunos da Educação Básica -,
selecionando textos que garantam experiência estética e ética; h) intercambiar
experiências entre professores em formação e profissionais em exercício, de diferentes
níveis de ensino; i) desenvolver autonomia nos licenciados ao torná-los protagonistas
na elaboração de propostas de intervenções em sala de aula.

Referências

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UMA DISCUSSÃO ACERCA DA DESCONSTRUÇÃO DO
GÊNERO POEMA EM SALA DE AULA

Alessandra Costa
PPGEdu/ICHS/UFMT/CUR
Grupo de Pesquisa ALFALE
CEFAPRO-Primavera do Leste/MT

Cristiane Freitas Pereira da Silva


PPGEdu/ICHS/UFMT/CUR
Grupo de Pesquisa ALFALE

Eixo Temático: Resumo Comunicação Oral

Introdução
Poesia é... brincar com as palavras
como se brinca com bola,
papagaio, pião.
Só que bola, papagaio, pião
de tanto brincar se gastam.
As palavras não:
Quanto mais se brinca com elas,
mais novas ficam.
Como a água do rio
que é água sempre nova.
Como cada dia que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia? (João Paulo Paes,
1990)

Partimos da epígrafe predita as discussões do presente artigo, cujo objetivo


tem em seu cerne a reflexão acerca da presença dos textos poéticos na prática docente
no processo de ensino-aprendizagem, assim como a forma com os mesmos são
trabalhados em sala de aula. Para a realização deste tomou-se como aporte inicial a
formação desenvolvida pelo Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da
Educação Básica (CEFAPRO), de Primavera do Leste/MT, em 2019, intitulada
“Mediação da leitura literária no I Ciclo do Ensino Fundamental”.
A abordagem dada ao gênero poema e a forma como tem sido trabalhado nas
escolas pode decidir como será a relação dos alunos com a leitura, com sua
sensibilidade e com a consciência do seu lugar no mundo. Assim, compreendemos a
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importância do trabalho com a leitura literária em sala de aula bem como um processo
estratégico de produção do significado. No entanto percebe-se, também, que a leitura
literária por vezes é utilizada somente como alfabetização, como um ler corretamente,
e não como uma leitura que permite construir significado a partir da relação entre sujeito
e texto.
Segundo Antônio Candido (1972, p. 3), a prática de leitura do texto literário“[...]
serve para ilustrar em profundidade a função integradora e transformadora da criação
literária com relação aos seus pontos de referência na realidade [...]”.
O gênero poema, em especial, expõe certa variação de sentidos, assomando
uma ameaça aos alunos por meio de exercícios incoerentes propostos pela escola,
descaracterizando sua literariedade e função social. Nesse sentido, percebe-se que o
prazer proporcionado pela leitura de poemas em sala de aula é deixado de lado,
cedendo lugar a elementos exteriores e acessórios, ou seja, a leitura que deveria ser
uma atividade centrada no significado, tornando-se reprodutora e repetitiva.
Destarte, propomos como questão central deste artigo a seguinte indagação:
A poesia está presente na prática pedagógica dos professores? Como questões
complementares, sugerimos a reflexão acerca das problemáticas também impostas:
Existe um planejamento para se trabalhar a poesia para e com alunos e alunas? Que
função se atribui à poesia quando utilizada em sala de aula? O trabalho com esse
gênero é desenvolvido de forma literária ou utilitária?
O percurso metodológico estabelecido para este artigo, a partir da problemática
supracitada, é de natureza qualitativa, embasado em uma pesquisa bibliográfica e
construído em forma de um relato, no qual as autoras trazem discussões sobre a ação
formativa com a temática da poesia em sala de aula, realizada com os docentes do 1º
ao 3º ano do Ensino Fundamental. A fundamentação teoria que embasa o texto está
ancorada em Zilberman (2014); Cândido (1995); Pinheiro (2007); Cosson (2009).
A essa problemática soma-se o certo receio em se trabalhar com o poema,
considerando que o docente concentra sua ação em não trabalhá-lo, por este configurar
uma possibilidade de interpretação subjetiva, não se enquadrando em um modelo
elegido de avaliação escolar que se baseia em um padrão de resposta esperada, ou,
para viabilizar o trabalho coletivo, elege um sentido para o texto, o que distancia o leitor-
aluno de uma apreciação estética particular (OLIVEIRA, 2011, p. 162).
Como uma das prováveis causas de os professores não trabalharem
significativamente com a poesia em sala de aula se deve à falta da prática de leitura
desse gênero nas escolas, pois

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Está claro que a personalidade do professor e, particularmente, seus
hábitos de leitura são importantíssimos para desenvolver os interesse
e hábitos de leitura nas crianças, sua própria educação também
contribui de forma essencial para a influência que ele exerce
(BAMBERGER, 1986, p. 74-75)

Dito isso, vale evidenciar a importância de uma prática voltada ao letramento


literário, pois “trata-se não da aquisição da habilidade de ler e escrever, como
concebemos usualmente a alfabetização, mas sim da apropriação da escrita e das
práticas sociais que estão a ela relacionadas” (COSSON, 2006, p. 11). Assim, atribui-
se a resistência por parte de muitos docentes ao abordarem o poema em sala de aula,
à perspectiva teórica de gêneros textuais e pelo temor de enquadrá-lo na busca de
formas estáveis.

A presença do poema em sala de aula


No espaço escolar que muitos alunos têm o primeiro contato com a leitura,
fonte inesgotável de lazer, conhecimentos e emancipação. Segundo Candido (1995, p.
240),

a literatura também é uma forma de reprodução da cultura e como tal,


deve ser valorizada em todas as classes sociais, pois tem o poder de
ampliar a visão que temos do mundo, ela é uma grande fonte de
conhecimento e deveria ser o centro de interesse nas aulas de Língua
Portuguesa para concretizar a sua finalidade principal que é que os
alunos leiam e escrevam bem, além de despertar o gosto e interesse
pela leitura.

Assim, é também na escola, que o gênero poema é apresentado a criança


(PONDÉ,1993), por meio das cantigas de ninar, as canções folclóricas, ela já é
embalada pela poesia. Essa forte relação entre infância e poesia, segundo Paz (1982),
dá-se devido à estrutura do gênero não se apresentar linearmente e sim em forma de
espiral, o que contribui para que a criança se identifique com o gênero.
É comum, em situações escolares, o texto poético virar pretexto, uma espécie
de intermediário de aprendizagem outras que não ele mesmo (LAJOLO, 1982, p. 53), e
é nesse sentido que a presença de tais textos na sala de aula se faz de maneira artificial.
A relevância que a poesia possui no que tange ao seu potencial reflexivo, como
manifestação linguística, permite inferir que sua presença nas salas de aula torna-se
um recurso de extrema importância no sentido de promover e contribuir para a qualidade
do letramento lírico, proporcionando que leitores de poemas, no caso o aluno, alcancem
esse potencial. Contudo, ainda que a poesia convide à viagem, no cotidiano é escolar o

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poema vem, em geral, sendo tratado como um problema dado os equívocos em sua
abordagem, muitas vezes, sendo apresentado ao aluno de maneira utilitária.
À vista disso, se faz necessário que professores, mediadores da leitura na
escola, concebam a importância do trabalho com o gênero poema com os alunos, isto
é, para além da apresentação dos textos como pretexto para análises gramaticais – por
exemplo-, é preciso proporcionar experiências no cotidiano escolar, possibilitando o
diálogo entre a leitura deleite e a aprendizagem.
Desta forma, explicita-se os porquês do trabalho com o gênero para si e para
seus alunos, promovendo atividades criativas, producentes e que a literariedade do
texto poético foram sugestões dadas as professoras e professores cursistas da
formação Mediação da Leitura Literária no I Ciclo do Ensino Fundamental, visando
auxiliá-los(as) na resolução da problemática da abordagem muitas vezes equivocada
do trabalho com o gênero poema em sala de aula, nos anos iniciais.
Destarte, Marisa Lajolo (apud SILVA, 1998, p. 18) afirma que

se a relação do professor com o texto não tiver um significado, se ele


não for um bom leitor, são grandes e chances de que ele seja um mau
professor. E à semelhança do que ocorre com ele, são igualmente
grandes os riscos de que o texto não apresente significado nenhum
para os alunos, mesmo que eles respondam satisfatoriamente a todas
as questões propostas.

Assim, mudar uma prática pedagógica constante, tão enraizada no exercício da


docência e nos relatos das professoras e professores durante a formação continuada,
depende, sobretudo, de uma predisposição do docente em querer abordar o gênero sem
descaracterizá-lo, compreendendo sua contribuição e relevância social, explorando a
motivação estética, o prazer pela leitura, não só deleite nem apenas abordando o belo,
capazes de transformar a realidade escolar vivida, sua concepção leitura, ensino e
aprendizagem.
Neste sentido, a formação “Mediação da Leitura Literária no I Ciclo do Ensino
Fundamental” foi delineada para ocupar-se de conceitos teóricos e práticos do
letramento literário, em encontros organizados para dialogar acerca da teoria de
tipologias textuais literárias específicos, para que de forma dialógica
professoras/professores e formadoras dialogarem sobre uma proposição prática, com
intuito de que as participantes experienciassem um plano de aula cujo foco foi
abordagem literária do gênero poema. Logo, o nosso olhar é para o encontro com os
textos poéticos.

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No entanto, no decorrer do encontro da formação continuada, percebemos que
o poema ainda é um gênero pouco explorado em sala de aula, sendo muitas vezes
abordado apenas no domínio oral, deleite e interpretativo por parte dos alunos e também
por professores. Isso se torna preocupante à medida que evidencia a lacuna nos
processos de ensino e aprendizagem do poema vivenciados na escola.
Nesta continuidade, em uma reflexão sobre o ensino da leitura nas escolas,
Lajolo (1982) clarifica que o poema em sala de aula tem servido como pretexto para a
inserção de regras gramaticais, valores patrioteiros, dogmas comportamentais,
memorização de listas de vocabulário de informações convergentes contidas nos textos
e obtidas, segundo perguntas fechadas de questionários cuja formulação é
questionável.
Outrossim, os alunos e alunas não logram claramente o que o docente
pretende com as unidades de leitura do texto poético, tornando sua finalidade
reducionistas, uma vez que estão descontextualizadas, segmentadas e uma mera
sequência curricular, tornando -se um ato puramente mecânico transformado num fim
em si mesmo que em nada contribui para a formação de um leitor possuidor de
conhecimentos, reflexivo e crítico.
Assim, segundo Lajolo (1982, p. 54), o primeiro requisito, portanto, para que o
contato aluno/texto seja menos doloroso possível é que o docente não seja um mau
leitor, ou seja, é preciso gostar de ler e praticar a leitura. Ainda segundo a autora

Ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um


texto. É, a partir de um texto, ser capaz de atribuir-lhe significação,
conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada
um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono
da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela,
propondo outra não prevista (LAJOLO, 1982, p. 59).

A fim de que o trabalho com poesia na escola fosse compreendido em toda a


sua complexidade e importância a formação continuada “Mediação da Leitura Literária
no I Ciclo do Ensino Fundamental”, trouxe para as professoras e professores uma
abordagem no sentido de compreendê-la como linguagem na sua carga máxima de
significado e de reflexão, enquanto poesia-pensante composta de ritmo, dança, música,
sentimento, emoção, revolução, destacando também sua função social e caráter
humanizador. No entanto, para que essas relações se estabeleçam é necessário que
haja o contato do aluno com o texto, ou seja, experiências de leitura com textos poéticos.
Quando isso não acontece, quando essa relação não se estabelece devido a uma quase
inexistência desse contato do aluno com esse tipo de gênero literário na sala de aula ou

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uma abordagem de ensino equivocada que descaracteriza sua literariedade, o poema
não compre sua função e acaba sendo considerado um texto que servirá de exemplo
para alguma coisa.
Assim, ao passo que os diálogos entre professoras/professores e formadoras
sobre o trabalho com o poema em sala de aula se estabeleciam no decorrer do encontro
da formação continuada, alguns questionamentos surgiam, tais como: como abordar o
gênero poema em sala de aula sem descaracterizá-lo, uma vez que parece não fazer
parte do cotidiano escolar? Como torná-los significativos para os alunos?
Neste sentido, com o intuito de buscar esclarecer a estas e tantas outras
perguntas, conduzimos as discussões no sentido de que o trabalho com o texto poético
jamais se esgota, devendo ser considerado indispensável para a completa formação de
leitura do aluno.
Sobre isso, Candido (2004, p. 175) alude que
Por isso é que nas sociedades a literatura tem sido um instrumento
poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo
proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores
que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão
presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação
dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e
combate, fornecendo possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada
quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce
dos movimentos de negação do estado de coisas predominante.

Desta maneira, o aluno/aluna precisa ser visto como um sujeito cognitivo capaz
de propor interpretações e de refletir sobre os seus pensamentos a partir de um texto
poético, compreendido como um ser possuidor de valores sócio-culturais apto a estar
em constante diálogo com o texto literário. Partindo dessa premissa, a escola não estará
formando alunos ledores, mas, sim, alunos leitores críticos, perspicazes, em condições
de inferir, indagar sobre o que foi lido, tão necessário à sociedade.
Neste sentido, as professoras-formadoras, durante o encontro da formação
continuada, destacavam aos professores e professoras a importância de se atender ao
princípio de visibilidade, que consiste em possibilitar que o aluno/aluna conheça, real e
claramente, a finalidade do que está lendo, do que o professor espera dele o professor
bem como do que pretende com determinada atividade. Isso dará sentido à leitura
tornando o processo de aprendizagem prazeroso e reflexivo. Segundo Candido (2004,
p. 177) “Toda a obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto
construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção.”
Portanto, o docente deve, em interação com o aluno/aluna, sugerir objetivos
para o ato/momento de leitura do poema, dando importância ao conjunto de habilidades
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necessárias a sua formação leitora e a formação de leitores proficientes e críticos, pois
a decisão por uma mudança na abordagem do gênero poema em sala de aula, de forma
a não descaracterizá-lo, subordina-se muito ao papel desempenhado pelo professor,
como agente de leitura e mediador, perpassando pelas concepções de leitura literária,
ensino-aprendizagem e educação adotada.
É válido destacar que as condições de trabalho e de ensino do docente – e
algumas vezes sua acomodação – contribuem negativamente para o acesso aos livros
e para a realização de leituras diversas que contribuiriam para ampliar seu repertório e
melhoraria a oferta de leituras diversas aos alunos. No entanto, há que se destacar
também que uma parte significativa de docentes não dominam as competências de
leitura que pretende ensinar na escola. Assim, compete ao docente um esforço em
aprimorar seu conhecimento no ensino da leitura literária em sala de aula, proposta da
formação continuada “Mediação da Leitura Literária no I Ciclo do Ensino Fundamental”,
considerando que a mesma serve como instrumento de transformação sócio-cultural.
Compete ainda, a clareza de seu papel enquanto um provocador de situações
e experiências de leituras, deixando de ser apenas um transmissor de conhecimentos
pré-estabelecidos e compreendendo que formar leitores críticos e reflexivos é um
trabalho de combate à alienação, dogmatismos, e acima de tudo, de valorização do
aluno,sujeito ativo e capaz de construir o seu próprio conhecimento, provindo de suas
vivências, experiências e aptidões, em interação com o objeto de estudo, inferindo,
manipulando e reinventando mensagens.

Considerações Finais
Compreendemos que a prática docente é interposta por um conjunto de
elementos que proporcionam ao professor subsídios para desenvolver um ensino
apropriado, interativo e compósito. Assim, o presente artigo apresentou uma reflexão no
tocante à abordagem dada ao gênero poema e a forma como tem sido trabalhado nas
escolas, pois como gênero literário composto de características peculiares ao universo
da criança, destacando a importância do professor, a partir do seu conhecimento sobre
o universo infantil, figurar como um mediador no processo de aproximação da criança
com o texto poético.
No diálogo com os docentes durante a formação continuada ““Mediação da
Leitura Literária no I Ciclo do Ensino Fundamental”, ficou claro que até hoje o ensino da
poesia na escola ainda tem se pautado por um modelo pragmático no qual se privilegia

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o ensino da gramática ou apenas aspectos formais do poema como a sua própria
estrutura, ou seja, como pretexto para abordar determinado conteúdo.
Face ao exposto, salientamos a necessidade de se investir cada vez mais no
trabalho com o poema em sala de aula, porém sem descaracterizar sua literariedade e
função social, pautado não mais no viés pedagógico/moralizante apenas, mas
explorando experiências lúdicas e a interação do leitor com o texto. Partindo da
concepção de que o poema é uma ferramenta pedagógica fundamental para despertar
e/ou desenvolver o senso poético, a sensibilidade e instigar a imaginação do aprendiz,
é possível adotar abordagens de leituras que possibilitem ao aluno conhecer, inferir e
construir significados e – quem sabe – elucidações sobre o mundo que o rodeia,
transformando-o num leitor crítico, reflexivo e consciente de seu papel no meio social.
Anuímos das dificuldades inerentes na proposta de trabalho com o gênero
poema, já que ela desconstrói paradigmas e convida os professores a saírem do lugar
comum da forma como a poesia tem sido apresentada na escola ao longo do tempo. No
entanto, acreditamos na potencialidade e pertinência desta experiência, tendo em vista
que a leitura de um poema é atividade diferente da leitura de outros tipos de textos. Na
apreensão dos vários sentidos possíveis de um texto poético é preciso deixar que seus
vários planos de significação reverberem em nós (FARACO, 2005).
Neste contexto, o espaço da sala de aula torna-se privilegiado para a abertura,
ampliação e a sensibilização dos alunos à poesia, pois as atividades realizadas neste
podem contribuir para o desenvolvimento da imaginação, da criatividade e da
sensibilidade estética e oportunizar um trabalho de exploração do texto poético, com
todas as possibilidades de inventividade.
A importância da poesia na escola está na sua ação formadora, visto que ela
amplia o domínio da linguagem, capacitando o leitor na construção do conhecimento e
por isso, caberá ao professor, mediador desse processo, utilizar-se de metodologias
que buscam a aproximação de seus alunos com o texto literário.
Assim, as discussões propostas neste artigo corroboram com o pensamento
de José Paulo Paes (1995), quando este discorre que

O texto poético é o espaço mais rico e amplo, capaz de permitir a


liberação do imaginário e do sonho das pessoas. É preciso que o fato
poético esteja muito presente e seja bem trabalhado pela escola para
que o universo escolar possa romper o tédio e a indiferença com que
muitas vezes se vê recoberto. Um mundo sem poesia é o mais triste
dos mundos.

Portanto, em sala de aula, a abordagem do gênero poema precisa tornar-se


um hábito, e se isso não ocorre, se o aluno não for estimulado a ler, o professor rejeita
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essa leitura. A proposta não é para que o professor forme poetas, mas, sim, tornar os
alunos sensíveis à poesia.

Referências
BAMBERGER , Richard. Com incentivar o hábito de leitura. 5. ed. São Paulo: Ática ,
1991

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas cidades, 1995.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2009.

FARACO, Carlos Alberto. Português: língua e cultura. Curitiba: Base Editora, 2005.

LAJOLO, M. O texto não é pretexto, in Leitura em Crise na Escola. As Alternativas do


Professor. Regina Zilberman (org.), Porto Algre: mercado Aberto, 1982.

PAES, José Paulo. A aventura literária: ensaio sobre ficção e ficções. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.

JOSÉ, Paulo Paes. Poesias para Crianças. Ano 2, Nº 7. PROLEITURA. UNESP. Assis,
1995.

_______________. Poemas para brincar. São Paulo: Ática, 1990.

PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. Campina Grande: Bagagem, 2007.

ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2014.

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MEDIAÇÃO DE LEITURA: UM OLHAR SOBRE A BIBLIOTECA

Beatriz Alves de Moura, FCT/UNESP Câmpus de Presidente Prudente


Berta Lúcia Tagliari Feba, Faculdade de Tecnologia de Presidente Prudente
Renata Junqueira de Souza, FCT/UNESP Câmpus de Presidente Prudente

Eixo Temático 10: Educação literária, Letramento literário, formação e


mediação de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender

Considerações iniciais

Como a biblioteca pode ser um espaço mediador de leitura? Qual sua


importância durante a educação básica para a formação do leitor? Levando em
consideração a relevância do tema a ser tratado, este trabalho parte desses
questionamentos e objetiva fazer uma breve reflexão acerca da promoção da biblioteca
como um organismo vivo nas instituições de ensino, pensando, assim, em
possibilidades que contribuam para que, na prática, o espaço se efetive como mediador
de leitura.
Para tanto, analisaremos os dados apresentados no artigo “A biblioteca como
espaço mediador de leitura”, de Feba, Ariosi e Valente (2017), do livro Mediação de
leitura: espaços e perspectivas na formação docente, fruto da pesquisa “Leitura nas
licenciaturas: espaços, materialidades e contextos na formação docente” financiada
pelo Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (PROCAD) e realizada entre 2015
e 2018. Essa ampla e vertical investigação teve como sujeitos 455 primeiranistas dos
cursos de licenciatura em Letras e Pedagogia das seguintes universidades brasileiras:
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (câmpus de Marília, de Assis
e de Presidente Prudente), Universidade de Passo Fundo e Universidade Federal do
Espírito Santo. Por meio dessa investigação foi possível perceber ações pedagógicas,
princípios norteadores, conhecimentos, concepções relacionadas à formação de leitores
e ao perfil leitor dos que estavam naquele momento iniciando um curso de licenciatura
em um ambiente privilegiado e formalizado de mediação de leitura, de circulação de
práticas e de modos de ler. A relevância de pesquisas dessa natureza nos permite
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discutir fatores importantes levantados a partir dos dados coletados e expostos à
sociedade por meio das publicações em livro, em artigos de revistas especializadas e
em congressos científicos. Ainda, esses estudos nos levam ao apontamento de
necessidades atuais no trabalho com leitura, a saber: desenvolver atividades práticas,
planejadas, intencionais e contextualizadas de leitura, assim como promover a
biblioteca como espaço mediador de leitura.
Desse modo, compartilhamos da ideia de que o espaço da biblioteca, o ato da
leitura, os livros e os mediadores (autores, professores, familiares) são importantes no
processo de formação de leitores. Assim, é importante dinamizar o espaço para que ele
efetivamente seja acolhedor e propício para desenvolver ações permanentes de leitura
na escola, sendo relevante, para isso, a intenção pedagógica, bem como a escolha dos
livros e a disposição do mobiliário.

Biblioteca e vida

Iniciamos nossa reflexão partindo do ponto de que consideramos que a


frequência e as vivências na biblioteca são práticas que contextualizam a formação
leitora e que contribuem para complementar as ações pedagógicas propostas para a
sala de aula.
A biblioteca só poderá ser um espaço de mediação de leitura, entretanto,
quando organizada para essa finalidade. A biblioteca poderá contribuir com este
contexto de formação, segundo Silva (2009, p.118), “[...] se não for tratada como peça
decorativa, mas como um organismo vivo que emana para toda a comunidade escolar
possibilidades distintas de conhecer, de sedimentar o que já se sabe, de refletir e
ampliar a compreensão de mundo dos alunos.”.
Diante disso, é preciso que este espaço apresente um caráter acolhedor e
atrativo ao sujeito que pode se sentir convidado a sentar e ler um livro ali mesmo,
naquele ambiente, que inspira e que se mostra abrigo, além das possibilidades de
diferentes e surpreendentes saberes, de novas experiências e vivências que estejam
dentro de um planejamento da escola, em que se desenvolvam atividades como a “Hora
do Conto” ou como orientação para pesquisas (SILVA, 2009). Não podemos deixar de
ressaltar a presença necessária da literatura para a composição da experiência leitora
e, nesse sentido, conhecer autores e ilustradores dos livros pode enriquecer o trabalho
de apropriação dos modos de ler literatura, seus aspectos formais e estéticos. Ainda de
acordo com Silva (2009), para que o trabalho pedagógico ocorra da melhor forma em

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se tratando da biblioteca escolar, quando não há o bibliotecário, é necessário que esse
mediador goste de ler e que se relacione bem com as pessoas.
Ao falarmos de biblioteca como um espaço mediador de leitura, estamos
tratando de uma afirmação carregada de sentidos e significado, a qual não será
verdadeira se nos detivermos apenas às palavras, ignorando a prática. Discursamos em
defesa de uma “concepção de biblioteca como espaço de interação, de construção de
saberes e de fomento à formação de leitor, sobretudo do leitor literário” (FEBA; ARIOSI;
VALENTE, 2017, p.47). Pode-se dizer, então, que, por si só, a biblioteca é um espaço
que possibilita a mediação da leitura e, de fato, concordamos com isso. Acrescentamos
que não é apenas dizer o que ela é, mas efetivamente torná-la um organismo vivo e
acolhedor a partir de uma ação planejada e com o objetivo de promoção do gosto de
ler.
Sendo assim, se efetivamente acreditamos nessa concepção de biblioteca, é
necessário que nos atentemos a questões desde a qualidade dos livros até o mobiliário
nela disposto. Outro aspecto importante seria a projeção do local, de modo que o layout
do espaço seja definido de forma a facilitar, a partir da disposição dos móveis e da
iluminação, por exemplo, o acesso a livros, revistas, DVDs, CDs.
Pensamos que também deve funcionar não se restringindo apenas à figura do
bibliotecário — na maior parte dos casos, do professor readaptado que desvia sua
função primeira e passa a cuidar da biblioteca —, mas em apoio a ele, sob orientação e
organização do docente e de toda a equipe escolar. É preciso que o projeto pedagógico
contemple a valorização do espaço e tenha intenções reais de seu uso, assim como é
necessário que a escola se dedique a planejar atividades como sarau, teatro,
apresentações musicais, contação de histórias, cineminhas, a fim de ter uma biblioteca
dinâmica e prazerosa.
A biblioteca poderá ser um espaço mediador de leitura na medida em que não
for vista como um cômodo a mais da instituição, como um depósito ou até mesmo como
um lugar desagradável. Infelizmente temos percebido que diversas demandas escolares
têm transformado o lugar em sala de aula ou em outro ambiente quando são escassos
os espaços físicos. Ao contrário, trata-se de um espaço vivo e não estático, um local em
que não se vá apenas para visitar ou para emprestar um livro. A intenção é a de criar
um ambiente propício a uma relação íntima para o potencial leitor, em que se possa ler
e se possa sentar e apreciar uma exposição. Dessa maneira, “Realizar ações que levem
os alunos a terem uma relação positiva com a biblioteca, especialmente com os livros

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faz-se primordial” (FEBA; ARIOSI; VALENTE, 2017, p. 61), para que tenham sensação
de pertencimento a este lugar.
Esta sensação que se pretende pode depender de variados fatores, dentre eles
consideraremos um muito importante: as experiências entre as crianças e a biblioteca
desde muito cedo, na primeiríssima e na primeira infância. Um acesso que se coloca
como um grande desafio a ser vencido para que as ações qualitativas possam ser
mantidas durante todo o ensino básico. Também, há o desafio de se ter um
comportamento perene de leitura (CECCANTINI, 2009), principalmente nos anos finais
do ensino fundamental e no ensino médio. Nessa fase, segundo Ceccantini (2009),
percebe-se uma descontinuidade do comportamento leitor dos estudantes, devido à
fragmentação das ações docentes relacionadas a práticas de leitura, por isso, o
pesquisador revela as fragilidades da formação leitora desses alunos que outrora se
mostravam tão assíduos leitores.
Cremos “[...] que é na escola que o sujeito se habilita a ler, a competência
leitora precisa ser o cerne de todos os componentes curriculares e ser desenvolvida por
meio de práticas constantes e intencionalmente planejadas”. (FEBA; ARIOSI;
VALENTE, 2017, p. 48). Para tal fim, a sociedade e em específico a escola precisam
aproveitar o período da educação básica para percorrer os caminhos densos do
encantamento pelo livro e do desejo de mantê-lo em seu cotidiano. Isso se justifica
porque a educação básica seria o principal período em que as crianças começam a se
familiarizar com o mundo da escrita e da leitura e, para que esta familiaridade seja de
afeto, faz-se essencial o incentivo à leitura e a apresentação de modos e espaços de ler
durante todo o período.
Sua importância no ensino básico se dá justamente pelo caráter formador que
a biblioteca possui. Além disso, a educação básica pode ser considerada um momento
propício, pois se dá em grande parte desse tempo o processo de formação humana do
estudante e, consequentemente, pode influenciar seu modo de ver o mundo, seus
gostos e hábitos, já que é um espaço de formação em que se passa grande parte da
vida. Nesse sentido, compartilhamos da ideia de que “as bibliotecas seriam a primeira
dimensão, a leitura e, consequentemente, os livros, estariam na segunda dimensão e
os mediadores (autores, bibliotecários, colegas, familiares dentre outros) ficariam na
terceira dimensão.” (MOTOYAMA; SANTOS; SILVA, 2017, p. 27) para contribuírem
nessa jornada.
Em diálogo com a ideia de que a biblioteca é um local de interação, está posta
a concepção de escola e também de formação leitora do professor, uma vez que esse

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mediador influenciará muito seus estudantes no decorrer das atividades propostas e no
cotidiano escolar. Isso se confirma, segundo Ferreira (2009), porque um dos fatores de
rejeição da leitura pelas crianças pode estar associado à falta de conhecimento sobre a
existência vasta das obras de literatura infantojuvenil por parte do docente. Além disso,
nesse desconhecimento evidencia-se a ausência da prática da leitura literária que ele
usará para ensinar os pequenos a ler. Essas lacunas nos preocupam, afinal, conforme
Martins (2002), nos trazem a ideia de que não somente lendo sobre leitura, no caso do
professor ou mediador, mas é lendo literatura que se torna leitor, ou seja, para que se
ensine a ler é preciso que se leia.
Tanto em Chambers (2007) quanto em Ferreira (2009) notamos a relevância
de se fazer o compartilhamento de impressões e opiniões sobre o livro lido, como uma
das formas de instigar a leitura. Na efetivação dessa troca e desse incentivo à leitura,
fica clara a necessidade de o professor ou o mediador ser um leitor, pois o que se
estabelece é um diálogo crítico e argumentativo acerca dos livros lidos.
Dessa maneira, não basta apenas dizer se gostou ou não. É preciso elaborar
pensamentos e participar de discussões sobre o que realmente gostou ou não nos
textos, de modo a fazer relações com a vida pessoal e também com outros textos já
lidos. Para tanto, pensando na articulação desses debates a respeito dos livros, faz-se
necessário que o mediador como um bom leitor seja capaz de conduzir o grupo em um
aprofundamento do texto para além da superficialidade, a fim de atingir, assim, níveis
de significados sobre o que leram.
Nesse sentido, além da concepção da escola acerca de tais temas, o docente
é peça fundamental na propagação da biblioteca como um espaço de buscas e
encontros com a leitura, já que de modo intencional induziria, para além da frequência
das crianças, ao fomento do gosto e da prática da leitura.
A ação mediadora, portanto, não poderia se restringir ao caráter obrigatório ou
a eventuais momentos do cotidiano escolar, como apenas datas comemorativas ou dias
programados para classes realizarem empréstimos. Haveria, diferentemente, uma
progressão das atividades com a proposição de leituras mais complexas e desafiadoras,
para a qual livros exigissem níveis maiores de compreensão. Nessa proposta, o
mediador e os colegas leitores seriam facilitadores das leituras ao conversarem sobre
tais textos de diferentes gêneros, temas, formatos, visando a um produto final com
produções orais e escritas das crianças, encenações, propaganda dos livros lidos e a
consequente constatação do aumento de empréstimos de livros, bem como do
desenvolvimento da linguagem e do pensamento.

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Dados da pesquisa “Leitura nas licenciaturas: espaços, materialidades e
contextos na formação docente” (PROCAD)

São importantes as constatações pontuais apresentadas no artigo “A biblioteca


como espaço mediador de leitura”, de Feba, Ariosi e Valente (2017), presente no livro
Mediação de leitura: espaços e perspectivas na formação docente e proveniente da
pesquisa “Leitura nas licenciaturas: espaços, materialidades e contextos na formação
docente”, financiada pelo Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (Procad) e
desenvolvida entre 2015 e 2018.
Algo que nos chamou atenção e nos preocupa é que, conforme as respostas
dadas pelos sujeitos da pesquisa, que na época eram acadêmicos do primeiro ano do
curso de Letras ou de Pedagogia, evidencia-se a existência de pouquíssimas atividades
que incentivaram ou possibilitaram que a biblioteca fosse um espaço mediador da
leitura, apontando que ela fora minimamente relacionada às vivências deles mesmos,
ao buscarem livros ou ao realizarem visitas esporádicas. Incomoda-nos que as práticas
de leitura durante o ensino básico na maioria das vezes não têm conseguido efetivar a
compreensão da biblioteca como um espaço que contribua para a formação do sujeito
como pessoa e como leitor efetivo e para a vida.
Intriga-nos, no entanto, que, quando indagado a respeito do mediador mais
importante em suas trajetórias de vida, fica explícito na quase unanimidade das
respostas que fora um professor no período escolar. Mediante as afirmações, evidencia-
se a importância da formação docente que se apresenta como mediador, cuja prática é
de grande influência.
Para que o professor seja lembrado como o mais importante mediador, a ponto
de fazer parte das respostas imediatas dos respondentes sobre a questão de sua
formação leitora, vale refletir que talvez ele tenha sido o único a ocupar tal papel, mas
que ainda assim não tenha alcançado níveis que possibilitassem uma relação de afeto
e de significado desses sujeitos para com a biblioteca.
Assim, insistimos em ressaltar que sem intencionalidade, mesmo que se
promova a leitura, será muito rara uma contribuição efetiva para a formação leitora e,
principalmente, será mínima uma proximidade com a biblioteca como mediadora de
leitura, muitas vezes pela ausência de significado desse lugar para o sujeito.
Considerando a dificuldade da formação de leitores (que neste caso serão
professores, futuros formadores de leitores) durante o ensino básico, a biblioteca se faz

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ainda mais urgente, afinal “[...] alunos que não tiveram a oportunidade de habitar os
espaços de leitura dificilmente sentirão a necessidade de oferecer essa experiência aos
seus alunos.” (FEBA; ARIOSI; VALENTE, 2017, p. 54).
Desse modo, não podemos negar as incertezas sobre os déficits relacionados
à formação leitora dos sujeitos da pesquisa Procad. O que queremos dizer é que talvez
o ciclo se repita a partir da ação, desses que até então estavam na condição de
discentes, mas que num futuro bem provável e próximo serão professores da educação
infantil, das séries iniciais ou finais do ensino fundamental ou do ensino médio.
No entanto, de acordo com os apontamentos do artigo em questão,
acreditamos na biblioteca universitária como um dos espaços que podem contribuir para
melhor formar o futuro professor, como uma possibilidade de rompimento desse ciclo
em que não se é possível atribuir um significado e nem propor algo diferente.
Diante disso, o que poderemos fazer, além dos muitos esforços já existentes,
para uma formação inicial de qualidade? Sabemos que a constituição do sujeito como
leitor não se faz de um momento para outro ou apenas durante a graduação. Leva tempo
e processos que permitam ao sujeito a aquisição da “capacidade de aprender sempre,
de ter autonomia na sua relação diante do conhecimento, de conhecer suas
necessidades de informação e de ter autossuficiência para buscá-las, obtê-las, construí-
las.” (FEBA; ARIOSI; VALENTE, 2017, p. 61).

Considerações finais

É necessário que pensemos em ações possíveis e que contribuam para uma


tentativa do “despertar” da consciência leitora desse aluno universitário, fruto também
de uma incompleta formação leitora no ensino básico. Mesmo sendo uma das intenções
da universidade formar professores leitores que desenvolvam práticas significativas de
leitura com seus futuros alunos, valorizando em evidência a biblioteca, parece-nos ainda
que muitas vezes infelizmente ela toma um caráter um tanto pragmático. Nesse cenário,
precisa ser repensada nos programas e nos planos universitários, afinal, talvez essa
seja uma das formas de rompermos com os ciclos da tentativa de formar alunos leitores
sendo ainda professores não leitores ou sem a consciência crítica e afetiva da leitura.
Na Faculdade de Ciência e Tecnologia, da Unesp de Presidente Prudente,
câmpus ao qual estamos vinculadas, ações como “Semana da Biblioteca”, por exemplo,
têm levado alunos e professores a vivenciarem experiências em saraus literários,
oficinas de leitura e contação de histórias, além de exposições artísticas. Alguns

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docentes têm também como prática convidar um profissional bibliotecário para dar uma
aula explicativa das plataformas existentes no sistema da biblioteca com relação a como
fazer buscas e como utilizar ferramentas próprias do sistema, além de cursos
relacionados à criação de currículo acadêmico. Entretanto, ainda se faz muito pouco em
termos de dinamização da biblioteca universitária. O que sugerimos, considerando os
dados, é uma atividade mais prática na qual os alunos e o professor não só falem, mas
realmente em algum momento interajam com este espaço dentro da universidade de
modo contextualizado.
Acreditamos que essa mobilização do professor validará a importância e o valor
da biblioteca, tornando a experiência desta vivência mais concreta, na possibilidade de
uma futura prática docente, afinal, o professor ensina muito mais quando ele mesmo
desenvolve em sua sala de aula o modo como deseja ou objetiva que seus alunos
também pratiquem futuramente, ou seja, ele pratica com seus discentes aquilo que
pretende que eles, como professores, pratiquem no exercício em sala de aula. Nesse
sentido, “É importante que as atividades desenvolvidas nas aulas da graduação incitem
e ensinem o uso da biblioteca, seus múltiplos espaços e recursos [...]” (FEBA; ARIOSI;
VALENTE, 2017, p. 50). A biblioteca na universidade é o espaço que deve ser visto
como propício à leitura. Sendo assim, práticas desenvolvidas nas bibliotecas das
universidades precisam almejar a atitude pesquisadora, investigativa e leitora do
acadêmico, futuro professor.
Dentre suas atribuições e funções, a biblioteca tem a função

[...] de promover o debate e o lazer, por meio de ações de dinamização


e de exposições. Trata-se de um lugar organizado para propiciar a
consulta e o uso do acervo, bem como para assegurar a leitura e
possibilitar a realização de atividades culturais. (FEBA; ARIOSI
VALENTE, 2017, p. 46)

Ela tem como possibilidade o envolvimento e o desenvolvimento de uma


autonomia do estudante ao relacionar-se com o conhecimento, para além da
obrigatoriedade de comparecer a este local. Portanto, quando a biblioteca é utilizada
em concomitância com um planejamento e com práticas que a demonstrem como um
ambiente dinâmico e prazeroso, torna-se relevante ao espaço acadêmico em suas
múltiplas funções, já que ela pode ser considerada um setor agente de construção e
divulgação da cultura.
Evidenciamos a promoção da biblioteca no ensino superior como um espaço
mediador de leitura no “resgate” do estudante — futuro professor e formador de leitor —

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, na perspectiva de que ela “não pode ser entendida como um acessório ou mais um
ambiente da universidade.” (FEBA; ARIOSI; VALENTE, 2017, p. 46).
Entendemos, ainda, que a biblioteca no espaço acadêmico necessita ter sua
importância disseminada, por isso, não podemos terminar essa reflexão sem sugerir
mínimas possibilidades. Inicialmente seria um olhar atento das disciplinas mais ligadas
à leitura nos cursos de graduação, por exemplo, para promover o deslocamento dos
estudantes até a biblioteca com certa regularidade para diversas atividades, quais
sejam: a prática de leitura individual e silenciosa para a realização de trabalhos e
pesquisas e para a exploração do acervo e dos espaços; a prática do debate de leituras,
como aquelas realizadas em clubes do livro ou em rodas de leitura.
Não nos colocamos nessas reflexões como julgadores das diversas realidades
e dos contextos existentes que envolvem as bibliotecas. Colocamo-nos como vozes que
ecoam da realidade ainda insatisfatória no trato com a leitura para a formação humana
e, por isso, somos provocados a agir em busca de ações individuais que possam
contribuir para reverter tal situação. Para tanto, esperamos que essa discussão, a partir
do levantamento do tema, suscite possíveis iniciativas e propostas que possam inovar
e que possam assegurar que a biblioteca seja uma ferramenta indispensável na
incansável luta do incentivo à leitura e da formação do leitor.

Referências

CECCANTINI, João Luís. Leitores iniciantes e comportamento perene de leitura. In:


SANTOS, Fabiano dos; MARQUES NETO, José Castilho; ROSING, Tânia M. K
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São Paulo: Global, 2009.

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Amieva. México: FCE, 2007.

FEBA, B. L. T.; ARIOSI, C. M. F.; VALENTE, M. S. A biblioteca como espaço de


mediação de leitura. In: FEBA, B. L. T.; SOUZA, R. J. de. (Org.). Mediação de leitura:
espaços e perspectivas na formação docente. Tubarão: Copiart, 2017. p. 45-67.

FERREIRA, E. A. G. R. A leitura dialógica como elemento de articulação no interior de


uma biblioteca vivida. In: SOUZA, R. J. de. (Org). Biblioteca escolar e práticas
educativas: o mediador em formação. Campinas: Mercado de Letras, 2009.

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Passos, 74)

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
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NGUNGA: AVENTURAS DE EDUCAÇÃO, LIBERDADE E
RESISTÊNCIA

Maria Alzira de Souza Santos, Instituto Federal de São Paulo – Campus


Presidente Epitácio

Eixo Temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação


de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Atualmente a educação literária tornou-se um grande desafio para os
professores em sala de aula. É cada vez mais difícil a tarefa de formar leitores
competentes, ou seja, aqueles que são capazes não apenas de ler, mas também de
compreender o contexto, estabelecer associações com suas experiências e
compartilhar socialmente suas interpretações. A formação de jovens leitores enfrenta
uma competição com as séries de televisão, games e redes sociais que pode ser
considerada, no mínimo, desleal.
Portanto, com o objetivo de verificar a importância e eficácia do Letramento
literário como modo de formar e mediar leitores literários, realizamos uma atividade com
alunos do 3º ano do ensino médio, do curso de Mecatrônica do Instituto Federal de São
Paulo - campus Presidente Epitácio, no primeiro semestre de 2020 – com o intuito de
darmos um passo inicial na caminhada que efetivará a trajetória de formação desses
alunos.
Seguimos a proposta de uma Sequência Básica (Cosson,2019) e utilizamos
quatro aulas de redação da disciplina de língua portuguesa. Escolhemos trabalhar com
o livro da literatura angolana: As aventuras de Ngunga, (Pepetela,1981), com o objetivo
de levar aos alunos conhecimentos sobre as literaturas africanas de língua portuguesa
– literatura angolana, mais especificamente; e sobre o autor que é um dos seus
principais representantes. Esse livro, ademais de sua qualidade literária, adequou-se ao
nosso trabalho devido à sua linguagem e temática e também por tratar-se de uma
narrativa curta.
Para Antonio Cândido (Cândido, 2011), a importância da literatura reside no
fato de que ela seja, sobretudo, um bem inalienável e direito de todos; para Paulo Freire
(Freire,1987) é imprescindível a associação entre educação e liberdade. Uma pesquisa
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feita por Roselei Battisti e Ana Paula Teixeira (Battisti; Teixeira,2016) sobre a literatura
juvenil salientam a dimensão atual da literatura juvenil no que tange aos temas e busca
de novas formas de expressão. Maria do Carmo Sepúlveda (Sepúlveda,2001), ao
descortinar os caminhos da trajetória de aprendizagem do pequeno Ngunga: como o
menino tornou-se guerrilheiro e, mais do que isso, como, ao final de sua trajetória o
menino transformou-se em homem – demonstra a alusão, portanto, que há no livro, à
própria formação do novo homem angolano, ou seja, ao surgimento das novas
gerações. Por fim, para discutir e refletir sobre a importância das relações históricas,
sociais, culturais e, sobretudo, literárias, entre Brasil e Angola, usamos a noção de
comunitarismo cultural formulada por Benjamin Abdala Junior (Abdala Junior, 2002).

Literatura Juvenil atual, uma literatura de diálogo

“Ou talvez Ngunga tivesse um poder misterioso e esteja agora em todos nós,
nós os que recusamos viver no arame farpado, nós os que recusamos o mundo dos
patrões e dos criados, nós os que queremos o mel para todos” (PEPETELA, 1981, p.
59). Essas são palavras do capítulo final do livro As aventuras de Ngunga. Escrito em
1972 para os jovens guerrilheiros em plena luta na Guerra de Libertação/Guerra Colonial
em Angola, o texto continua sendo um convite para todos que se recusam a viver no
arame farpado e que querem o mel para todos. Afinal, o poder misterioso de Ngunga é
o poder mesmo da literatura – uma necessidade universal cuja satisfação é um direito
inalienável, segundo o Mestre Antonio Cândido:
Portanto, a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado
de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis de
cultura. A distinção entre cultura popular e erudita não deve servir para
justificar e manter uma separação iníqua como se do ponto de vista
cultural, a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis de
fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos
humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades
e em todos os níveis é um direito inalienável. (CÂNDIDO,2011, p. 193)

O arame farpado remete de imediato à guerra e passa por outras dimensões,


as quais identificamos hoje com nomes como: preconceito, intolerância, medo, exclusão
social, exílios e, claro, guerra também. Em plena era em que referir-se aos avanços
tecnológicos e conquistas humanas inenarráveis tornou-se lugar comum, constatamos
que muitos continuam aprisionados por esses diversos tipos de arame farpado e que o
mel – a liberdade? - ainda está nas mãos de poucos – daqueles que detêm o poder e
não querem, portanto, a libertação dos demais.

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E quando falamos em Liberdade, falamos em Educação. Alfredo Bosi, citando
a Paulo Freire, afirma que: “A principal ação do projeto educador, tal como se revela
admiravelmente na teoria e prática de Paulo Freire, é levar o homem iletrado não à letra
em si (letra morta ou letal), mas à consciência de si, do outro, da natureza” (BOSI, 1992,
p. 341). Essa, pois, a grande função da Educação: libertar o homem para que, para além
do conhecimento da letra em si, possa conscientizar-se como pessoa/agente da história
ao mesmo tempo em que (re) descobre a si e ao Outro. Dessa maneira adquire também
a sua porção do mel, pode caminhar da consciência para a resistência e daí para a
liberdade. E, de liberdade, resistência e educação é o que trata o livro As aventuras de
Ngunga.
A narrativa do pequeno e corajoso Ngunga se presentifica e permite
estabelecer, conforme a temática proposta no VI Congresso Internacional de Literatura
Infantil e Juvenil do CELLIJ: Tradição, (R) Evolução e (Re) Invenção: A Literatura do
Século XXI, diálogo entre o tradicional e o novo de diversas maneiras. Em primeiro lugar,
observamos que, na atualidade, a literatura infantil juvenil busca novas soluções
estéticas procurando explorar com ousadia temas e formas afinados com o século XXI,
conforme aponta estudo feito por Roselei Basttisti e Ana Paula Teixeira sobre a
Literatura Juvenil Brasileira com ênfase para a produção bibliográfica do século XXI
(2016). Segundo as pesquisadoras temos hoje, na literatura infantil juvenil, um
movimento constante de renovação e valorização da estética; e, se olharmos de perto
esses “temas” do século XXI descobrimos que as questões tratadas aparecem no livro
de Pepetela: “(...) o fato de encontrarmos cada vez mais, na LJ, a presença de temáticas
até pouco tempo consideradas tabu na produção para crianças e jovens, como a morte,
o abandono, a violência, as famílias desfeitas (...)” (BATTISTI; TEIXEIRA,2016).
As pesquisadoras afirmam, também, que o que se pleiteia na literatura infantil
juvenil atual é dar voz e vez ao jovem. Exatamente o que faz o autor angolano:
descortina o universo da guerrilha – com seus desmandos, abusos e falsos líderes,
ademais das boas lições de solidariedade, bravura e dignidade – pelos olhos e voz de
Ngunga. Portanto, não apenas no que tange à temática, a atualização da narrativa
também se dá quanto à sua construção: Pepetela, em plena guerrilha, passa a voz para
o jovem Ngunga. A história é filtrada pelos seus olhos e registrada por suas palavras,
conforme afirma Maria do Carmo Sepúlveda Campos: “À medida que as páginas vão
sendo viradas, as lições vão-se apresentando aos leitores, que, pelos olhos de Ngunga,
penetram no interior de Angola para conhecer seus costumes, seus segredos, suas
mazelas e suas grandezas”. (SEPÚLVEDA,2001, p. 265)

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Pepetela depois aprofundará essa visão que desmistifica o guerrilheiro e
apresenta a realidade, tal como ela é, em outras obras como Mayombe (1980) e A
geração da utopia (1992), para citar apenas duas. Mas, em toda sua obra, o autor deixa
claro que somente com a fusão do tradicional com o novo torna-se possível construir
um caminho de resistência que leve à liberdade.
Então, se nós, leitores e educadores da atualidade, buscamos de fato recusar
o arame farpado e desejamos que o mel seja para todos, cabe a nós a construção desse
caminho, cujo primeiro passo é o da leitura. Daí a importância do que Cosson (2019),
chama de “letramento literário”: uma proposta de ensino (significativo) da leitura literária
na escola básica. Segundo ele: “Na escola, a leitura literária (...) nos fornece, como
nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e articular
com proficiência o mundo feito linguagem”. (COSSON, 2019, p. 30).
A distinção que Cosson faz entre contemporâneo e atual nos permite entender
melhor a relevância do livro As aventuras de Ngunga:

Obras contemporâneas são aquelas escritas e publicadas em meu


tempo e obras atuais são aquelas que têm significado para mim em
meu tempo, independentemente da época de sua escrita ou
publicação. De modo que muitas obras contemporâneas nada
representam para o leitor e obras vindas do passado são plenas de
sentido para a sua vida. O letramento literário trabalhará sempre com
o atual, seja contemporâneo ou não. É essa atualidade que gera a
facilidade de leitura dos alunos. (COSSON, 2019, p. 34)

O caminho de aprendizagem do jovem Ngunga é, de certa forma, o mesmo


trilhado pelos jovens de hoje: ter que lidar com abandono, mortes, descobrimentos e
desafios constantes são temas totalmente plenos de sentido para nossos jovens
leitores. Isso ficou demonstrado quando da realização de uma atividade de Letramento
Literário – Sequência Básica com alunos do 3º ano do Ensino Médio, curso de
Mecatrônica, do Instituto Federal em Presidente Epitácio no início do ano de 2020.

A atividade de Letramento Literário – como repartir um pouco do “mel”

Seguimos a proposta sugerida por Cosson para uma atividade de Letramento


Literário, ou seja, uma sequência constituída por quatro passos: Motivação, Introdução,
Leitura e Interpretação. Iniciamos a Motivação com as palavras do título do livro de
Pepetela: “As aventuras” e perguntamos aos alunos de que se recordavam. Queríamos
saber a que sentidos atrelavam a noção de aventuras. De imediato lembraram-se de
filmes cujos títulos também começam com “As aventuras de “, depois passaram a uma

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telenovela exibida na televisão aberta e chegaram a alguns desenhos animados.
Observamos então que, de fato, relacionam aventura com ação, com algo que supõe
dinamismo. Não nos demoramos muito nessa parte para que as atenções não se
desviassem para outras coisas – como começar a contar as histórias dos filmes e
instalar debate apenas sobre gostos e preferências. Afinal, como afirma Cosson: “Ao
denominar motivação a esse primeiro passo da sequência básica do letramento literário,
indicamos que seu núcleo consiste exatamente em preparar o aluno para entrar no
texto” (COSSON,2019, p. 54). Esse era, então, o nosso principal objetivo naquele
momento, preparar nossos alunos para entrarem na leitura do livro de Pepetela, para
conhecerem um aventureiro com uma aventura diferente daquelas que eles tinham
citado: o pequeno Ngunga, um órfão vivendo aventuras durante um período de guerra
em Angola, no continente africano – tão longe (geograficamente) e tão perto de nós
brasileiros (aspectos históricos e culturais). Tanto Angola como o Brasil foram colônias
de Portugal e têm o português como língua oficial; em relação ao “modo de ser” há muito
de Brasil em Angola e muito de Angola no Brasil.
Assim, estávamos prontos para o segundo passo da Sequência Básica, o da
Introdução. Indicamos aos alunos que íamos falar sobre: As aventuras de Ngunga. Mas,
quem era Ngunga? Uma personagem da literatura angolana. E o que sabíamos sobre
essa literatura, sobre as literaturas africanas de língua portuguesa? Segundo Cosson
a Introdução é o momento da apresentação do autor e da obra, portanto, em nosso
caso, das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, mais necessariamente da
Literatura Angolana, e do escritor Pepetela. Através de um resumo explicamos a relação
entre literatura e história em Angola: desde a colonização das suas terras por Portugal
até a eclosão da luta armada em 1961 – quando os intelectuais pegaram em armas para
defender, na prática, seus discursos de resistência/liberdade/independência e tornaram-
se, então, combatentes. Explicamos como em Angola, portanto, a literatura sempre
esteve atrelada ao combate, como instrumento mesmo de guerra – uma forma de
conscientizar através da força estética da palavra (poesia, conto, peça de teatro,
romances, ...). A seguir, falamos sobre o autor Pepetela, que foi combatente de guerra
e escreveu algumas obras, como As aventuras de Ngunga (primeira publicação em
1972) e Mayombe (1980), durante a guerra, em pleno combate. Tendo em vista que,
posteriormente, nas aulas de literatura os alunos aprofundarão seus conhecimentos
sobre o assunto, entendemos que um resumo foi suficiente.
Importante registrar que, uma semana antes, havíamos trabalhado com o tema
de guerras para uma proposta de produção de texto. Iniciamos com slides sobre o

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quadro La Guernica, de Picasso e discorremos um pouco sobre a guerra civil espanhola
a qual ocorreu entre os anos de 1936 a 1939; depois ouvimos a música Era um garoto
assim como eu, da banda brasileira Engenheiros do Havaí, a qual faz alusão à guerra
do Vietnã (1955-1975); e por fim lemos um texto sobre a guerra na Síria (início em 2011
e em andamento nos dias atuais) e ainda um outro texto com algumas definições sobre
o que é guerra. Nossas discussões com esse material pautaram-se sobre quais seriam
os motivos e consequências das guerras, e os alunos abordaram a questão de que, em
todo e qualquer tipo de guerra, a perda irreparável de vidas é a grande consequência.
Enfatizaram em seus textos o fato de que os jovens são obrigados a participarem dos
conflitos armados, interrompem seus sonhos e morrem. Portanto, trouxemos também à
tona essas considerações no terceiro e no quarto passos do nosso Letramento Literário,
a Leitura e a Interpretação, respectivamente.
Para a Leitura, selecionamos alguns capítulos do livro para a sala de aula e
sugerimos a leitura do texto integral para casa, uma vez que na divisão das aulas não
temos as de Literatura (usamos então as de Redação), o que tornou o tempo mais curto
para a realização dessa atividade e o que explica também o fato de termos optado pela
Sequência Básica e não pela Expandida. As carteiras foram dispostas em círculo desde
o início da aula e os alunos iam oferecendo-se para fazer a leitura, fazíamos pausa para
tirar alguma dúvida de vocabulário e para observar o acompanhamento da história por
todos. Os próprios alunos iam refazendo a trajetória de Ngunga: quem era, por onde
passava, como eram as outras personagens que surgiam e, principalmente, como
Ngunga avaliava e reagia diante das situações pelas quais passava. Logo chamou a
atenção dos alunos os comportamentos negativos ou positivos dos adultos da história
e a postura íntegra do jovem Ngunga frente a esses comportamentos. Detivemo-nos na
questão da escola. No livro, a princípio Ngunga não quer ir para a escola, pois não julga
necessário, mas quando ele e União, seu professor, são presos pela PIDE (Polícia
Internacional e de Defesa do Estado, polícia portuguesa), lastima-se de não saber
escrever:
Já tinham passado dez dias sobre o combate. União era interrogado
todos os dias. De fora do escritório, Ngunga ouvia as pancadas e os
berros do chefe da PIDE, mas nunca conseguira ver o professor. Se
soubesse escrever .... Sim, se soubesse escrever, podia meter um
bilhetinho na cela de União e combinarem juntos a fuga. Mas pouco se
interessara por aprender, só gostava mesmo era de passear. Pela
primeira vez, Ngunga deu razão ao professor que lhe dizia que um
homem só pode ser livre se deixar de ser ignorante. (...) (PEPETELA,
1981, p. 37)

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Estavam abertas as portas para a discussão sobre valores (honestidade,
amizade, coragem, ...) e sobre a importância da Educação como condição necessária
para a verdadeira Liberdade.
Devido a, como já explicamos, a escassez do nosso tempo, partimos para o
quarto e último passo: a Interpretação. Primeiro abrimos espaço para que cada aluno
expusesse oralmente suas impressões desses primeiros contatos com a obra.
Interessante observar como ressaltaram a bravura e determinação de Ngunga frente às
situações de conflito que enfrentou, principalmente devido à sua pouca idade e também
as reações da personagem diante dos maus exemplos de comportamento de alguns
personagens adultos da história. Infelizmente, nem todos alunos quiseram participar
nesse momento.
Para as atividades de Interpretação que, segundo Cosson, têm como objetivo
a externalização, o registro da leitura, sugerimos que fossem feitas duas: uma produção
escrita individual (poesia, texto crítico-reflexivo, ...) e uma outra em grupo: cartazes com
desenhos, frases, figuras; produção de outro texto ou outras atividades sugeridas por
eles.

De Paulo Freire a Malala: educação, combate e transformação

Na semana seguinte os alunos trouxeram as suas atividades de Interpretação,


os textos individuais e as produções que fizeram em grupo. Nos cartazes fizeram
desenhos de mãos acorrentadas libertando-se, de lugares e objetos da história, de
imagens do livro e, claro, muitos desenhos de Ngunga. Fizeram também cartazes com
frases do educador Paulo Freire, cartazes com palavras diversas, com poesias feitas
por eles e até houve quem desenhasse Malala Yousafzai, a ativista paquistanesa que
ficou conhecida mundialmente após ser baleada na cabeça por talibãs ao sair da escola
em 2012 e por ser a pessoa mais jovem a ganhar o prêmio Nobel da Paz.
Tanto nas atividades em grupo como nos textos produzidos individualmente
ficaram nítidas as relações que estabeleceram entre Educação, Resistência e
Liberdade. Também foi gratificante a maneira como reaproveitaram as discussões feitas
na aula sobre guerras. “O verdadeiro combate é a educação” – verso de um poema
composto por um dos grupos traduz bem os caminhos tomados nas interpretações.
Pedimos que todos os grupos fossem à frente da classe para mostrar e comentar seus
trabalhos: um grupo montou um cartaz com o desenho de um globo com o mapa
terrestre no centro, rodeado por objetos do material escolar, como: régua, lápis, pincel,

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paleta de cores, além de duas figuras de engrenagens e de uma lâmpada acesa. E, no
alto do cartaz, a frase: “Educação não transforma o mundo, transforma pessoas”. Outro
grupo realizou a sua interpretação através do desenho de um garoto
pensando/sonhando/imaginando um livro; o garoto tem asas, mas há uma grande
tesoura pronta para cortá-las. Os alunos explicaram que as asas da liberdade são
alimentadas pelo sonho/desejo da Educação e que, sem ela, só resta o corte da tesoura
da realidade. Por fim, um outro grupo desenhou um arame farpado e, por trás dele,
mãos tentando libertar-se e algumas paisagens de montanhas; bem ao centro, uma
árvore com galhos secos, mas com raízes muito aprofundadas na terra. Segundo os
alunos explicaram, as montanhas vêm das imagens que têm de Angola; há um arame
farpado, mas há o desejo e uma luta para libertar-se e, são as raízes da Educação que
sustentam a árvore da liberdade – a guerra pode secar os galhos, nunca as raízes.
Depois os trabalhos foram recolhidos para serem expostos em painel na VI Semana da
Diversidade.263
A atividade de Letramento Literário com uso da Sequência Básica desenvolvida
em nossas aulas permitiu que nossos alunos tomassem conhecimento e tivessem seu
primeiro contato com as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, mais
especificamente com a Literatura Angolana e a obra de um dos seus principais
escritores, Pepetela. Estava, portanto, alcançado nosso primeiro objetivo e um pouco
do “mel” fora repartido, mas com a apresentação dos trabalhos que eles entregaram,
pudemos constatar que outro também fora alcançado: o despertar, ainda que apenas
inicial, para a conscientização das relações que permeiam a Educação, a Resistência e
a Liberdade. Afinal, como afirma Paulo Freire, a compreensão da necessidade de lutar
pela libertação se dá aos poucos, através das práxis de sua busca:

Quem, mais que eles, [os oprimidos] para ir compreendendo a


necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso,
mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento
da necessidade de lutar por ela. (FREIRE, 1987, p. 20)

Que esperamos então?

Segundo Cosson, ao compartilhar a interpretação e aplicar os sentidos


construídos individualmente “os leitores ganham consciência de que são membros de
uma coletividade e de que essa coletividade fortalece e amplia seus horizontes de

263
VI Semana da Diversidade: de 16 a 20 de março de 2020, em IFSP – PEP. O painel, com o
título: “Exposição Ngunga: Aventuras de Educação, Liberdade e Resistência” chegou a ser
montado, mas a Semana foi cancelada devido ao cancelamento do calendário escolar por causa
da pandemia.
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leitura. (COSSON, 2019, p. 66)”. Essa consciência de ser membro de uma coletividade
amplia-se quando voltamos nosso olhar para a proximidade histórica/social/cultural
entre Brasil e Angola, conforme já afirmamos anteriormente. A literatura aperta os laços
e fortalece os nós, foi o que tratamos em nossa tese de Doutorado (SOUZA SANTOS,
2010), em estudo comparado entre as literaturas brasileira e angolana, com o livro de
Graciliano Ramos – Memórias do cárcere (1953) e o de Pepetela A geração da utopia
(1992) quando tratamos da importância de também buscarmos novas associações no
campo do comunitarismo cultural (ABDALA JUNIOR, 2002) como formas alternativas
ao que é imposto pela globalização neoliberal.
Em nosso trabalho nos reportamos a Benjamin Abdala Junior que se refere a
laços comunitários supranacionais e aponta o comunitarismo como uma maneira de
favorecer uma agregação supranacional. Partindo do Brasil, teríamos duas
possibilidades de articulações político-culturais: as que apontam para a América Latina
e as que têm em seus horizontes os países da língua portuguesa: “Num mundo de
fronteiras múltiplas, torna-se politicamente indispensável ao pensamento crítico
considerar o sentido estratégico dessas associações comunitárias supranacionais, com
base no comunitarismo cultural”. (ABDALA JUNIOR,2002, p. 31). Para ele, nesse atual
mundo de fronteiras múltiplas, podemos redescobrir uma identidade coletiva com uma
nova visão compartilhada (supranacional), ou seja, essas novas fronteiras não devem
ser “(...) de separação, mas de contato, de compartilhamento (...).” (ABDALA JUNIOR,
2002, p. 38)
Os “contatos de compartilhamento” do Brasil com os países da América Latina e
com os de língua portuguesa, tornam-se possíveis porque nos aproximamos por uma
maneira de ser, por formação cultural e situação política periférica. Tais constatações
nos permitem identificar uma nítida aproximação entre Brasil e Angola e estabelecermos
assim, as desejadas associações no campo do comunitarismo supranacional.
Ambos os países foram colônias de Portugal e têm o português como língua
oficial. Em relação ao “modo de ser” há muito de Brasil em Angola e muito de Angola no
Brasil. Temos um passado comum, mas sobretudo temos “carências comuns”.
Desse modo, as literaturas brasileira e angolana são produções do
comunitarismo cultural que se traduzem como forma de afirmação de nossas diferenças:
no passado, quando do surgimento de cada uma delas em relação ao domínio colonial
e, hoje, em face à estandardização da globalização.
Portanto, ao realizar e compartilhar a interpretação que fizeram do livro de
Pepetela, pudemos perceber como os alunos ser reconheceram na aproximação entre

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duas literaturas e, de alguma forma, se juntaram à luta incessante pela necessidade de
se fazer ouvir as vozes dos que clamam por liberdade ao produzirem seus textos e
confeccionarem seus cartazes aludindo e enfatizando essa temática.
O penúltimo parágrafo do livro As aventuras de Ngunga é uma pergunta: “Se
Ngunga está em todos nós, que esperamos então para o fazer crescer?” (PEPETELA,
1981, p. 59)
O que nós esperamos? Nós os que recusamos todo tipo de arame farpado e
que queremos a repartição igualitária do mel? Ngunga está em todos nós. Sua trajetória
de aprendizagem é igual a de muitos de nossos jovens. Na narrativa de Pepetela o
menino Ngunga cresce, um homem nasce dentro dele quando parte, sozinho, para a
escola. De igual modo, a leitura, as atividades desenvolvidas, os temas discutidos – tudo
contribui, de alguma forma, para o crescimento de nossos alunos. Melhor que isso, para
o crescimento do “Ngunga” que está dentro deles. E de nós também, afinal crescemos
um pouco mais, crescemos juntos.
Assim, se não podemos (e acreditamos que não podemos) estimar o valor de
atividades como essas, a pergunta permanece: Que esperamos então?

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Duas Cidades, 2011.

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto,2019

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
PEPETELA. As aventuras de Ngunga. 2ª Edição. São Paulo: Ática, 1981.
________. Mayombe. Lisboa/Luanda: Edições 70/UEA,1980
________. A geração da utopia. Lisboa: Dom Quixote,1992

SOUZA SANTOS, Maria Alzira de. A geração da utopia e Memórias do cárcere – a


resistência como re- existência. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH da Universidade de São
Paulo,2010.

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A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTIL NA PRÁTICA
DOCENTE E NA FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO

Kátia Cristina Carse Alcover, Secretaria de Estado de Mato Grosso (SEDUC)


Silvia Cristina Fernandes Paiva, Prefeitura Municipal de Primavera do Leste
Vânia Regina Otsuka Lopes, SEDUC / MT
Gilvane Reinke, Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT

Eixo Temático: Grupo Temático 10: Educação literária, letramento literário, formação
e mediação de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender

Considerações iniciais
A capacidade de imaginar outras vidas e outros mundos nos permite vivenciar
grandes aventuras e assim ampliar nossas experiências e nelas encontrar um sentido.
Uma das formas de despertar a imaginação é por meio dos textos literários que
permitem que a criança se transporte para o desconhecido, decifre sentimentos e
emoções que a cercam e acrescente vida a sua imaginação. Permite também levá-la a
vivenciar experiências que propiciem e solidifiquem os conhecimentos significativos em
seu processo de aprendizagem. Por isso, ouvir histórias desde a primeira infância pode
ser um estímulo para a criança dominar com propriedade a linguagem tanto oral quanto
escrita.
Neste sentido não podemos pensar em um ensino de qualidade sem incluirmos
em nossos planos de aulas um projeto de leitura para contribuir na formação do leitor
literário e nas práticas docentes em sala de aula.
Porém, percebe-se que a literatura não se faz tão presente como deveria, tanto
nos lares como nas escolas brasileiras. Muitas vezes quando estão na escola acabam
não sendo exploradas de maneira adequada, em grande parte pela pouca informação
dos docentes em relação ao conteúdo que compõe as bibliotecas escolares e também
aos programas governamentais de fomento e incentivo à leitura, como o Plano Nacional
Biblioteca da Escola - PNBE com livros de literatura infantil e infanto-juvenil e também

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para formação de professores e/ou pela deficiência na formação acadêmica que não dá
maior ênfase nos conhecimentos sobre a leitura e o letramento literário.
Neste sentido, e para suprir a lacuna da formação, o Centro de Formação e
Atualização dos Profissionais da Educação Básica – CEFAPRO, polo de Primavera do
Leste, ciente da importância do processo de formação continuada dos profissionais da
educação, com a finalidade de contribuir com os professores dos anos iniciais,
organizou o curso: “Mediação da Leitura Literária no I Ciclo do Ensino Fundamental”, no
período de março a outubro 2019.
Diante dos anseios esperados no decorrer do curso e dos desafios enfrentados
durante a aplicação das atividades em sala de aula propostas a partir do curso, surgiram
algumas inquietações: como a literatura contribui na formação do leitor literário e nas
práticas docentes em sala de aula? Assim, o objetivo deste trabalho é destacar a
contribuição da literatura para a promoção do letramento literário visando os processos
interativos e discursivos de educandos dos anos iniciais do ensino fundamental e para
a ressignificação das atividades em sala de aula.
Para responder a questão anteriormente citada, foi realizado um estudo
qualitativo com base nas atividades de leitura e escrita a partir das obras: Era uma vez
um gato xadrez de Bia Vilela e Língua de sobra e outras brincadeiras poéticas de Léo
Cunha, propostas no curso: “Mediação da Leitura Literária no I Ciclo do Ensino
Fundamental”, em 03 turmas do ensino fundamental de duas escolas do município de
Primavera do Leste, sendo uma turma de 2º ano e uma turma de 3º ano de uma escola
estadual e uma turma de 2º ano de uma escola municipal, onde foram desenvolvidas
atividades antes, durante e após a leitura dos textos literários. As turmas foram
nominadas de 2º E (2º ano da escola estadual), 3º E (2º ano da escola estadual) e 2º M
(2º ano da escola municipal) para melhor identificar as turmas. Assim compreender a
literatura como processo interativo e discursivo (SMOLKA, 2012) e o desenvolvimento
do letramento literário (COSSON, 2006) foi de suma importância para o
desenvolvimento deste trabalho.

Contribuição da literatura infantil na formação do leitor literário e nas práticas


docentes em sala de aula
A literatura infantil é um caminho capaz de desenvolver nas crianças a
imaginação, despertar sentimentos e emoções, incentivar o hábito e a aprendizagem da
leitura, além de ampliar o vocabulário, propiciando um aprendizado prazeroso e
significativo. Deste modo, o hábito da leitura é um processo que deveria ser estimulado

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desde a mais tenra idade, no seio familiar, porém quando isso não acontece cabe a
escola iniciar este trabalho.
Neste sentido a escola desempenha um papel fundamental no incentivo do
hábito da leitura e a importância desse papel deve acontecer desde o Projeto-Político-
Pedagógico (PPP) englobando todas as esferas e ambientes da escola, não só a
biblioteca. Diversos projetos, momentos, locais e materiais como: livros, revistas, gibis,
devem estar sempre à disposição dos estudantes para que, de forma consciente, a
escola consiga despertar o interesse, a curiosidade e o prazer de manusear e
experimentar as primeiras leituras.
Cosson (2006, p. 26-27) afirma que “no ambiente escolar a literatura é um lócus
de conhecimento e, para que funcione como tal convém ser explorada de maneira
adequada. A escola precisa ensinar o aluno a fazer essa exploração”. Além da
exploração o autor também alerta que “o sucesso inicial do encontro do leitor com a
obra depende de boa motivação [...] A construção de uma situação em que os alunos
devem responder a uma questão ou posicionar-se diante de um tema é uma das
maneiras mais usuais da construção da motivação” (COSSON, p. 54-55, 2006).
Para isso é importante também que o professor leve a literatura para dentro da
sala de aula e a incorpore às suas práticas docentes no dia a dia, principalmente nos
anos iniciais, quando os estudantes estão construindo sua autonomia como leitor. Neste
período o professor pode intercalar a leitura feita por ele com momentos de leitura feita
pelos alunos para a turma ou mesmo momentos em que os alunos possam ler sozinhos.
O professor pode dar espaço para os estudantes escolherem o que querem ouvir ou ler,
fazer troca de livros entre eles, problematizar e questionar o que foi lido, entre outras
atividades que contribuam tanto para o desenvolvimento cognitivo quanto para o
processo pedagógico.
Segundo Zilberman (2003, p. 16) a “sala de aula é um espaço privilegiado para
o desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um campo importante para o
intercâmbio da cultura literária, não podendo ser ignorada, muito menos desmentida sua
utilidade”, que é a de contribuir na formação de leitores críticos, questionadores e
capazes de ler o mundo à sua volta, partindo da leitura produzida nos espaços
escolares.
Assim tornar o ensino/aprendizagem da literatura em uma prática significativa
deve ser prioridade em nossas escolas para que desempenhe um papel cada vez mais
importante na vida dos estudantes, tanto na sua vida escolar como na sua vida fora da
escola.

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Então torna-se necessário repensar o conceito de literatura no espaço escolar,
bem como seu conceito, valor e função social direcionando o ensino da literatura para
o caminho do letramento literário, um tipo de letramento em que a literatura é vista de
maneira mais ampla (VIEIRA, 2015), de modo a introduzir a criança nas práticas sociais
da leitura e da escrita.
Segundo Souza e Cosson o letramento literário é diferente dos outros tipos de
letramento, porque a literatura ocupa um lugar único em relação à linguagem e precisa
da escola para se realizar, pois a mera prática de leitura de textos literários não
consegue sozinha efetivar. É por entender essa singularidade que os autores apoiados
em Paulino e Cosson (2009, p. 67) definem letramento literário como: “o processo de
apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos”. E alertam que
nessa definição

é importante compreender que o letramento literário é bem mais do que


uma habilidade pronta e acabada de ler textos literários, pois requer
uma atualização permanente do leitor em relação ao universo literário.
Também não é apenas um saber que se adquire sobre a literatura ou
os textos literários, mas sim uma experiência de dar sentido ao mundo
por meio de palavras que falam de palavras, transcendendo os limites
de tempo e espaço (SOUZA; COSSON, s.d. p. 103).

Nesta perspectiva, o letramento literário vai além de ler textos literários, logo
implica em compreender, ressignificar, estabelecer diálogo com os textos, por meio da
motivação do professor e do estudante.
Diante disso o professor tem um papel muito importante a desempenhar como
regente de sala: o de mediador entre o livro e o leitor no contexto escolar. A sua atitude
profissional é absolutamente fundamental para assegurar o êxito do trabalho e para
promover o desenvolvimento de todos os seus alunos. O estudante é o sujeito ativo da
sua própria construção. Portanto, quanto mais intensamente ele interagir com o objeto
do conhecimento, mais depressa vai se desenvolver. É necessário criar situações
significativas para ele operar, escrever e ler muito em sala de aula.
Como afirma Solé (1998) para se trabalhar a leitura em sala de aula, o docente
necessita organizar estratégias de leitura. As situações de leitura devem ser
incentivadas na escola. Esta prática deve ser objeto de promoção de uso de
determinadas táticas. Para tanto se faz necessário uma ação pedagógica que faça
intervenção de um leitor ativo, que processa e atribui significado àquilo que está escrito.
Destacando, neste trabalho, a leitura literária com atividades antes, durante e após a
leitura do texto literário.

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Então cabe ao professor “criar condições para que o encontro do aluno com a
literatura seja uma busca plena de sentido para o texto literário, para o próprio aluno e
para a sociedade em que todos estão inseridos” (COSSON, 2006, p. 29). O autor vai
além e menciona que as estratégias devem visar desenvolver o letramento literário na
escola e ter a leitura como objetivo principal desse tipo de letramento, porém a leitura
do aluno deve ser discutida, questionada e analisada, contribuindo assim para a
formação do leitor literário.

Paulino (1998, p. 56) destaca que “a formação de um leitor literário significa a


formação de um leitor que saiba escolher suas leituras, que aprecie construções e
significações verbais de cunho artístico, que faça disso parte de seus fazeres e
prazeres”.
A leitura é um processo no qual o leitor interage com o texto, ou seja, existe um
diálogo entre leitor e o texto. A construção de sentidos ocorre a partir dessa interação,
levando em consideração as informações contidas no texto, as ilustrações e as
experiências vivenciadas pelo leitor. Benjamin (2002) explica que,

os livros infantis não servem para introduzir os seus leitores, de


maneira imediata, no mundo dos objetos, animais e seres humanos,
para introduzi-los na chamada vida. Só aos poucos o seu sentido vai
se constituindo no exterior, e isso apenas na medida em que
estabelece uma correspondência adequada com seu interior. A
interioridade dessa contemplação reside na cor, e em seu meio
desenrola-se a vida sonhadora que as coisas levam no espírito das
crianças. Elas aprendem no colorido. (BENJAMIN, 2002, p. 62)

Nessa perspectiva, a leitura literária se apresenta como importante recurso


pedagógico para o desenvolvimento de experiências e aprendizagens significativas
norteadas pelas interações e produção de sentidos, mas para isso a leitura em sala de
aula deve ser um convite à brincadeira para que a aprendizagem se torne prazerosa.
A criança quando brinca representa o mundo adulto e se relaciona com o
mundo externo, organiza respostas, toma decisões, se expressa, solta a imaginação,
comunica-se com seus pares, aprende a respeitar e é respeitado.
Smolka reforça que “os modos de agir, pensar, falar, sentir das crianças vão se
constituindo e adquirindo sentido nas relações sociais” e destaca a importância da
mediação e participação de outros na construção do conhecimento pela criança e que
a forma verbal de linguagem como modo de interação afeta, constitui e transforma (grifo
nosso) o desenvolvimento e o funcionamento mental dos sujeitos. A autora ancorada na
contribuições de Vygotsky e Bakhtin afirma que essa “perspectiva considera a atividade
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mental da criança não apenas em seu aspecto cognitivo, mas em seu
aspecto discursivo” (SMOLKA, s.d., glossário Ceale). Sendo assim, a linguagem oral e
escrita pode ser ao mesmo tempo meio de interação entre a criança e as ações
desenvolvidas em sala de aula.
A autora concebe a linguagem “como prática social, como produção e produto
da atividade humana, constitutiva dos sujeitos em interação” (SMOLKA, 2012, p. 13), e
evidencia que os processos de ensino e aprendizagem na sala de aula ocorrem nessa
perspectiva, por isso Smolka foca a alfabetização como prática discursiva:

Quando, há três décadas, argumentei sobre o modo de conceber a


alfabetização como processo discursivo, as idéias que ancoravam
essa concepção se aproximavam do que tem sido designado como
letramento, implicando, portanto, as condições concretas de imersão
dos sujeitos no mundo da escrita, das práticas de leitura e escrita em
uso e em transformação, incluindo as práticas midiáticas e a
informatização. Destacava nessa proposta, três pontos principais: os
modos de participação das crianças na cultura; os diversos modos de
apropriação da forma escrita de linguagem pelas crianças; as relações
de ensino (Idem).

Complementando, a autora ressalta que:

Imersa, portanto, em um mundo letrado, permeado pela escrita, e


participando de diversas formas dessa prática social, a criança
opera com e sobre a linguagem e aprende (sobre) a escrita – suas
características, peculiaridades, funções e formas de funcionamento –
em diálogo com outros e consigo mesma (SMOLKA, s.d., glossário
Ceale).

Diante dessas premissas é fundamental ressaltar que numa mesma sala de


aula há alunos com diferentes níveis de aprendizado e conhecimento, alguns que já
alcançaram as habilidades necessárias e outros que ainda estão no processo de
alfabetização, cada um com seus conhecimentos prévios diante de suas experiências
vivenciais e hábitos de comportamento. Então cabe ao professor apresentar um
planejamento com atividades coletivas que atendam as especificidades de todos no
mesmo momento e atividades individuais que permitam também a reflexão da escrita.

Breves reflexões sobre a contribuição da literatura para a promoção do letramento


literário e a ressignificação das práticas em sala de aula
No período de 15 de março a 04 outubro de 2019, o Centro de Formação e
Atualização dos Profissionais da Educação Básica – CEFAPRO, polo de Primavera do
Leste, ciente da importância do processo de formação continuada dos profissionais da
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educação, com a finalidade de contribuir com os professores dos anos iniciais,
organizou o curso: “Mediação da Leitura Literária no I Ciclo do Ensino Fundamental”.
No decorrer do curso foram trabalhados temáticas como: letramento literário,
estratégias de leitura, textos poéticos e folclóricos e práticas literárias com esses tipos
de textos. Também foram propostas atividades de leitura e escrita a partir das obras:
Era uma vez um gato xadrez de Bia Vilela e Língua de sobra e outras brincadeiras
poéticas de Léo Cunha. Estas atividades foram desenvolvidas em 03 turmas do ensino
fundamental de duas escolas do município de Primavera do Leste, sendo uma turma de
2º ano e uma turma de 3º ano de uma escola estadual e uma turma de 2º ano de uma
escola municipal, onde foram desenvolvidas atividades antes, durante e após a leitura
dos textos literários.
A primeira proposta desenvolvida partiu da exploração da obra Era uma vez
um gato xadrez, da autora Bia Villela. Antes da apresentação da obra, procurou-se ativar
o conhecimento prévio dos alunos sobre o tema Gatos. Para a roda de conversa,
algumas perguntas foram respondidas oralmente pela turma, propiciando um momento
de descontração e interação.
Perguntas como: Vocês gostam de gatos? Quem tem gatos em casa? Quais
os nomes dos gatos? Quais são os cuidados que devemos ter com os gatos? Foram
respondidas com muito entusiasmo. Cada aluno expôs sua preferência pelo animal de
estimação. Ocorreram, também, relatos de morte dos animais, relatos de situações
engraçadas envolvendo os gatos e relatos de arranhões.
Conversar sobre os gatos com as crianças foi uma oportunidade diferente.
Observou-se que neste momento, como em tantos outros, ensinamos a arte de ouvir.
Prestar atenção ao que o outro diz, suas explicações, a empatia, sem dúvida um
momento de preparação muito produtivo para todos os envolvidos.
Antes da leitura da obra, a professora da turma do 2º M organizou um gráfico
de barras simples com os dados levantados pelos alunos sobre quem gosta de gatos e
a cor dos gatos. Os alunos refletiram sobre a função do gráfico e da legenda e
compreenderam que o gráfico é uma forma de resumir um conjunto de dados coletados.
Já as professoras das turmas do 2º E e 3º E apresentaram o vídeo de ópera
“Dueto de gatos”. Na turma do 2º E, quando o vídeo iniciou eles acharam engraçado e
ficaram fazendo comentários sobre as cantoras. Ao terminar pediram para passar o
vídeo mais uma vez. Ao final do vídeo uns comentaram que acharam engraçado, outros
que gostaram, outros disseram que “não teve graça ouvir duas mulheres miando”. A
professora perguntou se sabiam que tipo de música as cantoras estavam cantando.

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Uma aluna respondeu que era ópera, o que fez com que outros alunos comentassem
que já tinham visto óperas na televisão.
Na turma do 3º E em uma pequena tela de celular, apresentada aos 25 alunos
da sala, não parecia de tamanho tão reduzido. O silêncio foi feito sem pedido, como
numa grande apresentação que se espera o respeito pela obra, seu autor e seus
personagens, foi um momento de reflexão à professora. Quando se imagina que tudo é
acessível num momento de tantos dispositivos tecnológicos, internet, crianças se
encantam diante de duas sopranos num diálogo sem falas, repleto de expressões.
Neste momento as atividades desenvolvidas antes da leitura da obra
exploraram a antecipação do leitor diante do título do livro, motivando-os a opinar e se
posicionarem sobre o tema Gato e responder as perguntas feitas pelas professoras.
Também foi possível ativar os conhecimentos prévios dos alunos tanto sobre gatos
como sobre ópera, pois permitiram articulá-los as novas informações trazidas pelas
professoras e assim construir novos conhecimentos. Antes da leitura da obra foi
permitida a aquisição de novos conhecimentos ao organizarem e refletirem sobre a
função do gráfico e ao assistirem o vídeo de ópera, já que muitos nunca tinham assistido
a uma apresentação desse tipo.
No momento posterior foi apresentado a obra Era uma vez um gato xadrez.
Durante a leitura da obra na turma do 2º M foi questionado se existia realmente um gato
xadrez e porque a autora deu este nome ao livro. Alguns alunos contribuíram com
diversas opiniões, considerando que existe realmente o gato xadrez e que autora
possuía um gato dessa cor, justificando o nome do livro. Conforme a leitura de cada
estrofe do poema, a cor correspondente ao gato era alterado. Os alunos tentavam
durante a narrativa, adivinhar a próxima cor e a rima correspondente. Durante a
narração do texto foram feitas várias perguntas estimulando os alunos emitir hipóteses,
explorando o pensamento imaginativo e criativo.
Na turma do 2º E os alunos ficaram atentos no momento da história. Durante a
roda de conversa, a professora perguntou qual tinha sido o gato preferido deles, qual
gato não tinham gostado, se eles trocariam algum gato da história, se tinham achado
alguma coisa engraçada na história. A cada pergunta foram emitindo suas opiniões e
respondendo ao que era perguntado.
Quanto a turma do 3º E, diante do encanto dos 12 palitoches, que
representavam os gatos da história, não foi preciso uma palavra para anunciar o título,
lá estava o Gato xadrez. E diante de cada palitoche alguma criança arriscava-se em
antecipar o que vinha pela frente, qual era a história do gato. E as palmas e os sorrisos

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fecharam a contação de forma triunfante. Entretanto o trabalho não estava concluído. A
professora precisava ouvi-los, era uma necessidade, e a pergunta principal qual a
avaliação dos aprendentes, suas considerações.
Fica evidente nas 3 turmas, que a medida em que eram motivadas, as crianças
se expressavam para emitir suas opiniões, seus pensamentos e levantar hipóteses
sobre a história, interagindo e estabelecendo um diálogo com o texto e assim
construindo sentidos por meio de palavras. O momento da leitura é um momento rico,
pois além de ser um espaço de prazer e fruição, permite ao mesmo tempo desenvolver
no aluno o raciocínio, a criatividade e a habilidade comunicativa, despertando, desta
forma, o interesse em ler e conhecer outras literaturas.
O texto lido foi bastante interessante porque favoreceu o trabalho com rimas e
aliterações, apresentou também, uma estrutura com repetição de palavras que facilitou
aos alunos que estão se apropriando do sistema de escrita alfabética e aos alunos que
já se apropriaram do sistema de escrita alfabética, pensar em sons que compõem a
palavra.
Tanto na turma do 2º M quanto na turma do 2º E foi realizada uma atividade
com rimas para que os alunos identificassem as palavras que apresentavam
semelhanças sonoras, partindo de palavras do próprio texto. Foi um momento de muita
interação em que os estudantes participaram como sujeitos ativos de seu aprendizado
e quanto mais os estudantes conseguiam rimar as palavras mais eles queriam interagir
com os colegas. Observa-se neste momento a prática discursiva acontecendo em sala
de aula de forma lúdica e prazerosa.
Após explorar o texto a professora do 2º M entregou a cada aluno um gatinho
de papel para ser montado e desenhado a cena correspondente ao texto e a cor do gato
montado. Depois foi produzido um painel da história contada. A professora do 2º E
trabalhou com a dobradura da carinha do gato para colarem no caderno e finalizarem o
desenho e a professora do 3º E solicitou o desenho do gato preferido.
Este foi um momento em que os estudantes conversaram e trocaram ideias o
tempo todo pedindo opinião do colega sobre como montar o seu gato, como completar
o desenho ou que gato desenhar, ou seja, foi um momento em que as crianças
demonstraram o que compreenderam da história, ressignificando-a.
Observa-se que, diante da proposta apresentada, foi possível trabalhar
atividades diversificadas envolvendo a leitura, a exploração do texto e a reflexão sobre
o sistema de escrita.

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A segunda proposta desenvolvida partiu da exploração da obra Língua de
sobra e outras brincadeiras poéticas de Léo Cunha. Para ativar os conhecimentos
prévios dos alunos foi apresentado o poema Língua de Sobra no quadro e perguntado
se eles sabiam o que era Língua de sobra?, título do poema. Qual outro título poderia
ser dado ao poema? Qual a relação entre sobra e sogra? Qual o significado de língua
de sogra?
Alguns alunos relacionaram com o brinquedo língua de sogra em forma de tubo
que ao ser soprado desenrola e estica. Foi comentado a existência do doce língua de
sogra e o doce olho de sogra. Alguns alunos relacionaram o título com a língua de cobra,
devido a rima e pelo formato da língua da cobra, outros com pessoas fofoqueiras,
tagarelas, pessoa com a língua grande, que não guarda segredo. Quanto ao título eles
sugeriram: língua grande, língua grande demais, língua de sapo. Um aluno observou
que entre as palavras sogra e sobra mudava apenas a letra “g” pela letra “b”.
Foi realizado uma breve apresentação da biografia do escritor Léo Cunha e
ilustradora Suppa, destacando a importância do ato de escrever e de ilustrar. Em
seguida, foi apresentado o livro “Língua de Sobra e outras brincadeiras poéticas”. Nessa
atividade foi explorado os elementos e informações encontrados na capa ilustrativa do
livro com objetivo de identificar o que os alunos já conheciam sobre as características
da estrutura. Foi apresentado às crianças os diversos gêneros que o livro traz: trava-
línguas, poemas, acróstico, caça-palavra, charada, parlenda.
Neste momento uma aluna do 2º E comentou: “é por isso que o livro chama
língua de sobra, porque tem muita coisa”. Ela se referia aos diversos gêneros que o livro
trazia.
No decorrer das atividades desenvolvidas antes da leitura do texto literário,
assim como na atividade proposta anteriormente, observa-se que foi possível motivar
os estudantes e ativar seus conhecimentos prévios sobre o tema: Língua de sobra,
fazendo-o interagir com a obra e com os colegas. Observa-se também o trabalho das
professoras ensinando os estudantes a explorarem os elementos e informações
encontrados na capa do livro. Esta atividade foi importante para aluno desenvolver a
observação e compreender as funções das informações na capa do livro, constituindo
assim, um comportamento leitor. Também proporcionou o conhecimento de outros
gêneros textuais e a reflexão da diferença sonora entre as palavras sobra e sogra.
Em seguida foi apresentada a obra “Língua de Sobra e outras brincadeiras
poéticas” e realizada a leitura para as crianças e com as crianças. Alguns estudantes
acharam difícil e disseram que enrolava a língua para falar.

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A percepção do som e da fala é uma capacidade que precisa ser desenvolvida
em sala de aula para que haja a compreensão do princípio alfabético e o
reconhecimento de sílabas e fonemas na palavra. O livro “Língua de Sobra e outras
brincadeiras poéticas” oferece diferentes gêneros para desenvolver a consciência
fonológica como as parlendas, a lenga-lenga, os acrósticos, anagramas, adivinhas,
charada e trava-línguas. Todo esse repertório de jogos de palavras se torna atrativo ao
aluno pela musicalidade e pelo caráter divertido.
Após a leitura coletiva da obra, com a turma do 2º M leitura foi promovida uma
competição em que cada aluno teria que falar o trava-língua mais rápido. Em seguida,
os alunos ilustraram alguns trava-línguas na intenção de desenvolver a capacidade de
interpretação. Na busca de enriquecer a atividade foi apresentado o livro “Língua de
Trapos” da autora Adriana Falcão. As ilustrações são do artista plástico e animador Rui
de Oliveira. O livro é contado em versos e narra a história de uma boneca feita de
retalhos de panos que ganha vida durante a noite quando os adultos já estão
dormindo. A brincadeira está no jogo de palavras, em que cada retalho da língua da
boneca é uma fala diferente. Pode-se perceber a intertextualidade presente no livro
relacionando com o livro “Língua de Sobra e outras brincadeiras poéticas”.
Com a turma do 2º E foi construído coletivamente um pequeno poema.
Inicialmente as crianças produziram os textos oralmente e depois foi produzido um único
texto escrito, tendo a professora como escriba. Com o texto finalizado, todos copiaram-
no em seu caderno.
Aos educandos da turma do 3º E, além da apresentação da obra Língua de
Sobra, foi apresentado o Haicai, pois como coloca Smolka (2012) as práticas
pedagógicas na escola podem restringir a elaboração de um pensamento crítico, e com
o intuito de colocar novas oportunidades de leituras, foi escolhido o Haicai. O Haicai é
um poema de origem japonesa, que tem sua origem nas terras de Cipango, como era
conhecido o Japão. O Haicai é a poesia para que aprecia a natureza, seguindo regras
para construí-lo, pois é um terceto isento de rima e sem título, e que tenha
obrigatoriamente tem como tema algo relacionado à estação do ano em que o haicaísta,
isto é, aquele que pratica o Haicai, está a escrever. Assim, a professora utilizando um
livro escrito por seu tio (materno) Mário Isao Otsuka, intitulado, Nas trilhas do Haicai
Brasileiro, apresentou além do proposto na obra de Cunha, algo que representa o
poema em outra cultura. É preciso dizer, que as crianças não ficaram exatamente
encantadas, mas assim como a ópera foi apresentada, sentiu-se a necessidade de
apresentar outras possibilidades do uso da escrita e leitura, assim como a diferença de

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produção em outra cultura. Após um diálogo reflexivo sobre as duas obras entre toda a
turma e a professora, foi solicitado às crianças que realizassem um desenho sobre o
que mais gostaram dentro do que foi apresentado. E desta forma, foi constatado que
sem dúvida, até aquele momento, a obra Língua de Sobra foi a obra preferida.
Após a leitura da obra as crianças fizeram sua releitura, ressignificando-a. Este
momento foi um momento lúdico de diálogo, escuta, expressividade e favoreceu a
participação, o desenvolvimento do gosto estético, a oralidade, a ampliação do
vocabulário, o desempenho na escrita e a criatividade de cada um, contribuindo para a
formação do leitor literário.

Considerações Finais
Considerando que as práticas de leitura literária possibilitam o desenvolvimento
do senso estético, do lúdico e do imaginário, no decorrer das leituras as crianças
demonstraram prazer em manipular os livros e ver suas figuras, ouvir e recontar as
histórias e o despertar do interesse por outros títulos, levando-os a visitar a biblioteca
da escola com mais frequência. Com isso pode-se considerar que as atividades
trabalhadas permitiram momentos prazerosos e lúdicos de diálogo, escuta,
expressividade e participação dos alunos, e consequentemente, o desenvolvimento no
processo de leitura, escrita e oralidade.
Assim, corroborando com a fala de Cosson, percebe-se que a escola cumpre o
papel de letramento literário e responde à pergunta deste trabalho ao mostrar que
através das ações das professoras das três salas os alunos puderam vivenciar de forma
intencional momentos de prazer à leitura, conhecendo e refletindo sobre o texto e seus
componentes. Também pôde-se perceber que os objetivos do trabalho puderam ser
apreciados, pois através dos relatos foi possível perceber a promoção do letramento
literário visando os processos interativos e discursivos dos educandos dos anos iniciais
do ensino fundamental das escolas estudadas.
Em suma, os livros infantis, brincadeiras e jogos sonoros favorecem o imaginário
infantil, estabelecem as relações sociais e desenvolvem o cognitivo, a formação leitora
e escritora.

REFERÊNCIAS

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Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades, 2002.

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CIBERLITERATURA: A LITERATURA-SERVIÇO E OS NOVOS
SENTIDOS DA BIBLIOTECA ESCOLAR

Fabiana Sala, Bibliotecária no Instituto Federal de Educação, Ciência e


Tecnologia de São Paulo, Doutoranda no Programa de Pós-graduação em
Ciência da Informação da Unesp/Marília
Cláudio Marcondes de Castro Filho, Livre-Docente em Políticas Públicas e
Formação Profissional da Informação, Universidade de São Paulo

Eixo Temático: (Grupo Temático 10: Educação literária, Letramento literário,


formação e mediação de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A geração Alpha, como são denominados os nascidos no conjunto das
tecnologias digitais, chega às instituições de ensino imersa em uma realidade de
interação multifuncional. “O espaço virtual gerado pelas redes de computadores
funciona como um novo meio. Abre-se com ele uma miríade de oportunidades que
expandem o conceito de literatura em função da emergência de novas formas de criação
literária” (SANTAELLA, 2012, p. 230).
A literatura criada no ciberespaço e a profusão de seus diferentes formatos e
estilos vêm recebendo diversificadas nomenclaturas. Mourão (2001) e Costa Santos
(2010), relacionam alguns desses nomes, como: infoliteratura, literatura informática,
literatura potencial, hiperficções, geração automática de texto, literatura algorítmica,
texto virtual, literatura generativa, poesia animada por computador, poesia multimídia,
literatura gerada por computador e ciberliteratura.
“Apesar da variação da nomenclatura, costuma-se definir a literatura digital
como aquela que nasce no meio digital” (SANTAELLA, 2012, p. 231). A ciberliteratura,
redefiniu os modos de consumo da narrativa literária, propondo livros digitais interativos,
que se apresentam em novos formatos de vídeos, jogos, animações e redes sociais.
Com essa nova demanda, surgem as plataformas de Literatura-serviço. O
termo literatura-serviço foi cunhado por Furtado (2018), e tem como intenção,

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“representar a extensão da tecnologia digital na literatura, que passa a ser consumida
por uma experiência online em plataformas de interação e partilha social, com
características de onipresença e mobilidade” (FURTADO; OLIVEIRA, 2020, p. 67).
As plataformas de Literatura-serviço são como os aplicativos móveis que
oferecem o livro em formato digital e interativo, elas se assemelham as redes sociais e
possibilitam a interação entre os leitores. A possibilidade de interagir com diversos
sujeitos, faz com que o estímulo em consumir as obras aumente.
Diante desse novo cenário, o presente estudo objetiva refletir sobre a maneira
como a biblioteca escolar, enquanto instituição educacional, pode contribuir para
proporcionar à Geração Alpha uma aprendizagem eficiente da competência literária,
desenvolvendo nos nativos digitais, a capacidade de compreender o material escrito e
o desejo de novas leituras.
Como procedimentos metodológicos, optou-se por uma pesquisa de
abordagem qualitativa, de natureza bibliográfica e exploratória. Marconi e Lakatos
(2013), consideram a pesquisa bibliográfica como um método eficiente para temas
inovadores. A Ciberliteratura e a literatura-serviço, são temáticas que pouco são
discutidas no âmbito da biblioteca escolar. Portanto, a pesquisa bibliográfica
exploratória contribui com a conscientização e avanços sobre a temática para a área de
estudo.
Para a efetivação da pesquisa bibliográfica, realizou-se uma varredura no
Google Scholar, no Scientific Electronic Library Online (SciELO), no portal de Periódicos
da Capes, e na Base de Dados Referenciais de Artigos de Periódicos em Ciência da
Informação (BRAPCI) sobre a temática, utilizando-se os seguintes descritores:
Ciberliteratura. Literatura-serviço. Biblioteca escolar. Leitura digital. Competência
literária. Entretanto, não foram localizados artigos publicados que abordassem a
questão sobre o uso da literatura-serviço e da ciberliterarura por bibliotecas escolares,
visto que, essa ainda é uma temática recente que vem conquistando espaço no Brasil.
Dessa maneira, nos dispomos a discorrer sobre a temática nos próximos tópicos.

Literatura-serviço e a realidade de interação multifuncional


Devido ao avanço tecnológico, a forma tradicional de produção textual tem
passado por profundas modificações que acompanham essa nova forma de
organização social. “Com a evolução das tecnologias e das possibilidades de
comunicação, inovadores suportes para a produção e disseminação de textos vêm
sendo desenvolvidos” (VIDAL; AZEVEDO; ARANHA, 2020, p. 1).

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O crescente uso da Internet democratizou a linguagem hipertextual, que
possibilita diversas formas de associações de ideias e direcionam o leitor para diferentes
textos, o que faz com que a relação escrita-leitura seja virtualizada (LÉVY, 1993). Para
Murray (2003), muitas vezes o leitor é conduzido a navegar por diferentes leituras pelo
respectivo autor, que acrescenta links no decorrer do texto, induzindo o leitor a visitar
novos ambientes, ao mesmo tempo que lhes garantem uma sensação de plena
liberdade.

Tais transformações não se restringem a uma abordagem centrada na


“migração” de conteúdo do papel para a tela. Os próprios paradigmas
que sustentavam o cânone literário e suas formas consagradas estão
passando por uma “crise” que impõe a sua reestruturação. Elementos
como as narrativas hipertextuais e as criações poéticas multimídias
demandam um olhar mais atento às suas especificidades e impactos,
tanto no campo editorial quanto literário (VIDAL; AZEVEDO; ARANHA,
2008, p. 2).

A necessidade em conceituar essa nova demanda social pela literatura digital,


faz com que os pesquisadores busquem diferentes nomenclaturas para definir e explicar
a diferença que existe entre a literatura impressa que é transportada (digitalizada) para
o mundo virtual e as produções literárias que nascem imersas no universo digital.

Mediante as mídias digitais, a configuração da literatura sofreu um salto


qualitativo em todos os seus aspectos, “envolvendo a instância autoral,
a leitora, o contexto, o canal, o referente e o código, além do próprio
discurso ou construção textual e hipertextual (SANTAELLA, 2012, p.
229).

Isso exige refletir a produção literária a partir de pressupostos digitais, e de


como ela têm influenciado na configuração de leitor dos nativos digitais, representados
pela Geração Alpha, que nasceram mediados pelas tecnologias digitais e princípios
operacionais de produções criativas da qual a literatura também faz parte. “Por isso, a
criação, a teoria e a crítica literárias exigem a redefinição de seus paradigmas herdados
da era de Gutenberg” (SANTAELLA, 2012, p. 229).
A figura 1, reúne as principais nomenclaturas coletadas durante a realização
da pesquisa bibliográfica desse estudo e pretende representar os novos sentidos da
literatura no universo digital.

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Figura 9: Representação da literatura criada no ciberespaço.

Fonte: Elaborada pelos autores (2020).

Além de termos e nomenclaturas, o universo literário digital também apresenta


aos nativos digitais diferentes ferramentas e serviços inovadores que buscam
proporcionar ao leitor maior interação com o texto, com a plataforma e com os demais
membros da comunidade que servem.

As evoluções decorrentes da tecnologia são marcadas pela velocidade


e verticalidade. Em consequência, o livro, a leitura, a literatura e o leitor
devem ser vistos a partir de tais circunstâncias, o que requer ir em
busca da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade entre áreas que
permeiam o contexto. Apenas assim será possível compreender e ser
capaz de analisar a vanguarda contemporânea (FURTADO;
OLIVEIRA, 2020, p. 63).

Ao longo da história, os livros têm sido explorados por diferentes perspectivas,


que levam em consideração o seu formato, finalidade, material, público e conteúdo. As
tecnologias digitais, vêm mediando os diferentes setores da vida humana. Devido a
essas transformações, o livro alcançou novo significado, a princípio sendo apresentado
por meio da conversão do texto do papel para o meio digital, em seguida surgiram os
hiperlinks e, nos últimos anos, começaram a se apresentar os textos cercados por
mídias, ferramentas interativas e produção compartilhada (MARÇAL, 2018).

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Desprendendo-se das limitações que o suporte físico impõe ao texto, a cultura
literária encontrou no meio digital diversos e modernos suportes que ampliam as
possiblidades de interação do leitor com a informação e com a construção do
conhecimento.

O livro vigente na tela não pode ser visto como uma representação ou
adaptação do livro em suporte físico, pois apresenta particularidades
que acabam por trazer interferências ao processo de leitura, afetar a
experiência do leitor e a compreensão do conteúdo, a imersão e o
engajamento com a narrativa. Em particular, o livro literário, ao ser
inserido na cibercultura, expõe um recente formato de criação literária,
originado e oferecido em meio digital e designado de ciberliteratura
(FURTADO; OLIVEIRA, 2020, p. 64).

Dentre as inovações tecnológicas do mercado cultural e de entretenimento, as


que mais se popularizaram e geraram aceitação entre a Geração Alpha são os
streamings e os aplicativos móveis. “O livro digital, sendo igualmente um serviço da
cibercultura, é agora apresentado em app e streamings, os quais são denominados de
aplicativos de literaturaserviço” (FURTADO, 2019, p. 419).
O termo literatura-serviço é defendido por Furtado e Oliveira (2020, p. 67) e
busca “representar a extensão da tecnologia digital na literatura, que passa a ser
consumida por uma experiência online em plataformas de interação e partilha social,
com características de onipresença e mobilidade“. A definição da nomenclatura
apresentada, encontra fundamentação no entendimento de que a leitura literária é uma
atividade de constante troca entre autor, texto e leitor. Dessa forma, “a literatura como
serviço pode ser vista como uma atividade sempre inacabada e em constante processo,
desenvolvida para responder às demandas, desejos e necessidades dos leitores“
(FURTADO; OLIVEIRA, 2020, p. 67).
A literatura-serviço promove interações e trocas que seguem o modelo de
subscrição e assinatura no formato de streamings, no qual o acesso as obras são
liberadas mediante pagamento preestabelecido. Os aplicativos de literatura-serviço têm
desenhado novos modelos de produção, acesso e configuração no consumo literário,
valorizando a experimentação e a vivencia como a literatura digital, nas quais se
destacam as práticas interativas e a formação de comunidades em volta da obra por
leitores/escritores que promovem diálogos possibilitados pelas ferramentas interativas
que os representam.

Então, propõe-se a utilização do termo literatura-serviço para indicar o


software de aplicações que incorpora ferramentas de mídias estáticas
e/ou dinâmicas, podendo ainda apresentar recursos de hipermídia e/ou
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hipertexto. Todo esse conjunto estruturado ao longo da narrativa
oportuniza áreas de interação, chamadas de hotspots. Substitui-se
assim, os diversos termos, como book apps, app books, livros-
aplicativo, aplicativos de livro, livros digitais interativos, aplicações de
leitura e outros (FURTADO; OLIVEIRA, 2020, p. 68-69).

Assim, levando em consideração esse novo formato de consumo da literatura


imersa em possibilidades tecnológicas interativas ao qual estão familiarizados os
nativos digitais, as instituições educacionais e, especialmente, as bibliotecas escolares,
devem estar atentas e preocupadas em proporcionar aos alunos uma aprendizagem
eficiente da competência literária, desenvolvendo nos nativos digitais, a capacidade de
compreender o material escrito e o desejo de novas leituras, por meio de ferramentas
que atendam suas expectativas e demandas sociais. Visto que, a Geração Alpha possui
repertório e ampla utilização da tecnologia veiculada por aplicativos e streamings
direcionados de forma espontânea e intuitiva para o uso de jogos e entretenimento, do
qual faz parte também o (recém-chegado) universo literário, do qual a biblioteca escolar,
enquanto instituição educacional, não pode ficar excluso.

Interação entre Biblioteca escolar e os nativos digitais


As inovações tecnológicas sempre contribuíram para os avanços conquistados
nas diversas áreas do conhecimento, alterando a forma como os processos são
realizados para otimizar os resultados. Nesse contexto, a biblioteca escolar enquanto
ambiente educacional capaz de promover o acesso à informação e a formação do
conhecimento, vêm buscando se adaptar para coexistir com os recursos tecnológicos e
satisfazer os usuários.
Como equipamento cultural e produtora de recursos informacionais, a
biblioteca escolar tem papel central no processo de ensino-aprendizagem dos alunos.
Dessa forma, as constantes mudanças tecnológicas possibilitam ao bibliotecário novas
formas de atuação, desafiando esse profissional a criar serviços e recursos que
respondam as demandas que passam desde questões estruturais ao atendimento a
comunidade.

Os anos 90 e 2000 foram marcados pela utilização dos computadores


para diversos fins, e hoje os suportes desenvolvidos a partir das TIC
são o principal meio para diversos modos de leitura, principalmente as
feitas em redes sociais, blogs, plataformas de leitura, bibliotecas
digitais, enciclopédias virtuais, etc. (MARÇAL, 2018, p. 68)

O uso de tecnologias aliado às práticas educacionais, tornam as bibliotecas


mais atrativas, além de proporcionarem um atendimento mais ágil e eficiente. De acordo
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com Marçal (2020, p. 70), atualmente o leitor dispõe de diversos tipos de “ferramentas
que o tiram da condição de leitor passivo, para ascender como um leitor ativo, capaz de
agregar valor à informação em seu ambiente de trabalho, no cotidiano educacional e
social“.

Com tantas mudanças, novos desafios surgem, e um novo ambiente


para satisfazer às novas demandas e aos novos clientes se faz
necessário. É preciso atender a essas demandas, abandonar os
antigos padrões e modelos de gestão ultrapassados. Sendo assim, a
biblioteca deve caminhar lado a lado com as transformações. As
bibliotecas recentes devem nascer nesses novos “moldes”, e as
existentes precisam adaptar-se, reestruturar-se, para não se tornarem
inúteis e obsoletas (LANZI; VIDOTTI; FERNEDA, 2013, p. 74-75).

Escolas e bibliotecas do século XXI estão inseridas em uma sociedade que


enfrenta mudanças radicais fomentadas pelas tecnologias na área de informação e
comunicação. Por isso, não devem se manter alheias ou indiferentes a essas
transformações, mas sim, buscar maneiras de reinventar sua forma de interagir com a
sua comunidade de maneira satisfatória, dinâmica e atual, utilizando e integrando os
recursos tecnológicos e Web no cotidiano escolar.

É importante salientar que, na época atual, o bibliotecário escolar


precisa estar inserido em ambientes digitais para um maior dinamismo.
O público frequentador da biblioteca escolar é formado essencialmente
de nativos digitais e, para que eles tenham maior interesse por esse
espaço, ele precisa ser ativo, dinâmico, moderno e atualizado (LANZI;
VIDOTTI; FERNEDA, 2013, p. 80).

Dessa maneira, o bibliotecário deve utilizar as tecnologias de informação e


comunicação como uma ferramenta facilitadora para estimular o acesso do aluno à
biblioteca escolar, posto que, a Geração Alpha possui amplas habilidades para o uso
das tecnologias digitais e passam a maior parte da vida imersos no universo online,
utilizando as tecnologias como mediadoras até mesmo para a forma como se
relacionam uns com os outros.

O bibliotecário precisa estar atento a essa nova forma de cognição


para. De fato, haver uma aproximação concreta e criar-se um vínculo
forte entre ele e o usuário. Ele pode aliar o espaço físico aos ambientes
digitais, estimulando aqueles que não frequentam a biblioteca por falta
de tempo ou mesmo de vontade, buscando-os por meio das redes
sociais, como também melhorando o espaço físico e buscando novos
recursos virtuais para maior aditamento (LANZI; VIDOTTI; FERNEDA,
2013, p. 87).

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Para Sala, Ottonicar e Castro Filho (2020, p. 448) “O desenvolvimento das
bibliotecas escolares está diretamente ligado ao avanço tecnológico”. As principais
fontes de informação e conhecimento da atualidade são compostas pela convergência
entre os ambientes de informacionais, suportes digitais e hipertextos.

Os desafios frente aos avanços tecnológicos estão inteiramente


ligados à possibilidade de conversão de determinadas ações oriundas
do contexto das bibliotecas para processos automatizados; sabe-se
que a vantagem da tecnologia da informação é a sua capacidade de
moldar-se à necessidade de um meio (SOUZA; CARVALHO, 2017, p.
1138).

O tripé, composto pelos ambientes de informação, suportes digitais e


hipertextos, é o que constitui as chamadas tecnologias intelectuais, que a sociedade
atual vem utilizando para ler, gerar informação, aprender, interpretar e transformar a
realidade (LANZI; VIDOTTI; FERNEDA, 2013). Escola e a biblioteca não podem ficar
alheias às transformações que a tecnologia tem gerado na formação dos alunos. As
ferramentas digitais são uma realidade presente na vida educacional e social da
Geração Alpha e a biblioteca escolar precisa estar preparada para utilizá-las como um
importante recurso na integração de sua comunidade aos serviços que oferece.
De acordo com Modesto (2005), a formação integral dos alunos passa pela
relaçao entre escola e tecnologia. Com base nessa afirmativa, o autor apresenta uma
proposta de uso das tecnologias no ambiente educacional. Conforme segue no Quadro
1.

Quadro 1: Modelo tradicional X Modelo tecnológico no ambiente educacional.


MODELO TRADICIONAL MODELO TECNOLÓGICO
Estrutura Curricular rígida e Velocidade de produção e renovação do
descontextualizada com a realidade, com conhecimento.
conteúdos não renovados.
Ênfase em conteúdos conceituais e em Aprendizagem continua no curso da vida.
ensino propedêutico.
Atenção à avaliação por testes e provas que Atenção em processos de construção do
determinam notas. conhecimento.
Escolas e sua compartimentalização Tecnologias intelectuais construídas em
disciplinar, suas grades curriculares restritas suportes hipertextuais, interconectados,
ao diálogo entre os saberes. reticulares, interativos e múltiplos.
Homogeneização, na medida em que todos Ambiente digital, no qual o internauta é um
devem estudar tudo ao mesmo tempo, ritmo ator de seu percurso.
e maneira.
Fonte: Modesto et. al. (2005, p.289).

A proposta de Modesto deixa evidente a transformação do modelo tradicional


de educação e as possibilidades de interação e aprendizagem quando as tecnologias
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são inseridas no ambiente educacional. O uso de ferramentas tecnológicas aliadas ao
planejamento pedagógico faz com que a biblioteca escolar se torne um portal de acesso
para o universo informacional das redes digitais.

Isso ressalta o fato de que, mesmo com tantas mudanças e avanços


tecnológicos a biblioteca continua sendo fundamental para o ensino, e
que o advento tecnológico, seja ele em que nível for, só aumenta a
importância e responsabilidade formativa desse equipamento
informacional e do profissional que nele atua (SALA; OTTONICAR;
CASTRO FILHO, 2020, p. 448).

Historicamente, a biblioteca escolar sempre acompanhou as transformações


que afetam a sociedade, se adaptando à nova realidade e se reconstruindo a partir dela.
Com o advento da cibertiteratura e das mídias interativas, a biblioteca escolar encontra
uma nova oportunidade de reinventar a maneira como vem trabalhando as atividades
que abrangem o contexto literário. “As bibliotecas que têm como usuário a Geração
Alpha devem ser um espaço híbrido, onde as experiências sejam nutridas pela inovação
e onde esta seja enriquecida pelas práticas anteriores” (FURTADO, 2019, p. 428).
As plataformas de literatura-serviço possibilitam a interação entre os pares,
fazendo com que que o leitor se torne também um mediador, pois, ao compartilhar suas
experiências ele passa a exercer influência na rede, estimulando os demais membros a
experienciarem diferentes gêneros literários. Assim, ao utilizar recursos digitais como as
plataformas de literatura-serviço, a biblioteca escolar modifica de forma positiva o hábito
de leitura da sua comunidade educacional.
Considerações Finais
A mudança mais significativa em relação as novas práticas de leitura estão
associadas ao papel de protagonista desenvolvido atualmente pelo leitor. Por isso, a
biblioteca escolar precisa se atentar aos novos modos de consumo da literatura por
parte da Geração Alpha e empregar as plataformas de Literatura-serviço ao cotidiano
escolar, de modo a incentivar não somente o prazer pela leitura do texto literário, mas
ainda, o desenvolvimento da competência literária nos leitores.
Diante dos desafios e avanço tecnológicos, a biblioteca escolar, enquanto
ambiente educacional e formativo, tem apresentado diversas possibilidades de
aplicação dessas tecnologias visando aprimorar a qualidade dos serviços e proporcionar
maior interação com a comunidade educacional.
Os aplicativos de literatura-serviço oferecem ferramentas interativas e mídias
dinâmicas que facilitam a promoção de comunidades leitoras, proporcionando à
Geração Alpha maior estímulo para adentrar no universo da leitura literária. Dessa
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forma, a ciberliteratura deve estar presente no cotidiano da biblioteca escolar, pois, a
literatura-serviço representa um importante instrumento na formação do aluno,
incentivando a prática da leitura, escrita e compartilhamento de informações entre os
usuários. Contudo, é fundamental que a biblioteca escolar se favoreça da aptidão dos
nativos digitais para o uso das tecnologias e desenvolva estratégias que possam
contribuir com a promoção da competência literária.
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SOUZA, T. L.; CARVALHO, T. Internet das coisas (IoT) em bibliotecas universitárias


brasileiras: diagnóstico situacional. RBBD Revista Brasileira de Biblioteconomia e
Documentação, São Paulo, v. 13, p. 1136-1147, dez. 2017. Disponível em:
https://rbbd.febab.org.br/rbbd/article/view/902. Acesso em: 28 jul. 2020.

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VIVÊNCIAS DE LEITURAS LITERÁRIAS NA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS: UMA EXPERIÊNCIA COM A FÁBULA “O
RATINHO, O GATO E O GALO” 264

Juliana da Costa Neres (UNEB)

Eixo Temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entre caminhos do saber/aprender.

Considerações iniciais

O presente artigo é parte da dissertação intitulada “Leituras literárias na


Educação de Jovens e Adultos: Experiências com o gênero fábula nas aulas de leitura”
defendida no ano de 2019. Como professora atuante na EJA- EDUCAÇÃO DE JOVENS
E ADULTOS- e como aluna do Programa de Pós Graduação em Crítica Cultura no
Campus II na cidade de Alagoinhas-Ba, percebeu-se a necessidade de um trabalho
voltado para a leitura literária na turma de 1ª e 2ª séries na qual leciono no turno da
noite, tendo em vista o direito do educando ter acesso a literatura. A pesquisa
preocupou-se com a oferta da leitura literária por meio das práticas literárias em sala de
aula, delimitando-se ao gênero fábula, ainda que muitos dos sujeitos/educandos
colaboradores da pesquisa não soubessem ler.
É importante destacar que estes sujeitos/educandos vão para a escola, com o
único objetivo aprender a ler (o código escrito) e escrever seu nome. A escola por sua
vez, não tem dominado este tipo de oferta, muito menos ao acesso da leitura literária. É

264
O presente artigo é parte da dissertação defendida no ano de 2019, na UNEB, Campus II,
intitulada Leituras Literárias na Educação de Jovens e Adultos: experiências com o gênero fábula
nas aulas de leitura, sob a orientação da professora Drª Maria de Fátima Berenice da Cruz.

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pensando nestes alunos que ainda não sabem ler, mas que tanto almejam o domínio do
código escrito e por reconhecer o direito de acessos destes aos bens culturais, como a
literatura, que o presente trabalho se justifica pela necessidade de levar para sala de
aula uma cultura de prática leitora a partir do texto literário, neste caso especificamente
o gênero fábula. Assim apresenta-se neste artigo uma experiência realizada com a
fábula O ratinho, o gato e o galo nos círculos de leitura nas turmas de 1ª e 2ª séries de
EJA.
Desta maneira objetivou-se compreender o sentido da leitura literária na escola
e, consequentemente a sua importância na formação leitora dos sujeitos/educandos que
ainda não dominam o código escrito, desenvolvendo vivências literárias com
sujeitos/educandos de uma classe de EJA. Para tal problematizando questões como:
De que forma o estudante da EJA que ainda não domina o código escrito pode se
apropriar do texto literário? Que gênero textual poderia ser mais sedutor para o
estudante que não domina a escrita?
A pesquisa fora realizada a partir dos círculos de leitura com base nos
postulados de Cosson (2018), através das sequências didáticas elaboradas com
referência em Délia Lerner (2002), a fim de que as vivências literárias fluíssem, e assim
os sujeitos/educandos de EJA pudessem realizar as competências comunicativas
defendidas por Cruz (2012) alcançando o pacto ficcional.
Dedicamo-nos para oferecer a leitura literária e para compreender de que
maneira se dá esse processo de relação e contextualização do sujeito com as fábulas,
bem como a aquisição da leitura destes pelo viés da oralidade, partindo do fato de que
em sua grande maioria ainda não leem e escrevem com domínio o código escrito,
desconstruindo a ideia de que o mais importante é alfabetizar (aquisição apenas do
código escrito), ou ainda, mostrando que é possível ofertar literatura aos que ainda não
sabem ler, e que o letramento literário é importante suporte para a aquisição do código
escrito.

A oralidade como instrumento de emancipação leitora do estudante da


EJA: vivências em sala de aula

É pensando na inclusão dos sujeitos/educandos de EJA numa sociedade


letrada que a escola precisa desenvolver uma política de leitura e escrita que busque a
formação integral dos sujeitos que a frequentam. Foi a partir desta necessidade, e se
faz importante deixar claro que a mesma só foi percebida após a entrada no curso de

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mestrado em Crítica Cultural, no qual os desvelamentos e descortinamentos foram
acontecendo, fazendo-me perceber a necessidade de pensar sobre a formação leitora
literária dos sujeitos/educandos, não mais apenas na perspectiva do alfabetizar por
alfabetizar, característico do contrato didático já criticado por Lerner (2002). Mas na
perspectiva do alfabetizar/ letrar, percebendo quanto o letramento literário é de extrema
importância para a formação destes sujeitos, visto que “é importante insistir que a leitura
é anterior à alfabetização e vai além dela” (SILVA & MARTINS, 2010, p.37).
É sabido que embora os sujeitos/educandos de EJA não saibam ler e escrever
como prega nossa sociedade, os mesmos adentram a escola com suas sabedorias e
histórias de vida que comumente são compartilhadas pela oralidade. (Neres, 2019).
Assim, é por meio da oralidade que os sujeitos ainda não alfabetizados contam,
recontam e compartilham suas histórias, fazendo perpetuar suas tradições. A escola
por sua vez, baseada numa cultura dominante, que predomina a valorização da escrita
não tem reconhecido o valor significativo da oralidade, desconsiderando a história e
tradições desses sujeitos.
É por fazer parte desta escola que desconsidera a oralidade desses
sujeitos/educandos, que supervaloriza a aquisição do código escrito, que não oferta o
literário, que hoje reconheço a importância de uma pesquisa que possa proporcionar
aos sujeitos/educandos da EJA o compartilhar de suas histórias de vida por meio da
oralidade, que percebe o alfabetizar/letrar como processos indissociáveis e
imprescindíveis para a formação do sujeito leitor literário, conforme apresenta Soares:

Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque no quadro


das atuais concepções psicológicas, linguísticas, e psicolinguísticas de
leitura e escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto)
no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois
processos: pela aquisição do sistema convencional da escrita- a
alfabetização- e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse
sistema em atividade de leitura e escrita, nas práticas sociais que
envolvem a língua escrita – o letramento. (SOARES, 2003, p. 37).

Anterior ao surgimento da escrita era através da oralidade, as pessoas se


reuniam, elegendo uma pessoa para narrar, chamada de narrador, esta tinha a função
de contar histórias e assim de geração em geração às tradições eram passadas, é só
depois com o advento da escrita que a oralidade perde seu valor. Diferente da figura de
O Narrador descrita na obra de Benjamim este trabalho preocupou-se em colocar em
cena os narradores da EJA, num mesmo gesto coletivo, de maneira que todos
pudessem compartilhar sobre suas histórias, e as reflexões sobre as práticas de leitura

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literária que iam acontecendo, de modo a viver e experenciar o literário por meio da
oralidade como base para a aquisição do código escrito. (Neres, 2019)
Assim, as fábulas foram ofertadas por meio de sequências didáticas defendidas
por Lerner (2002) de modo que nos círculos de leituras preconizados por Cosson (2018)
os sujeitos/educandos pudessem se sentir a vontade para falar, dialogar, ouvir,
compartilhar, deixando-os livres para sua participação, considerando que a oralidade
desde cedo exerce valor significativo na vida destes sujeitos. Por isto a preocupação
deste trabalho em valorizar a oralidade por meio das fábulas como ferramenta
fundamental em sala de aula para formação de indivíduos ativos e críticos.
O gênero literário escolhido foi a fábula, por estreita relação com a sabedoria
popular, por entender que este seria um dos fatores que possibilitaria a valorização da
oralidade, ao compreender esta como base para aquisição da escrita. Considerando
que os sujeitos/educandos ainda não dominavam o código escrito e a leitura optou-se
por um gênero curto, e que permitisse diversidade de opiniões, fluindo assim as
experiências de modo que os sujeitos/educandos pudessem realizar as competências
comunicativas propostas por Cruz (2012), culminando assim nas vivências literárias.
É necessário que aos sujeitos/educandos de EJA antes que lhes seja ofertada
a possibilidade de aprendizagem da alfabetização, ou do alfabeto, como minimamente
a escola de cunho segregador e dominante faz, é imprescindível que ele tenha sua
oralidade, forma de se expressar mais comum, reconhecida. Mas não só isto, e que a
este seja reconhecido também o direito do acesso à literatura. Para tal proposito é mais
que necessário:
(...) inserir as práticas de letramento proposta por Rojo (2010) que
pensamos na sequência literária do gênero fábula como meio para
abrir espaços para os letramentos em sala de aula, baseada nos
propósitos metodológicos de Lerner (2002) e nas vivências de Cruz
(2012), buscando estabelecer o diálogo entre o letramento escolar e o
letramento social, junto às práticas literárias que visam permitir ao
educando/ sujeito a fruição, o prazer, a contextualização do texto
objetivando sempre formar leitores emancipados e críticos. (NERES,
2019, p. 107-108).

Entender o letramento como base para a alfabetização é atuar em sala de aula


na perspectiva de um trabalho conjunto, privilegiando o diálogo destes por meios das
práticas literárias, uma vez que ao sujeito/educando de EJA será permitido o direito a
leitura literária para que possa fruir, contemplar, e consequentemente estabelecimento
do pacto ficcional, tornando-se leitor crítico e emancipado. (Neres, 2019).
Nesse sentido vale a pena destacar a maneira que este trabalho concebe a
alfabetização e o letramento, como já fora colocado, o letramento é compreendido como
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instrumento base para a alfabetização, esta por sua vez, é percebida não apenas como
a aquisição do código linguístico, mas também como aquela que é capaz de permitir ao
educando ler para além do código escrito, colaborando para seu processo de formação
de leitor literário, e por isto frisamos a importância do trabalho paralelo em sala de aula.
Formar o sujeito/educando de EJA em leitor literário é o nosso desafio
enquanto escola que compreende e reconhece o direito que este tem a literatura,
entretanto esta ainda não é uma realidade frequente em nossa sociedade brasileira,
considerando a má condução da escolarização da literatura conforme aponta Neres
(2019) ao embasar suas ideias nos postulados de Candido (1989) autor que já
preconizava esse direito.

Candido é também um dos autores que embasam esta pesquisa, nos


fazendo compreender e reconhecer a literatura como direito do ser
humano, contudo este direito tem sido negado pela escola que insiste
na má condução da escolarização da literatura, seus escritos
defendem a importância de ofertar a literatura, haja vista ser um bem
cultural e direito de todos. Não há como ofertar a literatura, disseminá-
las nas escolas sem que seja por meio da escolarização, uma vez que
é este o processo que constitui a escola, entretanto na realidade essa
escolarização na maioria das vezes termina por ganhar sentido
negativo, basta levar o olhar para a prática pedagógica do professor
que insiste em deturpar, falsear, tornando a escolarização imprópria.
(NERES, 2019, p. 26)

A oferta do texto literário é urgente nas turmas de EJA, ainda que por meio da
escolarização, de modo que o educando possa sentir-se acolhido, valorizado, e que
consiga estabelecer um diálogo de sua história de vida com os textos literários ofertados
em sala de aula, contribuindo assim para uma formação leitora literária, a partir do
estabelecimento do pacto ficcional exigido pela literatura. Daí depreende-se quão é
importante a valorização do letramento do educando, considerando que antes de
adentrarem ao universo escolar, já se encontravam dispostos a inúmeras situações de
letramento social. Sobre isto Pereira nos diz que “[...] ao participar de eventos de
letramentos e práticas de letramento, os sujeitos vão assumindo posicionamentos que
vão construindo e (re) construindo suas identidades.” (2013, p. 161).

Vivência da fábula O Ratinho, o gato e o galo

Para a realização deste trabalho foi necessário conhecer o perfil da turma,


quais os tipos de temas que mais lhes interessavam e que desejavam ouvir,
apresentando-lhe de maneira geral o gênero literário que seria ofertado. Após este

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levantamento com a turma os textos literários foram escolhidos, especificamente as
fábulas, em especial, neste artigo apresentaremos a prática literária vivenciada através
da fábula O Ratinho, o gato e o galo.
De acordo com Cosson é preciso motivar, pois “o sucesso inicial do encontro
do leitor com a obra depende de boa motivação.” (2018, p.54). Os sujeitos/educandos
foram motivados de modo a “entrar no texto” e para isto foi válido dinâmicas, músicas,
brincadeiras, atividades lúdicas que fossem pertinentes à temática. A motivação foi feita
de modo que os sujeitos/educandos pudessem antes mesmo de ouvir o texto,
desenvolverem um tipo de interesse, aguçando a curiosidade.
A segunda etapa Cosson (2018) chamada de Introdução, neste momento valeu
a pena explorar o máximo de informações possíveis referentes a fábula trabalhada
como: Título, imagens e suas cores, o desenrolar da história ( início, meio e fim), criando
uma situação didática em que os sujeitos/educandos pudessem perguntar, falar,
questionar, investigar, contextualizar, propor outros desfechos, desfazendo a ideia da
moral como única.
Assim, ao sujeito/educando de EJA foi proporcionado interagir com a fábula,
criando imagens visivas, realizando a introspecção, num processo de interlocução,
favorecendo assim para que a leitura literária aconteça quando o leitor realiza conexões
com o texto, se enxerga no texto, se materializa no texto, absorve, imagina, conversa
com o texto, se transportando ao texto, se conectando de forma que suas histórias se
cruzem com o texto e de modo que possa impactar em sua vida real, possibilitando
inúmeras mudanças. (CRUZ, 2012).
Com relação à disposição da sala, objetivando a vivência desse momento
literário, procurou-se deixar os colaboradores á vontade para participarem da maneira
que lhes fosse mais confortável, considerando a timidez de alguns para falar ou quando
uma atividade diferente é proposta em sala de aula. Desta forma a sala esteve disposta
em círculo, promovendo a socialização, e compartilhamento da fábula, nesse momento
foi de grande valia, perguntar se eles já tinham ouvido falar sobre a história que seria
lida, para daí realizar a leitura da fábula. Importante destacar o uso de ferramentas como
o data-show para que ilustrações fossem apresentadas, no intuito de ambientá-los para
a leitura, personagens, contextos, numa apresentação da obra.
Apresentamos logo abaixo o texto da fábula, seguida da sequência didática
para depois exposição das falas de alguns dos sujeitos/educandos:

O RATINHO, O GATO E O GALO.


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Certa manhã, um ratinho saiu do buraco pela primeira vez.
Queria conhecer o mundo e travar relações com tanta coisa bonita de que
falavam seus amigos. Admirou a luz do sol, o verdor das árvores, a correnteza dos
ribeirões, a habitação dos homens. E acabou penetrando no quintal duma casa da roça.
— Sim senhor! E interessante isto!
Examinou tudo minuciosamente, farejou a tulha de milho e a estrebaria. Em
seguida, notou no terreiro um certo animal de belo pelo, que dormia sossegado ao sol.
Aproximou-se dele e farejou-o, sem receio nenhum. Nisto, aparece um galo,
que bate as asas e canta. O ratinho, por um triz, não morreu de susto.
Arrepiou-se todo e disparou como um raio para a toca.
Lá contou à mamãe as aventuras do passeio.
— Observei muita coisa interessante — disse ele. — Mas nada me
impressionou tanto como dois animais que vi no terreiro.
Um de pelo macio e ar bondoso seduziu-me logo. Devia ser um desses bons
amigos da nossa gente, e lamentei que estivesse a dormir impedindo-me de
cumprimenta-lo. O outro... Ai, que ainda me bate o coração! O outro era um bicho feroz,
de penas amarelas, bico pontudo, crista vermelha e aspecto ameaçador. Bateu as asas
barulhentamente, abriu o bico e soltou um có-ri-có-có tamanho, que quase caí de costas.
Fugi. Fugi com quantas pernas tinha, percebendo que devia ser o famoso gato, que
tamanha destruição faz no nosso povo.
A mamãe rata assustou-se e disse:
— Como te enganas, meu filho! O bicho de pelo macio e ar bondoso é que é o
terrível gato. O outro, barulhento e espaventado, de olhar feroz e crista rubra, filhinho, é
o galo, uma ave que nunca nos fez mal. As aparências enganam.
Aproveita, pois, a lição e fica sabendo que:
Quem vê cara não vê coração.

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O RATINHO, O GATO E O GALO.

Moral: Quem vê cara não vê coração

Exposição de duas xícaras uma suja e outra limpa.


Motivação:
Recursos Livros literários, data show, textos impressos e coloridos, papel
ofício, xícaras.

Questões
É verdade que quem ver cara não vê coração? Explique?
norteadoras/
Porque nos enganamos tanto com as pessoas?
Reflexão
Comente uma situação pela qual você se enganou com
alguém:
Você aprendeu a lição?
Como agiria caso outra situação parecida tornasse a
acontecer?

Para o trabalho com a fábula pensou-se na dinâmica para tratar sobre “as
aparências enganam”, já fazendo inter-relação com outra fábula já trabalhada
anteriormente, A gralha enfeitada com penas de pavão. Com vistas a motivá-los e
prepara-los, e melhor exemplificação, então trouxemos para a sala de aula duas xícaras
uma limpa por fora, porém suja por dentro, a outra suja por fora e limpa por dentro.
Perguntei qual das xícaras eles escolhiam para tomar um café e prontamente
todos escolheram a xícara que estava limpa por fora, e a surpresa foi tamanha quando
viram que a xícara estava suja por dentro, daí perceberam que haviam feito a escolha
errada, pois julgaram apenas por fora. A fábula foi lida e em seguida dei início às
discussões junto a eles sobre as muitas escolhas que fazemos nas nossas vidas nos
enganando com as pessoas, pois julgamos por fora, nos preocupamos com o que e
externo e não com o está no interior das pessoas e muitos foram os relatos:

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Eita! Pró que dessa vez, a senhora nos pegou em cheio. Mas é verdade
bem assim são as pessoas nessa vida, limpas por fora e sujas por dentro
com o coração podre. (D. NEVES, 2019)

Hoje foi com uma xícara e quando é com um ser humano? Meu pai! O
ratinho com medo do galo e o gato que é seu predador passando
despercebido. Bem assim, são as amigas falsas nessa vida. Quando era
mais nova, perdi um namorado para uma amiga, ela se fazendo de
amiga, foi chegando, se aproximando quando penso que não, deu o bote,
tomou meu namorado. Ah isso faz é tempo, mas errado ele também que
deu ousadia. (D. PEREIRA, 2019)

Por isso que devemos conhecer bem as pessoas antes de julgar. Eu era
de falar mal sem conhecer, hoje eu primeiro converso com as pessoas
para poder julgar. O gato não demonstrava perigo, mas era quem poderia
comer o rato. E a gralha tadinha toda enfeitada, quis ser quem não era.
(D. SILVA, 2019)

Eu não julgo ninguém, mas cai na pegadinha Pró, foi só aqui viu (risos)
Lá no outro curso que eu faço tenho uma amiga legal, mas no inicio deu
trabalho para ficarmos amigas, reconheço que julguei pela aparência,
mas ela também se achava demais. (D. MATOS, 2019)

Considerações Finais

A realização das sequências literárias numa turma de EJA foi extremamente


significante não só como pesquisadora, mas por ocupar o lugar de professora desta
turma, pois juntos descobrimos a potência da literatura e o tanto que ela pode nos
proporcionar, rompi com um sistema excludente que naturaliza o não acesso a literatura
aos sujeitos/educandos de EJA, quebrei paradigmas dominantes ao ofertar o literário a
sujeitos que ainda nem dominavam o código escrito.
Juntos fruímos, contemplamos o belo da literatura, dialogamos, criamos
imagens visivas, contextualizamos textos literários com nossas histórias de vida,
exercemos nosso senso crítico ao propor novas morais para as fábulas, logo percebe-
se a urgência na efetivação de práticas de leituras literárias em sala de aula de EJA,

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considerando a oralidade desses sujeitos que muito tem anos ensinar, e que por
inúmeros motivos socioeconômicos tiveram seus direitos negados a uma educação de
qualidade.
São sujeitos/educandos que através das fábulas aplicadas em sala de aula
conseguiram estabelecer o pacto ficcional, nos comprovando que mesmo que não
soubesse ainda decodificar o código escrito, estabeleceram diálogos com o texto
literário. Enfim, é indispensável considerar a importância desse diálogo numa escola
que alfabetiza/letrando e que oferta o texto literário ao sujeito/educando de acordo a sua
realidade social, compreendendo-os como sujeitos de histórias e de uma oralidade
significativa, culminando assim numa formação crítica e emancipatória numa sociedade
letrada.

Referências

CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Remate De Males. (2012).


https://doi.org/10.20396/remate.v0i0.8635992.

CANDIDO, Antonio. In: FESTER, Antonio Carlos Ribeiro. Et. Al. Direitos humanos e
literatura. São Paulo: Brasiliense, 1989.

CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. 24 (9):


803-809, set, 1972.

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2018.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2018.

CRUZ, Maria de Fátima Berenice da. Leitura literária na escola: desafios e


perspectivas de um leitor. Salvador: EDUNEB, 2012.

LERNER, Délia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto


Alegre: Artmed, 2002.

NERES, Juliana da Costa. Leituras Literárias na Educação de Jovens e Adultos:


Experiências com o Gênero Fábula nas aulas de leitura. Dissertação apresentada na
Universidade Estadual da Bahia. 2019. Mestrado em Crítica Cultural.

SILVA, Marcia Cabral & MARTINS, Milena Ribeiro. Experiências de leitura no contexto
escolar In: PAIVA, Aparecida. Et. Al. Literatura: ensino fundamental. Brasília: 2010.
204p.: il. (Coleção Explorando o Ensino; v. 20).

SOARES, Magda. Letramento: um Tema em Três Gêneros. 2. ed. Belo Horizonte:


Autêntica, 2003.

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LETRAMENTO LITERÁRIO NA FORMAÇÃO INICIAL DE
PROFESSORES

Cláudia Siqueira Bomfim – Unoeste – campus Presidente Prudente (Letras)


Milena Maria Lisbôa Prado – Unoeste – campus Presidente Prudente (Letras)
Gislene Aparecida da Silva Barbosa, IFSP – campus Presidente Epitácio

Eixo Temático: 10 – Educação literária, letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender

Considerações iniciais

O ensino de Literatura em sala de aula requer o uso de estratégias para ensinar


os discentes a dialogar com os textos literários e a compreendê-los. Identificar
informações, perceber intencionalidades nos textos e realizar inferências são algumas
das ações que compõem o processo da leitura. A leitura é a base para abrir os caminhos
da compreensão, portanto um plano de aula bem organizado e sustentado em
abordagens interacionais favorece o trabalho do professor e amplia as oportunidades
de aprendizagem dos discentes.
O ensino de língua materna, de acordo com Geraldi (2011), contempla três
unidades básicas: a leitura de textos, a produção de textos e a análise linguística. Para
o trabalho com a leitura de texto (foco deste artigo), o ensino precisa ir além de contar
histórias ou aplicar questionários para verificação de leitura, é preciso que os alunos
aprendam a interpretar as histórias, a agir em si mesmos a partir da reflexão construída
no ato da leitura e a agir sobre o mundo de forma consciente e intencional. Isso requer,
portanto, a presença, na aula, de textos literários, de estratégias de leitura e
metodologias para favorecer o diálogo dos discentes com o mundo, com a ficção,
consigo mesmos, conectando-os aos contextos sociais, proporcionando a eles
experiências com a Literatura, em que o sentido não está pronto no texto, mas é
construído na relação leitor-texto.

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Levar a Literatura para a sala de aula é fomentar o desenvolvimento dos alunos
em aspectos éticos, políticos e estéticos, porque a ficção literária possibilita a eles
refletirem sobre a vida, fabularem, compreenderem outros pontos de vista e culturas,
relacionarem as histórias lidas aos direitos humanos, ampliarem sua compreensão
sobre as formas de agir e de pensar da humanidade, lidarem com sentimentos variados,
desenvolverem a capacidade de pensar nos outros etc. Nesse sentido, a experiência de
leitura literária na escola precisa promover o pensar, o sentir e o agir – entendidos como
territórios de atuação dos sujeitos frente a construção de uma sociedade mais justa, de
igualdade de direitos. Assim, não basta a presença do texto literário nas aulas, é preciso
promover situações de ensino que despertem nos alunos a busca pela compreensão
textual e o desejo de se posicionarem frente ao texto lido, estabelecendo diálogos com
o texto, com outros leitores e consigo mesmos, na busca da construção de sua
autonomia de pensamento e de sua atuação engajada na comunidade.

Primeiro, verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade


universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade,
porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela
nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a
fruição da literatura é mutilar a nossa sociedade. Em segundo lugar, a
literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento,
pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de
negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual.
Tanto num nível quanto no outro, ela tem muito a ver com a luta dos
direitos humanos. (CÂNDIDO, 2011, p. 188)

Apresentamos aqui um plano de aula no qual há um procedimento de ensino


que favorece a elaboração de atividades para trabalhar com Literatura numa perspectiva
dialógica. Tal plano nasceu durantes as aulas da disciplina de Literatura em Sala de
Aula, do curso de Letras da Unoeste (2019 – 1º semestre) quando fizemos análises de
um texto literário e preparamos uma Sequência Expandida (COSSON, 2006) com base
no conto Casa Tomada, de Julio Cortázar, com as seguintes etapas: motivação,
introdução, leitura, primeira interpretação, contextualizações, segunda interpretação e
expansão. Essas etapas oferecem uma possibilidade de leitura num processo dialógico
de interação amparado na construção do leitor, da formação leitora num processo da
terceira concepção de linguagem.
O plano de aula foi elaborado pela dupla de alunas autoras desde artigo (com
a orientação da professora então responsável pela disciplina de Literatura em Sala de
Aula) e implementado para os colegas de turma com duplo objetivo: oportunizar
espaços reflexivos de formação docente para ensino de literatura (elaboração e

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implementação do plano) e ampliar o letramento literário dos graduandos (leitura de
texto literário e vivências de atividades para compreensão textual).

Metodologia

A metodologia utilizada é a análise documental, pois neste caso o documento


é o conto Casa tomada do argentino Julio Cortázar, a partir do qual um plano de aula
de Sequência Expandida foi elaborado. Nos dizeres de Lüdke e André (1986, p. 39), “os
documentos constituem também uma fonte poderosa de onde podem ser retiradas
evidências que fundamentem afirmações e declarações do pesquisador. Representam
ainda uma fonte "natural" de informação.”.
A obra literária em questão foi publicada pela primeira vez em 1946. O conto
traz em seu enredo a história do convívio entre dois irmãos, que viviam numa casa
antiga e espaçosa, na cidade de Buenos Aires. O conto, escrito em primeira pessoa
(narrador-personagem), começa narrando a rotina dos irmãos dentro da casa, que fora
herdada por seus antepassados. Em seguida, passa a descrever a casa em si, sua
estrutura e localização, além de apresentar os hábitos dos dois personagens. Num dado
momento, ambos percebem que há uma presença de ruídos dentro da casa, e sem
descobrir do que se trata, vão, pouco a pouco, exilando-se dentro de partes cada vez
menores da casa, restringindo o espaço de circulação deles, até que abandonam a
casa, assustados.
Vale ressaltar que o conto Casa Tomada foi analisado minuciosamente, pois
esse texto é rico em elementos implícitos, os quais podem aguçar mais a vontade dos
discentes de fazer inferências. Na análise, estão também (dentro das etapas da
Sequência Expandida) considerações sobre o autor do texto, o contexto de produção
da obra, a organização dos elementos da narrativa, as possibilidades de diálogo
intertextual etc.
Do ponto de vista da pesquisa bibliográfica, o conceito de Sequência
Expandida é um elemento-chave para a construção do plano de aula. De acordo com
Cosson (2006, p. 120), “o uso da sequência expandida do letramento literário tem como
centro a formação de um leitor cuja competência ultrapasse a mera decodificação dos
textos, de um leitor que se apropria de forma autônoma das obras e do próprio processo
da leitura, de um leitor literário, enfim. ” A Sequência Expandida é organizada em sete
etapas: motivação, introdução, leitura, primeira interpretação, contextualizações,
segunda interpretação e expansão.

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Para Cosson (2006, p. 77), a motivação na sequência expandida “consiste em
uma atividade de preparação, de introdução dos alunos no universo do livro a ser lido”.
É o momento de apresentar aos estudantes um aspecto central da obra, um tema para
discussão, um texto que ajude a pensar no que será lido na produção literária.
O desenvolvimento da introdução tratará da biografia do autor e da obra
analisada em questão:
O professor deve levar em consideração que algum aluno já deve ter
ouvido falar do livro ou do autor e aproveitar esse conhecimento para
localizar com economia os dados críticos, biográficos, bibliográficos ao
lado da justificativa da seleção”. (COSSON, 2006, p. 80)

A leitura será o primeiro passo às interpretações que se encontram na


superfície do texto; às contextualizações gerais presente no mesmo e a partir disso às
interpretações que estão implícitas. Os alunos podem ler sozinhos (em casa), ou
silenciosamente na sala de aula, ou ainda em grupo com a leitura em sala feita em voz
alta (com apoio de estratégias de leitura).
A primeira interpretação é o momento, segundo Cosson (2006, p.84) “em que
o aluno se encontra com o livro” e esse encontro dá ao aluno condição de falar sobre o
que entendeu, como interpretou o enredo, como percebeu os elementos da narrativa ou
o desenvolvimento de um tema na obra.
A contextualização (pode ser dividida em teórica, histórica, estilística, poética,
crítica, presentificadora e temática) trata-se de:

Inspirados em Maingueneau, sugerimos a contextualização como o


movimento de ler a obra dentro do seu contexto, ou melhor, que o
contexto da obra é aquilo que ela traz consigo, que a torna inteligível
para mim enquanto leitor. (COSSON, 2006, p.86)

Ou seja, é o momento de o professor e o aluno conversarem sobre o contexto


de produção da obra, sobre elementos da narrativa, sobre críticas literárias que existam
sobre a obra, momento histórico em que a obra foi publicada ou a que ela se refere etc.
É esse momento uma grande oportunidade de alargar os saberes dos alunos, a fim de
que tais conhecimentos sirvam de base para a etapa seguinte.
A segunda interpretação é como uma extensão da contextualização. O
professor utilizará uma maneira indireta, um trecho da história etc. para que os alunos
comentem suas “novas” impressões e compreensões sobre o enredo.
Na expansão é o momento de relacionar a obra em questão com outras obras
que intertextualizam o mesmo tema. Conforme Cosson (2006, p.94), “com a segunda

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interpretação, encerra-se o trabalho de leitura centrada na obra e é chegado o momento
de se investir nas relações textuais”.

Resultados

Neste momento serão apresentadas as etapas do plano de aula com a


Sequência Expandida com uma breve definição do que se pretende e uma sugestão do
que deve ser feito.
O primeiro passo é a motivação, que consiste em uma atividade de preparação
dos alunos sobre o tema do texto literário. Dessa forma, no caso do conto de Cortázar,
o professor poderá fazer vários cartões de papel cartolina para colar em cada um deles
uma imagem de casa com características diferentes umas das outras. Poderá pendurá-
los um a um na classe, em fileira por meio do fio de náilon. Em seguida, o docente pode
direcionar os discentes a escolherem uma das figuras presentes (casas), que por algum
motivo pessoal os representam, com intuito, de interagirem por meio de perguntas,
sobre o fato que as casas remetem ao ser humano sua personalidade, anseios,
lembranças, ou seja, o nosso interior.
Para a etapa da introdução, com apoio de slides elaborados com recursos
tecnológicos, é possível mostrar fotos do escritor argentino e trazer informações sobre
ele para socializar com a turma. Em caso de os alunos terem acesso à Internet em sala
de aula, o docente pode sugerir uma rápida pesquisa sobre Cortázar: quem foi, onde
viveu, principais temas de suas obras etc.
A etapa da leitura enriquece a vida do leitor, abrindo portas às diversas culturas,
sendo um meio de mergulhar em diversos conhecimentos e ainda tendo a oportunidade
de se identificar com a história a ser lida. Neste caso, a leitura será o primeiro contato
do aluno com o texto propriamente dito e, se a leitura for realizada em sala de aula, é
interessante que o docente lance mão das estratégias de leitura para favorecer o contato
do aluno com levantamento de hipóteses, ativação de conhecimento prévio, realização
de inferências etc.
A primeira interpretação é o momento em que o aluno expõe o que dialogou
com o texto literário, o que compreendeu, que sentidos construiu. Neste momento, o
professor pode utilizar algumas imagens que se remetam aos fatos tratados no conto
como a “ocupação” da casa pelos ruídos e cerceamento das personagens em alguns
cômodos, ou imagens de alguns objetos citados no texto (essas figuras podem ser em
preto e branco para trazerem a sensação de passado e também podem ser coladas por
meio de fita adesiva na lousa representando a ordem que os fatos acontecem). Assim

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por meio das imagens o professor irá provocar os alunos a reconstruir a história lida e
criar espaços para a expressão oral dos estudantes a respeito do enredo do conto.
Em seguida, haverá a etapa da contextualização. Na contextualização
histórica, por exemplo, de acordo com Cosson (2006, p.86), “a obra é aberta para a
época que ela encena ou o período de sua publicação”. No caso do conto Casa tomada,
o professor pode mediar um estudo no qual os alunos farão pesquisas sobre o período
manifesto na obra (regime ditatorial vivido na Argentina), como qual era o sistema de
governo da época, por que aconteceu ditadura, discutir outras obras do Cortázar que
tratam do mesmo tema, como O jogo da amarelinha, Todos os fogos, o fogo. Na
contextualização estilística, segundo Cosson (2006, p.87), o professor “busca analisar
o diálogo entre a obra e o período mostrando como uma alimenta a outra”. Neste
contexto o professor poderá analisar o diálogo entre o movimento literário realismo
fantástico com o conto Casa tomada publicado em 1946. Primeiro o professor deverá
explicar aos discentes as principais características desse movimento, ressaltando que
o fantástico se fundamenta numa hesitação do leitor quanto à natureza de um
acontecimento estranho. Assim, o professor poderá fazer perguntas sobre quais trechos
eles percebem que há um “estranhamento” no conto de acordo com o realismo
fantástico. Na contextualização poética, o professor poderá interagir com os estudantes
dialogicamente para analisarem cada elemento da narrativa e a linguagem presente no
conto. Dessa forma, para analisarem cada um desses aspectos, o docente irá provocá-
los por meio de perguntas. Sendo que, para os estudantes verificarem certo elemento,
eles deverão retirar do texto fragmentos que comprovem sua resposta.
A segunda interpretação é a oportunidade de o aluno “ressignificar” a leitura
que fez do texto, pois agora que passou pela etapa da contextualização, está mais
preparado para revisitar as ideias que teve sobre o enredo e promover novas
interpretações. Dessa forma, os alunos apresentarão o resultado de suas pesquisas e
irão contextualizá-las juntando e montando uma visão geral do conto de acordo com o
tema, no caso ditadura militar na Argentina. O professor pode provocar os estudantes
por meio de perguntas sobre os trechos selecionados na etapa anterior. É neste
momento que o conto tem a sua personalidade explorada ao máximo, revelando uma
possível intencionalidade do autor ao escrevê-lo. Esse momento é extremamente rico e
dialógico, pois permite socializações de ideias entre os pares.
A expansão é o momento da última etapa da Sequência Expandida, assim o
professor pode proporcionar aos seus alunos algumas relações intertextuais que o conto
lido possui. Dessa forma, no conto Casa tomada, de Júlio Cortázar, quando se desvenda

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o implícito, o que está além das entrelinhas, assim consegue-se entender que a ditadura
militar na Argentina é o tema chave desse conto. Então, para expansão da
intertextualidade, o docente pode levar para a sala uma tirinha da Mafalda: que se refere
a questões políticas e abuso de poder (relação com a ditadura na Argentina) e a Música
Cálice, de Chico Buarque, que faz referência à ditadura militar no Brasil. A intenção é
relacionar os textos encontrando semelhanças ou diferenças entre eles no que se refere
à temática.
O plano apresentado aqui volta-se a alunos da educação básica, mas foi
aplicado para os alunos do 6º semestre do curso de Letras, como atividade teórico-
prática da disciplina de Literatura em Sala de Aula, com o objetivo de vivenciar aulas de
leitura na turma, ampliando o letramento literário dos graduandos e dando oportunidade
de elaboração, aplicação e reflexão sobre procedimentos de ensino que ajudam na
aprendizagem da leitura. A seguir estão resultados obtidos com os alunos do curso de
Letras:
A etapa da motivação proporcionou aos colegas de sala uma reflexão sobre o
tema do texto literário de uma forma prazerosa e relacionada às vivências deles: cada
aluno deveria olhar para uma exposição de imagens de casas (afixada no quadro branco
na sala de aula) e eleger uma dessas imagens como a que melhor representaria a si
mesmo – em qual casa ele gostaria de morar. Falar sobre a própria escolha e indicar o
motivo de aquela casa o representar, despertou no discente a relação entre a identidade
e a casa – como a construção de uma metáfora, um símbolo do eu. O título do conto
também causou curiosidade nos alunos, pois o que seria uma casa tomada? Seria uma
história de invasão, de não pagamentos de dívidas?
Na etapa introdução, os alunos realizaram pesquisas para conhecer um pouco
sobre o autor. As pesquisas baseadas em fotografias de Cortázar (com marcos em sua
trajetória), formação acadêmica e temas das principais obras literárias do autor foram
fundamentais para o desenvolvimento do processo de leitura da obra. Com essa etapa,
os estudantes puderam conhecer um autor mundialmente famoso e compreender o
ambiente/contexto no qual ele produziu sua obra.
O momento da leitura aconteceu da seguinte forma: primeiramente, os colegas
de sala foram orientados a lerem o conto em casa; depois, no dia da realização da
atividade na sala de aula, eles montaram um quebra-cabeça literário – foram
selecionadas, impressas e recortadas as partes mais importantes da narrativa (capazes
de apontar aspectos essenciais da situação inicial, do conflito, do desenvolvimento das
ações, do clímax e do desfecho), as quais foram embaralhadas e distribuídas a cada

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grupo, a fim de os estudantes as organizarem na ordem em que apareciam no conto.
Foi estipulado o tempo de 5 minutos para realização dessa atividade, que provocou os
discentes a fazerem perguntas no grupo para relembrarem o enredo, num trabalho
coletivo de reconstrução da história. Os estudantes reagiram muito bem à etapa, pois
foi um momento dinâmico e enriquecedor, no qual eles dialogaram sobre a história,
ficaram instigados e envolvidos com o enredo do conto.
Na primeira interpretação, os estudantes foram provocados por meio de
questionamentos mediante um slide contendo imagens que se relacionavam aos fatos
tratados no conto (figuras em preto e branco de um homem, uma mulher, uma casa
etc.). Vale ressaltar que este foi mais um momento muito interativo, pois os estudantes
dialogaram e trocaram pontos de vista sobre o que compreenderam sobre o texto, ou
seja, eles expressaram suas primeiras impressões interpretativas, como eles tinham
compreendido a narrativa, seus símbolos etc. Foi notória a fala dos alunos quanto a
momentos específicos do conto, como a cena de ruídos que aconteciam na casa e
obrigavam os irmãos a se acomodarem em apenas alguns cômodos; em linhas gerais,
os alunos não falaram do conto como uma unidade textual, relacionando suas partes e
chegando a um sentido, mas falaram de situações pontuais que pareciam mais
interessantes ou mais intrigantes na história.
O estudo da contextualização histórica da obra trouxe diversas informações
sobre a época em que o conto foi publicado. Os alunos conheceram, pela pesquisa, os
lugares históricos da Argentina e um fato histórico muito parecido com o do Brasil que
foi a ditadura militar. Com base nesses dados os alunos perceberam como isso
influenciou o autor a escrever o conto Casa tomada e outras obras. A contextualização
estilística tratou do período literário no qual o conto foi escrito. A obra analisada foi
escrita durante o Realismo Fantástico (século XX) um estilo que se remete ao
sobrenatural ou anormal. Quando os alunos leram o conto, pela primeira vez,
mencionaram que a história tinha algo de assombração ou terror. Na etapa da
contextualização poética, a partir de alguns trechos do texto literário, os discentes
analisaram os elementos da narrativa e a linguagem predominante na obra. Dessa
forma, essa etapa favoreceu aos estudantes a compreenderem a fundo o enredo, o
tempo, o espaço, os personagens, o narrador e a linguagem predominante de um modo
interativo, assim contribuindo para o momento da interpretação mais profunda.
A contextualização temática é uma pesquisa mais minuciosa do texto em termos
de expressões, datas presentes no texto e palavras não muito conhecidas. Sugere-se
que o professor leve os alunos a um laboratório de informática para que eles realizem a

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tarefa. Dessa forma haverá um melhor entendimento em relação a narrativa do conto.
Como demonstração, usamos como exemplo o trecho do conto: “Desde 1939 não
chegava nada de valioso na Argentina”. Então pedimos para os alunos falarem o que
eles achavam que tinha acontecido nesta data e por que o personagem menciona tal
situação. Após uma rápida pesquisa na internet (com uso de um dispositivo móvel), um
aluno respondeu que nessa época estava acontecendo a Segunda Guerra Mundial.
Então chegou o momento da aula em que os alunos já tinham informações
necessárias para realizarem a análise do texto na segunda interpretação – a fim de
deixarem as visões primeiras e superficiais e construírem coletivamente interpretações
e sentidos. Os licenciandos começaram a falar de como agora viam a história completa
e levantaram possibilidades interpretativas, relacionando várias partes do conto, sendo
que se destacou a interpretação de que a casa simbolizava as emoções e a visão de
mundo dos personagens, tal casa foi tomada à medida que a ditadura avançava sobre
a Argentina, cerceando o direito das pessoas, restringindo o contato com a cultura, como
o acesso aos livros, por exemplo. Além disso, o progressivo aumento dos ruídos na casa
e a falta de visibilidade sobre os supostos invasores poderiam ser a transformação pela
qual a sociedade passava com a ditadura, já que muitas pessoas desapareceram na
vida real e nunca foram encontradas, como se algo “sobrenatural” as tivesse raptado,
mas os desaparecidos eram, na verdade, vítimas da perseguição ditatorial. A “expulsão”
dos personagens de sua própria casa, foi compreendida pela turma como o desrespeito
oriundo das medidas políticas extremas e autoritárias, que invadem a rotina e as
emoções das pessoas. A escassez de diálogo entre os personagens foi compreendida
como uma manifestação do medo que a perseguição gera e o desalento por se sentirem
incapazes de revidar em determinadas circunstâncias. O conto foi pensado pelos alunos
como um texto de denúncia, que usa o Realismo Fantástico para permitir ao leitor
pensar numa suposta distopia, mas que, de fato, acontece em circunstâncias de
extremismo político-militar. Os alunos gostaram muito da relação que tiveram com texto
na segunda interpretação. Eles relataram que se sentiram mais seguros e capazes de
falar sobre a narrativa, pois tinham elementos em seus repertórios de saberes que
permitiam a construção interpretativa. Gostaram de ter trabalhado, durante as
contextualizações, com pesquisas, com fotografias etc. Quase ninguém sabia que na
Argentina havia lugares tão bonitos e marcantes. Também se impressionaram com a
história da ditadura, pois só tinham conhecimento da ditadura que ocorreu no Brasil.
Na etapa da expansão, os alunos reconheceram algumas relações intertextuais
a partir do conto lido. Sendo que, todas as etapas anteriores deram condições aos

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discentes para desvendarem o implícito do conto Casa tomada, de Júlio Cortázar - a
ditadura militar na Argentina como o tema chave do texto. Então, para a expansão foram
lidas uma tirinha da Mafalda e a letra da canção Cálice, de Chico Buarque (o áudio da
música foi ouvido pela turma). Visto que, aos estudantes foram propiciadas reflexões
referentes às questões políticas e ao abuso de poder (relação com a ditadura na
Argentina), logo a turma começou a dialogar sobre a criticidade de Mafalda na tirinha
que criticava o silenciamento das pessoas e o abuso do poder político, assim como
estabeleceram semelhanças e diferenças entre a situação brasileira vista em Cálice e a
situação Argentina expressa no conto. Os estudantes conheceram textos com temática
similar e dialogaram sobre a arte literária e suas relações com a multilinguagem: como
a música e a tirinha. Assim, ampliaram horizontes culturais, percebendo a relação de
similaridade ou divergências entre os textos quanto à forma, à abordagem etc.
Este plano foi implementado em duas aulas e contou com a participação dos
alunos de modo oral, por meio de leitura e perguntas. Ao fim, eles afirmaram que foram
surpreendidos com a narrativa e com a contribuição da Sequência Expandida – a qual
favoreceu a construção de repertórios de leituras e a aprendizagem da leitura literária.

Discussão

Na discussão serão analisados os reflexos dos resultados e como estes


colaboraram para o letramento literário dos alunos e para a própria aprendizagem do
professor como planejador de aulas construtivas e agente de transformações no
ambiente escolar.
A formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que
saiba escolher suas leituras, que aprecie construções e significações
verbais de cunho artístico, que faça disso parte de seus fazeres e
prazeres. Esse leitor tem de saber usar estratégias de leitura
adequadas aos textos literários, aceitando o pacto ficcional proposto,
com reconhecimento de marcas linguísticas de subjetividade,
intertextualidade, interdiscursividade, recuperando a criação de
linguagem realizada, em aspectos fonológicos, sintáticos, semânticos
e situando adequadamente o texto em seu momento histórico de
produção. (PAULINO, 1998, p. 56)

Segundo Candido (2011, p.249) “A literatura desenvolve em nós a quota de


humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante”. Desse modo, o ensino da literatura nos
parâmetros da Sequência Expandida permite uma análise profunda da obra, explorando
desde o autor, o contexto e o contexto, que ajudam a identificar as temáticas presentes,
colaborando para a humanização dos discentes.
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É por possuir essa função maior de tornar o mundo compreensível
transformando sua materialidade em palavras de cores, odores,
sabores e formas intensamente humanas que a literatura tem e precisa
manter um lugar especial nas escolas. Todavia, para que a literatura
cumpra seu papel humanizador, precisamos mudar os rumos da
escolarização, promovendo o Letramento Literário (COSSON, 2006. p.
17).

As etapas da Sequência Expandida funcionam como uma caminhada de


aprendizagem, em que cada passo tem uma importância, um tempo a ser respeitado e
estratégias eficazes para alcançar o objetivo de trabalhar e aguçar os estudantes em
questão da leitura para o desenvolvimento da formação leitora. Visto que, com esse
plano de aula é possível os alunos serem provocados a interpretarem o que está além
das entrelinhas do texto, assim possibilitando ao indivíduo contextualizar com as
situações reais da vida.
Dessa forma, o professor ao preparar o plano também aprende, pois precisa
estudar, fazer pesquisas bibliográficas, criar uma linha de raciocínio e métodos para
proporcionar aos estudantes todas as condições necessárias para ajudá-los na
aprendizagem.
O plano aqui apresentado e a aplicação mencionada trouxeram muitos
benefícios aos alunos tanto como discentes quanto como futuros docentes, pois os
estimulou ao planejamento de aulas, bem como à argumentação, à reflexão, à
observação, à interpretação mais profunda - de forma contextualizada – do conto, ou
seja, esta metodologia favoreceu o letramento literário e a formação inicial de
professores. Além do mais, vivenciar o plano na aula do curso de graduação contribuiu
para a turma vivenciar as práticas de leitura literários, percebendo quanto e por que esta
abordagem é significativa e emancipadora, já que, de um modo interacional, envolveu
os estudantes na exploração de vários aspectos do texto. Também os alunos
compreenderam que tal prática de ensino aguça as pessoas à leitura multimodal do
texto literário numa perspectiva dialógica: incentiva o educando a ler por prazer, pela
alegria da descoberta, e não apenas por obrigação.

Considerações Finais

Os estudos a respeito do ensino de literatura em sala de aula, por meio da


Sequência Expandida possibilitam uma maior interação entre o docente e os discentes,
assim melhorando: a capacidade de comunicação, o uso da linguagem, o trabalho em
equipe, a fim de contribuir para o processo de humanização dos envolvidos e mais

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aproveitamento da linguagem literária na sala de aula, pois a ênfase não estará na
história das escolas literárias, mas na formação do sujeito leitor.
A Sequência Expandida proporcionou aos futuros professores um
planejamento literário consistente e sustentado na interação (dupla de alunas que
elaborou o plano – orientada pela docente responsável pela disciplina), dando condições
a todos os estudantes de refletirem sobre a organização de atividades que fomentam a
leitura literária. Além disso, a aplicação da Sequência Expandida favoreceu o
protagonismo dos leitores, o dialogismo, as interpretações, articulando teoria e prática
e rompendo com a comum ênfase dada à história da literatura a fim de que se
destacasse a leitura do texto literário em si (necessidade formativa do grupo). As
atividades possibilitaram aos graduandos não ficarem presos à superfície do texto
literário, mas, explorando aspectos do enunciado e do contexto, chegarem às
inferências e à compreensão do conto em pauta.

Referências

CÂNDIDO, Antônio. Vários escritos. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.

CORTÁZAR, Julio. Casa tomada. In: Bestiário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

COSSON, RILDO. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.

GERALDI, João Wanderley. Unidades Básicas do Ensino de Português. In: O texto na


sala de aula. João Wanderley Geraldi (organizador); Milton José de Almeida [et al.].5.
ed. São Paulo: Ática, 2011.

LÜDKE, Menga; e ANDRÉ, Marli E.D. A. Pesquisa em educação: abordagens


qualitativas. São Paulo: UFLA, 2013.

PAULINO, Graça. Letramento literário: cânones estéticos e cânones escolares.


Caxambu: ANPED, 1998 (Anais em CD ROM).

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SESSÃO DE MEDIAÇÃO DE LEITURA: UMA POSSIBILIDADE
PARA A INTERLOCUÇÃO ENTRE O LIVRO ILUSTRADO E OS
ELEMENTOS PARATEXTUAIS

Renata de Souza França Bastos de Almeida – UNESP/Marília


Daniele Aparecida Russo – UNESP/Marília
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto – UNESP/Marília

Eixo Temático 10: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entrecaminhos do saber aprender

Considerações iniciais

A formação de crianças leitoras e escritoras de textos, que tem as suas


aprendizagens fundamentais sedimentadas nas práticas de linguagem aliadas à
apropriação do código alfabético, preconizadas pelos métodos ativos de alfabetização,
não ficam debruçadas em ações de ensino que valorizam somente atividades de
decodificação e codificação, repetição, memorização e treino, pelo contrário, ficam
expostas a práticas pedagógicas que possibilitam a aprendizagem da leitura e da escrita
a partir do uso que se faz da língua, da linguagem escrita e da linguagem das imagens.
O texto reflete os paratextos presentes nas obras literárias, especificamente, nos
livros ilustrados de literatura infantil. Partiu-se do pressuposto de que os professores,
prioritariamente, da educação básica e, especificamente, os que atuam nas escolas da
infância e dos anos iniciais do ensino fundamental, devem apropriar-se das obras
literárias e dos elementos que a constituem, como objeto da cultura mais elaborada, e,
assim, possibilitar aos alunos que também o façam. Para subsidiar essa reflexão tem-
se a Teoria Histórico-Cultural, a qual colaborará com os conhecimentos acerca dos
objetos da cultura, a literatura infantil e as relações que se estabelecem para a formação
humana.

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Em se tratando dos livros ilustrados (HUNT, 2010; VAN DEN LINDEN, 2011;
NIKOLAJEVA, 2011; BAJARD, 2014)., distinto do livro com ilustração, tem-se um tipo
de literatura infantil que é constituída, em simultaneidade, entre o texto verbal e
imagético, mas não em linearidade, ou seja, forma-se uma complexidade na
apresentação e desenvolvimento dos livros ilustrados, exigindo que o leitor vá além do
que está posto, realizando inferências, problematizando e utilizando de repertório
próprio para a elaboração de sentidos sobre a obra literária.
Na sequência, os paratextos (GENETTE, 2009; NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011;
VAN DEN LINDEN, 2011)., e o que justifica os conhecimentos referentes aos
paratextos, que se comportam como um acompanhamento das obras literárias e dos
livros ilustrados, é que eles podem possibilitar aos leitores um apoio na escolha e
apropriação da obra, por meio dos seus elementos, que interagem a todo tempo com a
narrativa.
Por último, a sessão de mediação (BAJARD, 2014) detalhada pelos
componentes que a constituem, tornou-se fundamental para a exploração dos
elementos paratextuais, durante a problematização ocorrida no polo de mediação.
As conclusões indicaram que apropriar-se dos conhecimentos referentes aos
paratextos das obras literárias, trará ao professor novas possibilidades para a
exploração das obras literárias junto aos alunos.

Considerações sobre o livro ilustrado

Sobre o livro ilustrado, Nikolajeva e Scott (2011) o caracterizam como uma


produção cultural humana e como a combinação de dois tipos paralelos de comunicação
denominados de verbal e visual ou signos icônicos e signos convencionais, os quais,
em uma relação de complementariedade, devem garantir a articulação entre si e, assim,
desejantes e em busca de uma finalidade apresentar a obra literária.
A relação de complementariedade da comunicação dos signos icônicos e dos
signos convencionais dos livros ilustrados, ainda conta com a função e os
posicionamentos que eles assumem na obra literária. Enquanto os signos icônicos
trabalham para descrever ou representar, ocupando uma posição de não linearidade na
obra e não oferecendo uma orientação direta para lê-los, os signos convencionais, por
sua vez, são lineares e ocupam a função de narrar na obra literária (NIKOLAJEVA e
SCOTT, 2011).

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Na mesma direção, Van den Linden (2011) destaca que os livros ilustrados
contam com detalhes específicos e efeitos da diagramação que resultam na relação do
texto com a imagem e, assim, articulados, sobretudo quando não há redundância entre
eles, a leitura do livro ilustrado solicita muito mais do leitor do que quando texto e
imagem apresentam a mesma comunicação.
A partir do universo dos livros ilustrados, apresentaremos os paratextos que
estão presentes nestas obras e, também, colaboram com a formação de sentidos por
parte dos leitores e dos ouvintes.

Os paratextos

Ademais, o que significam os paratextos nas obras literárias? Em que implicam


na tríade leitor, narrativa e imagens das obras literárias? E na interlocução do leitor com
a narrativa das obras literárias, quais as contribuições que emanam dos paratextos?
Segundo Genette (2009, p. 9) “a obra literária consiste, exaustiva ou
essencialmente, em um texto...em uma sequência mais ou menos longa de enunciados
verbais mais ou menos plenos de significação”. Contudo, conforme destaca o autor,
esse texto só se torna livro com a presença de acompanhamentos presentes nas obras,
os paratextos, os quais podem ser os registros verbais ou não verbais, a capa, a quarta
capa, as guardas, o formato do livro, o nome do autor, o título da obra, os títulos internos
da obra, o prefácio, as ilustrações, a o frontispício ou a folha de rosto, a dedicatória,
dentre outros elementos, que as dilatam, as obras, e as preparam para a apresentação
e a recepção do público de uma maneira geral e, dos leitores, em particular.
Comparados como a porta de entrada de qualquer lugar e como a soleira de uma
casa, os paratextos, comportam-se como uma fronteira permeável que possibilita ao
leitor avançar ou recuar. Entretanto, nem todos os leitores o consideram assim, talvez
nem os considerem e, muito menos, percebam a “zona indecisa entre o dentro e o fora,
sem limite rigoroso, nem para o interior (texto) nem para o exterior (o discurso do mundo
sobre o texto)” (GENETTE, 2009, p. 10) que representam, os quais, interior e exterior
constituídos de elementos sociais, a propaganda e a crítica em geral, somados a
elementos de produção do próprio texto, se fazem presentes (GENETTE, 2009).
Quanto à presença dos paratextos, na Antiguidade ou na Idade Média, observa-
se que os textos que se movimentavam nessa época mostravam-se sem os
acabamentos e as típicas apresentações publicitárias e editoriais que encontramos
atualmente, ou seja, encontravam-se em estado rústico, todavia, isso não caracterizava

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a ausência dos paratextos, pelo contrário, pela denominação de “efeitos paratextuais”
(GENETTE, 2009) eles se materializavam pelos grafemas e fonemas de uma obra, pela
transcrição e transmissão oral da mesma (GENETTE, 2009).
Certamente, os paratextos se transformaram ao longo do tempo. As questões
históricas, culturais e sociais marcaram tanto as obras quanto os seus elementos
paratextuais, os quais suportaram alterações determinadas pelas aspirações de cada
época, no que tange, por exemplo, nas modificações ocorridas nas diferentes
publicações e edições de uma mesma obra.
Para tanto, os paratextos podem ser considerados a partir da composição: “(...)
de um conjunto heteróclito de práticas e de discursos de todos os tipos e de todas as
épocas que, em nome de um grupo de interesses, ou convergência de efeitos, que me
parece mais importante do que sua diversidade de aspecto...” (GENETTE, 2009).
Os paratextos, segundo Genette (2009) podem ser divididos em duas categorias,
a primeira denominada de peritexto, caracteriza-se pelo espaço que esses paratextos
ocupam na obra, como por exemplo, o mesmo volume ou interstícios de uma obra. A
segunda categoria, denominada de epitexto, refere-se as mensagens paratextuais, mas
que ocorrem fora de uma obra, por exemplo, a entrevista do autor que escreveu a obra
para falar da própria obra, suportes midiáticos que tratam da obra, configurando a
existência de paratextos em espaços que não a materialidade da própria obra.
Ainda, as mensagens transmitidas pelos paratextos são compostas por traços
que definem suas características espaciais, temporais, substanciais, pragmáticas e
funcionais
Nikolajeva e Scott (2011) afirmam que os paratextos merecem destaque pela
relevância que exercem nos livros ilustrados, pois, em muitas obras eles participam da
narrativa, sobretudo, quando as ilustrações não são as mesmas da parte interna da
obra. Ainda, tem-se que pouco se produziu sobre os paratextos dos livros ilustrados e,
apesar de fazerem parte da narrativa e contribuírem para a criação de sentido referente
a ela, tanto para o público em geral quanto para o público infantil, os elementos
paratextuais acabam sendo esquecidos, não valorizados e não explorados em uma obra
literária.
Quando se trata dos paratextos dos livros ilustrados, observa-se que as
elaborações ocorrem “na maioria das vezes...como um conjunto coerente” (VAN DER
LINDEN, 2011, p. 51), assim, ilustrador, editores e designers, preparam os
acompanhamentos que cercam as obras, tais como: os formatos, as capas, guardas,

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folhas de rosto e páginas do miolo, para então, se tornarem receptivas para o público e
leitores.
Contudo, nos alerta Van der Linden (2011), as elaborações dos paratextos como
um conjunto coerente esbarram nas exigências impostas pela indústria que comercializa
as obras literárias, ao passo que, elementos paratextuais como o formato, a tipografia
da capa e a quarta capa, são geralmente, de responsabilidade dos editores e utilizadas
como estratégia para atrair os leitores, em potencial, da obra, os quais, primeiramente,
não são as crianças, mas os adultos que farão a aquisição para apresentá-la à criança.
A seguir, considerações sobre a sessão de mediação, que se realiza em um
espaço e em um tempo específicos e colabora com a circulação da literatura a partir da
exploração autônoma dos livros ou pela transmissão vocal do mediador.

A sessão de mediação

A literatura é um elemento da cultura capaz de motivar o encontro da criança


com a linguagem escrita, a qual, somada a linguagem oral “vai participar da educação
da pessoa em todas as suas dimensões, imaginária, científica, espiritual, cívica, mas
também linguageira e cognitiva” (BAJARD, 2014, p. 43).
A escolha dos textos literários para a inserção da criança no mundo da
linguagem escrita e, consequentemente, no mundo social que se abre a partir da
apropriação dessa linguagem, não deve ser a única justificativa para a valorização das
obras literárias no espaço da escola e fora dela, pois há outros elementos que se
incorporam a essa cena.
A proposta é que desde a tenra idade a criança tenha acesso aos textos literários
que possibilitam o estabelecimento de uma ponte entre o mundo real e o mundo
imaginário, por meio do texto ficcional, favorecendo a constituição da sua personalidade.
Caso contrário, quando essa ponte não é estabelecida, a criança tende a buscar
referências em outros espaços ficcionais, aproximando-se dos programas de televisão
que em nada contribuem com a sua formação e o seu desenvolvimento (BAJARD,
2014).
Contudo, a familiaridade com as livros de literatura infantil não ocorre de forma
espontânea e desproposital, pois as crianças pequenininhas das famílias mais
abastadas já convivem com modelos de leitura e de escrita e possuem um acervo
significativo quando comparadas com as crianças pequenininhas das classes menos
favorecidas, em que os pais ou os responsáveis não se comportam como modelo de

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leitura e de escrita e o acesso à literatura é escasso, sendo na maioria das vezes
inexistente.
Esse é o retrato de um descompasso, na medida que envolve não somente as
privações materiais e de modelos, o que já é muito preocupante, mas também um hiato
entre as crianças que possuem vivências e experiências distintas e, portanto, pontos de
partida diferentes quando iniciam o seu processo de escolarização.
É pensando nas crianças privadas do encontro com o livro de literatura infantil
que Bajard descreveu “um dispositivo formal que possibilita essa aproximação,
chamado de “sessão de mediação” (BAJARD, 2014, p. 46).
Criada pela instituição A Cor da Letra (Centro de Estudos, Pesquisa e Assessoria
em Leitura e Literatura Infantil, São Paulo), a sessão de mediação, objetiva trabalhar
com as crianças que não herdam da família a cultura escrita, assim
As sessões de mediação propiciam encontros de crianças com o livro
a partir de alguns meses de idade, em lugares diversificados, tais como
pátios de internato, jardins, creche, hospital etc. São programadas de
maneira regular ou pontual, em torno de um acervo móvel de livros de
qualidade (BAJARD, 2014, p. 46-47)

Mas, para que de fato seja implementada, a sessão de mediação conta com os
mediadores de leitura e um acervo de livros de literatura infantil maior que o número de
crianças presentes, o que possibilita o ato de escolha dos livros. Então, a criança não
fica com o livro que sobra, ela fica com o que provoca interesse, com o que chama a
atenção, com o que desencadeia alguma relação, é o livro que é escolhido por ela.
A sessão de mediação além de contar com o espaço, conta também com o
tempo. São 45 minutos entre a brincadeira que dá início a sessão e a brincadeira que
encerra a sessão. Nesse tempo, “As crianças escolhem livros, brincam com eles,
folheiam os exemplares, trocam os volumes entre si” (BAJARD, 2014, p. 47).
Contudo, se a sessão de mediação conta com o espaço de autonomia, em que
à criança é permitida ações espontâneas com os livros do acervo, tem-se também, polos
de mediação, em que os mediadores de leitura, por iniciativa própria ou a pedido das
crianças, revela o texto de uma obra literária pela sua voz, é a transmissão vocal. Essa
ação se dá para todos, para alguns ou somente para uma criança, pois elas exercem a
liberdade de participar do polo de mediação ou de explorar outras obras literárias, no
espaço da autonomia.
Consideradas como modalidades de acesso ao texto, os polos de mediação e
os espaços de autonomia, contribuem para a flexibilidade e a pluralidade da sessão de

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mediação, quando valorizam a motivação das crianças e suas questões afetivas, bem
como oferecem situações de aprendizagens adaptadas as faixas etárias.
No entanto, há outros elementos que se somam à sessão de mediação e se
elevam aos elementos que foram descritos anteriormente. A seguir, destacaremos
esses elementos, na ordem trazida por Bajard (2014), mas não detalharemos cada um
deles. Será uma exposição esquemática. Alguns serão retomados na parte
metodológica deste texto.
Inicialmente, a postura, elemento essencial ao mediador que precisa garantir o
acesso visual ao ouvinte. Ela pode ser classificada de três maneiras: a) A criança no
colo; b) A criança ao lado; c) Face a face.
Na sequência, a transmissão vocal do texto, que conta com os seguintes
componentes: a) A emissão; b) O resgate; c) O olhar; d) A exposição.
Por fim, o autor descreve as estratégias que envolvem os componentes da
transmissão vocal combinados as posturas adotadas pelos mediadores. Vale lembrar
que as habilidades que os mediadores possuem desses elementos, podem garantir uma
melhor performance na comunicação.
Desse modo,
A comunicação instaurada pela transmissão vocal, por ser viva, remete
a uma performance, isto é, a um acontecimento único, seja por um
olhar, uma inflexão de voz, um gesto ou um suspiro específico. Ora,
esse “advento” singular é construído a partir de um texto escrito,
portanto, permanente, fixo. A performance da transmissão vocal
metamorfoseia um texto “adormecido” na página, criado por um autor
ausente, em uma comunicação viva entre protagonistas presentes:
mediador e ouvintes. É esse paradoxo que explica o prazer vivido pela
criança ao escutar uma milésima transmissão vocal do mesmo texto. A
performance transforma o texto gráfico, sempre idêntico, em uma
transmissão singular, sempre nova (BAJARD, 2014, p. 64-65)

Após detalhamento da sessão de mediação e os elementos que a compõem,


seguimos com a metodologia.

Metodologia

Elegemos os passos da sessão de mediação descritos por Bajard (2014), que


objetivam, além da circulação das obras literárias, a apresentação da materialidade
gráfica e sonora presentes nos livros de literatura infantil.
No entanto, acrescentamos aos passos da sessão de mediação, a
apresentação e a problematização dos paratextos das obras literárias, que para este

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momento da pesquisa, foram delimitados a capa e ao formato do livro, como os
elementos a serem explorados.
As crianças que participaram desta sessão de mediação frequentavam uma
turma de 1º ano do ensino fundamental de uma escola pública.
A sessão de mediação foi proposta aos alunos e teve a sua abertura a partir de
uma brincadeira. Cuidamos para que a quantidade de obras oferecidas as crianças
fossem superior a quantidade delas, para assim, possibilitarmos a escolha. Criamos os
polos de mediação e as crianças criaram os polos de autonomia, pois quando decidiam
explorar os livros sozinhas, elas mesmas criavam os seus polos de autonomia.
Nos polos de mediação, as crianças encontravam a transmissão vocal da
narrativa, que podiam ser das obras escolhidas pelas próprias crianças ou pelas obras
escolhidas pelos mediadores.
Com a obra escolhida para a transmissão vocal da narrativa, o mediador
explorou-a enfatizando e problematizando os paratextos eleitos inicialmente, a capa e o
formato do livro. Observou-se que outros paratextos também foram levantados pelas
crianças nesse momento, como o título da obra, as letras e os tipos de letras. Não os
ignoramos, pelo contrário, seguimos com todos para que as crianças pudessem
aprimorar a elaboração de sentidos.
Após transcorrido o tempo da sessão de mediação, os mediadores a
encerraram com uma brincadeira.

Análise

Em síntese, como podem os professores se beneficiarem do conhecimento


sobre os paratextos?
Qual a função dos paratextos na escolha das obras literárias, os livros ilustrados,
a serem ofertadas para as crianças?
Na sequência, trarei essas respostas para dois importantes paratextos dos livros
ilustrados: o formato e a capa
Nikolajeva e Scott (2011) nos respondem recorrendo aos próprios paratextos,
assim, o formato relaciona-se à apreciação estética do livro ilustrado, e se destaca
quando, em meio a outros livros, a criança tem a possibilidade de perceber as diferenças
entre eles. O formato deitado, ou seja, na horizontal, assemelha-se ao palco de teatro
ou a tela de cinema, afirmam as autoras, sendo mais comum nos livros ilustrados, pois
possibilita a demonstração de espaço e movimento. Ainda, os livros quando em formato

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pequeno, favorecem o manuseio das crianças pequenas, mas há controvérsias, no que
diz respeito aos livros grandes, “são mais atraentes e mais fáceis para elas segurarem
e manusearem” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 308). Em diferentes edições ou em
edições estrangeiras, o formato pode se modificar para um mesmo livro.
Quando trata do formato dos livros ilustrados, Van der Linden (2011) destaca
que há uma grande variedade para os livros contemporâneos, que dentre vários
elementos tem-se:

O formato vertical (dito “à francesa”), mais alto do que largo, revela-se


o mais corriqueiro. As imagens aparecem isoladas, na maioria das
vezes, e as coerentes composições talvez sejam menos marcadas nas
sequências das páginas.
O formato horizontal (dito “à italiana”), mais largo que alto, permite uma
organização plana das imagens favorecendo a expressão do
movimento e do tempo, e a realização de imagens sequenciais. (VAN
DER LINDEN, 2011, p. 53)

Como o tamanho está presente no formato dos livros ilustrados, a autora


relaciona o tamanho do livro à aventura proporcionada por ele, ou seja, quanto maior o
livro, mais entusiasmada com a apreciação e manuseio a criança ficará.
A capa dos livros ilustrados pode levar o leitor, em potencial, a entrar na
narrativa, como também, pode fazê-lo recuar, e isso dependerá da forma como a capa
se comunica com o público. Assim, lugar das primeiras explorações visuais, a capa
comunica o tipo de discurso, o estilo de ilustração, o gênero, criando no leitor uma
expectativa sobre a narrativa da obra. A capa também é espaço importante para o
marketing do livro (VAN DER LINDEN, 2011).
Segundo Nikolajeva e Scott (2011):

Uma imagem de capa que se repete dentro do livro, mesmo com uma
leve variação, antecipa o enredo e, junto com o título, em especial um
título explícito como “A história de...” ou “A viagem para...”, fornece
algumas informações sobre a história, o gênero e o destinatário do
livro. (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 312)

Entretanto, nem sempre a capa está em consonância com o miolo da obra e, em


algumas vezes, o próprio título da obra confunde ao invés de explicar a capa, ao passo
que, isso só será esclarecido se o leitor ousar em avançar, para além da capa.
A compreensão de uma obra literária passa pelo layout da capa, o uso de
diferentes fontes e tamanhos e configurações para o título, como por exemplo, títulos
em forma de arco, destaca a imagem central do livro, em uma obra que trata da onça

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pintada, as letras, em consonância com o animal, são amarelas e peludas com pintas
negras (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011).
Nem sempre as ilustrações da capa apresentam as ideias dos autores, elas
podem estar mais associadas aos editores e, como já mencionado, às questões ligadas
ao marketing da obra, no entanto, podem trazer à tona um episódio dramático e
admirável da história, nunca, ou pelos menos não deveria, destruir “a expectativa criada
pelo título atraente apresentando o cenário ou o antagonista na capa...” (NIKOLAJEVA;
SCOTT, 2011, p. 313).
Para tanto, observou-se a importância que os paratextos exercem para uma obra
literária, além de possibilitar a recepção de uma obra para o público em geral e para os
leitores em específico, eles são capazes de criar uma expectativa e a elaboração de
sentidos no leitor, para além dos próprios paratextos, da narrativa e da obra literária.
Assim, garantir acesso a professores e alunos a esses conhecimentos refinados, os
paratextos, proporcionará escolhas de qualidade e apoios na apropriação de uma obra
literária.

Considerações Finais

Por fim, mas nunca esgotando o que foi proposto inicialmente, a reflexão dos
paratextos presentes nas obras literárias, especificamente, nos livros ilustrados de
literatura infantil, nos leva a perceber a importância dos paratextos para esses livros,
uma vez que eles os tornam receptivos para o público em geral e para os leitores em
especial.
Dessa maneira, conhecer e identificar os paratextos de uma obra, apoia
professores e alunos a realizarem escolhas de qualidade, bem como funcionam como
estratégia para auxiliar na elaboração de sentidos e significados, pois trabalham com a
articulação texto e imagem que, na complementariedade suscitam no leitor a relação
com o livro, mas também, para além dele.
O professor quando sensível a esses refinamentos para a escolha das obras
literárias a serem ofertadas a seus alunos, é capaz de possibilitar acesso ao que é mais
elaborado na cultura. No entanto, as práticas pedagógicas só encontram efetividade a
partir da intencionalidade constituída pelo conhecimento acerca do que se deseja
ensinar e quais os objetivos se quer alcançar.

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Nessa direção, professores com pouco ou nenhum conhecimento sobre as obras
literárias e seus alongamentos, os paratextos, terão pouco a oferecer a seus alunos, no
que tange às características e a funcionalidade dos paratextos.

Referências

BAJARD, ÉLIE. Da escuta de textos à leitura. São Paulo. Cortez, 2014.

GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. São Paulo. Ateliê Editorial, 2009.

HUNT, Peter. Crítica, Teoria e Literatura infantil. São Paulo. Cosac Naify, 2010.

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo. Cosac Naify, 2011.

NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro Ilustrado: palavras e imagens. São Paulo.
Cosac Naify, 2011.

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A PALAVRA MÁGICA: LITERATURA, LEITURA E A
ALFABETIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DE MOACYR SCLIAR.

Adriana Jesuino Francisco, PPGE/FCT – UNESP – Presidente Prudente.


Elianeth Dias Kanthack Hernandes, PPGE/FCT – UNESP – Presidente
Prudente.

Eixo Temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação


de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender

Considerações iniciais.

Este artigo objetiva analisar no livro A palavra mágica, de Moacyr Scliar, a


relação estabelecida entre a alfabetização, a leitura e a literatura uma vez que permite
inferir que, por meio da alfabetização ou aquisição da leitura, a personagem Lucídio –
antes analfabeto e excluído -, passa a ser incluído tanto no mundo social, quanto no da
ficção e da arte. Para embasamento da análise destaca-se a importância da teoria de
Freire (1989) sobre o ato de ler e escrever como um ato de libertação e emancipação
do mundo real, burocrático e ficcional e os estudos de Candido (1989) sobre o direito à
literatura que humaniza, liberta, e constitui sujeitos autônomos. Buscaremos respaldo
para nossas análises também em uma segunda corrente teórica defendida por Bajard
(2014), Foucambert (2008), Arena (2008, 2020) e Volóchinov (2017), que compreende
a leitura como ação de investigar e atribuir sentidos. A partir desse referencial
entendemos que ler é um ato que demanda determinados
comportamentos/procedimentos e atitudes, sendo, portanto, um ato investigatório de
quem tem perguntas a fazer ao texto e necessidades de obter respostas. Para esses
autores a leitura é sempre compreensão, e essa compreensão ativamente responsiva é
a atitude esperada pelo autor de um texto, da mesma maneira que o leitor espera
encontrar - naquele texto selecionado - respostas que supram as necessidades que o

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levaram até aquele ato de leitura. Nessa mesma direção, Volóchinov (2017) evidencia
que o ato de ler se concretiza em uma troca entre leitor, texto e autor, sempre mediados
pelos aspectos extra verbais que compõem essa situação de troca.
Com base nessas teorias, a hipótese que norteou esse artigo é a de que Scliar
assume posicionamentos sobre os objetos do estudo que não apontam para a mesma
direção do que está sendo proposto e vivenciado no ensino público, tanto com relação
à alfabetização como a prática da leitura. As concepções de Scliar entrelaçam-se com
os elementos estruturais da narrativa, oportunizando concluir que, ao contrário do que
a escola tem ensinado, não é a assimilação da técnica de locução que ensina o ato de
ler, pois existe um distanciamento entre a decodificação de grafemas e fonemas, para
posterior significação, com o que de fato propicia a aprendizagem da leitura - a
necessidade -, como nos mostram os protagonistas e o narrador da obra A palavra
mágica.

Em foco o autor e a obra...


Moacyr Scliar (1937-2011) presenteia seus leitores com uma literatura de ampla
representatividade e pluralidade cultural, possibilita ao leitor desfrutar de uma leitura
fluente, bem humorada – às vezes em tom irônico e fantástico, e ainda, com uma
linguagem coloquial sem perder valor estético. Scliar sempre dizia em seus livros, em
entrevistas, ou rodas de conversas, que gostava de escrever para o jovem, pois “a
juventude é a fase da vida em que um livro pode mudar a cabeça da gente.” (p.112).
Assim sendo, seus textos proporcionam uma expansão de experiências, que provoca
novas ideias e sentimentos, novas maneiras de contemplar o mundo e as relações
sociais.
O livro de literatura juvenil, A Palavra Mágica (2007), publicado pela Editora
Moderna, faz parte da coleção intitulada “A palavra é sua”, que contou com a
organização da filósofa Maria Lúcia Arruda Aranha. A história decorre do reencontro
afetivo entre o neto, Pedro, um adolescente responsável e atencioso, e seu avô, Lucídio,
um senhor rabugento e amargo. O avô guardava um grande segredo, uma senha
perdida (uma palavra que havia sido escrita em um pedaço de papel que se perdeu),
que correspondia à posse de grande fortuna. Lucídio morava sozinho num casebre no
alto do moro, Pedro e sua família moravam no sopé do mesmo moro. Por circunstâncias
do passado o avô perdeu o vínculo de relacionamento afetivo com seus filhos e,
consequentemente, com os netos.

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Em certa ocasião, a família recebe a notícia que Lucídio estava adoentado, nada
muito grave, mas que precisaria de cuidados. Pedro ficou responsável por cuidar do
avô, passar uns dias com ele, tarefa nada fácil até então. Em menos de uma semana,
avô e neto estavam se aproximando, e depois que o avô narrou suas experiências de
vida um forte laço de empatia se construiu entre eles. No decorrer da narrativa o leitor
vai observando que a finalidade de descobrir a senha perdida deixa de ser
primordialmente por motivos financeiros, passando a priorizar a reconciliação familiar.
O neto, alfabetizado, sabia dominar as palavras, muito inteligente, como relatava
Lucídio, estava disposto a desvendar esse mistério e, para isso, refaz o percurso
narrado através das lembranças do avô para tentar encontrar a tal senha. Esse
movimento que o neto faz para recuperar a palavra acaba conduzindo-o a momentos
mágicos, que é o reencontro com o avô e as possibilidades de construir sua própria
história e significações. Portanto, o entrelaçar das personagens no procurar a
senha/palavra é que traz a beleza ao texto, seja através do avô, que era analfabeto e
aprendeu a ler com este objetivo, ou através do neto, que desejada o reencontro da
família, visto que a senha transformou-se em “palavra mágica” para inúmeras
possibilidades.
A narrativa é descrita em ordem cronológica, com duração de aproximadamente
duas semanas. O leitor presencia também o tempo psicológico por meio das lembranças
do avô Lucídio relatadas ao neto. A história transcorre na cidade de São Roque,
deslocando-se entre o espaço rural (casa de Pedro, casebre do avô Lucídio) e o espaço
urbano (escola, hospital). Há também acontecimentos na cidade de Muriaçu, localidade
em que o neto Pedro vai à procura da palavra mágica (lotérica do Sr. Zeferino e a loja
da dona Marta).
Com 112 páginas, é possível verificar que o livro A palavra mágica está
estruturado em forma de novela - gênero que se caracteriza por manter um formato
narrativo não tão conciso como o conto, e nem tão complexo quanto o romance. O texto
pressupõe um leitor adolescente e versa questões relacionadas ao vínculo afetivo
(amizade, amor, perdas); Relacionamento (neto e avô, reconciliação familiar); Busca da
identidade (ritos de passagem, memória familiar) e questões filosóficas, estabelecendo
um diálogo com problemas de natureza social e econômica, principalmente quando
aborda o analfabetismo e suas consequências.

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O título do livro - A palavra mágica – e o layout da capa permitem ao leitor
realizar inferências e antecipações sobre o conteúdo da narrativa. Como paratextos265,
esses elementos ajudam ao leitor a levantar hipóteses sobre a temática da obra e a
recuperar seus conhecimentos prévios sobre o que seja uma palavra mágica. Outro
paratexto a ser considerado na análise da obra é o seu sumário. Consideramos que a
forma como o autor elabora e organiza os títulos de cada um dos capítulos do livro é
extremamente instigante.
O “Apresento-me” do primeiro capítulo permite múltiplas inferências e
possibilidades, assim como o “Óia eu aqui traveiz” do sexto capítulo. O que significa o
rompimento com a norma culta? Por que desconsiderar aí um aspecto da língua que é
tradicionalmente prestigiada nos meios acadêmicos e literários? Essas e outras
questões presentes no texto e nos paratextos, suscitam um espaço interpretativo
permitido tanto pela organização da narrativa quanto pela memória intertextual e
interdiscursiva, que é construída de forma social, histórica e cultural, não só pelo autor,
como também pelos seus leitores.
O prefácio do livro (p. 9-10), escrito por Maria Lúcia de Arruda Aranha, sob o
título “As múltiplas faces da palavra”, antecede o início da história e ajuda a
contextualizar, não só o enredo do livro, mas também permite um diálogo mais profícuo
com os teóricos que citamos anteriormente, principalmente quando defende as
seguintes ideias: 1) Palavra como um presente: “[...] desde cedo recebemos o
presente da palavra.” (p. 9); 2) Palavra como roupa do pensamento: [...] “a palavra é
a “roupa do pensamento’” (p. 9); 3) Palavra como ferramenta: “[...] ferramenta
fantástica que é a palavra, [...]” (p. 10); 4) Palavra que humaniza: “[...] tornar-se cada
vez mais humano [...]” (p. 10); 5) Palavra como memória e percurso: “[...] com a
Palavra [...] você lembra o passado e planeja o futuro” (p.10); 6) A Palavra não é neutra:
“[...] mas a palavra é uma faca de dois gumes” (p. 10); 7) A Palavra como posse do
indivíduo: “Depende de você saber como usá-la, porque a palavra é sua” (p. 10).
Ao longo da narrativa existe constante troca entre dois diferentes narradores. Um
que utiliza a terceira pessoa, ou seja, o autor (Moacyr Scliar) e outro – que é uma criação
do próprio Scliar -, que faz a narrativa em primeira pessoa (a palavra mágica). Por
exemplo, no início do capítulo primeiro, a narrativa começa em primeira pessoa: “Quero
me apresentar a vocês: eu sou uma palavra mágica.” (p.11). No capítulo segundo,
observamos a narrativa em terceira pessoa, iniciando com a tradicional frase de histórias

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Paratextos: são elementos que estão para além do texto, ou seja, informações que
acompanham uma obra, como o título; prefácio; posfácio; sumário; contra capa; entre outros.
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infantis “Era uma vez um menino que não conhecia palavras mágicas.” (p.17). Já no
capítulo quinto volta à narrativa em primeira pessoa com humor e prelúdio “Oi! Sou eu
de novo. Você não está me reconhecendo? Falamos antes, não lembra? Sou a palavra
mágica, cara. [...] Bom resolvi aparecer para anunciar que você terá uma surpresa.”
(p.55). Os demais capítulos vão se intercalando na estrutura narrativa. Essas trocas,
além de trazer dinamismo ao texto escrito, também permitem a ampliação das hipóteses
que os leitores podem construir, sobre os fatos que se seguirão na narrativa.
A intertextualidade e a interdiscursividade com histórias clássicas ficam
evidentes no diálogo que o texto de Scliar estabelece com: Ali Babá e os quarenta
ladrões – na qual faz parte da obra As mil e uma noites, que circulou oralmente durante
a Idade Média, reunindo várias histórias orientais -; com a figura do Capitão Marvel, -
herói das histórias em quadrinhos, desde a década de 1940 -. Visando exemplificar a
intertextualidade na obra, citaremos a seguir o fragmento em que a narradora (a
palavra), logo no início do capítulo primeiro, questiona o leitor, se este sabe o que é uma
palavra mágica: “A história de Ali Babá, por exemplo. Vocês lembram? Os ladrões
abriam a entrada da caverna onde guardavam os tesouros roubados dizendo,
simplesmente, “Abre-te, Sésamo””. (p.11), mais adiante, - no capítulo quinto - momento
em que Lucídio conversa com o neto sobre como a senha escrita no papel havia se
perdido, e quão grande foi sua agonia naquele momento por não saber ler, lembra da
história de Ali Babá e os Quarenta ladrões, especificamente, na ocasião em que a
personagem Cassim esquece a senha para sair da caverna. Outro exemplo é com a
Torre de Babel, passagem descrita no Gênesis, livro constante no Antigo Testamento
da Bíblia Judaica e Cristã, que explica, de acordo com os preceitos dessas culturas, o
motivo dos povos conviverem com diferentes línguas e costumes, muitas vezes
enfrentando conflitos. Em A palavra mágica a narradora acentua: “A Bíblia conta que
isso aconteceu porque, em Babel, os homens resolveram construir uma torre que
chegasse ao céu. Foram castigados: Deus fez com que falassem diferentes linguagens.”
(p.15).
Além desses aspectos, no livro de Scliar o vocábulo “PALAVRA” é registrado
141 vezes, sempre reforçando a ideia do seu uso social, e do poder que confere a quem
se instrumentaliza para utilizá-la. Isso se evidencia logo no início da obra (p.12), quando
o autor se refere à etimologia da palavra abracadabra, (aura kedabra) do idioma
aramaico, que tem o significado de “criarei ao falar”. Isso reforça a ideia de que a
“PALAVRA” é poderosa porque é criadora da cultura, com poder de interferir nas
relações humanas a ponto de defini-las e alterá-las. Essa constatação nos levou a outro

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aspecto da obra, o silenciamento de que os protagonistas são vítimas, assunto muito
enfatizado no texto. Os termos “falavam muito pouco”, “calado”, “não respondia”, “não
falava” e “quieto” estão presentes para evidenciar a negação da linguagem que vitimiza
aos chamados “filhos do analfabetismo” (FERREIRO, 1991).
Entretanto é importante ressaltar que esse silêncio também ocorre quando a
intenção é “apagar as pessoas”, ou seja, excluí-las de um determinado espaço social,
como acontece quando o narrador registra: “De Lucídio falavam muito pouco ou então
não falavam.” (p.20), ou “Como o homem não falava, ninguém falava.” (p. 21). Aqui o
discurso literário consegue capturar um movimento que fica às margens da designação
que se estabilizou na relação entre língua-sujeito-história.
Nessas situações, o “silenciamento” e a “falta da palavra” não são percebidos
como uma expressão de exclusão social, e são encarados, muitas vezes, como sendo
uma experiência individual. Mas, quando ocorrem, provocam repetidas situações de
humilhação, acompanhadas, até mesmo, por sentimentos de culpa. No caso específico
de Lucídio, o analfabetismo reflete negativamente no âmbito individual, pois ser
analfabeto não se limita ao
[...] estado ou condição de quem não dispõe da “tecnologia” do ler e do escrever:
o analfabeto é aquele que não pode exercer em toda a sua plenitude os seus
direitos de cidadão, é aquele que a sociedade marginaliza, é aquele que não tem
acesso aos bens culturais de sociedades letradas e, mais que isso,
grafocêntricas.” (SOARES, 2010, p. 19-20).

De acordo com a pesquisadora Kleiman (2000, p.17): “O adulto que não sabia
ler e nem escrever era considerado deficiente e incapaz de aprender.” A pessoa
“iletrada” – palavra utilizada desde o final do século XIX como sinônimo de analfabeto
(ou quase) - era visto como um “ser ignorante”, que precisava ser ajustado na sociedade
centrada na escrita. Por não ser visto como sujeito autônomo tinha seus diretos
negados (político, social, econômico, cultural). Por esses e tantos outros motivos as
pessoas sentiam-se inibidas de dizer que não sabiam ler e nem escrever. No diálogo
entre as personagens de avô Lucídio e o neto, a situação de negação fica claramente
evidenciada.

_ Era uma palavra só, mas eu não sabia que palavra era essa.
_ Como não? Você na leu o que estava escrito no papel?
_ Não li. Eu não sabia ler? – Pedro, boquiaberto. [...] Na época da
estrada eu era analfabeto. Me dava tanta vergonha que eu não
contava para ninguém.” (Scliar, 2007, p.70-71). (Grifo nosso)

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O livro A palavra mágica demonstra também a marginalização do analfabeto com
relação ao trabalho e a renda, sem opção de escolha, trabalhava-se duro em troca do
sustento familiar. “Agora: era um trabalho pesado. A estrada tinha de ficar pronta em
pouco tempo, e o capataz fazia a gente trabalhar dez, doze horas por dia, debaixo
daquele solaço... Não era mole, Pedro.” (p.65).
Apesar de todo o trabalho duro e suas privações, e o direito a alfabetização na
idade certa negado, Lucídio conquista esse direito na velhice, e passa a ter uma
educação advinda do processo de leitura como transformação e reconstrução de sua
história social. Sendo Assim, partimos do pressuposto de que a função social da palavra
escrita permite uma “leitura do mundo” e como consequência, a formação de um
cidadão mais consciente, reflexivo e autônomo no processo de construção de sua
história. Constatamos essa possibilidade na personagem que, para tentar decifrar a
“palavra mágica”, aprendeu a ler sozinho, buscando respostas em jornais e revistas.
“[...] Pra começar, tratei de aprender a ler e a escrever. Em primeiro lugar, porque eu
me dava conta da importância de ser alfabetizado: se eu tivesse lido a palavra, com
certeza me lembraria dela.” (p.78).
Candido (1989) ressalta a potencialidade do papel da literatura na humanização
do indivíduo e na confirmação de sua condição de sujeito ao apropriar-se da linguagem
literária. No livro A palavra mágica, o autor confirma esse pressuposto de Antonio
Candido quando registra o depoimento do avô Lucídio, sobre a sua apropriação da
leitura e da literatura:
[...] ler para mim era um consolo, a única coisa que me salvava da
tristeza. Eu gostava muito de romances, de contos. Quando o escritor
sabe contar uma boa história ele mexe com a gente, não é mesmo? É
como se a gente tivesse vivendo outra vida, a vida das personagens.
(2007, p.48)

Após o fragmento a cima, consideramos delinear uma breve explanação sobre


a concepção de língua e linguagem na perspectiva de Volóchinov (2017), que considera
a linguagem como fenômeno social, cultural e histórico, que tem caráter evolutivo no
tempo e no espaço. A linguagem, diferente da Língua, promove um diálogo constante
com a vida e,
A realidade efetiva da linguagem não é o sistema abstrato de formas
linguísticas nem o enunciado monológico isolado, tampouco o ato
psicofisiológico de sua realização, mas o acontecimento social da
interação discursiva que ocorre por meio de um e de vários
enunciados. (2017, p. 218-219)

Com base nesse autor, entendemos a linguagem como constituidora da


consciência e da personalidade que se formam e se realizam no instrumental sígnico
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que são resultantes de trocas sociais que ocorrem em diferentes contextos. O objeto de
ensino da leitura e da escrita é, portanto, a linguagem viva que acontece como fruto de
interações sociodiscursivas entre sujeitos datados e localizados. Sendo assim, ao
analisarmos A palavra mágica, fica evidente, da perspectiva de Scliar, através da
personagem Lucídio que aprendeu a ler a partir de uma necessidade real, investigando
e buscando respostas em jornais e revistas, que a verdadeira essência da linguagem é
o evento social que consiste em uma troca verbal que ocorre e se efetiva em um ou em
vários enunciados. Lucídio, que até certo ponto da narrativa era considerado analfabeto,
acaba se apropriando da linguagem escrita devido a necessidade de descobrir a palavra
secreta, ou seja, ele procurava uma resposta a uma pergunta. Ressaltamos que, uma
resposta não só em relação a senha/palavra perdida, mas também respostas que o
salvariam da tristeza e do isolamento social. Ele encontra o que procura ao se apropriar
da escrita, em que palavras verdadeiramente ‘mágicas’ se encontram na formulação de
enunciados.
Diante dessas considerações, quando mencionamos no início do texto que as
concepções de Scliar se entrelaçam com os elementos estruturais da narrativa, isso nos
possibilita afirmar que, ao contrário do que a escola tem ensinado, não é a locução que
ensina o ato de ler, pois existe um distanciamento entre a fonetização de grafemas e a
busca de sentido do texto, mas o que ensina o ato de ler é a necessidade do uso da
língua escrita em situações de trocas sociais. Portanto, quando analisamos o percurso
histórico dos métodos de alfabetização no Brasil, relacionando-os ao ensino da leitura
e da escrita, constatamos que, a preocupação com as práticas da leitura e da escrita,
sempre esteve apoiada no uso de métodos que priorizam a chamada ‘consciência
fonética’ em detrimento da busca de sentidos ao texto, isto é, o conteúdo a ser ensinado
esteve historicamente centrado nos fatores linguísticos e não no reconhecimento da
linguagem e seus usos sociais. Arena (2011, p. 35), ao tratar da temática da
metodização na alfabetização, destaca que os métodos podem até “ensinar os
mecanismos de base alfabética, mas deixam de ensinar o ato de escrever e de ler como
atos de autoria, de sujeitos protagonistas de sua formação.”

A alfabetização, a linguagem escrita em sua natureza gráfica...

Ao relatar seu processo tardio de aprendizagem da língua escrita Lucídio nos


conta que ele, ainda enquanto analfabeto, lembrava que a palavra/senha começava com
a letra ‘C’, e que a letra ‘A’ “aparecida várias vezes” na grafia da palavra (p. 79). Então,

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na tentativa de tentar descobrir qual era a sua senha, passou a procurar em jornais e
revistas as palavras que tivessem essas mesmas características, na tentativa de
identificar aquela ‘palavra mágica’. Nesse processo, ele grifava as palavras iniciadas
com a letra ‘C’, destacando-as das demais palavras.
Do relato dessa personagem do texto de Scliar, fica evidenciado que o autor
reconhece a natureza gráfica da língua escrita e que a aprendizagem da leitura e da
escrita deve partir de uma necessidade social real, prescindindo da ênfase dada pela
escola, ao longo da história da alfabetização no Brasil, aos aspectos sonoros das letras
como pré-requisito para a aquisição da escrita.
Foucambert (1997) registra o pensamento de Vygotisky que vem referendar o
que estamos afirmando:
A pesquisa mostra que a linguagem escrita, nos aspectos essenciais
de seu desenvolvimento, não reproduziu nada da história da
linguagem oral; mostra que a semelhança entre os dois processos diz
respeito mais à aparência externa que ao conteúdo. A linguagem
escrita não é tampouco a simples tradução da linguagem oral em
signos gráficos, e dominá-la não é simplesmente assimilar a
técnica da escritura [...]. (1997, p. 50) (Grifo nosso)

Lucídio, em sua simplicidade e desejo de se apropriar dos fundamentos da


linguagem que se escreve, nos mostra que a escrita é uma função verbal totalmente
diferenciada da língua oral, que na sua organização, estrutura e funcionamento é distinta
da oralidade. É uma linguagem que não possui entonação e nem a expressão que existe
naturalmente quando utilizamos a comunicação oral. É uma linguagem que acontece
dentro do pensamento e que prescinde do som material.
Ao aprender a ler Lucídio ganha muito mais do que a ‘palavra/senha’, ele ganha
também a ‘palavra’ que dá sentido ao seu mundo. Ele aprende a ler e a leitura é
compreensão, e essa compreensão ativamente responsiva é a atitude esperada pelo
autor de um texto do seu leitor (VOLÓCHINOV, 2017), da mesma forma que o leitor
espera encontrar, no texto escolhido, respostas que supram as suas necessidades que
o levaram até o texto. Vale lembrar aqui, que Lucídio foi motivado à busca pelas palavras
grafadas nos jornais e revistas. Somente uma atitude investigativa e respondente do
leitor pode enriquecer os sentidos dos textos e da vida.

Considerações finais
Ao analisarmos o livro A palavra mágica, de Moacyr Scliar, na relação que esse
texto estabelece com o analfabetismo e sua superação, pudemos verificar que a

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aquisição dos conhecimentos relativos a escrita e a leitura muda radicalmente a
perspectiva de vida da personagem de Lucídio, que deixa a condição de analfabeto
excluído e passa a considerar a leitura a sua salvação para o enfrentamento das
tristezas que sua história de vida lhe provoca. O poder de ler e de escrever passa a ser,
para tal personagem, como um ato de libertação e emancipação (FREIRE, 1989).
Lucídio se humaniza durante o processo de aquisição da escrita e ela o ajuda a se
libertar de uma solidão opressora.
Ao compreendermos a leitura como ação de investigar e atribuir sentidos, fica
ainda mais claro o processo de alfabetização que possibilitou a Lucídio aprender os atos
de leitura e de escrita. Os comportamentos/procedimentos/estratégias adotados por ele
com o objetivo de investigar sobre a ‘palavra/senha’, permite identificar um ato
investigatório de quem tem perguntas a fazer a um texto e necessidades de obter
respostas. Essa atitude permitiu que esse novo leitor adquirisse um pouco do poder que
a escrita proporciona de produzir uma visão ampliada do mundo.
Talvez ele não tivesse chance alguma de entender isso se tivesse se dedicado
a tentar adquirir uma técnica, centrando sua procura no estabelecimento da relação
entre grafemas e fonemas e não no aspecto gráfico da escrita, como historicamente tem
feito a escola brasileira.

Referências

ANÔNIMO. Livro das mil e uma noites – Vol 3. Trad. Mamede Mustafa Jarouche. São
Paulo: Globo, 2005.

ARENA, D. B. Leitura e locução. Leitura; teoria e prática. Campinas: Global, 2008.

______. Ensino e aprendizagem: perspectivas no campo da alfabetização. In: O uno e


o diverso na educação. Uberlândia: EDUFU, 2011.

______. Considerações em torno do objeto a ser ensinado: Língua, Linguagem Escrita


e Atos Culturais de ler e escrever. In: MORAES, D. R. S.; GUIZZO, A. R. Humanidades
nas Fronteiras: imaginários e culturas latino-americanas Edunioeste: Cascavel/PR,
2020
BAJARD. E. Ler e Dizer. Compreensão e comunicação do texto escrito. 6ed. São Paulo:
Cortez, 2014.

CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e literatura. In: A.C.R. Fester (Org.) Direitos
humanos E… Cjp / Ed. Brasiliense, 1989.

FERREIRO, Emília. (Org.) Os Filhos do Analfabetismo: propostas para a alfabetização


escolar na América Latina. 2ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

FOUCAMBERT, J. A criança, o professor e a leitura. Porto Alegre: ArtMed, 1997.

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________. Modos de ser leitor: aprendizagem e ensino da leitura no ensino
fundamental. Curitiba: Editora UFPR, 2008.

FREIRE, Paulo. A alfabetização de adultos – crítica de sua visão ingênua compreensão


de sua visão crítica. In: FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 5. ed., Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 11-20.

______. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo:
Autores Associados, 1989.

KLEIMAN, A. B. Histórico da proposta de (auto) formação: confrontos e ajustes de


perspectivas. In: Kleiman, A.B.; SIGNORINI et al. O ensino e a formação do professor:
alfabetização de jovens e adultos. Porto Alegre: Armed, 2000, p. 17-39

MORTATTI, M. R. L. Histórias dos métodos de Alfabetização no Brasil. Portal do MEC


(2006) disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/alf_mortattihisttextalfbbr.pdf. Acesso
em 15 ago. 2020.

SCLIAR, Moacyr. A palavra mágica. São Paulo: Moderna, 2007.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 4. ed. Belo Horizonte:


Autêntica, 2010.

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad.Sheila Grillo. São Paulo:


Editora 34, 2017

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FRAGOSAS BRENHAS DO MATARÉU, O IRMÃO QUE TU ME
DESTE E MEU JEITO CERTO DE FAZER TUDO ERRADO NO
ENSINO MÉDIO DA REDE ESTADUAL DE SÃO PAULO

Dayse Oliveira Barbosa, Universidade de São Paulo

Eixo temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender
Considerações iniciais:
Este trabalho visa à construção de sequências didáticas de Língua Portuguesa
fundamentadas em três obras literárias – Fragosas brenhas do mataréu, de Ricardo
Azevedo (2013), O irmão que tu me deste, de Carlos Heitor Cony (2013) e Meu jeito
certo de fazer tudo errado, de Klara Castanho e Luiza Trigo (2017) – que integram o
PNLD Literário direcionado ao ensino médio e estão compondo as salas de leitura das
escolas da rede estadual de São Paulo desde o segundo semestre de 2019.
Fragosas brenhas do mataréu, O irmão que tu me deste e Meu jeito certo de
tudo errado têm em comum protagonistas na faixa etária entre 15 e 17 anos realizando
escolhas cruciais, em momentos desafiadores de suas vidas, levando o leitor
adolescente a identificar-se com essas histórias e, portanto, instigando-o a aceitar mais
facilmente o desafio da leitura literária.
As sequências didáticas elaboradas a partir dessas três obras literárias têm por
objetivo elencar alternativas possíveis para formação do repertório de leitura literária
dos alunos do ensino médio da rede estadual de São Paulo, priorizando o
desenvolvimento da competência leitora e escritora dos estudantes. De acordo com a
Base Nacional Comum Curricular para o ensino médio:

A prática da leitura literária, assim como de outras linguagens, deve ser


capaz também de resgatar a historicidade dos textos: produção,
circulação e recepção das obras literárias, em um entrecruzamento de
diálogos (entre obras, leitores, tempos históricos) e em seus
movimentos de manutenção da tradição e de ruptura, suas tensões
entre códigos estéticos e seus modos de apreensão da realidade.
Espera-se que os leitores/fruidores possam também reconhecer na
arte formas de crítica cultural e política, uma vez que toda obra
expressa, inevitavelmente, uma visão de mundo e uma forma de
conhecimento, por meio de sua construção estética. (BRASIL, 2018,
p.513)

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Dessa forma, todas as atividades sugeridas neste trabalho primam pela leitura
integral das obras. Leitura essa que será orientada pelo professor, considerando as
características específicas de seus alunos e a necessidade de aprendizado deles.
Como todas as atividades realizadas em sala de aula na rede estadual de São
Paulo devem estar vinculadas ao Currículo, todas as sequências didáticas são voltadas
ao desenvolvimento de duas habilidades consideradas estruturantes pela Matriz de
Avaliação Processual da rede estadual paulista: Localizar informações explícitas e
inferir informações implícitas em textos literários.
Habilidades mais específicas que podem ser desenvolvidas a partir da análise
de cada obra literária serão especificadas em cada sequência didática proposta.
Para a elaboração dessas sequências didáticas, além de documentos
norteadores da educação básica, como BNCC, Currículo do Estado de São Paulo e
Diretrizes Curriculares Nacionais são consideradas as contribuições teóricas de Irandé
Antunes e Rildo Cosson.
Abaixo será apresentada uma breve análise de Fragosas brenhas do mataréu,
Meu jeito certo de fazer tudo errado, O irmão que tu me deste e a sequência didática
sugerida para o estudo dessas obras.
Fragosas brenhas do mataréu:
O protagonista, em primeira pessoa, não se identifica pelo nome. Percebe-se
ao longo do livro que se trata de um rapaz por volta de 16 anos.
A obra apresenta predomínio do tempo passado em todos os seus 29 capítulos.
A história se passa no século XVI (aproximadamente em 1560), época das Grandes
Navegações Portuguesas, ambientando-se em Portugal (dois primeiros capítulos) e
Brasil (demais capítulos).
A mãe do protagonista, Joana Machada, é presa pelo Tribunal do Santo Ofício,
acusada de bruxaria. Apesar de não serem apresentadas provas contra Joana
Machada, ela é condenada pelo Tribunal e morre no calabouço. Sozinho na vida, o
protagonista, por volta dos 16 anos de idade, é deportado para o Brasil. Das quase 200
pessoas que embarcam no mesmo navio que o rapaz, ele é o único que chega vivo à
costa brasileira, após inúmeras tormentas no Oceano Atlântico.
Completamente sozinho, sem qualquer expectativa de vida, profundamente
amargurado pela morte injusta da mãe, o protagonista dessa história desmaia durante
o naufrágio do navio que o transporta, é arremessado pela fortíssima maré a uma praia
da costa brasileira – dá a entender que se trata do litoral de São Paulo. Quando acorda,
ele se vê obrigado a começar a sua vida do “ponto zero”, criando as próprias
oportunidades para continuar sua jornada.
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O conflito apresentado da narrativa gira em torno da vida de um rapaz de 16
anos, completamente sozinho, em um país em que nada lhe é familiar. A vida do rapaz
é marcada por desventuras diversas, a pior de todas elas é: depois de ter escapado de
ser assassinado por uma tribo de indígenas canibais, ele retorna à vila em que viveu
durante alguns meses e descobre que Jurecê, a mameluca (descendente de índia com
português) por quem se apaixonou, foi vendida como escrava para um senhor que
detinha terras no Rio Grande do Norte.
No desfecho, o rapaz, apaixonado, parte rumo ao Nordeste, junto com dois
amigos, em uma aventura assustadora, à procura de Jurecê.
Percebe-se, nesta breve síntese, que o assunto principal do livro é a luta de um
jovem pela sobrevivência, sozinho, em um ambiente hostil como o Brasil do século XVI.
A partir desse assunto, o livro mostra aos leitores juvenis que a vida apresenta desafios
surpreendentes, os quais precisamos enfrentar para viver melhor.
É notável no livro a descrição da paisagem do século XVI no Brasil e o
vocabulário rebuscado. Como se trata de uma história que se passa na época da
chegada dos portugueses ao Brasil, todas as paisagens, o estilo de vida e os costumes
dos povos remontam ao Brasil Colônia. Para dar o tom de que é um jovem do século
XVI que está falando/contando sua história de vida, o narrador em primeira pessoa
utiliza um vocabulário que contribui para que o leitor se sinta em uma narrativa do Brasil
colonial.
Outro aspecto marcante na narrativa é a intertextualidade. Ricardo Azevedo
apropria-se de outros textos ao escrever o livro. Ele realizou uma ampla pesquisa para
compor essa narrativa, por isso, ao longo do livro são mencionadas cartas de
aventureiros que passaram pelo Brasil Colônia, bem como histórias da vida de santos
que superaram grandes desafios (como São Jorge, um dos mais citados pelo
protagonista) e também outros autores que se remetem à colonização brasileira em
suas obras, como Mário de Andrade.
A partir dessa apresentação da obra, é sugerida a sequência didática,
explicitada na tabela 1:

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Série Terceiro ano do ensino médio
Bimestre Terceiro bimestre
Conteúdos possíveis de Conhecimentos linguísticos e de gênero textual;
serem abordados por funcionamento da língua; lexicografia; intertextualidade
meio do livro (interdiscursiva, intergenérica, referencial e temática);
literatura modernista e tendências do pós-modernismo
Habilidades da Matriz de Identificar marcas linguísticas em textos do ponto de vista
Avaliação Processual do léxico; separar informações novas e antigas em um
possíveis de serem texto; reconhecer o efeito de sentido produzido pela
desenvolvidas por meio exploração de recursos ortográficos e/ou morfossintáticos;
do livro relacionar textos literários e o momento de sua produção,
considerando os contextos histórico, social e político
Atividade motivacional Tour virtual pelo Museu de Arte Sacra de São Paulo,
leitura compartilhada da carta de Pero Vaz de Caminha e
de relatos de viajantes do século XVI
Aspecto relevante na Intertextualidade com relatos de viajantes do século XVI,
análise da obra vidas de santos e poemas da primeira fase modernista,
sobretudo, Mário de Andrade
Mecanismo de avaliação Exercícios de escrita literária, para incentivar o jovem do
século XXI a refletir sobre o estilo de vida nos tempos do
Brasil colonial
Tabela 1: Sugestão de atividades referentes ao livro Fragosas brenhas do mataréu
Fonte: A própria autora

Meu jeito certo de fazer tudo errado:

O livro apresenta protagonista em primeira pessoa, Giovanna (Nanna, para


seus pais), adolescente por volta de 15 anos de idade, que sonha dedicar-se à carreira
de moda. O livro é narrado com o predomínio do tempo passado em todos os 25
capítulos e no epílogo.
A historia acontece na cidade de São Paulo, apresentando ao público cenários
considerados cartões postais da capital paulista, como Avenida Paulista e Parque do
Ibirapuera.

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A narrativa inicia-se com a decisão dos pais de Nanna mudarem-se de
Campinas, interior de São Paulo (aproximadamente 120 km. distante da capital do
estado), para a capital, em virtude da prosperidade da agência de modelos liderada pelo
casal. Nanna, única filha do casal, adolescente, é obrigada a realizar a mudança junto
com os pais, mesmo contrariada.
Longe dos primos com quem Nanna era acostumada a conviver, em uma
cidade muito maior do que Campinas, vendo os pais terem que trabalhar mais do que o
habitual para estabilizarem a agência deles, a adolescente sente-se muito sozinha.
Dessa forma, Nanna tenta relacionar-se com os colegas da escola, local onde ela passa
a maior parte do tempo.
Nanna estuda na mesma sala de Manuela, a garota mais popular do colégio.
Manuela é uma moça muito bonita, rica e manipuladora. Para aceitar Nanna em sua
turma, Manuela faz uma série de exigências (beber, fumar, colar nas provas, frequentar
baladas) para Nanna, que começa a se despersonalizar a fim de ser aceita pela turma
da Manuela.
Manuela divulga para toda a escola fotos de Nanna dançando funk,
completamente bêbada, em uma balada. Nanna é hostilizada pelos colegas do colégio
e a direção da escola intervém para punir Manuela.
Nanna começa a namorar Henrique, um rapaz de bons princípios, rompe seu
relacionamento com Manuela e inicia carreira de modelo fotográfica.
A historia revela a necessidade dos adolescentes de formarem seus “nichos
sociais” e apresenta a seguinte reflexão: Vale tudo para serem aceitos em determinados
núcleos e por certas pessoas?
A linguagem “solta”, muito próxima da linguagem oral dos adolescentes do
século XXI é uma das características mais interessantes da obra. Além disso, gêneros
característicos da comunicação contemporânea são frequentes no livro, como playlist
musical e conversa de whatsapp.
Além disso, o livro utiliza de variados recursos visuais, por exemplo, o início de
cada capítulo apresenta o desenho do figurino que a protagonista usará naquele
capítulo (figura 1), a comunicação dos personagens é marcada por “balões de fala”,
simulando o próprio design do celular (figura 2) e as subdivisões dos capítulos são
expressas por um cabide, fazendo referência ao sonho de Nanna estudar moda.
O desenvolvimento da narrativa apresenta ao público paisagens típicas da
capital paulista, por exemplo, os itinerários do metrô, a avenida Paulista (centro

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financeiro do estado de São Paulo) e o Parque do Ibirapuera, que confere à historia a
sensação de movimento e ajuda a captar a atenção do público jovem.

Figura 1: Visual de Nanna no capítulo 13


Fonte: Meu jeito certo de fazer tudo errado, 2018

Figura 2: Comunicação via whatsapp entre Nanna e os colegas de escola


Fonte: Meu jeito certo de fazer tudo errado, 2018

A partir dessa apresentação da obra, é sugerida a sequência didática


explicitada na tabela 2:

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Série Primeiro ano do ensino médio
Bimestre Quarto bimestre
Conteúdos possíveis de Leitura e expressão escrita; ethos e produção escrita;
serem abordados por intencionalidade comunicativa; construção da
meio do livro textualidade; relações entre estudos de literatura e
linguagem

Habilidades da Matriz de Relacionar estilo à construção do ethos do enunciador;


Avaliação Processual compreender a literatura como sistema social em que se
possíveis de serem concretizam valores sociais e humanos atualizáveis e
desenvolvidas por meio permanentes no patrimônio literário da língua portuguesa;
do livro reconhecer a presença de valores culturais e/ou sociais
e/ou humanos em contextos literários; estabelecer
relações lógico-discursivas presentes no texto por meio de
elementos de referenciação.
Atividade motivacional Debate sobre a série Confissões de adolescente (década
de 1990) e/ou da série Friends (segunda década do século
XXI)
Aspecto relevante na Valorização da interrelação verbal e visual na obra
análise da obra
Mecanismo de avaliação Roda de conversa, pois é uma narrativa que mobiliza
diferentes competências socioemocionais nos jovens
Tabela 2: Sugestão de atividades referentes ao livro Meu jeito certo de fazer tudo errado
Fonte: A própria autora

O irmão que tu me deste:

Alfredo, um rapaz de 17 anos, filho mais novo de uma família de classe social
elevada do Rio de Janeiro, é o narrador-protagonista de O irmão que tu me deste.
A narrativa é dividida em três partes (não são intituladas, são apenas
numeradas para situar o leitor), todas elas apresentam predomínio do tempo passado.

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A primeira parte do livro se passa na cidade do Rio de Janeiro. Nessa parte,
Alfredo narra sua infância, enfatizando as desavenças com o irmão mais velho, Alberto.
A segunda parte do livro se passa em Paris, durante um intercâmbio que Alfredo foi
realizar na capital francesa e acabou tendo um seríssimo envolvimento com drogas. A
terceira parte da obra se passa novamente no Rio de Janeiro. Nessa última parte é
narrada a vida de Alfredo e relacionamento dele com a família após o retorno de Paris.
Na infância, Alfredo começa a acreditar que é mais amado pela mãe do que
pelo pai, que, por sua vez, é mais próximo de Alberto, o filho mais novo. Como Alfredo
é mais velho do que o irmão, pensa que precisa protegê-lo de situações que julga
perigosas. Sem pedir auxílio dos adultos, Alfredo age por conta própria para proteger o
irmão e causa muitos transtornos à família.
Tentando isolar-se de seus problemas, sentindo-se rejeitado pela família,
Alfredo decide fazer intercâmbio em Paris. Apesar de a mãe discordar a princípio da
ideia de Alfredo, o pai o apoia e ele embarca para a capital francesa com o intuito de
estudar Arte.
Em Paris, Alfredo envolve-se com drogas, é acusado do assassinato de uma
moça. O pai de Alfredo é obrigado a retirá-lo da prisão e arcar com os procedimentos
para trazê-lo novamente ao Brasil.
No Brasil, Alfredo interna-se em uma clínica psiquiátrica, faz um rigoroso
tratamento para desintoxicação, aprende a lidar com seus conflitos e apaixona-se.
No desfecho da narrativa, o pai de Alfredo morre em decorrência de um infarto.
Despedindo-se do pai, Alfredo compreende a essência da vida.
O livro é dividido em três partes, similarmente aos três “atos cinematográficos”,
bem explicitados ao leitor. Isso facilita a compreensão da obra e intensifica o efeito de
sentido da narrativa.
É notável que o livro focaliza o relacionamento familiar na contemporaneidade,
enfatizando que o desenvolvimento afetivo e emocional do adolescente realiza-se nos
relacionamentos efetuados durante essa fase da vida, sobretudo, o relacionamento
familiar. O status social do adolescente não implica na construção de relacionamentos
saudáveis e equilibrados.
Alfredo apresenta-se nas primeiras páginas, ambientando o leitor na narrativa
e retorna à infância para evidenciar o relacionamento no núcleo familiar, especialmente,
o relacionamento dele com Alberto, a fim de que o público compreenda os
acontecimentos da segunda parte da narrativa.

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Como a obra é narrada em primeira pessoa, é como se o público
acompanhasse o protagonista em seus surtos provocados pelas drogas, inclusive, a
perda de controle gradual dele em relação à situação que está vivendo, chegando ao
ápice na prisão, acusado de assassinato.
A partir dessa apresentação da obra, é sugerida a sequência didática
explicitada na tabela 3:

Série Segundo ano do ensino médio


Bimestre Segundo bimestre
Conteúdos possíveis de O indivíduo e os pontos de vista e valores sociais;
serem abordados por interação entre elementos literários e linguísticos;
meio do livro concatenação de ideias; intencionalidade comunicativa;
funcionamento da língua (coesão e coerência com vistas
à construção da textualidade)
Habilidades da Matriz de Reconhecer diferentes elementos internos e externos que
Avaliação Processual estruturam o texto literário narrativo, apropriando-se deles
possíveis de serem no processo de construção do sentido; reconhecer o texto
desenvolvidas por meio literário como fator de promoção dos direitos e valores
do livro humanos; contextualizar histórica e socialmente o texto
literário; identificar a sequência lógica dos fatos em um
texto; determinar categorias pertinentes para análise e
interpretação do texto literário.
Atividade motivacional A partir da epígrafe do livro, pode-se realizar a leitura
integral do texto bíblico de Caim e Abel.
Aspecto relevante na A divisão bastante explícita do livro em três partes, que
análise da obra sistematiza a obra para o leitor, orientando as informações
mais significativas de cada trecho da vida do protagonista.
Mecanismo de avaliação Adaptação da obra para um curta-metragem
Tabela 3: Sugestão de atividades referentes ao livro O irmão que tu me deste
Fonte: A própria autora

Considerações finais:

Neste trabalho procurou-se evidenciar como é possível elaborar sequências


didáticas, tendo por base a matriz curricular da rede estadual paulista, a partir de obras

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do PNLD Literário, direcionado ao ensino médio, que estão compondo as salas de leitura
da rede estadual de São Paulo.
Em primeiro lugar, foi realizada uma análise sucinta de Fragosas brenhas do
mataréu, Meu jeito certo de fazer tudo errado e O irmão que tu me deste, ressaltando
elementos interessantes para serem abordados no estudo analítico de cada uma dessas
obras nas aulas de Língua Portuguesa.
Em segundo lugar, foi apresentada uma tabela com uma sugestão de
sequência didática referente a cada um dos livros abordados nesse trabalho. A tabela
apresenta os seguintes itens: série, bimestre, conteúdos possíveis de serem abordados
por meio do livro, habilidades da Matriz de Avaliação Processual possíveis de serem
desenvolvidas por meio do livro, atividade motivacional, aspecto relevante na análise da
obra e mecanismo de avaliação. As atividades para o desenvolvimento das sequências
didáticas ficam a cargo do professor, que é o profissional mais habilitado para
reconhecer quais atividades atendem melhor as necessidades de aprendizado de seus
alunos.
Acredita-se que foi possível demonstrar, a partir dessas sequências didáticas,
como é possível estabelecer nas aulas de Língua Portuguesa no ensino médio da rede
estadual de São Paulo um estudo analítico de obras literárias que são disponibilizadas
nas salas de leitura das próprias escolas estaduais.
Com isso, espera-se que esse trabalho contribua com a formação do leitor
literário na educação básica da rede estadual de São Paulo.

Referências:

ANTUNES, Irandé. Análise de textos – fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola


Editorial. 2010.

AZEVEDO, Ricardo. Fragosas brenhas do mataréu. São Paulo: Scipione, 2013.

BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio. Brasília: MEC/SEB, 2006.

______. Base Nacional Comum Curricular – ensino médio. Brasília: MEC/SEB, 2018.

CASTANHO, Klara & TRIGO, Luiza. Meu jeito certo de fazer tudo errado. São Paulo:
Arqueiro, 2017.

CONY, Carlos Heitor. O irmão que me deste. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2017.

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SÃO PAULO. Currículo do Estado de São Paulo: Linguagens, códigos e suas
tecnologias. São Paulo: SEE, 2010.

_________. Matriz de avaliação processual: língua portuguesa, linguagens. São Paulo:


SEE, 2016.

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O DESAFIO DE FORMAR E CONDUZIR LEITORES POR MEIO
DO CORDEL

Patrícia Rodrigues de Morais - Mestranda do Programa de Mestrado Profissional em


Letras da Universidade Estadual de Montes Claros - PROFLETRAS/2019, Bolsista da
CAPES
Maria Alice Mota - Professora do Departamento de Comunicação e Letras da
Universidade Estadual de Montes Claros - Doutora em Linguística pela UFMG

Eixo Temático 10: Educação literária, letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender.

Considerações iniciais

A escolha do objeto de pesquisa partiu da insatisfação com os resultados


obtidos pelos alunos da Escola Estadual Argemiro Antônio do Prado, Buritis (MG), nas
avaliações sistêmicas, entre elas o Sistema de Avaliação da Educação Básica
(Saeb) e o Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública (Simave), e também da
realidade percebida em sala de aula, como professora de Língua Portuguesa do Ensino
Fundamental em relação à leitura literária.
Notamos que, muitos alunos apresentam carências, principalmente no que se
referem ao domínio das habilidades necessárias para o pleno desenvolvimento da
competência comunicativa: Ler, escutar e produzir textos orais, escritos e
multissemióticos que circulam em diferentes campos de atuação e mídias, com
compreensão, autonomia, fluência e criticidade, de modo a se expressar e partilhar
informações, experiências, ideias e sentimentos, e continuar aprendendo. (BRASIL,
2017, p.85)
A leitura pode adentrar-se bem cedo na vida infantil, com histórias lidas em voz
alta pelos pais, cuidadores ou professores. O hábito da leitura é fundamental para que
a criança venha a se tornar um leitor hábil. E, a leitura um meio propício para ampliar o
vocabulário, enriquecer a expressão oral e escrita, despertar a sensibilidade estética e
o gosto pelos livros. A educação literária, daí decorrente, pode contribuir para a

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formação do imaginário da criança e de sua visão de mundo . (Inep 2014-2024, art. 5º,
PNE)
Estudiosos como Candido (2002) atribuem à literatura uma função formadora,
visto que ela contribui para o desenvolvimento de indivíduos emocionalmente e
psiquicamente equilibrados, conscientes de sua responsabilidade social e aptos a
posicionar-se criticamente em face de seu meio e de sua sociedade, caracterizada pela
circulação social de uma grande diversidade de informações.
A capacidade de ler e interpretar textos em múltiplas linguagens é
imprescindível. É um instrumento valioso para a apropriação de conhecimentos da
realidade, possibilitando a construção de sujeitos agentes e conscientes dos seus atos,
como também capazes de transformar o ambiente que os cercam. Em vista disso, o
trabalho desenvolvido com a Literatura, na sala de aula, permite a discussão desse
processo de construção dos saberes, além do prazer estético, da fruição,
consequentemente do desenvolvimento da autonomia leitora em um processo contínuo.
Sendo assim, estamos propondo um estudo que se intitula “O Desafio de
formar e conduzir leitores na escola por meio do Cordel”266, que tem como objetivo geral:
apresentar teórica e metodologicamente a Literatura de Cordel como instrumento
mediador para diminuir as dificuldades leitoras, bem como motivar, despertar nos alunos
o interesse, o gosto pela leitura, criando, consequentemente, possibilidades de esses
alunos desenvolverem habilidades para a leitura.
A poesia de Cordel utilizada nesta pesquisa servirá como um desafio para
motivar em nossos alunos a vontade de querer conhecer, apoderar-se de bens culturais
guardados pela escrita, descobrir outros mundos, perceber e buscar outras leituras que
“dialogam” com sua leitura da realidade. Acreditamos que a primeira caminhada do ser
humano como leitor inicia-se no âmbito familiar, quiçá no ventre de sua mãe aos ouvir
as primeiras histórias.
A nossa hipótese é a de que um trabalho interventivo com a Literatura
Cordelista, que é rica em possibilidades linguísticas e culturais, usando estratégias
metodológicas apropriadas, poderá constituir-se em um eficiente e importante
instrumento motivador para o desenvolvimento das habilidades leitoras dos alunos.
Para a realização deste estudo, tomaremos como aporte teórico, a abordagem
da leitura literária no Ensino Fundamental, BNCC (2017); a literatura como fonte de
humanização: Candido (1995), (2002), Antunes (2009), Cosson (2014) e Jouve (2012);

266
Recorte da dissertação em andamento: “A Literatura de Cordel como instrumento mediador
na formação de leitores”, orientada pela Profa. Dra. Maria Alice Mota.
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a contribuição da leitura literária na formação de leitores: Solé (1998), e no tocante à
Literatura de Cordel, os estudos de Pinheiro (2007). Quanto à metodologia, para o
desenvolvimento deste estudo, usamos pressupostos teórico-metodológicos da
Linguística Aplicada de MOITA LOPES (1996), uma vez que o estudo será desenvolvido
por meio da pesquisa-ação GARCEZ e SCHULZ (2015) visando à metodologia de
abordagem qualitativa.
.
Uma breve síntese da história do Cordel até a BNCC

Em 2018, o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico


Nacional (Iphan) outorgou o título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro à Literatura
de Cordel. O contexto social, histórico e geográfico do surgimento do Cordel são centrais
para entendermos a importância de usá-lo como ferramenta pedagógica na sala de aula.
No Brasil, esse estilo de produção literária esteve presente desde o tempo da Colônia e
sofreu influencia da poética dos índios, das histórias e tradições africanas, dos vaqueiros
e tropeiros. Caracteriza-se por ser uma forma popular e brasileira de expressão literária
que se fixou fortemente no Nordeste do Brasil.
Desde o início, o Cordel fez parte da vida dos nordestinos que viviam no campo
e dependiam da lavoura ou do comércio em pequenas cidades. A criação do Cordel se
distingue de outras formas de poesia oral, tal como a peleja e os desafios, que são
cantados pelos repentistas, com forte componente de improviso. Não há uma técnica
única para impressão dos folhetos. Geralmente a ilustração da capa é feita em
xilogravura (impressão em madeira). Os folhetos são vendidos em praças, feiras, mas
também em algumas livrarias e bancas de jornal. Em alguns lugares, mantém-se a
tradição de apresentá-los presos a um cordão, como uma espécie de varal. O ensino do
Cordel, portanto, propicia o contato dos estudantes com essa importante manifestação
da cultura popular.
Segundo Pinheiro (2007), levar a Literatura de Cordel à escola significa motivar
o aluno a conhecer mais da formação cultural de nosso povo, pois o Cordel, com os
seus temas, não narra somente a ficção, mas também fatos reais, que retratam o
cotidiano e a realidade vivida pelo povo, por isso é um importante instrumento no
processo de incentivo à leitura.
Nas últimas décadas, houve um esforço das instituições oficiais como o
Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) em
fazer modificações importantes no ensino do país. A Base Nacional Comum Curricular

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(BNCC), de 2017 é outro importante documento que norteia o currículo das escolas
brasileiras. Suas diretrizes definem as aprendizagens essenciais para o ensino de modo
geral e estabelece objetivos, competências específicas e habilidades a serem
desenvolvidas em cada componente curricular. Os documentos oficiais que orientam o
ensino de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental defendem que, quanto mais os
alunos tiverem a oportunidade de vivenciar práticas em que a leitura e a escrita estejam
presentes, maiores serão as possibilidades de esses alunos aumentarem o nível de
letramento e o repertório cultural.
Entre essas possibilidades, destacamos Solé (1998), com a proposta de leitura
compartilhada dos textos. Segundo a autora, esse tipo de leitura permite ao professor
envolver melhor os alunos na construção de sentidos para que eles se apropriem de
saberes. Apresentar a eles um mundo novo presente na leitura, a partir de um trabalho
diferenciado com letramento literário em sala de aula, especificamente com a literatura
de Cordel, poderá proporcionar uma leitura enriquecedora, a qual contribuirá para tornar
o ato de ler prazeroso e significativo, o que certamente permitirá a formação de
habilidades leitoras e escritoras.
Na BNCC, acreditamos que o Cordel pode, perfeitamente, fazer parte dessas
manifestações artísticas propostas nas competências específicas de Linguagens, sendo
possível inferirmos uma chamada para este gênero literário e suas características.

Desenvolver o senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as


diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais,
inclusive aquelas pertencentes ao patrimônio cultural da humanidade,
bem como participar de práticas diversificadas, individuais e coletivas,
da produção artístico-cultural, com respeito à diversidade de saberes,
identidades e culturas (BRASIL, 2017, p. 63).

A Literatura, no documento, está associada à formação de leitores-fruidores. O


ato de fruir, no documento, “refere-se ao deleite, ao prazer, ao estranhamento e à
abertura para se sensibilizar durante a participação em práticas artísticas e culturais”. A
reflexão, promovida pelas fruições, envolve a construção de argumentos e
considerações. Ou seja, o fruidor, enquanto leitor e escritor é capaz de avaliar,
decodificar e compartilhar das diversas manifestações artísticas e culturais com respeito
às diversidades de saberes, identidades e culturas.
Destacamos também as habilidades específicas de Língua Portuguesa do
Ensino Fundamental a seguir: (EF12LP05) Planejar e produzir, em colaboração com os
colegas e com a ajuda do professor, (re)contagens de histórias, poemas e outros textos

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versificados (letras de canção, quadrinhas, cordel), poemas visuais, tiras e histórias em
quadrinhos, dentre outros gêneros do campo artístico-literário, considerando a situação
comunicativa e a finalidade do texto e (EF03LP27) Recitar cordel e cantar repentes e
emboladas, observando as rimas e obedecendo ao ritmo e à melodia, onde
compreendemos que o processo de formação de alunos leitores deve ser contínuo e
prazeroso.
Desse modo, percebemos que a BNCC procura estabelecer diretrizes que
possam auxiliar os alunos a serem capazes de compreender que as manifestações
populares constituem um importante condutor no campo de atuação artístico-literário
com o objetivo de despertar o interesse pela leitura através de técnicas diversificadas.
A Literatura de Cordel, conforme evidenciamos, é mencionada na BNCC como um
gênero a ser estudado com os alunos. Esse gênero literário oferece um material
acessível, uma vez que as tradições orais são muito importantes para a construção das
civilizações.
Candido (1988) afirma que o acesso à literatura é um direto de todos e, por
isso, deve ser estendido a todos. De acordo com o autor:

[...] a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de


coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da
cultura. A distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve
servir para justificar e manter uma separação iníqua, como se do ponto
de vista cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis,
dando lugar a dois tipos incomunicáveis de fruidores. Uma sociedade
justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e
da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito
inalienável (CANDIDO, 1998, p. 193).

Para o autor, a literatura é chamada, da maneira mais ampla possível, todas as


criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis da sociedade, em
todos os tipos de cultura, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita
das grandes civilizações. Portanto, a leitura de textos literários constitui, segundo este
autor, uma questão de direitos humanos, que, uma vez atendidos, acrescentam ao
indivíduo a garantia do acesso ao conhecimento, à capacidade reflexiva, ao
aprimoramento da sensibilidade e à compreensão da complexidade da natureza
humana.
Barthes (2008) evidencia a literatura não como um corpo ou uma sequência de
obras, nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas como o resultado complexo
da prática de escrever. Ainda segundo o autor, a literatura faz girar os saberes, por isso
ocupa um lugar precioso no processo de conhecer. Para o escritor, a literatura mobiliza

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saberes históricos, geográficos, sociais, antropológicos, mas sem se fixar em qualquer
um deles, tampouco sem enaltecer um em detrimento de outros. A literatura atua sobre
os indivíduos, formando-os pela convergência do conhecimento, da sensibilidade e da
ética.
Dentro desse ponto de vista, Antunes (2009) reitera a ideia de organização e
equilíbrio social por meio da literatura. Para ela:

A leitura nos dá o poder de emersão, nos confere o poder de enxergar


e perceber o que nos circunda, a fim de, como cidadãos, assumirmos
nossos diferentes papéis na construção de uma sociedade que
respeite a lógica do bem coletivo e dos valores humanos (ANTUNES,
2009, p. 193).

Nessa perspectiva, Jouve (2012) diz que os estudos literários só podem ter
validade se resultarem em algo útil para a sociedade e que, por isso, é preciso mostrar
que ele enriquece nossa compreensão de mundo e nos esclarece sobre a nossa
realidade. Ele ressalta o papel imprescindível dos estudos literários porque eles
participam da consciência daquilo que somos e incidem sobre a formação do espírito
crítico, motor de toda evolução cultural.
Pensando na literatura de Cordel como cultura, como um direito essencial do
aluno, como forma de promover o incentivo à leitura como experiência de prazer e a
formação do leitor literário, acreditamos que este gênero literário seja uma das mais
ricas expressões da cultura popular brasileira, oferecendo muitas oportunidades de
ensino para os educadores e sendo uma aliada importante no desenvolvimento do
interesse dos alunos para a leitura.
Assim, a literatura, como meio para a organização social, garante a formação
de cidadãos conscientes e humanizados, gerando uma sociedade que busca o bem
comum, que valoriza o homem como detentor de direitos e não apenas como mero
coadjuvante dos acontecimentos sociais. Também, é por meio da literatura, que
podemos nos encontrar, visto que a nossa formação é influenciada por ela, formamos
nossa identidade e expressamos o que sentimos.

Procedimentos metodológicos da etapa investigativo – diagnóstica

O local da pesquisa é a Escola Estadual Argemiro Antônio do Prado, que está


situada no Município de Buritis – Minas Gerais. Os participantes fazem parte de uma

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turma do 6º ano com 25 alunos. A filosofia da escola é desenvolver projetos que
estimulam a participação e a interação dos alunos com o intuito de despertar o senso
crítico e criativo dos educandos.
Neste ambiente, surgiu o projeto “O desafio de formar e conduzir leitores por
meio do Cordel”, que visa ampliar o conhecimento dos alunos a respeito do Cordel. A
coleta de dados ocorreu através de questionários, de depoimentos escritos pelos alunos
a respeito das obras e por meio de análise das produções escritas e de intervenções
orais. A percepção de receptividade das atividades propostas será analisada e avaliada
durante todo o processo.
A turma selecionada foi o 6º ano B da Escola Estadual Argemiro A. do Prado. Os
alunos matriculados perfazem um total de 25 alunos, com idades que variam entre 09 a
14 anos. Vieram de escolas públicas da região e, como inicialmente não eram
conhecidos seus hábitos de leitura, foi realizada uma pesquisa que teve a função de
qualificar o público alvo, envolvendo a faixa etária e hábitos de leitura.
Os gráficos abaixo mostram uma pesquisa realizada de fevereiro a março de
2020.

Gráfico 1 - Os hábitos de leitura


Hábitos de leitura

19% Gostam de ler

50% Não gostam de ler


31% Gostam mais ou menos de ler

Fonte: A própria autora, 2020.

Os dados revelam que 19% dos alunos gostam de ler, 50% gostam mais ou
menos e 31% não gostam. Um número significativo de alunos não gosta de ler e esse
dado é um desafio a ser superado.

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Gráfico 2- O que influencia a leitura literária dos alunos

O que influencia a leitura literária dos alunos

Adora ler
40% 32% É incentivado pelos pais
É incentivados pelos colegas
16% É exigência do professor

12%
Fonte: A própria autora, 2020.

Percebemos que, quanto ao que motiva os alunos para a leitura, que 32% alunos
declararam que adoram ler, enquanto que 40% dos estudantes revelam que leem por
exigência do professor, um número bastante significativo. Apenas 16% dos jovens
declararam ser influenciados pelos pais e 12% são incentivados por colegas. A literatura
aparece muito pouco nas conversas entre os discentes.

Gráfico 3 – Frequência de leitura literária

Frequência de leitura literária

40% 28% Diariamente


Só quando o professor pede
Preferem outros hábitos à leitura literária
32%

Fonte: A própria autora, 2020.

Evidenciamos também que, dentre esses alunos, 28% da turma leem


diariamente, enquanto que 32% dos estudantes fazem isso somente quando o professor
solicita. O que mais nos preocupou foi o fato de 40% de esses jovens preferirem outros
hábitos à leitura. Isso significa que o hábito de leitura literária, na maioria dos alunos,
não é contínuo.

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Gráfico 4 – Gênero literário preferido

Gênero literário preferido

Clássicos infantis
4% Poemas
12%
32% Nenhum
8%
Revistas Turma da Mônica
16% Histórias de terror
28% Romance

Fonte: A própria autora, 2020.

No tocante ao gênero literário preferido, a maioria 32% declarou ter predileção


por clássicos infantis, mas uma parcela também significativa, 28% dos alunos, apontou
a poesia como gênero preferido. Enquanto que 16% dos alunos disseram não ter
predileção por nenhum gênero, 8% destacaram os gibis da Turma da Mônica, o romance
interessou a 12% dos estudantes e um pequeno grupo 4% mostrou gostar de histórias
de terror.
Fica perceptível que os gêneros que mais agradam aos alunos são os clássicos
infantis e as poesias. Sendo assim, mesmo estando em segundo lugar, optamos por
fazer um trabalho com as poesias de Cordel, uma vez que abordaremos uma
ressignificação deste gênero, visto que foi possível visualizar vários Clássicos Infantis
neste formato.
A partir do diagnóstico, percebemos a importância de um trabalho envolvendo o
Cordel na sala de aula, com vistas à formação de um leitor proficiente. Diante disso,
apresentamos a leitura de poemas e Clássicos Infantis em formato de Cordel, em sala
de aula. E, também, nos propusemos a conquistar essa clientela, ou parte dela, de 16%
que não tinham preferência por nenhum gênero literário.

A Sequência Didática proposta

De acordo com Cosson (2014, p. 47), é necessário que o ensino da Literatura


efetive um movimento contínuo de leitura, que vai do conhecido para o desconhecido,
do simples para o complexo, do semelhante para o diferente, tudo com o objetivo de
ampliar e consolidar o repertório cultural do aluno. A seleção das obras e as práticas de
sala de aula devem acompanhar esse movimento. A leitura exige motivação, objetivos
claros e estratégias.

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A finalidade das atividades é apresentar teórica e metodologicamente (Caderno
Pedagógico) a Literatura de Cordel como instrumento mediador para sanar ou minimizar
as dificuldades leitoras apresentadas pelos alunos do 6.º ano B do Ensino Fundamental
da Escola Estadual Argemiro Antônio do Prado, na cidade de Buritis (MG), como
também motivá-los e despertá-los para a leitura numa perspectiva de conhecimento da
cultura identitária local e regional e contribuir para a formação de um leitor proficiente.
Após a apresentação e exploração de textos e leituras de Cordéis, proporemos
um estudo sobre essa temática. A sugestão será que, após a pesquisa, os alunos
selecionarão apenas quatro clássicos para desenvolver o trabalho em 4 módulos
articulados em círculos de leitura, ampliando os níveis ao longo do desenvolvimento das
atividades.

Considerações finais

Faz-se necessário, um trabalho diferenciado nas aulas de Língua Portuguesa,


através de ações inovadoras, dinâmicas e interativas que modifiquem o trabalho do
professor e aprendizagem dos alunos, um trabalho que possibilite e amplie as
habilidades de leitura e da escrita. Acreditamos no trabalho com o Gênero Cordel na
escola. A sua simplicidade faz com que os relatos sobre eventos históricos, artísticos e
folclóricos ganhem destaque em versos destituídos de formalidade, para alcançar uma
linguagem apropriada de interação com os discentes sobre assuntos importantes e
diversos. Defendemos o trabalho com o Cordel no contexto escolar como um meio de
propiciar o acesso da literatura na formação de leitores comprometidos com a sociedade
de que fazem parte. Esperamos contribuir para que outros professores busquem
incentivos na Literatura de Cordel para que esse gênero não se perca no tempo.

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em < http://www.ablc.com.br/>. Acessado em junho de 2020.

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CANDIDO, A. “O ensaio O direito à literatura”, in: Vários escritos. 3ª ed. revista e


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COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.

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JOUVE, Vicent. Por que estudar literatura? Tradução de Marcos Bagno; Marcos
Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2012. p. 133-162.

MARCONI, M. A; LAKATOS, E. M. Fundamentos de Metodologia Científica. São Paulo:


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SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. Ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 194.

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MORTE E VIDA SEVERINA: PRÁTICA DE LEITURA LITERÁRIA
EM SALA DE AULA COM ALUNOS DO 9º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL267

Gleicy Moraes Santos, UNIFESSPA, CAPES.


Patrícia Aparecida Beraldo Romano, UNIFESSPA.

Eixo Temático: 10: Educação literária, letramento literário, formação e mediação


de leitores literários: entre caminhos do saber/ aprender.

Considerações iniciais – Morte e vida severina: prática de leitura literária


em sala de aula com alunos do 9º ano do ensino fundamental

A leitura é um tema sempre em discussão quando se trata de ensino e


aprendizagem. As nossas práticas sociais exigem que sejamos leitores, pois estamos a
todo momento envolvidos em eventos de letramentos que requerem diferentes práticas
de leitura.
Em nosso cotidiano de sala de aula, observamos que nossos alunos precisam
desenvolver tais práticas, porém muitos ainda terminam o ensino fundamental sem
conseguir fazer leituras que ultrapassem a superficialidade da decodificação escrita. Por
isso, vemos a importância de diversas práticas de leituras que possibilitem a formação
do aluno como sujeito leitor. Nesse sentido, o texto literário se mostra como uma
possibilidade de prática de leitura em sala de aula que pode ajudar na formação de
leitores.
Esse trabalho é parte de nossa pesquisa de mestrado, cujas ações foram
desenvolvidas na Escola José Manuel de Araújo, em Tailândia/PA. E elas surgiram da
inquietação quanto às dificuldades apresentadas por nossos alunos na leitura de

267
Título da pesquisa original: Morte e Vida Severina e as práticas de letramento literário na
EMEF José Manuel de Araújo, em Tailândia/PA. Orientado pela Profª Drª Patrícia Aparecida
Beraldo Romano
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diversos textos, especialmente o texto literário que não era uma prática comum em sala
de aula. Nosso objetivo geral foi o de promover o letramento literário por meio da obra
Morte e Vida Severina. Para isso, buscamos incentivar a leitura literária a partir da
prática de estratégias de leitura e interpretação.
Escolhemos essa obra por acreditarmos que se trata de um texto que possibilita
a leitura literária como atividade social, permitindo várias possibilidades de leituras e
discussões de questões sociais presentes no poema. Além disso, permite-nos ver a
literatura em seu caráter humanizador.
A obra Morte e Vida Severina, por apresentar caráter universal, traz-nos
questões sociais e regionais que dialogam com as nossas de Tailândia, no Pará, como
as lutas pela posse da terra, a violência constante desde o início da formação da cidade.
Essas questões são relevantes para discussões em sala de aula, tendo em vista que as
condições vividas pelo personagem Severino podem ser relacionadas à realidade de
muitos brasileiros, como ocorre com a nossa.
As atividades de letramento literário foram elaboradas, inicialmente,
considerando a sequência básica proposta por Cosson (2009): motivação, introdução,
leitura e interpretação, com leituras por meio de oficinas, conforme as estratégias de
leitura apontadas por Girotto e Souza (2010), sobre a obra Morte e Vida Severina. Além
desses autores, outros constituem nosso quadro teórico, tais como: Kleiman (2008) e
Jouve (2002).
As atividades de leitura da obra de João Cabral de Melo Neto foram
direcionadas aos alunos do 8º e 9ºano do ensino fundamental a partir de práticas de
leitura que os auxiliaram na compreensão de Morte e Vida Severina. Porém, neste
artigo, apresentaremos apenas a discussão sobre os resultados obtidos com a prática
de leitura desenvolvida com o 9º ano.
Como já mencionado, esse trabalho é um recorte de nossa dissertação de
mestrado. Trata-se, portanto, de uma pesquisa-ação de abordagem qualitativa, através
de pesquisa de campo e bibliográfica. Conforme Thiollent (2011, p. 75), na pesquisa-
ação, na educação, “uma capacidade de aprendizagem é associada ao processo de
investigação”. Nesse sentido, a pesquisa possibilitou a prática de leitura do texto literário
que contribuiu para o aprendizado dos alunos.

A leitura literária em sala de aula


A presença do texto literário em sala de aula não é exatamente uma novidade.
Porém a maneira como é apresentado aos alunos ou a forma como os trabalhos são

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desenvolvidos, muitas vezes, se constitui como uma barreira para a leitura literária na
escola.
Mas como trabalhar o texto literário em sala de aula sem utilizá-lo como
pretexto para outras atividades? Existem algumas sugestões de trabalho que possamos
seguir para que o ensino de literatura ou da leitura literária em sala de aula seja mais
lúdico? Tais questões ainda nos inquietam, pois sabemos que não há uma receita que
nos diga a maneira correta de se desenvolver atividades de leitura que sempre darão
certo. No entanto, não podemos nos acomodar com as dificuldades, mas sim buscar
meios que possibilitem a leitura literária em sala de aula de forma significativa aos
alunos.
Segundo Cosson (2009, p.47), “As práticas de sala de aula precisam
contemplar o processo de letramento literário e não apenas a mera leitura das obras. A
literatura é uma prática e um discurso, cujo funcionamento deve ser compreendido
criticamente pelo aluno”. Nesse sentido, não basta levar o texto literário para sala de
aula, precisamos também ajudar os alunos a refletirem, a pensarem criticamente sobre
o que leem.
Considerando as dificuldades apresentadas por diversos alunos na
compreensão de textos, há necessidade de práticas de estratégias de leitura que
contribuam para a leitura do texto literário. As oficinas de leitura em sala de aula são
uma forma de praticar tais leituras.
Sobre oficina de leitura, Cosson (2009, p.48) diz que “Sob a máxima do
aprender fazendo, ela consiste em levar o aluno a construir pela prática seu
conhecimento”. Assim, as práticas de leitura em sala de aula por meio de oficinas
possibilitam a aprendizagem com o texto literário. Girotto e Souza (2010) apontam a
leitura em sala de aula por meio de práticas de estratégias de leitura que auxiliam na
aprendizagem.
Segundo Cosson (2017, p.46), a nossa capacidade de leitura é desenvolvida
quando lemos, mas “Lendo de maneira formativa”. A partir dessa perspectiva,
consideramos que o trabalho em sala de aula com o texto literário pode ser feito partindo
de práticas de estratégias de leitura, organizadas em oficinas. Cosson (2009) propõe a
prática de uma sequência básica de leitura do texto literário. Essa sequência básica está
organizada da seguinte maneira: motivação, introdução, leitura e interpretação.
Cada prática nessa sequência corresponde a uma etapa de leitura. É claro que
não podemos desvincular uma da outra, visto que a leitura é um processo contínuo.
Porém, é uma maneira de organizarmos as oficinas que nos auxiliam a praticar leituras.

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A respeito das estratégias de leitura, Kleiman (2008) diz que o seu ensino não
é incoerente se considerarmos o desenvolvimento tanto das estratégias quanto das
habilidades linguísticas, mas que não são suficientes para a leitura. Para ela,
Quando falamos de ESTRATÉGIAS DE LEITURA, estamos falando de
operações regulares para abordar o texto. Essas estratégias podem
ser inferidas a partir da compreensão do texto, que por sua vez é
inferida a partir do comportamento verbal e não verbal do leitor, isto é,
do tipo de resposta que ele dá a perguntas sobre o texto, dos resumos
que ele faz, de suas paráfrases, como também da maneira como ele
manipula o objeto: se sublinha, se apenas folheia sem se deter a parte
alguma, se passa os olhos rapidamente e espera a próxima atividade
começar, se relê (KLEIMAN, 2008, p. 49).

Vemos, portanto, que a leitura está relacionada à relação texto/leitor, leitor/


texto. Neste sentido, a leitura literária em sala de aula é uma prática necessária que se
estabelece a partir da relação entre o aluno e o texto literário.
Sobre essa interação texto/leitor, Jouve (2002, p.61) diz que “A leitura, de fato,
longe de ser uma recepção passiva, apresenta-se como uma interação produtiva entre
o texto e o leitor. A obra precisa, em sua constituição, da participação do destinatário”.
A prática de leitura em sala de aula permite essa interação.
As atividades de leitura desenvolvidas com a obra Morte e Vida Severina, como
poderemos ver a seguir, mostram que os alunos não receberam o texto de forma
passiva, mas agiram sobre ele, refletiram criticamente sobre o texto e o mundo à volta
deles. O texto literário, portanto, possibilita o letramento literário dentro e fora do
ambiente escolar.
Não podemos esquecer que o gosto pela leitura também deve ser considerado
ao iniciarmos práticas de leitura literária, pois a leitura será mais significativa se
propusermos textos de que os alunos gostem. Sobre isso, Ferrarezi Jr. (2017, p. 25) diz
que “o desenvolvimento do gosto pela leitura também passa pela dimensão estética. É
“‘pelo gosto que criamos o gosto’, diziam os antigos”. Então é pela leitura do que
gostamos que aumentamos o gostar de ler. É pela prática de leitura de textos literários
que atraiam os alunos que eles poderão desenvolver o gosto por esse hábito.
É claro que não podemos pensar na leitura literária apenas para desenvolver o
prazer de ler. Conforme Jouve (2012), ensinar o prazer estético é impossível e inútil,
pois é algo que acontece naturalmente quando nos deparamos com qualquer objeto,
por exemplo, que nos chama a atenção, “para experienciá-lo ninguém tem necessidade
da mediação de um ensino” (JOUVE 2012, p. 134). O que não significa que não
devemos motivar nossos alunos ao gosto pela leitura.

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Por isso, a proposta de sequência básica do Cosson (2009) pode contribuir
para desenvolver o prazer por essa prática, visto que começa com uma atividade de
motivação, e também se constitui como uma ação que permite uma leitura crítica do
texto literário.

Morte e vida severina: prática de leitura em sala de aula do 9ºano


As atividades de leitura desenvolvidas com os alunos do 9º ano do ensino
fundamental ocorreram em 2019, entre os meses de outubro e novembro. Para
alcançarmos o objetivo da pesquisa proporcionamos aos alunos, por meio das práticas
de leitura, a reflexão sobre o texto literário em estudo e o contexto social deles e da
região em que eles vivem.
A primeira etapa de leitura com a turma MF901 foi uma oficina com atividades
em grupo, o que Cosson (2009) chama de motivação seguida da introdução que, nesse
caso, foram feitas em uma única oficina para que os alunos fossem motivados e
tivessem uma noção prévia do texto que iriam ler.
Iniciamos com a apresentação da oficina, objetivos e o livro oferecido aos
alunos. Levantamos a discussão com eles sobre o título e o que é um auto de natal.
A discussão foi mediada por meio de questionamento a respeito do nome
“Severino” e sua relação com a palavra morte. Também pedimos hipóteses para o
porquê de o título não ser vida e morte severina. Entre as respostas, falaram que
“severina” é um adjetivo que tem origem no nome do personagem Severino. Por isso,
caracteriza a vida de sofrimento acompanhada pela morte a todo momento.
Etapas:
- Aula introdutória
Após a apresentação, dividimos a turma em cinco grupos para pesquisarem e
discutirem em sala de aula sobre: o título, resumo da obra, o autor, a seca no Nordeste
nas décadas de 40 e 50 e o que é auto com a letra u. Os alunos tiveram 15 minutos
para a pesquisa no Google por meio do celular e discutiram entre si. Em seguida, cada
grupo fez apresentação oral de sua pesquisa e discussão em grupo para toda a turma.
Assim puderam falar o que encontraram e levantar questionamentos aos demais
colegas de outros grupos.
Nessa etapa os alunos foram bem participativos e, embora alguns tenham
encontrado dificuldades durante a pesquisa, conseguiram apresentar uma visão geral
ou mesmo estabelecer hipóteses sobre o que iriam encontrar na obra de João Cabral.

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A primeira equipe a se apresentar trouxe novamente a discussão sobre o título
da obra. Para o grupo, “Morte e Vida Severina pode significar uma vida severa, onde
quem a vivenciou sofreu muito com as circunstâncias que apareciam no seu dia a dia,
morte ...” (Informação verbal268).
O segundo grupo apresentou um resumo explicativo da obra, com base em
pesquisa no Google, pois ainda não haviam lido o texto. E, à medida que falavam da
obra, faziam suas considerações sobre o que compreenderam se tratar o poema de
João Cabral.
A apresentação seguinte foi a do terceiro grupo a respeito do autor de Morte e
Vida Severina. A equipe expôs à turma quem foi João Cabral de Melo Neto,
apresentando uma breve biografia e a importância do autor para a poesia brasileira,
bem como seu destaque no exterior a partir da obra Morte e Vida Severina. Os alunos
se demonstraram participativos até essa etapa, e mesmo nervosos na apresentação
pareciam seguros, pois fizeram a pesquisa e conversaram entre si sobre o autor.
O quarto grupo discutiu sobre a questão da seca nas décadas de 40 e 50.
Durante a pesquisa tiveram dificuldade para achar informações específicas sobre o
assunto e sobre a região nordestina nesse período, mas não deixaram de falar sobre a
respeito da proposta. Fizeram então uma explanação geral sobre o assunto e buscaram
contextualizar com a situação da região nordestina e a diferença entre ela e a nossa
região, fazendo paralelo também com a obra.
Falaram-nos, ainda, sobre a questão da migração de nordestinos para a nossa
região por causa da seca, pois segundo eles, no sertão nordestino não havia como
plantar.
Aluno: “Por que muitos migravam pra cá? Por causa da seca, porque não
tinham como plantar, o grande problema era que a grande seca os impedia de plantar
e, assim, também de comer. É isso que trazia as pessoas pra cá também”. (informação
verbal269).
Aluna: “E como todos nós sabemos aqui no Norte tinha mais facilidade de
plantar e colher frutos bons. E lá não, chovia uma vez por ano, não era como aqui que
quase todo mês chove, não fica eu acho nenhum mês sem chover, deve ficar sim, mas
só na parte do verão. Por isso eles migravam pra cá”. (informação verbal 270).

268
Apresentação oral. Aluna apresentando pesquisa e discussão em grupo sobre o título da
obra. Dados da pesquisa realizada na Escola José Manuel de Araújo, em 2019, Tailândia-PA.
269
Atividade de exposição oral.
270
Exposição oral. Dados da pesquisa aplicada com alunos da turma MF 901 da Escola José Manuel de
Araújo, em 2019.
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No que se refere à relação que fizeram com a obra, disseram que no texto
muito se falava sobre a seca que existia no Nordeste. Então entenderam que Morte e
Vida Severina é uma vida difícil como a vida de muitos nordestinos que até amanheciam
mortos por causa da seca. Por isso a necessidade de saírem de sua região.
O quinto grupo apresentou a pesquisa sobre o que é um auto com letra u. Essa
equipe apresentou dificuldades para falar sobre o assunto. E, nas suas pesquisas, não
considerou a origem da palavra “auto” para poder relacionar ao auto de natal,
mencionaram apenas o uso da palavra em processos judiciários. Assim houve a
necessidade de explicarmos o sentido da palavra e o porquê de a obra ser considerada
um auto.
Finalizamos essa etapa com a última apresentação, com duração total de duas
aulas de 45 minutos. A etapa seguinte foi a leitura de Morte e vida Severina.
- Leitura da obra
Iniciamos a atividade com uma prática guiada. Assim, fizemos a leitura, em voz
alta, da apresentação do personagem: o retirante explica ao leitor quem é e a que vai,
e a cena seguinte: encontra dois homens carregando um defunto numa rede, aos gritos
de: “Ó irmãos das almas! Irmãos das almas! Não fui eu que te matei não!”
À medida que íamos lendo o poema fazíamos questionamentos aos alunos
sobre o texto. Tais como: o que vocês acham que quer dizer “não tenho outro nome de
pia”, o que pode significar a palavra “pia” no poema? Várias respostas foram dadas,
uma das alunas, por exemplo, explicou que pia estava relacionada ao batismo, então
Severino não tem outro nome de batismo, de nascimento.
No decorrer da leitura, buscamos instigá-los a pensarem sobre as questões
sociais presentes no poema e relacioná-las com a região em que moram,
Tailândia/Pará. Assim, discutimos sobre os conflitos por posse da terra no período de
formação de Tailândia, as mortes constantes no poema e nessa região pela mesma
motivação, além de contextualizar a obra com questões atuais, refletindo sobre: quem
são os Severinos hoje?
É importante ressaltar que antes mesmo de iniciarmos a leitura da obra, isto é,
a aplicação do projeto, pedimos aos alunos que pesquisassem sobre como se deu o
processo de formação de Tailândia, as mudanças que ocorreram desde o início até o
momento, as questões sociais que marcaram e marcam a vida da população.
Essa busca por informações teve como objetivo levá-los a conhecer mais sobre
o lugar onde vivem e adquirirem conhecimento que contribuísse para fazerem relação
com a obra de João Cabral de Melo Neto. Não pedimos que entregassem ou

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apresentassem essa pesquisa, apenas que buscassem essas informações no Google,
conversando com os pais ou moradores mais antigos que vivenciaram ou ouviram de
seus pais sobre questões de conflitos envolvendo a região.
Assim, durante a leitura de Morte e Vida Severina, fizemos várias discussões
envolvendo as mazelas sociais da obra e da região em que moram. Na segunda cena,
por exemplo, os alunos lembraram que Tailândia é conhecida pelas mortes constantes,
mortes por encomenda, emboscadas aconteciam e ninguém poderia dizer quem
cometeu o crime para também não ser uma vítima.
No momento inicial da leitura do texto tivemos a participação da maioria dos
alunos na discussão, porém alguns alunos se distraíram em conversas paralelas e não
acompanharam o debate. Por isso, decidimos que a continuação da leitura seria feita
pelos grupos, ou seja, cada grupo deveria ler, em voz alta, trechos do poema na
sequência do mesmo até o final e levantar questionamentos à turma. Com isso,
esperávamos que todos lessem e discutissem sobre as questões do texto. Na prática
todos leram o poema na aula seguinte, mas as discussões foram poucas, ocorreram
mais por meio de nossa mediação. Além disso, o tempo da aula não foi suficiente para
continuarmos as discussões.
Diante disso, sugerimos aos alunos que levassem a obra Morte e Vida Severina
para seus pais, para que refletissem em família sobre os assuntos abordados no texto
fazendo uma relação com suas vivências. Além disso, que eles pensassem sobre o
contexto social da época de produção da obra e no da atualidade e que realidade de
Tailândia poderia ser associada à obra: quem são os severinos que aqui vivem ou daqui
migraram? As lutas por terra, o latifúndio, etc. Questões que deveríamos discutir nas
aulas seguintes.
No entanto, na aula do dia seguinte, devido à falta de um professor na turma,
foi necessário trabalhar com duas turmas no mesmo horário, por isso não foi possível
fazermos discussão oral, pois estávamos mediando leitura em outra turma. Então
optamos por uma produção escrita pelos grupos que poderia ser um resumo ou uma
explicação breve sobre o que leram.
Na outra aula levamos a obra em desenho animado. Os alunos gostaram da
animação, ficaram atentos às cenas. E disseram que a obra os ajudou a visualizar o
texto, como seria Severino, sua região, as mortes presentes, etc.
Ao longo das aulas sugerimos uma atividade de produção final, em grupo, onde
os alunos fariam apresentação e um debate sobre as questões sociais discutidas em
sala. Para isso, os grupos formados no início produziram: filme curto, história em

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quadrinhos e teatro, conforme suas interpretações. Mas após a aula em que assistiram
à animação, conversamos mais sobre as atividades que cada grupo iria produzir, e
finalizamos com uma rodada de dúvidas que foram sanadas.
-Interpretação:
Apresentação e discussão das produções dos alunos: histórias em quadrinhos,
filme e teatro.
Nessa etapa cada grupo apresentou a obra e discutiu sobre ela a partir de suas
interpretações demonstradas nos trabalhos feitos por eles. Assim, a oficina ocorreu da
seguinte maneira: apresentação da obra por uma aluna: resumo. Em seguida a
personagem Severino (aluna caracterizada do personagem) entra em cena. Na
sequência as equipes apresentam as histórias em quadrinhos produzidas por eles.
Seguem abaixo as imagens das capas:

Imagens das capas das histórias em quadrinhos

Fonte: arquivo pessoal


Nessa etapa, cada equipe apresentou a história e explicou o que a levou a essa
interpretação. Logo depois as equipes que produziram um pequeno filme sobre a obra
fizeram o mesmo, além de discutir com a turma sobre questões sociais que perceberam
durante suas leituras.
Após essa apresentação, os grupos seguiram no trabalho com o texto por meio
de teatro e chamavam a atenção para algumas cenas como o diálogo entre Severino e
a mulher na janela (a rezadeira) que vivia “de a morte ajudar” (MELO NETO, 2016,
p.34), e também para a cena do enterro de um trabalhador, sobre a qual refletiram
fazendo relação com o contexto da região, como: violência, mortes constantes e
desemprego. Discutiram, ainda, sobre os severinos da atualidade e, para concluir,
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encenaram as partes finais do poema: cena do nascimento da criança, a entrega de
presentes e o último diálogo entre Severino e o mestre carpina.

Considerações Finais
As atividades de letramento desenvolvidas com essa turma possibilitaram aos
alunos maior contato com o texto literário, pois as práticas de leitura foram diferentes
para eles. Os alunos foram bem participativos nas atividades propostas, demonstrando
grande interesse por conhecer o texto.
Na primeira oficina trabalhamos a motivação dos alunos seguida da introdução
da obra. Conforme Cosson, atividades de motivação da leitura do texto literário são
importantes, pois “o sucesso inicial depende de uma boa motivação” (COSSON, 2009,
p. 54). Nesse sentido, podemos dizer que a maioria dos alunos foi motivada à leitura de
Morte e Vida Severina.
As atividades lúdicas contribuíram bastante para isso e ajudou-os também na
interpretação da obra. A obra em desenho animado, por exemplo, chamou a atenção
deles. As discussões em sala de aula relacionando a obra ao contexto social dos alunos
ao contexto sócio-histórico da região (Tailândia) permitiu um olhar mais crítico para o
texto literário e uma maior reflexão sobre ele.
Algumas dificuldades surgiram durante as atividades, mas a motivação primeira
os ajudou a superá-las. Morte e Vida Severina, embora, algumas vezes, parecesse ser
um poema difícil de ser lido, acabou se tornando uma boa leitura para os alunos que se
envolveram nas práticas desenvolvidas em sala de aula. Além disso, levaram a obra
para fora de sala de aula, o que nos mostrou que o letramento literário se constituiu
como uma prática social.
As leituras independentes proporcionaram aos alunos maior contato com o
texto literário. Da aula introdutória à leitura, executaram estratégias que ajudaram a
interpretar o poema narrativo e discuti-lo estabelecendo relação entre ele e as vivências
dos discentes e de seus familiares.
A respeito da produção escrita dos alunos, podemos afirmar que foi válida para
o aprendizado deles, pois:
[...] uma atividade integrada de leitura, escrita e oral parece ser medida
relevante para a prática do ensino de língua portuguesa na escola.
Além disso, essas atividades integradas de motivação tornam evidente
que não há sentido em separar o ensino da literatura do ensino de
língua portuguesa porque um está contido no outro. (COSSON, 2009,
p. 57)

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Embora Cosson faça referência à etapa de motivação quanto à produção
escrita, acreditamos que essas atividades podem ser inseridas em qualquer etapa de
leitura do texto literário. Nesse caso, as atividades escritas pelos alunos contribuíram
para que eles compreendessem a obra.
A etapa de interpretação, onde os alunos expuseram seus trabalhos finais e
discutiram diversas questões sociais envolvendo a obra e seus respectivos contextos
sociais, nos mostrou também o lado humanizador do texto literário. Os alunos, em
muitos momentos, se viram como o personagem Severino.
Nossos alunos, longe de terem sido leitores abstratos, foram leitores reais que
agiram sobre o texto e se deixaram ser tocados ou modificados por ele. Morte e vida
severina nos possibilitou, professor-mediador e alunos, mudanças de comportamento
enquanto leitores literários.
Conforme Jouve (2002, p. 15), “o leitor real apreende o texto com sua
inteligência, seus desejos, sua cultura, suas determinações sócio-históricas e seu
inconsciente”. Como mediadores do texto literário, nesse caso, de Morte e Vida
Severina, tivemos uma experiência ímpar com a leitura literária.
Por fim, podemos dizer que a prática de leitura não nos deixou uma receita
pronta para o trabalho com o texto literário, mas nos permitiu um norte, um caminho que
pode ser muito útil para as nossas práticas futuras de leitura literária em sala de aula do
Ensino Fundamental II.

Referências
COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. 3ª reimpressão. São Paulo:
Contexto, 2009.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário.1ª reimpressão. São Paulo:


Contexto, 2017.

FERRAREZI JR., Celso. A leitura na escola. In: FERRAREZI JR.; CARVALHO, Robson
Santos de. De alunos a leitores: o ensino da leitura na educação básica. São Paulo:
Parábola Editorial, 2017. p. 23-51

GIROTTO, Cyntia Graziella Guizelim Simões: SOUZA, Renata Junqueira. Estratégias


de leitura: para ensinar alunos a compreender o que leem. In: SOUZA, Renata
Junqueira, e tal. Ler e Compreender: Estratégias de Leitura. Campinas: Mercado de
Letras,2010. P.45-114.

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina: auto de Natal Pernambucano. Rio
de Janeiro. Afaguara, 2016.

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina: Edição em quadrinhos realizada
por Miguel Falcão Recife: Fundaj, Editora Massangana, 2009.
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KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria e prática. 12ª Edição, Campinas, SP:
Pontes, 2008.

JOUVE, Vincent. A leitura. Tradução: Brigitte Hervolt. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? Tradução de Marcos Bagno e Marcos
Marcionilo. – São Paulo: Parábola, 2012.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 18 ed. São Paulo: Cortez, 2011.

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HANS STADEN EM SALA DE AULA E PROCESSO DE
MEDIAÇÃO: A IMPORTÂNCIA DO PROFESSOR MEDIADOR NO
ENSINO DA LITERATURA271

Maria do Socorro Sosinho Furtado (UNIFESSPA –


CAPES)
Patrícia Aparecida Beraldo Romano
(UNIFESSPA)

Eixo Temático: “Grupo Temático 10: Educação literária, Letramento literário, formação
e mediação de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender”.

Considerações Iniciais

A apreensão que sentimos quando percebemos as dificuldades que nossos


alunos apresentam no momento de leitura, seja ela literária ou informativa, nos tem
levado em busca de leituras e pesquisas que apontem métodos que possam vir a
incentivar e/ou promover o interesse pelo ato de ler dos nossos discentes.
Sabemos que a aprendizagem de leitura é adquirida ao longo da vida, seja a
leitura da escrita ou a leitura do mundo que nos rodeia. A leitura do mundo adquire-se
pela vivência, pelas experiências; a leitura da escrita e dos livros tem-se por tradição
que se deve aprender, principalmente, na escola. Mas até onde ou quando podemos
afirmar que alguém tem competência leitora?
Não vamos nos deter neste artigo sobre a aprendizagem inicial do aluno na
leitura, quando se aprende a decodificar os símbolos e traduzi-los oralmente. Não
desmerecendo essa parte importantíssima e primordial da aprendizagem da leitura, mas

271
Vale ressaltar que parte desse trabalho pertence a nossa dissertação de mestrado em
andamento na turma do Profletras-Marabá (2019), cujo título provisório é “Processo de mediação
de leitura literária com alunos do 8 ano: uma pesquisa-ação a partir da obra Aventuras de Hans
Staden, de Monteiro Lobato”, sob orientação da profa. Dra. Patrícia A. Beraldo Romano.

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a preocupação que nos aflige está além desse entendimento. É mister que o aluno leia
e leia com intensidade, com profundidade, atingindo o significado do texto em toda sua
plurissignificação.
Na década de 1980, Soares (1988, p. 25) citada por Santos (2014, p. 22), já
alertava que “ao povo permite-se que aprenda a ler, não se lhe permite que se torne
leitor” — sobressaindo assim a diferença entre ler e apenas decodificar.
Lajolo (1999, p. 15) nos diz que “Ou o texto dá um sentido ao mundo, ou ele
não tem sentido nenhum.” É preciso que o professor, usando de suas prorrogativas de
“mestre”, leve o aluno a se sentir motivado para a leitura e busque nela aumentar seus
conhecimentos para a vida e simultaneamente levar isso para melhorar a sua
capacidade de interpretação textual.
Utilizando a obra de Monteiro Lobato, Aventuras de Hans Staden, este trabalho,
através de uma pesquisa-ação, objetiva realizar uma investigação para descobrir quais
seriam as possíveis formas de mediação do texto para os alunos. O mediador deverá
ser aquele que cria um elo entre o aluno e o texto, facilitando e criando meios
necessários para construir no leitor um processo para sua aprendizagem.
Entre as diversas possibilidades apresenta-se a prática de rodas de leitura, a
fim de promover diálogos utilizando-se de leituras compartilhadas entre um mediador e
diversos leitores. Nesse processo a leitura deverá ser prazerosa e sem cobranças,
cabendo ao mediador o papel principal para organizar e dinamizar as rodas de
atividades leitora a fim de criar uma comunidade de leitores. É de fundamental
importância que essa experiência com o texto seja planejada pelo professor e a primeira
decisão seja a escolha do texto a ser lido, que deverá ser agradável tanto ao professor
como aos alunos.
Uma outra estratégia de mediar a obra seria usar a metodologia criada e
enriquecida por Cosson, chamada Sequência Básica, que se organiza em diferentes
momentos: motivação, introdução, leitura e interpretação.
Entre as metodologias pesquisadas, a Sequência Básica torna-se mais eficaz
no livro a ser lido, uma vez que é um livro de caráter histórico, e uma leitura extraclasse
poderá levar a um melhor resultado. Para a realização deste trabalho foram utilizados
aportes teóricos de Cosson (2016), Lajolo (1999 e 2001), Santos (2014), Solé (1998)
dentre outros.

O poder da mediação e da literatura

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E para falar em conhecimento de mundo, nada é mais apropriado do que
a literatura. Lajolo (2001) compara a literatura a um estádio de futebol quando
se está em disputa decisiva pelo título e onde sempre há lugar para mais um e
há toda uma variedade de torcedores. Assim também a literatura apresenta uma
variedade de temas que levam o leitor a ampliar seu conhecimento de mundo. E
ela, a literatura,
[...] fala de vários mundos: alguns parecidíssimos com o nosso, onde,
por exemplo, tem gente que morre de fome nas ruas, e de mundos
muitos diferentes, onde vivem espíritos, anjos, energias e demônios. A
literatura hoje traz para o nosso lado mundos prometidos pela ciência,
com seres artificiais sofisticados e com seres naturais manipulados em
laboratório. Há histórias com palavras e com imagens e histórias só
com imagens. Poemas que são imagens e imagens que são poemas,
poemas curtinhos empilhando palavras, poemas compridos espaçando
palavras, poemas com rima, poemas sem rima...”(LAJOLO, 2001, p. 9)

Para Lajolo, a literatura será nossa aliada em busca de leitores críticos


e capazes de construir sua própria aprendizagem, o que vem ser corroborado
com o conceito de Brito (2008) para quem:

A literatura constitui a possibilidade, pela convivência com a contínua


produção e com a circulação de percepções e indagações inusitadas,
de uma pessoa ou de um coletivo de pessoas de pensar a vida delas,
os modos de ser e estar no mundo; enfim, de viver e fazer a condição
humana.” (BRITO, 2008 apud SANTOS, 2014, p. 26).

Em artigo sobre leitura literária na escola, SANTOS (2014) discorre sobre a


preocupação do ensino de leitura no sentido de considerar o aluno como um ser ativo e
construtor de sentidos daquilo que lê e assim “somente concebendo o texto, literário ou
não, como algo em constante construção de sentido, é possível formar leitores críticos”
(COCK & ELIAS, 2006 apud SANTOS, 2014, p. 22), uma vez que, “na leitura, o leitor é
um sujeito ativo que processa o texto e lhe proporciona seus conhecimentos,
experiências e esquemas prévios” (SOLÉ, 1998, p. 18).
Desenvolver a competência leitora por meio do prazer de ler é o maior objetivo
de um professor de literatura compromissado com a aprendizagem do seu aluno. Surge,
assim, a figura do mediador, que irá promover a interação entre textos e leitores.
Despontam também, nesse profissional, as dúvidas: como agir? Como mediar a
interação? Como despertar o interesse do aluno para a leitura?
Santos (2009) nos diz que o objetivo de um mediador de leitura é produzir no
aluno sentimentos que o levem a realizar uma leitura crítica, com criatividade e que o
levem a buscar prazer no ato de ler. Não importa saber:
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[...] o que o leitor entendeu da leitura ou o que o autor quis dizer com
tal frase. Ao agente interessa conversar sobre as coisas da vida e do
mundo a partir da leitura de cada um. Quais as relações e que
bifurcações essas leituras podem gerar. De como um bom livro pode
nos levar para uma canção, um filme, uma peça teatral, uma dança,
uma pintura, uma memória, uma cidade, uma paisagem, um tempo... e
nos trazer de volta para o livro ou nos levar para um outro livro e viagem
literária. (SANTOS, 2009, p. 45)

É preciso fazer o leitor “viajar” no texto; relacionar o que está escrito com a sua
própria vida, com acontecimentos vivenciados e que são ativados na memória através
daquilo que o escritor criou e que agora o leitor vai recriar através de sua própria
imaginação.
Desse modo, ler depende mais do leitor do que do texto. É o leitor que
elabora e testa hipóteses sobre o que está no texto. É ele que cria
estratégias para dizer o texto com base naquilo que já sabe sobre o
texto e o mundo” (COSSON, 2016, p. 39)

Por isso, cabe ao mediador de leitura levar o leitor a se apaixonar por um livro
e criar pontes de discussão ou mesmo de apresentação de outros textos que o levem
por diversos caminhos ainda pouco percorridos.

Rodas de Leitura e Sequência Básica

Pretendemos aqui buscar uma maneira que possa se mostrar eficiente na


mediação de leitura do livro Aventuras de Hans Staden. Comecemos então detalhando
como poderia ser feito diante da aplicação de uma roda de leitura.
Antes de tudo deve-se entender que uma roda de leitura não é apenas um
círculo de pessoas que estão lendo juntos. É preciso que se busque um objetivo, uma
intenção de criar um clima de prazer na leitura.
Na roda de leitura não é realizada uma leitura anterior ao momento em que se
reúne o grupo. Um mediador de leitura – que pode ou não ser um professor – lê com ou
para um grupo que normalmente se encontra organizado em círculo, advindo daí o nome
de roda de leitura.
A leitura realizada através dessa estratégia permite muitas variações, inclusive
a leitura dramatizada. A roda de leitura e a sequência básica apresentam pontos em
comum, como atividades de motivação, apresentação da obra e autor e a leitura de um
texto ou livro com conversas ou discussões sobre o que foi lido.

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Entretanto, em uma roda de leitura, não há uma leitura individual anterior ao
momento de leitura em grupo, o que ocorre na sequência básica, e esse foi o ponto
crucial para preferirmos trabalhar com ela no livro Aventuras de Hans Staden, uma vez
que o mesmo é um pouco extenso e necessita de uma leitura prévia à aplicação das
oficinas.
Na Sequência Básica procuraremos seguir as indicações de Cosson (2016).
Quatro passos são fundamentais: motivação, introdução, leitura e interpretação.
Na motivação deverá ser aplicada uma atividade que leve os alunos a serem
introduzidos no universo do livro indicado; durante a introdução deverão conhecer o
autor e a obra; a leitura deverá ser feita extraclasse, obedecendo a um prazo pré-
estabelecido entre o professor e os alunos; em outros momentos, poderá ocorrer em
sala também; já a interpretação será o momento em que o aluno irá buscar sentido no
que leu, compreender as nuances que o texto traz e tentar, até mesmo, um
posicionamento crítico sobre o que ele compreendeu, caso a discussão permita.

A obra

A obra Aventuras de Hans Staden (2017) é uma adaptação infantil realizada


pelo escritor Monteiro Lobato, da obra Meu captiveiro entre os selvagens do Brasil272,
de autoria do alemão Hans Staden. O texto é um relato autobibliográfico de duas
viagens ao Brasil feitas por ele e ocorridas entre 1548 e 1549, quando ficou prisioneiro
dos índios Tupinambás, nativos antropófagos.
Enquanto a obra de Hans Staden foi escrita em primeira pessoa, tendo como
narrador o próprio Hans Staden, na adaptação infantojuvenil Monteiro Lobato emprega
como narradora a figura de dona Benta, personagem do Sítio do Pica-pau Amarelo.
Dona Benta, sentada em sua cadeira sob uma árvore de jabuticabas, conta
para seus netos, Pedrinho e Narizinho, as aventuras de Staden. Nessa contação, as
crianças descobrem todas as aventuras pelas quais o alemão passou, tornando-se
prisioneiros dos índios tupinambás, inimigos dos portugueses, e que, julgando ser
Staden um homem português, pretendiam devorá-lo, como era o costume desses
indígenas quando prendiam um inimigo. A todo momento, nesse processo de reconto
das aventuras de Staden, dona Benta é interrompida por seus netos e também por

272 A obra foi publicada em 1557. Em 1927, Monteiro Lobato realizou a sua tradução literária
para a língua portuguesa

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Emília e Visconde para ser interpelada sobre dúvidas e curiosidades, o que permite uma
interação entre a narradora e seus ouvintes, levando a uma intimidade e maior
conhecimento dos acontecimentos narrados, como no trecho a seguir:

Hans julgou ter chegado o terrível momento em que aparece a


iverapema.
— Que era, vovó?
— Era um tacape próprio para o sacrifício dos prisioneiros. Usavam-no
todo enfeitado de penas e manejavam-no de modo que, ao primeiro
golpe, a vítima vinha ao chão de crânio esmigalhado (LOBATO, 2017,
p. 74).

Staden permaneceu por nove meses entre os Tupinambás e após várias


situações, em que quase foi devorado, usando de certa “astúcia 273”, conseguiu ser
libertado e retornar para seu país, onde escreveu sua história passada em terras
brasileiras. “Hans regressou a sua pátria, onde escreveu o livro em que conta estas
histórias, livro precioso para nós, porque foi o primeiro publicado a respeito de coisas
do nosso país.” (LOBATO, 2017, p. 155)

As aventuras de Hans Staden e o uso da Sequência Básica

Utilizando os passos descritos na Sequência Básica de Cosson (2016),


buscaremos, através da mediação de leitura do livro Aventuras de Hans Staden,
demonstrar estratégias que possam vir a ser empregadas no sentido de levar os alunos
a desenvolverem a competência leitora por meio do prazer de ler. Daremos início assim
ao primeiro passo: a motivação.

Motivação e Introdução

O momento da motivação é aquele em que é necessário chamar a atenção do


aluno para a leitura que será feita; assim, precisaremos criar situações que o levem a
se interessar pelo texto que deverá ser lido durante o projeto. Enfatizamos que o aluno
não deve se sentir obrigado a realizar a leitura, assim, o mediador do trabalho necessita
motivá-lo para tal, usando estratégias que o levem a sentir vontade, interesse e
curiosidade por aquilo que está sendo proposto no projeto de leitura. “Ao denominar
motivação a esse primeiro passo da sequência básica do letramento literário, indicamos
que seu núcleo consista exatamente em preparar o aluno para entrar no texto. O

273
Não faremos aqui a discussão sobre se Staden escapou por ser astucioso ou se sua
“astúcia” diz respeito à capacidade de ludibriar os indígenas e, assim, sendo o europeu um
bom mentiroso, consegue se manter vivo. Essa discussão estará em nossa dissertação ainda
em processo de elaboração.
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sucesso inicial do encontro do leitor com a obra depende de boa motivação” (COSSON,
2016, p. 54).
Faremos uma breve explanação sobre a capa do livro e o que ela sugere aos
alunos. Também exploraremos o título a fim de verificarmos se alguém já teria algum
conhecimento sobre a obra a fim de continuarmos a construir a aprendizagem a partir
do que algum aluno já domina. Pretendemos também solicitar um breve parágrafo sobre
o que eles pensam a respeito do enredo da narrativa a partir da observação da capa.
Todavia, teremos o cuidado de não fazermos uma longa motivação, lembrando que
Cosson (2016) nos adverte de que é importante não prolongar muito esse momento, a
fim de que o objetivo dessa etapa não se perca e, assim, devemos prosseguir com a
segunda parte que é a introdução, na qual deveremos apresentar o autor e a obra.
Nesse momento, os alunos terão a oportunidade de manusear o livro Aventuras
de Hans Staden (Lobato, 2017), olhando não somente a capa, como também a
contracapa, a orelha e poderão perceber que seu interior apresenta muitas figuras
representativas de lugares na selva e presença de índios, homens brancos e animais,
sendo ricamente ilustrado com imagens dos acontecimentos na edição escolhida.
Chamaremos, então, a atenção para a foto de Monteiro Lobato que aparece no
final do texto e falaremos da vida desse autor como um homem polêmico e que viveu
altos e baixos; explicaremos sua paixão pela escrita e pela literatura. Pediremos que
consultem seus celulares para buscar mais informações a fim de serem compartilhadas
com todos.
Quanto à criação da obra Aventuras de Hans Staden, explicaremos que provém
de um livro escrito por um alemão chamado Hans Staden (única figura loira nos
desenhos do livro), que esteve no Brasil no século XVI e que, ao retornar para a
Alemanha, escreveu sua história de cativeiro entre os índios Tupinambás, que eram
antropófagos. Esperamos que eles entendam que a obra lobatiana faz parte de uma
saga infantil, com mais de 20 volumes, sobre as aventuras da turma do Sítio do Picapau
Amarelo. Como se trata de um clássico da literatura universal, o escritor, que adaptou
outras obras também, como Peter Pan e Dom Quixote (o último reintitulado, em sua
saga, Dom Quixote das Crianças), procurou, possivelmente, com essas reescritas, levar
tais clássicos, com linguagem mais acessível, para as crianças e jovens da década de
30 do século XX e que, ainda hoje, se bem mediadas, podem ser ricas leituras para
nossas crianças e adolescentes.

Leitura e Interpretação

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Levando-se em consideração que estamos trabalhando com uma turma do 8º
ano, que ainda pode encontrar dificuldades de leitura para um livro como o de Monteiro
Lobato274, dividiremos a leitura do livro em três partes. O texto é composto por 22
capítulos e assim poderemos orientar os alunos para lerem extraclasse os seis primeiros
capítulos e então faremos em sala de aula o que Cosson chama de intervalo. Cada
intervalo terá o espaço de uma semana, para que todos consigam ler os capítulos.
A leitura em sala, isto é, o tempo do intervalo, não deverá ultrapassar o período
de uma hora/aula (45 minutos) e na impossibilidade de lermos os seis capítulos, faremos
apenas comentários do restante que já deve ter sido lido em casa. Em seguida,
marcaremos para serem lidos os sete capítulos seguintes, quando o protagonista será
aprisionado pelos índios Tupinambás.

Nesse sentido, quando o texto é extenso, o ideal é que a leitura seja


feita fora da sala de aula [...] Durante esse tempo, cabe ao professor
convidar o aluno a apresentar o resultado de sua leitura no que
chamamos de intervalos. Isso pode ser feito por uma simples conversa
com a turma sobre o andamento da história ou de atividades mais
específicas (COSSON, 2016, p. 62).

No primeiro intervalo faremos uma leitura “encenada”, isto é, dividiremos a


turma em dois grupos: meninos e meninas, para lerem as falas de Pedrinho e Narizinho
com Emília, respectivamente, ficando a narração e as falas de dona Benta por nossa
responsabilidade de leitura. A cada capítulo faremos uma pausa para as perguntas dos
alunos e devidos comentários, que deverão ser anotados para análise posterior.
Dando prosseguimento à sequência na semana seguinte, faremos o intervalo
da segunda parte lida do livro, na qual aplicaremos uma rodada de perguntas
relacionadas à história lida; abriremos um grande grupo para explicar a dinâmica e, em
seguida, a turma será dividida em quatro grupos menores para darem respostas às
perguntas que serão distribuídas em um papel.
Após o tempo estipulado, recolheremos as folhas, abriremos novamente o
grande grupo e veremos qual deles conseguiu o maior número de respostas
relacionadas às perguntas.
O objetivo dessa atividade é poder analisar até que ponto os alunos conseguem
ler nas entrelinhas de um texto. Cada grupo responderá na sua folha de papel, mas no
grande grupo sortearemos cada grupo para responder a uma pergunta oralmente a fim

274
Vale lembrarmos que nossos alunos tiveram poucas experiências leitoras ao longo dos anos
do Ensino Fundamental II.
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de observar como desenvolvem tipos de respostas diferentes: oral e escrita. As
respostas orais serão registradas em gravação para posterior análise.
A terceira parte do livro deverá ser lida em casa para realizarmos o terceiro
intervalo na semana seguinte; e assim que iniciarmos daremos ênfase à resposta dada
pelo índio prisioneiro quando Staden pergunta se ele está pronto para morrer.
Esclareceremos aos alunos que um dos objetivos dos índios ao comerem a
carne de seus inimigos é o de adquirir as virtudes e qualidades dele, portanto, quanto
maior a coragem do morto, maior será o apetite de quem o devora. Surge então uma
indagação: teriam os Tupinambás protelado a morte de Staden por terem presenciado
várias vezes o seu lamento, demonstrando assim não ser um homem digno de ser
degustado? Levantaremos tal questionamento aos alunos, caso nenhum deles
comente.
É importante refletirmos neste ponto, pois como teremos visto em capítulos
anteriores, a história é contada do ponto de vista do narrador, ou seja, do próprio Staden
(embora em Lobato tenhamos dona Benta narrando os acontecimentos); também
poderemos discutir o fato de que, apesar dos portugueses serem inimigos dos
Tupinambás, havia negociação de mercadorias entre eles, provando ser verdadeiro um
ditado que diz: “Amigos, amigos, negócios à parte” e, assim, poderemos refletir sobre
as verdades dos diversos adágios populares, inclusive pedindo para que pensem em
outros ditados que possam estar relacionados à história.
Vale ressaltar que já inseriremos, durante a leitura, o quarto passo da
sequência básica de Cosson, que é a interpretação, uma vez que “dentro dos objetivos
do letramento literário na escola, é possível misturar a leitura com a interpretação, a
motivação com a introdução, sempre de acordo com as necessidades e características
dos alunos, do professor e da escola” (COSSON, 2016, p. 72)
E para finalizarmos a leitura, pretendemos proceder como no início, dividindo
novamente a turma para realizar a leitura de forma encenada a partir do capítulo 16 até
o último, mas tomaremos dois alunos para fazerem juntos as falas de Hans Staden,
dando maior dinamicidade à leitura.
Com essa fusão entre leitura e interpretação, objetivamos que os alunos
percebam que ler vai muito além do que reconhecer palavras e frases; então,
chegaremos à fase final da sequência e é necessário que nos sintamos tocados pela
obra e envolvidos por ela, além, é claro, de, como professores, termos lido textos
teóricos sobre ela para podermos mediar o texto com mais propriedade.

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No momento da interpretação da leitura, deve haver compartilhamento no
grupo a fim de que os sentidos construídos individualmente sejam ampliados, uma vez
que “as atividades da interpretação, como a entendemos aqui, devem ter como princípio
a externalização da leitura, isto é, seu registro” (COSSON, 2016, p. 66).
Baseando-nos nesses critérios, pediremos aos alunos que externalizem a
leitura do livro por meio de uma gravação individual ou em dupla, que contenha de forma
resumida a história de Hans Staden.
O vídeo deverá ter de 2 a 10 minutos e poderá ser gravado em local escolhido
pelo aluno, utilizando como ferramenta um celular, por ser esse o dispositivo digital mais
acessível a todos; posteriormente, com o consentimento dos pais/responsáveis, o vídeo
poderá ser publicado no youtube para que outros jovens alunos possam assistir e
sentirem vontade de ler o livro.

Considerações finais

A aplicação da Sequência Básica de Cosson (2016), quando bem orientada,


poderá trazer ótimos resultados na busca da criação de um leitor reflexivo e participativo.
Desde o primeiro momento, quando se inicia a fase da motivação, o leitor é convidado,
de maneira lúdica, a penetrar no universo da leitura. Os passos que se se seguem
tendem a atrair cada vez mais o leitor a participar e viver a história que está lendo.
Sabemos que toda e qualquer atividade da vida necessita de um estímulo para
ser desejada. Assim também ocorre com a leitura, que precisa ser incentivada de
alguma forma a fim de adquirir adeptos e estimular hábitos de leitura saudáveis.
A figura do mediador e de métodos estimulantes como o da Sequência Básica,
de Cosson, criam no aluno uma expectativa de leitura que pode leva-los a se interessar
e a se envolver com uma obra literária.
Outrossim a figura do mediador de leitura é necessária e imprescindível durante
todo o processo no emprego da sequência básica ou de qualquer outra forma de
mediação de leitura. É o mediador quem vai provocar e promover o desenvolvimento
das estratégias que deverão ser utilizadas a fim de instigar o aluno para a leitura do livro
e de sua interpretação.
Um bom mediador é aquele que pesquisa, lê e se informa sobre o que vai
precisar para incentivar seu aluno a se tornar um leitor crítico e, para isso, é preciso
esforço e dedicação. Acreditamos que a junção de bons mediadores, bons livros e boas
estratégias, levará ao sucesso da leitura dentro e fora da sala de aula.

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E assim, apesar da nossa pouca experiência como mediadores de leitura,
comungamos com o pensamento que diz: “não há fórmulas nem receitas prontas para
mediar leituras” (VICCINI, 2011, p. 14605), o caminho está no próprio livro, por isso,
precisamos caminhar por ele transmitindo entusiasmo e envolvimento com o enredo.
Isso nos ajudará no processo de aprender a mediar.
Esperamos que o projeto a ser desenvolvido provoque efeito positivo na vida
dos alunos e que eles possam, com a nossa intervenção mediada pela metodologia de
Cosson (2016), se sentir despertados para a leitura, contagiados por ela e consigam
chegar, futuramente, a ser leitores críticos. Também esperamos que o contágio que a
leitura fez em nós, na função de educadoras, possa continuar a ser disseminado para a
formação de outros muitos alunos.

Referências

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2016.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 4. ed. São Paulo: Editora
Ática, 1999.

LAJOLO, Marisa. Literatura: leitores e leitura. São Paulo: ed. Moderna, 2001

LOBATO, Monteiro. Aventuras de Hans Staden. 4. ed. São Paulo: Globinho, 2017.

SANTOS, Fabiano dos. Agentes de leitura: inclusão social e cidadania cultural in


Mediação de leitura: discussões e alternativas para a formação de leitores / Fabiano dos
Santos, José Castilho Marques Neto, Tania M. K. Rösing (organizadores). - 1. ed. – São
Paulo: Global, 2009.

SANTOS, Leonor Werneck dos. Leitura literária na escola. 2014. Disponível em PDF
<seer.ufs.br/index.php/inter-disciplinar/article/viewFile/2580/2205>. Acesso em
22/06/2019.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed. 1998.

VICCINI, Carla Gabriele. Professor mediador, aluno leitor. X Congresso Nacional de


Educação (EDUCERE). I Seminário Internacional de Representações Sociais,
Subjetividade e Educação (SIRSSE). Pontifícia Universidade Católica do Paraná –
Curitiba, 7 a 10 de novembro de 2011. Acesso em 24/11/2019.

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O TEXTO LITERÁRIO NOS LIVROS DIDÁTICOS DO TERCEIRO
AO QUINTO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL: O ESTUDO DA
COLEÇÃO BURITI MAIS 275

Glauber Machado, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

Eixo Temático: Grupo Temático 10: Educação literária, Letramento literário, formação
e mediação de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender

Introdução
Neste artigo, apresentamos os resultados parciais da pesquisa “O texto literário
nos livros didáticos do terceiro ao quinto ano: o estudo da coleção Buriti Mais”, realizada
no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIFESP, no nível de
mestrado. A pesquisa, assim como este trabalho, tem como objetivo analisar a
frequência, variedade de gêneros e autores de literatura infanto-juvenil, bem como a
qualidade das atividades, no que diz respeito à ampliação do repertório de práticas de
leitura e formação do leitor literário nos anos iniciais do Ensino Fundamental. O corpus
de análise compreende os volumes que compõem a coleção de livros didáticos para os
anos iniciais do Ensino Fundamental, adotada pela rede municipal de ensino de Santo
André (SP): “Português: Projeto Buriti Mais” da editora Moderna (SANCHEZ, 2017).
Para esse trabalho, apresentaremos a análise do volume destinado aos alunos do quinto
ano do Ensino Fundamental.
O presente estudo tem origem na docência e no emprego do livro didático,
especialmente a partir da reflexão sobre o estatuto outorgado à literatura nos anos
iniciais do Ensino Fundamental. O texto literário encontra-se presente na escolarização
há várias décadas e seu papel bem como os suportes, gêneros discursivos e autores
empregados nesse processo variam com o tempo e com as concepções sobre literatura,

275
Este trabalho apresenta os resultados parciais da pesquisa “O texto literário nos livros
didáticos do terceiro ao quinto ano do Ensino Fundamental: o estudo da coleção Buriti mais” no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
sob a orientação da Prof. Dra. Claudia Lemos Vóvio.
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leitura e formação do leitor. Na atualidade, há um consenso em torno da presença da
literatura como componente fundamental em documentos curriculares nacionais e até
mesmo locais276 da Educação Básica, bem como da necessária presença de textos
literários nos livros didáticos, de acordo com a política de distribuição de livros didáticos
no Brasil277. Autores como Cosson (2018, 2019), Soares (2011), Lajolo e Zilberman
(2017), entre outros, apontam para a consolidação da literatura, em práticas de
letramento de crianças, adolescentes e jovens que se encontram na escola. Cosson
(2019) assevera ainda sobre importância do letramento literário nessa instituição, já que,
para muitos estudantes, este é um dos poucos locais onde se pode acessar e
compartilhar de práticas de linguagem com e a partir desses textos.
Apesar da importância atribuída à literatura na escolarização e da consideração
de que seu acesso e apropriação é um direito humano, como propõe Antônio Cândido
(2013), quando observamos as pesquisas realizadas nos últimos dez anos, depositadas
na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), que tratam da literatura
infantil em livros didáticos, dos 32 trabalhos encontrados, somente cinco referiam-se
aos anos iniciais do Ensino Fundamental. Esse contexto, conjugado às nossas
preocupações sobre a formação do leitor literário nos anos iniciais, levou-nos ao objetivo
deste trabalho e ao estudo qualitativo de uma coleção adotada pela Rede Municipal de
Ensino de Santo André, localizada na metrópole paulistana.
Assim, mobilizamos um quadro teórico-metodológico que conta com as
contribuições dos Estudos do Letramento, especialmente, as contribuições de Kleiman
(1995), Street e Street (2014), Dionísio (2006) e Cosson (2018, 2019), dos estudos da
Linguística Aplicada sobre o livro didático produzidos por Rojo (2010), Batista (2011),
Bunzen (2005) e Soares (2011) serão considerados. Além desses, tomamos os estudos
advindos da Teoria Literária e Educação acerca da literatura infanto-juvenil, a partir de
Lajolo e Zilberman (2017) e Coelho (2000).
O artigo encontra-se assim organizado, inicialmente, discorremos sobre o
quadro teórico-metodológico que fundamenta esse estudo. Posteriormente,
apresentamos os procedimentos metodológicos e, em seguida, passamos aos
resultados e, ao final, tratamos das considerações finais.

276
Em nível nacional, ver, por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua
Portuguesa (BRASIL, 1997), a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017), em nível
municipal, Documento Curricular da Rede Municipal de Ensino de Santo André (SANTO ANDRÉ,
2019).
277
Ver, por exemplo, o Guia de livros didáticos: PNLD 2019 (BRASIL, 2018).
1762

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1. Quadro Teórico-Metodológico da Pesquisa: da letra ao livro
Em nosso estudo, compreendemos a linguagem em uma perspectiva social e
dialógica, tomando-a, como propõe Volóchinov (2018), “acontecimento social da
interação discursiva que ocorre por meio de um ou de vários enunciados”
(VOLÓCHINOV, 2018, p. 218-219), portanto, uma prática social. As atividades
humanas, em quaisquer esferas sociais, constituem-se por meio da ação conjunta (um
eu e outro(s)), e têm na linguagem um dispositivo central, tanto de regulação e
monitoramento da ação (MORATO, 2002) como de posicionamento axiológico e
constituição da realidade (VOLOCHINOV, 2018) — não há ação humana sem discurso.
Em nosso caso, interessa-nos a esfera escolar, pois a compreendemos como propõe
Kleiman (1995): como uma das principais agências de letramento. Isso se dá porque na
escola, de maneira sistematizada, as crianças participam de práticas de letramento 278,
construindo novas interações sociais com os objetos escritos, e com isso, com uma
diversidade de gêneros do discurso (BAKHTIN, 2016) necessários à interação, ao
aprendizado e valorizados nesta esfera social.
Assim, dentre os muitos letramentos que se fazem presentes na escola, as
práticas de letramento literário decorrem como uma demanda, não somente dos
documentos oficiais, mas também como uma das tradições do ensino de língua
portuguesa, conforme Soares (2011). Ao analisarmos a Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2017), percebe-se a prescrição de competências referidas à
formação do leitor literário, desde o primeiro ano do Ensino Fundamental, e com
componente necessário dos livros didáticos, como previsto nos atuais Guias de Livros
Didáticos (BRASIL, 2018), a partir dos quais professores de todas as redes públicas do
Brasil selecionam livros didáticos para apoiar sua ação pedagógica.
Percebe-se que as práticas de imersão no texto literário exercidas pela escola
configuram-se, segundo Cosson, a partir de uma dupla articulação: “a literatura serve
tanto para ensinar a ler e a escrever quanto para formar culturalmente o indivíduo”
(COSSON, 2018, p. 22). O autor também acentua que as mudanças na sociedade, bem
como a utilização onipresente das imagens e de outras semioses, podem fazer com que
haja uma recusa de um lugar para a literatura na escola. Tal alerta foi dado também por
Batista (2011), ao se referir à relativização da importância da cultura literária nos livros
didáticos, contudo, o autor nos lembra que um dos vetores de transmissão ou mesmo
de apresentação dos textos literários é o livro didático, especialmente o de língua
portuguesa.

278
Cf. Street e Street (2014) e Kleiman (1995).
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O livro didático, ao apresentar os textos literários, trazem em si, uma forma de
apreendermos o letramento literário, através de suas escolhas, seleções e
diagramação. Nós entendemos o texto literário como “todas as criações de toque
poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos
de cultura” (CANDIDO, 2013, p. 176) de maneira tanto oral quanto escrita, e mais ainda,
como um “fator indispensável de humanização” (CANDIDO, 2013, p. 177). Neste mesmo
sentido, caminha Jouve (2012), que apresenta como um dos fatores para considerar
uma obra literária a intenção estética e seu reconhecimento perante a sociedade. Lajolo
e Zilberman (2017) afirmam que os textos podem ser considerados literários caso seja
reconhecido como arte por aqueles a quem a sociedade outorgou a missão de avaliar e
reconhecer esse “status”, no caso, os críticos e acadêmicos. Coelho (2000) ainda nos
apresenta que a literatura infantil, deve ser considerada como literatura, por ser
“fenômeno da criatividade humana que representa o mundo, o homem, a vida, através
da palavra” (COELHO, 2000, p. 27).
Rojo (2003) alerta que o manual didático, por muitas vezes, é o único material
escrito ao qual os alunos têm acesso. Contudo, muitas vezes esse suporte apresenta
um texto desfigurado, visando transformá-lo em “saber escolar”, num processo
designado por Soares (2011) como “escolarização ou pedagogização”. O problema,
segundo a autora, reside mais na forma como o texto é apresentado do que nos modos
como entra para o rol de objetos a serem ensinados, pois esse ordenamento faz parte
da esfera escolar.
O livro didático de língua portuguesa, portanto, é um suporte privilegiado na
esfera escolar, pois, a partir do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), alcança a
todos os alunos das redes públicas, apresentando acervos de literatura, práticas de
linguagem com e a partir desses textos e atividades voltadas ao ensino. Nesse estudo,
assumimos com base em Bunzen (2005) que o livro didático é um gênero secundário,
um objeto complexo e multifacetado, que sofre influências das mais variadas esferas
sociais em sua produção. Por um lado, deve levar em conta seus destinatários, pois é
um instrumento didático, por outro, deve obedecer às normas dos editais e da legislação
vigente, bem como se adequar aos interesses que existem por ser também visto como
uma mercadoria. Como um gênero secundário, encontramos em seu corpo, gêneros
discursivos de outras esferas, mobilizados para fins didáticos.
Rojo (2010), a partir de ampla pesquisa sobre livros didáticos de Língua
Portuguesa, aponta que as coletâneas de textos, quando analisadas quanto aos
gêneros discursivos e às esferas sociais a que correspondem, permitem entrever as

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práticas de letramento que se propõem a escolarização. Acerca do letramento escolar,
Dionísio (2006, p. 44), defende que a formação do leitor pode ser recuperada e
analisada por meio das práticas discursivas que os livros didáticos produzem ou
reproduzem, tanto por meio da análise dos textos literários selecionados, como a partir
das instruções que antecedem ou sucedem esses textos, o que ela conceitua como
“enunciados enquadradores” (DIONÍSIO, 2006, p. 46). Esses enunciados, segundo a
autora, funcionam como dispositivos que prescrevem ao leitor modos de ler e de se
comportar, modos de acessar e atribuir sentido aos textos, identidades e sentimentos,
bem como transmitem concepções de leitura e sobre o que merece ser lido ou não.
Trata-se de diferentes maneiras de controlar as possíveis relações entre os sujeitos e
os textos, de forma a projetar ou formatar as opiniões, as práticas de leitura ou os modos
de se apropriar de determinado gênero, especialmente com aquelas da esfera literária.
Neste âmbito, pretendemos analisar, como ressalta Bunzen (2005), o livro
didático não com o caráter avaliativo, ou mesmo procurando as mais recentes teorias
acerca da literatura e dos textos literários, ao contrário, pretende-se observar o estatuto
do texto literário no ensino fundamental, bem como os letramentos prescritos e incitados
e suas decorrências na formação do leitor literário.

2. Procedimentos metodológicos
Esta pesquisa de caráter qualitativo caracteriza-se como pesquisa documental.
Elegemos para o corpus desta pesquisa o volume destinado ao 5º ano da coleção
didática Buriti mais: português, da editora Moderna (Sanchez, 2017), adotada pela rede
municipal de Santo André, São Paulo. Nesse sentido, pretendemos apresentar a análise
parcial e exploratória de parte do nosso corpus, tomando a coletânea de gêneros
literários que compõe o livro de 5º ano, que corresponde ao momento em que se
consolida aprendizados previstos para a primeira etapa do Ensino Fundamental. Batista
(2011) considera como momento de “consolidação da alfabetização”, no qual as práticas
de letramento avançam para textos mais sofisticados e transcendem a aquisição da
linguagem escrita, abrangendo “esforços para fazer com que os alunos, após o domínio
do princípio alfabético, avancem no domínio de nosso sistema ortográfico e das
capacidades de leitura, compreensão e produção de textos” (BATISTA, 2011, p. 253).
Como procedimentos analíticos, construímos um banco de dados para o
exemplar do aluno do 5º ano, no qual perscrutamos:

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a. A coletânea de textos de cada volume da coleção, no caso em tela,
classificando-os quanto aos gêneros discursivos (literários ou não) e
esferas sociais de produção, autoria e frequência.
b. Aos enunciados enquadradores, descrevendo e estabelecendo uma
tipologia sobre as instruções que antecedem ou sucedem ao texto. Esses
enunciados anunciam também as atividades que os estudantes devem
realizar.
Partimos dos seguintes pressupostos: que a análise das coletâneas dos livros didáticos
de Língua Portuguesa, como propõe Rojo (2010), permite observar os letramentos
relativos ao texto literário e, de modo complementar, como propõe Dionísio (2006), a
análise dos enunciados enquadradores, permitem compreender a formação do leitor
literário que se encena a partir desses materiais (modos de ler e de constituir-se como
leitor desses textos, valores, sentimentos e apropriações do texto pelo leitor, entre
outros elementos). Da análise desses elementos, chegamos ao estatuto do texto literário
nos anos iniciais, quanto ao livro didático em análise.
3. Resultados
O exemplar de Sanchez (2017) faz parte de uma coleção de cinco livros, de
mesmo nome, aprovada pelo PNLD 2019 (BRASIL, 2018). Essa coleção é resultado de
um projeto editorial, que contou com uma equipe para sua construção. Contém 200
páginas, dividido em 8 unidades temáticas e cada uma delas com as seguintes seções:
“Práticas de linguagem: leitura” e “Para falar e escrever melhor”, que conta com as
seguintes subseções “Gramática”, “Ortografia”, “Oralidade” e “Produção textual”.
A coletânea de gêneros discursivos do exemplar de 5º ano possui 74 textos,
assim distribuídos, por unidade:

Gráfico 1 – Quantidade de textos por seção

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8 - Eu defendo uma opinião
7 - Eu faço a diferença
6 - Eu busco pistas
5 - Eu vou às compras
4 - Eu quero ser...
3 - Eu me comunico
2 - Eu entro em cena
1 - Eu me divirto

0 2 4 6 8 10 12

Fonte: o próprio autor, 2020.

Em média, cada unidade conta com nove textos, destaca-se que a unidade 2 é
a que contém mais textos (11) e a unidade 3, a que contém menos textos (7) textos.
Essa variação parece decorrer do tema em foco, já que todas as seções estão
contempladas com algum texto em todas as unidades.
Na tabela 1, apresentamos a distribuição destes textos por gênero discursivo e
esfera de produção, conforme Rojo (2012):

Tabela 1 – Distribuição dos textos conforme a esfera e o gênero


Esfera/ Gênero Quantidade
Cotidiana 3
Piada 2
Relato de memória 1
Divulgação científica 12
Artigo de divulgação científica 1
Curiosidades (Você sabia) 2
Diário de campo 1
Texto expositivo 3
Texto informativo 2
Verbete 3
Entretenimento 17
História em quadrinhos 2
Tirinha 15
Jornalística 17

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Artigo de opinião 3
Entrevista 2
Notícia 4
Reportagem 3
Resenha crítica 5
Literária 23
Apólogo 2
Conto 2
Conto de encantamento 1
Conto de enigma 1
Crônica 2
Lenda 1
Poema visual 4
Poema 7
Romance de cavalaria 1
Texto dramático 2
Publicitária 2
Propaganda 2
Total Geral 74
Fonte: o próprio autor, 2020.

Os gêneros da esfera social literária têm uma frequência maior nesse volume:
são 23 textos contra 17 das esferas jornalística e do entretenimento, que se encontram
em segundo lugar. O gênero mais recorrente é a tirinha, com 15 exemplares, mais que
o dobro do segundo gênero mais utilizado, os poemas. Alguns gêneros aparecem
somente uma única vez, como o artigo de divulgação científica, a lenda, entre outros.
Desse modo, a presença da literatura no volume sobressai em relação às outras
esferas, 31,08% dos textos pertencem a essa esfera, o que pode resultar em uma
participação mais frequente em práticas de uso da escrita nas quais esses textos são
necessários para interação e aprendizado.
Ao considerarmos somente os textos literários, encontramos os seguintes
autores: Adriano Bitarães Neto, Ana Maria Machado, Carlos Drummond de Andrade,
Eduardo Cândido, Elias José, Elizabeth Hazin, Elza Beatriz, Fabio Sexugi, Flavio de
Souza, Gastão Debreix, Gonçalves Dias, Marcos Rey, Mário Prata, Miguel de
Cervantes, Neil Gaiman, Ronald Azeredo, Sean Taylor, Sergio Caparelli e Walcyr
Carrasco. Destes autores, o único que apresenta mais de um texto é Sean Taylor. Três
textos são de autoria desconhecida ou da tradição popular. Pode-se perceber, por essa
enumeração, a presença da maioria de autores brasileiros, alguns deles bastante

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frequentes na escolarização, tais como Ana Maria Machado, Carlos Drummond, Elias
José, Marcos Rey, Sergio Caparelli.
Dos 23 textos da esfera social literária, somente sete estão localizados na
seção “Práticas de linguagem: leitura”, na qual se encontram textos com maiores
dimensões, acompanhados de atividades de interpretação, e ainda vale ressaltar, que
destes sete, três deles formam um único conjunto denominado “poemas visuais”,
presente na primeira unidade. Com isso, dos 16 textos propostos para a seção de
leitura, somente cinco pertencem à esfera literária. Os demais textos, com dimensões
menores ou até mesmo recortados, com apenas trechos, comparecem em atividades
da seção “Para falar e escrever melhor”, especialmente, focalizando o ensino da
gramática e ortografia, ou, para fundamentar a produção escrita ou oral.
Referente à posição que o texto ocupa na página, sendo um indicativo de sua
importância e da atenção dada pelos autores, há quatro posições possíveis. Na tabela
2, essa distribuição pode ser notada.

Tabela 2 – Localização dos textos nas páginas


Localização do texto na página Textos literários Outros gêneros Total
Parte central 7 25 32
Parte central inferior 2 3 5
Parte central superior 7 23 30
Parte inferior direita 7 0 7
Fonte: o próprio autor, 2020.

Dos 62 textos localizados na parte central e na parte central superior, posições


de maior destaque na página, 14 são exemplares de gêneros literários, o que
corresponde a mais de 20% do total e demonstra o valor atribuído a esses textos quanto
ao projeto gráfico do livro. Dos sete textos localizados na posição inferior à direita, num
canto de página, sete são poemas, numa subseção chamada “Esquina da poesia”, na
seção “Para falar e escrever melhor”. Já os textos literários dispostos na parte central
inferior, pertencem aos gêneros poema visual e conto de encantamento.
Ao considerarmos os enunciados enquadradores que antecedem os textos
literários, na seção “Práticas de linguagem: leitura”, todos contam com um elemento
comum: um ícone disposto ao lado do enunciado que representa o objetivo de leitura
que deve guiar o leitor: “ler por prazer”. Conforme Dionísio (2006), esses enunciados
orientam modos de ler o texto, comportamentos e os sentidos que se podem extrair,
caracterizando a validação de um tipo de texto, os comportamentos considerados

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adequados para a leitura e as emoções que se devem privilegiar. Assim, os gêneros
literários que se prestam ao desenvolvimento de capacidades de compreensão,
acompanhados de atividades de interpretação, prestam-se à leitura por prazer, o que
corresponde a uma representação comum atribuída à leitura literária, como aponta
Cosson (2018), fora da escola. O autor, a esse respeito, contesta, discutindo que a
leitura literária na escola está para além do entretenimento, em suas palavras: “a
literatura é lócus de conhecimento, e, para que funcione como tal, convém ser explorada
de maneia adequada. A escola precisa ensinar o aluno a fazer esta exploração”.
(Cosson, 2018, p. 26-27). Esse apontamento indica que a literatura deveria ter outro
estatuto nos livros didáticos e que outros objetivos para ler o texto literário poderiam ser
sugeridos em suas propostas.
No livro, esses enunciados enquadradores seguem uma estrutura
composicional peculiar: primeiro situam o leitor quanto ao gênero a ser lido, como nos
exemplos a seguir:
 “O texto que você vai ler é uma crônica. Preste atenção no modo como a história
é narrada e como ela termina.” (SANCHEZ, 2017, p. 12, grifo da autora);
 “Você vai ler três poemas visuais. Antes de ler os poemas, olhe-os atentamente e
observe a forma deles. Que imagens você vê?” (SANCHEZ, 2017, p. 23, grifo da
autora);
 “Você vai ler trechos de um texto dramático. Observe como ele é organizado de
forma diferente das narrativas que você já leu.” (SANCHEZ, 2017, p. 38, grifo da
autora);
 “Você vai ler um conto de enigma. Atenção aos detalhes: são eles que ajudam a
desvendar o mistério.” (SANCHEZ, 2017, p. 128, grifo da autora);
Percebe-se que não há qualquer outra indicação no sentido de situar o leitor
quanto às condições de produção, circulação e autoria. Algumas informações sobre
estes elementos constam de maneira superficial em meio às atividades ou são
mencionadas em instruções ao professor, num quadro nomeado “Para saber mais”, que
enfoca as características, do ponto de vista da composição e estilo de gêneros
discursivos.
Nos exemplos acima, apresenta-se a tendência de delimitar o comportamento
do leitor em relação ao texto, de forma a validar e caracterizar cada texto, pela utilização
de verbos acionais, no modo imperativo, em tom de injunção: preste atenção, olhe,
observe. Para caracterizar os comportamentos de leitura considerados adequados, ao
se referir tanto a textos considerados desconhecidos pelos leitores, como o texto

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dramático, ele apresenta uma estrutura comparativa “do que”, como também a escolha
semântica do substantivo mistério, para caracterizar o conto de enigma. Por fim, o
enunciado do texto dramático, ao adjetivar o substantivo “forma” como “diferente”,
provoca a sensação de estranheza, bem como a construção “atenção aos detalhes”,
para o conto de enigma, apresenta um sentimento de desconfiança, delimitando os
sentimentos ou emoções que estão associados ao texto. Questionamos ainda sobre o
papel desses enunciados enquadradores no que Cosson (2018) define como papel da
escola, de ensinar a exploração desses textos pelos leitores, já que esses discursos
pouco sinalizam modos de ler que se colocam para apropriação de seu conteúdo
temático na relação com sua estrutura composicional e estilo.

Considerações finais
A análise até aqui empreendida possibilitou constatar a prevalência dos
gêneros literários, na coletânea de textos do livro didático da coleção Buriti Mais, o que
poderia indicar como Rojo (2010) aponta para certas práticas de letramento visadas na
escolarização. Ou seja, o exemplar do 5º ano parece se colocar para a formação do
leitor literário. É preciso relevar ainda a variedade de autores nacionais, de exemplares
de gêneros e da posição que grande parte dos textos literários se dirigem a práticas de
leitura voltadas a fomentar a capacidades de compreensão. Este é outro indicativo
positivo, quando se questiona o estatuto da literatura nos livros didáticos dos anos
iniciais do Ensino Fundamental.
No entanto, quando se analisam os enunciados enquadradores desses textos,
como elementos que condicionam e delimitam a leitura dos textos literários da seção
“Práticas de linguagem: leitura”, nota-se certa restrição. Aos textos literários cabem um
único objetivo, ler por prazer, o que remete a práticas de leitura que têm lugar fora do
contexto escolar, como critica Cosson (2018) sobre o letramento literário de que se
ocupa tradicionalmente a escola. Verbos acionais que mobilizam sentidos, em vez de
conhecimentos sobre o gênero, sobre seu conteúdo temático, estrutura composicional
e recursos estilísticos se sobressaem em detrimento de pistas que possibilitasse a
exploração dos textos pelos alunos.
Mesmo que haja uma profusão de textos literários presentes no livro didático,
percebe-se que as práticas de letramento visadas estão aquém de sua força como
produção cultural a que todos devem aceder. Deve-se buscar um novo modo de
escolarização da literatura, privilegiando a compreensão e as múltiplas interpretações.
A análise ainda suscita várias explorações. Uma delas sobre o emprego da seção

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“Esquina da poesia”, relegada a um canto de menor importância no projeto gráfico, na
qual ficam relegados os poemas, sem qualquer instrução ao leitor. Também dos usos
dos textos literários para o estudo de gramática e ortografia, como velhos pretextos para
tratamento desses objetos de ensino e sobre as atividades de interpretação que os
acompanham.
Finalizamos, indicando que precisamos de mais contato com aquilo que nos
faz sonhar, que expressa o melhor e mais criativo de nossa humanidade: a capacidade
de criar, brincar e imaginar com a palavra, criar castelos de areia repleto daquilo que
nos torna mais humanos, de brincar entre as linhas da literatura.

Referências
BAKHTIN, M.M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo Bezerra. 1ª. ed. São
Paulo: Editora 34, 2016.

BARTON, D.; HAMILTON, M. La lieracidad entendida como práctica social. In:


ZAVALA, V.; NIÑO-MURCIA, M. AMES, P. Escritura y sociedade: nuevas perspectivas
teóricas y etnográficas. Lima (peru): Red para el Desarrollo de las Ciencias Sociales
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BATISTA, A. A. G. Alfabetização, leitura e ensino de português: desafios e


perspectivas curriculares. Revista Contemporânea de Educação. N. 12. Agosto/
Dezembro, 2011.

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POSIÇÃO DO NARRADOR E (IN)VISIBILIDADE INFANTIL NOS
LIVROS DE ANA MARIA MACHADO

Michelle de Souza Prado, UNESP, CAPES

Eixo Temático: Grupo Temático 10: Educação literária, Letramento literário,


formação e mediação de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender

Considerações iniciais

Então, a ideia do ponto de vista é contar, de forma indireta,


enumerando os acontecimentos sucessivamente por meio de uma voz
narrativa, ou , então, apresentando os fato indiretamente, mediante os
agentes que vivera os acontecimentos postos em ação (ARRIGUCCI,
1998, p. 13)

Posto isto, as experiências de aprender a ser crianças entre crianças,


nem sempre visíveis ou acessíveis aos adultos, coloca-nos em mãos
um problema de natureza epistemológica, teórica e metodológica.[...]
Trata-se de levar a sério a voz das crianças, reconhecendo-as como
seres dotados de inteligência, capazes de produzir sentido e com o
direito de se apresentarem como sujeitos de conhecimento, ainda que
o possam expressar diferentemente de nós, adultos; trata-se de
assumir como legítimas as suas formas de comunicação e relação[...]
(FERREIRA, SARMENTO, 2008, p. 79)

Conforme demonstra a citação retirada de estudiosos da área da Sociologia da


Infância, Manuel Jacinto Sarmento e Manuela Ferreira, há uma dificuldade
epistemológica em ouvir e aceitar como informantes válidos os próprios infantes em
conceitos estritamente ligados ao seu mundo social. Através desta declaração, os
estudiosos destacam em Subjetividade e Bem-estar das crianças: (in)visibilidade e voz2,
o perigoso entrave formal erigido é que o exercício de ser criança fica entendido como
uma etapa menor, desprestigiada e despregada da formação o indivíduo. O conceito
de infância passa a ser resgatado pelas vozes dos adultos. Eles falam por elas e as

2
FERREIRA, M. e SARMENTO, M. J. – Subjectividade e bem-estar das crianças:
(in)visibilidade e voz. São Carlos: UFSCar, v.2, no. 2, p. 60-91, nov. 2008. Disponível em
http://www.reveduc.ufscar.br.

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submetem a um constructo social na qual a oficialização da infância é subjugada aos
mesmos modelos simbólicos: brincadeiras, leituras, vivências e experiências de si.
Paralelamente, o teórico literário, Arriguci, também evocado em citação,
problematiza em Teoria da Narrativa: posições do narrador3, a perspectiva da narrativa,
destacando que o ato de narrar nunca é inocente: Quem é o narrador? De que ângulo
ele fala? De que canais se serve para narrar?A que distância coloca o ouvinte ou o leitor
da narrativa? (ARRIGUCCI, 1998, p. 11), favorecendo que não sejamos receptáculos
passivos do que nos é apresentado na leitura, mas investigadores de seus meandros.
Diante do exposto, gostaríamos de refletirmos sobre a questão da literatura
infantil, uma vez que é um produto de mercado elaborado por adultos para aquele
público alvo. Neste sentido, como tantos outros bens sociais, temos mais uma versão
de objetos para criança do que de crianças. Com a finalidade de sermos mais
específicos destacaremos a literatura para a infância produzida pela escritora carioca
Ana Maria Machado e, através das vozes da autora narradora e das crianças-
personagens, estabelecer a homologia criada entre a ponte invisível da realidade fictícia
com a realidade não-fictícia.

A primeira hipótese sustenta a operação de construção de sentido


efetuada na leitura (ou na escuta) como um processo historicamente
determinado cujos modos e modelos variam de acordo com os tempos,
os lugares, as comunidades. A segunda considera que as significações
múltiplas e móveis de um texto dependem das formas por meio das
quais é recebido por seus leitores (ou ouvintes) (CHARTIER, 1991,
p.183).

Não obstante, e como ocorre no quadro mais geral da Sociologia, o


campo de estudos da Sociologia da Infância é atravessado por
disputas paradigmáticas decorrentes do debate das vertentes teóricas
e pela discussão epistemológica sobre a construção do conhecimento
de grupos sociais desprovidos de “voz própria” nas ciências sociais
como é o caso das crianças. (MARCHI, SARMENTO, 2008, p. 02)

Claro o que aqui apresentaremos é a possibilidade de uma leitura analítica


embasada por pesquisadores que tem por objeto de pesquisa a criança e por cientistas
que tem por objeto de observação a urdidura do tecido narrativo. Longe de nós um
parecer peremptório. Por isso preferimos adotar como procedimento metodológico,
além da postura já mencionada, a análise por amostragem. Os livros da escritora que
se seguem são pinçados dentro de distintas coleções dela. Os escritos que serviram de

3
ARRIGUCCI Jr, Davi. Teoria da narrativa: posições do narrador. In Jornal de Psicanálise.
São Paulo:SBPC, vol. 31, nº57, 1998.

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amostragem foram: Cadê meu travesseiro?; O domador de monstros; Beijos Mágicos;
Vamos brincar de escola?.

Quem fala por quem?

“O assunto da narrativa certamente é muito amplo, complexo e


inesgotável.” (ARRIGUCCI, 1998, p. 10)

No presente artigo, tentaremos expor como o conceito de invisibilidade social


das crianças, em se tratando de assuntos relacionados com a própria infância, é
confirmado com as práticas narrativas na literatura destinada a elas. Sarmento, o
educador-pesquisador que nos tem auxiliado no percurso ontológico em entender a
concepção sobre os infantes, argumenta amplamente a questão do mundo dos adultos
interferir e corromper o mundo infantil:

Este fato contribui poderosamente para a globalização da infância. Dir-


se-ia mesmo que, aparentemente, há uma só infância no espaço
mundial, com todas as crianças partilhando os mesmos gostos:
colecionam cartas Pokemon, veem desenhos animados japoneses,
brincam nos consoles de jogos da Mattel, leem livros do Harry Potter.
(SARMENTO, p. 09)

Paralela à visão dos sociólogos, teremos a perspectiva da teoria literária, ambos


com vistas a realizar uma análise da voz da infância por meio dos escritos de Ana Maria
Machado, autora infanto juvenil.
Ainda que autor de uma obra seja um e o narrador seja outro, não há como deixar
de comentar, sucintamente, os traços biográficos desta escritora e entender quem é esta
pessoa que fala, como fala, dentro de qual perspectivas e contextos. A trajetória de Ana
Maria Machado comprova que é alguém extremamente letrado e erudito. Diplomou-se
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez mestrado, exerceu várias profissões
como pintora, professora, tradutora e jornalista, mãe, mulher casada, mulher divorciada
e casada outra vez. Por causa da ditadura, ficou exilada na Europa. Neste último local,
além de distintos trabalhos, incluindo professora na Sorbonne, em Paris, fez seu
doutorado com Roland Barthes.
Graças a sua produção bibliográfica recebeu diversas premiações no Brasil e no
exterior, sendo o prêmio Hans Christian Andersen de notoriedade mundial por ser
considerado o nobel da literatura infantil. No último biênio, 2012-2013, foi laureada com

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a presidência da Academia Brasileira de Letras 4. Resumidamente podemos perceber
que não estamos falando de uma mulher comum, a qual não tenha experimentado
vastas vivências pessoais e literárias a qual tem condições de exprimir uma visão
burguesa da vida. Ao nosso ver, não se trata de mais uma pessoa (um aventureiro ou
um embusteiro) que assume a tarefa de escrever para crianças por aventar uma
pretensa facilidade em produzir para esta classe, como tantas premiações já testificara
Embora quem escreva e quem fale na obra, possam não ser a mesma pessoa,
Mieke Bal coloca que ninguém pode narrar o que não viu ou conheceu. É muito difícil
imaginar composição sem concepção de mundo. Booth, por exemplo, já comentou
sobre a ineficácia dos estudos do ponto vista, pois conclui que o narrador nunca
desaparece, ou seja, para ele não é transmitir uma ilusão, mas certos valores presentes
no próprio autor. Narrar e descrever para Lukács está ancorada na vida do autor 5.
Arrigucci, a todo momento em Teoria da Narrativa, interpela o leitor: Mas será que é
possível narrar?.
Georges Blin discutiu que o ponto de vista remete aos problemas surgidos pelas
relações que o autor mantém com o que conta e com o leitor, Michel Raimond disse
que: Segundo a técnica do ponto de vista, o romancista instala-se, de algum modo, no
pensamento de um dos personagens para nos mostrar a realidade, não mais claramente
uniforme, mas posta e perspectiva (GUYON, s/p), ambos são apuds de Françoise Van
Rossum-Guyon, em Ponto de vista ou perspectiva narrativa: teoria e conceitos críticos.
Margareth Hanly preocupa-se que o autor seja um grande falseador do narrado
pois uma vez que ele conta o que já se passou (o then) não pode ser fidedigno, o relato
torna-se falso pois já faz parte do passado e mesmo quando narra o momento atual (o
now), a dificuldade de apreender o instante presente é tão complexa que, a tentativa de
narrar o agora já é em si a narrativa de algo que já se deu. Tendo acontecido já, como
narrar?Cria-se um prolema da possibilidade de narrar com adequação aos fatos, ou
seja, de narrar de verdade.(ARRIGUCCI, 1998, p. 18)
Já Henry James coloca o fato do enredo poder ser construído sem quebra da
ilusão ficcional, de forma que a própria história contasse a si mesma, tal como refletida

4
Estas e outras informações podem ser visitadas na página da autora:
http://www.anamariamachado.com/exposicao-virtual/
5
Sobre esta perspectiva do ato de narrar, Ana Maria Machado parece estar mas alinhada uma
vez que em sua home page (http://www.anamariamachado.com/perguntas-e-respostas#4), na
seção de perguntas e respostas, ela afirmou que escreve mediante as experiências vividas: Qual
o ponto de partida para o que você escreve? Do meu ponto de vista, eu escrevo sempre a partir
de duas coisas: o que eu lembro e o que eu invento. Memória e imaginação são as duas grandes
fontes do que eu faço./Alguma história que você escreveu já aconteceu de verdade? Quase
todas. Mas sempre muito misturadas com outras que não aconteceram.
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na mente das personagens nela envolvidas, evitando-se toda a intrusão do narrador –
a onisciência seletiva, modo de não se quebrar a ilusão ficcional transformando a
personagem numa espécie de refletor da história. Tratava-se, para ele, lembremo-lo,
de exprimir a vida mental criando uma ilusão intensa de realidade, de preservar a
coerência de uma obra que deve ser autossuficiente, de dar a esta obra uma verdadeira
espessura e consistência. (GUYON, p. 7-8).
Warren, descendente de James confirma a seguinte tendência: as histórias
tendem progressivamente a se contar a si mesmas: Cada vez mais, haveria a
eliminação da voz narrativa direta ou indiretamente, há muitos problemas envolvidos na
técnica ficcional. (ARRIGUCCI, 1998, p.16). Guyon, no franco propósito de trazer as
diferentes contribuições sobre pontos de vistas em diferentes países (ou num mesmo
país) apresenta-nos Lubbock, o qual como Warren também se baseia em James e
discute que autor ideal é aquele que sabe defender o ponto de vista que adotou – a arte
do romancista começa apenas quando este concebe a narrativa como algo que deve
ser mostrado, que deve ser apresentado ao leitor se impor por si mesmo (GUYON, p.
9). Segundo Friedman, que também é signatário da concepção de que a narrativa pode
se bastar a si, sem que autoridades alheias interfiram em seu sentido, o fim primeiro da
ficção é produzir a ilusão total da realidade […] e ao tipo de ilusão que se busque
produzir (GUYON, p.14). As escolhas narrativas, para James e seus continuadores, são
para constatar o maior grau possível de verossimilhança.
A grosso modo, inspirados nas funções das personagens propianas,
enumeramos 10 funções simétricas no conjunto de títulos:
Situação inicial: Os membros da família começam a situação em repouso;
Algo é imposto ao repouso da família: ida à escola, perda do objeto, preparo
para dormir, um novo alguém;
Falta qualquer coisa a um dos membros da família-um dos membros deseja
possuir qualquer coisa: a presença do adulto ou a inteira posse dele, um
objeto (que para a criança torna-se mágico);
O elemento que falta é a prova do membro da família;
O herói reage a esta situação incompreendida;
O que ele deseja/não compreende é posto à sua disposição: o objeto que
perdeu e quer encontrar, o medo de dormir ou de perder a atença do ente
amado;
A imposição inicial é reparada;
O herói recomeça um novo estágio de vivência: entende o incompreendido e

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avança um passo para o amadurecimento;
O herói volta a estabilidade inicial;
A tarefa é cumprida e o herói venceu: avanço para o crescimento, deixar para
trás medos peculiares à fase infantil.

Permitindo-nos um pouco mais de ousadia, colocamos esses elementos


composicionais que caracterizam a obra infantil em foco em um esquema icônico para
tornar mais visível. Segue Figura 1 e Figura 2:

Figura 1: Ordem e desordem – parte primeira

ORDEM

LENHADOR MÃE

VOVÓ CHAPEUZINHO

LOBO

DESORDEM

Fonte: Própria autora (2020)

Figura 2: Ordem e desordem – parte segunda

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ORDEM

SÉRGIO – DOMANDOR
DE MONSTROS

MONSTROS

MONSTROS

DESORDEM

Fonte: Própria autora (2020)

Como se pode perceber, tomamos de empréstimo, adaptando para nossa


realidade, o desenho esquemático usado por Antônio Cândido em Dialética da
Malandragem6. O que Cândido aborda no ensaio não nos interessa agora, contudo o
modo como ele expõe sua argumentação, utilizando recursos visuais torna pedagógico
a explanação. Portanto, por acreditarmos na força expressiva de um recurso como este,
aqui o incorporamos. O que importa destacar é a questão factual, os conhecidos Era
uma vez, (representando a categoria Chapeuzinho Vermelho dos europeus Irmãos
Grimm) demonstram claramente dois polos, o do bem, representado pela protagonista
e aqueles diretamente relacionados a ela (parte superior nomeada de ordem) e o do mal
– o antagonista, causador da discórdia (o qual, por motivos didáticos, mantivemos com
o desordem) que será, até final do enredo, destruído pelo lado positivo. O traço que liga
as partes significa a relação entre as partes, a seta, o sentido da pressão, qual
personagem exerce força sobre quem.
Já na Figura exemplo 2 montada a partir de O domador de monstros, exemplo
que pode representar o grupo como um todo. O que pretensamente era para ser o
oposto à ordem na vida do pequeno, visto que crianças têm medo, como dita a lógica,
de monstros, bruxas e afins é rapidamente absorvido (a linha tracejada indica esta
absorção) pelo polo positivo, marcando a superação do protagonista, uma vez que é
uma criação do psicológico infantil e não de uma força exterior a ele, por isso a seta

6
CANDIDO, Antônio. “Dialética da malandragem”. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas
Cidades, 1993.
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indica a pressão do herói sobre a entidade “maligna” e não ao contrário (monstro
simboliza aqui o medo do escuro e a bruxa simboliza o medo de perder a atenção do
pai e assim sucessivamente):

E Sérgio ria tanto que nem conseguiu falar direito. Aí o monstro da


parede se assustou com todas essas palhaçadas e foi embora. Sérgio
riu muito até que acabou dormindo e sonhando. Sonhos em que não
entrara monstros horrorosos, horríveis e horrendos […]

Nanda gostou do dengo. Mas não queria gostar e chorou mais ainda.
Então Bebel abraçou a menina e ficou só alisando de leve e falando
umas coisas carinhosas, dizendo que ia dar um irmãozinho para ela, e
todos iam ser muito felizes. Foi dando um sono bom, e Nanda acabou
dormindo.

- Aqui está o meu travesseiro,


no meu quarto, em minha cama.
Quem trouxe foi o meu pai,
o príncipe que me ama.

- O que eu mais gosto na escola


é ter um montão de amigo[...]
Sozinha eu não fico
nem hei de ficar.7

O que subjaz nas leituras das estórias infantis dos títulos que apontamos é a
necessidade que o pequeno (a) entenda algo próprio da condição de ser adulto e deixe
as peculiaridades do ser criança como se fossem defeitos a serem logo suprimidos, ou
como coloca-nos Sarmento e Ferreira, déficits para serem vencidos:

Era uma vez um menino chamado Sérgio. [...]Uma noite, antes de


dormir, ele ficou olhando as manchas que as sombras das árvores lá
de fora iam formando na parede do quaro. Elas mexiam, mudavam de
lugar, viravam figuras de monstros horríveis, horrendos, horrorosos.

Nanda resolveu conversar com a mãe. Ela riu e disse que aquilo era
bobagem, que Nanda estava era com ciúmes porque o pai estava
namorando a Bebel.[...] E que era ótimo se o pai casasse de novo,
porque Bebel ia poder ajudar a cuidar de Nanda.

E tão imperiosa a racionalização da infância nos livros que, além do caráter


moralizante próprio de quando se escreve para crianças, há o tom pedagógico, dito de
outra forma, além do cuidado em educar a criança para o crescimento moral, também
há a preocupação com o desenvolvimento cognitivo porque muitos são os livros que se

7
Em ordem de aparecimento na citação: O domador de monstros; Beijos Mágicos; Cadê meu
travesseiro?; Vamos brincar de escola?.
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apresentam em forma de progressão numérica e/ou alfabética para que o leitor/ouvinte,
aprenda a contar e as diferenças dos sons e escrita vocálicos e consonantais:

E quando abriu o olhos, o monstro velho tinha ido embora da parede,


e lá estava o novo olhando para ele com seu olho só e suas duas
bocas. Aí Sérgio disse:
1. Se ficar me olhando assim, eu chamo um monstro mais feio para
te assustar.
[…]
2. Aí vem um monstro com um olho só, duas bocas e três chifres.
(grifo nosso)

E lá se foram. O boiadeiro com seu carro de bois, os dois pastores


com suas flautas, os três carroceiros com suas carroças, as quatro
lavadeiras com seus cestos de roupa, os cinco pescadores com suas
redes e caniços, os seis lavradores com suas foices e enxadas. (grifo
nosso)

Deste modo, na infância globalizada, a criança segue seu modelo pré-


estabelecido, no caso, além de filho, aluno. Só assim se tornaram indivíduos de fato –
o qual se encontra na fase amadurecida na vida humana a não na inicial, teoria esta
criticada pelos sociólogos da infância como temos demonstrado.
Nesse ínterim tudo se torna motivo associado ou dinâmico para veicular a
principal mensagem as crianças ficcionais ou não: é preciso aprender para crescer. Se
algo for suprimido das sequências, perde-se o nexo. Como nos excertos acima, alguém,
narrador ou personagem, está mobilizado para apresentar a contagem de números de
um até dez, não é possível pular qualquer número se o objetivo é ensinar a progressão
ascendente dos mesmos. São os índices, com significados implícitos os quais repassam
para o narratário, eu e você, os sentimentos e a atmosfera a qual circunda os actantes
e mostram a passagem daquele de um estado emocional a outro.
Gostar dela, coisa nenhuma. O pai tinha dito que Bebel era linda,
alegre, um amor... Mas não foi nada disso que Nanda viu.
[…]
Nanda olhou bem para ele, para o pai, para Bebel. Fez com os dois o
mesmo que já tinha feito com o neném: deu beijos.

Posto isto, a grande motivação das estórias é sair de um estado inicial e


ascender a outro, dito melhor. O núcleo cardinal é o desejo de crescer, vencer o medo,
a dependência e se descobrir. Certas narrativas são fortemente funcionais(assim os
contos populares), e em oposição certas outras são fortemente indiciais (assim os
romances “psicológicos).(BARTHES, 1973, p.32).

1782

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La motivación se da en el nivel del texto cuando es el personaje mismo
el que decribe el objeto; en el nivel de la historia cuando la mirada o la
visión del personaje ofrece la motivación; y en el de la fábula cuando
el personaje desarrola una acción con un objeto8. (BAL, 1995, p.65)

Segundo Mieke, motivação é a razão, a justificativa, o porquê de narrar. Outra


condição sine qua non da narrativa é o narrador (a voz) e o focalização (a visão). Há
diferentes “Eus” - um que fala sobre si e um que fala sobre outro. A narração em 3ª
pessoa seria um erro pois, para narrar, necessariamente, é preciso ver. O que diferencia
a narração em narrador externo (aquele que não se refere a si como personagem) e
narrador intra texto aquele que também é personagem (narra e está vinculado à
personagem) é a relação com objeto de emissão. Essa visão muito nos interessa porque
seja narrador externo, seja narrador interno, de algum modo ele se instala dentro da
obra, ou como pessoa fictícia, ou como uma outra, que parece estar fora, apenas a
exercer sua ubiquidade, mas não está. Instalado na criação textual, é dele a postura
ideológica pois escolhe o que vê e como vê, o que fala e como fala.
Nos escritos de Ana Maria Machado, quando o narrador é também actor (como
Bal chama o personagem), ele pode ser, preferencialmente, ou criança, ou adulto. No
entanto, quando o narrador intra texto é uma criança, ela nunca narra sozinha, ora há
inserções de um narrador de fora, ora há inserções de narradores-personagens adultos.
Além do mais, quando o narrador actante é uma criança, constantemente ela recorre a
outro personagem, que não seja outra criança, para pedir auxílio, para confirmar seu
diálogo.

Isadora está com sono,


já vestiu o seu pijama.
Já deu boa-noite a todos
e agora vai pra cama.

 Você viu meu travesseiro?


Eu não sei onde botei.
[…]
 Passei boi, passei boiada,
e perguntei ao vaqueiro:
“Você sabe, você viu
onde está meu travesseiro?”

 Travesseirinho de pluma,
bem macio, uma beleza?
Foi um príncipe que achou

8
Numa tradução de própria autoria: A motivação se dá em um nível do texto quando o
personagem é o mesmo que descreve o objeto, no nível da trama, quando a visão do
personagem oferece a motivação, e na fábula,quando o personagem desenrola uma ação com
um objeto.
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E levou para a princesa.

Quando o narrador é externo, ele é até cede a voz e a visão para a criança, mas
a narrativa começa e termina apenas com o seu aval. Não é a criança a última a dar a
palavra:

Nanda tinha duas casas. Numa, ela passava quase todos os dias da
semana com a mãe. Na outra, ela morava com o pai e avó.
[…]
Beijos mágicos, como só ela (Nanda) podia dar.
Beijos capazes de quebrar encantos de um príncipe, de acalmar choro
de neném e de fazer nascer sorriso em gente grande.

O eu que narra, quando não personagem, ao ceder a voz e a visão para a


criança, deixa implícito a necessidade de corrigir a visão distorcida da mesma,
necessitando de correção:

Mas não foi nada disso que Nanda viu. Viu uma mulher magra, de nariz
grande, cabelo liso e comprido, vestia de preto, dando gargalhada.
[…]
Nada resolveu conversar com a mãe. Ela riu e disse que aquilo era
bobagem […]

Além de se ter só uma forma de infância nas narrativas, como já foi discutido, as
mesmas nunca são narradas apenas por um eu narrador criança, sempre contam com
a intervenção adultocêntrica.
Fechando nossas reflexões decidimos lembrá-los que se trata de um esboço
sobre a problematização da criança, vista pela sociedade como um devir do adulto, não
acreditada como ela está, ouvida e analisada enquanto criança. Vimos todo um esforço
das narrativas em solapar a infância por acreditar num estágio superior e melhor do
indivíduo, o adulto. Na esteira deste motivo, dar subsídios para que os infantes cresçam
– pois tem que vencer característica inerentes ao ser criança. A infância, como detecta
os sociólogos é massificada, não há individualidade, mas corporações, consciências
coletivas que se preocupam de falar das crianças, mas não com elas:

Falar de infância ou da criança referenciando-a à idade tornou-se


assim um critério dotado de eficácia descritiva, porque capaz de
introduzir distinções amplas entre gerações (adultos e crianças) ou
outras mais refinadas que, designando subcategorias e diferenciando-
as entre grupos de idade, se traduzem numa série de identidades
colectivas ordenadas. Ao especificá-las, continuam a ser usados, como
princípios classificatórios dominantes, o funcionamento e os
comportamentos expressos pelo corpo físico. (FERREIRA,
SARMENTO, 2008, p. 65)

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Por fim, constatamos que a literatura infantil brasileira, não fugindo do exemplo
da produção universal, desempenham papel fundamental junto ao público de crianças-
leitores, de estabelecer homologia entre o universo da criação literária e a estrutura
mental de certos grupos sociais, os quais estão sempre ávidos para submeter as novas
gerações à uma única forma de infância, à uma consciência coletiva que dita condutas
sociais.

Referências bibliográficas:

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Psicanálise. São Paulo:SBPC, vol. 31, nº57, 1998.

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MACHADO, Ana Maria. Cadê meu travesseiro? Ilustrações de Denise Fraifeld.


Salamandra. (coleção Gato Escondido)

MACHADO, Ana Maria. O domador de monstros. Ilustrações de Suppa. São Paulo:


FTD, 2003.. (coleção Conta de Novo)

MACHADO, Ana Maria. Beijos Mágicos. Edição Renovada. Ilustrações de Rogério


Coelho. São Paulo: FTD, 2007. (Coleção Primeiras Histórias)

PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto. 2 ed. Lisboa: Editora Vega, 1983


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O PROFESSOR MEDIADOR DE LEITURAS NA FORMAÇÃO DE
LEITORES LITERÁRIOS

Franciele Caroline Pansolim, Prefeitura Municipal de Curitiba.


Elisa Maria Dalla Bona, Universidade Federal do Paraná.

Eixo Temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação


de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho apresenta um recorte da pesquisa: Letramento literário no
início da escolarização: estímulo à reflexão, humanização e construção de sentidos279,
desenvolvida entre 2017 e 2019, no Programa de Pós-Graduação em Educação: Teoria
e Prática de Ensino, da Universidade Federal do Paraná. Investigou as contribuições
que o trabalho com o letramento literário no ambiente escolar traz para a formação de
leitores literários críticos e reflexivos e para o desenvolvimento da humanização, em
uma turma de 1º ano do ensino fundamental I, com estudantes de cinco e seis anos de
idade da Rede Pública de Ensino de Curitiba. A abordagem metodológica da pesquisa
foi qualitativa e de natureza etnográfica.
Neste texto será apresentada a parte daquela pesquisa que aborda uma
sequência de leitura literária realizada com o livro: Os fantásticos livros voadores de
Modesto Máximo, de Willian Joyce (2012). O planejamento dessas aulas de Literatura
foi desenvolvido a partir da sequência básica de leitura de Cosson (2016) e as
estratégias de leitura de Girotto e Souza (2010). A fundamentação teórica que discute
a importância da mediação do professor na formação de leitores literários levou em
consideração as contribuições de Chambers (2008), Tauveron (2013) e Cosson (2016).

279
PANSOLIM, Franciele Caroline. Letramento literário no início da escolarização: estímulo
à reflexão, humanização e construção de sentidos. 190 f. Dissertação (Programa de Pós-
Graduação em Educação) - Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2019.

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Cosson (2016) apresenta algumas estratégias metodológicas aos professores
que desejam promover o letramento literário em sala de aula, uma delas é a sequência
básica de leituras, usada como base para o planejamento da aula de Literatura descrita
a seguir, que visa a formação de uma comunidade de leitores a partir de atividades
coordenadas, de ensino e aprendizagem. Esta sequência é definida em quatro passos:
motivação, introdução, leitura e interpretação. Para o autor, esta sequência tem
perspectivas que podem contribuir substancialmente para que o estudante, a partir da
prática, construa seu conhecimento de forma individual e coletiva.
As estratégias de leitura apresentadas por Girotto e Souza (2010) podem ser
compreendidas como um caminho para maior compreensão de uma obra, estimulando
o desejo pela leitura e fortalecendo a relação entre o leitor e o texto. As autoras
apresentam alternativas pedagógicas para a formação de leitores autônomos, capazes
de ativar seus conhecimentos prévios, fazer conexões com as experiências vividas,
realizar inferências, visualizar, sumarizar e sintetizar um texto lido ou ouvido,
possibilitando maior interação entre o leitor, texto e contexto. As estratégias de leitura
partem do princípio de ensinar os estudantes a pensarem sobre suas leituras e podem
ser apresentadas aos estudantes desde o início da vida escolar, já que, mesmo sem
estarem alfabetizados, são capazes de ler o mundo e construir sentidos a partir das
histórias ouvidas.

A LEITURA LITERÁRIA E A MEDIAÇÃO


A construção de uma comunidade de leitores iniciantes torna-se possível pela
mediação do professor, ao proporcionar situações em que o uso dos conhecimentos
prévios e das conexões pelos leitores são estimuladas.
A mediação do professor para formação de leitores críticos e ativos é primordial.
Um ambiente acolhedor, que permita o compartilhamento de ideias e gere reflexões
sobre determinados assuntos, pode formar uma comunidade de leitores, capazes de
argumentar e produzir significados, mesmo que estejam no início da escolarização.
Cerrillo (2007, p. 56, tradução nossa), enfatiza a importância da mediação do professor
na formação dos leitores iniciantes: “A intervenção dos mediadores é necessária, é
como ponte ou elo entre os livros e as crianças leitoras, pois propicia e facilita o diálogo
entre ambos”.
Cosson (2016), no mesmo sentido, afirma que na escola, a mediação do
professor é essencial para a construção de uma comunidade de leitores, porque, fora
da escola é comum que o leitor divida com outras pessoas o seu envolvimento com a

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leitura recém-feita, mas no ambiente escolar esse compartilhamento é essencial para a
ampliação de sentidos construídos.

Esse trabalho requer uma condução organizada, mas sem imposições


[...] Só assim teremos de fato uma comunidade, e seus leitores
poderão, tanto no presente quanto no futuro, usar a força que ela
proporciona para melhor ler o mundo e a si mesmos. (COSSON, 2016,
p. 66).

Na aula de Literatura com o livro: Os fantásticos livros voadores de Modesto


Máximo, de Willian Joyce, para estudantes de cinco e seis anos, ficou clara a
importância desta mediação na formação dos leitores iniciantes. A história faz um tributo
às obras literárias e relata a vida de Modesto, um rapaz que gostava muito de livros e
que, após perder tudo em um vendaval, que deixa as coisas ao seu redor reviradas e
sem cor, começa uma caminhada parecendo perdido. Ao olhar para cima, Modesto vê
uma moça sendo guiada por livros voadores e ela faz com que um de seus livros vá até
Modesto e o conduza a uma biblioteca. Com a presença dos livros, tudo ao redor de
Modesto volta a se tornar colorido, inclusive ele mesmo, como se o personagem tivesse
encontrado um novo sentido para sua vida. Modesto viveu entre os livros por muito
tempo. Ele também escreveu seu próprio livro, contando sua história de vida e, ao
escrever a última página, chegou a sua hora de partir. Nesse momento, ele já era um
senhor e os livros que viveram com ele na biblioteca demonstraram compreender o que
estava acontecendo e, assim, como no início do livro, Modesto foi levado em direção ao
céu por um esquadrão de livros voadores.
Além de mostrar aos estudantes a influência que as obras literárias podem ter
na vida dos leitores e a paixão do personagem pela biblioteca, esta obra foi escolhida
pela professora/pesquisadora280, também por trazer um final aberto, em que as
inferências e construções de sentidos são ainda maiores, mostrando a partida de
Modesto de uma forma em que sua morte fica subentendida, por meio da tristeza
presente nas ações dos livros e da narrativa sutil. Este final proporciona uma reflexão
sobre a temática da morte e oferece ao leitor a possibilidade de compreender esse
fenômeno dentro dos limites da normalidade da vida.
Este livro ilustrado é marcante, no sentido do que escreve Chambers (2008,
p.189, tradução nossa) ao afirmar que os livros ilustrados são interessantes quando
“relatam um entrelaçamento sutil entre palavras e imagens, as variedades de

280
A pesquisadora aplicou a sequência didática para a sua turma de alunos da escola municipal. Por este
motivo, aqui é tratada como professora/pesquisadora.
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significados são sugeridas, mas nunca afirmadas, dicas visuais e verbais formam
padrões, estruturas e ideias complexas”. Os leitores da obra recebem as dicas do texto
e das ilustrações, porém, a interpretação da possibilidade da morte do personagem fica
a critério de cada leitor. Nesse sentido, Abramovich (1995, p. 114) relata sobre o
trabalho com o tema da morte com crianças:

É fundamental discutir com a criança, de modo verdadeiro, honesto,


aberto, como isso acontece e como poderia não acontecer...
Compreender a morte como um fechamento natural dum ciclo, que não
exclui dor, sofrimento, saudade, sentimento de perda.

A professora/pesquisadora, para melhor acomodar os estudantes, os colocou


sentados num tatame no chão de forma que todos pudessem enxergar o livro. Iniciou
questionando-os sobre a imagem da capa, eles disseram que a história seria sobre
muitos livros, também realizaram tentativas de leitura do título, porém precisaram de
ajuda para leitura e compreensão.
A professora/pesquisadora explicou que Modesto Máximo era aquele jovem que
aparecia na capa. Instigados sobre como seria a vida de Modesto Máximo, os
estudantes responderam:

A.D: Ele fica lendo toda hora.


B.E: Ele gosta de ler.
A.S: Ele está com cara de vergonha.
J.A: Ele está com vergonha de ler.
J.P: Ele gosta de ler e escrever livros.
Y.A: Ah professora! Eu entendi agora! Todos esses livros foi ele que
fez. (Outros concordam com essa hipótese).

Ao serem questionados sobre o lugar onde Modesto Máximo estaria,


responderam usando seus conhecimentos prévios que ele poderia estar sentado em
uma cadeira verde de madeira na casa dele, em uma biblioteca ou em uma livraria.
A professora/pesquisadora falou que, durante a leitura da história, todos iriam
descobrir os detalhes da vida de Modesto e aproveitou para iniciar a etapa da
introdução, apresentou os elementos paratextuais, contou sobre a premiação descrita
na capa e sobre o curta-metragem que inspirou a obra, fez um breve relato sobre o
escritor e cineasta e mostrou ainda a folha de rosto, na qual aparecem vários livros
voando, enquanto realizava questionamentos e conversava com os estudantes.
A prática pedagógica ora apresentada não tinha com estas atividades iniciais o
propósito de antecipar o enredo, mas conhecer o horizonte de expectativas das crianças
e motivá-las para a leitura do livro. Foram consideradas nesta etapa as reflexões de

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Tauveron (2013) acerca do perigo de prática pedagógica que preocupada
desmedidamente

[...] em construir relações afetivas, quaisquer que sejam, entre o livro e


a criança, não se esforça muito para sancionar divagações singulares,
apropriações abusivas, desde que elas manifestem ao menos uma
reação à leitura ofertada. Uma das práticas ritualizadas — a
antecipação a partir das capas dos livros, seguindo-se a de imagens
interiores ou das partes do texto fragmentado, página por página [...].
(TAUVERON, 2013, p. 117).

A autora enfatiza a inadequação em conduzir leitores inexperientes, num


momento em que ainda não sabem nada sobre a história, a uma conversa inicial sobre
a obra tentando fazer antecipações sobre a intriga, divagando livremente “a partir de
nada ou de muito pouco (uma capa, uma situação inicial) quando nenhuma orientação
diegética ainda se desenhou”. (TAUVERON, 2013, p. 117). Tal atitude pode levar
leitores imaturos e inexperientes a dizer coisas que não tem nada a ver com o texto, a
levitações, a se afastar completamente da literariedade do texto. “Sua antecipação, sua
especulação subjetiva viram usurpação. De uma forma desviante de cooperação, o leitor
toma o lugar do autor, e o "texto" ilegítimo de um recobre o texto legítimo do outro,
definitivamente perdido. Somente resta na memória o texto antecipado.” (TAUVERON,
2013, p. 118-119). Com isso, a autora alerta para o problema de as crianças criarem
uma história substitutiva àquela que lerão, com situações que não existem de fato,
portanto não haveria vantagens em fazer esta antecipação. Por fim, a autora sugere que
eventuais antecipações do enredo precisam ser retomadas ao final da leitura para que
sejam corroboradas ou contestadas. Com isso criam-se as condições de substituir a
leitura ingênua pela leitura crítica, com base nas informações do texto.
Após a etapa de introdução, a leitura foi realizada em voz alta pela
professora/pesquisadora, sem mostrar as imagens, para que os estudantes criassem
mentalmente os cenários, personagens e inferências (estratégia da visualização
(GIROTTO; SOUZA, 2010)). Essa leitura durou cerca de dez minutos e eles
permaneceram todo o tempo prestando atenção no enredo. Sobre a leitura em voz alta
Chambers (2007, p. 77, tradução nossa) escreve: “Ler em voz alta para as crianças é
essencial para ajudá-las a se tornarem leitoras.” O autor afirma ainda que a leitura em
voz alta é importante não só no início da escolarização, mas nos demais níveis de
ensino, pois o processo de formação do leitor é muito longo.
Ao concluir a leitura passaram para a etapa da interpretação e, conforme iam se
expressando, a professora/pesquisadora mostrava as ilustrações. Foram instigados

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para que trocassem ideias e externassem suas impressões (estratégia da inferência
(GIROTTO; SOUZA, 2010)). Enquanto viam as imagens, disseram coisas como:

A.G: Um vento bem forte derrubou tudo.


D.A: Ficou tudo quebrado, de ponta cabeça.
A.S: Modesto ficou triste e por isso ficou tudo cinza.

A alternância das cores nas ilustrações foi notada pelos estudantes desde o
princípio, e serviram como apoio para as inferências, sem que a
professora/pesquisadora precisasse se pronunciar a respeito. A
professora/pesquisadora perguntou se a mulher que estava sendo carregada pelo
esquadrão de livros também estava cinza e os estudantes disseram que não, porque
ela estava feliz e o vento já tinha acabado.
Diante de outra imagem, os estudantes falaram que um livro levou Modesto até
a biblioteca e que lá ele viveu momentos bons e os livros mudaram a vida dele.
Relataram, também, que Modesto cuidava dos livros e lia todos eles, mergulhando nas
histórias.
A professora/pesquisadora perguntou se os estudantes sabiam como era
chamado o caderno ou livro no qual as pessoas escrevem o que acontece diariamente
na vida, os estudantes prontamente responderam que era um diário, usando novamente
os conhecimentos prévios. Ela comentou que as letras voaram do diário de Modesto
durante o vendaval, mas as lembranças não saíram da memória dele. Questionou então
se os estudantes haviam percebido o momento em que Modesto começou a escrever
novamente e obteve resposta afirmativa.
Quando questionados sobre o que aconteceu com o Modesto Máximo falaram
que ele podia ter ido “morar com o papai do céu”, comentaram sobre o fato dele estar
envelhecendo e com isso a possibilidade de sua morte.
A professora/pesquisadora falou então que não havia uma resposta certa para
esta pergunta e que cada um poderia ter uma percepção diferente de algo não explícito
no texto, mas conduziu a interpretação de forma a assegurar o que diz Tauveron (2013,
p. 120) “trazer docemente de volta os alunos que partiram em levitação para a superfície
granulosa do texto, garantir simultaneamente os direitos do texto e os direitos dos
leitores empíricos, cientes de que os segundos são limitados pelos primeiros”.
Sobre isto Chambers (2008) destaca que o professor deve dar as ferramentas
aos estudantes leitores, proporcionar leituras de bons livros, conduzir a conversa e
saber escolher os questionamentos a serem feitos para gerar uma reflexão no grupo.

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Em resumo, para o autor, o lugar do professor enquanto mediador de leituras literária é
o de:

[...] permanecer como líder, no geral alguém com uma experiência


muito mais ampla na literatura do que os outros no grupo; mas também
deve se comportar como mais um leitor dentre os outros, que tem
interpretações legítimas e valiosas para oferecer de qualquer livro.
Como líder, o professor deve ajudar cada pessoa a descobrir
honestamente o livro que leu; em seguida, levar a descoberta do livro
que o autor, a julgar pela retórica narrativa, pode estar de acordo em
ter escrito. E finalmente, como resultado de sua experiência
compartilhada e cooperativa, o grupo reconstrói o livro que todos leram.
(CHAMBERS, 2008, p. 177, tradução nossa).

No momento de compartilhamento dos sentidos encontrados na leitura é natural


que surjam diferentes interpretações, que podem ser diversas entre as crianças e
também daquela do professor. É importante valorizar e estimular os argumentos dos
jovens leitores para defender sua opinião, mas é função do professor mediar o diálogo
para que paulatinamente a ingenuidade da primeira leitura seja retomada e assegurados
os direitos do leitor agora ciente do conteúdo do texto.
Para Chambers (2017), a conversa sobre um livro no ambiente escolar leva a
uma riqueza de sentidos. A leitura mediada e compartilhada transcende a leitura por
passatempo, ela oferece imagens e situações que auxiliam na criação e recriação da
essência humana. Em um outro momento este mesmo autor complementa: “Finalmente,
argumento que na literatura encontramos a melhor expressão da imaginação humana e
a ferramenta mais útil para abordar nossas ideias sobre nós mesmos e sobre o que
somos.” (CHAMBERS, 2008, p. 37, tradução nossa).
O compartilhamento de ideias, que podem ser confirmadas ou não, dentro de
um grupo de estudantes, normalmente motiva novas leituras, pois eles se sentem
pertencentes a uma comunidade de leitores. Cosson (2016, p. 66) defende que:

Na escola, entretanto, é preciso compartilhar a interpretação e ampliar


os sentidos construídos individualmente. A razão disso é que, por meio
do compartilhamento de suas interpretações, os leitores ganham
consciência de que são membros de uma coletividade e de que essa
coletividade fortalece e amplia seus horizontes de leitura.

Enquanto a professora/pesquisadora lia a história, ouviu um estudante usar seus


conhecimentos prévios e comentar que o personagem presente na capa do livro que
inicialmente acompanhou Modesto Máximo até a biblioteca e se manteve com ele todo
o tempo, lembrava o amigo do Gato de Botas, o Humpty Dumpty. Como nem todos eles
tinham percebido essa intertextualidade ou feito uma conexão, a
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professora/pesquisadora projetou um trecho do filme Gato de Botas, em que ele é
representado como um ovo, com atributos humanos, com rosto, braços e pernas. Alguns
estudantes relataram ter assistido ao filme, inclusive um deles contou aos colegas parte
do enredo em que os feijões mágicos podem nascer de verdade.
Este personagem aparece também na história Alice no país das maravilhas e,
por isso, foi mostrada uma imagem da Alice junto com Humpty Dumpty, para verificar
se os estudantes identificavam a história. Um deles identificou imediatamente e outros
começaram a comentar sobre a Alice.
A professora/pesquisadora explicou aos estudantes que muitas vezes é possível
encontrar elementos ou personagens em uma história que já foram vistos em outras,
como o Humpty Dumpty e enfatizou que, quanto maior o contato com a literatura, mais
conexões entre as leituras podem ser feitas. A professora/pesquisadora usou a palavra
“intertextualidade”, porém a explicação foi focada na ação e no contexto e não na
aprendizagem conceitual do termo.
Enquanto viam as imagens, os estudantes trocavam ideias e faziam suas
inferências, falando inclusive que quando Modesto ficou triste tudo ao redor ficou cinza.
Essas inferências foram construídas devido as ilustrações da obra que corroboram o
texto. “Elas trazem informações e são cuidadosamente incorporadas ao texto”.
(CHAMBERS, 2008, p. 234, tradução nossa). De fato, a alternância de cores de Modesto
e de alguns personagens deixam claro seu estado de humor, que variam entre
momentos de tristeza e desolação, que passam a alegria e motivação quando
ressurgem as cores.
Esse elemento presente nas ilustrações motivou uma conversa sobre o sentido
da falta de cor de algumas pessoas que apareceram na obra, mas que depois que
recebiam livros para leitura se enchiam de cor. Os estudantes foram então instigados a
visualizarem como seria a biblioteca da escola (que no momento estava fechada). Uma
das estudantes demonstrou não estar de acordo com o pacto ficcional dizendo que os
livros da escola, que estavam na biblioteca, deveriam estar coloridos sim, mesmo sem
ninguém ler, porque não existia isso de “ficar cinza”.
A professora/pesquisadora questionou os demais estudantes, se eles
concordavam ou não com a colega. A turma começou a conversar entre si,
demonstrando não concordar com a fala da estudante, a professora/pesquisadora
deixou que debatessem o assunto por alguns instantes, eles tentaram ajudar a colega
explicando que era uma história e que era para ela “fazer de conta”.

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Com a mediação da professora/pesquisadora, os estudantes explicaram qual era
o sentido de os livros voarem na biblioteca de Modesto e também da relação das cores
com as emoções dos personagens ao receberem obras literárias, a
professora/pesquisadora ressaltou que situações fantásticas acontecem nas histórias
literárias. Eco (1994, p. 81), discorre sobre a importância do pacto ficcional no momento
da leitura literária.

A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é o seguinte: o


leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional [...] tem de saber
que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por
isso deve pensar que o escritor está contando mentiras.

Na situação relatada percebe-se a importância da mediação, já que a estudante


aparentou não estar de acordo com o pacto ficcional, ao contrário do esperado de
crianças pequenas, que costumam entrar no mundo imaginário em suas brincadeiras
sem maiores questionamentos.
A conversa em grupo e a mediação da professora/pesquisadora fez com que a
estudante se sentisse parte daquela comunidade de leitores e ela demonstrou ter
aceitado o fato de os livros voarem ou de personagens ficarem sem cor ao longo da
história. Segundo Cosson (2016), partilhar experiências leitoras fortalece a consciência
de que os estudantes fazem parte de uma comunidade de leitores. Essa consciência
amplia os horizontes de leitura dos estudantes.
Na concepção de Eco (1994), para que uma obra literária se concretize ela
precisa do leitor e para formar leitores capazes de aderir ao pacto ficcional é necessária
a presença de um professor mediador que permita a construção de caminhos entre o
texto literário e o leitor.

Por um lado, na medida que um universo de ficção nos conta a história


de algumas poucas personagens em tempo real e local bem definidos,
podemos vê-lo como um pequeno mundo infinitamente mais limitado
que o mundo real. Por outro, na medida em que se acrescenta
indivíduos, atributos e acontecimentos ao conjunto do universo real
(que lhe serve de pano de fundo), podemos considerá-lo maior que o
mundo de nossa experiência. (ECO, 1994, p. 91).

O momento do compartilhamento de ideias, que podem ser confirmadas ou não,


como ocorreu com o grupo de estudantes, normalmente motiva novas leituras, pois eles
se sentem pertencentes a uma comunidade de leitores. Os comentários feitos pelos
estudantes durante e após a leitura podem ajudar os leitores iniciantes a
compreenderem a essência da história e perceberem detalhes importantes como, na
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história em tela, a questão das cores. Segundo Cosson (2016), partilhar experiências
leitoras fortalece a consciência de que os estudantes fazem parte de uma comunidade
de leitores. Essa consciência amplia os horizontes de leitura dos estudantes, o que é
fundamental para o processo do letramento literário.
Após as discussões com base na leitura, a professora/pesquisadora perguntou
se algum estudante havia mudado de ideia sobre o local para onde Modesto foi no final
da história, a turma ficou bem dividida, com alguns acreditando na morte de Modesto e
outros criando um novo destino para ele, como uma casa nova, hospital, a casa de
quando ele era criança.
Para Bettelheim (2007), o fato de a criança não suportar a ideia da perda do
personagem, arrumando um subterfugio para acalentar sua dor e viver um final feliz, é
uma forma de resolver os problemas interiores que fazem parte do anseio da
humanidade por equilíbrio, por resolver situações com as quais não concordam, muitas
vezes encontrando uma desculpa para tal.
No final da aula de Literatura a professora/pesquisadora retomou e confirmou
algumas antecipações do enredo feitas no início, como o fato de que a história trazia
muitos livros, que Modesto realmente gostava muito de ler e escrever e que tudo
começou na casa do personagem e terminou em uma biblioteca.
A professora/pesquisadora também pediu para que os estudantes falassem
sobre os pontos mais importantes da história, que mais chamaram a atenção durante a
leitura e interpretação, como um momento de sumarização (GIROTTO; SOUZA, 2010)
no coletivo. E uma das estudantes foi convidada para sintetizar a história para seus
colegas, com o apoio das imagens.
As aulas de Literatura propiciaram momentos de interação com os textos
literários e com os colegas, levando os estudantes à identificação de seu mundo com o
mundo da literatura. As conexões e inferências (GIROTTO; SOUZA, 2010) construídas
em uma comunidade de leitores, fizeram da literatura um suporte para que os leitores
pensassem sobre situações singulares, tornando-as, possivelmente, referências para
sua vida pessoal.
Retomamos o título deste texto “o professor mediador de leituras na formação
de leitores literários”, para finalizá-lo com os ensinamentos de Tauveron (2013, p. 126)

O objetivo do primeiro ciclo do ensino fundamental não é aprender a


explicar os textos. Muito mais modesto, seu papel, parece-me, pode
ser assim resumido: construir as condições para que se comece um
diálogo entre o texto e o leitor empírico e que, se possível, não seja um
diálogo de surdos. O que importa, portanto, é menos a pertinência, a

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coerência e a elegância do produto da leitura que o processo mesmo
que é gerado. Porque, apesar de tudo que vem sendo dito, há casos
específicos, onde, parece-me, os direitos do leitor podem ultrapassar
os direitos do texto, casos em que convém preservar estrategicamente
a recepção subjetiva espontânea (e errada) do jovem leitor porque o
que importa é menos a resposta dada que o movimento que a origina
e o que este significa.

A sequência de leitura literária ora relatada mostra que a


professora/pesquisadora controla o jogo para construir as condições para que os leitores
iniciantes aprendam a dialogar com o texto. Este processo ocorreu ao facilitar o diálogo
de cada leitor com a história, ao promover o diálogo sobre a história entre os colegas da
turma, ao valorizar as impressões de todos sobre o texto, mas isso tudo como processo
inicial de formação de leitores que aos poucos aprendem a ir ao encontro dos direitos
do texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho com o letramento literário na escola, além de proporcionar o
aprimoramento de diversos conhecimentos, pode desenvolver a humanização de cada
indivíduo, sendo a leitura um ato social, cultural e político. Porém, para que a
humanização ocorra, o professor mediador precisa estimular permanentemente seus
estudantes a realizarem as leituras, buscando a reflexão e a construção de argumentos
coerentes para defenderem suas opiniões.
A leitura literária exige uma construção de sentidos e, quanto maior for a
interação entre leitor e texto e com outros leitores, maior será a experiência estética.
Portanto, o letramento literário não está limitado à leitura pelo gosto ou pelo desejo de
buscar novos conhecimentos sobre um determinado assunto, refere-se a uma leitura
com reflexão e busca pelo caráter estético do texto. A leitura literária funciona como uma
prática cultural em que o estudante pode manifestar suas inquietudes de maneira
perspicaz, questionando de maneira saudável sua própria vida. A linguagem conotativa,
muito usada nestes textos, torna-se uma alavanca para um discurso mais íntegro e
pessoal.
Durante a leitura da obra, os estudantes se comportaram como leitores críticos,
que em uma comunidade iniciante, construíram significados e refletiram sobre diferentes
assuntos, a partir da leitura do texto e das ilustrações, com a mediação da
professora/pesquisadora. “A cada ano, cresce nossa certeza de que a mediação de um
adulto letrado entre crianças e a literatura é o fator mais importante no surgimento do
desejo de ler, e de ler arriscadamente”. (CHAMBERS, 2008, p. 36, tradução nossa). Os

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estudantes foram os protagonistas de suas próprias inferências, tendo vez e voz em
todas as situações, sendo a professora/pesquisadora a mediadora dessa vivência.
Dessa forma, as práticas que contemplam a leitura literária mediada pelo diálogo
e reflexão podem então ampliar a compreensão leitora e a visão de mundo dos
estudantes, tornando-os mais críticos e reflexivos diante dos acontecimentos de sua
vida. O protagonismo do estudante para as inferências e interpretações conduz à
autonomia para escolhas de novos títulos e defesa de seus próprios argumentos, bem
como a percepção das diferenças, mantendo o respeito pelo outro.
Formar leitores literários é uma ação conjunta que exige interação e cooperação
entre texto, leitor e mediador para que os objetivos propostos sejam alcançados. E,
mesmo com a notória desvalorização da literatura no ambiente escolar, é possível
persistir e mostrar o encanto e a magia da literatura aos estudantes, abrindo horizontes
para a formação humana e fazendo da escola um lugar de imaginação e produção de
conhecimento.

REFERÊNCIAS
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Editora
Scipione, 1995.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução de: CAETANO,


Arlete. 28 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3 ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

CERRILLO, Pedro Cesar. Literatura Infantil y Juvenil y educación literaria.


Barcelona: Octaedro. 2007

CHAMBERS, Aidan. Dime: Los niños, la lectura y la conversación. Tradução de:


AMIEVA, Ana Tamarit. México: Fondo de Cultura Económica, 2007.

______. Conversaciones: escritos sobre la literatura y los niños. Tradução de: AMIEVA,
Ana Tamarit. México: Fondo de Cultura Económica, 2008.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. Ed., 6ª reimpressão. São


Paulo: Contexto, 2016.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de: FEIST,
Hildegard. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

GIROTTO, Cyntia; SOUZA, Renata. Junqueira de. Estratégias de leitura: para ensinar
alunos a compreender o que leem. In: SOUZA, Renata Junqueira (Org.) et al. Ler e
compreender: estratégias de leitura: São Paulo: Mercado de Letras, 2010. p. 45-114.

JOYCE, William. Os fantásticos livros voadores de Modesto Máximo. Tradução de:


VIGNA, Elvira. Rio de Janeiro: Rocco Pequenos Leitores, 2012.
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TAUVERON, Catherine. Direitos do texto e direitos dos jovens leitores: um equilíbrio
instável. In: ROUXEL, Annie; LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia de (org.).
Leitura subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda, 2013. p. 117-129.

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AÇÕES DEMOCRÁTICAS COM A LEITURA E A ESCRITA, A
PARTIR DAS LITERATURAS DE MULHERES

Edimara Ferreira Santos, Unifesspa - Univ. Federal do Sul e Sudeste do Pará


Simone Cristina Mendonça, Unifesspa - Univ. Federal do Sul e Sudeste do Pará
Michele F. Gomes de Vargas, IFPA - Inst. Federal do Pará/Marabá Industrial
Amanda Gomes Mota, Unifesspa - Univ. Federal do Sul e Sudeste do Pará

Eixo Temático:10: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender

Um Projeto de Extensão: uma chance de escrever e refletir sobre si


O presente artigo visa apresentar um relato de experiência, a partir do projeto
de extensão intitulado “Exercícios de leitura e escrita a partir de conto e crônica de
escritoras brasileiras”. Esse projeto, uma parceria entre a Unifesspa e o IFPA Campus
Industrial de Marabá, foi elaborado e organizado com leituras, reflexões e (re) escritas
de textos literários de autoria feminina, a partir de uma sequência de leitura, denominada
sequência básica, na linha teórica de letramento literário, conforme estabelecido pelo
pesquisador Rildo Cosson (2014).
De acordo com o autor, que defende a leitura integral dos textos literários, é
possível trabalhar o letramento literário visando quatro passos metodológicos: a
motivação, a introdução, a leitura e a interpretação. Assim, planejamos as oficinas de
leitura que contemplaram as etapas de motivação, de introdução ao tema, de leitura
silenciosa e compartilhada, de comentários, de exposição de ideias dos participantes,
de explicações necessárias sobre o gênero literário e, por fim, de proposta de uma
atividade de produção textual. Como o próprio título do projeto diz, foram escolhidos
textos ficcionais em prosa escritos por autoras brasileiras.
O objetivo geral do projeto de extensão foi incentivar a leitura e a escrita dos
alunos de graduação da Unifesspa e dos alunos do ensino médio profissionalizante do
IFPA, a fim de proporcionar uma reflexão teoricamente fundamentada sobre o tema da
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escrita feminina, sob a perspectiva do processo de construção do lugar de fala das
mulheres escritoras brasileiras. Os objetivos específicos que conduziram o projeto de
extensão foram: a) Realizar a leitura dos contos e das crônicas de autoras brasileiras;
b) Incentivar aos envolvidos nas oficinas para que produzissem contos e crônicas; c)
Levar os participantes a refletir sobre as suas próprias produções textuais; d) Levar, a
partir de suas produções textuais, o reconhecimento de suas próprias histórias de vida.
Tais objetivos, na prática, foram cumpridos a partir das ações realizadas: oito oficinas e
duas rodas de conversa com escritoras negras convidadas.
A justificativa para a escolha dos textos se deve ao fato de que, no Brasil, a
construção de teorias e estudos sobre o tema Mulher e Literatura ganhou destaque
somente na década de 80, com congressos, seminários, mesas-redondas e pesquisas
em torno das produções literárias femininas tanto do século XIX quanto do século XX.
Pesquisas como a da Zahidé Muzart (1939-2015), que em sua carreira como docente
na UFSC dedicou-se à recuperação de autoras brasileiras ignoradas pelo cânone
literário, tornam-se importantes, justamente porque reconfiguram e reorganizam,
através do panorama das produções de escritas de mulheres no Brasil oitocentista, o
lugar de fala da mulher na literatura brasileira, como a própria autora aponta:

no século XIX, as nossas primeiras escritoras, (...) tentaram publicar


narrativas, tudo era visto com muita delicadeza como obras de
senhoras e equivalendo-se ao crochê, tricot, bordado ou culinária. Mas
atrás desse artesanato, existiram vozes que se fizeram ouvir até os
dias de hoje (ZAHIDÉ, 2011, p. 17).

Assim, a entrada da discussão sobre essa temática no campo acadêmico


contribui para divulgação de produções de escritoras que ficaram no anonimato durante
todo século XIX, como Julia Lopes de Almeida (1862-1934) e Maria Firmino dos Reis
(1825-1917), bem como para recuperar obras até então desconhecidas; além de
visibilizar produções de outras escritoras dos séculos XX e XXI, como Raquel de
Queiroz (1910-2003), Clarice Lispector (1920-1987), Nélida Piñon (1937), Ligia
Fagundes Telles (1923), Conceição Evaristo (1946), entre outras.
O trabalho de retomada e de reavaliação do lugar de fala das autoras nos
estudos literários atuais possibilitou perceber e desnudar particularidades a que a
convenção masculina nunca esteve atenta, atribuindo, assim, para as escritoras do XIX
o devido reconhecimento. No entanto, esse reconhecimento só acontece no século XX,
em que os novos rumos dos estudos da historiografia literária possibilitaram o relevo do

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sujeito feminino em um espaço tradicionalmente entendido como somente o lugar de
fala masculino.
É importante ressaltar que, ao apresentar o conceito “lugar de fala” em nossa
abordagem, não estamos nos referindo apenas às lutas de mulheres no campo social e
político, mas às lutas de grupos que foram silenciados historicamente na/pela
sociedade, como nos lembra Djamila Ribeiro: “Entendemos que todas as pessoas
possuem lugares de fala, pois estamos falando de localização social. E, a partir disso,
é possível debater e refletir criticamente sobre os mais variados temas presentes na
sociedade” (RIBEIRO, 2017, p. 88). É a partir dessas acepções sobre o conceito de
lugar de fala que conduzimos o nosso entendimento sobre o lugar da mulher na
literatura, pois todos os sujeitos têm uma posição comum de acesso à fala e à escuta.
Desse modo, as escritoras encontraram na escrita o caminho para falar e serem
escutadas na sociedade.
Por isso, o processo de construção deste lugar de fala das mulheres na
literatura, perpassa, também, através da escrita de contos e crônicas dos mais variados
temas. Desta forma, a partir destas produções literárias, vimos a necessidade de
direcionar o nosso projeto que está incluso numa perspectiva de oportunizar os sujeitos
a refletir, através de suas produções textuais, sobre si, sobre as histórias de seu lugar
e de suas vivências.

Oficinas de extensão: conhecer, ler, expressar-se


Figura 1: Atividade de uma das oficinas.

Fonte: Arquivo do projeto, 2019.

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A foto que abre esta seção se refere ao momento de motivação da primeira
oficina realizada. Foram dispostas fotos com personagens femininas importantes na
História do Brasil em diferentes épocas. Os extensionistas foram incentivados a escolher
uma das fotos e, ao retirá-las, deparavam-se com uma pequena biografia da mulher
retratada. Após lerem as breves informações, penduraram as imagens em um cordel
sob a frase: “Qual é o seu destaque de personalidade feminina?”. A dinâmica inicial
tinha dois objetivos: a) construir uma linha do tempo com algumas mulheres que
participaram das lutas nas conquistas femininas nos campos político, econômico,
filosófico, literário, acadêmico, entre outros; b) demonstrar para os participantes que se
hoje estamos lendo/entendendo/escrevendo a partir destas autoras brasileiras foi
porque houve outras mulheres que ao longo da história construíram espaços/lugares de
fala e de escuta na sociedade.
Procuramos limitar o tempo da motivação, conforme nos alerta Cosson (2018,
p. 57), para que o objetivo de leitura do texto literário não se perdesse, porém, por se
tratar do primeiro encontro do projeto, acreditamos que se fazia necessário um
panorama da presença das mulheres na História e na Literatura brasileiras.
O texto escolhido para a primeira oficina (que foi repetida na segunda turma)
foi o conto “O caso de Ruth”, da escritora oitocentista Júlia Lopes de Almeida, publicado
em 1903, no livro Ânsia eterna. A Introdução do texto foi breve, com indicações
biográficas e editoriais, houve uma diminuta contextualização da obra, datada do início
do século XX, seguindo-se a leitura em voz alta de trechos do conto, devido à extensão
do mesmo, seguindo, novamente, a sugestão de Cosson: “Nesse sentido, quando o
texto é extenso, o ideal é que a leitura seja feita fora da sala de aula, seja na casa do
aluno ou em um ambiente próprio, como a sala de leitura ou a biblioteca por determinado
período” (COSSON, 2018, p. 64). O texto completo foi enviado aos alunos via grupo
aberto em rede social, para que o lessem em casa, depois.
A cada trecho, as mediadoras de leitura iam conversando com os alunos,
envolvendo-os no enredo. Quando se chegou ao clímax do conto, houve uma
interrupção e a proposição de uma atividade escrita: os extensionistas foram convidados
a escrever, individualmente, o desfecho, que seria compartilhado ao final da oficina.
Segue o trecho de um dos desfechos281:

281
Serão omitidos os nomes dos extensionistas, identificados doravante apenas por iniciais,
seguidas da indicação da idade e do sexo.
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Texto 1: Exemplo de produção escrita282 da Oficina 1 – Turma 1
Como de repente ela voltou e por um instante permaneceu pensando e como um
relâmpago saiu do quarto gritando o que havia acontecido com o padrasto e que ela não ia
mais se submeter a nada o que ela não queria.
Seus familiares quiseram prendê-la, está louca logo pensaram, mas não a segurou e virou
uma grande revolucionária de um período em que infelizmente foi morta como louca.
A.P.M. – 15 Anos - F
Fonte: Arquivo do Projeto, 2019.

A noção de texto que estamos adotando é balizada pelo conceito de diálogo.


Para Koch & Elias (2006) o sentido do texto é construído a partir tanto das sinalizações
textuais, quanto dos conhecimentos do leitor que, na leitura, “deve assumir uma atitude
responsiva ativa” (KOCH & ELIAS, 2006, p.12). O trecho do desfecho em análise mostra
que a extensionista, ao construir sentido para o texto, atribui à personagem principal
uma força no sentido de romper com o sofrimento e a submissão como percebemos
pelo uso do verbos gritar e da oração “não ia mais se submeter a nada”. O que
encontramos na superfície textual aponta uma posição da aluna em relação ao lugar da
mulher – ela não fica mais oprimida - e da postura que ela deve assumir diante da
sociedade. Isso fica ainda mais evidente no parágrafo final, no qual encontramos a
palavra “revolucionária”. Porém, a aluna, por compreender o contexto histórico que o
conto retrata, a formatação da sociedade da época, propõe um final em que a
protagonista “morre como louca” por não “cumprir” seu papel social.
A etapa em questão constitui parte da interpretação:

A interpretação é feita com o que somos no momento da leitura. Por


isso, por mais pessoal e íntimo que esse momento interno possa
parecer a cada leitor, ele continua sendo um ato social.
O momento externo é a concretização, a materialização da
interpretação como ato de construção de sentido em uma determinada
comunidade (COSSON, 2018, p. 65).

Assim, o sentido do texto é construído na interação texto-sujeito (KOCH &


ELIAS, 2007), o que significa que a compreensão leitora exige, portanto, “habilidade,
interação e trabalho” (MARCUSCHI, 2008, p.230). Vejamos como essa compreensão
se apr

esenta em outro desfecho ainda sobre O caso de Ruth, trabalhado na Oficina


1:

282
As transcrições dos textos serão fieis às fontes.
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Texto 2: Exemplo de produção escrita da Oficina 1 – Turma 1
Eu fico imaginando o que fazer, neste momento o medo me consome, a culpa e a
vergonha, minha mãe é muito sofredora, pobrezinha ficou paralítica, tendo medo que seja me
entender, ou que ela diga que aquele homem bondoso nunca faria isso comigo, isso só irá me
entristecer, minha vida irá desmoronar, pois minha própria mãe não irá acreditar em mim.
Afinal ela o amava, daria sua vida a ele e ele sempre foi um homem que vivia de más
caras, de fingimentos, e quando eu penso em suas mãos me tocando eu sinto ódio e nojo, eu
era inocente, sua morte já foi minha alegria, o perdão que eu não consigo liberar me entristece.
L.M. – 15
ANOS - F
Fonte: Arquivo do Projeto, 2019.

No texto 2, podemos identificar que a extensionista assume a “voz” de Ruth,


construindo o seu final a partir da reflexão da personagem acerca da situação que vivia.
Mantém Ruth com a aura da mulher burguesa do século XIX, a que deve ser “boa” e
gentil e, por isso, tem vergonha e culpa pelas agressões que sofreu. Bakhtin (2011, p.
279) adverte que uma obra está disposta para compreensão ativa responsiva dos
outros, perpassada por diferentes formas, visto que ela é uma réplica ligada a outros
enunciados aos quais responde. Notamos que a aluna ancora sua construção textual
na réplica a enunciados do próprio conto, no que se refere ao modo de ser de Ruth,
como este: “Há de ser uma excelente esposa: é bondosa, regularmente instruída, nada
temos poupado com a sua educação; e se não aparece e brilha muito na sociedade é
pelo seu excesso de pudor.” (ALMEIDA, 2019, p. 25)
No entanto, essa referência às atitudes e sentimentos da mulher idealizada,
passa por modificações, permitindo que Ruth confesse sentimentos inferiores, como o
de ódio, por exemplo, e seja menos passiva, como percebemos no trecho “e quando eu
penso em suas mãos me tocando eu sinto “ódio e nojo”, “eu era inocente, sua morte já
foi minha alegria.” Constatamos, também, que nesta produção a palavra do homem é
retratada com grande prestígio, pois nem mesmo a própria mãe acreditaria na sua
versão, como percebemos “ou que ela diga que aquele homem bondoso nunca faria
isso comigo, isso só irá me entristecer, minha vida irá desmoronar, pois minha própria
mãe não irá acreditar em mim” o que acentua o sofrimento de Ruth. Assim, a
extensionista articula informações já contida explicitamente no conto com ideias e
conceitos que partem da sua própria interpretação.
Para Cosson (2018, p.68) é importante que “o aluno tenha a oportunidade de
fazer uma reflexão sobre a obra lida e externalizar essa reflexão de forma explícita,
permitindo o estabelecimento do diálogo entre os leitores da comunidade escolar.”

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Nesse sentido, no momento inicial da Oficina 2, todos os finais foram lidos, discutidos e
comparados à versão original.
Seguindo os passos da Sequência Básica, foram realizadas outras oficinas
que, pela limitação de tempo de apresentação do trabalho e a necessidade de recorte
para compor este texto, não serão todas aqui descritas. Escolhemos, como apontado
no resumo, a oficina referente ao conto “O tapete voador” (2016) da autora
contemporânea Cristiane Sobral.
Na oficina referente ao conto “O tapete voador”, de Cristiane Sobral, as
mediadoras iniciaram com o primeiro passo da Sequência Básica, a motivação,
levantando o questionamento: Se você tivesse um tapete voador, o que colocaria nele?
A partir daí, foi solicitado aos participantes que escrevessem uma frase e/ou uma
palavra que representasse o seu desejo para, posteriormente, colocá-las no seu tapete.
Palavras como amor, pai, mãe e família, foram as mais recorrentes em suas respostas.
Em seguida, foi realizada uma breve apresentação da autora, disponibilizando
informações sobre a biografia da escritora afro-brasileira e sobre sua proposta, de
publicar livros com temáticas voltadas às questões de gêneros e do racismo.
Após a socialização das justificativas e das informações a respeito da escritora,
as mediadoras realizaram a leitura compartilhada dos parágrafos iniciais do conto,
previamente selecionados, seguida de uma abertura para apresentação de comentários
e de perspectivas de leitura de mundo. A certa altura, a protagonista, uma moça negra
chamada Bárbara, é chamada ao gabinete de seu chefe, também negro, e tem início
um diálogo, momento em que a leitura foi interrompida.
No que diz respeito à interpretação, foi proposto que os participantes dessem
continuidade ao diálogo, no intuito de que percebessem as possibilidades de realizar
outra tessitura do texto literário e, também, a reconstrução de diálogos entre um homem
negro e uma mulher negra que ocupam corpos, lugares de fala e construções de
identidades diferenciadas. Vejamos as partes do texto de um dos alunos:

Texto 03: Exemplo de produção escrita da oficina 2 – Turma 2


– Obrigada, senhor presidente, prometo que o assunto que foi for tratado aqui não irá ser
passado a se quer uma pessoa.
– Fico feliz por você admirar o meu trabalho, espero que assim continue. Sei que há muito
talentos sendo desperdiçados, e ainda sendo de pessoas de origem negra e sem muita
condição financeira assim como eu, é difícil uma pessoa da minha origem ter uma
oportunidade como essa.

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– Por que pensa assim senhorita Bárbara? Você é uma mulher muito talentosa e dedicada,
vejo que você tem potencial para fazer o seu papel nessa empresa.
–Senhor, é que na sociedade em que vivemos, pessoas negras são muitas vezes
menosprezadas e ainda não observadas como pessoas com capacidade, mesmo que haja
capacidade.
–Entendo, já fui muito criticado em toda minha trajetória, mas me mantive e segui, e hoje posso
dizer que consegui, e que sou uma pessoa bem sucedida.
A.P.G - 16 anos – F.
Fonte: Arquivo do Projeto, 2019.

Compreendemos que a escrita, assim como a leitura, é uma atividade que se


constrói dialogicamente, ou seja, o sujeito tem algo a dizer e o faz em relação a
enunciados precedentes ao texto que, como assegura Bakhtin (2011, p.300), geram
“atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas.” No texto 03, percebemos que
a aluna realiza releituras do conto partindo da concepção do racismo construído
historicamente, o qual é refletido nas relações sociais nos mais diversos setores. É
revelada em tal texto a existência da exclusão social e a falta de oportunidade por conta
da cor/raça. Isto nos faz pensar em como o texto fora escrito a partir de elementos do
racismo estrutural presente na sociedade brasileira, ao qual, para Silvo Almeida (2018),
está submetida a população negra, sujeita à opressões e pressões de uma estrutura
social racista e que, por fim, afeta as imagens que negros e negras têm sobre si.
Em relação ao desfecho que a extensionista apresenta ao conto, outro aspecto
relevante a observar é o modo como a imagem da protagonista vai se estabelecendo
coerentemente com a proposta da autora. No início do conto, temos as seguintes
formulações: “Ela, filha de empregada doméstica e porteiro, criada para trabalhar, e
trabalhar pesado, tinha orgulho de ter conquistado naquela renomada empresa, um
ofício importante” (SOBRAL, 2016, p.07) [grifo nosso], e “Era vaidosa, aproveitava ao
máximo as possibilidades do seu cabelo afro, com presilhas, turbantes, prendedores,
enfim tudo que pudesse iluminar e exaltar a sua identidade.” (SOBRAL, 2016, p.08)
[grifo nosso]. Nessas passagens, o referente “Bárbara” é construído de diferentes
maneiras: é uma mulher importante, empoderada, vaidosa e que tem orgulho de sua
identidade. Esses traços são retomados e reforçados pela aluna nas passagens: “Fico

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feliz por você admirar o meu trabalho” e “Você é uma mulher muito talentosa e
dedicada.” pelos mecanismos de referência283 e predicação284.
No texto 04, o extensionista apresenta um conteúdo muito alinhado ao
entendimento e à compreensão presentes no texto 03, pois, ao longo da reconstrução
dos diálogos entre a protagonista da narrativa e seu chefe, fica evidenciada a presença
do racismo que oprime e desqualifica a posição de mulheres e homens negras/negros
na sociedade brasileira, e esta percepção “[...] ajuda a reforçar os estereótipos racistas,
tais como a esdrúxula ideia de que negros tem pouca propensão para os trabalhos
intelectuais” (ALMEIDA, 2018, p. 123).

Texto 04 : Exemplo de produção escrita da oficina 2 – Turma 2


–Poxa, senhor presidente. Sou muito grata por ter tido essa oportunidade maravilhosa. Nunca
Imaginei que uma pessoa como eu, da minha classe social, pudessem alcançar algo dessa
grandeza.
–Mas por que você pensa assim? Você é uma mulher incrivelmente talentosa!
–Ah, senhor. Acontece que... pessoas como nós não somos notadas pela sociedade,
entende?. Pessoas negras raramente têm essa chance que eu tive, muito pelo contrário.
Geralmente, essas altas posições são ocupadas por brancos.
- Compreendo totalmente o que você quer dizer. Eu, por exemplo, já fui bastante criticado por
ser o presidente daqui. As pessoas não acreditavam que eu tinha capacidade de comandar
uma empresa, simplesmente, pela cor da minha pele!
–Deve ter sido doloroso.
– E foi, mas não me importo mais. Enquanto estou aqui em uma posição elevada, as pessoas
racistas que me criticam estão lá embaixo, trabalhando pra mim. Ou seja, sua cor de pele não
interfere em nada. Algumas pessoas podem criticar, mas saiba que você é merecedora desse
cargo. Parabéns!
– Serei eternamente grata, senhor!
R.P.R - 15 anos - M

Como apontado acima, os discursos de Bárbara são reflexos da construção


hegemônica de narrativas que reverberaram e estão presentes na sociedade brasileira.
Ou seja, a branquitude construiu “dispositivos de poder” e de aprisionamento em que a

283
A referência consiste em “aquilo que designamos, representamos, sugerimos quando
usamos termos ou criamos situação discursiva referencial”. (RODRIGUES, PASSEGI & SILVA
NETO, 2010, p. 175)
284
A predicação (verbal) remete tanto à operação de seleção dos predicados, isto é, à
designação dos processos, no sentido amplo (ações, estados, mudanças de estado etc.), como
o estabelecimento da relação predicativa do enunciado. (RODRIGUES, PASSEGI & SILVA
NETO, 2010, p. 175)
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população negra é considerada inferior ou pouca propensa a exercer cargos que
somente são assumidos por pessoas brancas: “Pessoas negras raramente têm essa
chance que eu tive, muito pelo contrário. Geralmente, essas altas posições são
ocupadas por brancos” (R.P.R, 2019). Como afirma D’Jamila Ribeiro (2019):

A herança escravista faz com que o mundo do trabalho seja


particularmente racista – o que o torna um dos espaços em que a luta
antirracista pode ser mais transformadora. A primeira etapa para isso
é sempre questionar o status quo: essa é a melhor maneira de não
reproduzir as variadas formas do racismo nos ambientes de trabalho
(RIBEIRO, 2019, p. 52).

É, também, neste tipo de mundo do trabalho que a população negra é exposta


às diversas formas de violência. No entanto, como propõe D’Jamila Ribeiro (2019), são
nesses espaços que se criam políticas afirmativas do antirracismo. Seguindo essa linha
de pensamento, o aluno assim escreveu no texto 02: “sua cor de pele não interfere em
nada. Algumas pessoas podem criticar, mas saiba que você é merecedora desse cargo”
(R.P.R, 2019).
Diferentemente dos fragmentos construídos pelos participantes da oficina, no
conto “O tapete voador”, de Cristiane Sobral, percebemos a existência de diálogos entre
Bárbara e seu chefe que são atravessados por certos pensamentos e posições de
alguns homens negros: “Também já fui negro um dia. Numa fase dolorosa, que procuro
esquecer, aliás, pago um ótimo terapeuta alemão, que tem reformulado a minha
autoimagem” (SOBRAL, 2016, p. 11). O chefe não se reconhece como negro, ele se
sente como um sujeito “fora do seu lugar”, desprezando a sua cor e sua cultura; negando
a sua raça, pois “rejeitou-se como negro para ser aceito socialmente” (GOMES, 2017,
p. 137).
Percebemos, também, que, por parte da personagem do chefe, houve uma
apropriação dos discursos opressores da branquitude para atingir Bárbara, falando do
seu cabelo, da sua relação com um homem negro: “Não me leve mal, mas já temos
bons produtos para minimizar acidentes genéticos desagradáveis, como o cabelo do
negro. É um dos seus defeitos. Seu cabelo é péssimo” (SOBRAL, 2016, p. 10). As
ofensas estabelecidas pelo seu chefe refletem padrões dominantes de beleza, os quais
foram determinados por pessoas brancas. De certa forma, os xingamentos expostos em
várias falas no conto revelam a “ansiedade branca sobre perder o controle sobre a/o
colonizada/o” (KILOMBA, 2019, p. 127).
Quando vamos para o clímax da narrativa, nos é revelado que Bárbara não
cedeu às “tentações enganosas do embranquecimento” ditas pelos seu chefe, pelo

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contrário, ela confirmou a sua identidade e reforçou o pertencimento de sua cor/raça, o
que se aproxima bastante de um diálogo possível com o argumento de Kilomba (2019):
“escrevo com palavras que descrevem minha realidade, não com palavras que
descrevem a realidade de um erudito branco, pois escrevemos de lugares diferentes.
Escrevo da periferia, não do centro” (KILOMBA, 2019. p. 58, grifo da autora).
Assim, percebemos que os diálogos expostos nos textos produzidos pelos
participantes e aqueles presentes na narrativa de Cristiane Sobral se encontram e a
produção apresentada pelos alunos acaba por expandir o universo de relações
possíveis entre a personagem do chefe e de Bárbara, desdobrando a compreensão do
racismo estrutural e das relações de dominação racial institucionalizadas em outros
finais possíveis. Diante disso, percebemos que os jovens leitores/leitoras que
participaram da oficina conseguem interpretar contos e crônicas como um ato político,
pois nas palavras de Kilomba (2019): “Escrever contra significa falar contra o silêncio e
a marginalidade criados contra o racismo. (...) Escreve-se contra no sentido de opor”
(KILOMBA, 2019, p. 67).

Rodas de Conversa: conhecer e reconhecer-se


Além das oficinas, outro objetivo do projeto foi o de proporcionar momentos de
interação com escritoras, no intuito de que os/as participantes pudessem ter contato
direto com elas e compreender melhor a construção das literaturas destas mulheres
lidas por eles. Por isso, houve dois eventos: a “I Roda de conversa com escritoras
brasileiras: Formas Breves: escrevendo as suas próprias histórias”, que contou com a
escritora Cidinha da Silva; e a “II Roda de Conversa com escritoras brasileiras: A voz da
mulher negra na literatura”, para qual foi convidada a escritora Cristiane Sobral. Os
eventos funcionaram como culminâncias das atividades semestrais do projeto e as
datas foram escolhidas de modo a contemplar o calendário letivo dos períodos 2019.3
e 2020.1, para que os alunos do curso de Educação do Campo participassem, pois este
curso, na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, funciona como Alternância
Pedagógica, tendo dois tempos no processo formativo: o Tempo Universidade (janeiro-
fevereiro e julho-agosto); e o Tempo Comunidade (março-junho e setembro-dezembro)
de cada ano letivo.
As Rodas de conversa foram idealizadas pelas professoras integrantes da
equipe, do projeto, a partir de um contato com as palestrantes, estabelecido pela
coordenadora do projeto. Os participantes do projeto foram apresentados aos textos das
escritoras em oficinas prévias.

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Considerações Finais
Podemos dizer que os objetivos do projeto de extensão se encontram
parcialmente alcançados, pois, no que diz respeito à realização e à prática de leituras
de contos e crônicas de escritoras brasileiras, percebemos que os participantes
construíram, ao longo das oficinas, reflexões e problemáticas pertinentes e importantes
nas contribuições do debate e do pensar sobre as temáticas de mulheres que
escreveram/escrevem literaturas e utilizaram/utilizam suas escritas como ferramentas
de justaposição nos campos social, político, econômico e literário.
No que se refere ao objetivo de organizar produções textuais a partir da escrita
normativa, acreditamos que, por um lado, conseguimos atingir parcialmente tal objetivo
porque nem sempre os alunos demonstraram, em suas produções finais, total domínio
dos mecanismos linguísticos, tais como aspectos sintáticos e ortográficos, por exemplo;
porém, por outro lado, notamos que as escritas dos proponentes enveredaram para a
escrita chamada imaginativa, criativa ou literária. Nessas produções, percebemos que
os exercícios de leitura e de escrita não se resumiram aos aspectos formais da narrativa
e nem somente de natureza pragmática, mas nas possibilidades de novas experiências
e construções de aprendizagem a partir da leitura e da escrita de textos literários.
Com relação às metas alcançadas nas realizações das oficinas, avaliamos que
se encontram parcialmente alcançadas, pois, ao longo das oficinas, os participantes
realizaram leituras de contos e crônicas que proporcionaram o autorreconhecimento e
as reconstruções de narrativas de suas vidas e de suas vivências; do mesmo modo,
percebemos que houve a divulgação e a valorização de narrativas curtas escritas por
mulheres através da realização dos sorteios de livros em cada oficina, bem como dos
eventos promovidos pelo projeto com a presença de escritoras. Além disso, notamos
que tais oficinas oportunizaram aos participantes a identificação e a diferença das
produções ficcionais femininas ao longo dos séculos XIX, XX e XXI. Consideramos que
as metas foram parcialmente alcançadas, porque a publicação das narrativas dos
participantes ainda não foi realizada.
Assim, o desenvolvimento do projeto e o envolvimento dos jovens
leitores/leitoras nas oficinas revelaram a existência do contradiscurso ao “memoricídio”
e/ou apagamento de histórias de vidas e de narrativas de mulheres, pois as (re)leituras
e (re)escritas dos contos e crônicas de escritoras brasileiras realizadas por eles
tornaram visíveis as autoras que estão fora do cânone literário e aquelas que foram
silenciadas pela história e pela cena literárias.

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Referências
ALMEIDA, Júlia Lopes. Ânsia eterna. Brasília: Senado Federal, 2019. Disponível em
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/559746/AnsiaEterna.pdf>,
consulta em 06/08/2020.

ALMEIDA, Silvo. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de


Janeiro: Cobogó, 2019.

KOCH, Ingedore Villaça & ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de
produção textual. São Paulo: Contexto, 2010.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.


São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

MUZART, Zahidé Lupinnacci. A ascensão das mulheres no romance. In: A escritura no


feminino: aproximações. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2011. p. 17-27.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017.

________. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RODRIGUES, Maria das Graças Soares, PASSEGI, Luis & SILVA NETO, João Gomes
(orgs.). Análises textuais e discursivas: metodologias e aplicações. São Paulo: Cortez,
2010.

SOBRAL, Cristiane. O tapete voador. Rio de Janeiro: Malê, 2016.

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MOMENTOS DE LEITURAS: DESAFIOS E AÇÕES DE UM
PROJETO DE INCENTIVO À LEITURA NA EJA EM UMA
ESCOLA DE ALAGOINHAS-BA.

Elidineide Maria dos Santos1


Juliana da Costa Neres2
Osimeire Guimaraes Silva3

1.Colégio Estadual de Alagoinhas


neide3445@gmail.com
2.Uneb – Alagoinhas-Ba
jullyalagoinhas@hotmail.com
3.ColégIo Luis Eduaardo Magalhâes
osipedagoga@bol.com.br

Eixo Temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender.

Considerações iniciais
O incentivo à leitura é um desafio para os professores em sua prática
pedagógica, seja em turmas regulares, quer seja para turmas especiais, a
exemplo das turmas de EJA. No Colégio Estadual de Alagoinhas- Bahia, uma
escola exclusiva de atendimento de EJA, nos Eixos IV e V(equivalente aos 6º ao
9º anos do Fundamental II), do turno vespertino e noturno, a partir da aplicação
de pesquisa de diagnóstico do perfil dos estudantes com relação à leitura,
encontrou-se um problema: a apatia e o distanciamento dos livros dos
estudantes. A pesquisa aconteceu por amostragem, no inicio do ano letivo

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corrente, 93 (noventa e três) alunos receberam, responderam e devolveram o
questionário, conforme o quadro abaixo vejamos o resultado da pesquisa:

Quadro 1.Resultado da pesquisa do perfil dos estudantes da UE CEA- NTE 18 Município: Alagoinhas
–fev/2019
Indicadores Valor aferido Possíveis causas Análise dos Ações/objetivos da escola
indicadores
encontrados na Nº %

pesquisa do perfil dos

estudantes 93 46
Planejamento para reverter a
*crítico 11 26 A partir da situação de apatia e distância
realidade dos livros e melhoria da
**nsuficiente
encontrada competência leitora
buscar a
transformação
Gosto pela leitura* 93 Alfabetização não gostam de Incentivar o gosto pela leitura a
deficiente ler partir da prática da leitura através
de um Projeto de Incentivo à
Leitura e escrita 11 leitura deficiente Leitura: Vamos Ler? Ler é bom!
Alfabetização tardia Atendimento particularizado
deficiente**
dentro do Projeto de Incentivo à
Leitura- Vamos Ler? Ler é bom!

Fonte: A autora, 2019

Com a socialização da questão-problema para a comunidade docente e


discente. O que fazer? Que ações poderíamos realizar para transformar a
realidade encontrada? A tomada de decisão foi a implementação do projeto de
incentivo à leitura. Justifica-se a implementação do projeto diante da realidade
encontrada com a pesquisa do perfil do aluno, e tendo por objetivo a melhoria da
situação encontrada de apatia e distanciamento do hábito de leitura, para assim
aproximar o estudante da EJA dos livros e da literatura, para alcançar a retomada
do gosto de ler, além de melhorar a competência leitora e a aprendizagem em
geral. Um projeto de incentivo à leitura possibilita a disseminação de
pensamentos sobre a importância da leitura no mundo atual, mesmo sendo este
altamente tecnológico, globalizado, mas a leitura continua sendo essencial.
Pensou-se em um projeto envolvendo diferentes áreas do conhecimento
humano em especial a área de Linguagens:Língua Portuguesa e Artes; na área
de Humanas:História e Geografia, com temas e gêneros diversos, durante as
aulas regulares e posteriormente nos encontros programados para o projeto de
incentivo à leitura.
Os alunos ao vivenciarem leituras diversificadas, a partir de palavras
simples, ou frases, bem como contos, fábulas, poemas e poesias, receitas,
textos informativos de revistas e jornais, audição e visualização e análises de
vídeos, os mesmos ganharam a oportunidade do aprimoramento da sua
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capacidade de leitura de maneira fluente, concisa, clara. O projeto iniciou-se em
fevereiro de 2019, utilizando diversos gêneros textuais, tendo por base teóricos
da educação moderna tais como: Thiesen, (2008); Cruz(2009),
Freire,(1987),dentre outros, além da legislação vigente tais como a LDB, os
PCNs e a Constituição Federal, disponibilizados nos livros e meios digitais na
literatura.
Os alunos durante as situações diversas para demonstração do
desenvolvimento e domínio da competência leitora com ludicidade e criatividade
dos momentos de leitura, agiram calmamente, em diferentes espaços,
valorizando a criatividade e a liberdade no desenvolvimento da leitura. A
liberdade é necessária, pois o somente a liberdade retira as amarras da timidez,
para uma leitura correta, concisa e clara, além de possibilitar a produção autoral
de textos, relatos, poemas, poesias, ilustrações.
A metodologia da pesquisa do presente estudo tem caráter bibliográfico e
empírico, com reflexão na ação sobre a importância da leitura, e o entendimento
dos pressupostos do leitor consciente e crítico diante de uma sociedade cada
vez mais dinâmica e tecnológica e a leitura tem um papel de suma importância,
e para tanto precisa ser praticada continuamente.

Desenvolvimento
O projeto Vamos Ler? Ler é Bom!, foi pensado e elaborado para atender às
necessidades dos alunos do EJA do Colégio Estadual de Alagoinhas dos Eixos IV(6° e
7° anos) e V(8° e 9° anos) de modo interdisciplinar envolvendo: Língua Portuguesa,
Artes, História e Geografia tendo por objetivo geral desenvolver ações de incentivo à
leitura a partir da pedagogia de projeto, metodologia de roda de conversas, explanação
sobre a importância da leitura, sensibilização para a escuta do outro, uso da internet
com vídeos de depoimentos de pessoas sobre a importância da leitura em suas vidas,
exibição de slides de trechos de textos valorizando a importância e necessidade da
prática da leitura. Como objetivo geral o projeto visa a melhoria da situação de apatia e
distanciamento do hábito de leitura e como objetivos específicos nesse contexto,
disseminar a importância da leitura; valorizar o conhecimento do aluno sobre o assunto;
inserir outras formas de leituras de mundo, tais como as histórias de vida, relatos orais
e escritos e exercitar a leitura de fábulas, contos, jogral, receitas.
Inicialmente, para socialização do projeto de
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incentivo à leitura tivemos a roda de conversa com a gestão da escola, a partir dos
dados coletados na enquete da semana do diagnóstico do aluno do CEA (2019), no
que se refere ao perfil do estudante, com relação ao hábito de leitura. Após constatar a
falta de habilidade e capacidade insatisfatória da competência leitora, o caminho
seguido foi a apresentação de um plano de ação para os estudantes participantes da
enquete. Fez-se a explanação da importância da leitura correta e prazerosa na escola
e fora desta, a proposta do cronograma de atividades do projeto de leitura, com fixação
de dia e horário na semana para os encontros, fora do horário regular. Após
cadastramento dos estudantes participantes, o desafio foi encontrar um local para o
cantinho da leitura da escola, para afixar a estante itinerante, confeccionada em tecido
de brim com divisórias plásticas transparente, contendo livros diversos, jornais, revistas,
encartes de supermercados, para livre acesso dos alunos realizarem a leitura em casa
e depois socializar o que leu. Os livros da estante itinerante foram adquiridos através de
doação dos docentes do CEA e de amigos da escola, e a estante e o kit do leitor fora
adquiridos pela gestão da escola, como mostra as fotos a seguir, obedecendo as
normas da resolução 466/12 de publicação de fotos em pesquisa
Fig. 1 .estante itinerante do Projeto Fig. 2 Entrega do Kit do leitor Fig.3 Momentos de leitura na sala de AC da EU – CEA-

Alagoinhas-Ba.

Fonte: A autora, 2019

Os encontros semanais serviam de laboratório para desenvolver atividades de


aprimoramento da qualidade da leitura a partir do trabalho em grupo e individual
oportunizando a cada sujeito a vivência de leitura lúdica e prazerosa dos diversos
gêneros textuais propostos a cada encontro.O projeto do incentivo à leitura utilizou as
tecnologias digitais para o acesso à internet para visualização/audição de vídeos,
realização de pesquisas sobre a importância da leitura correta, de orientações de como
ler em público, incentivo à criatividade, criação de poesias, poemas, (re)escrita de
contos, histórias, fábulas, digitação, criação de um blog. A coletânea de pesquisas,
produções textuais cada aluno participante do projeto encontram-se registrados no
caderno do Kit do leitor entregue pela gestão da escola no segundo encontro do projeto.
Os lápis, canetas, cadernos, apontadores, e os livros foram as ferramentas para a
produção escrita autoral, transcrito nos cadernos, e que tencionamos organizar, editar,
e revisar, para futuramente publicar um livro físico ou virtual com os momentos de leitura

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vivenciados no projeto, conforme fotos abaixo, publicadas nesse estudo de acordo com
o Conselho de Ética 466/12.
Os alunos envolvidos no projeto na faixa etária entre 18 e 58 anos, ao
participaram de apresentações em público demonstraram a busca pelo sucesso na
desenvoltura diante da comunidade local, dentro da escola, bem como quando da
participação nos eventos organizados pelos docentes das escola. E no final do primeiro
semestre, fizeram valer o protagonismo estudantil dos alunos da EJA, vivenciando a
leitura de diversos gêneros literários em uma escola municipal local, contação de
histórias, relatos, e também em uma praça pública no sarau literário e poético,
conforme o registro fotográfico,obedecendo a resolução 466/12 do conselho de ética,
que dispõe sobre as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo
seres humanos
Fig. 7. Momentos de leitura na escola Municipal Isaias Figueiredo- Seduc/Alagoinhas-Ba

Fonte: Profª..da Escola Municipal Isaias Figueiredo Tatiana Pinheiro, 2019

Fig.8 Momentos de leitura na praça Ruy Barbosa –Alagoinhas-ba

Fonte A autora, 2019

Cada disciplina envolvida no projeto com suas especificidades e particularidades


contribuíram complementando o processo de incentivo à leitura. No caso da disciplina
Língua Portuguesa, História, Geografia e Artes, através da exposição dos livros na
estante itinerante dos livros no cantinho de leitura do projeto. A disciplina Língua
Portuguesa colaborou para a criação do blog da escola, pois é muito significativo que
através dos conhecimentos adquiridos ou aprimorados da grafia correta, clareza das
ideias, para o enriquecimento das produções, momento em que os alunos têm a
oportunidade de praticar a escrita e a leitura, correção dos erros cometidos A disciplina
de Artes tem participação significativa por tornar atrativa a área do blog, das ilustrações
das produções textuais, nas sugestões para confeccionar o livro com expressividade,
criatividade dos estudantes. Nos encontros semanais, os trabalhos em grupo
possibilitou a socialização das atividades do projeto, tais como: registro fotográfico das
participações nos eventos de leitura e escrita no CEA e em outras instituições,
divulgação das atividades nas redes sociais, transcrição de textos diversos leitura e
(re)escrita de contos e fábulas. A reflexão dos acontecimentos

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através das disciplinas de História e Geografia favorece a análise dos fatos históricos,
possibilitando assim aos alunos relacionar os conteúdos de história/geografia dados em
sala de aula no horário regular de ensino e comentados no projeto, bem como os
conhecimentos adquiridos nas disciplinas de língua portuguesa/artes, e assim contribuir
na eliminação do déficit na leitura através da elevação dos conhecimentos dos alunos e
suas práticas sociais, e assim contribuir no desenvolvimento da habilidade e
competência de ler e escrever corretamente. Além de possibilitar ao estudante aprender
como apresentar trabalhos originais e criativos produzidos no processo de
aprendizagem na escola e fora desta. Um momento rico em experiência de leitura e
escrita e participação ativa dos estudantes na oficina de pizza do Senac Alagoinhas,
vejamos fotos, obedecendo a determinação da resolução 466/12, referente à
participação de seres humanos em pesquisas:
Foto 10. Momentos de leitura SENAC Alagoinhas

receita...
Fonte;: Acervo da autora

O trabalho em grupo foi uma constante no projeto de incentivo à leitura, pois ao


trabalhar em grupo reforça-se o desenvolvimento de uma afirmação coletiva de
cidadania, incentivando a interação entre os alunos, ao sair da rotina dos trabalhos
individuais em sala de aula.

FUNDAMENTAÇÃO
A proposta do projeto interdisciplinar como ferramenta para tentar quebrar o
paradigma tradicional, ainda presente nas escolas estaduais, hoje a escola precisa ter
outro norte, de maneira que uma proposta de interdisciplinaridade de fato saia do campo
teórico e finalmente entre como forma prática e permanente no currículo, contribuindo
para os saberes escolares e para uma escola mais atrativa. A escola, como lugar
legítimo de aprendizagem produção e reconstrução de conhecimento, cada vez mais
precisará acompanhar as transformações da ciência contemporânea, adotar e
simultaneamente apoiar as exigências interdisciplinares que hoje participam da
construção de novos conhecimentos (THIESEN, 2008).
Para Cruz(2009), o estudante ao exercitar a construção leitora, “o leitor abre
caminho para as mais diferentes formas de interpretação, na medida em que se concede
o prazer de ser seduzido pelos encantos do texto”. Desta forma, o leitor tem uma
importância capital dentro do texto, porque no ato da leitura ele se desenvolve em dois

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planos entrecruzados. Num primeiro plano ele se converte em personagem e em
seguida o leitor-personagem vai começando a ler o tecido textual e as suas reações de
leitura. A interdisciplinaridade não pressupõe uma diluição ou eliminação das
disciplinas, ou até mesmo uma descaracterização das disciplinas, trata-se sim de uma
ação coordenada de aproximação das atividades desenvolvidas pelos professores com
objetivos bem estruturados pela escola. O que inova é a prática, não existe uma prática
individualizada, mas sim uma prática conjunta e dinâmica. muito mais atraente para os
alunos.
De acordo com Paulo Freire (1987), a interdisciplinaridade é o processo
metodológico de construção do conhecimento pelo sujeito com base em sua relação
com o contexto, com a realidade, com sua cultura. Ressaltando que a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (nº. 9394/96), representam um importante documento
em favor do aprimoramento do educando e sua formação atendendo suas
especificidades regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e do próprio
aluno, bem como contempla a organização mais dinâmica do currículo, e articulação
dos conhecimentos no processo de interdisciplinar. Retomando pelo Art. 2º da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional-LDB-9.394/96, que abriga como princípio o
conjunto das pessoas e dos educandos como um universo de referência sem limitações,
com referência aos estudantes da EJA: “A Educação de Jovens e Adultos, modalidade
estratégica do esforço da Nação em prol de uma igualdade de acesso à educação como
bem social, participa deste princípio e sob esta luz deve ser considerada, uma
incorporação como princípio que todas e qualquer educação visa o pleno(...)” (BRASIL,
1996).
A Constituição Federal do Brasil traz a importância do “desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”
(Constituição Federal no seu artigo 205).

Considerações Finais
Para formar leitores um longo caminho é trilhado. Inicia-se na alfabetização e se
estende e vai acompanhar o estudante por toda vida escolar e fora desta. Aprender a
ler exige parceria dos pais com a escola, do professor com o aluno. Este processo deve
acontecer de maneira mais natural possível. E quando o caminho da aprendizagem
escolar da criança, do jovem, do adolescente, do adulto é interrompido fica um lapso
de tempo e nem sempre a busca pelo tempo perdido se refaz. Se no início do processo
de aprendizagem seja criança, jovem ou adulto foi prazeroso, ao retomar o processo de

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(re)aprender a ler precisa acontecer também de maneira lúdica, prazerosa, onde a
leitura seja capaz de proporcionar. da percepção do verdadeiro prazer que é a leitura
permita avançar como leitor, escritor e como cidadão crítico e ativo na sociedade onde
vive. O incentivo ao hábito da leitura para os alunos da EJA neste projeto
buscou também auxiliar a unidade escolar a atingir uma média superior a já alcançada
no Índice do Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), que em 2017 foi de 0,78.
Lembramos que juntamente com o projeto de leitura realizamos a integração dos
aspectos relacionados ao Meio Ambiente, Ética, Cidadania utilizando materiais
alternativos, materiais recicláveis para fazer a decoração e exposição de trabalhos.
Para acompanhar o desempenho dos alunos elaborou-se um formulário de
acompanhamento das habilidades e competências adquiridas, bem como o registro da
participação dos mesmos nas criações de desenhos, ilustrações, produções textuais,
além do registro do interesse pelas atividades propostas.
Apesar da escola ter a dificuldade de encaminhar um profissional para trabalhar
permanentemente no cantinho da leitura da escola, será observado a presença, procura
dos alunos envolvidos no projeto para desenvolver as ações de leitura dos materiais
ofertados no espaço destinado a realização das atividades do projeto, inicialmente na
sala de descanso dos professores, que ficou sob a responsabilidade de uma professora
licenciada em Pedagogia, e acadêmica do curso de História, lotada no CEA e que se
encontra excedente e desempenhando atividades administrativas, e ficou responsável
pelo acompanhamento, orientação, mediação das ações do projeto de incentivo à
leitura. A coordenadora pedagógica da escola, os professores
envolvidos no projeto e a equipe gestora tiveram papel fundamental no
desenvolvimento do projeto. A partir desses segmentos tornou-se possível promover
reuniões quinzenais com o objetivo de avaliar as atividades e comparação dos registros
relacionados ao projeto e assim (re)planejar e planejar outras atividades necessárias
para melhoria do projeto, no intuito de desenvolver a competência leitora dos alunos
envolvidos no projeto. A continuidade das
ações do projeto passou por momentos de tensão por conta da falta de um ambiente
adequado no espaço do Colégio CEA, porém em comum acordo o projeto passou a ser
desenvolvido na sala de reuniões dos professores, onde são realizadas as Atividades
Complementares (planejamento) dos docentes com a coordenadora pedagógica da
escola e gestão da escola durante o diurno. A decisão tomada para as ações do projeto
de incentivo à leitura passou a ser desenvolvido no turno noturno Outro desafio foi a
questão da adequação do horário para a frequência dos alunos no projeto de incentivo

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à leitura horário fora da sua frequência regular, por conta dos estudantes serem
trabalharem durante o dia.
Ao final da aplicação das ações inicias do projeto de incentivo à
leitura no Colégio Estadual de Alagoinhas para os alunos envolvidos no projeto
podemos observar a melhoria da do domínio da competência leitora, com participação
efetiva nas dinâmicas propostas, na socialização de suas produções na comunidade
local, no mundo digital, e através da prática das leituras diversas na escola e fora desta.
Espera-se que os estudantes continuem praticando a leitura de maneira coesa, correta,
observando a entonação, pontuação, com prazer e ludicidade. A demonstração da
satisfação de serem participantes do projeto a partir da ficou registrada a partir da auto
avaliação nos relatos abaixo vejamos:
Quadro 2. Auto avaliação dos estudantes do CEA do projeto de incentivo á leitura

Aluno 1 “perdeu a vergonha”

Aluno 2 é muito bom estar participando"

Aluno 3 “as professoras são umas bênçãos”

Aluno 4
“o projeto é muito importante";

Aluno 4 "está se sentindo valorizado como aluno";

Aluno 6 "ninguém nunca pensou em fazer assim;

Aluno 7 ” é muito bom fazer parte do projeto".

Fonte: A autora, 2019

O projeto de incentivo à leitura Vamos ler? Ler é Bom!, trouxe resultados


satisfatórios no desenvolvimento da competência leitora dos estudantes envolvidos no
projeto ao proporcionar momentos ricos na participação efetiva das múltiplas leituras.
Leituras compartilhadas, comentadas, relatos e comparações de fatos e acontecimentos
do cotidiano de cada aluno, leitura na própria escola e em outro espaço escolar, leitura
da história do país ou do mundo seja na leitura das fábulas, dos contos, quer seja na
escrita e socialização das histórias de vida encontradas nos livros e a sua própria
história de vida.
.

Referências
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução Nº.
1/2000, de 3 de julho de 2000, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para
Educação de Jovens e Adultos
________. Ministério de Educação e Cultura. Parecer ceb 11/2000.Diretrizes
curriculares nacionais para a educação de jovens e adultos. Brasília: MEC, 2000.

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CRUZ, Maria de Fátima Berenice da. Memórias de leituras literárias de jovens e adultos
Alagoinhenses (recurso eletrônico) /Maria de Fátima Berenice da Cruz. 2009.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 39 set./dez. 2008. A interdisciplinaridade como
um movimento articulador no processo ensino-aprendizagem. (in: encontro nacional de
didática e prática de ensino, 14, Porto Alegre, 2008. anais... porto alegre: puc-rs,

Site visitado
www.qedu.org.br/cidade/acesso em 22/02/2019
Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 39 set./dez. 2008

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BIBLIOTECA ITINERANTE: UM ESPAÇO DE LETRAMENTO
LITERÁRIO

Thiago Henrique da Silva de Sales, PPG-UEM


Patricia Josiane Tavares da Cunha, Unespar - Apucarana

Eixo Temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação de


leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender

Considerações iniciais
É de relevante conhecimento de todos a importância do contato com a
literatura, contudo, sabe-se que ainda muitas escolas não estão aptas ao desenvolver
um trabalho profícuo, uma vez que a utilizam como recursos no que tange em uma
abordagem temática e estrutural consideradas mais significativas, em especial nos anos
iniciais. Ou seja, aborta-se qualquer tipo de trabalho com o texto literário enquanto
objeto estético, em prol de temas transversais que, a posteriori trarão muito mais
discussões extratexto, relegando-o à obscuridade. Quando essa instituição de ensino
decide trabalha-la, tende-se a apresentar os textos atentando-se a aspectos linguísticos
e/ou questões sociais, privando o aluno de uma experiência única. Não significa que
tais questões não sejam relevantes, porém o texto literário tem muito mais a oferecer.
Em se tratando de preparar o indivíduo para tornar-se um leitor de literatura,
além do incentivo prévio trazido de casa (quando ocorre), a colaboração da escola é de
total relevância, como destaca Lerner (2002, p.28): “O desafio é formar pessoas
desejosas de embrenhar-se em outros mundos possíveis que a literatura nos oferece,
dispostas a identificar-se com o semelhante ou a solidarizar-se com o diferente”. Isso
posto, a escola tem o dever de criar condições que possibilitem ao aluno tornar-se leitor,
por meio do trabalho com a aquisição do gosto pela leitura, visando à constituição não
apenas de um sujeito ativo, crítico e participante da sociedade, mas também e

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primordialmente, em se tratando do leitor do texto literário, sensível e humano em
relação a si, ao outro e ao mundo.
É no momento em que o indivíduo detém seus olhos sobre um texto que
acontece o diálogo entre autor e leitor, fazendo com que esse amplie seu repertório e
almeje novos desafios ao buscar uma futura leitura. Nesse sentido, Filipouski (2009,
p.23) afirma que: “Formar leitores implica destinar tempo e criar ambientes favoráveis à
leitura literária, em atividades que tenham finalidade social, que se consolidem através
da leitura”.
Em conformidade a essas proposições, a Autarquia Municipal de Educação da
cidade de Apucarana, preocupada e disposta a aproximar os alunos da literatura, criou
projetos com o intuito de aprimorar cada vez mais o contato dos alunos com o mundo
da literatura, proporcionando ações e projetos de extensão cultural, dando um relevante
suporte para o trabalho em sala de aula.
Isso posto, considerando-se o letramento literário como uma possibilidade real
de ensino e aprendizagem das obras literárias, pautado na participação ativa do aluno
nesse processo e tendo a leitura como o seu ponto de partida e chegada. Assim, o
presente trabalho se divide em aspectos teóricos, onde são apresentados os conceitos
de letramento e letramento literário segundo Rildo Cosson (2006) e Magda Soares
(2006), que esclarece ser possível, por meio da adequada escolarização do texto
literário, desenvolver um trabalho mais eficaz no que diz respeito ao letramento em sala
de aula; e aspectos práticos, a partir da descrição de uma sequência didática básica
utilizando o livro infantil “A vaca fotógrafa” (2009), de Adriano Messias, trabalhada com
alunos do 4 ano do Ensino Fundamental I no ano de 2019.
Nesse contexto, o presente trabalho visa mostrar que é possível as instituições
de ensino se atentarem às necessidades reais dos alunos, contribuindo efetivamente na
formação humana dos discentes, apontando caminhos de um trabalho profícuo com a
literatura e as tecnologias, tendo como exemplo as contribuições das experiências já
trabalhadas na rede de ensino da cidade de Apucarana.
Do mesmo modo, espera-se que esta pesquisa contribua de algum modo para a
disseminação da leitura literária como instrumento fundamental de formação e
humanização do sujeito.

A escolha do corpus

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A escolha de Adriano Messias se deu por ser um escritor de diversos livros para
crianças e jovens, tendo recebido prêmios e menções em sua área. É estudioso de
literatura e cinema fantástico, e realiza suas pesquisas em universidades brasileiras e
francesas. Sua tese de doutorado "Todos os monstros da Terra: o bestiário fantástico
pós-2001" (PUC-SP) é uma busca não apenas de uma certa “arqueologia” dos seres
fantasiosos engendrados pela imaginação humana, mas, igualmente, uma reflexão
sobre formas expressivas no século atual, por meio do suporte escrito e imagético. Sua
área de trabalho igualmente diz respeito às atividades de literatura e criatividade nas
escolas, quando a presença do imaginário fantástico é cada vez mais solicitada.
Nesta história, “ A Vaca Fotógrafa”, Adriano Messias apresenta ao leitor uma
vaca um tanto atrapalhada, que fica o tempo todo fotografando só bichos de um sítio. O
que ela não sabe é que a sua máquina fotográfica pode lhe pregar uma peça. Com as
ilustrações bem-humoradas de Jean-Claude R. Alphen, a vaca fotógrafa é uma ótima
oportunidade para que o pequeno leitor entre em contato com a paisagem e os bichos
do campo de forma lúdica e criativa.

DESENVOLVIMENTO DA PROPOSTA

Letramento literário

Partindo da ideia de que o letramento designa as práticas sociais da escrita que


envolve a capacidade e os conhecimentos, os processos de interação e as relações de
poder relativas ao uso da escrita em contextos e meios determinados, torna-se mais
fácil compreender a pluralidade do letramento, bem como a extensão do significado da
palavra para todo processo de construção de sentido, como o letramento digital, por
exemplo. Segundo Souza (2007), “o letramento literário faz parte dessa gama de usos
do termo letramento, porém, tem uma relação diferenciada com a escrita e, por
consequência, é um tipo de letramento singular”.
Em primeiro lugar, o letramento literário é diferente dos outros tipos de
letramento porque a literatura ocupa um lugar único em relação à linguagem, ou seja,
cabe à literatura “[...] tornar o mundo compreensível transformando a sua materialidade
em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas”. Além disso,
o letramento feito com textos literários proporciona um modo privilegiado de inserção no
mundo da escrita, já que conduz ao domínio da palavra a partir dela mesma. Finalmente,
o letramento literário precisa da escola para se concretizar, isto é, ele necessita de um

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processo educativo específico que a mera prática de leitura de textos literários não
consegue sozinha efetivar.
Por isso mesmo, Paulino e Cosson (2009) entendem o letramento literário
como “[...] o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de
sentidos”. Diante disso, é importante entender que o letramento literário não se trata
apenas de uma habilidade pronta e acabada de ler textos literários, pois requer uma
atualização permanente do leitor em relação ao universo literário. Também não é
apenas um saber que se adquire sobre a literatura ou os textos literários, mas sim uma
experiência de dar sentido ao mundo por meio de palavras que falam de palavras,
transcendendo os limites de tempo e espaço.
Para Souza (2007, p. 103):

O letramento literário enquanto construção literária dos sentidos se faz


indagando ao texto quem e quando diz, o que diz, como diz, para que
diz e para quem diz. Respostas que só podem ser obtidas quando se
examinam os detalhes do texto, configura-se um contexto e se insere
a obra em um diálogo com outros tantos textos. Tais procedimentos
informam que o objetivo desse modo de ler passa pelo conhecimento
das informações do texto e pela aprendizagem de estratégias de leitura
para chegar à formação do repertório do leitor.

Dessa maneira, o primeiro passo a que esse estudo se propôs foi selecionar o
livro a ser lido pela turma. Vale lembrar que o estudo desse e de qualquer outro tipo de
texto literário pode não se dar a contento quando a escola, por exemplo, o deturpa,
transformando-o em texto de teor pedagógico.
Respeitar a totalidade da obra também é importante, pois não se pode retirar ou
saltar partes do texto que, por alguma razão, acha-se inadequadas para os alunos.
Afinal, o texto literário carrega em sua elaboração estética as várias possibilidades de
atribuição de sentidos. Desse modo, respeitar o texto faz parte de sua adequada
utilização.

O livro na escola – Biblioteca Itinerante

É do conhecimento de todos a importância do livro no ambiente escolar, contudo


ainda existem instituições preocupadas em fazer com que os alunos se tornem meros
reprodutores de conteúdos programados para vencer seu plano político pedagógico.
Muitos gestores tentam fazer com que outros trabalhos sejam desenvolvidos, mas, por

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conta de fatores vários, acabam por si só dando valor a projetos que visam um retorno
lucrativo.
Hodiernamente, o professor está inserido em um contexto onde os alunos não
são capazes de formar opiniões, expressar seus sentimentos, pois estão alienados a
uma massa que dita tudo o que eles precisam fazer, consumir e ser, e, nesse momento
social crítico, a escola tem um poder gigantesco nas mãos, pois é ela que pode oferecer
situações enriquecedoras, por meio de debates, seminários, palestras e escrita, com a
finalidade de desenvolver esse aluno para formar sua própria opinião e discernir o certo
do errado.
As autoras Borges e Goulart (2007, p.10) procuram transluzir a importância da
formação leitora do ser humano em todas as suas dimensões, afirmando que esse ser
humano que carrega a leveza da infância ou a inquietude da adolescência precisa
vivenciar, sentir, perceber a essência de cada uma das expressões que o tornam ainda
mais humano. Diferentes formas de expressão como [...] literatura (prosa e poesia), por
que estão presentes na unidade escolar? Porque são formas de expressão da vida, da
realidade variada em que vivemos. Muitas vezes, à medida que a criança avança nos
anos escolares ou séries do ensino fundamental, vê reduzidas suas possibilidades de
expressão, leitura e produção com diferentes linguagens.
Destarte, percebendo a importância e a necessidade de tornar a prática da leitura
cada vez mais próxima aos alunos, e também colaborar para que tenham acesso aos
diferentes gêneros textuais, a Autarquia Municipal de Educação da Cidade de
Apucarana –Pr, propuseram a execução do projeto “Biblioteca Itinerante – O prazer da
leitura mais perto de você”, no qual cada sala de aula do município de Apucarana do
Pré I ao 5º ano dispõe de uma estante contendo um acervo de livros de autores diversos
de acordo com a faixa etária. Este projeto foi idealizado primeiramente para suprir a falta
de espaço físico nas instituições, o que muitas vezes é um fator prejudicial à formação
de leitores, além disso, visou dinamizar e inovar o processo de leitura dentro das
escolas.
Conforme descrito no Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil
(BRASIL, 1998, p. 135):

Deixar as crianças levarem, um livro para casa, para ser lido junto com
seus familiares, é um fato que deve ser considerado. As crianças desde
muito pequenas podem construir, uma relação prazerosa com a leitura.
Compartilhar essas descobertas com seus familiares é um fator
positivo nas aprendizagens das crianças, dando um sentido mais
amplo para a leitura.

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Entenderam ainda que a leitura e a literatura são componentes fundamentais
para a formação de todo indivíduo, uma vez que desenvolve competências de
compreensão e aquisição de conhecimentos, possibilitando o desenvolvimento de
habilidades e, permitindo que o aluno aprendesse a ser ativo, curioso e capaz de exercer
controle sobre sua própria aprendizagem, ampliando assim, suas habilidades de leitura,
tornando-os cidadãos participativos e capazes de transformar a sociedade.

A vaca fotógrafa – Vamos trabalhar?

Antes de iniciar a descrição da sequência didática, se faz necessário explicitar


algumas informações para que possíveis dúvidas, quanto a realização do trabalho,
possam ser sanadas. O trabalho desenvolvido faz parte do projeto Biblioteca Itinerante,
o qual cada docente precisa escolher dois títulos e escolher apenas um para ser
desenvolvido uma sequência didática.
Para que tal proposta pudesse ser realizada foram utilizadas uma aula de
literatura por semanal ao longo do primeiro semestre e ao término foi apresentado e
exposto para a escola, na feira literária.
Inicialmente, na primeira aula, foi apresentado aos alunos o livro ‘ A vaca
fotógrafa de Adriano Messias, essa apresentação consistiu em falar sobre o autor,
mostrar a capa do livro, fazer proposições para que os discentes pudessem explanar
sobre possíveis temas que a obra poderia trabalhar.
Sobre o papel do professor no letramento e na ampliação da competência dos
estudantes como leitores, afirma William Cereja:

Independente da forma como o professor conduz e desenvolve o


projeto de leitura na escola em que atua (se por meio de provas, e
debates, de trabalhos criativos, etc.), é relevante o papel que ele
desempenha como orientador de leitura e como formador de leitores e
do gosto literário (2005, p. 23).

Posteriormente, o professor contou a história expondo página a página e


pedindo que os escolares prestassem atenção nas imagens dispostas no livro.
Segundo Vitor e Korbes (2011, p. 2),

[...] a contação de histórias [...] é umas das ferramentas pedagógicas


importantíssimas e que deve ser valorizada, pois a mesma contribui
para o desenvolvimento da criança em vários aspectos, ela
proporciona momento de prazer e ao mesmo tempo serve de alicerce
dentro do processo de aprendizagem.

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Por meio de algumas observações realizadas ao longo da experiência docente
do regente de sala, de acordo com Abramovich (1997, p. 17),

é ouvindo histórias que se pode sentir (também) emoções importantes,


como a tristeza, a raiva, a irritação, o bem-estar, o medo, a alegria, o
pavor, a insegurança, a tranquilidade, e tantas outras mais, e viver
profundamente tudo o que as narrativas provocam em quem as ouve –
com toda a amplitude, significância e verdade que cada uma delas fez
(ou não) brotar... pois é, ouvir, sentir e enxergar com os olhos do
imaginário!

Na segunda aula, com o intuito de trabalhar os animais, os alunos foram


divididos em equipes e por meio de sorteio tiveram que produzir um livro de fichas
técnicas, desenhando o animal, exposto na história, e ao lado as principais informações
de sobrevivência de cada um deles. Nessa perspectiva, é através da contação de
histórias que, de acordo com Coelho (2002, p. 29),

[...] para além do prazer/emoções estéticas, a literatura [...] visa alertar


ou transformar a consciência crítica do seu leitor/receptor. A literatura
infantil provoca emoções, diverte, dá prazer, mas ao mesmo tempo
ensina novos modos de ver o mundo, de viver, de pensar, além de
estimular a criatividade.

Trazendo o contexto social para a sala de aula, na terceira aula, foi exposto
aos alunos a importância do registro por meio das fotografias, conscientizando-os e
fazendo com que percebam as memórias riquíssimas que essas recordações
proporcionam na vida do ser humano, contando momentos felizes e tristes que cada um
já passou num determinando momento de suas vidas. Finalizando a aula, foi pedido aos
alunos, que trouxessem para a próxima aula, uma fotografia que eles gostavam e que
fizeram parte de algum momento feliz que eles vivenciaram.
Na quarta aula, os alunos foram convidados a irem à frente da sala para expor
suas fotos para a turma e fazer um breve relato do momento que foi eternizado pela
fotografia apresentada.
Na aula seguinte, os discentes tiveram contato com o gênero textual diário,
conheceram as partes estruturais que compõem esse gênero e na sequência foi
solicitado que cada um escrevesse um diário contando o fato apresentado na aula
passada, o qual eles explanaram para a turma. Segundo Coelho (2002 p. 12):

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A história alimenta a imaginação da criança, há quem conte histórias
para enfatizar mensagens, transmitir conhecimento, disciplinar até
fazer uma espécie de chantagem se ficarem quietos, conto uma
história, se isso, se aquilo, quando inverso que funciona. A história
aquieta serena, prende atenção, informa socializa e educa. O
compromisso do narrador é com a história, enquanto fonte de
sofisticação de necessidades básicas das crianças. Se elas escutarem
desde pequeninas, gostarão de livros vindo descobrir neles histórias
como aquelas que lhes eram contadas.

Após ser feito esse trabalho, o regente fez a correção dos textos e, em seguida
distribuiu algumas folhas preparadas previamente para que pudessem passar suas
redações a limpo. Consequentemente, foi montando um único diário contendo todas as
histórias dos alunos da turma. Contudo, de acordo com Koch (1998), é de suma
importância mostrar ao aluno que

“o ato de escrever é algo em processo de construção, e não um produto


finalizado. É uma habilidade a ser lapidada constantemente,
aprimorada a cada dia e em constante processo, que para ser atingida
requer muita leitura, conhecimento acerca do assunto, das técnicas de
produção textual e senso crítico”.

Na sétima aula, o regente trabalhou um poema intitulado “Fotografia”, o qual


após ser lido pelo mesmo, foi aberto uma roda de conversa para que os alunos
pudessem explanar suas impressões sobre o texto.
Leonor Werneck e Márcia Duarte afirmam que:

A Literatura precisa ser encarada como fenômeno artístico,


considerada em sua natureza educativa por excelência, porque traz
valores, crenças, idéias, pontos de vista de seus autores, que podem
enriquecer a vida daqueles que a lêem. Não deve estar presa a
modismos pedagógicos e sim ser considerada como uma atividade
prazerosa de conhecimento do ser humano e das diversas funções da
linguagem, dentre elas a função poética, pois retrata e recria as
questões humanas universais, numa linguagem esteticamente
trabalhada, transgressora da rotina cotidiana (SANTOS; DUARTE,
2005, p. 4).

A posteriori foi escolhido um aluno para gravar o poema em estúdio e


conseguinte participar de uma filmagem que servirá para a apresentação de fechamento
do projeto.
Com o apoio da professora de inglês, de música e do regente de sala, os
estudantes ensaiaram ao longo das semanas a música “Photograph” de Ed Sheeran.
Algumas alunas por terem contato com a dança decidiram coreografar a música para
compor a apresentação musical. Dessa forma,
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O ideal da literatura é deleitar, entreter, instruir e educar as crianças, e
melhor ainda se forem as quatro coisas de uma vez. Repetindo:
educar, instruir e distrair, sendo que o mais importante é a terceira. O
prazer deve envolver tudo o mais. Se não houver arte que produza
prazer, a obra não será literária, e sim didática (GÓES, 1991, apud
DEBUS, 2013, p.11).

Na semana que antecedia as apresentações de todos os trabalhos


desenvolvidos por todas as turmas, foi confeccionado um mural onde os alunos
expuseram seus trabalhos e colocaram fotos pessoais deles e da equipe pedagógica da
escola rememorando momentos em que todos da equipe tiveram ao longo do ano em
curso. Esse mural tinha como tema central a frase “Celebre a vida! ”. Teve como fundo
a cor preta relembrando os filmes fotográficos e fios de linhas douradas para comporem
um cenário diferente.
No dia da apresentação foi apresentado à escola o vídeo produzido com a
mensagem gravada em estúdio e a música cantada pela turma com a coreografia de
algumas meninas da turma. Ao término foi entregue, para todos, um porta-retratos
confeccionado pelos professores regentes da turma em formato de coração escrito a
mesma frase confeccionada para o mural. Encerrado o projeto, o professor contribuiu
para que mais alunos se tornem leitores/ apreciadores do texto literário.

Considerações Finais
Ao longo desse processo foi possível observa o quão importante e rico se torna
o trabalho de um professor quando este tem o apoio e respaldo da escola e das
instâncias que são responsáveis pela educação dos alunos.
A literatura é de suma significação na vida dos alunos, uma vez que é por meio
dela que eles poderão desenvolver e ampliar seus vocabulários, aprender a dialogar
frente aos problemas e propor soluções àquilo que conseguem enxergar e dispõe a
ajudar na resolução dos problemas.
Vimos também que é de total responsabilidade do professor selecionar obras
para que o trabalho literário com os alunos aconteça de maneira profícua. Neste trabalho
foi selecionado uma obra de Adriano Messias, dotada de detalhes riquíssimos em sua
composição artística através das imagens e das palavras que tanto cativaram e
estimularam a leitura nas crianças.
Espera-se com esse trabalho que mais professores se inspirem e desenvolvam
projetos que sejam capazes de despertar em seus alunos a ânsia de quererem ler e ler
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cada vez mais os textos literários, pois trazem consigo uma quota de humanização para
o sujeito e que essa caixa de surpresas que a literatura proporciona à tanta gente possa
continuar enriquecendo a vida de futuros leitores.

Referências
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LEITURA LITERÁRIA NO SUPORTE DIGITAL: DESAFIOS NA E
DA ESCOLA

Bárbara Cibelli da Silva Monteagudo

Eixo Temático: Educação Literária, letramento literário, formação e mediação


de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender

Palavras Iniciais

Esse artigo pretende discutir a literatura no suporte digital na escola, iniciamos


com uma breve discussão sobre a literatura como promotora de desenvolvimento
humano e materialização cultural, para analisar os usos da tecnologia pelos alunos em
suas vidas e pela escola.
A palavra literária permite ao leitor se relacionar com a vida humana por um viés
da própria vida. Ponzio (2010), faz alusão ao mito de Perseu, destaca que o herói, ao
enfrentar a Medusa, não podia olhar diretamente em seus olhos, mas para fazer isso,
usou o escudo e enfrentou o monstro, ao ver refletida a Medusa cortou-lhe a cabeça. O
escudo o protegeu de olhar diretamente nos olhos da Medusa e se petrificar, virar uma
estátua de pedra. Para o autor, a palavra literária possibilita ao leitor ver o mundo e a
vida de forma indireta porque na literatura o autor consegue trabalhar a língua fora dela,
entretanto para ela. Assim como Perseu, vê a medusa pelo reflexo; o leitor pode ver o
reflexo da vida pela literatura.
Para Bakhtin (2010), a palavra literária está na utopia, na alteridade, lugar da
escuta, da possibilidade de uma comunicação que favorece a liberdade humana. “A
escritura literária põe em crise o direito de propriedade sobre a palavra e a própria
categoria de sujeito” (PONZIO, 2010, p.67), porque recusa o poder, busca esclarecer,
elucidar. Na literatura, a palavra não é do autor, mas é a palavra do outro (BAKHTIN,
2010), com o outro. Na literatura estão presentes várias vozes, assim como a ironia, a
paródia, o humor e os vários tons. Para Bakhtin (2010), ao ler uma obra o leitor depara-
se com dois momentos da narração: o plano narrador que reflete a história a contar e o

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plano de autor que refrata a mesma história, com suas forças centrípetas e
centrífugas285, que movimentam a história humana.
A compreensão da obra só é possível pelo entendimento do contexto, da época,
presentes no discurso da personagem, que reflete e refrata a realidade. Temos aqui o
que Bakhtin (PONZIO, 2010) chamou de bivocalidade, a palavra bivocal que reflete e
ao mesmo tempo, refrata a intenção do autor. A bivocalidade só é possível pela
dialogicidade, com vozes que se cruzam e coexistem no discurso. A bivocalidade
favorece o reconhecimento do homem como um ser único na vida, permite a relação de
alteridade, o olhar para o outro, assim como ouvir as vozes que falam pelo outro.
A literatura também remete à metáfora do espelho, por ela, se consegue ver a
realidade da vida refletida. Na literatura, o olhar se torna enviesado e a vida pode ser
vista de outro ponto, que não o real. A literatura seria uma linguagem, uma forma de
olhar a vida, a busca da alteridade, busca do outro, da subjetividade. A palavra só é livre
na vida, no diálogo com o outro, porque quando é aprisionada, morre, não pertence mais
à arena da vida. Por isso, torna-se evidente e necessário ver a literatura como um dos
instrumentos para o desenvolvimento do ato cultural de ler, para o desenvolvimento das
estruturas superiores da mente humana.

Literatura no suporte digital

A pesquisa realizada buscou mapear o comportamento leitor do aluno ao ler


obras literárias no suporte digital e a primeira situação a qual nos deparamos foi o aceso
às obras gratuitas que muitas vezes diferem da concepção de literatura exposta até
agora. Pensar em literatura no suporte digital, nas obras de domínio público, nos leva a
pensar em como elas podem estar carregadas de estereótipos, e até de uma retórica
pacificadora, com um viés pedagogizante. Entretanto, entende-se ser possível na escola
construir esse olhar que percebe o viés da própria obra e poder refutá-la, criticá-la,
escolher e refletir. A oferta de obras literárias digitais gratuitas é ainda muito restrita,

285
Este tipo de compreensão orienta um olhar para o estilo no romance marcado pela ‘unificação
e a centralização das ideologias verbais’, chamadas por ele de forças centrípetas da vida social,
linguística e ideológicas. É preciso considerar que, apesar de se constituir como homogênea e
centrípeta, esta tendência traz consigo a própria realidade estilística, a qual ele chama de
pluringuismo real, considerado por Bakhtin a dinâmica da vida real. Este plurilinguismo ganha
força na medida em que se tende a insistir na supervalorização da língua única, o que nos permite
entender, que junto com as forças centrípetas, existem as forças centrifugas, configuradas pela
tensão e abertura, revelando, ideologicamente, as relações efetivas, relacionadas à vida.
Portanto, para Bakhtin, ao se considerar somente uma dessas forças em uma análise sobre a
linguagem, tende-se a uma compreensão monológica do fenômeno estudado, separada da
dialogia constitutiva das relações humanas (GEGe, 2009, p. 48-49).
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ainda mais numa sociedade de mercado composta por consumidores, como nos aponta
Bauman (2008).
Apesar de haver um aumento extraordinário de obras gratuitas entre o início da
pesquisa e o seu término, é possível à escola um trabalho que proporcione o desejo de
ler como necessidade humana, refletida no gosto pela literatura. Ainda falta muito para
a democratização do acesso às obras literárias, principalmente porque as obras
gratuitas se resumem em sua maioria àquelas cuja edição ou tradução são de domínio
público286. Neste processo de democratização dos bens culturais, a escola passa a ter
papel importante em criar espaços efetivos para uso da literatura infantil como prática
social construída pelo homem ao longo de sua história, como prática que possibilita a
tridimensionalidade citada por Ponzio (2010). Mesmo que os e-books ainda sejam
restritos em número e em qualidade, as crianças precisam descobrir o livro no suporte
digital, para poderem se apropriar da literatura em todos os seus suportes.
As crianças podem descobrir o ciberespaço como fonte de leitura literária. Essa
ainda não é uma prática social, por ser muito recente, assim a escola passa a ter papel
importante no desenvolvimento de leitores autônomos capazes de selecionar obras
digitais com valor literário. Na pesquisa discutimos com os alunos sobre a obra lida, para
que, ao se constituírem como leitores, percebessem que uma obra pode ser
inadvertidamente citada como literatura infantil, mas seu valor é apenas instrutivo ou
paradidático.
Os e-books são restritos porque não há acesso aberto a obras que estão em
produção no momento. Por outro lado, as obras disponíveis em sites de domínio público,
como os clássicos, são ricas, ajudam a construir a história da literatura e podem ter
papel importante na formação do leitor. Uma criança, ao descobrir obras digitais, tem
uma nova possibilidade de leitura, de prazer, de esforço intelectual e de inquietude para
reconhecer-se como homem, e descobrir na literatura uma fonte de desenvolvimento,
de satisfação de uma necessidade humana.

Ensino do ato de ler no suporte digital

Leitura nos diversos suportes, impresso e digital devem ser proporcionados pela
escola como possibilidade na apropriação das obras literárias. Ler nos dois suportes

286
No Brasil os direitos autorais das obras duram 70 anos após sua morte. Bens culturais são da
humanidade após setenta anos da morte de seus autores, por serem considerados da
humanidade e não propriedade particular. Lei 9.610/1998 regulamenta os Direitos autorais no
Brasil, que divergem de um país para outro.
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pode ajudar as novas gerações a não se fecharem para a curiosidade e para o encontro
literário. Introduzir a leitura digital na escola pode ser uma maneira de garantir o acesso
ao patrimônio cultural e social à nova geração,

Dizem, porém, que existe uma geração digital de hackers que, nunca
tendo lido um livro na vida, com o e-book conheceram e provaram
agora, pela primeira vez, o Dom Quixote [...] se as gerações futuras
chegarem a ter uma boa relação (psicológica e física) com o e-book, o
poder de Dom Quixote não mudará. (ECO, 2003, p.10).

Se, por um lado, há pouco tempo, o povo brasileiro teve acesso à escola para
aprendizagem da língua escrita, bem sabemos que ainda restam outros desafios, um
deles é a tecnologia que chega de forma abrupta a uma grande maioria da população,
sem que se reflita nas possibilidades de uso não só para distração, diversão, lazer, mas
como forma de emancipação humana, como acesso aos bens culturais, como
apropriação, objetivação e transformação de si e do gênero humano.
É necessário pensar nas condições e usos necessários para que a cultura não
seja acessível apenas a alguns. Muito interessante é a contribuição de Martín-Barbero
(2003) que traz o conceito de ecossistema comunicativo, com uso da oralidade, da
escrita e da informática na formação de um homem letrado, autônomo, capaz de ler,
nos diversos suportes, nas e com as diversas linguagens. Canclini (2008) remete-se a
Martín-Barbero (2003), que aponta três tipos ontológicos de ensino da língua: rodas
(oralidade), papel (escrita) e tela (diversas linguagens: oral, escrita, visual, tátil) e
destaca a necessidade de um ensino que equilibre estes modos de uso da língua na
formação da humanidade.
A primeira possibilidade apontada por Martín-Barbero (2003) é a roda como o
local onde os indivíduos podem se olhar, olho no olho, sem hierarquia, sem um estar à
frente do outro, porque espacialmente cria-se uma horizontalidade da ocupação. Isso
poderia favorecer a horizontalidade dos diálogos, que se olham nos olhos, trocam e se
tornam cúmplices, refutam e se fundem uns nos outros. Rodas com leitores que possam
posicionar-se para que muitas vozes sejam ouvidas na sala de aula, multiplicidade de
vozes e discursos.
Levy (2006) pontua que se tínhamos na oralidade um padrão circular, na escrita
um padrão linear, a informática vem oferecer a oportunidade de um padrão em redes
com a hibridização das linguagens que altera a forma de ler, de compreender, a relação
de sentido, olhos, ouvidos, tato, mente, todos acionados para atribuir sentido. Rodas
como “comunicação oral dos sentidos construídos (em silêncio) pelos leitores”

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(BAJARD, 1994, p.07). A prática docente pode ser organizada de forma a favorecer as
possibilidades de que muitas vozes se façam ouvir na sala de aula, um verdadeiro
desafio em relação à formação do leitor. É preciso levar em consideração o sujeito
contemporâneo e as práticas de leitura do texto eletrônico, é necessário promover o
diálogo entre teoria e prática.
Baseando-se nos conceitos de forças centrípetas e centrífugas de Bakhtin
(FARACO, 2009), o professor teria o papel de tirar o aluno de seu autocentro (forças
centrípetas) e desestabilizá-lo (forças centrífugas). Isso o ajudaria a descentrar suas
verdades, suas certezas, o movimento que se complementa com a exotopia, que é o
distanciamento de si, o vir pelo outro, no outro, no reconhecimento da alteridade. As
forças centrífugas rompem o discurso pronto e acabado que a mídia e os meios de
comunicação tentam impor. O diálogo e a reflexão coletiva poderiam contribuir para
quebrar as forças centrípetas, mediante multidiscursos que se embatem, refletem e
refratam a realidade.
A escola, com sua força assujeitadora acaba por ignorar a singularidade na
tentativa de impor uma única voz. Para não se tornar mecanismo de assujeitamento, à
escola resta enfrentar o desafio de buscar nas nervuras do dia a dia, possibilidades de
reconhecimento dos homens através das diversas vozes, dos diversos discursos que
se entremeiam, se rejeitam, se debatem na tentativa de quebrar as forças centrípetas
que buscam a conformação, se debatem como forças centrífugas na busca de maior
autonomia e emancipação do homem, capaz de produzir um

processo de descentração de si, no qual o aluno é convidado a abrir


mão de seu universo (conhecimentos, informações, hipóteses e
concepções) para considerar outros- mais amplos profundos e
ajustados–pontos de vista e, por essa via, novamente reconstituir-se
enquanto pessoa em um novo e enriquecido 'universo'. (COLELLO,
2006, p. 110).

A escola tem papel essencial para que as novas gerações descubram no espaço
virtual uma possibilidade de introdução à literatura infantil. O espaço virtual dá um
tratamento instantâneo, uma materialização diferente, usa o oral e escrito como
comunicação, diálogo. Esta junção de formas de comunicação não é nova. Essa
instantaneidade era também vivida pelo homem através de seu pensamento, porque ao
ler um livro ele deixava vir ao seu pensamento todas as vozes já ouvidas, lidas, como
quando o leitor consegue ouvir o barulho das ondas do mar, ao mesmo tempo chora a
saudade, se encanta com a cor do céu, sente a areia e o vento bater forte em seu peito,
tudo ao mesmo tempo. O pensamento ativa todas as palavras, as palavras do leitor se

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juntam às palavras do autor e chocam, refletem e refratam para a construção de um
sentido, sentido único para quem lê.
O computador favorece esta instantaneidade entre oral e escrito, porque
visualizamos melhor aquilo que antes estava por detrás dos olhos, na imaginação, na
criação, que possibilita ao homem desenvolver-se como ser social e cultural. As forças
centrípetas dos discursos se instalam nas práticas pedagógicas e desejam controle,
conformação, vigilância, repressão e controle. Somente a ação intencional que quer a
criação de forças centrífugas dos discursos pode descentrar o aluno de si rumo à busca
de emancipação e autonomia.
Levy (2006) e Martín-Barbero (2003), acreditam que a humanidade viveu três
grandes eras na gestão social do conhecimento: oralidade, escrita e informática. Pensar
na sala de aula, nos sujeitos ali presentes, nas relações com os instrumentos criados
pela humanidade, leva a pensar o papel do professor em proporcionar a fusão da
oralidade, escrita e tecnologia na organização do ensino para que realmente os alunos
tenham condições de apropriar-se da cultura. As rodas de leitura proporcionam essa
fusão.

Concepções dos alunos sobre leitura literária e usos da tecnologia

A análise em seguida, se apoiou em trechos do Diário de Bordo do pesquisador


descritos por Zabalza como instrumento da pesquisa-ação, trata-se do levantamento
das vivências dos alunos dentro e fora da escola, envolvendo a literatura infantil e o uso
da tecnologia, com intuito de analisar se a escola considera as aprendizagens do aluno
para organização do ensino. Os dados gerados foram analisados de acordo com a
metodologia de análise microgenética de Góes e segundo os pressupostos da Teoria
Histórico-Cultural, da perspectiva de linguagem de Bakhtin e dos autores que estudam
o ato de ler textos.
As entrevistas com os alunos do quarto ano do Ensino Fundamental da rede
pública paulista contribuíram para perceber os usos pelos alunos da leitura, da literatura
infantil e do computador na escola e na vida cotidiana para compreender a Zona de
Desenvolvimento Proximal (ZDR) (VIGOSTKI, 2001) dos alunos.
Na busca de compreender um pouco do universo leitor do aluno e do uso da
tecnologia em seu dia a dia, foram feitas algumas perguntas na entrevista inicial sobre
o uso da sala de informática na escola, sobre a leitura de livros de literatura no
computador, sobre livros, biblioteca e práticas de leitura. Uma questão importante era
saber se os alunos usavam computador e o tempo gasto diariamente.
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A seguir, trechos da entrevista com alunos:

Pesquisadora – Quanto tempo gasta no computador?


Heloísa – 30 minutinhos.
Rafael – Por dia, mais ou menos, uns três quatro minutos.
João – Não sei bem.

Pesquisadora – Você vai sempre à sala de informática de sua escola?


Fazer o quê?
Heloísa – Não.
Rafael – Não ainda não dá para usar, antigamente, a única vez que
abriu foi perto do primeiro dia do terceiro ano, a gente não sabia ler
direito, a gente jogou, foi a ultima vez.
João – Não.

Pesquisadora – Quando você foi a última vez?


Heloísa – Para um trabalho do Bing Bang, eu já joguei.
Rafael – Para jogar.
João – Não lembro.

Pesquisadora – Você já leu livros de literatura infantil pelo computador?


Heloísa – Não li livro no computador.
Rafael – Não.
João – Não.
(Entrevista, 15/05/2013).

No primeiro trecho, ao se referirem ao tempo utilizado com computador ou


similar, trazem um aspecto significativo da faixa etária, que é a própria noção de tempo.
Elas não conseguem perceber o tempo gasto no computador, mas uma informação
importante é a de que faziam uso diário do computador. No segundo e terceiro trechos,
eles evidenciam duas questões problemáticas na escola, uma é relacionada ao longo
período, meses e mais meses em que a escola aguardou os órgãos centrais da SEE-
SP corrigirem problemas técnicos. O outro é o pouco uso pelos professores. Nos quatro
anos de escola, tinham apenas uma ou duas lembranças, no máximo, de uso para jogar
ou fazer uma pesquisa. No quarto trecho, eles evidenciam que não liam em casa ou na
escola nenhuma obra literária no computador. Nas conversas informais, ficou bem
evidente como a descoberta do livro digital foi algo de que gostaram muito. Os dados
revelavam o uso da tecnologia para entretenimento. Na escola, apesar de haver uma
sala disponível com computadores, as situações de ensino não faziam uso para
apropriação cultural.
Outro aspecto importante levantado na entrevista foi direcionado para atividades
de leitura literária dos alunos e seu comportamento leitor na escola e em casa.
Pesquisadora – Você lê com que frequência?
Heloísa – Todo dia.

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Rafael – É bem divertido, quando você lê, vê na imaginação parece
que as figuras estão se mexendo, que você é um dos personagens,
muito legal.
João – Sempre.

Qual o último livro que você leu?


Heloísa – Smurfs.
Rafael – Ih esqueci, ah, Rosa no Campo287.
João – Não me lembro. Gibi.

Pesquisadora – Fale um pouco de você como leitor.


Heloísa – Gosto de ler no meu quarto porque fico sozinha e ninguém
me atrapalha.
Rafael – Eu gosto de ler num cantinho onde ninguém me interrompa.
Para eu soltar bastante a minha imaginação, lá do lado de fora da
minha casa, ou se não, no meu quarto que fico lá escondidinho lendo
os meus livros.
João – Sossegado, no meu quarto.

Pesquisadora– O que gosta de ler?


Heloísa – Livro.
Rafael – Aqui também tem bastantes livros, bem legais. Só você levar
e ficar bastante dia e depois traz de volta. Não leio todo dia na escola
livros de literatura. A professora lê história todo dia.
João – Livros em geral.

Pesquisadora – O que costuma ler na escola? Faz uso da biblioteca


escolar? E de outras bibliotecas? Com que frequência?

Heloísa – A professora dá gibi, dá livro. Livros de literatura. Não, daqui


de Marília. Com meu pai e minha mãe, sempre.
Rafael – Livro. Não, também não.
João –Não, sexta-feira, quando sobra hora. Que não tem nada na
última aula, ate que a gente vem, não, Heloísa? Gostaria de vir mais.
(Entrevista, 15/05/2013).

Podemos traçar um perfil dos leitores acima. Eles gostam de ler, mas na escola
não encontram muito espaço e tempo para isso. Os alunos conseguem descrever o
processo de leitura como de simbolização, imaginação, prazer. Na escola, a professora
lê sempre, eles só leem quando sobra tempo. Gostam de ler livros. Ler silenciosamente,
no quarto ou em um cantinho é prazeroso, por isso leem sempre em casa.
Outro aspecto era saber se tinham biblioteca, se tinham expectativas em ler no
computador e em ter livros de literatura no suporte digital:
Pesquisadora – Você tem uma biblioteca em casa?
Heloísa – Sim, uns 27 livros.
Rafael – Sim, tenho muitos livros, mas é muito difícil, tem uns livros
muito grandes com histórias bem grandes. Como não tem aqueles
marcadores, fica muito difícil de ler.
João – Sim, bastante.

287
A aluna citou este livro, mas não encontrei fonte que o identificasse.
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Pesquisadora – Se tivesse muitos livros disponíveis em casa, acha que
leria mais?
Heloísa – Sim.
Rafael – Sim, cada um por dia, ou se não, dois.
João – Sim.

Pesquisadora – Se tivesse livro em computador, leria mais?


Heloísa – Sim.
Rafael – Sim.
João – Sim. Eu leria.

Pesquisadora – Gostaria de ter seus próprios livros no computador?


Heloísa – Sim.
Rafael – Sim.
João – Sim.
(Entrevista, 15/05/2013)

Os alunos já têm biblioteca impressa em casa e gostariam de ter seus próprios


livros no computador. Por isso, na pesquisa, ler no suporte digital foi uma descoberta
que gerou expectativa, à escola cabe uma ação intencional dessas obras adentrem seus
espaços e de estabelecerem relações de ensino e aprendizagem.

Considerações Finais

Os alunos possuem livros em suas casas, gostam de ler obras completas,


também possuem acesso aos computadores, porém, não há uma ação intencional da
escola de possibilitar novas vivências de leitura literária em suporte digital, restringindo
o uso das salas de informática a jogos e passatempos.
Temos um desafio na escola e na academia, que é o de pensar em
congregar esforços para a escola formar leitores. As políticas públicas, quando são
apenas políticas de partido, de governo ou até mesmo de gestão, vivem o mito da
Penélope, que fiava de dia e desfiava a noite. Formar leitores vai além da literatura, mas
pensar na formação de leitores de literatura é parte desse processo, assim, a biblioteca
escolar impressa e a digital faz parte do processo educativo do leitor, da criança.
Por fim, Galeano (1993) compartilho das reflexões sobre a busca das palavras
andantes, que andam também no suporte digital, nas palavras presentes nas bibliotecas
virtuais, com seus livros navegantes, como fonte de desenvolvimento de leitores
navegantes.

Referências

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BAJARD, E. Ler e dizer. São Paulo: Cortez, 1994.

BAKHTIN, M. O discurso doromance: questão de literatura e estética. A teoria do


romance. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 71-210.

BAUMAN, Z. Vida para consumo. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de


janeiro: Zahar, 2008.

CANCLINI, N. Consumidores e Cidadãos. 7ª ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2008.

COLELLO, S. Educação e Intervenção escolar, Revista Internacional D’Humanitats 4,


2006. Disponível em: <www.hottopos.com> Acesso em 12 set. 2013.

ECO, U. Ensaios sobre a literatura: Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.

FARACO, C. A. Linguagem & Diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São


Paulo: Parábola Editorial, 2009.

GALEANO, E. Palavras Andantes. Bezerros: Editora L&PM, em parceria com o


xilogravurista pernambucano J. Borges, 1993.

GEGE. Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de


Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.

LEVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática.


Rio de Janeiro: Editora 34, 2006.

MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.


Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2003.

PONZIO, A. Procurando uma outra palavra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.

VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

ZABALZA, M. Os dilemas práticos dos professores. In: Revista Pátio. N. 27 Porto


Alegre: 2003.

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CLUBE DE LEITURA E FORMAÇÃO DO LEITOR: A SELEÇÃO
DAS OBRAS LITERÁRIAS

Juliete Rosa Domingos (Universidade Estadual do Norte do Paraná –


UENP/Campus Cornélio Procópio)
(Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo)

Eixo Temático: Educação literária, Letramento literário, formação e mediação


de leitores literários: entrecaminhos do saber/aprender

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho objetiva apresentar o processo de escolha e as obras
literárias que compuseram o clube de leitura denominado “Viver e Tecer
Histórias”, o qual foi projetado e efetuado durante a pesquisa de mestrado
intitulada Viver e tecer histórias: a animação de leitura para a formação de
leitores no interior paulista, subsidiada pela Capes e concluída em 2019, por
meio do Programa de Mestrado Profissional em Letras (ProfLetras), pela
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).
O clube de leitura em questão, visando uma turma de 6º ano como
público-alvo, foi implementado na Escola Estadual Professora Isabel Cristina
Fávaro Palma – localizada no município de Tejupá/SP – e funcionou como um
suporte para a oferta de um espaço democrático tendo em vista o legítimo
encontro entre o leitor e a leitura de literatura. Dessa forma, as atividades
desenvolvidas foram inspiradas em estudos metodológicos compromissados
com o letramento literário, por compreendermos que essa perspectiva permite
uma aproximação autêntica e constante entre obra e leitor.
As obras selecionadas para o clube de leitura foram escolhidas partindo
do princípio de se oferecer aos leitores um objeto literário de alta qualidade
estética. Assim, foram selecionados vinte e um livros do acervo da escola,
chancelados pelo programa PNBE e quatro livros bem avaliados pela crítica
especializada do gênero, no caso o Prêmio Jabuti e a Fundação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil, doravante FNLIJ.

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Além das chancelas supracitadas, foram levados em conta os
determinantes referentes ao gosto e ao nível de maturidade em relação à leitura
dos alunos. Para tanto, foram considerados os resultados de um questionário
sobre o contato com a leitura dos alunos, realizado no final do ano de 2017,
quando os alunos faziam parte do corpo discente no 5º ano do Ensino
Fundamental I e, ainda, as observações de sondagem realizadas Pela
professora-mediadora – também a pesquisadora desse trabalho – , com os
alunos já no 6º ano, durante as aulas regulares de língua portuguesa.
O projeto, de modo geral, fundamentou-se pela ideia de animação de
leitura (CECCANTINI, 2009) e da concepção de clube do livro (MARIA, 2009),
promovendo práticas alternativas que colaborassem para a efetiva inserção dos
alunos no mundo literário. Contudo, também, buscou-se arcabouço teórico e
metodológico em estudiosos como Rildo Cosson (2016), Maria da Glória Bordini
e Vera Teixeira Aguiar (1988) que tratam do processo de mediação de leitura -
ou os efeitos da falta dela - no contexto escolar, bem como apresentam
metodologias alternativas para se trabalhar o ensino de literatura nesse âmbito.
Nesse sentido, intentamos apresentar o procedimento de seleção dos
livros enquanto corpus desse projeto e, nesse viés, também, contribuir para a
discussão da importância de escolher obras legitimadas esteticamente para
serem ofertadas no campo de práticas que almejam centralizar a leitura de
literatura, visto que, o texto literário de alta qualidade estética tende a ofertar
caminhos múltiplos, a partir do plano temático, da sua estruturação, linguagem,
entre outros aspectos, para a efetivação da formação dos leitores críticos.
Conforme mencionado, antes da seleção dos livros, optamos por
compreender previamente que tipo de experiência de leitura literária teriam
aqueles que estavam sendo visados como participantes do projeto em destaque
e, assim, consequentemente, conhecer seus gostos e interesses no que diz
respeito à literatura. Sendo assim, nosso primeiro passo foi a elaboração e
aplicação de um questionário que contou com quatro questões abertas, sendo
elas: 1) Na escola em que você estuda, que tipo de livro você mais gosta de ler?;
2) Quando você ouve uma história, na escola, do que você mais gosta?; 3) Se
tivesse que indicar um livro para algum colega de outra classe, qual você

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indicaria? Por quê?; 4)Você tem alguma sugestão sobre leitura para nossas
aulas do ano que vem (2018)? O que você gostaria que continuasse? O que
você gostaria que mudasse?
Vale ressaltar que nos pautaremos nos resultados de apenas duas
questões, as quais condizem com o assunto abordado nesse trabalho, no caso,
a questão 1 e a questão 3, que trazem informações prévias a respeito dos tipos
de livro que comumente eram ofertados aos alunos e, dentre esses, quais eram
as preferências dos estudantes.
As análises das respostas referentes à primeira questão mostram que
os alunos não se limitaram à escolha de livros de literatura, 6% (dois alunos)
mencionaram o livro de ciências. O “livro de aventura” é o mais mencionado,
representando 35% das escolhas – doze alunos. Os tipos “comédia” e “ação”
são escolhidos por cinco alunos – 15%, os gibis figuram representados por 9%
– três alunos, o tipo “amor” é representado por 6% – 2 alunos e os outros tipos
mencionados equivalem à porcentagem de 3% das escolhas – apenas 1 aluno
mencionou. Ressaltamos que os alunos poderiam escolher mais de um tipo de
livro e que as respostas eram abertas, as quais não manipulamos para criar os
dados.
A terceira questão solicitava que os alunos fizessem indicações de livros
para colegas de outras classes e explicassem o motivo de indicarem aquele livro.
Os livros indicados foram: Turma da Mônica, Menino Maluquinho, Percy
Jackson, Zac Power, Luluzinha, História do Zé Malandro e História do homem
do saco (provavelmente, contadas de forma oral), Matemática (o livro didático do
componente curricular), Oi, meu nome é NÃO, História do xadrez, Diário de um
banana, Nicolas, O leão e o rato.
Ao analisarmos essas indicações, percebemos a limitação em relação a
títulos literários, que, quando são mencionados dizem respeito a alguns best
sellers infantojuvenis como o Percy Jackson, O diário de um banana e Zac
Power, a indicação da fábula “O Leão e o Rato” ou a indicação de algumas
histórias de tradição oral como “A História de Zé Malandro” (narrativa popular
presente, inclusive, no livro Contos de enganar a morte, do escritor Ricardo
Azevedo, selecionado para o clube de leitura) e a “História do homem do saco”.

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As outras indicações equivalem a livros de outros formatos que não os literários.
Assim, percebemos que a oferta de obras de alta qualidade literária não fazia
parte da rotina dessas crianças. Cada um, à sua maneira, explicou o motivo para
a indicação do livro: gosto de leitura, temática, por achar interessante, por achar
a história legal, entre outros.
As análises das respostas auxiliaram de maneira substancial para que
pudéssemos pensar na seleção das obras literárias infantojuvenis de alta
qualidade estética e literária oferecidas aos alunos, no clube de leitura, sem,
contudo, perder de vista os gostos de leitura deles, mesmo que limitados, e,
assim, abrir caminhos que permitissem inserí-los, de fato, no mundo da literatura,
oferecendo um material de qualidade.
Nesse caminho, a seleção de livros realizada para esse projeto contou
com títulos de temáticas variadas e que pertencem a gêneros literários
diversificados. Segue a tabela com os títulos selecionados – com seus
respectivos autores, ilustradores e adaptadores (quando houver), ano de
publicação e ano em que foi selecionado pelo PNBE ou a indicação das
chancelas recebidas pela Câmara Brasileira do Livro ou pela FNLIJ.

Quadro 1: Livros selecionados para o Clube de Leitura Viver e tecer histórias


Título Autor (A)/ Ano de Chancela
Ilustrador (I)/ publicação
adaptação (adap.)
1.Do outro lado tem Ana Maria Machado 2003 PNBE – 2003
segredos (A)
Gerson Conforti (I)
2.O Caçador de Joel Rufino dos 2006 PNBE – 2006
Lobisomem ou o Santos (A)
estranho caso do
cussaruim da vila do Walter Ono (I)
Passavento
3.Ana Z. aonde vai Marina Colasanti (A/ 2007 PNBE – 2006
você? I)

4.Não-me-Toque em Pé Werner Zotz (A) 2006 PNBE – 2006


de Guerra Diego Rayck (I)
5.O Cavaleiro do sonho: Ana Maria Machado 2005 PNBE – 2006
as aventuras e (A)
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desventuras de Dom Candido Portinari (I)
quixote de La Mancha
6.O homem que contava Rosane Pamplona 2005 PNBE – 2006
histórias (A)
Sônia Magalhães (I)
7.Histórias que eu vivi e Daniel Munduruku 2006 PNBE – 2009
gosto de contar (A)
Rosinha Campos (I)
8.Dirceu e Marília Nelson Cruz (A/I) 2008 PNBE – 2009
9.Deuses, Heróis & A.S. Franchini/ 2009 PNBE – 2009
Monstros: As Asas de Carmen Seganfredo
Ícaro e outras histórias (A)
da mitologia para Ana Mariza
crianças Filipouski (Adap.)
Eduardo Uchôa (I)
10.Os Gatos Marie-Hélène Delval 2006 PNBE – 2009
(A)
11.A Megera Domada Marco Haurélio 2007 PNBE - 2009
em cordel (Adap. em cordel)
William
Shakespeare (A –
da obra original)
Klévisson Viana (I)
12.Ouvindo pedras Luis Dill (A) 2008 PNBE – 2011
Alexandre
Camanho (I)
13.A mulher que subiu Célia Cris Silva (A) 2009 PNBE – 2011
ao céu Rogério Coelho (I)
14.Um verso a cada Angela Leite Souza 2009 PNBE – 2011
passo: a poesia na (A)
estrada real
15.O moço do correio e Ricardo Azevedo 2009 PNBE – 2011
a moça da casa de (A/I)
tijolinho
16. tempo escapou do Marcos Bagno (A) 2012 PNBE – 2013
relógio e outros poemas
Marilda Castanha (I)
17.A caminho de casa Ana Tortosa (A) 2012 PNBE – 2013
Esperanza León (I)
18.Ninguém me entende Leo Cunha (A) 2011 PNBE – 2013
nessa casa: crônicas e
Rogério Soud (I)
casos
19.Maroca e Deolindo e André Neves (A/I) 2011 PNBE – 2013
outros personagens em
FESTAS
20.No longe dos Gerais Nelson Cruz (A/I) 2012 PNBE – 2013

1847

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21.Kamazu Carla Caruso (A/I) 2011 PNBE – 2013
22.Raul da ferrugem Ana Maria Machado 2009 Prêmio Selo
azul (A)
de Ouro,
Rosana Faría (I) Melhor Livro
Infantil do Ano
(FNLIJ – 1980)
23.Contos de enganar a Ricardo Azevedo 2003 Altamente
morte (A/I) Recomendável
pela FNLIJ,
2004
Prêmio Jabuti
na categoria
Livro Infantil,
2º lugar, 2004
24.A Arca de Noé Vinicius de Moraes 1991 Prêmio Jabuti
(A) 1992 de
Melhor
LauraBeatriz (I) Produção
Editorial de
Obra em
Coleção
25.Lampião & Lancelote Fernando Vilela 2006 Prêmio Jabuti
2007:
1° lugar -
Categoria
Ilustração de
Livro Infantil ou
Juvenil1° lugar
- Categoria
Infantil2° lugar
- Categoria
Capa
Prêmio FNLIJ
2007:
- Melhor Livro
de Poesia -
Melhor Projeto
Editorial -
Melhor
Ilustração -
Escritor
revelação
Prêmio
Bologna
Ragazzi 2007:

1848

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- Menção
honrosa na
categoria New
Horizons
Fonte: A própria autora, 2019.

A decisão de fomentar o clube de leitura com obras selecionadas pelo


PNBE – vinte e um livros – e mais quatro obras legitimadas por sua qualidade
literária por outras instâncias referentes ao gênero literatura infantojuvenil, como
a FNLIJ, portanto, deveu-se à preocupação de deixar disponível uma literatura
de qualidade ao alcance dos leitores. Como a proposta do clube foi/é a de
(re)apresentar a literatura infantojuvenil, a partir de práticas diferenciadas, um
dos critérios de seleção dos títulos, também foi o da diversidade, motivo pelo
qual há livros de formatos, temáticas, organização narrativa e gêneros
diferentes.
O Programa Nacional Biblioteca na Escola(PNBE), realizado pelo Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) com a parceria da
Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC) e
desenvolvido desde 1997, distribui, na ação PNBE literário, acervos de obras
literárias que incluem textos em prosa, em verso, livros de imagens e livros de
histórias em quadrinhos, para as escolas cadastradas no censo escolar realizado
pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira), com o
objetivo de angariar um meio para o acesso à cultura e incentivar alunos e
professores à prática da leitura. Vale ressaltar que os livros selecionados para a
composição dos acervos passam por condições criteriosas, como por exemplo,
a escolha de obras de diferentes categorias e diferentes gêneros e,
principalmente, a seleção de livros pelo critério de seu conjunto de qualidades,
que contempla a qualidade textual referente às questões éticas, estéticas e
literárias, bem como à coesa estrutura do texto e à boa escolha vocabular; a
qualidade temática referente à diversidade qualitativa dos temas que atendam
aos vários interesses dos leitores e a qualidade gráfica, referente ao projeto
gráfico da obra, capaz de estimular ainda mais a interação entre leitor e obra.
Segundo as autoras Soares e Paiva (2014), para a composição do acervo
referente ao ano de 2014:
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[...]Foi ainda critério para constituição dos acervos a seleção,
entre as obras consideradas de qualidade, nos vários
agrupamentos – prosa, verso, imagem e história em quadrinhos
–, daquelas que representassem diferentes níveis de
dificuldades, de modo a atender a crianças em variados níveis
tanto de compreensão dos usos e funções da escrita quanto de
desenvolvimento de sua competência leitora, possibilitando
assim formas diferentes de interação com o livro, seja pela via
da leitura autônoma, sobretudo no momento da entrada no
ensino fundamental, aos seis anos, seja pela leitura mediada
pelo professor. (SOARES; PAIVA, 2014, p.13)
A opção de escolha das quatro obras legitimadas a partir de premiações
se deu por entendermos a importância de instâncias como o Prêmio Jabuti e a
FNLIJ corroborando um cenário sólido no sistema literário como um todo, desde
a criação da obra enquanto fator estético até as questões envolvendo o mercado
editorial. Conforme Ceccantini (2015, p.90) “[...] os prêmios desempenham papel
essencialmente importante na difusão de novos autores e obras e na
consolidação do próprio sistema ou de seus subsistemas (como é o caso da
literatura infantil e juvenil), construindo pouco a pouco cânones.”.
Considerações Finais
A animação de leitura é direcionada a partir de regras básicas em que
algumas preveem um mediador que seja um leitor apaixonado pela leitura de
literatura, um espaço acolhedor para as ações sistematizadas referente ao
momento de leitura, um processo de mediação que possa contar com parcerias
e a disponibilização de obras literárias aos leitores. Sendo que essas precisam
ser selecionadas de modo que se configurem como percursos sistematizados e
destinados aos leitores, a fim de provocar a multiplicidade de sensações que só
a boa literatura é capaz de ofertar.
Por fim, destacamos que, nessa pesquisa-ação, a mediadora, ao se
dispor para o processo de animação de leitura, conscientemente, buscou
percorrer um caminho efetivo para a seleção das obras, levando em
consideração as (quase) experiências e os determinantes de gosto de leitura dos
alunos, e, também, explorando o rico acervo da unidade escolar em destaque
nesse projeto. A lista de livros apresenta poemas, mitologia, contos, romances,
literatura indígena, crônicas, pois a pretensão era preencher a lacuna deixada

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pela falta de práticas sistematizadas em situações escolares anteriores,
enquanto os alunos estavam no primeiro ciclo do Ensino Fundamental.
Vale ressaltar que as obras circularam livremente no decorrer da
aplicação do projeto. Toda semana, os alunos puderam escolher o livro que
queriam e levá-lo para casa. Durante os encontros promovidos pelo clube de
leitura, conversávamos sobre as obras, explorávamos os distintos universos
daqueles livros. De certa forma, lendo as obras ou ouvindo sobre elas, os alunos,
então leitores em formação, perpassaram pelos variados gêneros e pelas
diversas temáticas apresentadas e, com isso, puderam vivenciar novas e
estimulantes experiências de leitura de literatura.
Referências
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do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

AZEVEDO, Ricardo. Contos de enganar a morte. São Paulo: Ática, 2003.

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Paulo: Editora Ática, 2005.

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CECCANTINI, João Luís. A hora e a vez da literatura infantil e juvenil. In: Anuário
Iberoamericano sobre el Libro Infantil y Juvenil. Madrid: edições SM, 2015.

CECCANTINI, João Luís. Leitores iniciantes e comportamento perene de leitura.


In: Fabiano dos Santos; José Castilho Marques Neto; Tânia M. K. Rösing. (Org.).
Mediação de leitura: discussões e alternativas para a formação de leitores.
São Paulo: Global, 2009, v. 1, p. 207-231.

COLASANTI, Marina. Ana Z. aonde vai você?. São Paulo: Ática, 2007.

COSSON, Rildo. A prática da leitura literária na escola: mediação ou ensino?


Nuances: estudos sobre Educação, Presidente Prudente-SP, v. 26, n. 3, p. 161-
173, set./dez. 2015.

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto,


2006.

CRUZ, Nelson. Dirceu e Marília. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

1851

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CRUZ, Nelson. Nos longes dos Gerais. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

CUNHA, Leo. Ninguém me entende nessa casa: crônicas e casos. São Paulo:
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DELVAL, Marie-Hélène. Os gatos. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2006.

DILL, Luis. Ouvindo pedras. São Paulo: Escala Integrada, 2008.

FRANCHINI, A. S.; SEGANFREDO. Deuses, Heróis & Monstros: as Asas de


Ícaro e outras histórias da mitologia para crianças. Porto Alegre: L&PM, 2009.

HAURÉLIO, Marco. A megera domada em cordel. [adaptado da obra de]


William Shakespeare. São Paulo: Nova Alexandria, 2007.

MACHADO, Ana Maria. Do outro lado tem segredos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2003.

MACHADO, Ana Maria. O Cavaleiro do Sonho: as aventuras e desventuras de


Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Mercuryo Jovem, 2005.

MACHADO, Ana Maria. Raul da ferrugem azul. São Paulo: Richmond


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MARIA, Luzia. O clube do livro: ser leitor – que diferença faz? São Paulo: Globo,
2009.

MORAES, Vinicius. A Arca de Noé. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1991.

MUNDURUKU, Daniel. Histórias que eu vivi e gosto de contar. São Paulo:


Editora Callis, 2006.

NEVES, André. Maroca e Deolindo: e outros personagens em festas. São


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NUNES, Lygia Bojunga. A bolsa amarela. Rio de Janeiro: Agir, 1990.

PAIVA, Aparecida; SOARES, Magda. (Orgs.). PNBE na escola: literatura fora


da caixa – Guia 2: Anos iniciais do Ensino Fundamental / Ministério da Educação
; elaborada pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Universidade
Federal de Minas Gerais. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Básica, 2014.
PAMPLONA, Rosane. O Homem que contava histórias. São Paulo: Brinque-
Book, 2005.

SANTOS, Joel Rufino dos. O caçador de lobisomem: ou o estranho caso do


Cussaruim na Vila do Passavento. São Paulo: Salamandra, 2006.

1852

Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil “Maria Betty Coelho Silva"
Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
SILVA, Célia Cris. A mulher que subiu ao céu. Curitiba: Ayamará, 2009.

SOUZA, Angela Leite de. Um verso a cada passo: a poesia na Estrada Real.
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TORTOSA, Ana. A caminho de casa. São Paulo: Jogos de Amarelinha, 2012.

VILELA, Fernando. Lampião & Lancelote. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

ZOTZ, Werner. Não-me-Toque em pé de guerra. Florianópolis: Letras


Brasileiras, 2006.

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
LEITURA, LITERATURA INFANTIL E EXPERIÊNCIAS
LITERÁRIAS NOS ANOS INICIAIS EM RORAIMA

Hellen Cris de Almeida Rodrigues, Colégio de Aplicação da Universidade


Federal de Roraima – CAp/ UFRR
Emanuella Silveira Vasconcelos, Colégio de Aplicação da Universidade Federal
de Roraima – CAp/ UFRR
Jamile Rossetti de Souza, Colégio de Aplicação da Universidade Federal de
Roraima – CAp/
Leuda Evangelista de Oliveira, Universidade Federal de Roraima – UFRR,
Centro de Educação – CEDUC/UFRR

Eixo Temático 10: Educação literária, Letramento literário, formação e


mediação de leitores literários: Entre caminhos do saber/aprender

Considerações iniciais
Ao longo da história da literatura infantil brasileira, a mediação da leitura literária
esteve imbricada a atividade para ensinar conteúdos escolares ou a atitudes, valores e
normas de comportamento. No entanto, entende-se que a leitura literária possibilita ao
aluno a interação com o livro e construção de relações prazerosas que transcendem a
perspectiva pedagógica. Esse viés por sua vez não leva em consideração outras
possibilidades de leitura e sentidos que a criança atribui ao texto, servindo de apoio
apenas para o desenvolvimento das habilidades de decodificação. Cosson (2014, p.
23) afirma que “o letramento literário é uma prática social e, como tal,
responsabilidade da escola (p. 23).” Nesse sentido, entende-se que que a
utilização da literatura infantil e os textos lidos devem ser abordados a partir de
uma perspectiva mais ampla, que considere a potencialidade da leitura, do leitor,
do mediador, do contexto no qual estão inseridos, isto quer dizer , isto é do
letramento literário a partir de uma perspectiva de letramento literário.
Este trabalho apresenta resultados de experiências vivenciadas por uma
professora iniciante em uma escola pública no município de Boa Vista, estado de

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Roraima. O principal objetivo é refletir sobre possibilidades de mediação de leitura a
partir da perspectiva do letramento literário pelo viés da humanização e da estética do
texto. A experiência descrita foi desenvolvida na disciplina de Língua Portuguesa em
uma turma do 2º ano do Ensino Fundamental. O público-alvo foram 25 alunos de idades
entre 7 a 8 anos.
O presente trabalho se situa na problemática do trabalho pedagógico de
professores apontando o uso da literatura infantil como possibilidade de mediação de
leitura literária significativa. Nesse sentido, partiu-se da vivência das crianças a fim de
possibilitar a ampliação de saberes, bem com experiências literárias que versassem
pela diversidade e estética do texto literário. Optou-se por utilizar como instrumento de
mediação a literatura, por acreditar nas dimensões que a subsidiam teoricamente e
entender que a leitura literária possibilita a apreensão de significados (SOUZA, 2010).
Nas palavras de Reyes (2012, p.130) “ler é bom quando é uma forma de
reescrever o que se lê, sendo esta reescritura uma forma de vestir-se de palavras de
tomar posse da linguagem, de compor novas faces, braços e pernas, de ensaiar novas
formas de estar no mundo e interagir com ele”.
A abordagem do trabalho situa-se no campo das investigações qualitativas, logo
descritivas (VILELA, 2003). A construção de dados ocorreu durante as aulas de Língua
Portuguesa, durante dois meses a partir das demandas de aprendizagem identificadas
pela professora. Além disso, foram desenvolvidas práticas leitoras a fim de promover a
formação do leitor literário. Destaca-se que parte desta pesquisa foi apresentada no
Congresso Interinstitucional Brasileiro de Educação Popular e do Campo, com outra
perspectiva de análise. Os elementos apresentados aqui, apoiam-se no ensino da leitura
ancorados no uso da literatura infantil.

Reflexões sobre literatura infantil


A literatura infantil é considerada um gênero literário recente, pois surge durante
o século XVIII. Durante este período as mudanças na sociedade tiverem implicações no
âmbito artísticos que perduram até hoje. As obras clássicas, a tragédia e a epopeia,
foram substituídos pelo drama, romance referente a vida burguesa cotidiana. As
técnicas de industrialização possibilitaram a produção em série de obras de fácil
distribuição e consumo, sinalizando uma banalização nos temas e a fixação de
estereótipos humanos. É nesse contexto que surge a literatura infantil, decorrente da
ascensão da família burguesa e do novo status direcionada à infância na sociedade
(ZILBERMAN, 2003).

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O conceito de literatura infantil está imbricado ao processo social que marca a
civilização moderna e ocidental. Refere-se a família burguesa e a formulação do
conceito de infância que passa a existir por volta de meados do século XVIII,
modificando a forma de compreensões do que é ser criança na sociedade e a ascensão
das instituições filantrópica, da escola, de políticas voltada para este público, além de
novos campos epistemológicos como a pedagogia e a psicologia, além do novo posto
que a família adquire. É nesse período que desabrocha a literatura infantil (ZILBERMAN,
2003)
Com relação ao conceito de literatura infantil, Coelho (1991) defini como a arte
de representar o mundo. Para a autora,

A literatura Infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é a arte:


fenômeno de criatividade que representa o Mundo, o Homem, a Vida,
através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática; o imaginário e o
real; os ideais e sua possível/impossível realização. (COELHO, p. 24,
1991)

Conhecer a concepção referente a literatura de cada povo em cada época é


inevitavelmente compreender as especificidades de cada período da humanidade e sua
evolução. Nesse contexto, conhecer a literatura destinada às crianças é sobretudo
compreender os valores, desvalores, ideais em que cada sociedade se fundamentou ou
se fundamenta. O principal gênero que abriga a literatura infantil é o conto. A origem da
palavra é latina commentu, que significa ficção, invenção. Existem ainda as lendas,
mitos, novelas, fábulas, apólogo, histórias em quadrinhos, textos poéticos, entre outros.
Para Faria (2004) a literatura para crianças tem origem a partir dos contos populares,
estes por sua vez refletiam a condição da sociedade no momento em que se encontrava
além de possibilitar o desenvolvimento das dimensões imaginárias e simbólicas do
sujeito. É comum o encontro de contos que abordam situações do cotidiano das crianças
desde questões banais até outras temáticas de cunho social, existencial, religiosos e
outras coisas mais.
De acordo com Zilberman (2003) na literatura infantil, o centro é o adulto, pois
ele classifica e analisa as obras de acordo com o público. Para a autora há uma
dimensão pedagógica na literatura que tem por finalidade a formação do sujeito, tendo
em vista os valores sociais que a compõe. Coelho (1987, p. 27) por sua vez, dialoga
com autora ao salientar que “literatura para divertir, dar prazer, emocionar... e que, ao
mesmo tempo ensina modos de ver o mundo, de viver pensar, reagir, criar [...]”. Esta
faz referência a subalternidade da literatura infantil durante muito tempo na sociedade.

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Cabe ressaltar, que início da sua criação a literatura infantil era vista como uma
literatura de menor valor, sua valorização a um status mais elevado é uma conquista
recente. A expressão “literatura infantil’ surge a partir da ideia dos livros ilustrados,
coloridos destinados as crianças para distração, prazer em ouvir as histórias, folhear os
livros. A literatura infantil até pouco tempo era reduzida ao entretenimento da criança,
mas as levavam a vivenciar experiências do real e maravilhoso (COELHO, 1991).
O aparecimento da literatura infantil está intrínseco a posição assumida pela
burguesia europeia no século XVIII. Souza (2010) afirma que a literatura surge a partir
das necessidades da humanidade, pois estes buscavam guardar ensinamentos para as
gerações vindouras. Antes mesmo da criação dos códigos escritos, quando os homens
só dominavam a oralidade era possível identificar a existência da literatura, esta por sua
vez confunde-se com a própria história da civilização. Para a autora é por meio da
palavra oral que a literatura ganha estrutura de texto e torna-se escrita. Ao longo do
tempo esse corpo escrito adquire diversas formas de manifestação, tais como
parábolas, fábulas, lendas entre outras coisas mais. Essas oralidades, com o passar do
tempo acabaram fazendo parte da literatura Ocidental que são utilizadas até os dias
atuais.
Para Zilberman (2003), a literatura abrange uma missão formadora, pois instiga
o sujeito/criança a formação de hábitos, quer sejam de consumos ou de
comportamentos. Tendo em vista a perspectiva formativa que a literatura abrange, os
espaços da sala de aula tornam um ambiente propicio para o desenvolvimento de
habilidades de conceitos teóricos que se mediados de maneira adequada tornam-se
significativos para os envolvidos de todo o processo de ensino e aprendizagem.
Diante disso, a autora Magda Soares, no livro A escolarização da literatura
infantil e juvenil aponta que, não há como evitar que a literatura, qualquer literatura, não
só a literatura infantil e juvenil, ao se tornar, saber escolar‟, se escolarize, e não se pode
atribuir, em tese, [...] conotação pejorativa a essa escolarização, inevitável e necessária;
não se pode criticá-la, ou negá-la, porque isso significa negar a própria escola [...]. o
que se pode criticar, o que se pode negar não é a escolarização da literatura, mas a
inadequada e errônea, a imprópria escolarização da literatura, que se traduz em sua
deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização ou sua
didatização mal compreendidas que, ao transformar o literário em escolar, desfigura-o,
desvirtua-o, falseia-o. (SOARES, 2011, p. 59).
Infelizmente percebemos que a leitura literária no ambiente escolar, não tem sido
uma prática constante durante as aulas. São inúmeras as razões que favorecem tal

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constatação, que vão desde restrições, como falta de conhecimento pelos próprios
professores ausência de material, bem como inexistência do hábito de material, ou a
falta do hábito de ler por parte do educador.
Se a intenção do educador é de formar alunos leitores, ele precisa utilizar
diferentes estratégias de leitura, seja em trabalhos em grupos, em leituras
compartilhadas, projetos. No entanto, faz-se necessário destacar que a leitura literária
não pode ser tratada como uma atividade para penalizar o aluno ou uma atividade
qualquer passada com o intuito de preencher uma lacuna nas aulas. É preciso um
intenso trabalho sistemático de construção de sentidos, em atividades de interpretação
do que se compreende da leitura.
É profícuo explicitar, que ao se falar em literatura infantil, é preciso primar pela
riqueza da diversidade de textos e apresenta-los aos alunos, pois assim o professor
propiciará o contato destes com discursos de características e registros de linguagem
diversos. A importância da escola no que diz respeito a possibilitar o contato dos alunos
com Literatura é indiscutível. Ao mesmo tempo é na escola que se tem o acesso aos
bens culturais construídos social e historicamente. Portanto, a leitura é nesse contexto
um bem cultural produzido socialmente que a criança tem direito como cidadão a ter o
acesso garantido. Além do mais, é necessário que o professor Possua conhecimentos
técnicos e embasamento teórico, neste caso sobre a leitura, para trabalhar de forma
adequada, utilizando os mais variados textos.
Colomer (2007) afirma que muitas crianças em idade escolar, entre oito ou nove
anos dizem não gostar mais de ler, e ao chegarem em processos mais exigentes de
compreensão leitura acabam por fracassar. É, portanto, papel da escola a
transformação de tais visões, por meio de práticas significativas de leitura, sendo
momento de deleite e encantamento, para além da compreensão restrita do código
escrito. Somente por meio do conhecimento possibilitado por meio da leitura, é possível
ver uma sociedade que compreende seus direitos e deveres, e age em busca de
transformação social.
É preciso que os docentes percebam neste instrumento a superação
conteudista dos saberes, compreendendo que mais do que uma leitura de um livro há a
possibilidade de apreensão de conceitos de forma com que o sujeito consiga perceber
a funcionalidade da teoria nas suas próprias ações (COSSON, 2014). Corroborando sua
fala, o autor sugere que a leitura e o trabalho literário sejam exercidos sem o abandono
do prazer, mas exige o comprometimento do saber em sua totalidade (COSSON, 2014).

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Percurso metodológico da prática leitora
O ser professor é uma construção que ocorre no decorrer do percurso
profissional, por isso não se devem estabelecer formas de análises isoladas, mas,
sobretudo, o olhar crítico acerca de todo o processo. Não se pode considerar a mudança
de práticas no contexto educacional de forma fragmentada. Assim como a formação
objetiva mudança, é necessário avaliar todo o contexto social e cultural. Saberes
docentes devem servir de objetos de investigação para melhorias da mesma forma que
o seu próprio percurso de reconhecimento.
Além disso, outro fator importante está pautado na possibilidade de trabalhar
tanto a leitura individual, quanto coletiva e colaborativa, uma vez que assim pode-se ter
uma atividade interativa de coprodução de saberes, entre professores e alunos de forma
crítica e reflexiva”.
Durante as aulas era comum receber bilhetes e cartas dos alunos como forma
de demonstração de afeto pela professora. Percebeu-se a partir disso, que não havia
uma sequência lógica de texto, ou seja, início, meio e fim; ou mesmo a despedida por
parte do remetente, sendo estes elementos essenciais de uma carta. O tipo de estrutura
acima demonstrado era comum nas outras cartas recebidas pelos alunos. Identificou-
se que o trabalho com os aspectos referentes aos elementos essenciais de uma carta
era parte obrigatória do currículo do 2º ano da referida escola. Os conteúdos
programáticos a serem trabalhados eram os seguintes: elementos essenciais de uma
carta, frases e a sequência lógica de um texto. Optou-se a partir disso, utilizar como
instrumento de mediação a literatura infantil, pois esta oportuniza a apreensão de
significados (SOUZA, 2010).
É importante, dizer que se corrobora com a afirmação de Oliveira (2019, p.22)
que “mediação de leitura literária abarca experiências que contribuem para o encontro
entre leitores e arte literária, dialogando intimamente com a experiência estética do texto
literário”.
Além disso, é importante definir quem são os mediadores de leitura, para tanto,
utiliza-se a fala de Reys que afirma como:

[...] aquelas pessoas que [...] criam as condições para fazer com que
seja possível que um livro e um leitor se encontrem. A experiência de
encontrar os livros certos nos momentos certos da vida, esses livros
que nos fascinam e que nos vão transformando em leitores
paulatinamente, não tem uma rota única nem uma metodologia
específica; por isto, os mediadores de leitura não são fáceis de definir
[...] O trabalho do mediador de leitura não é fácil de reduzir a um
manual de funções. Seu ofício essencial é ler de muitas formas
possíveis: em primeiro lugar para si mesmo, porque um mediador de
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leitura é um leitor sensível e perspicaz, que se deixa tocar pelos livros,
que desfruta e que sonha em compartilhá-los com outras pessoas. Em
segundo lugar, um mediador cria rituais, momentos e atmosferas
propícias para facilitar os encontros entre livros e leitores. Às vezes,
pode fazer a Hora do Conto e ler em voz alta uma ou várias histórias a
um grupo, mas, outras vezes, propicia leituras íntimas e solitárias ou
encontros em pequenos grupos. Assim, em certas ocasiões, conversa
ou recomenda algum livro; em outras permanece em silêncio ou se
oculta para deixar que livro e leitor conversem. Por isso, além de livros,
um mediador de leitura lê seus leitores: quem são, o que sonham e o
que temem, e quais são esses livros que podem criar pontes com suas
perguntas, com seus momentos vitais e com essa necessidade de
construir sentido que nos impulsiona a ler, desde o começo e ao longo
da vida. (REYES, 2014, p. 213).

Diante dessa afirmação, percebe-se que a professora da turma e as estagiárias


assumiram o papeis de mediadoras traçando uma rota para condução do processo de
mediação que iniciou com a escolha do título do literário escolhido para trabalho.
O livro utilizado para abordagem dos discentes foi Viviana, a rainha do pijama,
de Steve Webb288. O enredo do livro versa sobre a história de Viviana uma menina
que resolve fazer uma festa do pijama e escreve cartas para convidar os
animais/convidados para um concurso que consiste na escolha do pijama mais “animal”.
O primeiro momento da mediação consistiu na leitura do livro para os alunos. Depois
foram distribuídas as cartas que eram respostas dos animais para a personagem central
da obra lida, ou seja, Viviana. Assim, pode-se fazer a leitura de forma coletiva.
Depois da leitura para a turma e a leitura coletiva, solicitou-se que os discentes
levassem as cartas recebidas para casa e memorizassem as falas que foram enviadas
como respostas para a anfitriã da festa. O objetivo com essa proposta era que no fim
das mediações, fosse realizada a contação para as demais turmas da escola. Percebeu-
se um grande envolvimento dos alunos durante a leitura do livro. Era notória a satisfação
em participar do processo como sujeitos ativos da intervenção. A utilização da literatura
na escola oportuniza aos alunos o suscitar do imaginário do leitor.
O segundo momento consistiu na escrita coletiva de uma carta para um amigo
estrangeiro. Os alunos de forma organizada diziam o que deveria ser escrito na carta
enquanto a professora escrevia as mensagens no quadro branco. Os mesmos foram
avisados sobre a sequência lógica de um texto e frase e ainda sobre os elementos
essenciais de uma carta, tais como: saudação, mensagem, despedida e observações.
Depois da escrita coletiva, os alunos puderam reescrever as cartas em seus cadernos
acrescentando ou modificando informações.

288
Webb, Steve. Viviana Rainha do Pijama. São Paulo: Moderna, 2006.
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No terceiro momento, foi proposto que os alunos escrevessem cartas para
alguém da sala de aula. Solicitou-se aos alunos que trouxessem envelopes de cartas
para o desenvolvimento da atividade. Os alunos puderam contar com o auxílio da
professora para esclarecer suas dúvidas com a professora e com as estagiárias,
referente a endereçamento de cartas e utilização de selos para os envelopes. Vale
ressaltar, que essas informações não haviam sido citadas durante as aulas, mas os
alunos conseguiram identificar ao verem as cartas apresentados na obra, mas foi
possível observar nas cartas escritas por Viviana para os diferentes animais.
O último momento da intervenção bem sucedida consistiu na contação da
história para duas turmas do Colégio. Com o apoio das estagiárias foram construídas
máscaras que representava cada animal e o ensaio coletivo. A apresentação foi
realizada na sala de leitura com um público de 50 alunos de 1º e 3º ano do Ensino
Fundamental Anos iniciais.

Considerações Finais
Entende-se que possibilidades em sala de aula como momentos de leituras
compartilhadas, individuais ou coletivas, dramatização de textos, rodas de leituras para
a socialização, pesquisa e discussão acerca de determinados autores estudados ou da
preferência dos alunos, são momentos a serem exploradas ao longo do ano letivo.
Somente por meio das intervenções que vislumbrem a interação do leitor com o livro
promovidas pelo professor, o uso da literatura infantil no contexto escolar como recurso
pedagógico poderá ser enriquecedor e potencializador da aprendizagem.
Identificou-se um grande envolvimento dos alunos nas atividades de mediação
de leitura desenvolvidas, principalmente durante a leitura do livro. A utilização da
literatura infantil na escola oportuniza aos alunos o suscitar do imaginário do leitor.
Valorizar os conhecimentos existentes pelo alunado foi de fundamental importância para
este processo de intervenção.
Dessa forma, a leitura prazerosa realizada pelas crianças de obras literárias
objetiva a formação de um leitor crítico. No entanto, o professor assim como a escola
precisam oportunizar e compreender práticas educativas que incitem o aguçar da leitura
de mundo e da palavra. A fantasia e a realidade podem sim caminhar juntas de forma a
levar o leitor em formação a interpretação e a construção de novos saberes, rompendo
com a leitura sistemática e simplista de decodificação de signos.

Referências

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GRUPO TEMÁTICO 11:
LITERATURA E ESTRATÉGIAS
DE LEITURA

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A LEITURA DE OBRAS LITERÁRIAS E A UTILIZAÇÃO DE
ESTRATÉGIAS DE LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PARA
ALÉM DAS PROPOSTAS PEDAGOGIZANTES

Paula Crepaldi Campião, Alle/Aula (Unicamp), Capes


Janaína de Souza Silva, Alle/Aula (Unicamp)

Eixo Temático: 11 - Literatura e estratégias de leitura

À guisa de introdução
Muitos estudos acerca da importância do trabalho com a leitura na educação
básica foram apresentados nas duas primeiras décadas do século XXI. Com a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 20 de
dezembro de 1996, final do século XX, a educação passou a ser exercida como direito
de todos e compreendida condição vital para o desenvolvimento da criança. Para além
da ratificação da educação como direito, uma vez que essa garantia foi outorgada pela
Constituição de 1988, a educação nacional reconhece o Ensino Infantil como etapa
prioritária na educação básica que subsequentemente tornou-se obrigatória a partir dos
4 anos de idade, após a Emenda Constitucional 59/2009.
A obrigatoriedade da inscrição da criança aos 4 anos de idade na educação
escolar apresenta até ao presente momento divergências de opiniões, contudo, no
tocante ao enfoque da atividade de leitura para o pleno desenvolvimento da criança
desde a educação infantil, as opiniões apresentam-se como convergentes.
Nessa direção, a prática educativa incorporada por grande parte das instituições
escolares de ensino infantil apresenta-se como mote das opiniões divergentes.
Destarte, considerando a relevância da leitura desde a tenra idade, este trabalho
preocupa-se em apresentar um relato de prática educativa com a leitura desenvolvido
com crianças de 4 anos que suplantou propostas pedagogizantes ou pré-estabelecidas
orientadas para ensino de treino-motor.

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Dito de outro modo, o estudo dedicou-se a analisar a experiência com a leitura
literária de uma professora e turma da 1ª Etapa de Educação Infantil de uma escola
municipal de Limeira (SP), que trabalhou com os livros “Onde vivem os monstros”
(SENDAK,1963) e “O ursinho apavorado: um livro de dobraduras não muito apavorante”
(FAULKNER; LAMBERT, 2000), de forma complementar.
Para a investigação, foram utilizados os registros audiovisuais e em diário de
bordo realizados pela professora, ambos analisados à luz dos estudos de Vygotsky
(2018) e Luria (1986), que entendem que o trabalho com a leitura literária desde a
educação infantil é responsável por potencializar o desenvolvimento da atividade
consciente, bem como exemplificam os caminhos percorridos pelas crianças para a
compreensão de texto e subtexto - conceitos apresentados pelos autores supracitados.
Além disso, destaca-se que a atividade de leitura se apresenta como atividade
potencial de interação e compreensão da realidade pela criança. A título de exemplificar
o dito, tomemos como exemplo a situação em que professora se ocupa em fazer a leitura
do livro para a criança apresentando as páginas cuidadosamente, uma a uma; faz
indicação com o dedo do registro lido; atenta-se em caracterizar os personagens
entoando diferentes vozes e incorpora diferentes expressões faciais para representar
as emoções. O conjunto de ações ou estratégias desenvolvidas pela professora, além
de possibilitar interação da criança com o livro, atribui significado as palavras e aos
gestos para a compreensão de sua realidade.
No que concerne a prática de leitura desenvolvida pela professora, a 4ª edição
e mais recente da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”289 aponta para importância
do convívio da criança com leitores experientes e destaca que a instituição escolar é o
segundo principal influenciador do comportamento leitor da criança.
Para tanto, apresentaremos o artigo contextualizando os atores envolvidos,
trazendo alguns recortes selecionados à tona no decorrer do desenvolvimento do estudo
para fomentar a discussão proposta bem como os resultados finais e as implicações
desses resultados para o trabalho com a leitura na Educação Infantil.
Literatura: fantasia e formação

289
Estudo promovido pelo Instituto Pró – Livro no ano de 2015, em parceria com a Abrelivros
(Associação Brasileira de Livros Escolares), a CBL (Câmara Brasileira do Livro) e o SNEL
(Sindicato Nacional dos Editores de livros). Disponível em: <
http://prolivro.org.br/home/images/2016/RetratosDaLeitura2016_LIVRO_EM_PDF_FINAL_CO
M_CAPA.pdf > Acessado em 21 jul 2020.
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Primeiramente, antes de discutir a prática docente em si, é necessário trazermos
à luz alguns pressupostos teóricos que servem como alicerces para a ideia de trabalho
com literatura na escola defendido no presente trabalho.
A literatura aparece como um instrumento capaz de promover o ingresso do
aluno no mundo da cultura letrada por meio do vínculo criado pelo deleite. “Assim como
todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do
dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado” (CANDIDO, 2013, p.176),
de forma que a imaginação é responsável por construir uma ponte entre o texto escrito
e aquele que fantasia a partir dele.
Nesse cenário, a ideia de que a literatura possui um caráter educacional não é
novidade aos currículos escolares. Quase sempre associado à aprendizagem
linguística, o texto literário teve a sua subjetividade menosprezada e, por vezes,
renegada na sala de aula. Entretanto, quando se passa a entender o ato de imaginar
como parte essencial e indissociável da natureza humana (CANDIDO, 1999) e, portanto,
o acesso à literatura como um direito (CANDIDO, 2013), passa a ser objetivo do texto
literário na escola sensibilizar o aluno para o mundo através da compreensão, produção
e expansão de sentidos, de forma que seja possível adentrar um universo inesgotável
de interpretações, a partir do compartilhamento de experiências e vivências dos
aprendizes.
Paralelamente, entendendo a escola como a instituição que colocamos entre a
criança e o mundo, isto é, aquela “que interpomos entre o domínio privado do lar e o
mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição de alguma forma, da família
para o mundo” (ARENDT, 2001, p.238), ela é a responsável ensinar os conhecimentos
e tradições necessários para que o aluno se forme enquanto indivíduo capaz de
ingressar de forma ativa na sociedade. Entre essas habilidades, está a sua participação
na cultura escrita, de acordo com Lerner:

Ensinar a ler e escrever é um desafio que transcende amplamente a


alfabetização em sentido estrito. O desafio que a escola enfrenta hoje
é o de incorporar todos os alunos à cultura do escrito, é o de conseguir
que todos seus ex-alunos cheguem a ser membros plenos da
comunidade de leitores e escritores. (LERNER, 2002, p.17)

Dessa forma, uma vez que a leitura é uma prática social, aprender a ler e a
escrever envolve mais do que adquirir técnicas e habilidades mecânicas, mas também
proporcionar momentos de reflexão sobre si e o mundo para formar um aluno participe
da cultura letrada, de forma que trabalhar com a leitura na sala de aula não pode ser
um ato inerte. Como bem colocam Brandão e Micheletti:

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[o ato de ler] É um processo abrangente e complexo; é um processo
de compreensão, de intelecção de mundo que envolve uma
característica essencial e singular ao homem: a sua capacidade
simbólica e de interação com o outro pela mediação de palavras. O ato
de ler não pode se caracterizar como uma atividade
passiva. (BRANDÃO; MICHELETTI, 2002, p.9, grifo nosso)

Assim, é possível afirmar que a leitura literária na escola está “a serviço de um


projeto que a perpassa e a ultrapassa” (SILVA, 2003, p.2) e, no caso da Educação
Infantil, “essa aprendizagem deve estar em consonância com os interesses e os desejos
infantis” (BRANDÃO; ROSA, 2011, p.8), de modo a considerar a diversidade de
habilidades e vivências dos alunos, além de contemplar os direitos de aprendizagem da
criança - conviver, brincar, participar, explorar, expressar-se e conhecer-se –,
entrelaçados aos campos de experiências. (BRASIL, 2018)
Nesse contexto, o livro ilustrado traz em suas imagens elementos
potencializadores da linguagem verbal, ampliando a produção de sentidos e
colaborando, consequentemente, para o envolvimento das crianças com o mundo da
leitura. Conforme pontuam Nikolajeva e Scott (2011, p.45) “é na interação de palavras
e imagens que novas e fascinantes soluções podem ser encontradas. Da mesma forma,
enquanto as palavras podem apenas descrever dimensões espaciais, as imagens
podem explorar e jogar com elas de maneiras ilimitadas.”.
Por fim, é importante ressaltar que o trabalho com literatura na Educação
Infantil não coloca o texto literário em uma posição menos complexa ou desprivilegiada
frente àquele realizado em outras etapas escolares em que os alunos já estão
alfabetizados e fazem uso de estratégias de leitura com certa autonomia. Aqui, destaca-
se o trabalho do professor como mediador da leitura literária, visto que ele conduz a
interpretação das crianças sobre o texto verbal e imagem, compartilhando e expandindo
sentidos das múltiplas leituras possíveis de uma determinada obra, de modo a
proporcionar os fundamentos necessários para que se garanta a literatura enquanto um
direito.

Entre as imaginações de monstros e ursos


Inicialmente, o planejamento da professora consistia na leitura compartilhada do
livro ilustrado “Onde vivem os monstros” com o principal objetivo de promover momentos
de deleite e mergulho na fantasia, à medida que as crianças compartilhariam sentidos
obtidos através da discussão sobre o texto e interpretação das imagens. Dessa forma,
seria necessário que a professora, desempenhando o papel de mediadora de leitura,

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ativasse em suas falas conhecimentos prévios das crianças, de modo a levantar e
checar hipóteses, construindo e expandido sentidos conjuntamente.
Em um primeiro movimento, a professora mostra a capa do livro para os alunos
e antes de informar o título, faz uma provocação em relação à leitura das imagens.

FIGURA 1 – Capa Onde vivem os monstros e introdução ao tema

Após a exploração das imagens da capa, a professora informa o título da história


e os nomes da editora, assim como do autor e ilustrador do livro. Na sequência, instiga
as crianças a pensarem sobre o título, fazendo questionamentos sobre se os monstros
teriam uma morada própria e, em caso positivo, onde seria este local. A professora
encerra a atividade convidando as crianças a descobrir se suas respostas estariam de
acordo com o livro na próxima aula.
Isto posto, vale lembrar que partimos do pressuposto que a mediação tem um
papel fulcral no processo de desenvolvimento da atividade consciente da criança. Nesse
sentido, elaborar questionamentos acerca das imagens, dos personagens, do título da
história, é possibilitar que os estudantes reflitam sobre o enredo, partilhem suas
percepções sobre os personagens, levantem hipóteses, produzam inferências e
construam sentidos. Nas palavras de Girotto e Souza (2010, p.45), “leitores estratégicos
utilizam seus pensamentos em uma conversa interior, que os ajudam a criar sentido
para o que leem”. Dito de outro modo, segundo Vygotsky (1978), é uma forma de
processar o discurso social externo para o discurso interior.
Ou seja, a dinâmica pedagógica utilizada pela professora, além de instigar a
participação da criança, potencializa o desenvolvimento da atividade consciente bem
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como das funções psíquicas superiores, tais como linguagem, pensamento, memória,
percepção e atenção. Nessa direção, Leontiev (2004, 94) afirma “a consciência é o
reflexo da realidade, refratada através do prisma das significações e dos conceitos
linguísticos elaborados socialmente”.

FIGURA 2 – Leitura das ilustrações

No dia seguinte, conforme planejado, a professora chama atenção para as


imagens, explorando cada uma das ilustrações apresentadas na obra. Nesse momento,
ela faz pequenas provocações com a intenção de levar o olhar das crianças a
determinados pontos das imagens que possam contribuir para sua interpretação desses
textos visuais. Nisso, ela acolhe as respostas das crianças para suas perguntas,
independentemente de sua ligação com o enredo, uma vez que ele ainda é
desconhecido pela turma, e, sem julgá-las como corretas ou incorretas, conduz suas
falas de modo a incentivar que os alunos formulem e compartilhem as evidências visuais
que embasem seus posicionamentos.
Na semana posterior, finalizada a exploração das imagens, o trabalho com o livro
é retomado. A professora lê a história para os alunos, possibilitando a rememoração do
enredo e contrastes com as primeiras hipóteses levantadas a partir das imagens, de
modo a confirmar expectativas. Ao final da leitura, as crianças foram convidadas a
conversarem sobre a narrativa, de modo a socializar os sentidos produzidos com
possibilidade de refletir coletivamente sobre os significados depreendidos a partir do
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enredo. Para o encaminhamento dessa discussão a professora retomou a pergunta
inicial sobre a morada dos monstros.
Entretanto, por mais que a atividade seja direcionada a leitura deleite, guiada
pela fantasia para a interpretação de linguagens verbal e não verbal, mesmo com o
compartilhamento dos sentidos pelas crianças, houve uma lacuna em relação aos
desdobramentos do enredo, mais especificamente acerca do local onde os monstros da
história morariam: na floresta, no quarto do personagem Max ou na imaginação dele.

FIGURA 3 – Qual a morada dos monstros?

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A partir dessa experiência de partilha coletiva do texto e das dúvidas decorrentes
sobre a morada dos monstros, a professora sente a necessidade de um maior mergulho
na ideia da imaginação como local de criação.
Consideramos pertinente destacar neste estudo que, tal como defendido por
Vygotsky, concebemos o processo de imaginação não como “divertimento ocioso da
mente, uma atividade suspensa no ar, mas uma função vital necessária” (Vygotsky,
2018, p.22).É comum observarmos discursos que apresentam a ideia da fantasia como
contraponto da realidade, no entanto, este estudo vai na contra mão dessa ideia.
Compreendemos a imaginação como função psíquica elementar superior,
portanto, está solta no ar, tampouco habita no corpo humano de forma isolada, de modo
oposto, o processo de imaginação está na dependência de outras formas de atividades,
ou seja, à espera do acréscimo de novas experiências.
Segundo essa visão, o problema da imaginação não emerge do nada, sua
gênese constrói-se de elementos tomados da realidade e presentes na experiência
(Vygotsky, 2018, p.22)
Nas palavras de Vygotsky,

O cérebro não é apenas o órgão que conserva e reproduz nossa


experiência anterior, mas também o que combina e reelabora, de forma
criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações
e novo comportamento. (Vygotsky, 2018, p15-16)

De acordo com a afirmativa, o entendimento acerca do processo de imaginação


traz implicações para a elaboração do trabalho escolar, sendo este necessário partir de
situações intencionais e bem planejadas para este fim. Vejamos nas próximas linhas
como a professora conduziu o enriquecimento da experiência dos educandos.
Destarte, a professora ela se lembra de outro livro ilustrado de seu repertório e
opta por realizar uma nova leitura compartilhada desse novo título com o objetivo de
cotejar as duas histórias, possibilitando novas inferências e constatações.
Para isso, foi escolhido o livro “O ursinho apavorado: um livro de dobraduras não
muito apavorante”, visto que assim como em “Onde vivem os monstros” tem a
imaginação do personagem principal como cenário principal da trama. Com o desejo de
que os alunos revisitassem a história de Max ao inferir similaridades entre sua história
e a ursinho, a professora adota a mesma postura que privilegia a compreensão a partir
da socialização dos sentidos produzidos pelas crianças.

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Dessa forma, a proposta de leitura começa com a professora apresentando o
livro “O ursinho apavorado” aos alunos e anunciando que lerá uma história nova à turma.

FIGURA 4 – Desdobramento: “O ursinho apavorado”

Na sequência, a professora continua a explorar as imagens na medida em que


questiona às crianças sobre o que elas esperam encontrar no livro, de forma que é
necessário que elas se debrucem sobre as ilustrações para utilizá-las como fonte para
suas respostas. Diferentemente do ocorrido com a leitura anterior, as crianças
rapidamente entraram em consenso sobre a temática do livro, reconhecendo o urso
como personagem central da história, o “monstro” como elemento importante para o
andamento da trama e a existência predominante do sentimento de medo. Mas assim
que a imaginação do ursinho começa a fantasiar outros animais embaixo de sua cama,
surge novamente a mesma dificuldade de reconhecer a fantasia apresentada na leitura
anterior.Para responder a questão, a professora relembra “Onde vivem os monstros” e
conduz uma discussão com a proposta de que os alunos percebam semelhanças entre
as duas histórias. Para isso, ela aproxima em suas perguntas os quartos de Max ao do
ursinho, assim como a floresta e os monstros aos animais sob a cama.
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FIGURA 5 – Cotejo das histórias e descobrimento das semelhanças

Dessa forma, a leitura intermediada pela professora desencadeou o


compartilhamento de interpretações por parte dos alunos e para a atribuição de
significação para as tramas. O cotejo das histórias possibilitou o protagonismo das
crianças, que observaram a imaginação como cenário para as duas histórias.

Palavras de encerramento
À guisa de conclusão, este estudo compreende que o trabalho com literatura na
Educação Infantil depende da reflexão sobre o papel do texto literário e a utilização de
estratégicas leitoras nesse ciclo, assim com a percepção do meio como uma potência
para o desenvolvimento infantil.
Assim sendo, defende-se que se é do interesse da educação escolar qualificar
e assegurar bases sólidas para a construção do processo de imaginação da criança, de
modo que é necessário que este apresente condições concretas para que o educando
desfrute de novas e boas experiências literárias.
Quanto mais a criança viu, ouviu e vivenciou, mais ela sabe e
assimilou; maior é a quantidade de elementos da realidade de que ela

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dispõe em sua experiência; sendo as demais circunstâncias as
mesmas, mais significativa e mais produtiva será a atividade de sua
imaginação” (Vygotsky, 2018, p.25).

Em consonância ao pensamento de Vygotsky, a professora investigada, ao optar


pelo cotejo dos dois livros ilustrados, proporcionou a possibilidade das crianças de
estabelecerem pontes entre as duas obras e firmarem diálogos entre os sentidos
produzidos em ambas as leituras (Brandão, 2011). Ainda, conforme apontado por Bajard
(2014, p.69): “um acompanhamento educacional atento que propicie situações [...] para
guiar as investigações infantis certamente ampliará a capacidade de interpretação [...]”,
assim, uma vez que se aprende a ler lendo, o conjunto de estratégias empregadas pela
professora possibilitou que os estudantes colocassem em jogo vários conhecimentos e
leituras de mundo acerca dos objetos explorados à medida que foram estabelecidas
relações entre as percepções dos estudantes sobre a realidade e a ficção.
Desse modo, se a imaginação é uma necessidade à formação do homem
(Candido, 1999) e seu engendramento está no ato experiencial da realidade (Vygotsky,
2018, p.22), a experiência congregou situações de planejamento de estratégias,
procedimentos e intervenções para além das práticas pedagogizantes de leitura, à
medida que priorizou a subjetividade da literatura ao produzir sentidos para além do
enredo, possibilitando um estreitamento entre texto e mundo.

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1875
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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
O DIÁRIO DE LEITURA COMO FERRAMENTA METODOLÓGICA
PARA A EDUCAÇÃO LITERÁRIA: UMA ABORDAGEM COM
CONTOS E POEMAS DA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA NO
ENSINO MÉDIO

Ana Paula F. Nobile Brandileone (UENP-CCP/GP CRELIT/CAPES)


Ieda Maria Sorgi Pinhaz Elias (SEED-PR/GP-CRELIT/PG-UEM)

Eixo Temático: Literatura e estratégias de leitura.

Considerações iniciais
Para uma grande maioria de professores que se empenham na tarefa de formar
leitores, voluntários e autônomos, o trabalho é árduo, além de desafiador. No caso da
literatura, os desafios são ainda maiores, quer pela atitude desmotivada do aluno que,
não raro, dá preferência à leitura de textos, sobretudo aqueles que atendem às suas
necessidades ou interesses mais imediatos, quer pela própria prática de ensino
adotada; aspectos que interferem diretamente no tratamento da Literatura no espaço
escolar.
Não se pode ignorar que o jovem do século XXI vivencia a era da revolução
tecnológica e virtual. Imerso nesse contexto, passa grande parte do tempo absorto em
ambientes virtuais, como as redes sociais, jogos, sites de entretenimento/cultura, que
representam espaços de expressão e descobertas. Não por acaso, a leitura da obra
literária fica, muitas vezes, desprivilegiada, em meio a tantas outras linguagens e
suportes em circulação, tais como jornais, revistas, filmes, DVDs, quadrinhos,
videogames, etc., nos quais os leitores vão buscar as doses de ficção e informação de
que sentem necessidade.
Outra questão a se considerar é a respeito do lugar ocupado pelo texto literário
no ambiente escolar que, frequentemente, se assenta no seu uso instrumental, seja no
estudo de aspectos gramaticais da língua ou no estudo “sobre” a literatura e não
especificamente sobre o seu objeto de ensino, que é o texto literário. Apagamento da
literatura que se acentua com os documentos oficiais recentemente publicados, nos

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âmbitos federal e estadual, como a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017) e
o Referencial Curricular do Paraná (PARANÁ, 2018), que extingue a literatura como
componente curricular obrigatório, o que implica em não reconhecê-la como disciplina
autônoma e fundamental para a formação do educando. Assim, a literatura, em ambos
os documentos, não é tratada como conhecimento primordial para a formação cidadã e
humana do estudante. Caberá ao docente formular, implementar e avaliar estratégias
para o trabalho com o texto literário no meio escolar, uma vez que, conforme Cechinel
(2017, p.204), “[...] o professor de literatura luta, sempre no contrafluxo, para preservar
o lugar daquilo que não tem lugar e que, desse modo, tende ao desaparecimento”.
Aspectos que se somam a bibliotecas mal aparelhadas, professores com reduzido
repertório de leitura literária, poucas aulas semanais para um currículo bastante
conteudista. Diante desses complicadores, Cosson alerta que

[...] é fundamental que se coloque como centro das práticas literárias


na escola a leitura efetiva dos textos, e não as informações das
disciplinas que ajudam a constituir essas leituras, tais como a crítica, a
teoria ou a história. Essa leitura também não pode ser feita de forma
assistemática e em nome de um prazer absoluto. Ao contrário, é
fundamental que seja organizada segundo os objetivos da formação
do aluno, compreendendo que a literatura tem um papel a cumprir no
âmbito escolar. (COSSON, 2011, p.23).

Considerando, então, que é preciso garantir a sistematização do trabalho com a


Literatura, de forma a fomentar uma escolarização adequada da Literatura (SOARES,
2011), de modo a colocar o texto literário no centro das práticas de leitura, a partir da
sua leitura integral, é que se defende a adoção de um método de ensino, como princípio
orientador das práticas educativas, pois o professor deve ter objetivos e metas bastante
definidos para orientar as expectativas educativas, já que a “[...] disponibilidade ao texto
e desejo de literatura são fenômenos construídos [...]” (ROUXEL, 2013, p.32). Nesse
sentido, a metodologia é o que dá sustentação à prática da leitura literária e sentido à
aprendizagem, assumindo relevante estratégia não só para recuperar a leitura literária
no espaço escolar, mas também “[...] garantir a função essencial de construir e
reconstruir a palavra que nos humaniza” (COSSON, 2011, p.27).

O diário de leitura para a implementação da Lei 10.639/03


Entre as metodologias para o estudo do texto literário, o diário de leitura surge
como uma estratégia didática que pode contribuir para a educação literária, já que “[...]
é um procedimento didático recente que se configura como um texto de cunho subjetivo
ou íntimo, escrito em primeira pessoa do singular, na medida em que se lê um texto
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indicado ou exposto pelo professor ou pelo próprio aluno, a partir de instruções pré-
estabelecidas” (BUZZO, 2010). Ainda que o diário de leitura tenha como pressuposto a
liberdade de expressão, dada a relevância da emersão da subjetividade do aluno, ele
pode ser realizado de forma dirigida.
Entre os diferentes objetivos didáticos que a escrita diarista pode assumir em
relação à leitura literária, Cosson acena para alguns deles:

[...] registro das impressões do leitor durante a leitura do livro, podendo


versar sobre dificuldades de compreensão de determinadas palavras e
trechos, transcrição de trechos favoritos com observações, evocação
de alguma vivência, relação com outros textos lidos, apreciação de
recursos textuais, avaliação da ação das personagens, identificação de
referências históricas e outros tantos recursos que constituem a leitura
como um diálogo registrado entre o leitor e o texto. (COSSON, 2014,
p. 122).

A eles, pode-se acrescentar que o diário de leitura é, ainda, instrumento a


auxiliar o professor no redimensionamento das suas ações, visando a atender as
fragilidades de leitura e escrita apresentadas pelos discentes. Um outro aspecto que
merece destaque no que se refere a essa ferramenta didática e seu uso em sala de
aula, é que ao oportunizar os alunos a se expressarem subjetivamente sobre o texto
literário, conduz o docente a renunciar ao papel de detentor único do saber, da
imposição de um sentido convencionado e imutável a ser transmitido, uma vez que “O
papel do professor não é mais transmitir uma interpretação produzida fora de si,
institucionalizada” (ROUXEL, 2013, p.28). Trata-se de, a partir da recepção do aluno,
convidá-lo para a aventura interpretativa, a fim de “[...] ancorar o processo interpretativo
na leitura subjetiva dos alunos” (ROUXEL, 2013, p.29). Mas se por um lado é
conveniente encorajar a leitura subjetiva, por outro, também é conveniente ensinar os
alunos a evitarem uma subjetividade desenfreada. Por isso, Rouxel (2013) alerta para
importância de o professor acionar dois guarda-corpos: o texto, para assegurar o
equilíbrio entre os “direitos do texto” e os “direitos do leitor” (TAUVERON, 2004); e os
pares, figurado pelo espaço intersubjetivo da sala de aula, “[...] onde se confrontam os
diversos ‘textos de leitores’, a fim de estabelecer o texto do grupo, objeto se não de má
negociação, ao menos de um consenso” (ROUXEL, 2013, p.23).
Entender o aluno como protagonista na construção dos sentidos do texto
literário, valorizando a contribuição pessoal do aluno e rompendo com a tradição nociva
na qual o aluno deve reproduzir respostas dadas pelo professor, não significa,
entretanto, que o professor deve se ausentar do processo de edificação do
conhecimento. Ao contrário, o protagonismo do professor se faz a partir de uma
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concepção de mediação e de compartilhamento do conhecimento: “Aliás, essa forma de
interação, de troca de experiências de leitura, tem revelado a importância da presença
de um professor leitor que contamina e encoraja o impulso para os livros, para a
literatura” (SEGABINAZI, 2016, p.88).
Mas para que a construção dos sentidos do texto se dê de forma livre e autêntica,
permitindo captar as impressões, reações e diferentes tipos de sensações advindos da
leitura do texto literário, é necessário, segundo Buzzo (2010), que o trabalho com o
diário de leitura seja realizado em duas etapas: a primeira reside na adoção de uma
posição individual sobre o texto literário e, a segunda, corresponde ao da socialização
dos registros. Esse compartilhamentos dos registros, dimensão coletiva do uso do diário
de leitura, possui a capacidade de promover a (re)significação do texto literário lido,
ampliando-o. Pois se em um primeiro momento a atividade de registro é uma tarefa
individual, ao transpor para a coletividade, os alunos poderão ter contato com outras
experiências de leituras e, assim, expandir a sua leitura, estimulado pela busca de
sentidos e pela troca de impressões. Nesse processo, quanto mais interpretações forem
geradas a cada nova leitura, mais se confirma a complexidade dos níveis de construção
do sentido.
Considerando o exposto, o diário de leitura apresenta-se como uma alternativa
metodológica, que busca, a partir da dimensão individual, ir em direção ao trabalho
coletivo, cujo objetivo é promover uma ação interativa que pode propiciar maior
compreensão do texto lido e contribuir para o desenvolvimento das habilidades de leitura
e também de escrita. Por favorecer a formação do leitor crítico de textos literários, é que
o diário de leitura foi adotado como ferramenta didática para a leitura de textos da
literatura afro-brasileira, em subprojeto desenvolvido no âmbito do Programa Residência
Pedagógica (CAPES).
A Lei nº 10.639/2003 que, alterando a Lei nº 9.394/96, determinou a
obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira nas redes
pública e privada da educação básica, significou não apenas o reconhecimento dos
africanos e afrodescendentes no processo de formação da sociedade brasileira, mas
também o estabelecimento de novas diretrizes para viabilizar ações para a
implementação de (novas) práticas pedagógicas no currículo escolar, mais
especificamente no âmbito do ensino de história, literatura brasileira e educação
artística, visando à (re)educação das relações étnico-raciais. Nesse contexto, a seleção
de textos literários de matriz africana teve por objetivo implementar ação concreta para
a efetivação da Lei n° 10.639 que, apesar de aprovada em 2003, é lembrada, não raro,

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somente na semana de 20 de novembro, devido a comemorações do dia da consciência
negra.
Assim, este trabalho se justifica pela necessidade de concretizar a educação
literária no espaço escolar, a partir do estudo de textos literários afro-brasileiros, de
modo a atender ao que a Lei apregoa. De caráter interventivo, o subprojeto em questão
objetiva de um lado promover do letramento literário e, de outro, formar indivíduos
críticos capazes de romper com modelos padronizados socialmente ou culturalmente, o
que implica no reconhecimento da necessidade de superação de imaginários,
representações sociais, discursos e práticas preconceituosas relacionadas às questões
raciais na educação escolar.
A seguir, análise dos resultados obtidos com o uso do diário de leitura em
experiência de leitura literária com contos e poemas da Literatura Afro-Brasileira,
realizada no Colégio Estadual Zulmira Marchesi da Silva, no município de Cornélio
Procópio.

A prática do diário de leitura literária em sala de aula a partir da leitura de textos


literário afro-brasileiros
Vale destacar que a utilização do diário de leitura como ferramenta didática para
o ensino da literatura se fez presente em outro subprojeto desenvolvido no curso de
Letras da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), no âmbito do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), intitulado “Letramentos na
escola: práticas de leitura e produção textual”290. Fez-se o uso do diário de leitura,
associado com os pressupostos da sequência expandida de leitura literária (COSSON,
2011), em experiência de leitura literária com a obra Desmundo (2009), de Ana Miranda,
tendo como público alvo alunos do primeiro ano do Ensino Médio, do Colégio Estadual
Zulmira Marchesi da Silva.
No que se refere ao trabalho realizado no âmbito do Programa Residência
Pedagógica, as ações didático-pedagógicas foram desenvolvidas no Colégio Estadual
Zulmira Marchesi da Silva, no primeiro semestre de 2019, em turma do primeiro ano do
Ensino Médio, período matutino, com o objetivo de fomentar a escolarização da
literatura e a implementação da Lei 10.639/03, a partir do estudo (análise e
interpretação) de textos literários de variados gêneros da Literatura Afro-brasileira. As

290
ELIAS, Ieda Maria Sorgi Pinhaz; BRANDILEONE, Ana Paula Franco Nobile. Diário de
leitura: o aluno como protagonista na construção dos sentidos do texto literário. In: SOUZA,
Renata Junqueira de et ali. (orgs.). (Trans)formação de leitores: travessias e travessuras.
Presidente Prudente: Ninfa Brisa, 2018. p. 2535-2544.
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atividades foram elaboradas por graduandos do 3º e 4º anos do curso de Letras, os
residentes; sob a supervisão da preceptora, Profa. Me. Ieda Maria Sorgi Pinhaz Elias,
professora da escola parceira, responsável por planejar, acompanhar e orientar os
residentes nas atividades desenvolvidas na escola campo; e coordenação do docente
orientador, docente da IES, Profa. Dra. Ana Paula Franco Nobile Brandileone,
responsável por planejar e orientar as atividades dos residentes de seu núcleo de
Residência Pedagógica.
Antes, porém, da implementação das atividades no referido colégio, foram
realizados, na universidade, encontros de estudo, com o objetivo de investigar 1. as
especificidades do discurso literário por meio da análise de textos literários (CANDIDO,
1972, 1995; ABREU, 1995; JOUVE, 2012; BRANDILEONE, 2014; CARRASCOZA,
2015); 2. leitura de textos teórico-metodológicos sobre o ensino de literatura (CEREJA,
2014; COSSON, 2011); 3. leitura de textos teóricos sobre a formação do leitor e do
professor de literatura (COSSON, 2013; ROUXEL, 2013; NAVAS, 2015); 4. leitura de
textos teóricos sobre o diário de leitura (BUZZO, 2010; JOUVE, 2013, COSSON, 2014);
5. sobre a Lei 10.639/03; 6. sobre a produção literária afro-brasileira (DUARTE, 2011).
Para a escolha dos textos literários, adotou-se a seguinte estratégia: os alunos
residentes foram divididos em duplas e cada equipe ficou responsável por selecionar
dois textos africanos e/ou afro-brasileiros, que deveriam ser apresentados por cada
dupla em encontro de estudo. O critério de seleção levou em conta o ganho
simultaneamente ético e estético que os alunos da educação básica teriam com os
textos literários selecionados (ROUXEL, 2013). Afinal, foram eleitos três contos, sendo
eles “Maria”, de Conceição Evaristo (2016), e “Obsessão”, de Sonia Fátima da
Conceição (1993); e “No seu pescoço”, de Chimamanda Ngozi Adichie (2017)291. Do
gênero poético, dois poemas, “Africanos e Afro-brasileiros”, de Antônio Vieira (1975), e
“Gota do que não se esgota”, de Luiz Silva (Cuti) (2007). Importa dizer que foi entregue
aos alunos da Educação Básica não apenas a coletânea de textos literários, mas
também um caderno estilizado, confeccionado pelos residentes, no qual realizariam os
registros de escrita.
Antes, portanto, de iniciar as atividades com os textos literários em sala de aula,
os residentes, em duplas, prepararam um plano de aula, apresentado à preceptora e à
coordenadora do subprojeto, que avaliaram e orientaram as práticas pedagógicas. O
documento foi composto por seis itens: objetivos, geral e específico; apresentação do
conteúdo; procedimentos metodológicos; recursos didáticos a serem utilizados;

291
Este conto não foi implementado em sala de aula devido ao calendário escolar.
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proposta de avaliação e referência bibliográfica. Ainda foram elaboradas perguntar
norteadoras para cada um dos textos, as quais deveriam contemplar questões formais
e de conteúdo, de modo a sistematizar a leitura de cada um deles. Pois, não obstante o
diário de leitura possua com um dos objetivos pedagógicos valorizar a subjetividade
leitora, aspecto que está intimamente ligado à sua origem, datada do século XIX, em
que a escrita diarista foi concebida como uma prática essencialmente introspectiva e,
por isso, secreta, solitária e livre de qualquer amarra, ela não é tão autônoma quanto
parece. Desse modo, as anotações no diário foram acompanhadas de instruções pré-
estabelecidas, as quais orientaram o leitor no registro de sua recepção do texto.
Também foram adotadas outras estratégias metodológicas para promover uma
maior interação dos jovens leitores com os textos literários selecionados. A fim de inserir
o aluno no universo da obra, os residentes apresentaram dados da biografia e da
produção literária do autor, e buscaram estimular hipóteses antecipadas de leitura, a
partir do título e da adoção da etapa “Motivação” da sequência de leitura literária de
Cosson (2011). A seguir, um dos residentes realizava a leitura integral do texto em sala
de aula, abrindo espaço para que os alunos comentassem sobre a experiência de
leitura. Dada a já conhecida resistência dos alunos à leitura, é que a escolha de contos
e poemas se justifica; garantiu-se, com isso, que os discentes lessem todos os textos.
Os momentos de discussão coletiva, antes mesmo do registro no diário de
leitura, foram fundamentais para ampliação da compreensão dos textos pelos alunos, já
que diferentes pontos de vista foram apresentados. Já os residentes ficaram com a
tarefa de analisar formalmente os textos literários, a fim evidenciar as possíveis
interpretações; estudo do texto literário realizado de forma antecipada nos encontros de
estudo. Ao final da discussão coletiva, os alunos recebiam as questões norteadoras, de
modo a guiar o estudo do texto; o registro no diário de leitura foi realizado extraclasse.
Na semana seguinte, o momento inicial da aula era para a checagem da
realização das atividades por meio de visto no diário de leitura e apresentação, no
grande grupo, das questões que deveriam ter sido respondidas. Nesta etapa, o aluno
além de expor as suas impressões de leitura, também tinha a oportunidade de ampliá-
la, por meio do diálogo estabelecido com a leitura apresentada pelos outros alunos da
turma. Parte-se, aqui, do entendimento que a produção do diário só se efetua
plenamente no seu compartilhamento. Momento em que se instaura e se mantém uma
discussão autêntica entre leitores de uma comunidade, pois para Cosson (2014), ainda
que o processamento do texto seja individual, a leitura é social.

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Desse modo, a leitura compartilhada em sala foi organizada com base nas
anotações dos alunos que, conforme se apresentou anteriormente, permite não apenas
o desenvolvimento das competências leitora e de escrita, bem como a construção dos
sentidos do texto, já que o aspecto subjetivo da escrita diarista dá forma à manifestação
da reflexão e, consequentemente, da análise crítica, que se manifesta nas impressões,
reações e questionamentos diante do texto. Nesse contexto é que a mediação do
professor, no caso os residentes, foi fundamental. Importa destacar, no entanto, que as
suas intervenções tiveram por objetivo “[...] mediar, auxiliar e ajudar o aluno a realizar
descobertas e desvelar significados nas obras literárias que leem, confirmando ou
refutando percepções e sentidos que vão enriquecer e ampliar o repertório de leituras
do aluno” (SEGABINAZI, 2016, p.87). Nesse sentido, o professor assume antes o papel
de participante do processo de formação dos leitores, mediando e intervindo nas
escolhas e nas interações autor/texto/leitor, do que como sujeito que detém única e
exclusivamente o saber sobre a literatura, mais especificamente sobre o texto em
estudo.
Com o decorrer das aulas, percebeu-se que havia alunos que não se envolviam
nas discussões. Por isso, nas reuniões semanais entre os residentes, coordenadora e
preceptora, decidiu-se, então, pela mudança parcial da metodologia, mais
especificamente da dinâmica de socialização dos registros do diário de leitura, visando
a incluir os alunos que não estavam interagindo com o grupo. A estratégia foi a seguinte:
se antes os alunos, de forma individualizada, socializavam as suas impressões de
leitura, a partir das questões norteadoras, depois, passaram a se reunir em grupo de
cinco integrantes. O residente lia uma das perguntas norteadoras e o grupo de alunos
tinha três minutos para formar uma resposta única, considerando as respostas
individuais, e compartilhar com a turma. Na sequência, um aluno do grupo lia a resposta.
Depois de todos os grupos apresentarem, a turma, de forma coletiva, escolhia qual
hipótese interpretativa tinha melhor atendido ao questionamento. Ainda que a
construção individual dos sentidos do texto tenha sido transformada em construção
coletiva dentro de cada grupo, a estratégia mostrou-se válida, gerando uma maior
adesão e participação dos alunos, seja na elaboração de respostas mais densas, seja
por oportunizar que avaliassem os registros de interpretação dos seus pares. Outro
aspecto que merece destaque é que os alunos mais tímidos passaram a ter voz, já que
não havia um porta voz por grupo; a cada rodada, a questão era respondida por um
aluno do grupo. Como a questão já tinha sido debatida antes de ser formalizada, o

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estudante tinha mais segurança em apresentá-la, pois ela não era pessoal, e sim
resultado do estudo em grupo.
Para encerrar o projeto de ensino no colégio, os residentes organizaram uma
gincana com os alunos, levando em conta os grupos anteriormente formados. A
atividade consistia em um jogo de perguntas e respostas, envolvendo perguntas de
múltipla escolha e verdadeiro ou falso sobre os textos literários estudados. Após a leitura
oral de cada pergunta, um residente sinalizava e o grupo que primeiro levantasse a mão
poderia responder a questão; caso a resposta estivesse incorreta, o segundo grupo
tinha a chance de responder. Isso ocorria sucessivamente até um dos cinco grupos
acertar. Ao fim da gincana, o grupo com mais pontos recebeu um prêmio simbólico e
toda a turma foi convidada para um momento de celebração das ações desenvolvidas,
seguido por um coffee break elaborado pelos residentes, preceptora e coordenadora.

Considerações finais
Conforme já exposto, o uso do diário de leitura foi proposto como uma estratégia
para a abordagem do texto literário em sala de aula que criasse oportunidades para os
alunos se expressarem subjetivamente sobre a leitura literária compartilhada pela
turma, bem como oferecer-lhes andaimes para a construção de sentidos e fruição do
texto. Desse modo, esse trabalho de leitura coletiva oportunizado pelo diário de leitura
favoreceu não apenas o processamento cognitivo, mas também a projeção subjetiva,
fazendo avançar as competências leitoras e estimulando a expressão pessoal.
Pode-se dizer, entretanto, que a adesão ao diário de leitura não foi integral.
Alguns alunos começaram o diário na sala, junto com a turma, mas não levaram a cabo
a tarefa. Todos os que não o fizeram invariavelmente não apresentam hábitos
consolidados de leitura ou apresentam dificuldades de compreensão leitora. Outros, na
mesma situação, realizaram a tarefa, mas tiveram muita dificuldade em desenvolver
suas reflexões por escrito, embora, em alguns casos, o fizessem oralmente. Outros,
ainda, apesar das dificuldades, esforçaram-se bastante em seguir as instruções.
Também chamou atenção o fato de que, entre os itens que eles poderiam escolher para
registrar suas impressões de leitura, a opção mais frequente foi a de resumo de
conteúdo, independentemente de serem leitores frequentes ou não. Entretanto, os
alunos com mais dificuldades eram os que mais recorreriam a essa opção. Houve casos
em que o diário era exclusivamente de paráfrase da narrativa ou do poema. Para esses
alunos, as perguntas norteadoras não foram suficientes. Além disso, o fato de a maioria

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dos alunos ter optado pelo resumo de conteúdo talvez revele uma relação com o texto
literário previamente consolidada: ler ficção/texto literário é apreender o enredo.
O fato de a adesão dos alunos ter sido parcial demonstra a dificuldade em se
colocar como sujeitos da escrita, uma vez que estão acostumados com uma situação
de produção e não de reprodução, isto é, com a tradição nociva na qual o aluno deve
reproduzir respostas dadas pelo professor. Além disso, a imaturidade ou a falta de
prática com a escrita subjetiva inibiu os alunos de se expressarem sobre os textos
literários de forma autônoma. De qualquer modo, o diário de leitura, que se propõe a
promover o diálogo reflexivo com o texto, instaurando novos papéis para o professor e
o aluno nas aulas de leitura, apresenta-se como ferramenta didática que pode auxiliar o
ensino de literatura no espaço escolar a de um lado favorecer o desenvolvimento de
competências de leitura – por meio do estímulo ao automonitoramento, do partilhamento
explícito de diferentes modos de ler e da busca coletiva por comprovações, no texto,
para as hipóteses interpretativas levantadas – e, de outro, a estimular o prazer pela
busca de sentidos, pela criação de referências comuns e pela troca de impressões.

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1887
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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
O DIALOGISMO CONSTITUINTE NO EQUILIBRIO ENTRE O
FEMININO E O FEMINISMO EM ADÉLIA PRADO: UMA LEITURA

Autora: Cleunice Terezinha da Silva Ribeiro Tortorelli - Universidade Estadual


Paulista Júlio de Mesquita Filho – Câmpus de Marília, Marília-SP, Brasil.
Coautora: Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto - Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho – Câmpus de Marília, Marília-SP, Brasil

Eixo Temático 11: Literatura e estratégias de leitura

Considerações Iniciais

Partiremos, nesse estudo, da gênese salutar para o Círculo de Bakhtin que é o


conceito de dialogismo, desenhando assim, uma concepção de linguagem capaz de
propor possibilidades de enfrentamento na busca de uma compreensão sociológica,
com vistas a construir um movimento por meio das práticas discursivas de alguns
poemas de Adélia Prado a serem analisados.
E com o intuito de entendermos essas práticas, nosso objetivo é perscrutar o
que fala o teórico russo acerca do diálogo correlacionando à linguagem poética na busca
de mulheres pela autonomia, pela equivalência de direitos, tão fundamental atualmente
e que nos leva a refletir acerca da valorização do universo feminino e da mulher
pensante, aliando a isso o alinhamento entre o feminino e o feminismo, apresentado,
de forma tão poética, singela e cotidiana, pela poetisa de Divinópolis, Minas Gerais,
Adélia Prado. Isso porque vários autores vêm abordando a temática e é necessário que
haja ainda mais estudos acerca do assunto, em especial no gênero lírico, para que este,
também, ganhe espaço nos estudos cotidianos.
Nosso viés teórico-metodológico será a análise da poesia de Adélia Prado com
as contribuições de Bakhtin (1972-2003), Adorno (2003), Cândido (2004), entre outros,
apresentando como essa poetisa dialoga com o leitor de seus versos, dado que, ao ler
poemas, praticamos um exercício de extrema vivacidade.

1888
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Introdução
Sabemos, pelas nossas várias leituras e assimilações de conteúdo, ao longo
de nossa vida acadêmica, como educadores da linguagem, que o dialogismo é princípio
fundante, segundo o filósofo Bakhtin. Esse escritor afirmava que a relação sócio-
histórica e dialógica entre sujeitos é a essência do encadeamento de produção do
discurso, dando valor à intersubjetividade no lugar de representar apenas a realidade
de forma objetiva. Diante dessa vertente, esse preceito se fundamenta no
conhecimento, na comunicação, na interação verbal e, consequentemente, na formação
da consciência humana. E a poesia nos traz a possibilidade de dialogar com outras
vozes com as quais o sujeito lírico tece diálogos que entrelaçam com essa teoria
bakhtiniana.
Dessa forma, iniciemos com o poema Com licença poética assim como alguns
outros que nos levam a fazer considerações quanto ao dialogismo estudado pelo filósofo
Bakhtin, e durante essa análise percebemos que Adélia Prado assumiu vários papéis
na sua vida de escritora, como ser esposa, ser mãe, ser filha, ser dona de casa, ser
mulher, e ser feminina e ao mesmo tempo feminista.
Essa leitura nos oportuniza a reflexão sobre diversos valores, pois, como se
pode observar em Candido (2004), a literatura carrega funções de intensa valia, vez que
a situação discursiva está sempre em movimento, segundo as teorias bakhtinianas.
A função da literatura está ligada à complexidade da sua
natureza, que explica inclusive o papel contraditório, mas
humanizador (talvez humanizador porque contraditório).
Analisando-a podemos distinguir pelo menos três faces: 1) ela é
uma construção de objetos autônomos como estrutura e
significado; 2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta
emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; 3) ela
é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação
difusa e inconsciente. (CANDIDO, 2004, p. 176).

Logo, perceberemos, na análise dos poemas adelianos que, na relação com o


outro, o alicerce da linguagem é o dialogismo, já que, conforme Bakhtin, (1961, p. 293),
“A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo”. E ao ler
poemas, dialogamos com o eu-poético, com o autor, com o próprio objeto da poesia,
uma vez que nos encharcamos de lirismo, emoções e conhecimentos.

Tecendo fios: vida, filosofia e arte de Adélia Prado e Bakhtin


Antes de adentrarmos no rio das belezas adelianas, indagamos a nós mesmos
e aos nossos leitores: o que é a linguagem? Como transvemos a linguagem? E por qual
razão estudamos a linguagem? Ela é palavra, é discurso, é enunciado, tanto verbal,

1889
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quanto extraverbal. Ela é um instrumento de comunicação e possui funções, já que é
transmitida por diversos canais comunicativos. Ela atua como pensamento de uma
pessoa e como reflete e refrata no signo. Comunicamos pela linguagem como ser vivo
falante e até o nosso corpo exala intercomunicação.
Adélia Prado comunica pela arte, pela Literatura, pela linguagem estética como
uma especificidade que é um dos adequados meios de aquisição de saber que pode
revelar um mundo mais crítico e sensível. E a poesia é dotada dessa elaboração estética
que mais diretamente se liga aos sentidos em razão de seu caráter mais subjetivo e
que, pelo menos aos olhos de leitores que a frequentam menos, parece ter os sentidos
mais cifrados, com especificidades na produção de sentido, na dialogia e na interação
que estabelece com o leitor.
Entretanto, Bakhtin e o círculo vão dissertar acerca dessa interação. Eles
asseveram que há, na linguagem, múltiplas vozes capazes de atribuir ao ser humano
uma individualidade somente dele.
E quem foi Bakhtin? Quem foi Adélia Prado? E como esse filósofo da linguagem
dialoga com a lírica dessa poetisa? Estas e outras questões serão respondidas no
decorrer das palavras gentilmente colhidas no aguçar/pesquisar a concha da vida, tanto
de um quanto de outro, onde o mar deixou suas ressonâncias que as nossas memórias
e também de ambos os escritores guardam pelo tempo e pelo espaço.
Mikhail Mikhailovich Bakhtin nasceu em 17 de novembro de 1895, em Orel, na
Rússia. Pertencia a uma família aristocrática em decadência, cursou Filosofia e Letras
na Universidade de São Petersburgo, com abordagem profunda na formação filosófica
alemã. Como filósofo e pensador russo, teórico da cultura europeia e das artes, Bakhtin
muito contribuiu como pesquisador da linguagem humana. Ele defende a filosofia do ato
responsável. E diz que na interatividade acontece o “eu no outro e o outro em mim”, um
não existe sem o outro. Bakhtin e Volóchinov discutiam com o círculo essa
responsividade e para que uma pessoa se tornasse um ser responsável precisaria de
respeito, reconhecimento e auscultação.
E o que tem a ver o verbo “auscultar” nesse contexto? Significa escutar, o que
é diferente de ouvir. E hoje? Como analisamos o ato de ouvir ou seria de escutar?
Escutamos o outro ou apenas ouvimos? Temos interesse pelo que o outro fala? O
respeito é mútuo entre os seres? Sabemos tecer o fio que nos reconecta com o outro?
E que fio seria esse? Segundo Bartolomeu Campos de Queirós, ouvir é um ato
mecânico, é como “entrar por um ouvido e sair pelo outro”; já escutar exige
concentração, esforço do receptor da mensagem, é compreender com a mente e com

1890
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o coração: “Difícil não conferir razão a meu pai em seus momentos de anjo. Ele pendia
a cabeça para a esquerda, como se escutando o coração, e falava sem labirintos”
(QUEIRÓS, 2004, p. 7).
Para ler poesia não é diferente. O coração parece escutar mais do que nossas
linguagens sobre o conhecimento, as ciências e tantas outras coisas grandes e
pequenas. Por isso, em meio a um diálogo sério, a uma conversa importante ao “pé do
ouvido” ou em um escrito mais elaborado, o mais difícil é encontrar o que dizer nas
primeiras palavras. Se lemos ou escutamos com a emoção, a linguagem flui como água
na cascata.
Nessa forma de comunicar, dialoguemos com Adélia Prado, nesse contexto, o
objeto de nosso estudo. Falar dessa poetisa, mulher e encantante esposa e mãe não é
tarefa fácil. Embora tenha tido uma vida simples, é complexo o entendimento de tudo o
que quis dizer. Ecoam-se rumores de divindade, de poesia, de cotidianidade, de sons
agradáveis de palavras que dançam na poeticidade de seus versos. Afluem-se os rios
de “memórias do dizer”. E por falar em afluência, adentremos na vida da poeta, escritora,
contista, filha, mãe, esposa, mulher, professora, filósofa, que vê a poesia como
experiência e a fé como algo que pode “munir o ser humano de mais qualidades,
compaixão e caridade”. Seu nome de batismo? Adélia Luzia Prado. Nascida em 13 de
dezembro de 1935, passando a se chamar, oficialmente, Adélia Luzia Prado de Freitas,
desde 1958, quando se casa com José Assunção de Freitas e com quem teve cinco
filhos: Eugênio (em 1959), Rubem (1961), Sarah (1962), Jordano (1963) e Ana Beatriz
(1966). A nossa escritora é de Divinópolis, Minas Gerais. Assim como das “minas”
nasceram preciosidades várias como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa,
Carolina Maria de Jesus, Bernardo Guimarães, Bartolomeu Campos de Queirós e
outros. Nesse meio-tempo, o “anjo” que faz os escritos adelianos se desaguarem em rio
ainda maior é o poeta e crítico literário Affonso Romano de Sant’Ana, que os leva até
Carlos Drummond de Andrade, outro anjo.
Com isso, surge o livro Bagagem, considerado o primeiro de muitos outros
escritos pela poetisa, que passa a ser vista “com bons olhos pelo público” porque foi
apadrinhada pelo grande Drummond, o qual envia para a Editora Imago uma série de
poemas e ainda a elogia pela produção. A escritora homenageia o também poeta
mineiro, de Itabira, inserindo o poema Com licença poética, nesse livro de estreia,
publicado em 1976, onde Adélia Prado, considerada até então anônima, é apresentada
ao público.

1891
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Ao adentrar com mais sensibilidade na vida da criadora de versos, esperamos
lançar luzes na poesia de Adélia que quer dizer “nobre” no significado do nome, mas é,
também, nobre como pessoa, rica em sabedoria e nobre na escrita, especialmente na
lírica, pelo encanto das palavras, das sonoridades, das surpresas, dos jogos de
sentidos, um universo de signos sempre vivos e brincantes no entardecer, na natureza,
em coisas simples e nas complexas em que abordam o profano, o grotesco e o processo
de carnavalização que, segundo Bakhtin, são as inversões e os rebaixamentos
pertencentes ao repertório carnavalesco, da praça pública e, portanto, do gosto e regalo
das classes mais populares.
Adélia traz no cerne de sua poesia o feminino, a eroticidade da mulher e, ainda,
o feminismo, de direitos e de igualdade com o ser masculino. E nesse ir e vir de vozes
saídas da sensibilidade de Adélia, há o retrato do cotidiano e da forma simples da
tessitura de seus poemas, porém com certa “estupefação e encanto”. Uma poesia
voltada, também, à fé cristã e embebida de ludicidade, uma das particularidades do
estilo adeliano único.

Adélia Prado constituindo o dialogismo de Bakhtin ao tecer o equilíbrio entre o


feminino e o feminismo
A materialidade da linguagem, em especial da lírica, nos leva a perceber que
há outras vozes que dialogam entre si e produzem um sentido nos códigos extraverbais,
já que, nesse tipo de gênero, os embates sociais são apresentados implicitamente, o
que é diferente no romance como assevera Adorno (2003). As trocas verbais acontecem
entre o eu-lírico e o leitor de forma mais sutil.
Quanto ao lirismo, Adorno (2003, p. 72) afirma que:
Em cada poema lírico devem ser encontrados, no medium do espírito
subjetivo que se volta sobre si mesmo, os sedimentos da relação
histórica do sujeito com a objetividade, do indivíduo com a sociedade.
Esse processo de sedimentação será tanto mais perfeito quanto menos
a composição lírica tematizar a relação entre o eu e a sociedade,
quanto mais involuntariamente essa relação for cristalizada, a partir de
si mesma, no poema (ADORNO, 2003, p. 72).

E essa dualidade entre o objetivo e subjetivo mencionada por Adorno, é


consoante ao caráter individual do contexto presente nos atos comunicativos
(BAKHTIN, 2003, p. 294), já que o discurso poético evidencia a relação da palavra com
uma realidade objetiva, advinda de um enunciado individual e, por consequência
comunicativo.
Logo, nessa comunicação, percebemos que o lirismo é contrário à
desumanização, ao consumismo, à dominação, ao poder do homem sobre a mulher e
1892
Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil “Maria Betty Coelho Silva"
Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
a tantas outras barbáries. Para Bakhtin, (1997, p. 313), a palavra, por vezes, apresenta-
se como um "aglomerado de enunciados”, tanto individual quanto de uma comunidade.
Conforme a época de produção desses enunciados, eles vão se reorganizando no meio
social, na família e nas formas de crescimento de uma sociedade, onde o sujeito
encontra-se inserido, com sua história e suas intenções a se manifestarem, “toda época,
em cada uma das esferas da vida e da realidade, tem tradições acatadas que se
expressam e se preservam sob o invólucro das palavras, das obras, dos enunciados,
das locuções, etc.” (BAKHTIN, 1997, p. 313).
Nos versos a seguir, Adélia Prado expõe uma época, um histórico (de vida?) e
dialoga com o Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade.

“Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
(...)”
Na verdade, a poetisa homenageia o poeta mineiro, tão importante em sua
trajetória de escritora:
Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
O eu-lírico nesse poema, no desejo de chegar mais perto do leitor, apresenta
seus defeitos e qualidades “envergonhada”, “Aceito os subterfúgios que me cabem”,
“Não tão feia...”. A poetisa usa uma linguagem mais informal, semelhante a utilizada na
oralidade. Além disso, percebemos, por meio desses versos, que há questões
contraditórias no universo feminino, e esse eu, de forma antitética, revela que o fato de
existir “subterfúgios” não a impede de casar e ter filhos. Notamos, então, que esse
“aglomerado de enunciados” dialoga com outras épocas, pois, em outros tempos, a
função da mulher era apenas “casar e parir”, como no verso: “sua raiz vai ao meu mil

1893
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avô.” E hoje? Carregamos bandeiras? Algumas de nós sim! Seria “cargo muito pesado
pra mulher”?.
É perceptível o equilíbrio entre o feminino e o feminismo da autora no que diz
respeito ao agir “Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo
reinos”. O eu-lírico apresenta-se grande e forte ao dizer dessa forma. Podemos analisar
isso pelo tamanho do verso (o maior de todos nesse poema) e, também pela gradação
e o uso de verbos que dão intensidade à fala: “sinto”, “escrevo”, “cumpro”, “inauguro”,
“fundo”. E mesmo “envergonhada”, como espécie feminina, que ainda luta pela
emancipação como mulher, dá a entender que pode casar “se” e “quando” quiser. Pode
escolher ter filhos ou não os ter. Já assumindo apenas o feminino diz: “Cargo muito
pesado pra mulher”. E entre o discurso do feminino e do feminismo, “Mulher é
desdobrável. Eu sou”. Isso diz nas entrelinhas que homem não o é. Um verso que fica
separado dos demais. Pode-se deduzir ainda que mulher pode ser tudo, ela mesma
escolhe ser tanto submissa, quanto feminista. Ela se desdobra, é mãe, dona de casa,
esposa, trabalha fora de casa, é independente, livre, sabe o que quer. Entretanto,
quando diz “Minha tristeza não tem pedigree”, notamos que a dor é universal a todo ser
que respira, e o sofrimento do eu-lírico não interpõe diferença entre o homem e a mulher.
As trocas verbais entre as pessoas estudadas por Bakhtin, nos anos 50, nesse
caso entre eu-lírico e leitor, diz respeito à interferência que o ouvinte (leitor) exerce sobre
a maneira como falante (poeta) se expressa. Para o filósofo, quem recebe a mensagem
compreende o significado do que foi dito e adota uma atitude “responsiva ativa”, ou seja,
de uma forma ou de outra, o interlocutor responde ao enunciado, pois o enunciado vivo
é “prenhe” de respostas (BAKHTIN, 1979).
Analisemos, de igual forma, o poema Casamento. Nele sabemos da amplitude
das relações dialógicas que resulta no diálogo com outras vozes femininas na poética
de Adélia Prado:
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
1894
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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.

Esse poema é extremamente romântico do ponto de vista do eu-lirico. Há um


acontecimento de amor em que marido e mulher, juntos, estão preparando um peixe,
um ajudando o outro e ambos totalmente em silêncio e sozinhos: “É tão bom, só a gente
sozinhos na cozinha”.
Antes, porém, esse eu-lírico conversa com o leitor e pronuncia o discurso de
“outras mulheres” ao dizer: “Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar,
pesque,/mas que limpe os peixes”. Possivelmente esse enunciado é próprio de um
discurso feminista. E o outro diálogo é o do eu-lírico: “Eu não. A qualquer hora da noite
me levanto, /ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar”. E por isso constatamos que a
autora consegue equilibrar o feminino e o feminismo. As mulheres (as feministas) que
não limpam os peixes abrem mão desse momento romântico com o marido. Nesse
outro discurso, esse eu do poema “a qualquer hora”, não importa de se levantar da
cama, tarde da noite ou de madrugada para “ajudar” seu amado. Ela escolhe ajudar o
marido. Há um diferencial aí, já que a tarefa não é só da mulher. Novamente, vemos
nesse poema, também, uma figura de linguagem importante: a gradação, no uso dos
verbos: “escamar”, “abrir’, “retalhar’ e “salgar”. Esse movimento prepara e contribui para
que o momento se torne mágico e o eu-lírico sente-se satisfeito com a presença do
outro: “É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,”. Talvez, mesmo sem se olharem,
acontece o contato físico “de vez em quando os cotovelos se esbarram”. O leitor sente-
se embebido de comoção. Há um aspecto de sedução nas entrelinhas. Sentimos junto
com o casal (do poema) um estado de felicidade e prazer. A mulher feliz de ver o marido
descrever a cena, o marido feliz por contar à mulher como foi pescar aquele peixe “ele
fala coisas como "este foi difícil"/"prateou no ar dando rabanadas"/e faz o gesto com a
mão.”
Antes do término do poema, o casal parece estar novamente apaixonado: “O
silêncio de quando nos vimos a primeira vez/ atravessa a cozinha como um rio
profundo.” O silêncio personificado “atravessa” a cozinha. Ele é comparado a um rio
profundo. A profundidade desse rio abarca toda a lembrança de marido e mulher, de
como se conheceram e o que viveram como casal. São várias as significações, muitos
diálogos envolvidos, pois, como diz (BAKHTIN, 1979, p. 345), “As relações dialógicas
são relações semânticas entre todos os enunciados na comunicação verbal.”
Por fim, nos três últimos versos, temos os peixes já prontos para serem
assados? Há a sugestão de que a relação se estende, na intimidade, no erotismo, na

1895
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sexualidade: “Por fim, os peixes na travessa, /vamos dormir. /Coisas prateadas
espocam:/”. Temos a imagem dos peixes na travessa. Seria a conotação de marido e
mulher deitados lado a lado na cama? Já estão preparados. O verbo “escamar”
significando tirar a roupa, despir, ficar nu. Depois o verbo “salgar”, dar gosto, na medida
certa, seriam as preliminares? E no momento íntimo, na eroticidade, na sexualidade do
casal, “Coisas prateadas espocam:”. O último verso vem separado dos demais “somos
noivo e noiva.”. Em tom de sedução e ao mesmo tempo romântico, como num momento
sagrado, eles se tornam noivo e noiva, daí o título casamento.
Para Adélia Prado o desejo do corpo é algo divino, pois conforme diz a bíblia,
fomos criados à imagem e semelhança de Deus. O corpo é imagem de Deus. Há uma
intensividade da dimensão religiosa e cristã da poetisa em várias de suas obras.
Precisamos entender que, na dialogia bakhtiniana dos enunciados, o discurso
do outro nos traz o conhecimento de discursos e mundos outros dialogados. O nosso
discurso não é só nosso, somos intermediários quando dialogamos, polemizamos e
tomamos como nossos outros discursos existentes na sociedade, advindos de culturas
várias, leituras, experiências outras.
No poeminha a seguir, percorremos uma leitura de caráter sócio-histórico e
cultural. Nas muitas ideologias, a casa é o ambiente da “domesticação feminina”. As
moças eram obrigadas a saber cozinhar, bordar, costurar e outras atividades inerentes
à condição de mulher, para serem “boas donas de casa”. De forma específica, a cozinha
coloca em evidência, de forma brutal, a sujeição imposta à mulher pelo poder masculino
opressivo, ao longo dos tempos. Tantas vezes já ouvimos, até mesmo de mulheres, que
“lugar de mulher é na cozinha”. O eu-lírico transforma esse discurso, pois é visível a
relação entre o enunciado (poema) e o meio social que circula o que foi dito.
Nesse aspecto, Bakhtin (1979) diz que a criação se dá pelo sentimento vivido.
(...) qualquer coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa que é
dada (a língua, o fenômeno observado na realidade, o sentimento
vivido, o próprio sujeito falante, o que é já concluído em sua visão do
mundo, etc.). O dado se transfigura no criado (BAKHTIN, 1979, p. 348)

E é nesse contexto que percebemos a extraverbalização do discurso poético


de Adélia Prado nesses versos:
Solar

Minha mãe cozinhava exatamente


arroz, feijão-roxinho,
molho de batatinhas.
Mas cantava.

(PRADO, 1991, p. 151)


1896
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Comecemos pelo título do poema. A palavra “solar” possui um significado mais
amplo e, por vezes, dicotômico. Trata-se de uma questão ideologizada, de caráter sócio-
histórico e cultural, uma vez que solar como casa, habitação, significa palacete, segundo
o significado mais primário e simplificado da Wikipédia, a Enciclopédia Livre. É um
terreno onde moravam os nobres. Pensamos, então, em uma residência de grande luxo,
conforto. Entretanto, o fazer poético de Adélia Prado nos remete a vários outros
significados de “solar”. Percorremos por uma casa simples, onde bate a luz do sol. E ao
pensar nessa luz solar, abramos um parêntese, apenas a título de ilustração, e
dialoguemos com o poema:
Impressionista

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

(PRADO, 1991, p. 36)

Retornando ao poema Solar, perscrutamos a ideia de que a mãe, que


cozinhava “exatamente arroz, feijão-roxinho,/ molho de batatinhas”, também cantava.
Fazia um solo, do Latim, solus, que quer dizer “sozinho”. O eu-lírico admira a mãe por
ser uma solista, alguém que canta, apesar da lida, dos afazeres domésticos. Por outro
lado, embora essa chefe de família cantasse, e por isso tornasse a comida mais
saborosa, observamos que “solar” pelo viés mais popular da linguagem de algumas
regiões, quer dizer “trabalhou o dia todo no sol”, “solou” no serviço, o que pode, também
fazer referência ao sapateiro que coloca solas em sapatos. Já no espanhol o significado
dessa palavra é “soler”, que quer dizer “costumar”. O costume da mãe era cozinhar e
cantar. Como se vê, podemos extrair leituras e dialogar com o texto de várias formas.
Indo mais além, a autora nos remete às questões do costume da mulher.
Voltando à questão da “domesticação feminina”, tendo em vista o termo “domesticar”,
no mais grotesco dos sentidos, quer dizer adestrar, subjugar, docilizar, como se a
mulher fosse um animal irracional. Palavra essa, hoje, tida como racista e
preconceituosa, em virtude do contexto histórico a ela atribuído.
No título “Solar”, lemos “só lar” um lar e nada mais, é o espaço que evidencia
a brutal sujeição imposta à mulher pelo opressivo poder masculino, ao longo dos
tempos.

1897
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Há nesse poema duas mulheres que dialogam entre si. O eu-lírico, por meio da
poeta que escreve o poema e a mãe dela. Essa mulher é, provavelmente, simples, de
classe social baixa, “do lar”. Se perguntássemos qual é a sua profissão, ela certamente
diria que era “do lar”, inclusive em documentos, para referir à mulher sem atividade
profissional, a caracterização era essa. E numa linguagem ainda mais coloquial, seria
“dular”, hoje nome dado a algumas lojas de utilidades domésticas.
Essa mãe prepara uma comida simples “arroz, feijão-roxinho,/ molho de
batatinhas.”. Mesmo que não haja diálogo transcrito, o leitor pergunta: A mãe não
cozinhava mais nada? Costumava-se cozinhar apenas isso o tempo todo? Entretanto,
o que traz poeticidade ao poema é o fato de a mãe cantar. Ocorre nesse verbo no
pretérito imperfeito uma sutileza especialmente significativa, não percebida, quem sabe,
por um olhar defensivamente feminista: “Mas cantava”. Cantar fazia-a esquecer as
durezas, dava alegria ao lar, amenizava o fato de não ter ingredientes mais sofisticados
e/ou diversificados para cozinhar. A semântica do verbo nos impulsiona a pensar que o
contexto reflete na essência do enunciado, que Bakhtin (1979) via como livre e criativo,
por fazerem parte da intimidade social, pois o elemento extraverbal, nesse caso, o
deduzimos em nossas leituras, liga-se ao verbal, e aquilo que não foi dito determina o
dito.
O uso da conjunção adversativa no verso: “Mas cantava”, faz toda a diferença.
A comida simples torna-se gostosa. Mesmo sendo um prato contumaz, não causa
repugnância, porque o ato de cantar traz leveza, alegria, aconchego, amor e
musicalidade. Percebe-se, por meio desse verso, a temperança da mãe, contrapondo o
discurso de “domesticada”. Ela punha tempero nessa refeição.
Tudo isso nos faz dialogar com tantas outras mães/mulheres de nosso
cotidiano, assim como o de Adélia Prado; sabendo a hora de ser doce, gentil, feminina,
mãe, dona de casa; e o inverso disso, sendo feminista, lutando pelos direitos, não
aceitando desrespeito e ofensas ou até optando por não ter filhos. Por fim, nos
baseamos nesse cerne da questão, pautando-nos no que fala Bakhtin (2010, p. 142) ao
dizer “A vida conhece dois centros de valores, diferentes por princípio, mas correlatos
entre si: o eu e o outro, e em torno desses centros se distribuem e se dispõem todos os
momentos concretos do existir” .
E para deixar em aberto tantas perguntas e respostas a serem lançadas ao mar
de nossas próprias ignorâncias, apreciemos mais um poema de Adélia Prado:
“Tal qual um macho”
Comi em frente da televisão
sem usar faca

1898
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e repeti o prato
como os caminhoneiros que falam de boca cheia
e vi um programa até o fim.
Até altas da madrugada fiquei vendo a moças rebolantes
locutores boçais dizerem
segura meu microfone, gracinha.
Depois fui dormir e sonhei,
voava perseguida por soldados um vôo
medroso temendo me embaraçar na rede elétrica.
Acordei com decepção e ânsias,
macho verdadeiro
sonharia com rebolâncias.

(PRADO, 2000, p. 466)

Considerações finais
Parafraseando Bartolomeu Campos de Queirós, em uma das suas tantas falas
Brasil adentro, sentimos saudades do mundo que não conhecemos ainda. Porque a vida
é curta para conhecermos tudo. Então, vai ficar muita análise a ser feita, várias leituras
a serem esmiuçadas nesse vasto campo da dialogia. Ora, pisamos apenas no raso de
um rio tão profundo a ser explorado. São algas, conchas, corais, quiçá pedras preciosas,
do mar de significâncias abordadas por Adélia Prado e de tantos outras personalidades
importantes para o nosso saber de educador.
Buscamos investigar e analisar algumas poucas considerações das muitas de
Bakhtin e dessa fantástica poetisa. Para tanto, situamos os autores em apenas uma
nesga parte de seus contextos de produção, sabendo-se da impossibilidade mesma de
esgotar uma análise, pois é denso o caminho a ser percorrido.
Embora consideremos que o pensar de Adélia Prado perpasse pelo equilíbrio,
não descartamos que as tensões emergidas no feminismo de tantas mulheres deixe de
ser uma constante, e que possa ir além do aspecto dialógico bakhtiniano. Esperamos
que esse estudo tenha contribuído com as discussões que não se encerram aqui, dado
que reflete as tensões e contradições de uma sociedade ainda machista. Logo, há muito
a ser discutido em vários outros trabalhos brilhantes como o dessa poeta mineira.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade. In: Notas de literatura I. Trad.
Jorge de Almeida. São Paulo: Ed. 34/Duas Cidades, 2003.

BAKHTIN, Mikail Mikhailovich. Estética da criação verbal. 2.ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.

1899
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____. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo:
Martins Fontes; 1997.

____. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir
Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.

NEVES, Orlando. Dicionário de Nomes Próprios. 2. ed. [S.I.]: Casa das Letras,
2008.Disponível em: < https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/sonia/ >
Acessado em: 23 junho de 2020, às 20h08min

PRADO, Adélia. Poesia reunida. 2.ª ed., São Paulo: Siciliano, 1991.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Ler, escrever e fazer conta de cabeça. São Paulo:
Global, 2004.

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O ENSINO DA LÍNGUA INGLESA E A LITERATURA INFANTIL292

Letícia Kondo, FFC / Unesp - Marília, CAPES


Cyntia G. Guizelim Simões Girotto, FFC / Unesp - Marília

Eixo Temático 11: Literatura e estratégias de leitura

Considerações iniciais
As práticas leitoras e o uso da literatura infantil na sala de aula são assuntos
alvo em diversas pesquisas, uma vez que apresentam relação com o desenvolvimento
do psiquismo das crianças, trazendo contribuições para a dimensão social e cultural de
suas vidas.
As possibilidades de trabalho e vivências a partir do mundo da leitura são
imensas, o antigo modo de se olhar para um livro e trabalhá-lo em sala como suporte
para cópia ou, ainda, vê-lo como justificativa para o trabalho de um ponto de vista
gramatical, parecem ainda estar presentes. Aguçar o interesse das crianças mediante
a leitura literária, por exemplo, diante de uma conversação literária, de uma contação
de histórias, de uma exploração e mobilização de estratégias de leitura por meio de
oficinas, dentre outras possibilidades, parecem ficar cada vez mais esquecidas nas
práticas pedagógicas, embora muito defendidas. O discurso é intenso e se mostra
assertivo, todavia as práticas pouco ou nada revelam mudanças.
Diversos autores trazem para discussão o problema de se considerar o ato de
ler como mera decodificação de signos em uma língua; distante disso, ler implica em
atribuir sentidos, gerar perguntas e buscar pelas respostas no texto. Em Bajard (2002,
p.42) me apoio para sustentar tal afirmação: “A leitura é o produto de uma interação
entre o leitor e o texto, e não uma decodificação de um significante, desvelamento de

292
Este trabalho encontra-se vinculado à pesquisa de Mestrado em andamento “O USO DA
LITERATURA INFANTIL NO ENSINO DO INGLÊS PARA CRIANÇAS: OLHARES E
PERSPECTIVAS PARA O TRABALHO COM AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA” com orientação
da Professora Cyntia Graziella G.S. Girotto.
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um sentido pré-existente [...] convocando seus referenciais culturais, o leitor constrói o
sentido do texto.”
Perante tais discussões, escolas e professores começam a se atentar para os
aspectos realmente relevantes, aqueles que parecem mais contribuir e resultar na
formação de leitores genuínos. Com relação a tal problemática, Arena (2010, p.41)
defende a importância de leituras abundantes em significados, capazes de estabelecer
ligações com as experiências de vida dos leitores:

Os pequenos leitores de literatura infantil se formam como leitores


porque aprendem a ler, não porque pronunciam as palavras, nem
porque as veem, mas porque estabelecem ligações entre o conjunto
de sentido por elas formado e o conjunto de sentidos que constituem
suas experiências de vida.

Se tais aspectos são negligenciados corriqueiramente em relação à língua


materna, não seria de se esperar outra prerrogativa teórico-metodológica senão a
mesma para uma segunda língua, como é o caso do ensino do inglês. A falta de
legislação que regulamente o ensino da Língua Inglesa no ensino fundamental, anos
iniciais, afeta diretamente a formação inicial e continuada de professores de línguas. Ao
não serem preparados para o trabalho com as crianças, os professores são privados do
acesso ao conhecimento sobre as especificidades infantis e de ricas discussões acerca
de um ensino significativo para o público infantil, capazes de promover, assim, para
além ambientes de aprendizagem muito superficiais, um ensino de qualidade.
Defendo, assim, as possibilidades culturais de um enriquecido trabalho
pedagógico com uma segunda língua, o potencial das obras literárias, no caso, em
língua inglesa, que muito podem oferecer ao ensino do inglês para os pequenos
aprendizes. O olhar atento dos professores para as necessidades infantis, a busca por
um ensino que os leve a uma aprendizagem carregada de sentido e o cuidado com a
escolha de uma boa obra podem abrir fronteiras inimagináveis.
Mediante as considerações apresentadas, o objetivo desta pesquisa de
mestrado em andamento faz-se compreender como pode se dar o uso da literatura
infantil no ensino da Língua Inglesa para crianças do Ensino Fundamental por
intermédio da abordagem sobre as estratégias de leitura.
Com o intuito de alcançar o objetivo de pesquisa estabelecido, foram
escolhidas três obras de literatura infantil do autor e ilustrador Oliver Jeffers. As análises
a serem feitas e as possíveis discussões acerca dos grandes temas linguagem, leitura
e estratégias de leitura estarão embasas de acordo com as teorias de Bakhtin (2003,

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2016 e 2017), Volochinóv (2017), Medviédev (2016), Bajard (2002 e 2014), Arena
(2010), Foucambert (2008), Girotto e Souza (2010) e Jolibert (1994).

Pesquisas iniciais na Literatura produzida


Em busca de contribuições existentes na literatura acerca de meu objeto de
estudo e na tentativa de entender a relevância da pesquisa de mestrado em andamento,
apresento o resultado do levantamento de artigos científicos resgatados nas bases de
dados CAPES e SciELO em junho de 2020.
Ao realizar buscas utilizando as palavras e operadores booleanos “Ensino AND
Língua Inglesa AND ‘Estratégias de Leitura’ AND Crianças” o total de artigos foi zero.
Deste modo, a fim de ampliar minha procura e conseguir resgatar o máximo de
artigos relevantes, retirei o termo entre aspas “Estratégias de Leitura” e mantive as
palavras e operadores “Ensino AND Língua Inglesa AND Crianças”, obtendo como
resultado 208 artigos acadêmicos revisados por pares. Segue o quadro explicativo das
estratégias de busca utilizadas nas bases de dados:

Base de dados Procedimentos da Termos livres/ Palavras Amostragem de


Pesquisa chaves Artigos

Seleção por: “Busca Ensino AND Língua 201


Periódicos da Avançada”. Idioma: Inglesa AND Crianças
CAPES “Qualquer idioma”.
Refinado por:
“Revisado por pares”

A opção todos os Ensino AND Língua 7


SciELO índices foi utilizada. Inglesa AND crianças

TOTAL 208

Quadro 1: Estratégias de Pesquisa utilizada nas Bases de Dados


selecionadas em 30/06/2020.
Fonte: elaboração da autora, 2020.

A quantia significativa de artigos me surpreendeu, porém, logo pude perceber


que muitos não possuíam relação com meu objeto e, até mesmo, relacionavam-se a
outras áreas do conhecimento. No portal CAPES, dos 201 artigos recuperados, apenas
22 realmente abordam o ensino da LI; já na SciELO, dos 7 artigos localizados, 5 referem-

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se ao ensino de inglês. Deste modo, os artigos que retratam temáticas fora de meu
interesse foram descartados automaticamente.
Diante da nova realidade encontrada, foram realizadas as leituras dos títulos e
resumos para aplicar os seguintes critérios de inclusão e exclusão para os 27 artigos:
• Critérios de inclusão:
1-Estar relacionado ao ensino/aprendizagem da Língua Inglesa no contexto
educacional brasileiro;
2-Estar relacionado ao ensino da Língua Inglesa para crianças.

• Critério de exclusão:
1- Trabalhos voltados para análise de material didático em Língua Inglesa.

Os resultados obtidos podem ser vistos no fluxograma:

Figura 1: Fluxograma de síntese dos artigos selecionados para análise.


Fonte: elaboração da autora, 2020.

Segue abaixo a apresentação de informações iniciais dos artigos a serem


analisados:

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Título do artigo Autores Ano Periódico Qualis

Adriana
RELATOS DE Nogueira Accioly
1 EXPERIÊNCIAS Nóbrega 2016
PESSOAIS E
SOCIOCONSTRUÇÃO Suzana de
Alfa, Revista
DE CONHECIMENTOS Carvalho
Linguística
EM Barroso A1
(São José do
SALA DE AULA DE Azevedo
Rio Preto)
LÍNGUA ESTRANGEIRA
Monica da Costa
Monteiro de
Souza

2 O uso de histórias infantis Juliana Reichert


no ensino de inglês para Assunção Tonelli 2008 Acta
crianças: Scientiarum.
analisando o gênero Language and ---
textual história infantil sob Culture
a perspectiva do (Maringá)
interacionismo sócio-
discursivo

3 FORMAÇÃO DE Doris Pires


PROFESSORES: Vargas Bolzan 2011 Revista Digital
REFLEXÕES SOBRE O de Políticas
---
ENSINO Adriana Claudia Lingüísticas
DA LÍNGUA INGLESA Martins Fighera (RDPL)
PARA CRIANÇAS

4 Formação docente para Fernanda de


as práticas educativas em Mello Cardoso 2019 Devir
língua inglesa para Educação
crianças: algumas Antonio Marcos (Universidade B2
considerações da Cruz Lima Federal de
Lavras)
Fernanda
Coelho Liberali

5 ENSINO E Marluci Paludo Revista


B1 (Ensino)
APRENDIZAGEM DA Zucchi 2011 Eventos
LÍNGUA INGLESA: Pedagógicos -
B4
metodologias vivenciadas Leandra Ines REP’s (Sinop
(Linguística
em anos iniciais do Seganfredo – Mato
e Literatura)
ensino fundamental Santos Grosso)

Signo
6 O ENSINO DE INGLÊS Ana Paula de 2010
(Universidade
PARA CRIANÇAS: UM Lima B1
de Santa Cruz
ESTUDO
do Sul)
EXPLORATÓRIO
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A1
7 BRINCAR Vera Lucia 2009 Trabalhos em (Linguística
APRENDENDO OU Lopes Cristovão Linguística e Literatura)
APRENDER Aplicada
BRINCANDO? Raquel Gamero (UNICAMP) B1
O INGLÊS NA INFÂNCIA (Educação)
A1
8 A EDUCAÇÃO INFANTIL Raquel Cristina
Trabalhos em (Linguística
DESCOBRINDO A Mendes De 2009
Linguística e Literatura)
LÍNGUA INGLESA: Carvalho
Aplicada
INTERAÇÃO
(UNICAMP) B1
PROFESSOR/ALUNO
(Educação)

9 PROFESSOR DE Leandra Ines


A1
LÍNGUA ESTRANGEIRA Seganfredo 2009
Trabalhos em (Linguística
PARA CRIANÇAS: Santos
Linguística e Literatura)
CONHECIMENTOS
Aplicada
TEÓRICO- Ana Mariza
(UNICAMP B1
METODOLÓGICOS Benedetti
(Educação)
DESEJADOS

10 Professores de língua Leandra Ines


Revista
inglesa para crianças: Seganfredo 2011
Brasileira de
interface entre formação Santos
Linguística A1
inicial e continuada,
Aplicada
experiência e fazer
(UFMG)
pedagógico

Quadro 2: Informações iniciais dos artigos científicos selecionados.


Fonte: elaboração da autora, 2020.

Ao adentrar na leitura dos artigos torna-se possível estabelecer relações entre


a fala dos autores. Estes, em geral, apontam os benefícios do ensino de Línguas para
o desenvolvimento das crianças, mais especificamente o ensino da LI, dado ao atual
cenário global mundial. Desta forma, as pesquisas apontam para a necessidade de se
criar ambientes de aprendizagem significativos às especificidades deste público, por
meio de atividades lúdicas e contextualizadas.
É, também, destaque nos artigos selecionados a fala sobre os problemas
relacionados à formação dos docentes, visto que a falta de legislação quanto ao ensino
do inglês para as crianças reflete diretamente nos currículos dos cursos de Letras e
Pedagogia, ocasionando em poucas, ou nenhuma, iniciativas nas grades curriculares
ao preparo dos futuros professores.
Com relação aos objetivos dos trabalhos, os estudos 3, 4, 9 e 10 (vide quadro
2) preocupam-se com a formação inicial e continuada de professores de LI; e é, apenas,

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nos artigos 2 e 7 (vide quadro 2) que encontramos discussões mais profundas quanto
as metodologias de ensino do inglês para as crianças.
No artigo “BRINCAR APRENDENDO OU APRENDER BRINCANDO? O
INGLÊS NA INFÂNCIA”, Cristovão e Gamero (2009) adotam a concepção de linguagem
reconhecida por Bronckart (2008), ou seja, “linguagem como atividade significante”,
desempenhando um papel indispensável no desenvolvimento humano.
As autoras defendem que o conhecimento é gerado por intermédio de
atividades coletivas sociais e interações verbais e, ao introduzirem para a discussão o
ensino por meio dos gêneros, Cristovão e Gamero (2009) sustentam a importância do
jogo e da brincadeira para o desenvolvimento dos pequenos aprendizes, nutrindo-se em
Vigotski (1993) ao discorrer acerca do papel central destes: “[...] o jogo é a forma natural
de trabalho da criança, a forma de atividade que lhe é inerente, a preparação para a
vida futura (p. 107)”.
As contribuições do artigo de Tonelli (2008) para esta pesquisa encontram-se
embasadas no pensar e refletir sobre o gênero História Infantil (HI) como instrumento
de ensino aprendizagem da Língua Inglesa. Fundamentado na perspectiva
interacionista sócio-discursiva (ISD), o artigo “O uso de histórias infantis no ensino de
inglês para crianças: analisando o gênero textual história infantil sob a perspectiva do
interacionismo sócio-discursivo” discorre em relação aos resultados provenientes de
sua dissertação de mestrado, 2005, realizado na UEL/Paraná (Universidade Estadual
de Londrina).
Tonelli (2008) sustenta que o ensino das Línguas para crianças deve respeitar
os conhecimentos prévios destas e o mundo da fantasia criado por elas. Assim, o gênero
HI, por trazer textos conhecidos e significativos para o devido público, e por vir a ser um
ato de linguagem capaz de proporcionar a interação e criação de significados; torna-se
capaz de envolver os alunos em suas necessidades emocionais, psicológicas e
cognitivas.
Ao analisar as HIs de Eric Carle The Grouchy Ladybug (1977) e The Very Busy
Spider (1984), baseando-se em estudos de Bronckart (2003), Tonelli (2008)
apresentada características quanto a infraestrutura textual, plano textual global, tipos de
discurso, discursos encaixantes de discursos principais e tipos de sequência nos livros
em questão.
Diante das questões e contribuições apresentas pelos artigos, há necessidade
de novos estudos que reflitam e englobem o ensino da Língua Inglesa para crianças
mediante ao uso de livros infantis em sala de aula e o reconhecimento do lugar de

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importância da linguagem para a emancipação de sujeitos aprendizes, capazes de se
tornarem leitores críticos e atentos do mundo que os rodea.

Os livros literários para crianças


Sabemos que a necessidade do homem em narrar suas histórias está presente
desde os primórdios de sua existência por meio das pictografias nas cavernas. A partir
destas, as técnicas de escrita foram sendo aperfeiçoadas, novos métodos e formatos
de livros apareceram até o surgimento do códex: formato de livro que substituiu o
volumen no período romano e prevalece até os dias atuais.
Os livros direcionados para as crianças começam a surgir a partir do século
XVII, devido à ascensão da classe burguesa na sociedade e a nova estruturação da
escola: instaura-se, portanto, a necessidade de produzir histórias que atendam e
agradem a esta nova categoria, o público dos pequenos leitores.
É a partir desta nova demanda de criação de livros que irrompe, também, a
longa trajetória das ilustrações em livros infantis. Linden (2011) consegue apresentar na
obra “Para ler o livro ilustrado” as detalhadas evoluções das imagens nos livros, desde
o uso da técnica xilogravura até as iniciativas de gráficas e editoras (1990) para
transformar as imagens nesse incrível mundo de possibilidades que vemos hoje.
Linden, 2011, destaca a respeito dos primórdios que:
Sendo a xilogravura, até o final do século XVIII, a única técnica que
permitia compor com versatilidade numa mesma página caracteres e
figuras, foi com ela que se realizaram os primeiros livros para criança
que continham imagens. (p.11)

É, ainda, na obra acima mencionada que Linden dedica algumas de suas


páginas para caracterizar os diversos tipos de livros: livros com ilustração, livros
ilustrados, histórias em quadrinhos (HQ), livros pop-up, livros-brinquedo, livros
interativos e imaginativos. Tomemos as definições da autora quanto aos livros com
ilustração e livros ilustrados:

Livros com ilustração – Obras que apresentam um texto acompanhado


de ilustrações. O texto é especialmente predominante e autônomo do
ponto de vista do sentido. O leitor penetra na história por meio do texto,
que sustenta a narrativa.
Livros ilustrados – Obras em que a imagem é especialmente
preponderante em relação ao texto, que aliás pode estar ausente [é
então chamado, no Brasil, de livro-imagem]. A narrativa se faz de
maneira articulada entre texto e imagens. (LINDEN, 2011, p.24)

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Assim como Linden, Faria (2016) propõe-se a analisar as várias relações
inseridas nos livros ilustrados e livros com ilustrações. A autora define os livros de
imagem como aqueles que trazem estórias narradas por meio de imagens, sem utilizar-
se de textos verbais; já os livros com ilustrações, podem ser divididos nas seguintes
categorias: “A ilustração é maior que o texto”, “Textos de extensão média e as
ilustrações” e “O texto escrito é maior que a ilustração”.
Ao escrever sobre os livros de imagens, Maria Alice salienta a engenhosa
narrativa que tais obras carregam, visto que elas possuem alguns aspectos e técnicas
particulares para cumprirem sua missão:
(...) no livro de imagem a história se constrói de imagem em imagem.
A narrativa é fragmentada, pois entre cada quadro há um espaço [em
branco, às vezes limitado por molduras, uma nova página, etc.]; por
isso o autor deve ser muito claro e preciso nos elos de encadeamento
de modo que cada quadro tenha traços bem visíveis de sua ligação
com o quadro anterior e elementos que puxam a narrativa para o
quadro seguinte, até o desenlace. (FARIA, 2016, p.58)

É, portanto, um tipo de narrativa que requer devidos treinamentos e leituras-


modelo para que possa aguçar o olhar dos pequenos leitores a fim de cativá-los pelo
interesse e gosto a este tipo de leitura.
Em relação aos livros com ilustração, estes fazem conversar duas linguagens
divergentes, o texto escrito e o texto visual, ambos com suas características específicas,
mas que conseguem agregar para a narrativa a possibilidade de no mínimo duas leituras
diferentes, ou seja, uma dupla narração.
Nesta perspectiva, as boas ilustrações são aquelas que dão origem a
informações novas durante os acontecimentos, que, ao invés de repetir o que foi narrado
pelo texto escrito, conduzem o leitor a descobrir algo novo, “(...) a história que as
imagens contam não é exatamente aquela que conta o texto. Tudo se passa como se
existissem dois narradores, um responsável pelo texto, outro pelas imagens.”
(POSLANIEC, 2002 apud FARIA, 2016, p.39).
Linden (2011) também escreve sobre a possível existência de narrativas que
se completam, classificando as imagens neste tipo de situação por “função completiva”,
uma vez que são capazes de preencher as lacunas deixadas pela outra narrativa, o
texto escrito. No entanto, há, ainda, imagens com “função de contraponto”, estipulando
a divergência entre os elementos trazidos pelo texto escrito e pelas imagens.
De acordo com as informações aqui apresentadas, meu interesse está em
destacar as características dos livros ilustrados em que as ilustrações são maiores do

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que o texto escrito, uma vez que as obras escolhidas para análise se inserem nesta
categoria.

Conhecendo o autor e as obras


Oliver Jeffers é um renomado artista multidisciplinar. Nascido em Belfast
(capital da Irlanda do Norte) e diplomado em Ilustração e Comunicação visual pela
Universidade de Ulster, Jeffers atualmente reside no Brooklyn (Nova Iorque) e possui
trabalhos exibidos em importantes instituições como: Museu do Brooklyn, em Nova
Iorque; Museu de Arte Moderna Irlandês, em Dublin; National Portrait Gallery, em
Londres; e Palais Auersperg, em Viena.
Em 2004, Oliver estreou como autor/ilustrador de livros infantis com a obra How
to Catch a Star e, no ano seguinte, seu segundo livro para crianças Lost and Found foi
ganhador dos prêmios Nestlé Smarties Book Prize (2005) e Blue Peter Book Award
(2006). Atualmente, seus livros encontram-se traduzidos em mais de quarenta e cinco
línguas e já receberam importantes prêmios como New York Times Best Illustrated
Children’s Books Award, Bologna Rigazzi Award, Irish Book Award e United Kingdom
Literary Association Award.
A escolha pelo autor e pelas obras a serem investigadas durante a pesquisa
de mestrado foi influenciada pelas percepções sobre leituras emancipadores, capazes
de dialogar com o possível repertório de leitura dos pequenos e fomentar reflexões
acerca da complexidade da vida humana e nosso lugar diante do mundo. Assim, a
apreciação por ilustrações desafiantes, com rigoroso cuidado estético, e por discursos
que ampliem diversidades e vozes foram elementos considerados.
Segue abaixo a imagem da capa das obras selecionadas e uma breve sinopse
dos enredos:

Figuras 2, 3 e 4
Fontes: JEFFERS, 2010; JEFFERS, 2015; JEFFERS e WINSTON, 2016.

The Heart and the Bottle, publicado em 2009, é o sexto livro de Oliver e conta
a história de uma garotinha bastante entusiasmada e curiosa a respeito das coisas do
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mundo. Porém, um dia, ao vivenciar um fortuito evento, ela acaba perdendo seu fascínio
pelas descobertas e decide que a melhor solução é guardar seu coração em um lugar
seguro, em uma garrafa. A narrativa se desenvolve sobre a percepção do sentimento
de solidão, a necessidade de nos relacionarmos e a tentativa de conseguir abrir-se
novamente, “retirar o coração de dentro da garrafa”.
Up and Down (2010), publicação subsequente do autor, revive os personagens
do sucesso Lost and Found colocando-os frente a uma nova aventura a ser
experienciada. O livro consegue mediante a predominância da narrativa visual significar
o valor e a força da amizade verdadeira, bem como o sentido das coisas simples na
vida.
A Child of books, uma das narrativas infantis mais recentes de Jeffers, foi
escrita e publicada em parceria com Sam Winston em 2016. A obra é um grande convite
ao mundo da leitura e imaginação, no qual as palavras presentes em grandes clássicos
das histórias infantis são ressignificadas, ganham vida e participam dos eventos,
acompanhado os personagens pelas aventuras fantasiosas. Os autores buscam através
das ilustrações realçar o poder criador das palavras e enredar leitores pelo mundo das
possibilidades e das experiências que as leituras proporcionam.

Considerações Finais
As pesquisas iniciais e leituras realizadas até o momento têm apresentado a
escassez e necessidade de novos estudos que repensem o ensino do inglês para
crianças em escolas de ensino regular brasileiras.
Práticas pedagógicas que valorizem o pensar e as vozes dos alunos fazem-se
necessárias, assim, os livros de literatura infantil podem oferecer ricas oportunidades de
vivências significativas para os aprendizes da nova língua.
O momento dialógico da leitura, o envolvimento com a história escrita e visual
são capazes de engajar as crianças para diferentes contextos e propostas educacionais,
visando não apenas formar leitores e/ou falantes de Língua Inglesa, mas sim,
desenvolver sujeitos críticos que valorizem a diversidade e reflitam nossa condição
humana.

Referências
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instrumento de iniciação da criança no mundo escrito. In: Souza, Renata Junqueira de.
Ler e Compreender: Estratégias de Leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

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ESTRATÉGIAS DE LEITURA LITERÁRIA POR MEIO DA POESIA
COM OS ALUNOS DO 7º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL

Nazaré de Jesus de Brito Almeida, Unifesspa, Capes

Eixo Temático: (Grupo Temático 11: Literatura e estratégias de leitura)


Modalidade de Apresentação: (Comunicação oral).

Introdução

Saber exatamente quando e onde nasce um leitor fiel para com o livro é difícil
dizer. Não há um lócus que ilustre o passo a passo para alguém gostar de ler. Cada ser
tem um modo único e particular para descobrir esse prazer pela leitura, a qual pode ter
sido despertada na infância quando este alguém fora envolvido pela leitura dos pais,
pelo contar de histórias tão especiais feita pelos seus avós, na adolescência em contato
com os amigos, num passeio, na biblioteca, na juventude ou até na idade mais madura,
quando a leitura muitas vezes deixada de lado pode lhe atiçar o desejo e a curiosidade.
Apesar de não precisarmos em que momento nos despertamos como vorazes
leitores, duas instâncias formadoras são preponderantes no processo da descoberta da
leitura literária de cada indivíduo: a família e a escola.

A leitura literária de textos de qualidade pode oferecer momentos de


respiro em nossa realidade. Toda ficção é uma criação sobre o
humano: o material da literatura é a vida em suas várias manifestações.
A literatura possibilita o conhecimento de vidas que não as nossas,
enriquecendo nossas perspectivas. Ler é envolver-se nas tramas de
uma história, viver as agruras e as conquistas de diferentes
personagens, rir, chorar, ficar com raiva, surpreender-se, apoiar,
discordar, dos trajetos da narrativa. A leitura literária pode ser uma
ação libertadora e singular para cada leitor. (CARVALHO; BAROUKH,
2018, p. 17-18)

A literatura faz parte do crescimento pessoal, social e intelectual do ser


humano. Assim, nas palavras de Antônio Cândido “ela desenvolve em nós a quota de
humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 1995, p.182). Por isso, abordar os
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textos literários em sala de aula são formas de nos desvendarmos para o mundo a nossa
volta, hoje tão envolto em meios tecnológicos e de muitas e rápidas informações.
É no contexto familiar que na maioria das vezes temos o primeiro contato com
a literatura, desde textos como histórias infantis, leitura de gibis, acesso aos textos que
são vistos na internet. Mas, quando não se é possível este contato ou mesmo os
primeiros incentivos neste ambiente, a escola toma para si este papel essencial na
construção do aluno como um potencial leitor.
Porém, no dia a dia de sala de aula encontramos várias obstâncias no
desenvolvimento desta leitura literária. O que se percebe no contexto escolar são alunos
apáticos, sem o mínimo interesse pela leitura – principalmente a literária –, falta de
recursos, professores desestimulados envolvidos por inúmeras dificuldades seguindo
em muitos casos somente a proposta do livro didático ou paradidático.
Estes sendo a única fonte de informações levando até aos alunos leituras
literárias superficiais ou mesmo sendo usados com o domínio do uso das regras
gramaticais sem perspectiva de buscar novas leituras e novas maneiras de contato com
os textos literários. E, isso é preocupante, pois para se seduzir a leitura no aluno o
próprio docente deve ter nele este encanto. Se não, como cativar no outro aquilo que
você mesmo não possui.

Todo professor deveria ser um voraz leitor, mas a realidade


muitas vezes deixa a desejar. O professor é um sujeito leitor que
tem sua própria leitura do texto. É também um profissional que
precisa vislumbrar, em função de diferentes parâmetros (idade
dos alunos, expectativas institucionais), que leitura do texto
poderá ser elaborada na aula. (DALVI; REZENDE; FALEIROS,
2013, p. 29).

Desse modo, buscamos neste texto apresentar formas para trabalhar o texto
literário em sala de aula, desenvolvendo o prazer da leitura com os alunos, assim como
maneiras de incentivo ao próprio professor. Este artigo intitulado Estratégias de leitura
literária por meio da poesia com os alunos do 7º ano do ensino fundamental, tem como
intuito trabalhar o letramento literário apropriando-se do poder da poesia, em especial
os poemas, e também o conto O caso do espelho, pois além de despertarmos o
interesse dos alunos para com estes tipos de textos, é também importante
demonstrarmos a outros professores como pode ser agradável e prazeroso abordar a
leitura literária no ambiente escolar quando escolhemos adequadas e eficazes
estratégias.

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Para o desenvolvimento do trabalho sobre a poesia em sala de aula
empregamos os Laboratórios de Leiturescrita propostos por Alexandre Pilati (2018):
Poema, poeta e poesia e Poesia o quê? e selecionamos duas estratégias de leitura
propostos por Girotto e Sousa (2010), as quais foram Prática guiada e Leitura
independente, por meio de 06 oficinas. O corpus utilizado foi o poema “Sonetinho de
Narciso” do escritor abaetetubense Garibaldi Nicola Parente traçando um paralelo com
a temática do conto “O caso do espelho” do escritor Ricardo Azevedo.
A metodologia a qual empregamos na atividade foi a pesquisa-ação de
abordagem qualitativa, por meio de pesquisas de campo e bibliográfica, já que este
trabalho surgiu a partir de uma dissertação de mestrado. Desse modo, para Tripp (2005,
p. 445) “a pesquisa ação educacional é principalmente uma estratégia para o
desenvolvimento de professores e pesquisadores de modo que eles possam utilizar
suas pesquisas para aprimorar seu ensino e, em decorrência, o aprendizado de seus
alunos”.

Letramento literário

O letramento literário é uma potente ferramenta de inserção da leitura literária


no ambiente escolar, este deve ser entendido como uma prática social e dominante na
escola e tem como finalidade desenvolver a leitura e a escrita dos sujeitos.
Deste modo, os estudos destes construtos literários devem considerar não
somente questões técnicas ou estruturais, mas principalmente, os usos nos diferentes
contextos históricos e culturais. A esse respeito, Street (2014, p. 18) aborda que, “as
práticas incorporam não só “eventos de letramento”, como ocasiões empíricas nos quais
são essenciais, mas também modelos populares desses eventos e as preocupações
ideológicas que o sustentam”, ou seja, levar o aluno a refletir por meio dos textos
literários assuntos que são presenciados em seu cotidiano.

Na escola, a leitura literária tem a função de nos ajudar a ler melhor,


não apenas porque possibilita a criação do hábito da leitura ou porque
seja prazerosa, mas sim, e sobretudo, porque nos fornece, como
nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para
conhecer e articular com proficiência o mundo da linguagem
(COSSON, 2009, p. 30).

O letramento literário faz parte do cotidiano escolar, desenvolver este processo


como forma de inserção da leitura literária na escola é mais do que essencial, é
necessário. A leitura é uma competência individual e social pois, é fundamental no

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contexto social que vivemos por isso, é muito importante o incentivo aos alunos, pelo
seu conhecimento e apropriação.

O processo de letramento que se faz via textos literários compreende


não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas
também, e sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio.
Daí sua importância na escola, ou melhor, sua importância em
qualquer processo de letramento, seja aquele oferecido pela escola,
seja aquele que se encontra difuso na sociedade (COSSON, 2009,
p.12).

E com o domínio destes textos discutidos, principalmente, no ambiente escolar,


os educandos são bem mais preparados e saem da educação básica bem mais sagazes
para enfrentar as adversidades da sociedade na qual estão inseridos na continuação
dos estudos, sobretudo no mercado de trabalho.
O letramento literário remete seu uso principalmente a sala de aula para
desenvolvermos o texto literário, porém no nosso meio social existem muitos outros
letramentos constituídos por Roxane Roxo como “Multiletramentos” este ambiente está
permeado por eles, principalmente hoje com o advento das tecnologias digitais e
consequentemente sua expansão acelerada no ano de 2020, com isso, estes tipos de
textos dominaram as esferas culturais em que estão inseridos. Para Roxo (2012, p. 22-
23) diz que:

Em qualquer dos sentidos da palavra “multiletramentos” - no


sentido da diversidade cultural de produção e circulação dos
textos ou no sentido da diversidade de linguagens que o
constituem-, os estudos são unânimes em apontar algumas
características importantes: a) eles são interativos, mais que
isso, colaborativos; b) eles fraturam e transgridem as relações
de poder estabelecidas, em especial as relações de propriedade
(das máquinas, das ferramentas, das ideias, dos textos [verbais
ou não]; eles são híbridos, fronteiriços, mestiços (de linguagens,
modos, mídias e culturas). Assim sendo, o melhor lugar para
eles existirem é “nas nuvens” e a melhor maneira de se
apresentarem é na estrutura ou formato de redes (hipertextos,
hipermídias).

São estruturas que se materializam no cotidiano em memes, plataformas


digitais, aplicativos de conversas, como por exemplo, o Watzap, podcats, e-mails,
vídeos, enfim são mecanismos, que se fazem tão presentes na nosso dia a dia de forma
tão natural que os utilizamos como sendo parte integrante da nossa vida, como se já
existissem há muito tempo no nosso desenvolvimento social.

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Poesia

A poesia é uma expressão literária que encontramos nos mais diversos lugares
no nascer do sol, numa bela paisagem, numa obra de arte, numa música, e mais
comumente nos textos literários, em especial, os poemas. É muito comum abordarmos
este gênero literário no ensino fundamental II. Muitas vezes com predominância das
regras gramaticais. Porém, segundo Ernani Terra (2018), este gênero pode nos propor
muito mais consistência do que meramente tais regras gramaticais. Desse modo, ele
afirma que:

A poesia é o gênero textual em que a preocupação com o plano da


expressão é mais acentuada. Quem escreve poesia não está
preocupado apenas com que diz, mas também como dizer o que diz,
por isso o estudo desse gênero possibilita conhecer os recursos que
podem tornar qualquer texto mais expressivo. Claro que a poesia não
se resume apenas ao cuidado com a expressão, pois sua leitura
também nos insere no mundo da cultura letrada. Dirigindo-se ao
sensível de cada um de nós, é uma forma de manifestar os grandes
temas que sempre preocuparam o ser humano, como o amor, a morte,
o medo, etc. (TERRA, 2018, p. 83).

Abordar o gênero textual poesia em sala de aula é levar o educando a busca


da sensibilidade, da estética, do belo, do prazer em descobrir as constâncias vividas por
aquele eu lírico.

Embora as palavras poesia e poema sejam comumente empregadas


como sinônimos perfeitos, há uma diferença de significado entre eles.
Poesia nos remete ao ato de criar, de fazer alguma coisa, poema se
refere ao produto acabado, ao resultado da criação. A poesia
materializa-se no poema. As pessoas leem poemas para encontrar
neles a poesia. Muitas vezes, leem poemas, mas não percebem a
poesia neles contida (TERRA, 2018, p. 83).

Desse modo, constatamos que a poesia é muito mais abrangente pois ela
habita dentro dos poemas, porém não somente por obra deles, é considerada práxis
vital porque, como as outras artes, é capaz de refletir e de produzir a humanidade dos
seres humanos. Os poemas são textos poéticos que têm a função de despertar-nos
sensibilidade, anseios, dores, compaixões, alegrias, tristezas e outras tantas emoções.
Para Sorrenti, “é uma composição poética em verso [...] O poema bem feito é um
condutor de poesia. Por meio dele, nós encontramos poesia frequentemente” (2013, p.
59). Assim, compreendemos que os poemas estão contidos dentro da poesia, mas não
são a única forma de poesia.

Prática em sala de aula


1918
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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
A prática do letramento literário foi desenvolvida na Escola de Ensino
Fundamental José Manuel de Araújo, no Município de Tailândia (Pará), a partir dos
estudos teóricos e práticos de uma dissertação de mestrado promovido pelo programa
Profletras no Campus de Marabá.
A prática foi desenvolvida por meio de duas estratégias de leitura: 1) Prática
guiada, a qual consiste em: o professor fazer um reconhecimento da turma e dividir os
alunos em pequenos grupos de no máximo seis componentes. Estes grupos são
temporários e podem mudar conforme o desenvolvimento do trabalho e; 2) a Leitura
independente, a qual consiste no momento em que os alunos tentam seguir o trabalho
sozinhos, ou seja, leem individual e silenciosamente fazendo o reconhecimento dos
textos, porém, sempre com a atenção do professor. Desse modo, dividimos esta prática
em seis oficinas da seguinte maneira:

Oficina 01 - Apresentação da atividade literária.


(Tempo estimado 02 aulas – 90 minutos)

Na apresentação da atividade literária foi exposto o tema tratando sobre a


importância de se trabalhar textos literários no ensino fundamental II, destacando a
experiência da pesquisadora como leitora e propondo um questionário com o intuito de
apreender sobre as experiências leitoras dos alunos. Em seguida, foi realizado uma
roda de conversa para discutir as conclusões a que os alunos junto com o professor
chegaram.

Oficina 02: Poema, poeta e poesia.


Tempo estimado: 2 aulas (90 minutos)

Essa oficina teve o papel de aquecimento, servindo de base para as demais


atividades desenvolvidas nas oficinas. Com o objetivo de apresentar aos alunos as
relações de poema, poeta e poesia buscou-se saber que conceitos são apreendidos por
eles em relação a esta tríade. No início da aula foi passado um vídeo extraído do
youtube que tratava sobre as definições do que é poema, poeta e poesia da professora
Fátima Campilho.
Em seguida, foram discutidas as definições e conceitos em relação aos
mesmos.

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Oficina 03: Poesia o quê?
Tempo estimado: 4 aulas (180 minutos)

Essa oficina buscou discutir algumas questões relacionadas à natureza e à


função da poesia e foi abordado também a estratégia de leitura chamada prática guiada
com o objetivo de conhecer e discutir acerca dos poemas do poeta Garibaldi Nicola
Parente e sobre o conto O caso do espelho do escritor Ricardo Azevedo.
No primeiro momento, em duas aulas a turma foi dividida em quatro grupos.
Para cada grupo a professora apresentou textos previamente selecionados sobre uma
fase de produção diferente do notável escritor Garibaldi, além do conto popular
organizado por Ricardo Azevedo os quais foram lidos silenciosamente. Assim, a
professora solicitou aos participantes de cada grupo que conversassem entre si sobre
os textos, para isso, foi entregue um roteiro de perguntas que conduziu a conversa.
No segundo momento, em duas aulas, a professora e os alunos praticaram a
estratégia juntos em um contexto de leitura partilhada, refletindo por meio dos poemas
e construindo significados através da discussão. E, para finalizar, orientamos a
discussão sobre as conclusões feitas pelos alunos sobre os textos abordados.

Oficina 04 – Uma reflexão sobre o “estilo pessoal de autor”.


(02 aulas – 90 minutos)

Esta oficina teve como objetivo trabalhar aspectos sobre a vida dos autores dos
poemas em estudo – Garibaldi Parente e Ricardo Azevedo –, e proporcionar uma
reflexão sobre certas constâncias temáticas e formais que podem ajudar a caracterizar
o estilo pessoal destes autores em escrever seus textos.
A partir da oficina quatro os alunos foram guiados para outra estratégia de
leitura denominada como:
Leitura independente 01: Nesta estratégia, os alunos leram novamente o
poema e o conto individual e silenciosamente, com o intuito de ampliar seu repertório
de análises sobre os mesmos.
Leitura independente 02: Os alunos já conhecedores das temáticas
propostas, foram provocados a produzir textos orais e escritos a partir dos textos já
mencionados.
Novamente a turma foi dividida em dois grupos. O grupo 01 ficou responsável
pelo Sonetinho de Narciso e o grupo 02 com o conto O caso do espelho, cada grupo

1920
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desenvolveria um gênero a partir deste e no dia da apresentação fizeram uma relação
entre os dois, abordando a temática em comum que fala sobre a aparência, aquilo que
vemos refletido na nossa imagem como mais importante do que a nossa essência e o
que se está além da própria aparência.
Leitura independente 03: A partir deste momento, os alunos foram
acompanhados na produção destes gêneros por meio da leitura internalizada por eles
sobre os textos fazendo correlação entre os temas encontrados.

Oficina 05 – releituras dos textos em estudo


(03 aulas – 125 minutos)

Esta oficina foi de desenvolvimento dos gêneros a partir da interpretação dos


alunos sobre os textos. O poema Sonetinho de Narciso é uma interpretação sobre o
mito de Narciso, que segundo o texto trata sobre a vida de um jovem belo, egoísta e
soberbo, Narciso. Reza a lenda que quando o rapaz nasceu, o oráculo Tirésias
profetizou que ele teria uma beleza estonteante; porém, não poderia contemplar a sua
própria imagem, pois isso o amaldiçoaria. Além de muito belo, Narciso era arrogante e
orgulhoso, esnobava a todas as mulheres que se apaixonavam por ele. Até que a bela
Eco, também, apaixonada e não tendo seu amor correspondido, lança lhe um feitiço
fazendo com que ele definhe e morra à beira de uma fonte, contemplando a sua própria
imagem. A partir deste mito, surgiu na psicologia o termo narcisismo, que é o transtorno
de personalidade sobre a valorização sobre si mesmo.
O conto O caso do espelho trata sobre um homem que ao ir trabalhar se depara
com um objeto numa venda que ele achava ser a foto de seu pai, mas na realidade era
um espelho, compra o tal objeto e leva para a casa com todo o cuidado num papel de
embrulho. Chegando lá o guarda com todo esmero. Porém, a sua esposa fica
observando e quando o marido sai no outro dia para trabalhar, não conteve sua
curiosidade e foi ver o que o marido havia trazido, quando se depara com o reflexo
pensa ser o retrato de uma outra mulher, a quem ela imaginaria seu marido estava a
traindo.
Ela fica desconsolada, travando uma enorme briga com o marido em sua
chegada, a discussão foi tão forte que a mãe da mulher logo escutou e foi verificar o
que estava acontecendo, depois da mulher explicar do que se tratava e o marido sempre
afirmando que tinha trazido o retrato do pai, a senhora foi conferir do que se tratava. E

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quando se deparou com uma mulher muito diferente da qual a filha havia mencionado,
dita características do que vê, deixando o texto neste momento muito divertido.
A partir dessas características observadas pelos alunos no texto,
principalmente a aparência em predominância a essência, que foram abordadas em
discussões e, consequentemente, no gênero textual produzido por eles.

Oficina 06 – com as mãos na massa- produção do gêneros textuais a


partir das temáticas abordadas anteriormente
(04 aulas -180 minutos)

Esta última oficina foi reservada para a apresentação dos trabalhos produzidos
pelos alunos acerca dos textos literários estudados. Desse modo, obtivemos o seguinte
resultado:
O grupo 01 engendrou uma apresentação musicando o poema Sonetinho de
Narciso, com o auxílio do professor de música da escola, construíram um Treep293, que
consistia em reforçar algumas expressões muito comuns no ambiente escolar como
Bullyng, aparência, preconceito. Deixando evidente que as características físicas de
cada um não é fator preponderante à exclusão, que somos diferentes na cor, na
essência, mas todos temos qualidades, direitos e deveres equitativos. Desse modo, é
necessário considerar que menos egoísmo e saber compartilhar os espaços escolares
é essencial para a plena convivência de todos os sujeitos.
O grupo 02 engendrou um vídeo sobre o conto O caso do espelho que este
consistiu em uma interpretação a partir da visão que eles construíram em relação aos
temas que o conto evocava, principalmente, a aparência versus essência. E, assim, as
oficinas trabalhadas com os alunos foram finalizadas.

Considerações finais

Em um mundo globalizado, como o que vivemos, é essencial que a escola


proporcione aos alunos o domínio das diferentes linguagens e a compreensão do
contexto em que ocorrem as práticas sociais que percorrem o mundo em que vivem,
necessárias no seu cotidiano, na interação social e em seu futuro profissional. Estamos

293
É um subgênero do rap que se originou na década de 2000, é um estilo instrumental, em que combinam
ritmos de diferentes músicas, sons, onomatopeias.
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tomados pelos multiletramentos e, por isso, é vital compreendê-los e saber como utilizá-
294
los no nosso dia a dia, pois são interativos, colaborativos, fronteiriços.
Dentre estes, abordamos nas oficinas o letramento literário, o qual está mais
voltado para o desenvolvimento da literatura em sala de aula, tornando-se uma
estratégia possível de desenvolvimento acerca dos textos literários envolvendo os
alunos com essa atmosfera para a produção da leitura, escrita, ou mesmos gêneros
como, por exemplo, um vídeo, é essencial. Desse modo, é papel da escola – em
especial dos professores – buscar tais ferramentas para proporcionar efetivamente
ensino-aprendizagem aos nossos educandos.
Quando desenvolvemos nossas aulas deste modo, percebemos que estas
ficam mais divertidas, dinâmicas e lúdicas. Assim, os alunos conseguem envolver-se e
produzir levando em consideração o que aprenderam no decorrer das oficinas. Desse
modo, os resultados foram bastantes satisfatórios e eles puderam compreender que as
aulas de Língua Portuguesa podem ser muito atrativas.

Referências

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas cidades, 1995.

CARVALHO, Ana Carolina; BAROUKH, Josca Ailine. Ler antes de saber ler: oito mitos
escolares sobre a leitura literária. São Paulo: Panda Books, 2018.

COSSON, Rildo Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.

DALVI, Maria Amélia; REZENDE, Neide Luzia de; FALEIROS, Rita Jover (org.). Leitura
de literatura na escola. São Paulo: Parábola, 2013.

GIROTTO, Cyntia Graziella Guizelim Simões; SOUZA, Renata Junqueira. Estratégias


de leitura: para ensinar alunos a compreender o que leem. In: SOUZA, Renata
Junqueira et al. Ler e Compreender: Estratégias de leitura. Campinas (SP): Mercado
de Letras, 2010.

ROXO, Roxane Helena R. Multiletramentos na escola/ Roxane Rojo, Eduardo Moura


[orgs.] São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

SORRENTI, Neusa. A poesia vai à escola: reflexões, comentários e dicas de


atividades. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

294
O artigo é resultado parcial de uma pesquisa de mestrado, o qual tem o mesmo “Estratégias de leitura
literária por meio da poesia com os alunos do 7º ano do ensino fundamental, sob orientação da Professora
Doutora Liliane Batista Barros, na UNIFEESPA- Universidade Federal Sul e Sudeste do Pará- Profletras.
Campus Marabá.
1923
Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil “Maria Betty Coelho Silva"
Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
STREET, Brian V. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no
desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de. Marcos Bagno. São
Paulo: Parábola, 2014.

TERRA, Ernani Da leitura literária à produção de textos. – São Paulo: Contexto, 2018.

TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e


Pesquisa.
São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, set./dez. 2005. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ep/v31n3/a09v31n3.pdf. Acesso em: 01/08/2020.

1924
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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
ESTRATÉGIAS DE LEITURA PARA A FORMAÇÃO DO LEITOR:
UMA EXPERIÊNCIA NO 2º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL 295

Daniele Aparecida Russo, Universidade Estadual Paulista – UNESP Marília,


CAPES

Renata de Souza França Bastos de Almeida, Universidade Estadual Paulista –


UNESP Marília
Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto – Universidade Estadual Paulista –
UNESP Marília

Eixo Temático: 11- Literatura e Estratégias de Leitura

Considerações iniciais

Iniciamos este texto com informações teóricas baseada em Girotto e Souza


(2010) que apresentam um conjunto de estratégias de leitura a fim de formar leitores
proficientes que conscientemente utilizam as estratégias de leitura quando leem.
Posteriormente, apresentamos observações do entorno do espaço de uma sala de aula
da turma do 2º ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal de tempo integral
do oeste paulista, em que no horário contrário as aulas regulares, ocorrem oficinas,
dentre elas, a de Estratégias de Leitura. Na aula observada, o tema da oficina foi
“Inferência – Prática Guiada” e a professora levou o livro “Chapeuzinhos Coloridos” dos
autores José Roberto Torero e Marcus Aurellius Pimenta e da ilustradora Marília Pirillo.
Juntamente com a descrição de momentos da oficina observada, fizemos
considerações e análises teóricas acerca do ensino e da aprendizagem do ato de ler a
partir das estratégias de compreensão leitora.

295
Resultado parcial de pesquisa em desenvolvimento referente a tese de Doutorado em
Educação, intitulada “Crianças, professoras e vivências leitoras na constituição do leitor”, de
Daniele Aparecida Russo, sob orientação da Livre-docente Cyntia Graziella Guizelim Simões
Girotto.

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Finalizamos este texto com algumas considerações finais que emergiram
durante a observação, análise e escrita.

Estratégias de leitura

O leitor é em parte escritor, já que quando lê é feito conexões com a vida,


questiona-se, faz-se inferências e, a partir de então, atribui sentidos e significado para
o texto. Leitores proficientes utilizam seus pensamentos conversando consigo mesmos
e com o autor do texto e criam sentido para o que leem. É a partir dos próprios
pensamentos, conhecimentos, experiências e vivências, portanto, sua massa
aperceptiva (Jakubinskij, 2015) ou seu conhecimento prévio (Smith,1989) é que
constroem significados e sentidos a palavra escrita por meio da dialogia (Volochinov,
2017; Bakhtin, 2010).
Para Harvey e Goudivs (apud GIROTTO; SOUZA, 2010) pode-se compreender
leitura como atribuição de sentido, ensino e aprendizagem do ato de ler como processo
de objetivação e apropriação. A constituição do leitor é entendida aqui, portanto,
objetivamente como um movimento dialógico e dialético.
Neste contexto, para ensinar e aprender o ato de ler, as estratégias de leitura
é um caminho importante e seguro a ser percorrido e ensinado aos alunos. O conjunto
de estratégias de leitura – conexões, inferências, visualizações, questionamentos,
síntese e sumarização – é considerado para formar bons leitores na medida em que
ensinam àqueles que conscientemente utilizam as estratégias de leitura para ler.
Sob a perspectiva vygotskiniana, de que a aprendizagem é resultado da
interação de sujeitos, as autoras Girotto e Souza (2010) defendem que

[...] o professor precisa planejar e definir, intencionalmente, atividades


cada vez mais complexas para que o leitor possa adquirir
autoconfiança e, nesse processo seja capaz de redefinir para si
próprios as operações e ações contidas na atividade de ler,
constituindo-se aí a aprendizagem de estratégias de leitura. Em outras
palavras, para que possa passar da “dependência” à independência,
da ação, com o auxílio do parceiro mais experiente, à feitura por si só,
da necessidade da mediação do outro à autonomia (GIROTTO;
SOUZA, p.53, 2010).

Neste caso, é pertinente questionar: será que o professor é o leitor autônomo


capaz de criar as bases para práticas de leitura cada vez mais sofisticadas e
complexas? Para Girotto e Souza (2010) a ideia é ensinar as crianças a pensarem e a
aprenderem rotinas que incorporem as estratégias de compreensão, ou seja, ensinar

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estratégias na sala de aula, guiando os alunos na prática, proporcionando blocos de
tempo para lerem independentemente e praticarem a leitura utilizando as estratégias
para compreensão nas leituras. O professor precisa, portanto, persistir em escolhas
teórico-metodológicas, compreendendo a criança como um ser pensante e capaz.
Trata-se de um ensino responsivo ativo, intencional, planejado considerando a
capacidade de desenvolvimento das crianças. O planejamento de suas ações
pedagógicas precisa ir ao encontro dos interesses e necessidades das crianças,
conferindo vez e voz a elas e reorientando as ações pedagógicas a partir disso. Nesta
perspectiva, as crianças encontrarão sentido em aprender a ler porque seus projetos
serão considerados.
Crianças pequenas perguntam muito e “perguntas são o coração do ensino e
aprendizado” (HARVEY; GOUDVIS, 2008, p.45 apud GIROTTO; SOUZA, 2010, p.56).
Quando os leitores têm perguntas, têm mais vontade de permanecer no texto. Bons
leitores, fazem perguntas antes, durante e após a leitura. A dialogia é inerente a leitura.
Porém, o foco da escola está, muitas vezes, nas respostas e não nas perguntas,
desencorajando as crianças nesse exercício reflexivo.
O ensino das estratégias utilizadas para ler incentiva as crianças a pensarem
mais cuidadosamente sobre a leitura. Leitores ativos usam o texto tanto para estimular
seu próprio pensar, quanto para buscar uma compreensão do raciocínio logico do
escritor. Se os alunos sabem o motivo da leitura, pedem aos professores momentos em
sala de aula para ler.
Para que os alunos entendam o que são e como usar as estratégias de leitura,
os professores, uma vez conscientes acerca do ensino das estratégias de leitura, deve
inicialmente ensiná-los a pensar sobre as leituras e deixar marcas, pistas, indícios de
suas ideias no texto lido. E na sequência, levá-los a perceber como utilizam as
estratégias para e na compreensão.
A estrutura das oficinas de leituras adaptada à realidade brasileira, conforme
apresenta Girotto e Souza (2010) prevê aula introdutória, prática guiada, leitura
independente e avaliação. No caso da observação prática apresentada neste texto,
trata-se da prática guiada.
A modelação deve ser curta e suave e por isso a oficina de leitura deve durar
cerca de 50 a 60 minutos. A maior parte do tempo instrucional deve ser destinada às
práticas guiadas porque é nelas que melhor se pode “auxiliar as crianças enquanto elas
caminham para a independência” (HARVEY; GOUDVIS, 2008, p.49 apud GIROTTO;
SOUZA).

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É importante que o docente selecione obras diversas para que os alunos
tenham oportunidade não só de ampliar seu repertorio, mas também, de mobilizar e
apropriar-se das estratégias de leitura. Entre o repertorio de estratégias de
compreensão – fazer conexões, inferências, visualizações, questionamentos,
sumarizações e síntese – há, segundo Girotto e Souza (2010), uma estratégia essencial
em que ficam evidentes todas as demais, a de ativar o conhecimento prévio. O
conhecimento prévio296 que as crianças trazem para a leitura sustenta todos os aspectos
da aprendizagem e entendimento. Se os leitores não têm nada para articularem à nova
informação, é bem difícil que construam significados. Se não houver diálogo, não há
atribuição de sentidos.
O conjunto de estratégias de leitura é composto por: conexões, inferência,
visualização, questionamento, síntese e sumarização. Destaco que as autoras tiveram
por base o ensino das estratégias à luz da teoria metacognitiva norte-americana, mais
precisamente abordada por HARVEY; GOUDVIS, 2008, já citadas aqui. Trago
explicações abaixo sobre a “inferência”, pois a oficina observada e trazida para este
texto teve por foco esta estratégia de compreensão leitora.

Inferência
Uma importante estratégia de leitura é a inferência, pois se os leitores não
inferem, não compreendem o texto que leem. Inferir significa utilizar o que já sabe, seus
conhecimentos prévios e estabelecer relações com as dicas do texto para chegar a
alguma conclusão, seja ela adivinhar um tema, deduzir um resultado, chegar a uma
ideia, etc.
Ao inferir a partir dos seus conhecimentos prévios, o leitor cria uma interlocução
com o texto com a finalidade de estabelecer expectativas do que vai acontecer ou quais
informações o texto irá conter para dialogar com ele.
Os professores podem ensinar os alunos como agirem durante a leitura,
mostrando as dicas que cada texto contém e ensinando como combiná-las com seus
conhecimentos prévios com a intenção de que os alunos infiram.
Segundo Owocki (2003 apud Girotto; Souza, 2010, p.77) as inferências dos
leitores efetivam-se ao fazerem uma pergunta ou quererem saber sobre algum aspecto
do texto, ao levarem em consideração as evidências textuais, ao pensarem sobre o que

Como também denomina Smith (1989) ou como abordado também neste texto: “massa
296

aperceptiva” (Jakubinskij, 2015).


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sabem acerca do texto, ao usarem as dicas do texto e seus conhecimentos prévios para
responderem questões.
As autoras apresentam diversas atividades para as oficinas de leitura na
organização das práticas com o objetivo de levar os alunos a inferir, entre elas: inferir o
significado de palavras desconhecidas, com o propósito de usar as dicas do contexto
para entender o vocabulário; inferir pela capa e ilustrações assim como pelo texto, com
o intuito de usar todos os aspectos de um livro para descobrir significados; reconhecer
o enredo e inferir os temas da narrativa, a fim de diferenciá-los.
Dessa forma, para que o aluno aprenda a ler literatura, é preciso ensiná-lo a ler
literatura, a compreender sua configuração, a ver a beleza estética no texto, a apreciar
articulação da estrutura da narrativa e de seus componentes, mesmo que todas essas
ações não tragam apenas sensação de conforto e de prazer, já que temos textos de
literatura que causam sensações de medo, de revolta e de tristezas. Para ler literatura
é preciso saber apreciar o valor estético da obra e esse percurso também é necessário
ser aprendido. (Arena, 2015, p.145). Para isso, insistimos: não existe gostar de ler se
não houver perguntas a serem feitas e respostas a serem encontradas.

Observação e análise da oficina de “Estratégias de Leitura” (maio/2019)

A oficina de Estratégias de Leitura observada foi sobre “Inferência – Prática


Guiada” e o livro escolhido pela professora foi “Chapeuzinhos Coloridos”, dos autores
José Roberto Torero, Marcus Aurellius Pimenta e a ilustradora Marília Pirillo. O livro
estava digitalizado, projetado em uma tela na frente da lousa e um aluno estava
posicionado no teclado do computador para passar as páginas quando solicitado pela
professora que fez a leitura do livro em voz alta para as crianças, estas encontravam-
se sentadas individualmente em carteiras.
Girotto e Souza (2010) entendem o planejamento adequado das atividades,
como a boa escolha do livro, a previsão do tempo de cada ação, a decisão pelos
materiais gráficos que serão utilizados e a disposição da sala, escolhas assertivas na
adequação do entorno, voltado à formação do leitor estratégico.
Os alunos estavam sentados em suas carteiras individualmente. Como se trata
de uma escola de tempo integral é muito cansativo para as crianças ficarem sentadas o
dia todo em suas carteiras, então, pensamos que ao menos nas oficinas, como a Oficina
de Leitura, elas pudessem sentar no chão em um grande círculo, por exemplo, e a
professora fizesse a leitura também no chão até para poderem se aproximar mais do

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livro e ver mais de perto as ilustrações, quando o livro não fosse projetado. Outra opção
para variar o ambiente da oficina, seria a realização da leitura em algum outro espaço
da escola, como debaixo das árvores. Neste caso, a professora poderia desapegar-se
da didatização das estratégias de leitura e ensiná-las sem a obrigação do
preenchimento individual das fichas pelos alunos por exemplo.
Sobre o livro escolhido, trata-se de uma obra de qualidade estética literária,
bem como gráfico editorial. O projetor facilita a melhor visualização das páginas pelas
crianças, porém o livro em sua materialidade poderia ter sido disponibilizado às crianças
antes, durante ou após a leitura do mesmo, mas não constava no acervo da escola e a
professora não o tinha em mãos, visto o alto custo das obras literárias no Brasil. Mas,
os alunos estavam diante de páginas – ainda que projetadas – de uma boa escolha
literária levada pela professora.
A professora entregou para os alunos uma ficha sobre Inferência para
preencherem a respeito do livro, o qual ela realizaria a leitura em voz alta. Inicialmente,
antes da leitura, ela pediu aos alunos o preenchimento do nome e da data. E relembrou
a atividade da semana anterior sobre a modelação da Inferência, resultante em um
cartaz semelhante a ficha entregue nesta oficina, a professora continuou sua fala:
“Dessa vez a gente vai fazer o mesmo, a gente vai preencher o quadro de novo, mas
vocês vão fazer junto comigo. Como da outra vez eu fiz sozinha e vocês só ouviram,
dessa vez vocês poderão falar junto com a professora as inferências. Então eu vou
lembrar para vocês o que são as inferências. Eu lembro que eu dei um exemplo para
vocês, né? Vamos relembrar: se tiver um corredor molhado e tiver um menino que vai
passar correndo...” – Um aluno a interrompeu e falou: “Ele cai”. E a professora
respondeu: “Mas eu falei que ele caiu? Falei que ele passou correndo, mas eu não disse
que ele caiu”. Outro aluno falou: “Ele não caiu”. E a professora continua: “Pode ser que
ele tenha caído ou pode ser que ele não tenha. Daí a gente teria que ler se tivesse
escrito em algum lugar, e descobriria se ele tinha caído ou não, daí iria ficar para gente
imaginar se ele teria caído ou não, mas é provável que sim, não é? Porque estava
molhado o chão e ele passou correndo, né? ”.
A professora continuou a explicar aos alunos o preenchimento da ficha
entregue e apresentou a eles o livro, perguntou quem o conhecia, a maioria disse que
não conhecia. E a professora continuou: “Esse livro chama assim “Chapeuzinhos...” e
uma aluna interrompeu: “Vermelho! ”. E a professora completou: “Coloridos. Então a
história que a gente conhece é a Chapeuzinho? Vermelho! Então vamos relembrar a

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história da Chapeuzinho Vermelho. Entre perguntas e respostas, foram relembrando a
história de Chapeuzinho Vermelho. Várias crianças falaram e participaram da conversa.
Exploraram bastante a capa do livro mediante os questionamentos feitos pela
professora para ativação dos conhecimentos prévios dos alunos. Em meio a esse
momento, a professora diz: “E aí a gente consegue observar aqui que as Chapeuzinhos
que estão na capa elas não são parecidas” e um aluno interrompe e faz inferências da
quarta capa: “O Lobo Mau está com cara de bravo”. Mas a professora mesmo
concordando, volta e permanece na capa, não explora a quarta capa do livro mesmo
diante da curiosidade e da inferência feita pelo aluno. Infiro o desconhecimento da
professora da importância e da relevância de informações contidas na quarta capa de
um livro.
Diante do curto tempo e das várias Chapeuzinhos coloridos, a professora
anunciou a escolha da história da Chapeuzinho Azul, registrando o título na lousa e
orientando os alunos a fazerem o mesmo na folha, isto é, copiar da lousa o título e
demais informações: “No L, procurem todo mundo o L para pôr o nome do livro e escreve
na frente Chapeuzinhos Coloridos”. Um aluno pergunta onde e ela fala depois dos dois
pontinhos. Um outro aluno fala: “É assim, Pro? ” E ela fala: “Não, filho, é para escrever
isso daqui ó” e apontou para o título do livro escrito na lousa. Ela continuou: “Embaixo
a gente vai escrever o nome do autor José Torero. ” E escreve na lousa também para
que os alunos copiem na ficha. Ao passar pelas carteiras, apontou: “Vamos! Vocês têm
que escrever, estão muito preguiçosos! ” Para outros alunos o comentário era: “Muito
bem! Está fazendo certinho”. Para outro aluno o comentário foi: “Olha como você está
fazendo! Não colocou nem o nome ainda. O que você escreveu até agora? E por que
está com esse monte de lápis aqui em cima se você não está usando eles? Guarda! ”
Observamos que os alunos não sabem escrever se não copiarem da lousa e
para que a cópia se realize, o registro da lousa precisa estar semelhante ao da ficha ou
caderno em que vão “escrever”. A escrita é ensinada como atividade de copiar, portanto,
os alunos têm a cópia como referência do ato de escrever. Não a compreendem na sua
função social e como atividade cultural que permite a comunicação e a expressão e que
por isso não pode ser tomada como objeto de ensino isolado das relações humanas e
transformado em um fazer mecânico. Embora não seja o foco de análise deste texto, é
relevante estes apontamentos a medida que abrange o ensino e a aprendizagem de
escrever, ato intimamente relacionado dialética e dialogicamente com o ensino e a
aprendizagem do ato de ler.

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Diante disso, na lousa, a professora colou um cartaz semelhante a ficha
recebida pelos alunos (figura 1) com as colunas de “Inferência, Pista do Texto e
Inferência foi confirmada? ” E anunciou: “Vou fazer aqui igualzinho a de vocês, tá?
Então, eu vou lendo a historinha e aí vocês vão me ajudando a fazer as inferências,
combinado? ” O aluno João interrompe e pergunta: “Mas é para copiar? ” E a professora
responde: “É para copiar lá na folha que a professora já falou várias vezes, aqui no livro
e autor ”.
Concluimos que os alunos não sabem porque não faz sentido para eles a
atividade de cópia proposta ou porque não compreenderam o objetivo da mesma. A
professora prosseguiu: “Então vamos lá, para começar já que vamos falar da
Chapeuzinho Azul, a página está como? ” E as crianças responderam: “Azul! ” A
professora prosseguiu: “O que é azul? ” Um aluno responde: “Blue” e a professora
completou: “o céu, que mais? ” E as crianças responderam: “árvore”, “água”, “flor”,
“passarinho”... A professora falou: “As árvores são azuis? Tem flor azul, a água é azul,
tem peixe que é azul... Passarinho azul? Tem arara azul, né? Então, vamos lá! Vamos
começar a história da Chapeuzinho Azul. ”
Neste momento, ficamos surpresas porque os conhecimentos prévios das
crianças sobre as coisas azuis estavam muito anêmicos. Diante da espontaneidade
delas, eu esperava muitas respostas. O repertório da professora se mostrou equivocado
porque temos pássaros azuis e a água é incolor, embora a enxergamos, muitas vezes,
na cor azul, são fatores como a quantidade de luz solar que incide sobre a água, sua
profundidade, as partículas que estiverem em suspensão nela que são responsáveis
pelas cores que vemos e que dependem também dos comprimentos de onda da luz que
a água reflete e que são visíveis para os nossos olhos, mas é na Física que podemos
nos aprofundar para buscar as melhores respostas.
A professora foi realizando a leitura em voz alta e em certos momentos
perguntava para as crianças, por exemplo, “era uma menina de olhos da cor do céu,
portanto, qual a cor dos olhos dela? ” E as crianças respondiam “azul”. Assim a
professora prosseguia com a leitura.
A professora proferiu: “Um dia a mamãe chamou e disse. O que será que a
mamãe disse? ” E a partir das respostas das crianças a professora disse: “Vamos fazer
nossa primeira inferência? ” Na realidade, constatamos que se realizou o primeiro
registro das inferências porque estão inferindo desde a visualização da capa.
A professora continuou: “E aí o que vocês acham que a mamãe disse? ” Duas
crianças disseram: “É para levar os doces para a vovozinha” A professora confirma:

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“Para levar doces para a avó? Vamos por aqui” E faz o registro na lousa, na coluna de
inferência enquanto as crianças copiam nas fichas que receberam. E a professora diz:
“Levar doces. Então a mamãe chamou para levar doces, vamos ver se está certo ou
não. Depois vamos ver se isso vai acontecer mesmo ou não. ” A professora continuou
a leitura, mas antes, falou para os alunos depois considerarem se está certa ou errada
a inferência registrada, para irem pensando durante a leitura para, depois, colocarem
sim ou não na ficha. Mais uma pista a ocorreu: floresta é perigosa. E foi registrar no
cartaz da lousa para que as crianças copiassem nas fichas. Enquanto ela foi escrever
um aluno falou em voz alta “PI-RI-GO-SA”.
Neste momento, chamou-nos a atenção a referência que os alunos têm para
escrever, pois para este aluno escrever a palavra “perigosa”, ele precisou pronunciá-la,
buscando na oralidade sua referência para a escrita. Ele deve ter achado estranho
pronunciá-la “pirigosa” e a professora ter escrito “perigosa”, afinal não escrevemos como
falamos? Pois bem, para que oralizar a palavra antes de escrever então? Ele copiou
como estava na lousa e não questionou, também passou despercebido pela professora.
O método fônico é a base para o ensino do ato de ler e de escrever nesta escola, isto
é, a consciência fonológica permeia o currículo escolar e a prática pedagógica dos
docentes desta escola.
A professora prosseguiu com a leitura e questionou os alunos: “Vocês acham
que vai acontecer alguma coisa com a Chapeuzinho no caminho? ” As crianças
responderam afirmativamente. A maioria das crianças respondiam e participavam.
Então, mais uma pista do texto foi anotada pela professora no cartaz que estava na
lousa e as crianças copiavam em suas fichas.
As crianças mostraram-se espontâneas sempre inferiam. Quando apareceu a
palavra “miosótis” a professora perguntou o que era e uma criança disse que era uma
flor e outra completou que era uma flor azul.
A professora fez a leitura em voz alta para as crianças sempre as indagando e
deixando-as falar e participar. Elas se envolveram bastante com a leitura da história e
com as ilustrações do livro projetadas durante a leitura.
No final da história, a Chapeuzinho e a Vovozinha foram presas pelo caçador
porque elas mataram e comeram o Lobo que era uma espécie que estava em extinção.
Isso gerou bastante argumentação pelos alunos. A professora perguntou para as
crianças se estava certo elas terem matado ou se estava correto que elas foram presas
e os alunos levantaram hipóteses, uma criança complementava a fala de outra, foi um
momento em que as crianças falaram mais que a professora, esta que precisou encerrar

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a conversa para poder completar o cartaz sobre inferência. Neste momento, as crianças
não participaram muito, mas conforme a professora ia preenchendo ela questionava os
alunos.

Figura 1 - Ficha entregue aos alunos ao lado do cartaz preenchido pela professora para
a oficina sobre “Inferência”

Fonte: Fotografia tirada pela própria autora, 2019

A professora finalizou a oficina recolhendo as fichas dos alunos para que eles
guardassem o material e fossem para o intervalo.
Um grande ponto positivo da observação da oficina foi o encantamento pelo
acesso a literatura infantil de qualidade estético literária e gráfico editorial proporcionado
aos alunos.
Por meio da atividade com as inferências, observamos outras estratégias de
leitura mobilizadas durante a grande participação dos alunos. A professora não
precisava explicar enfatizando aos alunos que se tratava de uma atividade de prática
guiada sobre inferência, mas talvez ela pudesse realizar a atividade como foi feita, a
leitura com a participação de todos para que os alunos entendessem que para ler, pode-
se utilizar estratégias de leitura, como por exemplo, inferir, questionar, enfim dialogar o
tempo todo com o livro, pois “leitores melhoram de leitura em leitura” (HARVEY;
GOUDIVS, 2008, p.35 apud Girotto; Souza, 2010, p.48). Com a utilização das
estratégias para compreensão, o leitor vai percebendo o que deve fazer para ler. O
diálogo que pode estabelecer durante a leitura a partir dos seus conhecimentos prévios.

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Para Smith (1989) o conhecimento é organizado na mente humana como um
grande arco cultural sob o qual são abrigadas estratégias de leitura que devem ser
ensinadas às crianças no aprendizado do ato de ler. Arena (2015, p.146), apoiado em
Harvey e Goudviz (2007, p.93) sugere que ao propor o objetivo de ensinar as crianças
a pensar em voz alta durante a leitura de histórias, que a elas sejam demostradas a
relação que o leitor faz com suas lembranças de natureza pessoal. As autoras
compartilham com frequência ficções realísticas ou memorias porque, segundo elas,
são gêneros que trazem pensamentos e ideias que estão próximas da experiência do
leitor e, esse tipo de literatura, provoca vínculos entre o que está na mente do leitor,
como as vivências e experiências, com o que o está no texto. “Essa estratégia de leitura,
articulada a esse tipo de experiência, faz parte das referências que o leitor encontra em
seu universo cultural, isto é, nos conhecimentos organizados em sua mente. ” (ARENA,
2015, p.146).
Essa estratégia parte do pressuposto que a compreensão é a base da leitura e
não consequência dela (Smith, 1989). Neste caso, a compreensão manifesta-se
atribuindo sentido ao texto e não se dá após a leitura dele. Como bem coloca Arena
(2015, p.146), é necessário que o leitor aprenda a mobilizar seu conhecimento sobre o
assunto, com base em indícios iniciais, como o título, os comentários da quarta capa,
os comentários dos colegas de sala, as indicações da professora, da bibliotecária ou
demais fontes. A orientação do professor é primordial neste processo de conexão entre
os conhecimentos prévio e o conjunto de dados. “Quando começamos as instruções
sobre estratégias com as crianças, as histórias ficam próximas de suas próprias vidas e
de suas experiências; isso as introduz a novos caminhos de pensamento sobre a leitura.
” (HARVEY; GOUDVIS, 2007, p.92 apud Arena, 2015, p.146).
Ao utilizar as estratégias de leitura, o leitor está imerso em uma atividade
cognitiva complexa e ativa, está, portanto em atividade de leitura. Mas para que isso
aconteça, o aprendiz de leitor necessita, muitas vezes, de instruções mais precisas para
progredir na compreensão. Segundo Girotto e Souza (2010), o responsável por orientar
tais instruções é o professor e diante de tal responsabilidade, torna-se importante o
conhecimento e bom planejamento das atividades para que a criança seja admitida
como um sujeito capaz de entrar no diálogo da leitura com sua massa aperceptiva para
que a relação de alteridade se desenvolva e ela compreenda o que é ler e se interesse
por tal ato. Caso contrário, o professor pode didatizar as condutas leitoras e
desconsiderar as vozes, capacidades, desejos, interesses, enfim, os projetos de ler das

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crianças, desmotivando-as. Além do que se o leitor desconhece a finalidade da leitura,
concebe a atividade como destituída de sentido.
Ao ler, o leitor precisa tomar muitas atitudes e essas condutas leitoras podem
ser ensinadas pelo professor, não didatizando, mas orientando na prática da leitura em
voz alta, como ler.
As crianças que afirmam que não gostam de ler, talvez, gostariam de declarar
que não saibam ler. Portanto, não tem ou não sabem mobilizar o acervo cultural
suficiente para atribuir sentido ao texto ou talvez não saibam fazer previsões ou
perguntas para elaborar seu projeto para ir ao texto. Essas operações intelectuais são
essenciais para a leitura. “Aprender a ler não é uma prática natural; é uma prática
cultural criada pelos homens e por essa razão deve ser conteúdo escolar. ” (ARENA,
2015, p.149).
Para o ensino do ato de ler, o professor precisa abordar esses conceitos,
incluindo as estratégias de leitura.

Considerações Finais

É importante considerar que não há uma ordem ou uma sequência para o


ensino das estratégias e todas elas são mobilizadas conjuntamente no ato de ler.
Apenas são separadas sob o ponto de vista didático. O importante é que os alunos as
usem flexivelmente, de acordo com as exigências dos textos e dos objetivos
estabelecidos por eles. Lembrando que o entorno criado faz toda a diferença para a
efetiva instrução da estratégia.
O percurso reflexivo assumiu algumas ressalvas que, de modo geral, suscitou
no entendimento de que os alunos têm acesso a literatura infantil de qualidade no que
diz respeito à literariedade (Faria, 2016) dos livros e, por meio da atividade com as
inferências, eles participaram responsivamente (Volochinov, 2017 e Bakhtin, 2010) da
leitura. Porém a professora enfatizou para os alunos que se tratou de uma prática guiada
sobre inferência, didatizando a aula.
Para um melhor resultado, pensamos que a professor poderia ter conduzido a
oficina, bem como a leitura e o preenchimento do cartaz sem esse enfoque diditizante
e assim, ter oportunizado momento e espaço para os alunos perceberem que ao utilizar
o pensamento inferencial, o leitor faz suas próprias descobertas sem comentários direto
do autor. E assim, também compreenderem que o quadro âncora serve de base para

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ajudá-los a criar modelos mentais e se lembrarem do que leram e não encará-lo como
um fim a ser cumprido para término da aula.
Concluimos que, mesmo observando alguns pontos a serem melhorados, a
oficina é importante para os alunos pensarem nos caminhos constituidores e
facilitadores do aprendizado do ato de ler e, neste caminho, o trabalho com as
estratégias de leitura é indispensável.

Referências

ARENA, D. B. Para ensinar a ler: práticas e tendências. In: MIGUEL, K. C.; REIS, M dos
(Org.). Formação Docente: perspectivas metodológicas e práticas pedagógicas. Marília:
Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, p.135-151, 2015.

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Paulo: Martins Fontes, 2010.

FARIA, M. A. Como usar a literatura infantil na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2016.

GIROTTO, C. G. G. S.; SOUZA, R. J. Estratégias de leitura: para ensinar alunos a


compreender o que leem. In: SOUZA, Renata Junqueira. Ler e compreender: estratégias
de leitura. Mercado de Letras: Campinas, 2010.

JAKUBINSKIJ, L. Sobre a fala dialogal. São Paulo: Parábola, 2015.

SMITH, F. Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e do


aprender a ler. Artes Médicas: Porto Alegre, 2003.

VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do


método sociológico na Ciência da Linguagem (1929). Trad. Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

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CLUBE DE LEITURA NA ESCOLA: UMA AÇÃO PARA INSPIRAR
LEITORES

Dalva Simône Linhares do Monte, Escola Municipal Professora Terezinha


Paulino de Lima
Abel Silvino do Monte, Escola Municipal Expedito José da Costa

Eixo Temático: Literatura e estratégias de leitura

Considerações iniciais

A escola apresenta-se como uma comunidade frutuosa para a criação de um


clube de leitura. A esse respeito, observa-se o comportamento dos jovens diante dos
livros, a frequência à sala de leitura, as conversas, a idade em formação, como também
o mundo pragmático, tecnológico, afetivo e conflituoso em que vivem. Nesse contexto,
reconhecendo-se a enorme importância da leitura na formação dos alunos, promove-se
a construção de um clube de leitura. De acordo com o Art. 1º, parágrafo I, inciso III do
Decreto nº 7.559, de 1º de setembro de 201 1, é objetivo do Plano Nacional do
Livro e Leitura (PNLL) “A valorização institucional da leitura e o incremento de
seu valor simbólico”. (BRASIL, 2011).
Com a globalização e a diversidade manifestadas no ambiente escolar é
imprescindível a necessidade de se trabalhar a educação na linguagem da comunicação
que traz experiências, transforma, dialoga, humaniza, faz pensar e torna livre o homem
como a leitura, mais fortemente, a literária.
Sob esse olhar, o presente artigo traz a experiência do clube de leitura
“Sementes literárias”, com alunos do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental de escolas
da rede pública, situada na periferia da cidade de Natal/RN e Município de Extremoz/RN.
De acordo com a pesquisa nomeada “Retratos de leitura do Brasil”, promovida pelo
Instituo Pró-Livro, o diagnóstico obtido em sua 4ª edição (2016, p.132, grifos da autora),
aponta que “as crianças menores gostam muito de ler, enquanto adolescentes e adultos
gostam um pouco de ler, indicando uma mudança importante com a leitura no ingresso
do Ensino Fundamental II”

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Não há dúvida que adotar uma prática de leitura na escola, assume um
importante papel na interação dos indivíduos com a aprendizagem, sua formação global
e, consequentemente, a provocação de novas atitudes pedagógicas e discentes . Dessa
forma, questiona-se como essa pedagogia, via clube de leitura, pode atrair leitores.
Tal questão reverbera sobre os contextos socioculturais que estão presentes
na leitura com aspectos que vão além do próprio texto e do que eles dizem. Essa
afirmativa se incorpora com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) quando coloca
que “o ambiente escolar forma atitudes e valores, se aprende a conviver, argumentar,
exercer a empatia e o diálogo.” PEREZ (2018, p.12)
Na escola se aprende para o exercício da cidadania, para a compreensão da
vida, para produzir, criar, transformar. Com efeito, MEDEIROS (1999, p. 56) reconhece
“Que haja um tempo no qual a leitura seja compartilhada, no qual se possa refletir,
discutir, estar contra ou a favor, comentar, dar e trocar opinião, descobrir e revelar
talentos não aflorados ou desconhecidos por falta de oportunidade.’’
Nesse sentido, a leitura, dentro do clube, favorece a essa prática através das
inúmeras linguagens, informações, experiências, vivências e partilhas que elenca junto
a valores, princípios e concepções que dialogam com o individual e o coletivo.
Assim, pois, acredita-se que oportunizar a formação de leitores na escola é
uma ação de movimento contagiante que inspira transformação social, justificando,
portanto, tal iniciativa.
A este propósito, o “Clube de leitura na escola: uma ação para inspirar leitores”
tem sua fundamentação na teoria de Mikhail Bakhtin (2011) em que a linguagem se
apresenta como produto da interação social e da interação dos interlocutores. Também
abrange a proposta feita por Jacques Delors (2006) na apresentação dos quatro pilares
da educação para o século XXI – Aprender a Conhecer, Aprender a Fazer, Aprender a
Viver Juntos e Aprender a Ser. Ainda nesse contexto de importante visão, estudo e
aplicação para a atuação do Clube de leitura, Teresa Colomer (2007) vem contribuir
com um itinerário da leitura literária na escola.
Com esse apoio, projetou-se a criação do clube, vislumbrando os benefícios da
leitura para os alunos no campo social, humano e cultural.
Para analisar o desempenho dessa experiência, adotou-se o método
hipotético-dedutivo. Neste ponto, partindo da hipótese de que a frequência dos alunos
ao clube de leitura os favorece a ler mais livros, esbarra-se em problemas relacionados
com a saúde, tarefas escolares e questões financeiras/familiares que os ausentam de

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alguns encontros. Por outro lado, observa-se o desejo de participação e devolutiva dos
alunos às atividades propostas.

A teoria na prática

Dentro da proposta de criação de um clube de leitura na escola está o


reconhecimento de que, nesse grupo, haja uma maior interação e diálogo entre os
participantes e, consequentemente, maior desenvolvimento cognitivo individual e
coletivo de todos, em que a leitura se apresenta como o “personagem principal” dessa
evolutiva experiência.
Nessa perspectiva, a linguagem é a voz que proclama a comunicação, o que
nos remete a teoria bakhtiana, segundo SCORSOLINI-COMIN; SANTOS (2010):

As concepções de Bakhtin exigem do leitor um olhar múltiplo sobre o


mundo e sobre o outro. Trata-se de um olhar que vê o mundo a partir
de ruídos, vozes, sentidos, sons e linguagens que se misturam,
(re)constroem-se, modificam-se e transformam-se continuamente.
Nesse cenário compreensivo, a palavra assume papel primordial, pois
é a partir dela que o sujeito constitui e é constituído. A palavra não seria
apenas um meio de comunicação, mas também conteúdo da própria
atividade psíquica. Essa visão dialógica supera a descrição dos
elementos estritamente linguísticos e busca incluir também os
elementos extralinguísticos que, direta ou indiretamente, condicionam
a interação nos planos social, econômico, histórico e ideológico.

Essas colocações iluminam o caminho para abraçar o desafio de formar um


grupo de leitores a partir de quatro alunos premiados como “leitores do ano” na escola.
Convite feito e aceito, segue-se planejamento e organização para os encontros do clube
de leitura. Nesse processo, inclui-se o apoio das famílias e o desejo de participação dos
filhos, adolescentes em idade de 12 a 15 anos.
Nesse primeiro momento foi observado um pequeno número de estudantes
interessados e uma certa “crítica” e “desdém” de alguns colegas. Contudo, a identidade
leitora dos membros os fortaleceram, perseveraram e fez com que assumissem suas
ideologias e contagiassem a comunidade escolar.
Com efeito, a escola tem um papel maestral na inclusão e cidadania. A
aprendizagem passa por tais questões, como nos apoia DELORS (2008, p. 89-90):

Para poder dar resposta ao conjunto de suas missões, a educação


deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais
que, ao longo de toda a vida, serão de algum modo para cada
indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, isto é
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adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer, para poder
agir sobre o meio envolvente; aprender a viver juntos, a fim de
participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas;
finalmente, aprender a ser, via essencial que integra as três
precedentes.

Esses pilares, sempre presentes na convivência do coletivo, consolidou o clube


de leitura de modo a fazer encaminhar-se a proposta para uma educação literária com
seus membros.
“Qualquer modelo de ensino literário se caracteriza pela forte inter-
relação que estabelece entre seus objetivos, seu eixo de programação,
o corpus de leitura proposto e as atividades escolares através das
quais o ensino se desenvolve”. “A escola deve ensinar mais do que
literatura, é ler literatura.” COLOMER (2007, p. 19, 30)

Ao oportunizar os alunos o desenvolvimento de suas inteligências, situa-se


Howard Gardner que sugere a existência de um conjunto de habilidades, chamadas de
Inteligências Múltiplas (Linguística, Lógico-Matemática, Espacial, Corporal-Cinestésica,
Naturalista, Musical, Interpessoal e Intrapessoal). O ensino da leitura na escola abre
espaço para uma aprendizagem inter e transdisciplinar através do multiculturalismo nela
existente.

Uma inteligência implica na capacidade de resolver problemas ou


elaborar produtos que são importantes num determinado ambiente ou
comunidade cultural. A criação de um produto cultural é crucial nessa
função, na medida em que captura e transmite o conhecimento ou
expressa as opiniões ou os sentimentos da pessoa. GARDNER, (1995,
p. 21)

A inteligência Linguística, corporifica a interação das inteligências, se


relacionando com a Interpessoal (permite compreender os outros e trabalhar com eles)
e a Intrapessoal (permite compreender-se e trabalhar consigo mesmo). Segundo
GARDNER (1995, p. 35), “uma inteligência serve tanto como o conteúdo da instrução
quanto como o meio para comunicar aquele conteúdo. A esse propósito, a
aprendizagem se dá quando o aluno capta a informação, a desenvolve através dos
diferentes meios e recursos utilizados pelo professor e a transforma (usa, transferem
aplica, cria, aprofunda, modifica, inova).
À luz dessas considerações a leitura literária constitui um caminho educacional-
pedagógico de fértil desenvolvimento; é a lição que todos devem fazer, no que é
desafiador e questionador, ao tempo em que pode guardar a chave para jovens mais
humanos, conscientes e autênticos naquilo que vivem e fazem.
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Formando jovens leitores

Antes de dar início com esse trabalho, depara-se com o desafio de se


conquistar os participantes para a leitura de livros, levando em consideração o embate
do livro físico ante as novas e atraentes tecnologias que tomaram grande espaço na
comunicação, informação e entretenimento, mudando o consumo cultural de forma ativa
e globalizada. A esta altura se faz necessário o reconhecimento e a participação de
todos nesse contexto, o que não invalida a construção de uma experiência pedagógica
com livros/leitura diante dos vários aspectos que esses norteiam a aprendizagem, indo
mais além, conforme MARIA (2006, p. 96):

Sabemos hoje que a inteligência não é genética, ela se desenvolve a


partir dos estímulos externos, dos desafios do contexto. Ora, não há
nada que favoreça mais e melhor o desenvolvimento da inteligência
geral que a leitura. Ela areja as consciências e as torna aptas a dar
sentido às próprias experiências, a construir conhecimentos a partir da
observação direta, a partir da vivência pessoal. A leitura educa o olhar
e favorece ao estudante a amplidão do patrimônio cultural humano. [...]
Formar leitores autônomos, capazes de recolher e organizar
informações, ampliar experiências e construir sentidos é a única
garantia que temos de formar gerações que atualizem o conhecimento
acumulado, que deem mobilidade ao saber.

Naturalmente, nos primeiros encontros no clube de leitura a apreciação de


diferentes gêneros textuais nortearam as mediações, com rodas de leitura recheada de
vivências e oficinas, num processo dialógico para cativar, agregar e sobretudo,
enriquecer cognitivamente os alunos, através de toda essa interação. Comentando esse
fato, FILHO; TORGA (2011) colocam que

Os sujeitos se apropriam da linguagem ao se tornarem imersos nas


variadas formas de comunicação verbal, que se associam a diferentes
esferas da comunicação humana e que definem os infinitos gêneros
discursivos existentes.

À medida que se caminha, observa-se que o compartilhamento das leituras, no


grupo, contagia a todos, chegando aos corredores da escola e à família, o entusiasmo
e os novos conhecimentos. A esse respeito, COLOMER (2007, p.106) corrobora: “Pode-
se afirmar, cada vez com maior segurança e de maneira mais pormenorizada, que a
leitura compartilhada é a base da formação de leitores.”

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Como feito, a formação leitora se desenvolve com liberdade e respeito à
subjetividade, em meio a laços afetivos e de identidades. Nesse contexto, DELORS
(2006, p. 98) comenta:

Quando se trabalha em conjunto sobre projetos motivadores e fora do


habitual, as diferenças e até os conflitos interindividuais tendem a
reduzir-se, chegando a desaparecer em alguns casos. Uma nova forma
de identificação nasce desses projetos que fazem com que se
ultrapassem as rotinas individuais, que valorizam aquilo que é comum
e não as diferenças.

Nesse sentido, percebe-se que essas ações proporcionam a compreensão


mútua, a entreajuda pacífica e a harmonia; “Aprender a Viver Junto” e interagir fazendo
parte de um todo, enquanto cidadão.
Tais considerações se anexam ao avanço cognitivo dos alunos participantes
do clube de leitura, tal como a aceitação e interesse em aprofundar os conhecimentos
nesse campo.

A literatura aparece como uma autêntica forma de pensar; uma outra


filosofia que, fundamentada em dramas e imagens e não em sistemas
e conceitos, põe em movimento a inteligência sem renegar o
sentimento e permite o acesso aos grandes temas da existência
humana, sem distrair ou desviar para os intrincados labirintos do
intelectualismo. GALLIAN (2007, p. 76)

Trata-se de uma promoção acerca de um diagnóstico animador dos jovens


leitores que, naturalmente, passaram a consumir leituras literárias de escritores
nacionais e estrangeiros, inclusive de clássicos, a opinar, discutir, indicar livros e
leituras. Enfim, pelos efeitos e significados concebidos, pode-se inferir à formação de
leitores com alcance de um diferencial na escola e, consequentemente no mundo em
que vivem.

Ações lítero-culturais

Dentro da formação leitora encontra-se também várias ações que fortalecem


os pilares já relatados por Delors (Aprender a conhecer, Aprender a fazer, Aprender a
viver juntos e Aprender a ser). Segundo COLOMER (2007, p. 64), “devemos dedicar
tempo e programar atividades que favoreçam o interesse pessoal e estabeleçam essa
conexão, fazendo com que se sintam pertencentes ao universo dos livros.”

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Nessa perspectiva, depara-se com várias atividades diferenciadas
direcionadas a uma maior interação dos indivíduos com a leitura, literatura, escrita e
aprendizagem em sua formação global, concebendo conhecimento, cultura e cidadania.
Isso posto, convém citar a realização de saraus literários no grupo e na escola, concurso
de poesia na escola, folheto literário (trimestral), feira de livros, encontro com escritores,
intercâmbio e viagens lítero-culturais e ação social. Dentro dessa pedagogia,
FILIPOUSKI; MARCHI (2009, p.10,21) colocam que: “Pela literatura, o leitor tem acesso
à cultura, pode participar dela, tornar-se responsável por valorizar a tradição e preservá-
la ou recriá-la, conhecê-la ou questioná-la.” E ainda, o ensino da leitura literária traz “a
aquisição de uma cultura geral mais ampla, integradora das dimensões humanista,
social e artística, que valorizam as relações entre diacronia e sincronia.”
Desse modo, a leitura literária, a poesia, a arte e a linguagem fazem interseção
com o humano e o social, no individual e no coletivo da realidade das vidas em
convivência.

Encontros que transformam

No dia a dia do clube de leitura também se percebe conflitos, próprios da


adolescência, consigo mesmo, com a família, com os amigos. Essa realidade é assistida
nos encontros através da leitura de livros, partilhas e vivências dentro de uma interação
dialógica no grupo.

Na perspectiva dialógica de desenvolvimento, há espaço para


interação, confronto e também para a convivência entre visões
díspares de mundo. Ao assumirmos esse posicionamento,
questionamos os conceitos de evolução, sequência, períodos e fases,
em uma busca por elementos desenvolvimentais que expliquem o
dinamismo das relações intersubjetivas, sustentando a visão dialógica
do desenvolver-se (a si mesmo e ao outro). SCORSOLINI-COMIN;
SANTOS (2010)

Essas considerações fortalece a prática das muitas atividades em grupo, com


participação livre dos alunos para trocarem experiências, opinarem, se inter-
relacionarem com a cultura que os livros os proporcionam, tendo a leitura literária como
mestre formador para a vida e à cidadania. A esse respeito, COLOMER (2007, p. 70)
acrescenta:

A literatura, precisamente, é um dos instrumentos humanos que melhor


ensina “a se perceber” que há mais do que o que se diz explicitamente.
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Qualquer texto tem vazios e zonas de sombra, mas no texto literário a
elipse e a confusão foram organizadas deliberadamente. Como quem
aprende a andar pela selva notando as pistas e sinais que lhe
permitirão sobreviver, aprender a ler literatura dá oportunidade de se
sensibilizar os indícios da linguagem, de converter-se em alguém que
não permanece à mercê do discurso alheio, alguém capaz de analisar
e julgar, por exemplo, o que diz na televisão ou perceber as estratégias
de persuasão ocultas em um anúncio.

Com o desenvolvimento linguístico e cognitivo dos alunos participantes do


clube de leitura, este se tornou uma luz de atração aos outros estudantes os conduzindo
a frequentarem a sala de leitura da escola. Por outro lado, além de premiações em
concursos municipais de poesia, participação em eventos literários na cidade, o clube,
ao promover uma ação social em uma escola no município de Extremoz/RN, deu início
a uma espécie de “filial”, com apoio nas realizações de encontros e formações leitoras.
Acontece que, com toda essa experiência com a leitura, esses jovens não
poderiam deixar de incorporar a produção escrita às suas linguagens. Dessa forma,
compõem resenhas, poemas, fazem auto avaliações, murais e corredores poéticos;
entrevistas, pesquisas e outras matérias para o folheto literário, incluindo habilidades
como desenho, no que foi apresentado a logotipo do clube.

As habilidades de ler são também propulsoras de produções de textos,


orais e escritos, que revelem os sentidos aprendidos, as relações
estabelecidas, os nexos possíveis e a compreensão dos aspectos de
linguagem. A leitura também fortalece especialmente as competências
para a produção do texto escrito. Ela alarga a compreensão da língua
e de seu potencial expressivo e favorece a incorporação de recursos
da linguagem literária na própria produção, instrumentaliza para a
aquisição de um estilo singular e próprio de falar e escrever.
FILIPOUSKI; MARCHI (2009, p.14)

A esse respeito, pode-se enfatizar nos encontros que transformam, através da


leitura literária, a produção de um livro com poemas autorais, intitulado “Primeiras
sementes”, que se encontra em processo de edição.
Assim, tudo quanto foi dito confirma que as ações, no clube de leitura na escola
inspira leitores, alcançando o domínio de diferentes códigos e linguagens, um diferencial
na educação e na própria constituição da cidadania.

Considerações finais

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Na educação pós-moderna, o conhecimento humano tende a combinar-se com
a capacidade deste de interagir intencionalmente na busca da plena compreensão, ou
seja, de comunicar-se. A escola precisa resgatar a leitura literária em contextos
diferentes que trazem discussões, ampliam os conhecimentos e promovem situações
de maior integração e valorização humana; se une aos temas transversais com
conteúdos de projetos curriculares na escola; com sua cultura, oportuniza a retomada
de algo que alguém vivenciou não só em seu plano habitual, mas também de coisas
que foram desconhecidas e podem ser resgatadas a partir do processo de leitura.
Segundo PAJEÚ; MIOTELLO (2018, p. 777), “A cultura e a vida se misturam para
constituir os sentidos que Bakhtin chama de ética e estética.” Através da literatura há o
encontro com outras culturas e aí ocorre transformações. Os textos literários dialogam
com a vida, a dor, os afetos, as histórias dos alunos. AMARILHA (2003, p. 150) comenta
que “Ler literatura é compartilhar da cultura, de uma sociedade, através da linguagem
verbal em expressão única; é interagir com a língua em sua manifestação social e
individual, isto é, com sua face histórica e criativa.”
A experiência da pedagogia do clube de leitura na escola atrai os alunos, os
transformam em leitores e inspira a formação de novos leitores. Eles deslocam-se do
espaço da escola para outros espaços, como agentes multiplicadores de um universo
leitor. Além disso, perseveram com os elos estabelecidos com os membros
participantes, mesmo após concluírem os estudos na escola, se conectam com os livros,
leituras e atividades; se inspiram no “clube” para criar grupos leitores, na nova escola e
seguem com ações exemplares, nesse contexto.
Para o educador, os desafios são vários, no entanto, reconhecer a atual
conjuntura educativa, pensamentos e atitudes também podem transformar e se
desenvolver na constituição de novas formas de conhecer, aprender e gerenciar o
conhecimento humano.
Nessa concepção, sugere-se que, clubes de leitura seja uma prática nas
escolas, percebendo-se que o ponto de partida e o de chegada desta prática é sempre
o mundo humano em sua configuração histórico-sócio-cultural e que a leitura é a ação
transformadora do indivíduo em cidadão do mundo.

Referências

AMARILHA, Marly. Educação e leitura: trajetórias de sentidos. João Pessoa: Ed. da


UFPB-PPGEd/UFRN, 2003.

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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

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A HORA DA CONVERSA

Laudineia de Almeida Ciriaco da Silva Leal, UFMS/Campus de Três Lagoas297

Eixo Temático: 11- Literatura e Estratégia de Leitura

Considerações Inicias
A ação de contar e ouvir histórias, além do prazer que pode proporcionar a
contadores e ouvintes, cumpre a função de permitir que o ser humano organize seu
mundo interno e compreenda o contexto que o cerca. Esse foi o devaneio que levou a
organização e execução desse projeto de extensão no curso de Letras Português e
Literatura. Sua inicial aspiração foi excitar os estudantes do Ensino Infantil ao Ensino
Fundamental I, da Escola Municipal Presidente Médici, localizada na área central da
cidade de Três Lagoas- MS, a conhecerem o empoderamento que há no encontro com
o texto literário. E, nesse sentido, criar em um contexto escolar ficcional árido, um novo
mundo de possibilidades e ambições que se socializam com a alteridade, no
empreendimento de alcançar o desenvolvimento cognitivo e sócio emocional do
educando em suas inter-relações.
Realizado sob a orientação da professora, Dra. Amaya Obata Mouriño de
Almeida Prado298, o Projeto de Extensão da Universidade Federal do Mato Grosso do
Sul, Campus de Três Lagoas MS, foi inicialmente batizado por “A Arte de Contar
História’’, e após três meses de sua implementação rebatizado como “ A Hora da
Conversa”, já que no decorrer desse tempo, os estudantes evoluíram de ouvintes
passivos a promotores reflexivos das leituras literárias propostas pela mediadora.
Primeiramente, a base desse trabalho advém das aulas de literatura na
academia e do ensejo em promover a leitura literária nos ambientes públicos escolares.

297
Graduanda em Letras/Literatura pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campus
Três Lagoas, e-mail: laualmeidaleal@gmail.com
298
PROFA. Titular da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, campus Três Lagoas, e-
mail: amaya.prado@gmail.com.
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No qual sua importância é desenvolvida por meio das discussões que permeiam o
campo da compreensão na formação de leitores e do exercício da leitura. Justificando-
se pelo panorama de baixos identificadores, apontados por diversos órgãos de
pesquisas no país, que assinalam a ocorrência de uma extensa lacuna no quesito
leitura, em suas distintas nuances, como atividade ativa, diligente e sobretudo
instrumento humanizador, que viabiliza ao homem o incremento da associação dos
ambientes sociais os quais pertence.
Diante desse interposto, a escola é o local no qual se espera que seja o pilar
das discussões e da agenciação da literatura. Essas circunstâncias pedagógicas se
encontram fundamentada nas alíneas da Base Nacional Comum Curricular:

A educação integral tem como propósito a formação e o


desenvolvimento global dos estudantes, compreendendo a
complexidade e a não linearidade desse desenvolvimento, rompendo
com os aspectos reducionistas que privilegiam a dimensão intelectual
(cognitiva) ou a dimensão afetiva. (BNCC, 2017, p. 14).

Consequentemente, o método de intervenção aqui apresentado parte do viés


dos estudos teóricos que defendem a prática da leitura literária como mola propulsora
de formação leitora, alicerçada pelo Método Recepcional, proposto pelas autoras Maria
da Glória Bordini e Vera Teixeira Aguiar, em sua obra Literatura a formação do leitor:
alternativas metodológicas (1993), que traz um arcabouço teórico aliado a etapas
metodológicas que visam à valorização do papel leitor como parte integrante do
processo de produção do sentido da obra.
A pesquisa iniciou-se em setembro de 2019, interrompida neste ano de 2020
devido ao momento pandêmico vivenciado. Porém, será retomada com a volta às aulas
presenciais. A metodologia de trabalho incide sobre o processo de interação e mediação
literária que ocorria durante as aulas de Língua Portuguesa, com duração de 15 minutos.
O trabalho foi desenvolvido de maneira que a dinâmica de leitura trouxe para o
ambiente escolar momentos de deleite, reflexão, questionamentos e encanto,
proporcionado por obras que já existiam na sala de aulas. Dessas tem-se: Por onde
andará a vaca amarela? de Adriano Bitaráes; O reizinho mandão, de Ruth Rocha; Zé
Pedro comeu pimenta pensando que não ardia, de Ricardo Azevedo; Delícias e
Gostosuras, de Ana Maria Machado; Arca de Noé, de Vinícius de Morais. Marcelo,
marmelo, martelo de Ruth Rocha, Ou isto ou aquilo de Cecília Meireles; O domador de
monstros de Ana Maria Machado, Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque entre outros.

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Portanto, o resultado desse estudo demostrou que a arte das palavras é
importantíssima para o desenvolvimento socioemocional, cultural e histórico do
estudante. E, dessa forma, torna-se um fator inescusável para a apropriação do prazer
pela leitura, citada por Barthes em sua obra O Prazer do Texto e empoderativo na
recriação do imaginário como pondera Bettelheim em seu livro A Psicanálise dos Contos
de Fadas.

Aspectos da leitura literária


O processo de comunicação humana ocorre por meio da linguagem que
favorece ao homem o conhecimento de si e a interação com o outro. A verbalização é
a linguagem mais comum entre as outras formas de comunicação existentes, e neste
aspecto, o livro é visto e reconhecido, formalmente, como um documento que preserva
cumulativamente as expressões e impressões da consciência humana, sejam elas
individuais ou coletivas, por meio do código escrito e até mesmo digital.

Preservar as relações entre a literatura e a escola ou uso do livro em


sala de aula depende de ambas compartilharem um aspecto em
comum: a natureza formativa. De fato, tanto a obra de ficção como a
instituição do ensino estão voltadas a formação do indivíduo a qual se
dirigem (ZILBERMAN, 2003, p. 25).

Zilberman afirma que a prática da leitura crítica e atenta, vincula o leitor no


espaço e no tempo de uma obra, expandindo seu conhecimento de mundo e sua
atuação como sujeito histórico. “O leitor converte-se numa peça essencial da obra, que
só pode ser compreendida enquanto uma modalidade de comunicação” (ZILBERMAN,
1989, p. 15).
Partindo desses pressupostos, fica evidente que a prática da leitura literária,
aliada as vivências do leitor, proporciona uma (re)significação das palavras, bem como
a ampliação desse espaço simbólico que se interliga na construção de novos
conhecimentos extraídos da obra literária. Isso demonstra que “a fruição plena do texto
literário se dá na concretização estética das significações” (BORDINI & AGUIAR, 1993,
p. 16). As autoras esclarecem, ainda, que o primeiro passo para a formação de leitura
é a disponibilidade de livros próximos à realidade do leitor, que levantem questões
significativas para ele. “A familiaridade do leitor com a obra gera predisposição para a
leitura e o consequente desencadeamento do ato de ler” (BORDINI & AGUIAR, 1993,
p. 17).

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Desse modo, pode-se dizer que o “texto literário é plurissignificativo” (BORDINI;
AGUIAR, 1993, p. 15), e assume sentidos diversos, consoante a percepção do leitor,
constituindo-se em um espaço emancipatório. A literatura convida o leitor a construir e
examinar sua própria percepção da realidade e “se exprime pela reconstrução, a partir
da linguagem, de todo o universo que as palavras encerram e pela concretização desse
universo com base na vivência pessoal do sujeito” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 15).

O ato de ler acontece por meio ao processo de identificação do sujeito com os


elementos do texto, que se concretiza haja vistas a representação ficcional da realidade.
Quando atende os interesses do leitor e da escola, frente a esse processo,
desempenha-se um papel de suma importância na formação do leitor literário por meio
de professores leitores, espaços de leituras e sobretudo com aulas de leitura literária,
oportunizando ao estudante a manipulação de textos literários que promovam a reflexão
sociocultural.
Vale ressaltar ainda a função da escola como um espaço de valoração do
exercício da liberdade do pensamento. A fim de referendar esse conceito, Marisa Lajolo,
em seu livro Do mundo da Leitura para a leitura do mundo, afirma:

É importante frisar também que a prática de leitura patrocinada pela


escola precisa ocorrer num espaço de maior liberdade possível, a
leitura só se torna livre quando se respeita ao mesmo em momentos
iniciais do aprendizado, o prazer ou a aversão de cada leitor em relação
a cada livro. (LAJOLO, 1993, p. 109)

Por conseguinte, entende-se que a escola, em seus métodos de ensino-


aprendizagem, principalmente, no que tange à leitura literária, deve proporcionar ao
indivíduo, em sua formação leitora, a capacidade de raciocínio crítico e argumentativo
frente aos diferentes tipos de livros e textos, para que assim o leitor possa compreender
as distintas possibilidades de leituras e as múltiplas facetas da realidade que o cerca.

A leitura do meu mundo: o encontro da imagem com o imaginário


O mundo do imaginário é enriquecido e povoado desde os primórdios da
existência por meio da comunicação oral. Histórias, lendas, fábulas e contos eram
narrados ao redor das fogueiras, ou mesmo nas noites de lua cheia, antes dormir, no
escuro do quarto, à porta da rua, entre uma brincadeira e outra. Desse modo, as
crianças se tornavam adultos e compartilhavam dessas histórias fantásticas com outras
crianças. Esses adventos da oralidade ocorriam numa regência cíclica e universal de
povoamento de ideias e dispersão da própria cultura.
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Segundo Lúcia Pimentel a apreciação de uma obra de arte está em avaliar as
reações que o contato (físico, psíquico, visual ou sonoro) com a aquele objeto produz
no indivíduo (PIMENTEL, 2003, p. 33). Este mesmo conceito é defendido por
(ABRAMOVICH, 1995, p.17) quando relata em sua obra Gostosuras e Bobices que “É
através de uma história que se pode descobrir outros lugares, outros tempos, outros
jeitos de agir”. É conhecer tudo, sem necessariamente, saber o nome que se dá ao
conhecimento adquirido dos seres e das “coisas” mediante as histórias.
Bruno Bettelheim diz que o trabalho mais difícil na educação de uma criança é
auxiliá-la no encontro do significado de sua existência. Isso implica na apresentação da
literatura como instrumento para a associação entre o real e o imaginário. Ou seja,
elevar a criança ao mundo infinito de novidades e descobertas para que possa
relacionar-se de maneira bem-sucedida com o “outro” e com o ambiente que lhe cerca
(BERTTLHEIM, 1980, p. 13). Quando esse indivíduo puder acionar sua memória e
refletir por meio da literatura, vivenciará novas experiências e obterá uma nova
percepção sobre as questões da vida.
Por isso, a ludicidade da ficção infantil vem com o propósito de explicar as
transições da vida, bem como o nascimento, o desenvolvimento e a morte. Esse último
é um tema pouco explorado na literatura infantil [...] como se as pessoas temessem
tocar nele, como se a morte não fizesse parte da vida, como se a criança não se
defrontasse com ela [...] (ABRAMOVICH, 1995, p. 111). Funny explica que é essencial
para um crescimento mental saudável o indivíduo assimilar à morte como o
encerramento de um “ciclo”.
Assim, observa-se que a infinidade de conceitos abordados pela literatura
estabelece ligações entre a criança e o mundo mágico. O olhar observador, o som da
voz, o texto e o gesto induzem o leitor a adentrar no universo literário e a se conectar
ao fantástico e ao maravilhoso. Neste instante arrebatador, não existe adulto ou criança
só a capacidade que a fantasia e a imaginação têm de refazer e recriar novos caminhos
para a aprendizagem por meio da arte.

Eu conto um conto: a metodologia do projeto


O mundo das crianças é cheio de brincadeiras, cores, imitações de
personagens e muita conversa. E quando essa conversa se dá no âmbito da sala de
aula, ao ponto de atrapalhar a explicação da professora, significa que “está na hora de
ler um livro”. Desse modo, foi planejado o desenvolvimento do aprendizado da
habilidade “turno da fala” com o uso da leitura de clássicos infantis, considerando que a

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partir dessa leitura seria possível trabalhar o conteúdo da linguagem oral (BUSSATO,
2003, p.38).
E nesse caminho para a aprendizagem, Candido fornece através de sua obra,
Vários Escritos,” as prerrogativas de que a Literatura é [...] um instrumento poderoso de
instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como
equipamento intelectual e afetivo” (CANDIDO,1995, p.243). Igualmente, fundamentado
nessas colocações, deliberou-se a ideia de se criar um projeto que fosse um instrumento
propulsor para incitar o gosto pela literatura e resgatar o desejo pela história, cuja ação
outrora era fomentada no ínfimo das culturas por meio da oralidade passada por
gerações.
Nesse seguimento, determinado pelas orientações teóricas, criou-se o projeto
a “Hora da Conversa”. O qual aborda a importância da oralidade e o seu uso como
ferramenta de empoderamento, autoconhecimento, respeito mútuo, visão de mundo e
repertório linguístico nos educandos. O projeto nasceu a partir de um pedido da diretora
da escola, Jozicleia Porfírio, que intentou trabalhar a literatura como mediação e mostrar
às crianças a estima que deve se ter pelo ato da fala. A pesquisa abarcou todas as vinte
seis salas de aula, abrangendo mais de 600 alunos do Ensino Infantil e Fundamental I.
A metodologia foi estruturada com base na leitura de clássicos. A escolha dos
livros versava sobre temas transversais solicitados pelos professores após um
precedente, no qual explanavam a dificuldade da turma e, assim expunham
assuntos/temas que poderiam ser abordados na aula. Os tópicos trabalhados
abordavam a raiva, as escolhas, amizades, o medo entre outros. Os critérios da escolha
dos livros eram feitos através de visitas nos recintos pedagógicos de aulas, averiguando
as obras que ali continham e que poderiam ser trabalhadas no projeto, já que a escola
não dispunha de biblioteca nem sala de leitura.
O projeto teve duração de três meses. A mediadora entrava nas aulas de
Língua Portuguesa e dispunha de quinze minutos para desenvolver o trabalho. As
etapas consistiam em apresentação prévia dos objetivos por meio de dinâmicas que
induziam os estudantes a compreenderem a importância do “turno da fala”. Logo após,
seguia-se a explanação da obra de maneira contextualizada através de uma linguagem
e tom de voz adequado ao contexto temático apresentado no livro.
Consequentemente, a leitura se iniciava pela capa, adentrando livro, folha por
folha, estimulando os educandos à percepção visual por meio das imagens, assim como
seus traçados e texturas. Dessa forma, submergiam no mundo imagético das narrativas
e da poesia. Com isso, os educandos, sempre atentos, percebiam traços ou mesmo

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singelas subjetividades que muitas vezes passavam desapercebidos pela própria
mediadora (grifo próprio). Essas eventuais entonações demonstrava o olhar atento e
recíproco quanto a análise do texto pelos alunos, além de desvendar sentimentos e
agudezas que nem eles mesmos sabiam possuir. E nesse sentido, Candido é feliz ao
proferir:

Entendo aqui por humanização [...] é o processo que confirma no


homem aqueles traços que reputamos essenciais como o exercício da
reflexão aquisição do saber a boa disposição para com próximo o
afinamento das emoções a capacidade de penetrar nos problemas da
vida o senso da beleza a percepção da complexidade do mundo e dos
saberes o cultivo do

humor a literatura desenvolve em nós bota de humanidade na medida


em que nos tornam mais compreensivos e abertos para natureza a
sociedade dos semelhantes. (CANDIDO, 1995, p. 180)

Sem mais delongas, o processo humanizador está, intimamente, vinculado com


a literatura, seja ela projetada de forma oral ou escrita. E nisso jaz O prazer do texto, no
qual Barthes (1987, p. 21 a 24) descreve com tamanha eloquência e profundidade, no
qual refere-se ao leitor como peça principal da obra, já que sem ele não existiria o porquê
de se escrever literaturas.

Hora da conversa

Figura 1: “Hora da Conversa”

Fonte: A própria autora, 2019.

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Relato 1: No primeiro dia do projeto A arte de contar história, leu-se na sala de
aula do terceiro ano, o poema de Cecília Meireles Ou isto ou aquilo. Ao entrar no
ambiente, iniciamos os cumprimentos e agradecimentos, seguindo da fala sobre o
projeto. O primeiro combinado com a turma foi referente ao conteúdo/habilidade contida
na BNCC que é o “turno da fala”. Desse modo, um educando era escolhido como o
representante da turma, essa ação se constituía como uma maneira de trabalhar o
protagonismo no grupo, utilizando das percepções comportamentais daquele que era
visto como o “aluno problema”. Após o acordo entre as partes (mediador – alunos)
iniciava-se “A Hora da Conversa”.
As expectativas e a aceitação do projeto pelo corpo escolar foram além do
esperado, a mediadora era aguardada com entusiasmos pelos estudantes. Sua fala
sempre sugeria o respeito que advém da espera, fala e escuta, com a finalidade de se
criar a amorosidade que produzem a aprendizagem, direcionando o leitor a
compreender que ao ouvir o “outro” se tem acesso a um mundo particular, e assim
mundos são compartilhados, relacionamentos são estabelecidos, sentimentos são
explicitados e ressignificados.
No momento da apresentação do livro (a capa, o nome da autora, o nome do
ilustrador, as ilustrações) esperava-se o retorno dos estudantes, pois possuíam a
liberdade de fazer perguntas e de sentar-se como e onde desejassem (posicionavam
de diferentes maneira: em círculo, na carteira, no pátio, etc.). “Nunca negligencia o
espaço físico onde vai contar a história. Um espaço fechado cria uma sensação de
aconchego, e o ideal e que as crianças fiquem à vontade, sem limites de carteiras... O
círculo representa um ninho...” (BUSSATO, 2003, p.72).
Em uma das ocasiões de apreciação da leitura ao apresentar à turma o poema
Ou isto ou aquilo de Cecília Meireles, houve emoção e fruição, diversas perguntas
ressoavam pelo ambiente e todos queriam fazer suas colocações. Um dos alunos fez
uma pintura e um outro escreveu um pequeno resumo, no fim da leitura.

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Figura 2: Relato da professora da turma, Silvana Fontes.

Fonte: A própria autora, 2019.

Relato 2: Nos terceiros anos do Ensino Fundamental I, leu-se o livro Quem tem
medo de monstro, de Ruth Rocha, uma historieta onde o humor era a centralidade da
escrita literária para abordar temas de profundo impacto nos leitores. O medo era o
assunto retratado nessa obra. Nesse dia, a espontaneidade cerceou todo o trabalho,
ouviu-se falas por todos os lados, uma temática que casou reflexão e desejo pelos
educandos de expressar seus sentimentos e sensações. Num dado instante a fala de
um garoto de nove anos, surpreendeu a todos: “eu tenho medo de morrer, eu tenho
medo da morte”.

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Figura 3: Relato da professora da turma, Kelly Morato.

Fonte: A própria autora, 2019.

Relato 3. Nos quintos anos do Ensino Fundamental I, apresentou-se


narrativas clássicas, por exemplo o mito O anel de Giges, presente na obra, A República
de Platão. Em outro período mostrou-se o livro A carta a um jovem poeta de Rainer
Maria Rilke. Particularmente, nesse dia após leitura da primeira carta, percebeu-se nos
alunos o interesse pela leitura em si, todavia é sabido que o valor do objeto livro é
incompatível com a realidade da maioria dos estudantes. Assim, a mediadora informou-
lhes sobre o site “Domínio Público” (website que disponibiliza diversas obras para
acesso público, sem cobrança de taxa).

Considerações finais

Por isso sempre se acreditou que ‘ler se aprende lendo”. [...] a


qualidade só pode ser apreciada por comparação, de modo que não
são suficientes “alguns poucos livros bem lidos”. Pelo contrário, os
dados de que dispomos nos dizem que a quantidade de livros lidos
importa [...] é necessário planejar um tempo de leitura autônoma e
silenciosa nas salas de aula, baseada principalmente na leitura de
ficção. [...] definitivamente, a aprendizagem literária pode ser
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potencializada se planejarmos leituras diferentes e complementares
em cada um desses espaços. (COLOMER, 2008, p. 18).

Marcia Abreu ressalta que a leitura inserida no contexto escolar, composta nas
aulas de Língua Portuguesa ou mesmo fora dela, são referências teóricas e não
reflexivas, conjeturadas na escassez de uma prática leitora insossa e engessada, e
poucos são os que se tornam, realmente, leitores literários, apreendendo apenas o que
se deve dizer sobre determinada obra. (ABREU,2006, p. 19). Nessa perspectiva, o
projeto em questão visa encontrar sua valoração no âmbito da sala de aula como
ferramenta de auxílio à promoção da fruição ledora e no empoderamento do texto
literário como representação estética de prazer e construção humanística dos
indivíduos.
Diante disso, a ideia dessa análise partiu do trabalho concretizado em sala de
aula, na matéria de Língua Portuguesa, na Educação Infantil e Ensino Fundamental I,
onde se pôde realizar o momento da leitura, denominado “A hora da conversa”, mediado
por uma graduanda do curso de Letras Literatura. O trabalho durou três meses e os
progressos foram notórios, sendo amplamente difundido, avaliado e reconhecido no
educandário como um momento de deleite e satisfação, no qual alunos e professores
sentiam-se sensibilizados pelas leituras realizadas, além de refletirem nas inter-relações
cotidianas.
Portanto, o resultado desse estudo mostrou que a literatura infantil é um
instrumento no desenvolvimento intelectual da criança, pois por meio do uso da fala
interativa com a leitura de clássicos, o educando se relacionou com o mundo imaginativo
e, ao mesmo tempo, teve como prática a importância da oralidade e a interação com o
colega de classe. Foi inegável o interesse genuíno dos alunos pelo livro de literatura, e
nesse sentido, avistava-se a concepção de um futuro leitor.

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RODA DE LEITURA: UM ESTUDO DE CASO NO MUNICÍPIO DE
SOROCABA
Giane Aparecida Sales Silva Mota, Prefeitura de Sorocaba – PMS
Maria Cristina Perez Vilas, Universidade Paulista - UNIP

Eixo Temático: Grupo Temático 11: Literatura e estratégias de leitura

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na história da humanidade, e não diferentemente na história do Brasil, a leitura,
por muitos anos foi privilégio de alguns, lazer para outros e poder para poucos,
revelando que a literatura nem sempre esteve à disposição de todos (ANDRUETO,
2017).
O tempo, como lhe é habitual, foi alterando padrões, comportamentos,
vivências, mas, se por um lado, na contemporaneidade, há pessoas que exploram
hipertextos, livros virtuais, entre outros meios midiáticos, há, por outro lado, uma parcela
da população que sequer tem acesso aos livros, jornais e revistas. Afinal, o abismo
social entre os que convivem com livros e aqueles que sequer têm a oportunidade de
tocá-los, ainda é muito grande, e não foi vencido pelo tempo.
No Brasil, não obstante, com a reforma tributária proposta, em agosto, pelo
governo vigente, que passará a arrecadar 12% sobre a receita bruta das editoras,
certamente este abismo ganhará proporções inimagináveis a curto e médio prazo. Afinal
um estudo desenvolvido pelo Banco Mundial, baseado nas edições do Pisa 299, já
revelava, em 2018, que demoraria 260 anos para o Brasil atingir o nível educacional de
países desenvolvidos em leitura; elucidando deste modo, não somente a fragilidade do
sistema educacional brasileiro, no que concerne ao trabalho cotidiano, realizado em sala
de aula, como também a quase nulidade de políticas públicas efetivas e duradouras,
necessária à promoção de leitura e formação de leitores.

299
PISA: Avaliação Internacional aplicada pela Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento (OCDE). Disponível em: digital.estadao.com.br. Acesso em 28 de fevereiro
de 2018.

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Nesse contexto histórico, social e cultural da população brasileira, buscou-se
estabelecer um olhar analítico sobre as práticas de leitura vivenciadas em uma escola
municipal de Sorocaba, no Estado de São Paulo, com alunos da faixa etária de 9/10
anos, especificamente alunos do 4º ano do ensino Fundamental I. E dentre a
observação das práticas de leitura foi proposto aos alunos a participação no projeto
Roda de Leitura.
De 2015 a 2018, o Projeto Roda de Leitura foi sugerido, pela mesma docente,
e vivenciado pelos discentes do 4º ano. Ao longo dos 4 anos, a docente experienciou a
proposta em si, bem como o efeito de sentido de alguns títulos junto as crianças,
sentindo seus gostos e rejeições, assim como adotou algumas estratégias e modificou,
quando necessário, a própria organização da roda em si, intensificando outras ações
importantes ao bom desenvolvimento do projeto.
Uma metodologia de trabalho para a realização da Roda de Leitura foi
desenvolvida junto aos alunos, assim como a utilização de alguns registros, a cada ano
letivo, se fez necessária, devido ao tamanho das turmas. Outros formulários foram
propostos para conhecer o público leitor, bem como a professora registrou falas que
emergiram espontaneamente durante a realização das leituras. E os resultados foram
bem interessantes e inusitados, tendo em vista que os investigados sempre eram outros
a cada ano. Em suma, a Metodologia da Roda de Leitura foi adotada com a intenção de
possibilitar um duplo encontro: encontro entre os pares (alunos) e o adulto (professor –
mediador de leitura); e o encontro entre o prazer de ler um livro e ter com quem
conversar sobre ele.
Uma ampla bibliografia serviu de suporte e esteio para a prática docente,
dispondo, em meio ao processo reflexivo, de um diálogo profícuo com Chambers(2007),
Andrueto(2017), Castrillon(2011), Brito (2015), Bajour(2012) Colomer(2007), entre
outros. Estes teóricos foram fundamentais para o desenvolvimento da proposta em si e
sua aplicação, uma vez que o trabalho com a leitura, no contexto escolar, não pode ser
considerado como um ato espontaneísta como muitos apregoam, como se bem
decodificar um texto fosse o propósito maior dos atos de leitura que se realizam na
escola, nem tampouco pode ser considerado como uma animação, conforme
Bajour(2012).

CONTEXTO- O LUGAR DE FALA


Sorocaba é uma cidade do interior paulista, que fica a menos de uma hora da
Capital e possui mais de seiscentos mil habitantes. Com uma taxa de escolarização

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simbólica, totalizando 98,1%, atendida por mais de 203 escolas de ensino
Fundamental300 e dispondo de um IDEB 6,7301 (relativo aos anos iniciais do Ensino
Fundamental/2020), a cidade ainda apresenta desafios no tocante à proficiência
linguística/leitora.
De acordo com os dados de 2017, disponibilizados pelo QUEDU302, dos alunos
que finalizaram o Ensino Fundamental I apenas 39% apresentaram proficiência
adequada em leitura e interpretação textual e 36% apresentaram proficiência avançada,
o que significa que 75 % das crianças utilizavam a leitura e a escrita dentro dos limites
esperados; 25 % desse alunado, ainda se encontrava com uma proficiência insuficiente
no tocante a leitura e interpretação textual. Em termos numéricos mais de 1.500 crianças
ainda não dominavam as ferramentas da linguagem, conforme o esperado.
Na rede municipal de ensino de Sorocaba, desde 2008 havia uma estrutura de
trabalho com a leitura, instituída por uma sequência didática proposta pela Secretaria
da Educação. Nessa sequência, a leitura deveria ser feita pelo professor e acontecer
todos os dias, logo no início do período letivo; considerado por seus idealizadores como
um horário nobre. Orientava-se, também, que os professores selecionassem diferentes
gêneros literários elencados na matriz curricular do respectivo ano de atendimento. E
ao longo da semana havia um momento chamado “Drops literário” no qual, tanto o
professor quanto o aluno poderiam selecionar a leitura que gostariam de realizar. Era o
momento da leitura por prazer!
Torna-se oportuno esclarecer que as escolas municipais, nessa época, não
possuíam biblioteca, mas o acervo, em algumas escolas, encontrava-se disposto em
salas de aula303. Estas salas foram revitalizadas ou implantadas a partir de um projeto
da Secretaria da Educação, em 2013. Deste modo, todas as escolas de Ensino
Fundamental ganharam investimentos no acervo, formação para estruturação deste
espaço, formação para professores que passaram a atuar, em horário complementar,
nas Salas de Leitura.

300
Dados de 2018. Fonte IBGE. Disponível em:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sorocaba/panorama. Acesso em:10.08.2020
301
Fonte INEP. Disponível em:
http://ideb.inep.gov.br/resultado/resultado/resultado.seam?cid=360880. Acesso em 16.09.2020
302
QUEDU: é um portal desenvolvido pela Meritt e Fundação Lemann, com o objetivo de dar
publicidade a qualidade do aprendizado dos alunos nas escolas públicas e cidades brasileiras,
permitindo, deste modo, o acompanhamento dos cidadãos. Site: https://www.qedu.org.br/
303
Havia escolas cujo acervo encontrava-se guardado em caixas; dentro de depósitos junto a
produtos de limpeza; em banheiros interditados; outras não dispunham de organização interna
do acervo, de modo que se os usuários organizem o espaço, era fácil manipular os livros.
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Em 2015, ao assumir uma das salas de 4º ano, a professora da turma logo
identificou as dificuldades em interpretação de textos e proficiência leitora de muitos dos
alunos que compunham o grupo. E, ao mesmo tempo, sentiu a potência de crianças
ativas, curiosas, ávidas por tornarem-se protagonistas em seu processo educacional.
Havia ali o duplo encontro entre alunos que clamavam por vez e voz e uma professora
atenta e aberta a ouvi-los. Dentre as muitas ações desenvolvidas por este grupo, por
meio das quais os alunos puderam vivenciar uma metodologia ativa de aprendizagem,
a leitura ganhou destaque e morada nas práticas cotidianas, mas de um modo diferente
do que vinha sendo oportunizado.
A professora percebia a necessidade de romper com a ideia de que a
experiência de leitura deveria ser considerada como algo utilitário, reduzida à biologia e
suas necessidades. Para ela, era limitador uma escola que só sabia executar
experimentos de leitura, explorando-os por um tempo determinado para obter um
resultado final comprovado, apoiando-se apenas na criação de técnicas e estratégias
de leitura.
Assim, do lugar da leitura obrigatória, vinculada ao gêneros que se deve
aprender; da ideia de que há horário nobre para que a “boa leitura” aconteça na escola;
da ideia de nomear um momento específico como “Drops literário”, no qual a leitura é
considerada tal qual um doce e, portanto, atrelada unicamente a representação de
prazer, fazia-se necessário mudar paradigmas e conceituações.
A professora, sozinha, repleta de dúvidas e anseios, sem aporte da equipe
escolar, procurou suplantar estas concepções que já estavam instituídas na vida de
seus alunos, ao longo dos três anos iniciais da escolarização no Ensino Fundamental,
quiçá apresentadas desde a Educação Infantil.
E deste modo, buscou em meio as vivências leitoras do cotidiano escolar,
demonstrar às crianças que ler é um direito histórico, cultural, político, que implica num
certo dever e compromisso. Posicionamento que Castrillón( 2011) reitera em seus
discursos ao mencionar, inclusive, Emília Ferreiro304
A leitura, cito novamente Emilia Ferreiro (2002) é um direito, não é um
luxo, nem uma obrigação. Não é um luxo das elites que possa ser
associado ao prazer e recreação, tampouco uma obrigação, imposta
pela escola. É um direito de todos que, além disso, permite um
exercício pleno da democracia. (CASTRILLÓN, 2011, P.19)
E, em suas práticas cotidianas, compreendia que ao organizar as situações
didáticas de Leitura (Lerner, 2002), seria capaz de “impulsionar ações que garantam a
universalização da cultura letrada”(CASTRILLÓN,2011, p.19). Uma das maneiras que

304
Ver obra de Emília Ferreiro: Passado e presente dos verbos ler e escrever. Ed. Cortez.
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essa docente encontrou para impulsionar a universalização da cultura letrada se deu
por meio da propositura do Projeto Roda de Leitura.

A RODA DE LEITURA:
Dentre as diferentes concepções de roda de leitura, a experiência apresentada
amparou-se fundamentalmente nas ideias de Chambers(2007), que elucidou que os
caminhos da Roda de Leitura são personalizados ao contexto, partindo de um tripé
estruturante: a seleção do livro, o tempo para a leitura, a conversa formal. E este tripé
foi e é sustentado pela mediação do adulto, que assume o processo como um facilitador.
Considerando tal fundamentação teórica, após muito estudo, o projeto Roda de
Leitura foi desenvolvido pela professora e iniciou em abril de 2015, envolvendo, no
primeiro ano 28 alunos.
A ideia foi apresentada “despretensiosamente” pela professora dizendo aos
alunos que, nas férias de verão, havia lido um texto divertidíssimo e que gostaria que
eles conhecessem. Como o livro não estava disponível no acervo da escola, havia a
possibilidade de comprá-lo em livrarias, sebos, e também havia a possibilidade de
emprestá-lo de um amigo. Nesse primeiro momento, um bilhete foi enviado aos pais
com a explicação, pois a reunião de pais estava distante. Metade da sala conseguiu
adquiri-lo e como a outra metade não o fez, a professora providenciou cópias de modo
que cada aluno tivesse o seu próprio texto.
Em certa manhã, a professora levou a turma até o pátio da escola e lançou os
seguintes questionamentos, cujas respostas eram anotadas em uma cartolina:
1. Como poderemos nos organizar no espaço para realizar a leitura?
2. Todos devem ler? E a professora, também?
3. Por quanto tempo leremos? De que modo a leitura deve ser realizada par
que todos acompanhem? Em voz alta?
4. Enquanto um amigo lê o que os demais devem fazer?
5. Na sua opinião é importante que cada aluno tenha um exemplar para
acompanhar a leitura?
Durante os 4 anos estas perguntas foram apresentadas a cada novo grupo e
as respostas a este encaminhamento inicial sempre foi muito parecida. Como o nome
do Projeto é Roda de Leitura, os alunos compreendiam que todos deveriam estar
sentados em uma roda, mas não tinham latente o significado disso. Oportunidade para

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a explicação da professora de que a roda não tem lados, pontas, demonstrando que a
participação de todos é importantíssima, não há alguém que é mais especial que o outro,
sejam leitores em voz alta, ou leitores silenciosos; assim como todas as questões,
inquietações são válidas e compõe o processo. Além disso, em todos os anos, os alunos
compreenderam que a oportunidade para participar como o leitor em voz alta deveria
ser dada para todos, inclusive a professora; mas que aqueles que não quisessem fazê-
lo deveriam ser respeitados, assim como quem estava lendo, afinal, conversas paralelas
não eram bem vistas no processo. Quanto ao tempo para esta atividade, a definição foi
muito interessante, pois, à princípio, eles nem imaginavam quanto tempo dedicariam a
ação e ao longo da experiência queriam sempre mais.

A SELEÇÃO DO LIVRO
O primeiro livro utilizado foi Pippi, Meia Longa, de Astrid Longbotton. A seleção
do livro se deu previamente, momento em que a professora separou algumas opções
considerando elementos textuais e discursivos que trouxessem desafios linguísticos aos
alunos, mas que trouxessem, sobretudo, acesso ao universo literário, em meio a uma
narrativa fantástica, com suas marcas peculiares. Afinal como uma menina da faixa
etária dos leitores era capaz de morar sozinha, tendo por companhia apenas um macaco
e um cavalo? Como era possível ter uma protagonista tão forte que colocava um touro
para correr e ao mesmo tempo tão sedenta de afeto e afeição, não de adultos, mas de
seus pares, de outras crianças?
A seleção do livro, portanto, partiu da experiência literária que poderia ser
oferecida a cada aluno. Experiência esta que, conforme Larossa(2003) afirma, significa
pensar a leitura como atividade que se relaciona com a subjetividade do leitor, ou seja,
não somente se relaciona com o que o leitor sabe, mas com o que o leitor é. A seleção
do livro tratou de considerar a leitura como algo que nos forma, ou seja, nos de-forma,
nos trans-forma, nos constitui, colocando em questão o que somos (LAROSSA, 2003).
A qualidade do texto literário selecionado, elucidou justamente a compreensão,
portanto, de que a leitura não é somente passatempo, mecanismo de evasão do mundo
real e do irreal, nem tampouco se reduz em meio para adquirir conhecimentos, pois
como afirma Larossa (2003, p.26) “ la lectura no nos afecta em lo próprio puesto que
transcurre em um espacio-tiempo separado: em el ócio, o em el instante que precede al
sueño, o em el mundo de la imaginación.” E isso ocorre, justamente, porque a
experiência de leitura não é limitada entre tempos e espaços, não há fronteiras. A

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experiência de leitura se concretiza por aquilo que nos passa, rizomaticamente ela se
constitui e permite ao leitor, ao seu tempo, tornar a ser o que é.
E junto ao entendimento do significado da experiência literária, a professora
trazia em si a percepção de quão sério é o momento de escolha de um livro, pois

[...] Antes de que podamos conversar sobre um libro necessitamos


haberlo leído; antes de que podamos leerlo, necessitamos elegir um
libro que ler. Y porque el libro que elijamos contendrá las
potencialidade de nuestra conversación – tema a tratar, ideas,
lenguage e imagen, incitadores de la memoria, etcétera -, su elección
es uma atividade de mucho valor. Aquellos que eligen están ejerciendo
poder. (CHAMBER, 2007, P.81)

Assim, como compreendia que era preciso conciliar o tempo da leitura, com as
demais leituras e ações escolares do grupo, que a conversa literária iniciada na Roda
de Leitura não poderia ser tratada como um ato isolado dentre as práticas semanais,
mas que, de algum modo, deveria estar articulada ao cotidiano de leitura, considerando
as especificidades do grupo, seus gostos, sua personalidade.

A LEITURA E A CONVERSA
Chambers(2007) afirma que o principal problema da leitura realizada na escola
é ter exemplares suficientes para todos os alunos. Fato sentido ao longo dos anos de
realização das Rodas de Leitura em Sorocaba.
A aquisição dos livros possibilitou para algumas famílias dos alunos envolvidos
uma outra compreensão sobre o acesso, muitos pais aprenderam sobre a existência
dos sebos como um meio sustentável para adquirir livros, outros pisaram nas livrarias
da cidade pela primeira vez e ainda houve pais que buscaram fazer a carteirinha da
biblioteca municipal para a retirada do título utilizado em sala. Essas diferentes
experiências foram compartilhadas com a professora, tanto pelos alunos, como por seus
pais, sempre muito felizes com as novas descobertas. Mas, também houve pais que
apresentaram as dificuldades financeiras para efetuar a compra do livro. Revelar o
quanto queriam realizar a compra; com olhos marejados diziam compreender a
importância do livro, mas entre o pão de cada dia e o livro para a escola, não havia outra
opção. Assim como também houve familiares que simplesmente não compraram o
material, por não considerarem importante. A leitura aqui ganhou um outro aspecto
social, que a professora sequer imaginava.
Por isso, para aqueles que não tinham o exemplar em mãos, cópias foram
reproduzidas, de modo a reduzir os problemas com o acervo de modo a garantir a cada
Roda de Leitura 1 exemplar por aluno. Contudo, no ano de 2018, a supervisora de
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ensino da unidade escolar informou que a APM305 da escola possui autorização para
realizar estas compras, fato que a professora não tinha clareza, embora o projeto já
fosse conhecido por toda a comunidade escolar.
Superados os obstáculos iniciais de acesso, uma vez por semana, fosse no início
do período, meio ou até mesmo nos momentos finais da aula, a Roda de Leitura
acontecia, iniciando, conjuntamente, a compreensão da leitura em voz alta, para além
da decodificação dos signos ou altura da voz.
Ao observarem a leitura entusiasmada e cadenciada da professora, que lia os
sinais de pontuação, manifestava os efeitos de sentido que esses sinais permitiam ao
texto; ao observarem o empostamento vocálico tão preciso a cada situação discursiva,
o posicionamento do livro que abafava ou ampliava a leitura, os alunos começaram a
incorporar essas observações e a cobrarem uns dos outros a adoção destes
procedimentos. Vez ou outra, emitindo queixumes se o outro estava lendo muito baixo,
ou quando não respeitava os sinais de pontuação.
E isso aconteceu, pois segundo Beuchat ( 2013) as crianças conhecem um
modelo de uma prática de leitura adequada quando escutam alguém que lê de forma
fluida, considerando o ritmo, a pronúncia, a entonação, e acolhendo o estilo próprio de
cada obra. A autora complementa que “en numerosas oportunidades se há podido
comprovar como lá voz del professor que lle deja huellas imborrables em la memora de
los alunos.” (BEUCHAT, 2013, p.19)
Ademais, muitos não tem clareza que a realização da leitura em voz alta, no
contexto escolar, é importante inclusive porque:

No solo es el libro,no es solo quien lee e escucha,es la relacionn que


integra a los três juntos, formando uma armonia. La experiência
constituye uma interessante instancia de socialización, pues se crea
lazos de convivência em torno a algo motivador.Se trata de um
momento de goce, em que juntos se disfruta um texto entretenido y em
torno al cual surgen emociones que se comparten. Es decir, es uma
buena ocasión para fortalecer uma comunidad lectora. Al praticar la
lectura y la narración com niños y jóvenes, una de las cosas que más
impressiona es oírlos decir que les gusta la actividad, pues es um
momento para “estar tranquilos, em que estamos juntos y disfrutamos
algo que usted nos trajo” (BEUCHAT, 2013, p.19)

Não obstante, para além da leitura em voz alta, o grupo definira que cada um
assumiria a leitura de uma página e escolheria o próximo leitor para dar continuidade.

305
APM – Associação de pais e mestres: Regida por estatuto próprio, a Associação de Pais e
Mestres (APM) tem a finalidade de colaborar no aprimoramento do processo educacional, na
assistência ao escolar e na integração família-escola-comunidade.
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Portanto, para não interromper o fluxo de leitura e a compreensão, todos precisavam
acompanhar a leitura. Como, em alguns momentos surgiam perguntas ou comentários
bem no meio do desenvolvimento da leitura. O grupo sentiu que isso atrapalhava a
compreensão do texto e um bloco de papel foi colocado no meio da roda para que cada
um, a seu tempo, diante de suas indagações, realizasse a anotação. Estes escritos eram
retomados ao término da leitura, no momento da conversa.
No início da leitura muitas perguntas sobre a definição de vocábulos era o que
mais apareciam, mas com o passar dos meses, a participação começou a ganhar outra
qualidade, surgindo comentários sobre o trecho lido, dúvidas de interpretação,
curiosidades culturais, a parte que mais chamou a atenção, o trecho ou personagem
que não gostou, quais emoções sentiu com aquele capítulo e muitos, muitos risos,
choros e sonhos com a história. Mas esta mudança não se deu de modo furtivo, porque
enquanto facilitadora, a professora assumiu o papel de mediadora de leitura.
De acordo com Leite(2011) o mediador de leitura é aquele que aproxima a
criança e o livro, preparando este encontro no tocante a qualidade do material
apresentado, da organização do espaço e mantendo-se atento as possíveis dificuldades
que nele surgir. O mediador sempre está disponível, atento, acolhendo as colocações e
os silêncios, de modo a proporcionar um momento afetivo, respeitoso, em que cada
participante, em sua singularidade, se aproxima do livro. Chambers (2007) acrescenta,
que o mediador cria as condições para que seus alunos leiam e refletiam sobre o que
leem, por meio de uma conversa organizada para isso. Cabe ao mediador a preparação
prévia da conversa e a apresentação de boas perguntas sobre o que se lê, porque mais
do que conversar sobre o texto, sobre a leitura do texto, a roda de conversa permite que
a crianças possam também “expressar-se acerca de todo lo outro que hay em sus vidas”
(Chambers, 2007, p.12).
Uma das dificuldades no início da implantação do projeto, foi compreender quais
seriam as boas perguntas para conduzir cada momento da leitura, porque conforme o
Chambers( 2007), para estabelecer uma conversa com crianças sobre a leitura, não
existe um enfoque específico, ou ainda um conjunto de regras sistematizado e rígido
porque “[...] sino simplemente una manera de formular certo tipo de preguntas que cada
aluno de nosotros puede adptar para ajustarlas a su personalidaded ey las
necessidades de sus estudiantes. (Chambers, 2007, p.13).
Ao longo dos 4 anos, mesmo que utilizando o mesmo título junto aos alunos, as
perguntas da mediação foram personalizadas para cada grupo. E deste modo, as Rodas
de Leitura chegavam a durar mais de uma hora de realização, entre a leitura em si e a

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conversa que vinha depois. Fosse no chão de uma sala de aula, no pátio da escola, em
um cantinho do estacionamento, na sombra do parque, as crianças entregavam-se a
leitura. Nesse período de aplicação não houve uma turma que se negasse a dar
continuidade à Roda de Leitura. Inclusive muitos alunos e familiares solicitavam do
docente, responsável pelo ano seguinte, a continuidade do projeto.
E as perguntas, preocupação inicial da professora, que timidamente questionava
seus alunos sobre o que gostaram do livro, começou a sentir, nos grupos com os quais
trabalhava, espaço para lançar questionamentos diversos que a cada nova situação
fluíam. Partindo de perguntas gerais, a professora sempre se reportava ao texto e
demonstrava o quanto o texto precisava ser retomada na busca de algumas respostas.
De modo, que das perguntas gerais e por vezes básicas, surgiram perguntas específicas
e especiais, que permitiram outras relações com textos conhecidos e com a própria via
pessoal.

ACERVO
No primeiro ano de implantação da Roda de Leitura, apenas o título de Astrid
Lindgreen foi lido. Nos 2 anos seguintes dois títulos foram apresentados aos alunos,
Píppi Meia Longa e As Bruxas, de Roald Dahl A repetição do título de Píppi se deu pela
qualidade da obra, mas também porque muitos alunos poderiam emprestar o livro da
turma anterior e havia cópias disponíveis. E em 2018, as Rodas tiveram início com o
Remédio Maravilhoso de Jorge, de Roald Dahl e novamente Píppi Meia Longa.
Em 2016, um aluno lançou uma pergunta muito interessante à professora:
- Professora, agora que terminamos de ler o livro, o que eu faço com ele?(aluno
Ryan, 10 anos, set/2016)
O que fazer com o livro era tão claro para a professora, que ela sequer percebeu
que não o era para a maioria de seus alunos. Muitos revelaram que tinham livros que
ganharam dos Projetos de Incentivo a Leitura; outros revelaram ter em casa um gibi e
muitos inclusive revelaram que não tinham livros em casa, pois nunca os compraram.
Nas séries anteriores os livros utilizados eram os do acervo da escola, logo parecia claro
mantê-los lá. Mas, após comprar um livro, lê-lo o que era possível fazer com ele, era
isso que o aluno queria compreender. A ele parecia que após a leitura realizada na
escola, com o término da experiência havia terminado também a utilidade do livro.
Prontamente, dentre as muitas conversas suscitadas pela Roda de Leitura, a
professora entendeu que o projeto também precisava instrumentalizar os alunos sobre
as possíveis respostas. Iniciar a biblioteca pessoal, foi para muitos a grande ideia; para

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outros ter a oportunidade de vender o livro, como os sebos fazem, o tornava tão útil
quanto durante o momento da leitura, assim como para alguns emprestar era um modo
de manter o afeto conquistado na roda de leitura, ser generoso ao compartilhá-lo, mas
ter a segurança com um prazo para seu retorno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo de 4 anos, 109 crianças puderam participar da Roda de Leitura.
Os resultados observados pela professora envolveram muito mais a
observação sobre os aspectos qualitativos, da experiência de leitura, aos quantitavos
tão esperados e organizados entre números e tabelas.
Para este projeto de leitura em contexto escolar, buscou-se, como afirma
Larossa (2002, p.20), olhar mais para o “existencial (sem ser existencialista)” e mais
para a “estética (sem ser esteticista) procurando pensar a escola e sobretudo “a
educação a partir do par experiência/sentido”.
Deste modo, conforme sugere o autor, compreendeu-se o termo experiência
como “em espanhol, “o que nos passa”. Em português se diria que a experiência é “o
que nos acontece” “(LAROSSA, 2002, p.21). Para isso, a Roda de leitura permitiu tempo
aos sujeitos envolvidos, um tempo de escuta, tempo de participação, tempo de
compreensão e aprendizagem. As descobertas estavam ali, atreladas, articuladas a um
texto físico, pleno em marcas, em aspectos, em ditos e não ditos, que puderam se
articular ao saber e não saber; unindo-se à vida. As histórias narradas por Píppi sobre
sua vida em auto mar, seu pai, bem como os argumentos que a protagonista
apresentava, geleia de Ruibarbo tão comentada pelo protagonista do livros As Bruxas,
cujo nome ninguém conseguiu localizar, a receita de remédio que misturava tudo e mais
um pouco como uma tentativa que Jorge idealizou para curar a chatice de sua avó
materna, foram vistos pelos alunos como fantasia, como fatos impossíveis na vida real,
mas compreendido e sentidos a cada capítulo como um grande encontro com o mundo.
E até mesmo quando, em 2018, alguns adultos começaram a maldizer o livro As Bruxas,
de Roald Dahl, como inapropriado por ser uma narrativa sobre bruxas, o que causaria
medo nas crianças, não foi necessário a professora partir em defesa, os próprios leitores
o fizeram, afirmando que a história de bruxas era apenas uma história, o que lhes dava
medo de verdade, era o que eles viam no jornal. A experiência de leitura foi singular,
única, e vive-la em contexto escolar, foi permeada de múltiplos sentidos, singularidades
e sobretudo, humanização.

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Além disso, nesse tempo, inúmeros objetivos foram alcançados, dentre os
quais podemos citar: o fortalecimento do percurso de formação do leitor, que durante
um ano foi considerado ativamente pela professora, que planejou ações para esta
conquista. No ano de 2017, 02 alunos que iniciaram o ano letivo sem saber ler e escrever
convencionalmente, finalizara o ano alfabetizados. A emoção foi tamanha, que a
professora não segurou as lágrimas ao ouvir o aluno M. ler pela primeira vez, em
meados de agosto, um das páginas do livro As Bruxas; a conquista de Ler para o outro;
de conseguir se concentrar e Ouvir a leitura, de modo a acompanhá-la, de Ajustar o que
ouvia ao que observava nas páginas; de ajustar a Altura da voz para leitura
compartilhada; de apropriar-se dos aspectos discursivos do texto escrito(narrador,
discurso direto ou indireto, tempo verbal, pontuação, estrutura frasal); de ler com
autonomia, até mesmo em casa, na ânsia de querer mais e mais da história; de
Interpretar o que lia; de conseguir Ler em voz alta; de descobrir marcas culturais por
meio da literatura; de aprender o legado de outras culturas e de ter a oportunidade de
ler um texto de literatura infantil de qualidade;
Mas, de todos os resultados alcançados, evidenciou-se como é possível à
escola garantir o direito à leitura de textos literários na própria sala de aula organizando,
por meio de um estudo aprofundado sobre leitura, literatura e mediação de leitura,
situações didáticas em um projeto que permitiram o encontro entre o livro, a leitura e a
literatura, porque, como diria Candido(1995), a literatura é “uma necessidade universal,
que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito.”

REFERÊNCIAS:

ANDRUETTO, Maria Teresa. A leitura, outra revolução. São Paulo: Edições Sesc,
2017.

BAJAR, Élie. Da escuta de textos à leitura. São Paulo: Editora Cortez, 2014.

BAJOUR, Cecilia. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. São
Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.

BEUCHAT, Cecilia. Éstan los libros, están los niños... Consideraciones sobre la lectura
em voz alta. In : A viva voz – leitura em voz alta. Ministerio de Educación de Chile:
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São Paulo: Duas Cidades, 1995.
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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
O “ERA UMA VEZ” ... NUNCA MAIS SERÁ O MESMO: CONTOS
CLÁSSICOS (RE)CONTADOS POR TORERO

BALSAN, Silvana Ferreira de Souza, (UNESP/CELLIJ/PRESIDENTE


PRUDENTE)

SOUZA, Renata Junqueira de (UNESP/CELLIJ/PRESIDENTE PRUDENTE)

Eixo Temático 11: Literatura e estratégias de leitura

PARA INICIO DE CONVERSA...

Atualmente, debate-se a importância da leitura para o desenvolvimento de uma


sociedade na qual as informações estão disponíveis em diferentes meios de
comunicação, no entanto, não há como negar que o ensino da leitura tem encontrado
muitos embates para efetivar-se e que o processo de alfabetização pelo qual os sujeitos
perpassam não é suficiente para ajudá-los a tornarem-se leitores proficientes, pois de
acordo com o Relatório Preliminar do Inaf (Indicador do Alfabetismo Funcional) de 2018,
cerca de 3 em cada 10 brasileiros são analfabetos funcionais, isto é, são “pessoas que,
apesar de terem frequentado a escola e ‘aprendido’ a ler e a escrever, não podem utilizar
de forma autônoma a leitura e a escrita nas relações sociais ordinárias”. (SOLÉ, 1998,
p.32).
Os dados acima evidenciam que, uma grande parte da população brasileira,
decodifica textos curtos e simples, mas não compreende as informações implícitas, por
isso, faz-se cada vez mais necessário a incorporação e implementação de situações de
aprendizagem que sejam intencionalmente pensadas e elaboradas para que as crianças
aprendam como um leitor se relaciona com o escrito e o compreende. Nota-se, a partir
dos dados que há uma distância muito grande entre a formação leitora proposta na
escola e o leitor real inserido em nossa sociedade.
Os estudos Harvey e Goudvis (2007), Keene e Zimmerman (2007), Girotto e
Souza (2010) têm demonstrado que ler é um ato que vai muito além do decodificar
símbolos, pois a leitura pressupõe a capacidade do sujeito de interpretar a informação
recebida, estabelecendo conexões entre os conhecimentos que ele possui com aqueles
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Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil “Maria Betty Coelho Silva"
Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
que estão em construção. Nesse sentido, afirmamos que a leitura não é uma atividade
natural e inerente ao ser humano, isto é, nós não aprendemos a ler espontaneamente,
mas através de um ensino intencional e sistemático que se dá na escola.
Logo, concordamos com os autores citados e concebemos que se faz necessário
alterar a visão de leitor dentro do ambiente escolar; uma vez que, ao longo da história,
o ledor foi visto como um ser passivo e receptor de conhecimento, no entanto
atualmente concebe-se que o ato de ler requer a participação ativa do sujeito, o qual
constrói sentido por meio de um profícuo diálogo entre o texto, o leitor e o escritor.
Assim, afirmamos que o presente texto origina-se de um recorte de uma
pesquisa de doutorado, do Programa de Pós-graduação em Educação, da FCT-UNESP,
de Presidente Prudente/SP, intitulada Nas veredas da leitura: ações para a formação de
leitores autônomos, cujo objetivo era compreender como o processo de múltiplas ações
de leitura articuladas entre si influenciaria na formação de leitores autônomos, cuja
metodologia utilizada constou de uma pesquisa-ação, aplicada em uma turma de 4º ano
do Ensino Fundamental de uma escola pública municipal do interior do estado de São
Paulo.
Uma das ações de leitura propostas aos estudantes foi a Oficina de estratégias
de leitura, que se trata de uma ação de leitura composta por quatro momentos: a aula
introdutória ou modelagem, a prática guiada, a leitura independente e a partilha em
grupo e avaliação. Nesta ação de leitura, nós apresentamos as estratégias de leitura
americanas denominadas de: visualização; conexão (texto-texto, texto-leitor e texto-
mundo), perguntas ao texto, previsão, inferência, sumarização e síntese.
Neste texto, nós discutiremos a estratégia de inferência, que é resultante da
relação que o leitor estabelece entre o conhecimento prévio dele e as pistas do texto,
que originam a compreensão do documento escrito. Para embasar nossas atividades,
selecionamos o livro O patinho feio que na verdade não era patinho e nem feio, do autor
José Roberto Torero (2011) e concluímos que a Oficina de estratégias de leitura pode
possibilitar ao leitor aprender a articular os diversos indícios existentes no texto e o
conhecimento prévio dele e assim possibilitar que ele exerça papel ativo ao longo do
ato de ler.

A OFICINA DE ESTRATÉGIAS DE LEITURA: DEFININDO CAMINHOS

A partir de nossas reflexões anteriores propomos na sala de aula o ensino de


leitura a partir da Oficina de estratégias de leitura que se trata de uma ação de leitura O
modelo de ensino dessas estratégias proposto por autores como Harvey e Goudvis
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Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil “Maria Betty Coelho Silva"
Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
(2007), e Girotto e Souza (2010), pressupõe quatro momentos, sendo o primeiro
denominado de aula introdutória, na qual o docente faz uma instrução explícita e curta,
apresenta aos alunos uma ou duas estratégias de compreensão do texto de forma
direta, demonstrando como um leitor proficiente faz uso dela efetivamente. O professor
modela em voz alta os pensamentos que passam por sua mente, revelando às crianças
os seus raciocínios para compreender o escrito.
Em seguida, Girotto e Souza (2010) descrevem o período no qual o educador
e os alunos colocam em prática a estratégia. Esse momento divide-se em duas etapas:
prática guiada e leitura independente. A prática guiada, como o próprio nome indica,
caracteriza-se quando o docente, por ser o leitor mais experiente, orienta os estudantes
individualmente ou em grupos, ensinando-os a utilizar de forma independente a
estratégia estudada. Já a leitura independente é o momento no qual o estudante coloca
em prática as estratégias explicitadas pelo docente.
A etapa final das oficinas de leitura é a avaliação e a conversa em grupo sobre
o texto lido, porque “[...] o professor precisa ainda retomar o processo de leitura a fim de
verificar o quê, para quê, como e em que momento os alunos utilizaram a referida
estratégia de leitura.” (GIROTTO; SOUZA, 2010, p. 63). Assim, esse instante serve para
que o educador possa avaliar se os objetivos propostos para a atividade foram
alcançados, através da recepção dada pelos discentes e o envolvimento dos mesmos,
no momento da leitura. Destacamos que, na avaliação, o docente pode adotar alguns
recursos avaliativos, como cartazes, gráficos organizadores etc., com o objetivo de que
os estudantes possam tomar “[...] consciência da estratégia mobilizada na
compreensão.” (GIROTTO; SOUZA, 2010, p. 63).
No decorrer destas quatro etapas, o docente apresenta aos alunos as
estratégias de leitura americanas denominadas de: visualização; conexão (texto-texto,
texto-leitor e texto-mundo), perguntas ao texto, previsão, inferência, sumarização e
síntese.
Embora a atividade de natureza metacognitiva seja individual, é possível propor
práticas, a partir da experiência com diversos tipos de texto, que desenvolvam e
aprimorem esses procedimentos, familiarizando o aluno com as estratégias, pois,
[...] se os leitores proficientes são capazes de descrever suas
próprias estratégias, então há pelo menos a possibilidade de se
ensinar essas estratégias aos leitores que não as possuem
embora a atividade de natureza metacognitiva seja individual é
possível propor práticas, a partir da experiência com diversos
tipos de texto, que desenvolvam e aprimorem estas estratégias
familiarizando o aluno com as mesmas. (LEFFA, 1996, p. 53).

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
Destarte podemos dizer que para ler de forma eficaz, os estudantes precisam
entender quais estratégias eles têm disponíveis e ter noção sobre quais delas são as
mais adequadas para utilizar naquele momento especifico do ato de ler.
Em consonância com Girotto e Souza (2010), adotamos as estratégias de
leitura metacognitivas, denominadas por conhecimento prévio, conexão, inferência,
visualização, perguntas ao texto, sumarização e síntese.

 Conhecimento Prévio: é considerado por vários autores como a


estratégia “guarda-chuva”, pois o leitor ativa conhecimentos que já possui com
relação ao que está sendo lido a todo o momento.

 Conexão: o leitor faz conexões entre o conhecimento que ele já possui e


o que está lendo, ou seja, permite ao leitor relembrar e relacionar fatos importantes
de sua vida, de outros textos lidos e de outras situações que estão ocorrendo no
mundo, em seu país ou sua cidade, ajudando, assim, o leitor a compreender melhor
o texto em questão.

 Inferência: é quando o leitor percebe as informações que não estão


explícitas no texto. Uma inferência é a leitura implícita realizada no ato de ler o que
permite entender e compreender o texto.

 Visualização: é o processo que o leitor faz ao criar ilustrações em sua


mente em relação à leitura das palavras presentes no texto.

 Questionamento: o leitor faz perguntas ao texto para compreender o


enredo da história; pode ainda fazer perguntas ao autor e a si mesmo.

 Sumarização: é o ato de determinar o que é importante e o que é detalhe


num texto, de acordo com a análise das informações presentes no escrito lido.
 Síntese: ocorre quando o leitor articula o texto lido as suas impressões
pessoais, reorganizando-as internamente a partir de suas experiências e vivências.

Partimos do pressuposto que o papel do docente é expor para os discentes em


voz alta os pensamentos que estão em sua mente, compartilhando com os estudantes
o que está ocorrendo em seu cérebro no ato da leitura. Portanto, o educador pode “[...]

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
oferecer à criança as técnicas, os segredos utilizados pelo professor quando lê e
escreve, de modo que ela possa se apropriar progressivamente dos mesmos” (SOLÉ,
1998, p. 63).
No próximo item trataremos da estratégia de inferência, a partir de uma obra
literária.

ESTRATÉGIAS & OS CLÁSSICOS (RE)CONTADOS POR TORERO

Para exemplificar a nossa proposta de Oficina de leitura, selecionamos o livro


O patinho feio que na verdade não era patinho e nem feio, de José Roberto Torero e
Marcus Aurelius Pimenta. Essa história constitui versão lúdica do conto clássico O
patinho feio, e convida o leitor a participar da história, “adivinhando” qual bicho vem a
seguir, isto é o livro oferece as pistas sobre o animal e a partir dos conhecimentos
prévios, ele fará a inferência sobre qual animal é descrito.
No dia em que realizamos a leitura da obra, estavam presentes 17 crianças, as
quais foram registrando as estratégias realizadas.

Figura 1: Capa do livro selecionado.


Fonte: Google imagens, 2015.

Na aula introdutória realizamos a leitura inicial, destacando para as crianças as


pistas fornecidas ao longo do texto, pelos autores, e fizemos isso até a página treze do
volume. Enfatizamos que tais palavras e expressões ajudavam o leitor a inferir qual
bicho seria o próximo a participar da história. Dessa maneira, as crianças traziam à tona
os conhecimentos prévios que elas possuíam sobre animais que nasciam de ovos,
através das descrições oferecidas na obra.
Para executar a etapa da leitura independente, nós digitalizamos o livro e
reformulamos o texto nos slides, excluindo o nome dos animais e deixando apenas as

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
partes que revelavam as características de cada personagem apresentada na obra,
conforme modelo abaixo:

Figura 2: Páginas modificadas para trabalhar a estratégia.


Fonte: José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. (2011, p. 26-27).

Para fazer a leitura independente, as crianças preencheram um gráfico


organizador dividido em três partes: na primeira, vinha o trecho do enredo modificado
por nós, no segundo espaço, havia um balão de pensamento no qual os estudantes
deveriam anotar quais conhecimentos eles usaram, para pensar sobre o animal;
finalmente, no quadrado, os alunos tinham que relacionar as pistas lidas no texto com
os conhecimentos prévios recuperados por eles e anotar ali as inferências realizadas.

Figura 3: Gráfico organizador para trabalhar inferência.


Fonte: A própria autora, 2015.

DETALHES DO TEXTO ESQUEMAS NA MINHA CABEÇA MINHAS INFERÊNCIAS

Suas penas eram bem brancas, o pescoço, muito


comprido, e as asas, lindas e longas.
Então o Patinho disse:
__ Caramba, eu sou bem mais bonito que
vocês!
__ Se você quiser, agora que já não é tão
desengonçado, pode voltar a viver com a gente –
disse um dos patos.
__ De jeito nenhum! – respondeu o Patinho Feio. __
Agora eu é que não quero ficar do lado de uma turma
tão feia.

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Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
A partir das repostas dadas pelos alunos, montamos o quadro abaixo, de sorte
a evidenciar ao leitor quais pistas do enredo eles usaram, para realizar a estratégia de
inferência, em quais conhecimentos prévios as crianças se basearam, ao ler o texto e
como elaboraram as inferências, a fim de compreendê-lo.

INFERÊNCIAS
CRIANÇA DETALHES DO TEXTO ESQUEMAS NA MINHA MINHAS
(realizado pela criança) CABEÇA INFERÊNCIAS
ANGS Esse bicho é bem No meu tablete eu tenho Ornitorinco
estranho. Ele nasce em um jogo desse bicho e
ovos, tem pelo, bico de também tem o desenho
pato e cauda de castor. na tv.
BAT Esse bicho é bem Tem um programa que hornitorinco
estranho. Ele nasce em fala sobre ele chamado
ovos, tem pelo, bico de Animal
pato e cauda de castor.
BKO Esse bicho é bem Eu vi na TV que os ornitorrinco
estranho. Ele nasce em ornitorrincos nascem de
ovos, tem pelo, bico de ovos, tem bico de pato e
pato e cauda de castor. cauda de castor.
CCM Esse bicho é bem Já vi um filme em que o Ornitorinco
estranho. Ele nasce em personagem era igual a
ovos, tem pelo, bico de este.
pato e cauda de castor.
GUP Esse bicho é bem Eu já vi na televisão hornitorinco
estranho. Ele nasce em
ovos, tem pelo, bico de
pato e cauda de castor.
GLD Esse bicho é bem Eu já assisti um desenho Ornitorinco
estranho. Ele nasce em que tem um animal com
ovos, tem pelo, bico de as mesmas
pato e cauda de castor. características.
IMC Esse bicho é bem Ornitorrinco
estranho. Ele nasce em
ovos, tem pelo, bico de
pato e cauda de castor.
JJBJ Esse bicho é bem Já vi no desenho Ornitorrinco
estranho. Ele nasce em
ovos, tem pelo, bico de
pato e cauda de castor.
LBS Esse bicho é bem Eu me lembrei do Ornitorrinco
estranho. Ele nasce em ornitorrinco, porque ele
ovos, tem pelo, bico de tem essas características
pato e cauda de castor.
MCLB Esse bicho é bem Cauda de castor me Hornitorrinco
estranho. Ele nasce em lembra um honitorrinco
ovos, tem pelo, bico de porque no desenho
pato e cauda de castor. Phineas e Ferb aparece
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um e é quase igual o que
eu visualizei.
WLN Esse bicho é bem Eu vi na TV o animal que Ornitorinco306
estranho. Ele nasce em ele nasceu de ovos, com
ovos, tem pelo, bico de bico de pato e cauda de
pato e cauda de castor. castor
Figura 1: Dados destacados e conhecimentos dos alunos para inferir.
Fonte: A própria autora, 2015.

Os destaques em amarelo são as pistas presentes no texto que junto ao


conhecimento prévio utilizado pelos discentes possibilitou que eles fizessem a inferência
das respostas corretamente.
Encontramos, no livro, a descrição do ornitorrinco, o qual foi retratado da
seguinte forma: “Esse bicho é bem estranho. Ele nasce em ovos, tem pelo, bico de pato
e cauda de castor.” (TORERO; PIMENTA, 2011, p. 30). Ao propormos a obra,
acreditávamos que as crianças não saberiam qual animal seria esse, todavia, do total
de 18 crianças que estavam no dia da oficina, 11 estudantes inferiram que ele era o
bicho retratado, isto é, aproximadamente 62% dos discentes possuíam conhecimentos
anteriores sobre ele e, por isso, conseguiram inferir.
Na última etapa, denominada de avaliação, nós solicitamos que aquelas
crianças que porventura tivessem inferido erroneamente completassem o gráfico com
lápis de cor, conforme discutíamos os trechos que sinalizaram quais bichos seriam.
Entretanto, achamos intrigante a quantidade de crianças que tinham acertado o
ornitorrinco, pois, em nossa memória, tínhamos descoberto o que era esse bicho apenas
quando adulta, em virtude da Olímpiada de Sidnei, ocorrida no ano de 2000.
Já as crianças, no entanto, demonstraram que essa espécie animal já fazia
parte do repertório prévio delas, o que nos instigou a refletir sobre as diferenças de
conhecimentos prévios existentes entre alunos e alunos, e entre o professor e os alunos,
pois, em diversos momentos, no decorrer da pesquisa, as crianças evidenciaram possuir
uma variedade grande de conhecimentos que muitas vezes a escola não leva em
consideração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho com as estratégias de leitura possibilita que a sala de aula se torne


um local no qual haja diálogo e interação entre todos, o que pode acarretar a geração e
a ampliação dos conhecimentos, através das trocas de experiências, de maneira a

306
Mantivemos a escrita original das crianças, conforme o registro feito por elas no Gráfico
Organizador.
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desenvolver uma relação de troca de conhecimentos, horizontalmente, porque todos os
envolvidos trazem contribuições ao diálogo relacionado às leituras propostas.
as estratégias de leitura contribuíram para que os discentes assumissem um
papel mais ativo, em face dos textos, pois revelaram que eles recorreram às estratégias
e as colocaram em prática, ora em momentos vivenciados individualmente, ora
coletivamente, incorporando esses procedimentos às suas práticas de leitura.
Importante salientar a função dos gráficos organizadores, pois constituíram
importantes recursos de registro e ajudaram os estudantes a partilhar seus
pensamentos com os outros colegas. Além disso, as crianças explicitaram, em voz alta,
como elas colocaram em prática a(s) estratégias(s), isto é, quais conhecimentos prévios
e quais pistas do texto usaram para elaborar os sentidos e compreender o texto. Tais
procedimentos evidenciaram que os alunos se transformaram em sujeitos de suas
próprias aprendizagem, pois, paulatinamente, eles foram tomando consciência sobre os
pensamentos e tornando-se leitores estratégicos.
Salientamos, no que tange as estratégias, que as obras de José Roberto Torero
e Marcus Aurelius Pimenta possibilitam ao docente introduzir a metodologia das Oficinas
de leitura, permitindo assim, que as diversas estratégias de leitura sejam ensinadas para
crianças pelo professor.

REFERÊNCIAS

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Estratégias de leitura: para ensinar alunos a compreenderem o que leem. In: SOUZA,
Renata Junqueira de (Org.). Ler e compreender: estratégias de leitura. Campinas:
Mercado de Letras, 2010.

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2007.

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comprehension in a reader´s workshop. Portsmouth: Heinemann, 2007.

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Alegre: ARTMED, 2002.

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TORERO, José Roberto; PIMENTA, Marcus Aurelius. O patinho feio que na verdade
não era patinho e nem feio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

1982
Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil “Maria Betty Coelho Silva"
Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
FORMAS DE LEITURA: REFLEXÕES ACERCA DA
EPISTEMOLOGIA OCIDENTAL E NÃO-OCIDENTAL

Elizabete Carolina Tenorio Calderon, pós-graduação - UNIFESP

Eixo Temático: Grupo Temático 11: Literatura e estratégias de leitura

Considerações iniciais
O presente artigo parte de uma pesquisa literária mais ampla na qual se
pretende compreender a estrutura narrativa de uma antologia de narrativas oriundas da
tradição oral de povos nativos da região sul da África. O objeto da referida pesquisa é o
livro South-African Folk Tales, do escritor James A. Honey. Devido ao contexto de sua
origem, a obra traz consigo narrativas provenientes da tradição oral de povos Khoisan.
É relevante informar que o uso da expressão "não-ocidental" não está relacionado
exclusivamente a uma delimitação geográfica, mas às peculiaridades da cultura dos
grupos étnicos ocasionadas devido ao seu isolamento em relação a cultura ocidental.
O autor (HONEY, 1910) explica que parte das narrativas foram extraídas de
publicações inglesas anteriores a 1880, outras são traduções de versões em holandês
enquanto algumas são memórias de sua infância. Contudo, dada a falta de
especificações, é preciso frisar que não é possível afirmar com exatidão a origem exata
de cada uma das narrativas. Não obstante, a antologia possui versões distintas de
alguns contos identificadas pelo autor em seu índice e no título do conto como "Outra
versão da mesma história", o que caracteriza o processo de movimentação da
transmissão oral.
Uma vez que as narrativas foram concebidas por meio da tradição oral, é
pertinente aos estudos literários uma maior compreensão do pensar não-ocidental que
permeia a gênese da obra. Portanto, se faz necessária uma abordagem que respeite a
epistemologia sul africana. Diante do exposto, este estudo tem por objetivo apresentar
concepções distintas da leitura propondo uma reflexão acerca da concepção
1983
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epistemológica ocidental e não-ocidental da leitura por meio de um levantamento
bibliográfico composto por teóricos ocidentais consagrados, como Vincent Jouve,
Umberto Eco e Paul Zumthor. O aporte da concepção não-ocidental de leitura contou
com o professor universitário queniano Ngũgĩ Wa Thiong'o, o crítico nigeriano Isidore
Okpewho e o acadêmico literário nigeriano Amadou Hampâté Bâ.
Apesar de se firmarem como percepções distintas, os conceitos de leitura
ocidental e não-ocidental possuem, evidentemente, diversos elos comunicativos e
associativos. Não se quer aqui, portanto, expressar um binarismo estanque e simplista
entre o oral e o escrito, mas traçar pontos relevantes de contraste entre concepções de
leitura. Nas palavras de Zumthor:
Parece-me, hoje, evidente que a dicotomia oral-escrito, proposta por
McLuhan há quarenta anos, e, depois, de forma mais sutil por Walter
Ong, nos anos 1970, não pode ser mantida rigorosamente como tal.
No que concerne à minha posição pessoal, vou fazer comentários de
uma outra ordem, mas ambas se conjugam, porque a primeira designa
a base subjetiva da segunda. (ZUMTHOR, 2002, p. 13)

A leitura ocidental
A leitura jamais poderá ser confundida com uma ação passiva, de modo que
um dos seus principais aspectos é o seu caráter ativo que dá ao sujeito a função de
agente de um movimento dinâmico e múltiplo (CHARTIER, 1993; JOUVE, 2002;
ZUMTHOR, 2002). Ademais, para além de um meio, ela é também uma finalidade, pois
sem leitura, não há literatura (BABO, 1993; MARTHE, 1977). Portanto, a leitura leva à
literatura e a literatura leva o indivíduo a um pensar crítico acerca das questões da
humanidade, como a violência e a pobreza (HANSEN, 2017). Zumthor, por sua vez,
valoriza o aspecto sensorial e, consequentemente, o engajamento ativo do corpo no ato
de ler, que é
a apreensão de uma performance ausente-presente; uma tomada da
linguagem falando-se (e não apenas se liberando sob a forma de traços
negros no papel). A leitura é a percepção, em uma situação transitória
e única, da expressão e da elocução juntas" (ZUMTHOR, 2002, p.56).

O autor e crítico Umberto Eco (2013) compreende que a obra se comunica com
o leitor por meio de uma coerência interna. Tal comunicação pode levar a um acordo
tácito, situando o leitor na narrativa e dando-lhe a escolha de aceitar ou não a proposta
do autor que pode estar alinhada às suas características de leitor (ECO, 2013). Desse
modo, o leitor interroga a obra e faz com que o livro se reescreva (PROUST, 1998).
Uma vez enunciada a característica ativa da ação leitora, é pertinente avançar
para seu aspecto dinâmico. O caráter dinâmico da leitura demanda que ela jamais seja
praticada de modo anacrônico, logo, a obra requer que o leitor a contextualize (JOUVE,
1984
Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil “Maria Betty Coelho Silva"
Anais Eletrônicos: E-book de artigos – ISBN: 978-65-990822-7-6
2002). Para tal, é preciso destacar o livro interior do leitor, que não se limita às leituras
anteriores, mas também inclui as experiências vivenciadas pelo leitor bem como sua
personalidade (BAYARD, 2007). Logo, o processo que leva a identificação da coerência
interna do texto e ao questionamento do autor feito pelo leitor acontece principalmente
por meio do conhecimento de mundo particular do leitor.
As propriedades da leitura não se limitam ao movimento leitor-obra, pois a ação
leitora também se externaliza invertendo esse deslocamento e provocando a direção
obra-leitor. Esse processo de intervenção da obra no sujeito pode ser percebido nas
falas de Bloom (2001) e Hansen (2017), segundo as quais a leitura contribui com a
capacidade de reflexão do indivíduo. Desse modo, a leitura é dialética devido ao fato de
intervir no mundo do leitor, articular-se com seus saberes e, consequentemente, ter
potencial para promover mudanças diferentes a cada imersão em uma mesma obra.
Quanto à releitura, Jouve (2002) compreende que, apesar de ela contrariar
interesses comerciais e ideológicos da sociedade consumista, se faz necessária, pois a
releitura agrega novas conexões a narrativa. É de notório saber que a releitura não é
uma prática comum a todas as obras impressas; contudo, o que dizer acerca da ficção
de tradição oral cuja principal característica é a repetição das narrativas? Nesse
contexto, uma reflexão acerca dos pensamentos de teóricos ocidentais como Eco
(1994), Jouve (2002), Proust (1998) e Bloom (2001) permite inferir que o narrador
performático de povos de tradição oral é, pela natureza de sua ação, um leitor
proficiente, uma vez que sua formação se deu inserida na prática de transmissão
geracional na qual a narração performática acontece sem acesso a um registro
impresso.
Antes de adentrar a perspectiva não-ocidental da leitura, há uma
contextualização pertinente das nuances ocidentais sobre a leitura. Após discorrer sobre
alguns impactos da reforma católica na leitura, o historiador francês Roger Chartier
explica que "(...) o ato de ler não pode anular-se no próprio texto, assim como as
significações não podem também ser aniquiladas mediante a significados impostos. A
aceitação de mensagens e modelos sempre opera através de ajustes, combinações ou
resistências" (CHARTIER, 1993, p.234). Nesse sentido, o dinamismo do processo de
compreensão descrito por Chartier se aproxima da abordagem linguística de Bakhtin
sobre o texto oral:
Toda compreensão da palavra viva, do enunciado vivo é de natureza
ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante
diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela
forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A
compreensão passiva do discurso ouvido é apenas um momento
abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena, que se
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utiliza na subsequente resposta em voz real e alta. (BAKHTIN, 2003,
p. 271)

A compreensão da palavra é um processo de construção de sentido que pode


ser direcionado tanto à palavra grafada como à palavra ouvida. Ou seja, tanto o texto
escrito quanto o oral demandam recepção. Logo, ao ser "prenhe de resposta", a
compreensão demanda tempo e é um processo ativo que não se dá de modo
instantâneo ou automático, está em consonância com o caráter dialético da leitura
embasado no entrelaçamento de concepções dos autores ocidentais citados. Desse
modo, a compreensão/leitura de Bakhtin pode ser vista como complementar em relação
às fundamentações apresentadas de Bloom (2001), Jouve (2002), Eco (1994 e 2013) e
Proust (1993).
Uma vez tratada a leitura conforme a perspectiva de alguns teóricos ocidentais
conhecidos, seria coerente e lógico situar sua concepção no contexto não-ocidental sul-
africano, que possui maior interesse enquanto objeto de estudo da presente pesquisa.
Contudo, é inviável adentrar a epistemologia de povos não-ocidentais africanos sem
fundamentar a definição e a importância da oratura. A leitura, enquanto prática não-
ocidental abordada nesta pesquisa, engloba povos iletrados, ou seja, aborígenes cujo
acesso à ficção acontece por intermédio da oralidade. Para além da mudança da forma
de registro textual, a oratura permeia a epistemologia do saber destes povos. Logo, a
compreensão da oratura se faz imprescindível para abordar a leitura e,
consequentemente, a literatura não-ocidental.

A literatura oral x oratura

A tradição oral constitui um dos principais meios de transmissão da visão de


mundo contida na cultura de origem de um povo (BÂ, 2010, NGUGI, 1997; FINNEGAN,
2012). A narrativa performática advinda da tradição oral é concebida pelo pesquisador
sul-africano de narrativas de grupos Khoisan, Michael Wessels, pela antropóloga
inglesa Ruth Finnegan (2012) e pelo autor e crítico nigeriano Isidore Okpewho (1992)
como literatura, no caso, "literatura oral", mais especificamente. Wessels propõe que:
Folktales and myths are literature by virtue of their relationship with
tradition and by a perceived similarity with other cultural products from
around the world. This sort of literature is frequently identified with
orality. It is not only traditional literature, it is oral literature307.

307
Contos folclóricos e mitos são literatura pela virtude de sua relação com a tradição e por uma
similaridade percebida com outros produtos culturais de todo o mundo. Esse tipo de literatura é
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Ruth Finnegan (2012), por sua vez, alega que não há necessidade de segregar
as artes letradas e não letradas. Para a autora, é preciso considerar que: "literary models
of (in effect) a few centuries in the Western world, which happen to be based on writing
and more especially on printing, may not in fact exhaust all the possibilities of literature."
308

Segundo Okpewho (1992), o fato de pesquisadores não terem abordado os


contos advindos da tradição oral africana como literatura resultou em perdas nos
estudos realizados, pois povos que não praticavam a escrita como centro de sua
expressividade tinham sua cultura literária ignorada pelos pesquisadores. Além disso, a
literatura africana possui uma inegável e intrínseca relação com a oralidade (BÂ, 2010;
IRELE, 1993; OKPEWHO, 1992; FINNEGAN; 2012). Diferentemente de Finnegan e
Wessels, Okpewho não ignora a existência do termo oratura, pois em African Oral
Literature: Backgrounds, Character, and Continuity (1992), o autor explica que o termo
oratura constitui uma forma de enfatizar o caráter oral da literatura oral.
Segundo African Folklore - An encyclopedia (PEEK e YANKAH, 2004), a
oratura é uma denominação atribuída às formas de arte africanas baseadas na
oralidade. A oratura também pode ser compreendida como uma negação da literatura
(IGNATOV, 2016, KABORÉ, 2014, THIONG'O, 2010). Portanto, antagonicamente, se
por um lado, pesquisadores curam o termo literatura oral visando enobrecer a
transmissão oral dos povos não ocidentais, por outro, em "Notes Towards a
Performance Theory of Orature" (2010), o escritor e crítico queniano Ngũgĩ Wa Thiong'o
explica a origem do termo oratura como uma forma de rejeitar a literatura:
The term orature has been used variously since the Ugandan linguist
Pio Zirimu coined it in the early seventies of the last century to counter
the tendency to see the arts communicated orally and received aurally
as an inferior or a lower rung in the linear development of literature. He
was rejecting the term oral literature309.

frequentemente identificado com a oralidade. Não é apenas literatura tradicional, é literatura oral.
(WESSELS, 2012, p.39, tradução nossa).
308
(...)modelos literários (com efeito) de alguns séculos no mundo ocidental, que se baseiam na
escrita e, mais especialmente na impressão, não possam de fato esgotar todas as possibilidades
da literatura (FINNEGAN, 2012, p. 19, tradução nossa).
309
O termo oratura tem sido usado de várias maneiras desde que o linguista ugandês Pio Zirimu
o cunhou no início dos anos setenta para contrariar a tendência de ver as artes comunicadas
oralmente e recebidas auditivamente como um degrau inferior ou anterior ao desenvolvimento
linear da literatura. Ele estava rejeitando o termo literatura oral. (THIONG'O, 2010, p. 4, tradução
nossa)
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Segundo o autor (2010), a rejeição ao termo literatura se justifica pelo fato de
a oratura não precisar ser aprovada pela literatura, pois sua natureza não possui
fronteiras entre formas artísticas distintas, tendo a performance como seu cerne. Logo,
a literatura, enquanto expressão artística ocidental e dominante – por ser objeto de
adoração dos países colonos- não possui domínio sobre a oratura.
Assim como o capítulo "A tradição viva", do escritor malinês Amadou Hampâté
Bâ (2010), "Notes towards a Performance Theory of Orature", de Thiong'o (2010) traz
uma abordagem do saber enquanto unidade concebido por um todo maior e mais
complexamente emaranhado que a mera união das partes. Ambos compreendem que
a transmissão do saber africano não acontece em momentos previstos e estruturados
para o ensino, mas por meio da vivência de experiências que estão profundamente
integradas umas com as outras de modo que elementos distintos frequentemente
dissociados no modo de pensar ocidental coexistem harmoniosamente em uma
"Unidade primordial" (BÂ, 2010, p.169). Tendo em conta a epistemologia africana, a
oratura não pode ser compreendida como mera transmissão oral, pois ela deve ocorrer
por meio da performance: a totalidade assumida pela oratura conecta elementos
distintos como a natureza, o nutrir e o sobrenatural (THIONG'O, 2010).
Em uma perspectiva semelhante, Paul Zumthor argumenta que "o que há
séculos denominamos literatura é uma das manifestações culturais da existência do
homem" (ZUMTHOR, 2002, p. 46). O teórico relativiza objetivamente o uso do termo
“literatura” em Performance, Recepção, Leitura:

Nessa tarefa de desalienação crítica, o que tenho de eliminar logo é o


preconceito literário. A noção de "literatura" é historicamente
demarcada, de pertinência limitada no espaço e no tempo: ela se refere
à civilização européia, entre os séculos XVII ou XVIII e hoje. Eu a
distingo claramente da idéia de poesia, que é para mim a de uma arte
da linguagem humana, independente de seus modos de concretização
e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas.
(ZUMTHOR, 2002, p. 12)

A escolha por não imperar por um uso trans-histórico e universalizante do termo


“literatura” acontece ao mesmo tempo que a recusa da expressão "literatura oral", uma
vez que para Zumthor (2002), a oralidade e a performance são elementos maiores que
compõem um todo. Por conseguinte, há outra questão que aproxima Zumthor da
concepção africana de oratura: o emprego da palavra viva. Assim como Bâ (2010),
Zumthor (2002) explica que não é possível atribuir forma a performance porque a
palavra é viva. Mesmo sem fazer uso do termo oratura, o pesquisador trouxe para o
ocidente um pouco desta abordagem totalizadora próxima do mundo não-ocidental e da
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sua tradição oral. Tais proximidades entre a oralidade estudada por Zumthor e a
oralidade para a cultura africana constituem méritos dos estudos realizados pelo
medievalista. Contudo, é preciso frisar que essas proximidades não anulam a existência
de contextos de pesquisa muito distintos, pois é relevante lembrar que Paul Zumthor se
debruçou sobre a performance em meio a um povo ocidental pobre inserido em uma
sociedade medieval. Logo, tais povos, apesar de não serem letrados, estavam
circunscritos por um meio no qual havia o reconhecimento da existência da escrita e,
por consequência, da leitura.
De forma distinta da performance ocidental estudada por Zumthor, o caráter
ritualístico da oratura exige grande engajamento do público, que junto do narrador
performático, se soma a um todo engrandecido pelo saber ancestral e pela tradição da
palavra viva. Trata-se de uma percepção que o saber ocidental poderia tentar
equivocadamente relacionar à produção de presença e ao Stimmung discutidos por
Hans Ulrich Gumbrecht (2014). Contudo, tais conceitos ocidentais não abrangem com
a profundidade necessária a forma com que os elementos da performance da oratura
permeiam uns aos outros, o que torna a percepção e a interpretação uma unidade.

O Ouvir não-ocidental
A memória das pessoas de minha geração, sobretudo a dos povos de
tradição oral, que não podiam apoiar-se na escrita, é de uma fidelidade
e de uma precisão prodigiosas. Desde a infância, éramos treinados a
observar, olhar e escutar com tanta atenção, que todo o acontecimento
se inscrevia na memória como cera

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